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Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Rio de Janeiro, 1935

A rosa de Hiroxima* De acordo com Carlos


Felipe Moisés, este é um dos
Pensem nas crianças primeiros poemas em que
Mudas telepáticas aparece a tentativa de
Pensem nas meninas representar a mulher amada e a
Cegas inexatas experiência amorosa como ponto
Pensem nas mulheres de encontro entre a
Rotas alteradas transcendência e os apelos
Pensem nas feridas terrenos, entre
Como rosas cálidas espírito e matéria.
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima*
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida Numa postura humanista, em que
A rosa com cirrose cria figuras com fortes tintas, o
A anti-rosa atômica poeta canta contra a guerra.
Sem cor sem perfume Usando o verbo "pensar" no
Sem rosa sem nada
imperativo ("pensem"), convida o
leitor a refletir diante das
atrocidades causadas pela guerra;
*Vinícius grafa Hiroxima com X,
pois a rigor é essa a adaptação do e, principalmente, a causada pelo
nome próprio japonês para a mais novo rebento gerado pelo
língua portuguesa. Em tempos ser humano: a bomba atômica. A
mais recentes, devido à influência culpa não é apenas de um
do inglês, é mais comum que se indivíduo ou outro. A culpa, a
grafe a palavra com SH. Ambas as responsabilidade da destruição
formas são aceitas na norma culta.
não é de um país X ou Y, mas de
toda a humanidade. O que está
em jogo aqui é a própria
existência, ou melhor dizendo, a
própria sobrevivência humana.
Sonetos

O soneto, forma literária


Soneto de separação
fechada, é uma escolha formal
De repente do riso fez-se o pranto lúcida para o poeta. Porque aí
Silencioso e branco como a bruma 1 se observa a clareza e a
E das bocas unidas fez-se a espuma concisão de linguagem, de
E das mãos espalmadas fez-se o espanto. características clássicas. Com
ela, o poeta mantém a
De repente da calma fez-se o vento expressão de um lirismo
Que dos olhos desfez a última chama
controlado, ou seja, o
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama. sentimento e a emoção líricos
contêm-se nos limites do
De repente, não mais que de repente equilíbrio e da harmonia. O
Fez-se de triste o que se fez amante poeta procura atenuar os
E de sozinho o que se fez contente. impulsos do "eu", isto é, de sua
subjetividade particular, em
Fez-se do amigo próximo o distante
favor de uma visão impessoal
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente. ou objetiva. Daí dizer que nos
sonetos existe a luta de um
Oceano Atlântico, a bordo do "eu" que ama e um "eu" que
Highland Patriot, a caminho da raciocina.
Inglaterra, 09, 1938

Este soneto, um dos mais


populares de Vinícius, é quase
todo composto num jogo
antitético, tais como: riso X O poeta utiliza um outro recurso,
pranto; calma X vento; triste X num belíssimo arranjo de
contente e próximo X distante. O antíteses, para acentuar o
emprego dessa figura de dinamismo que caracteriza o
linguagem, ao longo do poema, poema: o emprego da forma
revela as mudanças na relação verbal "Fez-se" e de sua forma
amorosa que se processam de contrária "desfez". Há, nessa
uma forma abrupta e inesperada. forma, a clareza e a concisão da
linguagem, características
clássicas que substituem a
tendência alegórica e o
derramamento declamatório
dominantes na fase inicial do
poeta.
Para Carlos Felipe Moisés, a sequência vertical da
Poética
primeira estrofe manhã-dia-tarde-noite obedece a um
De manhã escureço encadeamento lógico: a passagem natural do tempo.
De dia tardo Tal encadeamento é rompido na linha horizontal, já no
De tarde anoiteço primeiro verso ("escureço" se opõe à "manhã") e
ganha ambiguidade no quarto, em que "ardo" conota
De noite ardo A oeste a morte claridade, em oposição ao escuro da noite, mas,
Contra quem vivo
sobretudo, ganha passionalidade (arder, ardor de
Do sul cativo
O este é meu norte. amor). Isso aproxima parcialmente os extremos, dia e
noite, e sugere a passagem do tempo como sucessão
Outros que contem de contrates, negação de expectativas, em um clima
Passo por passo: de intenso subjetivismo (1ª pessoa).
Eu morro ontem

Nasço amanhã Na segunda estrofe, numa atitude de liberdade, de


Ando onde há espaço:
anticonvencionalismo, o eu lírico diz-se guiar pelo "este" e não
- Meu tempo é quando.
pelo "norte" como todos fazem. O último verso da última
Nova York,1950 estrofe privilegia o circunstancial (não é "aquilo que"
acontece, mas o "momento quando" acontece que realmente
importa), valorizando a disponibilidade do instante presente,
para que seja intensamente vivido.

Observando o aspecto formal do poema, parece


haver ali um soneto renovado. Isso confirma a
valorização da liberdade e do individualismo, da
insubordinação e da disponibilidade, também para o
ato de criação poética.

Curiosidade: Na saída de um show em Portugal, diante de estudantes salazaristas que


protestavam contra ele na porta do teatro, Vinicius declama os versos de "Poética" ( De manhã
escureço / De dia tardo / De tarde anoiteço / De noite ardo).

Um dos jovens tirou a capa do seu traje acadêmico e a colocou no chão para que Vinicius
pudesse passar sobre ela - ato imitado pelos outros estudantes e que, em Portugal,

é uma forma tradicional de homenagem acadêmica

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