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Em sua Teoria do Drama Moderno [1880-1950], Peter Szondi propõe uma poética

filosófica em vez de normativa. Diferentemente das poéticas clássicas de tradição


aristotélica, que pensavam as formas como sendo atemporais, uma poética filosófica
pensa os gêneros artísticos como expressões próprias de determinados contextos
históricos. Neste sentido, Szondi propõe que as dramaturgias sejam “interpretadas quanto
à sua forma e conteúdo, a fim de revelar a estrutura de continuidade ou de ruptura”
(SÜSSEKIND, 2003, p. 20) com a tradição do drama clássico. Tal tradição, como aponta
Raymond Williams (1983, p. 5), diz respeito também a um conjunto de convenções: uma
espécie de consentimento tácito, acordo entre dramaturgo, atores e público de uma
determinada época.
Assim, o papel de uma teoria da arte, para o teórico húngaro, advém da busca pela
configuração singular da dinâmica constituída em cada obra, entre forma e conteúdo,
ademais, em que medida se escapa de parâmetros formais preestabelecidos pelas
poéticas normativas que até então coincidiam com a produção dramatúrgica. Ou seja, é a
partir da interpretação e análise crítica das próprias obras, que Szondi constata a crise da
forma do drama tradicional. Apesar disso, o método proposto não busca um conceito geral
ou encontrar o espírito de uma época escondido nas obras. Ser manifestação de uma
época não significa abarcá-la por inteiro, mas dar testemunho de uma ideia que a
atravessa. Neste sentido, é o modo como se configura esta ideia, em relação a uma
determinada situação histórica e a um conjunto de convenções formais, que a teoria
proposta por Szondi se propõe a investigar.
A concepção clássica do drama, parte da cisão entre forma e conteúdo, na medida
em que a primeira é o meio atemporal de realização da matéria múltipla e histórica que
expressa o segundo. Desse modo, o drama tradicional se constitui a partir de um (1) fato
ou acontecimento no (2) presente e trata exclusivamente de (3) relações intersubjetivas
(SZONDI, 2011, p. 77). Por seu caráter absoluto, o drama ignora outros tempos, afasta a
subjetividade e aquilo que é externo às relações humanas, isto se exprime também
através da centralidade do fato, do acontecimento que rege causas e efeitos. Tais
aspectos, revelam a absolutização de um único mundo: o mundo burguês a partir do qual
o drama se origina.
É justamente através da compreensão de contradições técnicas, no interior das
diversas obras analisadas em a Teoria do Drama Moderno, que Szondi (2011, p. 20)
caracteriza a crise do drama tradicional e o despontar do drama moderno. Sua concepção
histórico dialética da relação entre forma e conteúdo emerge daquilo que encontra em
determinadas dramaturgias entre o fim do século XIX e meados do século XX. Em
Tchékov, o diálogo torna-se monológico, intrasubjetivo; em Ibsen o presente é
determinado pelo passado; já em Strindberg o subjetivo, enquanto passado, aparece
rememorado objetivamente no presente; com Hauptmann a descrição épica parece ser a
única forma de dramatizar a revolta de uma classe de trabalhadores quando praticamente
nenhuma ação acontece em cena. Estas características apontam para um transbordar do
conteúdo sobre a forma, dando testemunho da formalização dos problemas de uma
época, que passam a estruturar-se enquanto novas formas dramáticas.
Além disso, Szondi também analisa as consequências da “crise” do drama, os
resíduos deste processo e as “respostas”, seja como tentativas de salvá-lo, seja enquanto
proposições de novas formas. Destarte, o drama moderno se origina das fissuras
causadas pelo transbordamento do material teatral sobre a forma conservada até ali pela
tradição. Nas palavras de Raquel Imanish Rodrigues, essa ampliação do material teatral
“não se restringe a diferentes atores que passam a forçar a passagem em direção à cena,
mas a diferentes formas de relação (ou não-relação) com o ‘próximo’ e com o mundo, que
anseiam agora por configuração” (2005, p. 219).
Um pouco mais de cinquenta anos após a publicação da Teoria do Drama
Moderno, chegamos até Hysteria (2006), escrita coletivamente pelo Grupo XIX de Teatro.
Esta obra nasce de uma pesquisa sobre a histeria no Brasil do século XIX. As
fontes são as mais variadas: desde boletins médicos, passando por diários, teses de
doutorado, até relatos da história oral ou história do cotidiano. A partir desta pesquisa,
busca-se desenvolver uma dramaturgia entre escrita e encenação: a configuração do
espetáculo, a construção das personagens e a relação com o público.
Entram os homens e sentam-se no espaço destinado à plateia, irão apenas assistir.
Entram as mulheres e sentam-se junto às atrizes, nos bancos da sala de asseio do
Hospício Pedro II, seu papel não será passivo. O hospício é fictício, mas há a exigência
de um espaço que evoque a memória histórica, assim, abandona-se o palco do drama
burguês, aquele da “caixa de imagens” e adentra-se no edifício histórico: público e atrizes
ocupam o mesmo espaço. Não há mais a caixa de olhar, agora entra-se na caixa para
olhar e então olhar-se lá de dentro.
Logo de início, como foi dito acima, a partir da separação entre homens e
mulheres, o público explorará perspectivas distintas sobre o espetáculo. Aqui,
diferentemente do que acontece no drama tradicional, o público não é considerado
apenas em sua passividade, mas possui gênero, caso seja mulher assumirá também o
papel de quase-personagem. Neste caso, a partir de uma condição ativa, habitará duas
temporalidades, a fictícia, no século XIX, e a real, no século XXI. Por outro lado, os
homens permanecerão a contemplar tais temporalidades por meio de um distanciamento
passivo. Se regressamos à Szondi e à sua teoria da arte, nos deparamos quase com a
mesma constatação: o drama agora parece não ter apenas classe, mas também gênero.
As cinco personagens pouco falam entre si, apenas Nini se dirige constantemente
às outras (para repreendê-las na maioria das vezes). Todos os outros diálogos, mesmo
aqueles travados com as mulheres que são público e personagem, parecem se tratar não
de diálogos mas de conversas, daí sua proximidade com aquilo que Szondi nomeia de
“peça de conversação”. Tais peças, situadas em sua teoria como sendo destinadas à
salvação do drama tradicional, perdem em possibilidade de enunciação subjetiva, pois a
conversa, ao contrário do diálogo, é facultativa, não persegue uma continuidade e não
resulta em ações, mas ganham ao se debruçarem sobre temáticas específicas, relevantes
em seu contexto histórico. No entanto, esta aproximação é apenas aparente, pois, apesar
de tratarem de “temas da ordem do dia”, em Hysteria, tais discursos, ao contrário
daqueles das peças de conversação – que não eram capazes de definir ninguém –
possuem sim uma origem subjetiva, estão sempre a reafirmar traços que definem uma
personalidade e a descrever experiências que reforçam o questionamento sobre a real
natureza da “doença” que acomete as “mulheres histéricas”. Apesar de muitas vezes os
temas atravessarem os discursos das personagens, como se fossem “temas da ordem do
dia”, a essência dos discursos é sempre pessoal, subjetiva, tornando-se coletiva na
medida em que aborda o motivo pelo qual elas, provavelmente, foram internadas.
Por fim, ao se comparar alguns recursos utilizados em Hysteria com determinados
aspectos de obras analisadas na Teoria do Drama Moderno, não se pretende constatar
alguma espécie de reprodução formal devedora da tradição analisada nesta obra, isto iria
na contramão daquilo que o próprio Szondi propõe ao pensar a historicidade da relação
entre forma e conteúdo. Todavia, a sua contribuição para uma compreensão histórico
dialética das formas, em sua relação com os problemas epocais, se dá na medida em que
podemos observar os resíduos remanescentes de tais formas em produções teatrais
contemporâneas. Sobre a constituição destas novas formas, que Raymond Williams
nomeia de “estruturas de sentimento”, ele afirma, “é até possível, embora muito difícil
mesmo em comparação com a análise de estruturas passadas, começar a ver essa
estrutura contemporânea diretamente”, visto que elas “[…] geralmente estão mascaradas
pelos seus predecessores imediatos e mais bem reconhecidos[...]” (1983, p. 7). Nesta
direção, tais considerações fazem crer que as dramaturgias contemporâneas, apenas
aparentemente, parecem jogar mais livremente com as formas.
Diego Kehrle Sousa
Referências
GRUPO XIX DE TEATRO. Hysteria / Hygiene. São Paulo: Fundação Nacional de Arte e
Ministério da Cultura, 2006.
SÜSSEKIND, Pedro. A teoria do drama e o método interpretativo de Peter Szondi.
Folhetim, n. 17, p. 17-23, mai/ago. 2003.
RODRIGUES, Raquel Imanishi. Teatro e crise. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.
71, p. 209-219, mar. 2005.
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). trad. Raquel Imanishi
Rodrigues. São Paulo, Cosac & Naify, 2011.
WILLIAMS, Raymond. Introduction (Introdução) In Drama from Ibsen to Brecht. trad.
Nayara Brito, rev. Diógenes Maciel. Londres: Pelican Books, 1983.

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