Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
Resumo
Sentimento que perpassa constantemente a relação de casais, sejam namorados, sejam casa-
dos, o ciúme se manifesta tanto nas relações do quotidiano social quanto na clínica. Este artigo
teórico procura distinguir o ciúme normal do patológico, caracterizando cada nível do senti-
mento com suas particularidades e ilustrando-o com casos clínicos. A análise fundamenta-se
particularmente no texto de Freud e apoia-se em Kernberg, Melanie Klein, Fenichel e Pittman.
se é tão indispensável para o amado como como uma cola que une o relacionamento e
se pensava. A fantasia narcísica onipotente previne qualquer tendência natural ao afasta-
de que o amado não sobreviveria sem meu mento (Pittman, 1994, p. 49).
amor cai por terra. Em terceiro lugar, a pre-
sença de um rival, sempre mais forte, poten- Tanto Kernberg quanto Freud afirmam
te e desejável. E nesse embate ele venceu. E, que toda relação de casal é perpassada por
finalmente, a perda da distância necessária fantasias triangulares, de diferentes configu-
para a compreensão da perda, assumindo a rações. Segundo Kernberg, há dois tipos de
culpa. E a culpa dói. Daí ouvirmos expres- triangulação – direta e inversa, que podem
sões como estas: destruir ou reforçar a intimidade e estabili-
• “O que me dói nesta história não é dade dos casais. Ele assim as descreve:
o fato de ele ter me deixado, mas ter
achado alguém mais bonita do que eu.” Eu utilizo triangulação direta para descrever
• “O que ele viu naquela horrorosa para a fantasia inconsciente de ambos os sexos de
ficar com ela? O que ela tem que eu um terceiro excluído, um membro idealizado
não tenha melhor?” do gênero do sujeito – o temido rival repli-
• “Não consigo saber o que fiz para ele cando o rival edípico. Todos os homens e to-
me deixar!” das as mulheres, inconsciente ou consciente-
Embora seja visto como normal, esse ciú- mente, temem a presença de alguém que seja
me não é completamente racional. Tem sua mais satisfatório para seu parceiro sexual: este
raiz no inconsciente; é “[...] uma continuação terceiro temido é a origem da insegurança
das primeiras manifestações emocionais da emocional na intimidade sexual e do ciúme
criança, origina-se do complexo de Édipo ou como um sinal de alarme, protegendo a in-
de irmão-irmã do primeiro período sexual” tegridade do casal [...] a triangulação inversa
(Freud, [1922] 1976, p. 271). Reeditamos define a fantasia compensadora, vingativa,
constantemente nossas vivências edípicas. E de envolvimento com outra pessoa além do
depende do grau de resolução e dos percal- parceiro sexual, um membro idealizado do
ços desse período o grau de normalidade ou outro gênero, que representa o objeto edípico
patologia do ciúme. E aqui falamos particu- desejado, estabelecendo, assim, um relaciona-
larmente do ciúme na relação de casais. mento triangular no qual o sujeito é cortejado
Pittman lembra que o ciúme normal por dois membros do outro gênero, em vez
de precisar competir com o rival edípico do
[...] provavelmente contém um elemento de mesmo gênero pelo objeto edípico idealizado
dependência e medo de abandono. Ele pode do outro gênero (Kernberg, 1995, p. 85).
ser o equivalente adulto dos medos de ser
abandonado pelos pais que todos nós expe- Figura 1 - Triangulação direta e inversa
rienciamos quando éramos bebês (Pittman,
1994, p. 49).
Em sua relação atual, Max diz ser fiel, sempre presentes, mas são projetados no ou-
após uma conversão religiosa, e ela lhe afir- tro. “Não sou eu que traio, mas sim, ela (ele).”
ma o mesmo. Tudo lhe faz crer que ela diz
a verdade, especialmente porque também se c) Ciúme delirante
converteu. Mas isso não impede que ele sofra Alois, dono de comércio de material eletrô-
com a fantasia de que, assim como fora infiel nico, busca ajuda terapêutica porque não
outrora, tendo outros amantes, ela possa vol- suporta mais a angústia que sente pela com-
tar a sê-lo novamente agora. pulsão intensa de olhar para os genitais das
Atormentado por essa fantasia, Max segue pessoas, homens e mulheres, de todas as ida-
seus movimentos, monitorando-a através do des e para o decote das mulheres. O ato de
localizador do carro dela. “Mas quem me ga- olhar é incontrolável, a ponto de as pessoas
rante que ela não deixa o carro no estacio- ficarem constrangidas. O segundo motivo
namento do shopping, simulando compras, e que o leva à terapia é o ciúme que sente de
saia com um amante para outro lugar?” As- sua mulher, intenso e arrasador.
sim, Max a procura para relação sexual, não Em sua história pregressa há vivências de
por um desejo legítimo, mas para testá-la. Se relações homossexuais na adolescência. En-
o amante a deixou realizada, ela irá rejeitá-lo, fatiza, porém, que sempre teve papel ativo.
e isso será uma prova de sua traição. Como No entanto, quando fala de sua relação atual
isso não acontece, imagina que seja esperteza com a mulher, refere que ela o excita tocando
dela para não deixar pista para desconfian- seu ânus.
ça. Max não se acalma quando sua fantasia é Lembra também brincadeiras de car-
desmontada, mas reforça-a. A verdade exis- naval, já casado, em que sair fantasiado de
te, apenas ainda não a descobriu. mulher causava-lhe muita angústia. “Parecia
Em outro caso, Maria procura ajuda por- que todos estavam vendo que eu não era ho-
que não aguenta mais o sofrimento causado mem”. Já há vários anos mantém relações ex-
pelo ciúme do marido. João tem um pequeno traconjugais com outras mulheres, mas esse
comércio de suplementos de informática, no comportamento parece não lhe causar culpa.
térreo do prédio onde moram, que ele toca “Da primeira vez em que me envolvi com
sozinho. De vez em quando, ela vai lá aju- outra mulher foi como se quisesse equilibrar
dá-lo a fazer limpeza e organizar as estantes. as coisas: minha mulher me traía, então eu
Mas ele briga com ela dizendo: “Você vem também a traia”.
aqui só para se encontrar com os vendedo- Seu ciúme da mulher já vem desde o iní-
res”. Como essa briga se repete, magoada, ela cio do relacionamento. Suas relações sexuais
decide não mais ir à loja para ajudá-lo. Então, sempre foram rápidas e só depois de muitos
ele volta a brigar com ela: “Você não vai mais anos foi aprender como ‘funciona’ uma mu-
à loja me ajudar só para que eu não descubra lher na relação. “Eu achava que ela era fria
qual dos vendedores é seu amante”. Não há comigo porque transava com outros homens
saída. Literalmente se confirma o ditado: “Se e tinha relação comigo só por obrigação, para
correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. eu não desconfiar”. Vemos aparecer aqui cla-
Em ambos os casos, Max e João, há uma ramente sua angústia de castração. Perceber
história em comum, em que seus pais tinham a mulher castrada era-lhe assustador e sentia
amantes, e eles mesmos foram infiéis às suas seu próprio temor da castração. A angústia o
mulheres. E entre os gaúchos há um dito que fazia agir rápido. Não sabia como ‘funciona’
parece se aplicar aqui: “Cachorro ovelheiro a mulher, o que se passa com ela, como lida
(que cuida das ovelhas) que uma vez matou com essa falta.
uma ovelha, não tem mais cura”. Ou seja, a Sua mulher trabalha com ele em sua ati-
fantasia e o desejo de trair novamente estão vidade comercial. E aqui observamos um
de paranoia oferecem dificuldades à inves- “Só de pensar que eu possa ser homossexual
tigação analítica. Por isso, em geral, o trata- me deixa em pânico!” Numa das sessões traz
mento fracassa. O sujeito com paranoia de uma entrevista de um médico na TV que
ciúme interpreta sinais dela, imperceptíveis enfatizava os aspectos genéticos da homos-
aos outros, como tentativas de traição. Por sexualidade: “Mesmo que me provem que o
exemplo: encostar casualmente no sujeito homossexualismo é biológico e que não é tão
ao lado, olhar na direção em que há outro ruim assim, não vou aceitar. Prefiro enlou-
homem, etc. Da mesma forma, o paranoico quecer!” Num outro momento diz: “Às vezes
persecutório decodifica os sinais dos outros me pego com fantasias homossexuais, e isto
como persecutórios. me martiriza. É como se me incorporasse
Os dois tipos de paranoia, o ciumento e o um espírito sobre o qual não tenho controle.
persecutório, projetam para o exterior o que Daí eu penso que tenho tendências, apesar
não querem ver em si mesmos. Mas não pro- de não querer. Em contrapartida, as fantasias
jetam no vazio, e sim na mente inconsciente heterossexuais são bem maiores. Se vejo uma
dos outros. O ciumento percebe as infideli- guria, imediatamente fantasio”.
dades da mulher, amplifica-as muito, e, as- Numa outra sessão traz uma entrevista,
sim, as suas ficam tão diminutas que nem as que ouviu no rádio, em que o entrevistado
percebe. Da mesma forma, a hostilidade que relaciona o ciúme com a homossexualida-
o paranoico percebe nos outros é a projeção de. Esse fato o deixa de novo extremamente
de seus próprios impulsos hostis. angustiado. Sente-se cercado. Não pode ne-
Melanie Klein (1991, p. 33) faz uma dis- gar seu ciúme nem esconder que ele talvez
tinção entre inveja e ciúme: aponte para seu lado homossexual. E agora?
Como enlouquecer não é uma escolha sua
A inveja é o sentimento irado de que outra possível, a saída para não se defrontar com
pessoa possui e desfruta de algo desejável – sua verdade é a fuga.
sendo o impulso invejoso tirá-lo dela e espo- Ao final de quatro meses de terapia, uma
liá-lo. Além disso, a inveja implica na relação funcionária sua me telefona avisando que ele
do indivíduo apenas com uma só pessoa e interromperia o tratamento por algum tem-
remonta à mais primitiva relação exclusiva po. Nunca mais voltou.
com a mãe. O ciúme se baseia na inveja, mas
envolve uma relação com, pelo menos, duas Considerações finais
pessoas; diz respeito principalmente ao amor O sentimento de ciúme se faz presente em to-
que o indivíduo sente como lhe sendo devido das as relações de casais. Tanto sua ausência
e que lhe foi tirado ou se acha em perigo de quanto sua intensidade aumentada são um
sê-lo, por seu rival. problema. Sua presença, em doses modera-
das, é testemunho do afeto de duas pessoas,
Pittman (1994, p. 55) diz que é uma espécie de cola que fortalece a relação:
“Eu amo e não quero perder o amado”; e, por
[...] as pessoas invejosas parecem acreditar outro lado: “Sou querido, e o outro me valo-
que os outros foram amados demais, enquan- riza, não quer me perder”.
to eles foram amados de menos, e utilizam o O ciúme torna-se patológico na medida
ciúme como moeda corrente em sua tentativa em que um, ou os dois do par, tem confli-
de negociar sua raiva pelo amor de uma outra tos relativos à fase edípica não resolvidos.
pessoa. Portanto, o ciúme normal adoece contami-
nado pela fixação nos conflitos edípicos não
Em menos de dois meses de tratamento, integrados e superados. E essa patologia se
Alois já fala de seus temores homossexuais: estende desde as queixas expressas no ciúme
Referências