Fortaleza – Ceará
2009
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Saúde
da Família e Comunidade da Universidade Estadual do Ceará em Parceria com o Sistema
Municipal Saúde Escola de Fortaleza, sob a orientação da Profa. Dra. Vera Lúcia Dantas.
FORTALEZA – CEARÁ
2009
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Especialista, em Saúde
da Família e Comunidade da Universidade Estadual do Ceará em parceria com o Sistema
Municipal Saúde Escola de Fortaleza-CE.
COMISSÃO EXAMINADORA
____________________________________
Profª.dra.
Orientadora
____________________________________
Profª. Ms.
Primeira Examinadora
_____________________________________
Profª.dra.
Segunda Examinadora
FORTALEZA – CEARÁ
2009
À minha companheira Ana Eufrázio pela disposição em ouvir e contribuir com suas valiosas
sugestões.
À Profa. Vera Lucia Dantas, querida Verinha, que de forma atenciosa, gentil, sensível e
competente concedeu-me seus valiosos tempo e saberes e se dispôs a orientar-me na difícil, mas
gratificante tarefa de construção deste trabalho.
Aos professores e preceptores da Especialização em Saúde da Família e Comunidades, em
especial à professora Eugênia Gadelha por sua disposição imediata em colaborar com este
trabalho e ao professor “Tanta” pelas dicas e observações.
Às professoras Carmem Leitão Araújo e Lúcia Conde de Oliveira que gentilmente se dispuseram
a colaborar com seus conhecimentos e experiências para o exame e aperfeiçoamento deste
trabalho.
Aos companheiros de especialização pela possibilidade de troca de informações, percepções,
afetos e principalmente pela conjunção de esforços no sentido do avanço do caráter humanizador
da atenção à saúde e consequentemente da transformação da realidade de saúde da população do
município de Fortaleza.
“O homem é, a cada minuto, pleno de possibilidades não realizadas”.
Vigotski
RESUMO
The communities Boa Vista e Castelão are included in the territory of ascription of the Center for
Family Health Edmar Fujita and they have, second point of view of various local actors as the
main obstacle to the process of social intervention, the difficulty of mobilizing popular
participation and encourage the role and empowerment of individuals, were organized: The
Popular Forum local, responsible for triggering reflections on the history, extreme-situations and
possibilities, and the Extended Research Community built from the working group of the Forum,
and through events such as seminars, workshops, participatory planning, among others, created
the conditions for the analysis and planning intervention strategies and the formation of subject-
group can promote reflection and systematization of the entire training process.
Methodologically, this study used proposal of the Extended Research Community, the specific
device for action research in an innovative way that emphasizes the pedagogical and
transformative dialogue-confrontation between the knowledge of the academic world (scientific
technical) and knowledge of the life world (experience), here applied to the reality of
communities Boa Vista e Castelão. To foster the character of dialogue/intersubjective activities of
the Forum and the Extended Community worked to questioning from generating themes,
proposed by the circles of culture, characteristic of the pedagogical work of Paulo Freire. As
instruments of data collection were used the technique of participation observation of several
meetings for reflection and action and a roadmap to the end of semi-structured interview was
applied to the participants of Extended Research Community. The complex nature of the
difficulties of political participation of communities in situation of social oppression and political
problem is recognized by all those who support the struggle of classes. The difficulties of
community mobilization were seen at various times this action research, including those where
however, the capacity of these communities to the create alternatives to what is laid, the building
process of individualization of establishing mechanisms to overcome their social and political
problems.
Imagem 2 – O grupo-sujeito...........................................................................................................59
Imagem 3 – O ato-limite.................................................................................................................62
Imagem 6 – Sínteses......................................................................................................................76
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
1.1 Contextualização e justificativa 10
1.2 Objetivos 22
3. PERCURSOS METODOLÓGICOS
43
4. SÍNTESE DE UM CAMINHAR
4.1 O Fórum Popular 50
4.2 O Grupo-Sujeito 58
4.3 A Comunidade Ampliada de Pesquisa da Boa Vista e Castelão 62
5. CONCLUSÕES 77
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 81
APÊNDICES 85
1 INTRODUÇÃO
A história de luta da comunidade, como será visto, se estende por todas as dimensões da
vida social se revelando luta política em essência, ou seja, se estende das lutas materiais por
condições dignas de vida às de caráter imaterial/superestrutural por respeito aos seus valores e
sua produção cultural, incluído aí o enfrentamento às determinações do poder público municipal
que, segundo os moradores, “teima” em chamar o lugar onde vivem como Bairro Mata Galinha.
Esta relação subjetiva do sujeito com o lugar onde vive e luta, ou seja, seu território coaduna-se
com o conceito de território defendido por Milton Santos (2005), “É o uso do território, e não o
território em si mesmo, que faz dele objeto da análise social. (...). Seu entendimento é, pois,
fundamental para afastar o risco de alienação, o risco da perda do sentido da existência individual
e coletiva, o risco de renúncia ao futuro”.
Já o Bairro Castelão tem sua história ligada à construção do Estádio Plácido Aderaldo
Castelo, popularmente conhecido, como Castelão. Inaugurado em 11 de novembro de 1973, o
estádio Castelão é a principal praça esportiva do estado e principal fator de atração de
investimento público na infra-estrutura local. O bairro possui área de 178,10 hec onde convivem
5.319 moradores (segundo estimativa do IBGE para 2008).
Apesar dos bairros Boa Vista e Castelão e suas comunidades estarem descritos
separadamente com suas singularidades, para grande parte dos moradores, são na verdade um
único bairro, considerando sua contigüidade geográfica e seus percursos históricos que se
confundem. Na realidade dos gabinetes, entretanto apresentam-se divididos. Divididos
geograficamente pela desconsideração dos valores históricos e culturais locais pelo poder público
na determinação dos limites territoriais do município. Divididos economicamente pela sanha
especulativa do mercado imobiliário em específico e pela sanha de lucro dos mercados em geral,
e por fim divididos concretamente pela cultura de segregação social desta ordem econômica, que
cria os muros necessários para que os excluídos não tenham acesso aos benefícios estruturais das
políticas de desenvolvimento urbano.
Ao redor do Estádio Castelão e ao longo da Avenida Alberto Craveiro se instalaram os
atores de maior poder econômico, principalmente, depois da estruturação destas áreas “nobres”
pelo poder público (com a construção do estádio e a urbanização das áreas próximas, por
exemplo) e pela ação especulativa de valorização imobiliária do local. Em realidade, grande parte
da tal “estruturação” deu-se principalmente à custa da organização e luta da comunidade da Boa
Vista no sentido de exigir do poder público, condições de vida com um mínimo de dignidade. A
segregação geográfica e social entre a “Esplanada Castelão” e a comunidade da Boa Vista é
representativo de tal contexto.
A Esplanada Castelão representa a microrregião do bairro Castelão ocupada pelos atores
de maior poder econômico. Com suas casas de alvenaria, amplas e bem-estruturadas, residência
da classe média local, está espacialmente inserida na circunvizinhança da comunidade Boa Vista
caracterizada pelas casas simples às margens do Rio Cocó, expostas às enchentes dos períodos
chuvosos e de cheia do rio, muitas delas construídas de madeira e papelão, produto das
“ocupações” e, sobretudo do abandono e da exclusão social. È neste ambiente de extrema
contradição que convivem lado a lado a miséria e o luxo de uma comunidade ou de duas
comunidades que representam em pequenas dimensões as contradições de um país rico e injusto,
“globalmente” inserido numa ordem econômica desigual.
A compreensão de tais contradições, necessariamente depende, não só da percepção do
caráter complexo das relações de dominação e opressão social, mas principalmente, do solidário
envolvimento do trabalhador de saúde, enquanto trabalhador social, nos processos de luta em
defesa dos interesses das classes populares. No processo dialético da estrutura social, não pode
“ser o trabalhador social, como educador que é; um técnico friamente neutro. Silenciar sua opção
escondê-la no emaranhado de suas técnicas ou disfarçá-la com a proclamação de sua neutralidade
não significa ser neutro, mas, (...) trabalhar pela preservação do status quo”. (FREIRE, 1981, p.
32).
Depende ainda da compreensão da dimensão subjetiva do ato de cuidar da saúde/vida do
outro enquanto prática necessariamente dependente da construção de relações baseadas na
dialogicidade e intersubjetividade, revestidas neste instante, em ação solidária e humanizante.
Tais relações exigem o autêntico engajamento na luta pela transformação deste modelo de
sociedade que adoece e mata porquanto oprime e desumaniza.
O contexto de minha origem e história pessoal teve papel determinante nesta construção.
Apesar de ter nascido em município do interior do Estado do Ceará, cresci nas favelas do Castelo
Encantado e Serviluz, na periferia do município Fortaleza, comunidades que enfrentam e
convivem com problemas sociais semelhantes aos dos Bairros Boa Vista e Castelão. Acredito que
minha origem social, minha condição de negro e morador da favela, filho de operária sem estudo
formal e mãe solteira tenha facilitado a identificação contextual e possibilitado uma atuação
implicada com os sujeitos e o território. O convívio com o universo de dores idênticas e solidárias
dos meninos das classes populares, o medo da fome, do abandono e da exclusão, além de
determinantes na construção de minha personalidade, permitiram-me a aproximação e o diálogo
com sujeitos que sobrevivem e lutam contra tal realidade.
Todos esses fatores forjaram concepções pessoais caracterizadas pela irrefreável
indignação e revolta perante o quadro social desumanizante e desumanizador deste modelo de
sociedade, bem como pelo desejo utópico de transformação social e de superação desta realidade
de indignidade e injustiça. A adoção de uma compreensão crítica e de contraposição radical a
estes paradigmas societal e epistemológico, que Boaventura Santos conceitua como “paradigmas
da modernidade” (SANTOS, 1999) compõem a base ideológica que subsidia e estrutura a
construção desta pesquisa.
O contato com um ambiente acadêmico de profundas contradições reveladas durante meu
período de formação em Odontologia na Universidade Federal do Ceará de 1992 a 1996. O
entrechoque da realidade da periferia com o ambiente acadêmico de um curso superior com um
histórico de “elitismo”. A percepção dos interesses envolvidos no processo de formação do
trabalhador da saúde, da contradição revelada no fato de que apesar do caráter, do interesse e do
financiamento público do curso, em termos concretos, ele atendia, em grande medida, a interesses
individuais e de mercado e essencialmente visava formar / conformar consciências nos estreitos
limites do trabalho “mercantilizante”. As contradições percebidas durante o período de oito anos
em que trabalhei no serviço público do interior do Estado do Ceará, do contato aproximado com a
dureza da vida do homem do campo, das relações trabalhistas precarizadas e das condições de
vida precarizantes.
A possibilidade de abertura à reflexão conferida pelo processo de educação permanente
desenvolvida através desta Especialização em Saúde da Família e Comunidades, e com ela o
contato com as bases teóricas da Educação Popular, a possibilidade da apropriação dialógica de
formas de agir, pensar, sentir, a atenção à saúde, em uma dimensão ampliada, enquanto prática
social, condicionada pelo contexto histórico-social e aberta a superação a partir de suas
contradições, e enquanto ato de cuidar, no sentido necessariamente humanizador e solidário; a
possibilidade de construção do inédito-viável a partir da chegada de estudantes no CSF Edmar
Fujita, como as turmas do Curso de Odontologia da disciplina Estágio Extra Mural da UNIFOR
em 2008, que felizmente começaram a utilizar o território da UBS como campo de práticas e de
construção de saberes, e que com seus desejos de mudança e sonhos ajudaram a construir esta
pesquisa; e por fim, a percepção, adquirida neste caminhar epistemológico coletivo, de um desejo
autêntico de transformação da realidade social, de superação das situações-limite, presentes nas
falas dos componentes do grupo desta comunidade ampliada de pesquisa. Estes e outros fatores
acenderam, neste coletivo, o desejo de procurar conhecer e apropriar-se de temas, até hoje,
infelizmente tão pouco afeitos à prática social dos trabalhadores da saúde quanto à questão da
participação popular e comunitária, do protagonismo e da autonomia “possível” dos sujeitos, ou
como ressaltou Paulo Freire, do processo de intervenção no contexto dos “esfarrapados do
mundo” (FREIRE, 2005).
Pelo contexto histórico, acima afirmado, de um modelo de sociedade que nega aos mais
pobres a possibilidade de se afirmarem enquanto sujeitos, e que utiliza a opressão e a coisificação
como estratégia de dominação, necessária se faz a construção de alternativas de superação destas
contradições, exatamente por aquele que diretamente sente os efeitos desta conjuntura, ou seja, o
sujeito socialmente oprimido.
Contraditoriamente, a realidade das comunidades carentes, apesar de todas as agruras
citadas, dialetiza-se nos extremos de tristeza e alegria, humaniza-se no arranjo complexo de
carências e abundâncias extremadas. Tal paradoxo me faz recordar, com certa ironia, a
contraditória “miséria suburbana” da periferia, cenário de expressão dialética da privação
material, da solidariedade e fraternidade dos humildes, de injustiça e iniqüidade e de riqueza
subjetiva, compaixão e respeito ao próximo. Como resposta, do oprimido, ao preconceito e à
indignidade, uma cordialidade respeitosa e educada tão ausente na urbanidade da classe média.
No final, o predomínio da integridade humanística dos esfarrapados. Aqui mais uma vez, o
pensamento freireano é reafirmado, “aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos-
libertar a si e aos opressores. (...) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será
suficientemente forte para libertar a ambos.” (FREIRE, 2005, p. 33).
Ainda trago em minha memória os sorrisos incontidos dos meninos que corriam nas ruas
das comunidades pobres em que cresci. Ruas que diferentemente do que comumente se afirma,
também confraternizam e educam. Tal percepção choca-se com a contraditoriedade do discurso
contemporâneo, que visa “expulsar” os pobres do cenário urbano, retirá-lo das ruas. Excluído
social e economicamente, agora, o objetivo de alguns setores de nossa sociedade parece ser,
excluí-lo fisicamente. Para estes setores, os pobres e suas demandas por justiça, representam hoje
ameaça concreta ao status quo, e os aparelhos repressivos estatais e os programas assistencialistas
governamentais não parecem conseguir garantir a “paz social” tão desejada. Como nos lembra
Pedro Demo (2000, p.27) “O sistema não teme pobre com fome, mas teme pobre que sabe
pensar”.
A percepção difundida de uma contemporaneidade dominada pelo medo e pela violência,
possivelmente seja conseqüência direta de uma realidade que se estruturou e cotidianamente se
justifica a partir da opressão e da exploração. Como nos lembra Paulo Freire (2005, p.32), “A luta
pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como
pessoas, (...) somente é possível porque a desumanização, (...), não é, (...), destino dado, mas
resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores”.
A condição de “condenado da terra”, de “esfarrapado do mundo” a que foi jogado o
homem humilde do campo e da cidade, por este modelo de sociedade, através da construção de
instrumentos de dominação cultural e ideológica exigem a reflexão crítica. Os estereótipos do
oprimido socialmente incompetente, incapaz, marginal, violento e fatalista, politicamente apático,
dependente, conformista e preguiçoso, justificam a necessidade da práxis voltada para o
desvelamento de tais artimanhas. Entender como tais mecanismos atuam tão eficazmente no
sentido de aprisionar o ser humano a uma condição de “ser menos”, dilacerando sua infinita
possibilidade de “ser mais”. Entender por fim, como e porque o homem adoece e morre ao perder
sua capacidade de decidir seu destino, de sonhar, de lutar, de humanizar-se. Estes e outros
questionamentos existenciais se inserem como pano de fundo deste caminhar epistemológico.
Em termos práticos este trabalho visa atender a demanda social pela construção de
mecanismos de participação política da comunidade, de estruturação de espaços de construção de
autonomias possíveis, de discussão da realidade social local e da construção planejada de
propostas alternativas aos seus problemas. De forma concomitante, objetiva estimular a atuação
coletiva organizada nos espaços já instituídos pelo poder público, fortalecer o poder de atuação
dos movimentos sociais de base comunitária e, por fim, visa possibilitar a formulação de
estratégias com possibilidade de facilitar a transformação da realidade social.
Tal temática se justifica pela convicção pessoal de que além do impacto sobre as
dimensões bio-psico-sociais, e consequentemente sobre os processos de saúde-doença, a busca de
alternativas de emancipação representa mecanismo sustentador da própria condição humana, de
sua historicidade. Para Boaventura (1999, p.76), o projeto sócio-cultural da modernidade
“cumpriu algumas das suas promessas e até as cumpriu em excesso, e por isso mesmo
inviabilizou o cumprimento de todas as restantes”. São exatamente estes excessos e carências,
conseqüentes à superação e obsolência deste modelo, que perfazem a sensação atual de vazio ou
crise, mas que para o autor apresenta características típicas de uma transição de paradigmas.
Representa a ruptura da visão liberal de modernidade em direção a um modelo epistemológico e
societal pós-moderno. “O que é verdadeiramente característico do tempo presente, é que pela
primeira vez neste século, a crise de regulação social corre de par com a crise de emancipação
social” (SANTOS, 1999, p.35). Neste contexto de transição paradigmática, a discussão sobre
participação popular, objeto de estudo deste trabalho, enquanto mecanismo, estratégia,
dispositivo de construção da emancipação e do protagonismo dos sujeitos, se reveste de
insofismável importância.
Esta crise estabelece-se em um momento de refluxo do poder de atuação política da classe
trabalhadora e de aumento do controle ideológico das camadas populares. Em conseqüência do
avanço das políticas neoliberais, da hipertrofia do poder real (político e econômico) e simbólico
(cultural/ideológico) de setores da sociedade ligados à estrutura do mercado e do incremento da
produção capitalista (crescimento econômico) nas duas ultimas décadas do século XX. Paulo
Freire (1998 apud FIGUEIREDO, 2005) nos lembra que “necessária e urgente se fazem a união e
a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a da negação de nós mesmos como seres
humanos submetidos à “fereza” da ética do mercado”.
Para a construção teórica desta pesquisa, foram utilizados trabalhos de autores que
trouxeram à tona a análise sistemática do contexto social moderno, a análise critica do modelo
econômico capitalista e suas relações de poder e dominação e a análise epistemológica de formas
de intervenção social capazes de estimular a mudança desta realidade. O pensamento crítico e
transformador de obras que enfatizam a inseparabilidade entre teoria e prática, reflexão crítica e
ação libertadora, para compreensão da realidade e transformação do homem e do mundo, tais
como: “Pedagogia do Oprimido”, “Pedagogia da Autonomia” e “Ação Cultural para a Liberdade”
do mestre Paulo Freire e “Pela mão de Alice – O social e o político na pós-modernidade” do
sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. A abertura epistemológica proporcionada por
“A pesquisa-ação” de René Barbier, “Cultura e democracia” da professora Marilena Chauí,
“Educação e conhecimento” do Professor Pedro Demo e “Um método para análise e co-gestão de
coletivos” do professor Gastão Wagner de Sousa Campos. Os valiosíssimos artigos sobre
controle social, educação popular e participação do Professor Victor Vincent Valla, além de
artigos diversos sobre participação popular de autores como, Eduardo Stotz, Luiz Cecílio, Maria
da Glória Gohn e sobre comunidade ampliada de pesquisa da profa. Maria Elizabeth Barros
alicerçaram este caminhar.
Ainda em 2007 os trabalhadores de saúde bucal junto com os agentes de saúde do CSF
Edmar Fujita tentaram realizar uma atividade de participação comunitária voltada para discussão
sobre os problemas de saúde bucal. Percebeu-se pelas dificuldades de mobilização comunitária
que existiam obstáculos ao processo integrativo entre comunidade e unidade de saúde, mesmo
quando havia abertura a discussão de aspectos estruturais e políticos dos serviços. Tal situação foi
geradora de percepções enviesadas e preconceituosas sobre o interesse e a capacidade de
iniciativa e atuação política da comunidade.
O Sistema Municipal de Saúde Escola (SMSE) ao efetivar a política municipal de
educação permanente como estruturante da organização e gestão do SUS municipal, possibilitou
as condições técnico-materiais para o engendramento de iniciativas voltadas para o contexto da
participação popular. Dentre elas, a Especialização em Saúde da Família e Comunidade teve
importância fundamental, pois proporcionou as bases teórico-metodológicas para os processos de
sistematização das ações e experiências voltadas para a participação popular, promovendo o
compartilhamento de saberes no território e consequentemente o estímulo ao desenvolvimento de
reflexões sobre o processo de participação comunitária pelos atores sociais locais.
Partindo deste contexto senti-me estimulado a perguntar “que mecanismos, dispositivos
e/ou estratégias poderiam ser construídos nas comunidades Boa Vista e Castelão de forma a
potencializar a participação popular, estimular o protagonismo e a emancipação dos
sujeitos?”.
Esta monografia se divide em tópicos aqui separados para facilidade de análise, mas que
se apresentam objetivamente inter-relacionados como a sistematização das reflexões e ações irá
demonstrar no corpo deste trabalho. No tópico 2, será feita a análise teórica da Estratégia de
Saúde da Família, do Sistema Único de Saúde e a relação destes com as estratégias de
participação comunitária. No mesmo será feita a problematização e a contextualização destas
questões em diálogo com a realidade local. No tópico 3 será realizada a abordagem conceitual do
tema participação popular através da revisão teórica e da contextualização com a história da
comunidade Boa Vista/Castelão. No tópico 4 será abordada a metodologia utilizada como
mecanismo de intervenção na realidade local, ou seja, se fará a abordagem conceitual dos temas
Fórum Popular e Comunidade Ampliada de Pesquisa. No tópico 5, serão analisados os resultados
objetivos e subjetivos deste trabalho, a sua problematização, a análise das categorias levantadas
pelo estudo e os diálogos das mesmas com a teoria. No tópico 6 serão realizados os comentários
finais e conclusões. Os tópicos 7 e 8 apresentarão respectivamente as referências bibliográficas
utilizadas e os anexos com rol de instrumentos utilizados nesta construção.
1.2 Objetivos
a) OBJETIVO GERAL:
Construir coletivamente, dispositivos e/ou estratégias nas comunidades Boa Vista e
Castelão que potencializem a participação popular e, estimulem o protagonismo e a emancipação
dos sujeitos.
b) OBJETIVOS ESPECÍFICOS:
• Organizar o Fórum Popular local enquanto espaço coletivo de discussão e
definição de situações-limite na perspectiva de constituição de sujeitos nas comunidades Boa
Vista e Castelão;
• Promover com o grupo de trabalho / comunidade ampliada de pesquisa, eventos
tais como seminários, oficinas de planejamento participativo, entre outras, de modo a refletir e
planejar atos-limite, para as situações limite apontadas.
• Estruturar a Comunidade Ampliada de Pesquisa e constituir o grupo-sujeito para
proceder às reflexões e sistematização do processo.
Grande parte dos conselhos de saúde no Brasil enfrenta dificuldades de estruturação deste
controle público em conseqüência da reduzida participação dos usuários e de representação de
setores da sociedade civil de caráter popular, ou seja, “aqueles preocupados com a construção
da cidadania, a melhoria da qualidade de vida e o controle desse processo pela sociedade civil
organizada e pelos cidadãos” (VALLA, 2009).
Neste contexto, está claro, que o processo de efetivação da participação popular nos
Conselhos de Saúde é interdependente da construção de espaços/tempos coletivos que objetivem
a participação política livre de sujeitos capazes de pensar e agir de forma autônoma ou, dotados
de “autonomias possíveis”. A participação popular, neste contexto, “significa uma força
social imprescindível para fazer sair do papel as conquistas e impulsionar as mudanças
necessárias”. (VALLA, 1998).
3. PARTICIPAÇÃO POPULAR
Participação popular é tema ainda novo dentro dos marcos teóricos das ciências da saúde
e conceitualmente controverso para as ciências sociais. O objeto participação popular enquanto
tema central do processo de controle social de políticas públicas teve sua importância
reconhecida em contexto histórico recente. Coincidiu com as discussões visando à formulação
dos aspectos técnicos e políticos do Sistema Nacional de Saúde, ou seja, sua emergência
enquanto marco teórico de importância sócio-política coincidiu com as lutas em defesa do
Sistema Único de Saúde, a partir do Movimento de Reforma Sanitária.
Para Valla (1998, p.09), “participação popular compreende as múltiplas ações que
diferentes forças sociais desenvolvem para influenciar a formulação, execução, fiscalização e
avaliação das políticas públicas e/ou serviços básicos na área social”, mas pode ter outros
sentidos, aliás, uma das características marcantes da discussão sobre participação é exatamente,
seu caráter ambíguo.
Consciente desta ambigüidade e com o intuito de tentar facilitar a compreensão sobre a
categoria participação aqui abordada torna-se necessário um esclarecimento prévio, “a literatura
sobre o tema tem tratado como participantes em potencial a comunidade, o consumidor, as
classes populares (participação popular), o cidadão e o usuário”. (CORTES, 2002). Este trabalho,
apesar de concretamente lidar com o usuário do sistema de saúde e em vários momentos abordar
a questão da participação deste na construção das políticas do setor, tem o objetivo de articular o
processo de atuação política do usuário, à discussão sobre a construção da emancipação das
classes populares e do protagonismo dos atores comunitários. Para tal fim, considera-se que há
participação quando o envolvido tomar parte no processo de decisão política, ou seja, quando
atua como sujeito e decide os rumos da vida em sociedade.
A referência a “classe popular” é específica à “grande parcela da população que, se não
tiver um trabalho diário remunerado, corre o risco de não satisfazer suas necessidades mínimas de
moradia e alimentação, mas que permanece muito distante de qualquer forma de realização
profissional ou familiar” (VALLA, 2009). Como será discutida mais adiante, a referência à
participação popular aqui abordada, também se insere no contexto da participação política destas
mesmas classes em suas lutas pela sobrevivência física e pela emancipação sócio-política.
Os conceitos de participação e protagonismo se inter-relacionam, visto que em essência a
categoria participação envolve um processo de vivência que imprime sentido e significado a um
grupo ou movimento social, tornando-o protagonista de sua história, desenvolvendo uma
consciência crítica desalienadora, agregando força sociopolítica a esse grupo ou ação coletiva, e
gerando novos valores e uma cultura política nova. A construção do protagonismo comunitário
envolve necessariamente o “empoderamento”, ou seja, exige a instauração de processos que
tenham a capacidade de gerar desenvolvimento auto-sustentável, com a mediação de agentes
externos - os novos educadores sociais – atores fundamentais na organização e no
desenvolvimento dos projetos. Uma característica recente deste processo é que ele tem “ocorrido,
predominantemente, sem articulações políticas mais amplas, principalmente com partidos
políticos ou sindicatos”. (GOHN, 2004).
Enquanto em fins da década de 70 predominava entre os movimentos sociais a idéia de
participação e organização da população civil do país no sentido da luta contra o regime militar,
tendo como eixo estruturante a idéia de autonomia. Nos anos oitenta, ocorreu um descentramento
do setor popular (movimento sindical e de bairro) como “sujeito social histórico” e o conseqüente
aparecimento de novos atores que trouxeram para arena política a discussão sobre o conceito de
cidadania. A incorporação ao discurso oficial e a resignificação do conceito cidadania nos anos
90 promoveram uma mudança nos mecanismos de atuação dos movimentos sociais, visto que, tal
conceito engloba a idéia de participação civil, de responsabilidade social dos cidadãos, por tratar-
se não apenas dos direitos, mas também de deveres, e consequentemente homogeneíza os atores.
(GOHN, 2004).
A variedade de movimentos sociais, principalmente do chamado terceiro setor e suas
respectivas formas de atuar, gera um “cenário contraditório, no qual convivem entidades que
buscam a mera integração dos excluídos por meio da participação comunitária em políticas
sociais exclusivamente compensatórias” representadas pelas entidades de perfil corporativo;
com “entidades, redes e fóruns sociais que buscam a transformação social por meio da mudança
do modelo de desenvolvimento que impera no País”. (GOHN, 2004)
Alguns pressupostos sustentadores do que é aqui defendido como participação, se
coadunam com o sistematizado por Gohn (2004), ou seja: a construção de uma sociedade
verdadeiramente democrática só será possível através “da participação dos indivíduos e
grupos sociais organizados”. A sociedade não será transformada apenas com a participação no
plano local, micro, mas “é a partir do plano micro que se dá o processo de mudança e
transformação na sociedade”. É exatamente no plano local, mais precisamente no espaço do
território, “que se concentram as energias e forças sociais da comunidade, constituindo o poder
local daquela região”; mas, além disso, é no local onde ocorrem as experiências, ele é a fonte
do que vem a ser designado capital social, “aquele que nasce e se alimenta da solidariedade
como valor humano. O local gera capital social quando gera autoconfiança nos indivíduos de
uma localidade, para que superem suas dificuldades”. Acima de tudo o capital social cria, “junto
com a solidariedade, coesão social, forças emancipatórias, fontes para mudanças e transformação
social”. Por fim, “é no território local que se localizam instituições importantes no cotidiano de
vida da população, como as escolas, os postos de saúde etc.”. È importante enfatizar, entretanto,
que o poder local de uma comunidade não existe a priori, necessita ser organizado, “adensado
em função de objetivos que respeitem as culturas e diversidades locais, que criem laços de
pertencimento e identidade sociocultural e política”.
A participação da sociedade civil na esfera pública - via conselhos e outras formas
institucionalizadas – deve se dar de forma “ativa e considerar a experiência de cada cidadão que
nela se insere e não tratá-los como corpos amorfos a serem enquadrados em estruturas prévias,
num modelo pragmatista” de modo a exigir que o Estado cumpra seu papel institucional. Ou seja,
propiciar educação, saúde e demais serviços sociais com qualidade, e para todos. (GOHN, 2004).
Valla citando Stotz (1998) chama atenção para a urgência de superar esta mera defesa do
papel do Estado em prover diretamente ou em regular a oferta privada (contratada ou autônoma)
de serviços. Segundo ele, “Para que tais serviços contemplem de fato as necessidades sociais das
populações, precisam levar em conta, obrigatoriamente, o que as pessoas pensam sobre seus
próprios problemas e que soluções espontaneamente buscam”.
Há a necessidade de se garantir, aos atores sociais das classes populares, o poder de
decisão sobre o que efetivamente deseja e lhe interessa, através do fortalecimento dos coletivos
formais e informais de participação política. Isso pode ser iniciado pelo resgate da história das
lutas comunitárias por conquista e efetivação de direitos sociais e políticos. Como tão bem
lembra o autor “A história nunca começa com o contato dos profissionais dos serviços com as
suas clientelas”. Para ele “há um passado que ainda vive, em sua virtualidade, no presente e está
referido às experiências acumuladas em uma gama amplamente diversificada de alternativas, bem
como às lutas moleculares ou coletivas que enraízam formas de pensar e agir”. E complementa
“É esta experiência que precisa ser resgatada pelos serviços, pelos profissionais, técnicos e
planejadores” (VALLA, 1998).
No contexto da crise de interpretação dos mediadores, algumas questões podem estar
diretamente implicadas como, por exemplo, as diferenças de concepção sobre o modo como as
classes populares “encaram a vida”. A superação deste obstáculo deve passar necessariamente
pela admissão por parte dos mediadores/profissionais de que “é bem provável que esses setores
da população tenham enorme lucidez sobre a sua situação social, o que pode significar também
que seja ilusória uma considerável melhoria de vida”. Nesse sentido, a “crença em melhorias e
numa solução mais efetiva pode apenas ser um desejo, embora importante, da classe média
comprometida”.
Para Valla (1998), “ainda que alguns mediadores sejam mais atenciosos e respeitosos
com as pessoas pobres da periferia, os muitos anos de uma educação classista e preconceituosa
faz com que o papel de ‘tutor’ predomine nas suas relações com esses grupos”.
A reflexão sobre participação política, para Chauí (1989, p.300), envolve necessariamente
a compreensão da categoria “opinião pública”. Segundo a autora, no contexto atual da indústria e
do marketing político, a opinião pública deixou de ser a “reflexão e ponderação em público”,
herança da antiga democracia grega, para tornar-se o “desabafo dos sem-poder captado pelo
mercado político para ser convertido em ‘demanda social’ e para ser trabalhado pelas
‘elites’ a fim de convertê-lo em mercadoria oferecida pelos partidos aos cidadãos”. Tal
situação significa que “a opinião propriamente dita é produzida pelos vendedores da mercadoria
política”, e consequentemente “produz a ilusão da participação”, ou seja, engendra o contexto
de “cidadãos isolados, privatizados e despolitizados imaginando que a expressão, em público, de
suas angústias, de seus medos, de seus desejos os converteriam em sujeitos políticos ativos”, ou
mais precisamente “como se o desabafo pudesse elidir a impotência sócio-política no exato
momento em que a deixa aparecer em público” .
Como paradoxalmente “o processo da despolitização só será eficaz se também produzir o
sentimento da participação (ainda que ilusória)”. Chauí (1989, p. 300-301) provoca, ao indagar
“se as contradições entre a ilusão de participar e a percepção efetiva da heteronomia crescente das
práticas sociais e das idéias políticas [de repente] não provocaria um movimento que fizesse
aparecer (...) os limites da ilusão e da heteronomia e pudesse introduzir o tema da autonomia”.
Para ela, os “movimentos sociais e populares que agem como contra-poderes sociais” poderiam
ser uma pista deste movimento.
Para Glória Gohn, movimentos sociais são “ações sociais coletivas de caráter sócio-
político e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas
demandas”. Podem ter caráter diversificado, mas quando assumem postura política progressista
“constituem e desenvolvem o chamado empowerment de atores da sociedade civil organizada à
medida que criam sujeitos sociais para atuação em rede”. Para a autora, os movimentos atuais
construíram um novo entendimento sobre autonomia; para eles, ter autonomia é “ter projetos e
pensar os interesses dos grupos envolvidos com autodeterminação; é ter planejamento estratégico
em termos de metas e programas; é ter a crítica, mas também a proposta de resolução para o
conflito”. A autora continua “é ser flexível para incorporar os que ainda não participam, mas têm
o desejo de participar, de mudar as coisas e os acontecimentos da forma como estão”. E finaliza,
“é priorizar a cidadania: construindo-a onde não existe, resgatando-a onde foi corrompida”.
(GOHN, 2003, p. 13-17)
Para Chauí, autonomia é a “capacidade interna para dar-se a si mesmo sua própria lei ou
regra e, nessa posição da lei-regra, pôr-se a si mesmo como sujeito”. E complementa, “a
autonomia não consiste, então, no poder para mudar o curso da história e sim na capacidade para,
compreendendo esse curso, transformar-lhe o percurso”. (CHAUÍ, 1989. p, 300-301).
A luta política em defesa da autonomia pressupõe: “a compreensão de que a forma
contemporânea da dominação e da exploração cristaliza-se na separação radical, em todas as
esferas da vida social, entre dirigentes e executantes”. Separação na qual, os primeiros “detêm a
decisão, a direção, o controle e as finalidades de uma prática, enquanto os segundos devem adotar
comportamentos prescritos (...) cujo modo de realização, sentido e fins lhes escapam
inteiramente”. Chauí complementa “essa heteronomia (...) é reforçada e naturalizada porque
encontra suporte na ideologia da competência, isto é, na crença de que o saber dos especialistas
enquanto saber legitima o exercício de autoridade”. Tal conjuntura ocorre sem que se leve em
conta que de um lado “a criação dos competentes só pode ser feita pela criação simultânea dos
incompetentes” e por outro lado “o vinculo entre saber e poder, tal como o conhecemos, é
resultado das instituições sociais criadas pelo capitalismo”. (CHAUÍ, 1989. p, 306).
Aqui recorremos mais uma vez a reflexão freireana, quando afirma que “um dos
elementos básicos na mediação opressores-oprimidos é a prescrição. Toda prescrição é a
imposição da opção de uma consciência à outra”, o autor finaliza afirmando, “por isto, o
comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas estranhas
à ele – as pautas dos opressores” (FREIRE, 2005, p. 36-37)
Há a necessidade de se refletir sobre até que ponto os mediadores estão contribuindo para
processo de culpabilização das classes populares e consequentemente estão fortalecendo os
processos de dominação e opressão. “Uma das justificativas para se culpar as vítimas é a
desqualificação do saber popular. Assim, o monopólio do saber técnico, seja médico ou de
outro tipo, põe em segundo plano o saber acumulado da população trabalhadora, ao lançar mão
da escolaridade como parâmetro da competência”. (VALLA, 1998).
Tal concepção aponta para a necessidade de se desvelar esta outra categoria, construída
ideologicamente pela sociedade capitalista. O discurso da “competência” é responsável pela
forma contemporânea de dominação, através da separação entre o controle técnico-científico do
processo de trabalho por um grupo de dirigentes competentes (concepção) e a execução do
trabalho pela maioria incompetente (realização) (CHAUÍ, 1989. p, 109). Para Chauí, o discurso
competente “se instala e se conserva graças a uma regra que poderia ser assim resumida: não é
qualquer um que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro em qualquer ocasião e em
qualquer lugar”. E complementa “com esta regra, ele produz sua contraface: os incompetentes
sociais”. Incompetentes tolhidos na capacidade de construir seus destinos através da participação
política. Todavia, Chauí aponta um caminho “se procurarmos desvendar os mecanismos de
produção da incompetência social, teremos alguma possibilidade de desfazer internamente o
discurso da competência”. Complementa, “trata-se de contestar o uso privado da cultura, sua
condição de privilégio ‘natural’ dos bem dotados, a dissimulação da divisão social do trabalho
sob a imagem da diferença de talentos e de inteligências”. E finaliza “é a noção de competência
que torna possível a imagem da comunicação e da informação como espaço da opinião pública
(...) ao fazer do público espaço da opinião, essa imagem destrói a possibilidade de elevar o saber
a condição de coisa pública, isto é, de direito a sua produção por parte de todos”. (CHAUÍ, 1989,
p. 02).
Essa desqualificação do saber das classes populares é utilizada como instrumento de
dominação e tem seu contexto ampliado de forma a desqualificar os sujeitos destes saberes,
castrando a “vocação dos homens” de humanizarem-se (FREIRE, 2005). Daí que a
“desqualificação da classe trabalhadora também passa pela construção de uma imagem do bruto,
do carente, do nulo, afirmando, aliás, que família pobre é ‘igual à doença’”. Neste contexto,
estrutura-se o objetivo da dominação de “apagar as diversidades do interior das classes populares
e de infantilizar os mesmos trabalhadores”, para isso “chama-os de mentirosos quando alegam
problemas de saúde, de apáticos quando demonstram desinteresse na sala de aula, ou acusa-os de
não compreender os conselhos de prevenção”. (VALLA, 1998).
Tal condição gera dentro do processo educacional, enquanto troca de saberes, situações
ou idéias mitificadas, como o fato de que na “aceitação” de que “os saberes dos profissionais e da
população são iguais, esteja implícita a idéia de que o saber popular copia o dos profissionais”.
Gera ainda obstáculos muitas vezes intransponíveis à autenticidade do processo, como por
exemplo, o fato de que “se a referência para o saber é o profissional, tal postura dificulta a
chegada ao saber do outro”. Tal processo se dará possivelmente pela superação da incongruência
de nós oferecermos nosso saber, por pensarmos que “o da população é insuficiente e, portanto,
inferior, quando, na realidade, é apenas diferente”. Bem como, de certas artimanhas políticas,
como o fato de que, “embora haja profissionais preocupados com a necessidade de a
população se organizar e reivindicar seus direitos e serviços básicos de qualidade, na
realidade a tradição dominante no Brasil é o convite das autoridades para que a população
participe mais”, no sentido de cumprir obrigações que em verdade são do Estado. (VALLA,
1998).
4. METODOLOGIA
5. SINTESE DE UM CAMINHAR
Apresentamos abaixo o que o pensamento freireano designa como síntese, ou seja,
instante do processo ação-reflexão-ação que pressupõe a avaliação coletiva das alternativas às
impertinências deste modelo de sociedade propostas pelo coletivo e dos argumentos utilizados
pelo mesmo para construírem sua pronúncia do mundo. Nas palavras do autor “De um lado,
incorporar-se ao povo na inspiração reivindicativa. De outro, problematizar o significado da
própria reivindicação”. (Freire, 2005, p.212)
5.1 O Fórum Popular
Para Gastão Wagner (2000, p.47), o espaço coletivo se estrutura como “um arranjo
organizacional montado para estimular a produção/construção de sujeitos e de coletivos
organizados”. Neste sentido, refere-se a “espaços concretos (de lugar e tempo) destinados à
comunicação (escuta e circulação de informações sobre desejos, interesses e aspectos da
realidade), à elaboração (análise da escuta e das informações) e tomada de decisão (prioridades,
projetos e contratos)”. Gastão identifica quatro modalidades de espaço coletivo: os conselhos de
co-gestão, os colegiados de gestão, os dispositivos e o diálogo e tomada de decisão no cotidiano.
Segundo ele, “a combinação dessas distintas modalidades de espaço coletivo conformam
sistemas de gestão participativa”. (CAMPOS, 2000, p. 147).
O fórum popular da comunidade Boa Vista/Castelão tem atuado como um dispositivo de
participação comunitária cujo objetivo é deflagrar o processo de análise coletiva dos problemas e
potencialidades locais a partir do resgate da história local e assim tem buscado o fortalecimento
da co-gestão dos processos do mundo da vida potencializando espaços de reflexão-ação sobre a
realidade objetiva. Nesse sentido tem contribuído para a democratização do trabalho em saúde.
Democratização é aqui vista como processo necessariamente dependente da “práxis de
grupos sujeitos (no sentido dado por Sartre de oposição à ‘serialidade’ e Guattari como grupo
capaz de lidar, com certa autonomia, com os constrangimentos da história e do seu contexto) e
produtora de sujeitos”. Gastão Wagner Campos afirma que como produto social, a democracia
depende da “correlação de forças entre movimentos sociais e poderes instituídos”, da “capacidade
social de se construírem espaços de poder compartilhado” e da “intervenção deliberada de
sujeitos concretos”. Neste contexto, para o autor “democracia refere-se à possibilidade de
alteração dos esquemas de dominação, à produção de novos contratos e à construção de nova
hegemonia” (CAMPOS, 2000, p. 41).
Para Boaventura (1999, p.297) a forma representativa de democracia como modelo
exclusivo do paradigma dominante “significou um empobrecimento dramático do potencial
democrático que a modernidade trazia no seu projeto inicial”, sendo, portanto “necessário
reinventar esse potencial, o que pressupõe inaugurar dispositivos institucionais adequados a
transformar relações de poder em relações de autoridade partilhada”.
Para Chauí (1989, p.49), é fundamental a compreensão crítica do caráter ideologicamente
construído da categoria “competência”, “a elite está no poder, acredita-se, não só porque detém a
propriedade dos meios de produção e o aparelho do Estado, mas porque tem competência para
detê-los, isto é, porque detém o saber”.
As discussões durante a fase de planejamento do Fórum foram importantes e
evidenciavam, concomitantemente, o desejo e o medo do novo. A professora e os alunos de
Odontologia de inicio não entendiam perfeitamente que relação haveria entre atividades de
mobilização e discussão sobre problemas sociais com a formação das mesmas enquanto
“dentistas”. Houve inclusive a solicitação para que não se fizesse “somente” a discussão política,
mas se abrisse espaço também para atividades de educação em saúde, o que foi aceito contanto
que não se descaracterizasse o caráter de coletivo organizado para discutir, a história da
comunidade, problemas sociais e ações políticas locais. O receio de não comparecimento da
comunidade levou o grupo a pensar em atrativos, como a oferta de serviços e brindes, inclusive
com a sugestão de se usar um título diferente para a atividade como “dia D da comunidade”.
Tivemos muitas dúvidas com relação à organização e à metodologia da atividade e neste instante
o apoio de pessoas que trabalhavam a educação popular na gestão foi de fundamental
importância.
As atividades do Fórum foram realizadas em espaço institucional do território e tiveram a
participação de um número próximo a 200 (duzentas) pessoas, entre adultos e crianças.
O processo incluiu vivências de acolhimento e de resgate da história local, conduzido pela
Agente Comunitária de Saúde mais antiga da área de adscrição do CSF Edmar Fujita, que trazia
ao centro da roda momentos importantes da história da comunidade. Para esse resgate os
moradores lançaram mão de imagens fotográficas representativas dos vários momentos
históricos: as primeiras casas, as primeiras famílias, a enchente do rio Cocó na década de 70, a
luta pela posse da terra, as invasões e expulsões, os conflitos. Como provocação, levamos
algumas questões tais como: O porquê do nome bairro Boa Vista? Como surgiu? Quais as
características culturais e étnicas dos moradores? Qual a origem de sua gente (de onde
vieram)? Quais os aspectos culturais locais mais marcantes? Como surgiram os espaços
sociais locais?
A comunidade pôde então expressar suas percepções sobre a própria história, sua origem
e suas lutas. Dona M. L. S., moradora, trabalhadora da saúde, liderança política local traz em sua
fala a história de um povo que, fugindo à tradição messiânica da política brasileira construiu com
suas próprias mãos sua história e deu-lhe um sentido.
“Em 1960 o bairro Parque Boa Vista era um bairro praticamente despovoado as casas
eram muito distante de uma pra outra, comercio, só tinha duas mercearia, nós não
tínhamos água, luz, transporte coletivo, escolas e nem posto de saúde. Só tínhamos
muitas carnaúbas, já existia o Seminário Regional e o Convento das Irmãs Dorotéias
enquanto isso o bairro foi se povoando e como não tinha escola então foi montada a
Escolinha São José no Seminário Regional e os maiores estudavam na Escola Antonio
Dias Macedo.”
Este o instante da proclamação do ato limite. Segundo Freire (2005, p. 105) “atos limites
são aqueles que se dirigem a superação e a negação do dado, em lugar de implicarem sua
aceitação dócil e passiva”.
“Boa Vista é um bairro que em vista de outros é pequeno. Mas apesar de minúsculo a
sua área de risco se torna mais do que de outros bairros. Só as margens do rio têm uma
população de 1600 famílias que geralmente são alagadas e também temos 3 ocupações
onde todos têm água potável e iluminação publica mais as moradias não são dignas de
se morar, pois a maioria é feita de taipa ou materiais aproveitáveis e não se tem fossas.
Mais nelas podemos contar com a violência e o trafico de drogas. Usuários e traficante
usa e repassa as droga na presença das crianças e muitas vezes usam as crianças como
avião e estas ocupações só uma tem ACS.”
Nos relatos a perspectiva da superação do mito do desinteresse das classes populares pela
discussão dos seus problemas e pela tomada de decisões sobre seu destino,
“Deu pra ver melhor como funciona uma atividade no PSF e da importância de
realizá-las, uma vez que a gente interage de forma ativa e direta com os usuários,
passa informações, ouve o que as pessoas têm a dizer, observa o grau de satisfação da
população e vê onde tem que melhorar /
“A comunidade pôde trocar experiências vividas, discutindo seus direitos para que
junto com os profissionais da unidade, buscassem a melhoria do serviço público de
saúde da sua localidade e com isso garantir um atendimento de qualidade à
população”.
“Interagir para as pessoas melhorarem sua auto-estima, para que sejam atores do
processo de saúde, do auto-cuidado, fazendo-os menos dependentes dos profissionais
de saúde”.
O processo de elaboração, participação, vivência e construção de práticas coletivas revela-
se de fundamental importância no processo de formação do trabalhador social, e funciona como
atividade dinamizadora do processo de construção do sujeito social, consciente de sua realidade
objetiva e da necessidade de emancipação humana, por tudo revela-se aqui, através das
percepções das alunas do Estágio Extra-Mural (EEM II), o impacto cultural sobre todos os
envolvidos nas práticas políticas construídas através da participação popular, reveladoras das
iniqüidades sociais e capazes, também, de funcionar como mecanismo dialético superador desta
realidade.
“No momento em que atores sociais tomam consciência das causas mais profundas dos
problemas de saúde e das relações sociais que os permeiam, podem apontar para a luta
social de forma mais conseqüente, ficando também mais comprometidos com a saúde
da comunidade. É nessa dicotomia que surgem as discussões sobre o apoio social.
Lideranças, profissionais e agentes comunitários de saúde estão diretamente envolvidos
nesse processo, estimulados a lutar pela saúde da comunidade e compelidos a buscar na
própria comunidade formas de resolver e minorar algumas questões de saúde que não
podem e nem devem esperar só pelo Estado”. (ALBUQUERQUE & STOTZ, 2004)
5.2 O grupo-sujeito
O primeiro encontro teve o duplo propósito de trazer para o grupo experiências outras de
atuação coletiva existentes na comunidade e reavivar a iniciativa do grupo a partir da reflexão
sobre suas dificuldades. Para tanto foi apresentado um vídeo produzido pelo grupo de fotografia
Vista Boa em Boa Vista que traz o contexto atual da realidade do bairro ao mesmo tempo em que
abre espaço para o resgate da história da comunidade a partir da fala de seus atores sociais mais
antigos. A experiência serviu para que estes atores sociais se vissem refletidos no contexto da
história da comunidade, afinal dois dos atores sociais que aparecem no vídeo são protagonistas
desta Comunidade Ampliada de Pesquisa. Proporcionou ainda a possibilidade primeira de
“objetivação” da realidade concreta da comunidade pelo grupo da comunidade ampliada que
seria aprofundada nos encontros posteriores.
A análise de tal categoria se liga diretamente aos conceitos de conflito social ou luta de
classes, ambos fundamentais para a teoria marxista explicativa da história e por esta considerada
os verdadeiros motores da história. A percepção de luta, de conflito é homogeneamente expressa
pelo grupo, mas de forma velada, envolta na trama ideológica que torna o inimigo invisível.
Percebe-se a divisão, mas não a oposição/antagonismo entre as classes, que é base estrutural
deste modelo de sociedade. Estes conceitos são perceptíveis em todas as falas, em expressões
como,
“Isso tudo foi fruto de uma grande luta da associação”; “brigando por educação, água e
etc.” (M. L. S. – conselheira) / “mostrar para as pessoas a verdadeira potencialidade da
comunidade através da luta”; “a luta do posto de saúde com a comunidade da Boa Vista”
(expressões retiradas do circulo de cultura); “nada caiu do céu, tudo foi uma luta comunitária”;
“eu ainda luto porque sou teimoso” / “sem luta não vinha nada”, “comecei minha luta
comunitária como presidente de associação”; “esse pessoal que tá na beirada do rio, não
nasceu caído como feijão não, foi luta mesmo, foi briga mesmo” (A. N. - liderança) / “a Boa
Vista é uma comunidade que luta muito” (M. L. – usuária) / “através de lutas comunitárias foi
conquistado posto de saúde, escola, delegacia, sinal, CRAS e etc.” (V. S. - ACS).
Para Chauí, (1989. p, 20). “O social histórico é o social constituído pela divisão em
classes e fundado pela luta de classes”. É essa divisão entre as classes que faz com que a
sociedade seja, em todas as esferas, atravessada por conflitos e por antagonismos que expressam
a existência de contradições constitutivas do próprio social.
“O meu trabalho mesmo não é com filho de ‘papaizim’ não, os filhos de ‘papaizim’ se
acolhem, misturam com a gente porque eles vêem o tratamento que a gente vem dando” (A. N. -
liderança).
A separação entre Estado e Sociedade Civil, fruto dos processos abstratos de separação do
mundo político e econômico, do poder e das relações sociais de produção, instituído pela
estrutura ideológica burguesa, se presta, a ocultar a divisão e a luta entre as classes sociais. Tal
construção ideológica leva a percepção mitificada de uma sociedade civil unificada e homogênea.
A figura do Estado (poder público) representa a construção ideológica responsável por ocultar
estas contradições. Ao aparecer socialmente como um poder uno, indiviso, localizado e visível, o
Estado “pode ocultar a realidade do social, na medida em que o poder estatal oferece a
representação de uma sociedade, de direito, homogênea, indivisa, idêntica a si mesma, ainda que
de fato esteja dividida” . (CHAUÍ, 1989. p, 20). Tal função, até a revolução burguesa de 1789
pertenceu à igreja/religião, em conseqüência se percebe, ainda hoje, um imbricamento entre as
concepções de lei (forma concreta do ente abstrato Estado) e Deus,
“É lei, hoje, a comunidade sair da beirada do rio, é lei a Boa Vista ser um bairro de
elite, portanto é coisa de Deus” (A. N. - liderança) / “Deus não criou o homem para ser senhor
de si!” (M. G. - liderança).
Para Boaventura, “as classes são um fator de primeira importância na explicação dos
processos sociais”, mas contrariando as teorias fundadas no reducionismo econômico das teorias
marxistas, principalmente do materialismo histórico ortodoxo, é “errôneo reduzir a identificação,
formação e estruturação das classes à estrutura econômica da sociedade. As classes são uma
forma de poder e todo poder é político”. Neste momento de transição paradigmática cada vez
mais os fenômenos mais importantes são simultaneamente econômicos, políticos e sociais, sem
que seja fácil “destrinçar estas diferentes dimensões”. Nos países periféricos “as formas de
opressão e dominação assentes na raça, na etnia, na religião e no sexo afirmaram-se pelo menos
tão importantes quanto às assentes nas classes”. Para o autor “o valor explicativo das classes
depende das constelações de diferentes formas de poder nas práticas sociais concretas. (...) a
constelação desse poderes é política”. (SANTOS, 1999, p. 37-41).
De outro, novas lideranças que lutam por reconhecimento e por espaço de atuação, o
conflito é perceptível nas falas,
“Pra mim a liderança é aquela que sente necessidade de estar fundando, criando, e não
[de] estar avançando em cima do que ela criou (...), se a gente começa a ficar, ficar, ficar, a
coisa fica com a minha cara, fica minha, é meu, é meu, daqui a pouco é meu e pronto”; “A nível
de organização comunitária, a nível de associação, me parece que eles têm medo de prestar a
devida informação, eu acho que eles têm medo de deixar de ser assistencialista porque eles têm
medo de perder a liderança”; “Eu também fui influente nessa questão da conquista do posto,
nas passeatas, nas negociações”; “foram vocês mesmos que legitimaram os terrenos da fazenda
com a Kolping, o poder da fazenda com a igreja, vocês legitimaram vocês ‘antigos’(...) quem
legitimou foram as lideranças daqui”; “eu não cheguei aqui nas [passeatas das] lamparinas” “
são as referências que estão sem sentido”(M. G. - liderança).
De acordo com Valla (1998), vários estudiosos vêem diversas contradições nas relações
entre profissionais e classes populares, ainda que o profissional seja um mediador aliado. Os
profissionais costumam ter dificuldade em interpretar a fala e o fazer das classes populares de
maneira apropriada. Para o autor, a dificuldade dos mediadores (profissionais, técnicos, políticos)
de compreender o que os membros das chamadas classes subalternas estão lhes dizendo se
relaciona “mais com a postura do que com questões técnicas”. Relaciona-se com a dificuldade em
aceitar que pessoas humildes, pobres, moradoras da periferia sejam capazes de produzir
conhecimento, que sejam capazes de organizar e sistematizar pensamentos a respeito da
sociedade, fazer uma interpretação capaz de contribuir para a avaliação dos mediadores sobre a
mesma sociedade. Em relação à contribuição para o fortalecimento da participação popular na
comunidade por parte de trabalhadores, gestão, lideranças e conselheiros as falas expressam a
sensação de abandono, esquecimento, desinteresse,
“Os trabalhadores não estão se envolvendo, somente alguns e muito pouco, (...) porque
se eles participassem mais talvez incentivasse mais a participação da comunidade naquele
movimento”; “Tanto da prefeitura como da regional eu estou achando ‘zero’, ainda tem um
pouco de participação da gestão local, (...) a gerência se envolve mais nos problemas de
saúde”;” eu acho que é no conselho, o melhor espaço para discutir os problemas de saúde e ir
em busca das soluções”; “deveria ter mais a presença do profissional, que não é muito
freqüente a não ser quando tem interesse próprio, e não se preocupa em refletir os problemas de
saúde da comunidade”. (M. L. S. – conselheira) / “ele [o trabalhador] pouco se envolve no
social referente ao diálogo com a comunidade, mas de suma importante seria que se integrasse,
se envolvesse junto a associações e conselhos, para desenvolver maior trabalho na questão de
saúde comunitária” (F. E. - liderança) / “a comunidade não participa do conselho porque não
foram chamados”; “o conselho não tem ido até a comunidade saber seus problemas”; “a
comunidade não sabe nem o que é conselho de saúde” (M. L. – usuária).
Neste ponto, importante trazer a categoria poder que nas falas da comunidade se inter-
relaciona com as noções de liderança e/ou poder público (Estado). Para Boaventura (1999, p.
125-127), nas sociedades capitalistas são perceptíveis quatro tempos/espaços estruturais de
produção de poder que se articulam de maneira específica. Cada um com sua unidade de prática
social, forma institucional, mecanismo de poder, forma de direito e modo de racionalidade. São
eles: o espaço doméstico constituído pelas relações sociais entre o homem e a mulher e entre
ambos (ou qualquer deles) e os filhos. Nele, os sexos e as gerações são as unidades de prática
social, a forma institucional é o casamento, a família, o parentesco; o mecanismo de poder é o
patriarcado normatizado pelo direito doméstico, ou seja, as normas partilhadas ou impostas que
regulam as relações familiares; e o modo de racionalidade operado pela maximização do afeto. O
espaço da produção constituído pelas relações do processo de trabalho tem como unidade de
prática a classe social já abordada acima, institucionalizada na fábrica ou empresa, cujo
mecanismo de poder é a exploração, a juridicidade é baseada no direito da produção (código da
fábrica, regulamento da empresa) e a racionalidade centrada na maximização do lucro. O espaço
da cidadania é constituído pelas relações da esfera pública entre o cidadão e o Estado, a unidade
da prática é o indivíduo e a forma institucional é o Estado, neste espaço o mecanismo de poder é
a dominação, normatizada pelo direito territorial (o direito oficial estatal) e racionalizada pela
maximização da lealdade. Por último, o espaço da mundialidade é constituído pelas relações
econômicas internacionais e pelos Estados nacionais, sua unidade de prática social a nação,
institucionalizado nas agências, acordos e contratos internacionais. Seu mecanismo de poder é a
troca desigual, a forma de juridicidade é o direito sistêmico (normas muitas vezes não escritas e
não expressas que regulam as relações desiguais entre os Estados e entre empresas no plano
internacional) e o modo de racionalidade é a maximização da eficácia. Para o autor esta
concepção permite mostrar que a natureza política do poder não é atributo exclusivo de
determinada forma de poder, mas antes o efeito global da combinação entre as diferentes formas
de poder. No espaço comunitário se interrelacionam os espaços familiar (doméstico), do trabalho,
da cidadania na conformação das relações sociais no território, conforme as falas,
“Eles [os primeiros moradores] me tinham como neta”; “então nós somos uma família”
(M. G. - liderança) / “não, mas eu vou falar com ele, ele também foi meu garoto, e cheguei pra
esse cidadão [traficante], e dei uma dura mesmo”; “uma das minhas maiores tristezas é quando
eu chego à beira do campo com material esportivo, que vou dar para os meus meninos trocarem
de roupa” (A. N. – liderança).
Por fim, a percepção da comunidade ampliada sobre o fórum popular revelou-se positiva
para o grupo, como se percebe nas falas,
“Achei muito bom o Fórum, eu vi que houve expressão da comunidade” (V. S. - ACS) /
“serviu pra arranjar mais conhecimento, ganhar mais amizade, mais capacidade” (M. L. –
usuária) / “eu acho importante porque além da troca de conhecimento, nós também passamos a
conhecer os anseios da comunidade e suas potencialidades”; “o fórum e o grupo são
importantes mobilizando, chamando para o processo de discussão”. (M. L. S. – conselheira) /
“aquele fórum nos abriu a idéia de nos interessar, eu da minha parte fiquei interessado e cada
dia que eu participo eu tenho mais conhecimento, eu posso dizer que sou um homem de
conhecimento popular” (A. N. – liderança) / “serviu de experiência, conhecimento e [para]
desenvolver um trabalho de aproximação com a comunidade” (F. E. - liderança) / “é show,
porque é ver a mistura, é instigar o povo, (...) é jogar suas necessidades em discussão e fazer
com que eles [próprios] decidam” (M. G. - liderança).
Bem como a certeza das conquistas através do processo de participação popular, as falas
fazem referência tanto às conquistas materiais (a maioria), quanto às subjetivas/simbólicas,
“Mesmo sem apoio das autoridades as lutas da comunidade conseguiram respeito e
valorização” (M. S. – usuária) / “o Complexo da Cidadania, a ‘saúde’, a delegacia, as escolas e
creches, os cursos profissionalizantes” (M. L. – usuária) / “foram inúmeras as conquistas que
não dá nem pra descrever e, já houve uma grande participação, tanto que hoje tudo que tem de
‘bom’ foi luta e conquista da comunidade” (M. L. S. – conselheira) / “moradia, escola, creche,
posto de saúde, centro social, calçamento, água, luz” (F. E. - liderança).
6. CONCLUSÕES
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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8. ANEXOS
8.1 CIRCULO DE CULTURA
O que é participação? Que situações na comunidade poderiam ser modificadas com
a participação? Que desafios/dificuldades são percebidas pra enfrentá-las? Quais as
percepções sobre os movimentos desencadeados pelo fórum e outras iniciativas? Que outros
movimentos desencadear? Que sonhos /desejos de mudança poderão ser gerados com esses
movimentos?
8.2 ENTREVISTAS
Roteiro:
1) Como foi sua trajetória até aqui? 2) Que questões sobre a organização e a história
da comunidade você considera importantes? 3) Qual a importância do fortalecimento da
participação popular? 4) Qual sua percepção/Como tem se dado o envolvimento dos
profissionais de saúde com os movimentos e organizações comunitárias? 5) Qual tem sido
efetivamente a contribuição dos diversos atores locais para o fortalecimento da participação
popular? 6) As reuniões do conselho local de saúde têm contribuído para a compreensão
dos problemas de saúde do território? 7) Qual sua percepção/Que conhecimentos ou
saberes da comunidade estão sendo incluídos ou estimulados pelos profissionais desta
unidade de saúde? Como tem sido esse processo? 8) Para você qual a importância do
fórum popular da comunidade e de estar participando desse grupo? 9)Que desafios você
aponta a serem superados para fortalecer a participação popular na saúde? Que
potencialidades podem ser utilizadas para isto? 10) Quais as conquistas da comunidade em
seus processos de participação?