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volume 13

ISSN 1981-6987

De cegos que vêem


e outros paradoxos da visão:
questões acerca da
natureza da visibilidade

Alcides Cardoso dos Santos

Santa Maria, 2013.


REITOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
Felipe Martins Müller

PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA


Hélio Leães Hey

DIRETOR DO CENTRO DE ARTES E LETRAS


Pedro Brum Santos

COORDENADORA DO PPGLETRAS
Márcia Cristina Corrêa

EDITORA
Programa de Pós-Graduação em Letras

COMITÊ EDITORIAL
Amanda Eloina Scherer
Marcia Cristina Corrêa
André Soares Vieira
Graciela Rabuske Hendges
Larissa Montagner Cervo
Enéias Farias Tavares
Sara Regina Scotta Cabral
Pedro Brum Santos

PROJETO GRÁFICO
Lilian Landvoigt da Rosa

EDITOR RESPONSÁVEL
André Soares Vieira

EDITORAÇÃO
João Moro de Oliveira

PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS
André Soares Vieira

REVISÃO
Enéias Farias Tavares
S237d Santos, Alcides Cardoso dos
De gregos que vêem e outros paradoxos da visão
: questões acerca da natureza da visibilidade / Alcides
Cardoso dos Santos. – Santa Maria : UFSM, PPGL-Edi-
tores, 2013.
78 p. ; 19 cm. – (Série Cogitare, ISSN 1981-6987
; v. 13)
1. Filosofia 2. Visibilidade 3. Literatura e imagem
4. Narrativas visuais I. Título II. Série
CDU 101
82.01

Ficha catalográfica elaborada por Maristela Eckhardt CRB-10/737


Biblioteca Central - UFSM
SUMÁRIO

Apresentação........................................................................09

Introdução.............................................................................12

1. Visibilidade e visão: o que há para se pensar?..............18

2. Fiat lux...............................................................................25

3. Visível é o que se vê?....................................................... 31

4. Ver para crer, ou melhor, crer para ver........................... 37

5. Uma escrita mais que visível...........................................46

6. O visível produz cegueira.................................................58

7. Ver é dever (ver)................................................................64

8. Próteses oculares.............................................................68

Bibliografia............................................................................. 74
Apresentação

A história do ocidente é também a história do repúdio/


fascínio do olhar. Literatura, artes visuais, teatro, religião
e filosofia, entre outras artes e saberes, tem retornado de
forma recorrente a esse problema, um problema de visão
física e de introvisão intelectual e espiritual. Como benção
ou perversão, como elemento literário ou plástico, em forma
textual ou pictórica, o olhar tem sido reinterpretado de modo
variado, com diferentes parâmetros e perspectivas no trans-
curso da história do Ocidente. É sobre esse problema cul-
tural, filosófico e artístico, que Alcides Cardoso dos Santos
se debruça nas páginas seguintes, estabelecendo contatos
improváveis, às vezes inusitados, porém inegavelmente
estimulantes.
Leitor, espectador e crítico da obra de William Blake
e de seus livros iluminados, Santos apresenta uma sensi-
bilidade inusitada diante dos desafios que o problema da
visibilidade apresenta na história cultural. Ao estabelecer o
contato entre cultura judaica e grega, religiosa e laica, entre
os territórios da crença e do saber científico, entre os quais
comumente se reafirma uma não possibilidade de aproxi-
mação, Santos estabelece uma zona de intermediação, na
qual processos, saberes, poéticas e obras se entrecruzam,
dialogam, se auto-germinam. Neste campo, os problemas
da visão e da visibilidade ganham significados simbólicos/
alegóricos interessantes: são olhares internos, proféticos,
são saberes proibidos, maldições divinas, fascinações esté-
ticas que vem à tona no discurso crítico, teórico e, por vezes,
filosófico, do pesquisador.
Tais aproximações e afastamentos, num jogo de olha-
res e visibilidades nem sempre claras, permitem a Santos
diagnosticar a inegável desconfiança cultural, religiosa e
também intelectual e artística diante da visibilidade. No con-
texto judaico, as imagens – e portanto todo o terreno do visí-
vel em uma religião cujo Deus não tem face ou corpo – são
condenadas como falsas e traiçoeiras. No contexto filosófico
grego – surpreendentemente mais próxima do que distante
da religião hebraica neste aspecto –, a imagem da palavra
e da pintura é também estranhamente aludida como mera
aparência de sabedoria, como cópia da cópia, como proje-
ção ilusória e material de um mundo ideal – e irreal – de
formas platônicas perfeitas.
Partindo da leitura de Derrida sobre a metáfora solar
como constitutiva do saber filosófico grego e da crença re-
ligiosa cristã, Santos analisa a diferença ontológica que ca-
racteriza o visível. Em ambas as tradições, o visível sensível
é criticado, ao passo que o visível inteligível – seja pela ci-
ência seja pela fé – é valorizado. O paradoxo da visibilidade,
segundo Santos, estaria no fato da percepção física, no que
concerne à visão, ser inversamente proporcional à percep-
ção intelectual ou espiritual. Nesse sentido, o mundo e suas
falsas visões afastariam o homem do seu crescimento in-
terior: Édipo e Sansão que o digam. Tirésias e Tomé que o
confirmem. Homero e Saulo de Tarso que o exemplifiquem.
Milton e Borges que comprovem. Exemplos, literários ou
religiosos, ficcionais ou reais, visíveis ou imagináveis, que
perpassam a instigante (re)visão da visibilidade na argu-
mentação do autor.
Pesquisando esse “paradigma da visibilidade” em
diferentes territórios temporais e culturais, Santos defende
uma leitura fluida da história do ocidente, na qual visão e
cegueira coabitam como opostos justamente dos seus con-
trários: ver é estar de olhos vendados ao passo que aos
cegos famosos cabe a translúcida visão interior, seja ela
intelectual ou espiritual. Nesse sentido, é justamente nesse

10
embaralhamento das compreensões sobre a visão que se
encontra a visibilidade e a decorrente paragone entre a lite-
ratura e as artes visuais ou suas aproximações via Ut Pictura
Poesis e Sister Arts.
Inicialmente, tenderíamos a supor que a primeira seria
valorizada por sua capacidade de abstração e conceituação
e a segunda evitada por sua ênfase nos sentidos corpóreos,
ao reduplicar (ou copiar a cópia d)o mundo material. Toda-
via, Santos demonstra que até o texto – em sua capacidade
de produzir imagens – também ganha traços de advertên-
cia, quer por Platão na República, quer por Paulo em Corín-
tios. Em ambos os casos, trata-se de valorizar a cegueira, de
repensar o provérbio comum, que de forma inversa, poderia
também dar título ao ensaio que segue: “Em terra de cego,
quem tem olho é mendigo”.
Trata-se então, no caso do autor, de seguir os passos
de Derrida na trilha desconfortável e desconfortante do “en-
tre”, desalojando e problematizando as opiniões comuns
sobre a filosofia, o cristianismo e a literatura. Santos distin-
gue na parte final de seu percurso ensaístico o ver do saber
ver, distinção que fundamenta a base dos relatos míticos
de cegueira e da seguinte recuperação da visão, relatos
que se multiplicam na tradição ocidental, quer cristã quer
metafísica.
Neste caso, o olhar do cego vela e revela uma limita-
ção física, que em arte simboliza seu oposto: uma amplia-
ção mental ou espiritual. Ao adentrar na escuridão da ce-
gueira, Édipo, Tirésias e Sansão, acessam outra dimensão
da experiência humana. Problema de visão e de visibilidade,
de escuridão e de cegueira, de ver mal e de ver bem demais,
problema de literatura, que diz sem mostrar, e de pintura,
que mostra sem dizer. Complexidades veladas, reveladas,
observadas e desfocadas na (re)visão que Alcides Cardoso
dos Santos empreende nas páginas seguintes.

Enéias Farias Tavares


Universidade Federal de Santa Maria

11
introdução

O first created Beam, and thou great Word,


Let there be light, and light was over all;
Why am I thus bereav’d thy prime decree?
The Sun to me is dark
And silent as the Moon,
When she deserts the night
Hid in her vacant interlunar cave.
Since light so necessary is to life,
And almost life itself, if it be true
That light is in the Soul,
She all in every part; why was the sight
To such a tender ball as th’ eye confin’d?1

(John Milton, Samson Agonistes)

1
Ó primeira Luz criada, e Vossa magna Palavra, / Seja feita a luz, e sobre
tudo havia luz; / Por quê privado sou de vosso ato primeiro? / O sol para
mim é negro / E silente como a Lua, / Quando a noite abandona / Por sua
vazia cava interlunar. / Se é a luz tão necessária à vida, / A vida mesmo, se
verdade for / Que a luz está na Alma, / E esta por toda parte; por que fora a
visão / A tão frágil globo como o olho confinada? (tradução minha)
Em 1671 o poeta inglês John Milton publica um de
seus mais importantes poemas, Sansom Agonistes, no
qual o herói bíblico Sansão, de força descomunal, é apri-
sionado pelos filisteus e tem seus cabelos cortados e seus
olhos arrancados, devido à traição de sua esposa Dalila. De
acordo com a leitura mais convencional e religiosa do mito,
a causa de perdição do herói bíblico está na sua arrogância
e, sobretudo, no fato de ter caído em tentação por causa de
uma mulher (Dalila). Sua vingança final contra os filisteus
– a morte de todos os presentes à celebração, incluindo os
governantes e o próprio Sansão, em auto-sacrifício –, se dá
por meio da sua fé, que faz com que Deus atenda a seu úl-
timo pedido e lhe restaure a força momentaneamente para
o sacrifício final. A leitura que John Milton faz do mito bí-
blico, como vemos, mantém a idéia cristã do auto-sacríficio
do herói para expurgo de seus pecados e libertação de seu
povo, recobrindo-a, no entanto, de tonalidades autobiográfi-
cas, uma vez que o poeta já estaria totalmente cego antes
mesmo de escrever o Paradise Lost (1667), cegueira prova-
velmente causada, além das causas fisiológicas, pelo traba-
lho árduo e constante em prol da causa republicana junto a
Oliver Cromwell.
Ao recriar o mito bíblico, Milton, defensor convicto da
república em contraposição à monarquia, parece ter tido em
mente não exatamente ou não somente a moral evangélica
de que acima de tudo e antes de mais nada é preciso ter fé,
mas a lição republicana de que somos responsáveis pelos
nossos atos, pois é o reconhecimento feito por Sansão de
que sua queda fora causada pelo seu desejo por uma mu-
lher de bela aparência (pelos seus olhos e pela sua visão,
portanto) que o reconduzirá de volta à sua fé e fará com
que derrote os filisteus, derrubando as pilastras que susten-
tavam o seu templo e restaurando, com o seu sacrifício, a
liberdade do povo de Israel.
Queremos ressaltar, com esta breve recapitulação da
poesia de John Milton e do mito bíblico de Sansão, não tanto
a luta do poeta pela causa republicana, tema já bastante
estudado na fortuna crítica do poeta inglês, mas principal-

13
mente um aspecto que, apesar de ser considerado como
secundário em relação ao tema central da fé e da razão que
perpassa tanto o mito bíblico quanto o poema, nos parece
fundamental: a visibilidade e a visão.
Se uma leitura mais convencional do mito assume a
perda da fé como causa da perdição de Sansão, a leitura
que propomos aponta para uma outra causa que parece
também agir nesta perdição. Trata-se da visão, ou melhor,
de um erro da visão, pois é a beleza física de Dalila que en-
feitiça seus olhos, distanciando seu olhar da espiritualidade,
e sua alma, fazendo-o confessar o segredo de sua força.
Após ter seu segredo delatado aos filisteus por sua amada
e seu cabelo – fonte de sua força – cortado, Sansão tem
seus olhos vazados e, ao pedir a Deus a oportunidade de
reparação do erro por meio de um último sacrifício, Sansão
pede a restauração de sua força e usa, após o mea culpa
pelo seu desvio da fé, um argumento final que nos parece
decisivo na condescendência divina ao seu apelo, que é o
fato de ter tido seus dois olhos vazados. Citamos o texto
original: “Senhor DEUS, peço-te que te lembres de mim, e
fortalece-me agora só esta vez, ó Deus, para que de uma vez
me vingue dos filisteus, pelos meus dois olhos.” (Juízes, 16:
28) (minha ênfase).
O tema da visibilidade e da visão, que nos parece ter
sido tratado como periférico neste mito bíblico tão difundido
na cultura e na literatura ocidentais, aparecerá com mais
destaque na recriação do mito que John Milton realiza neste
poema: estamos nos referindo ao fato de que Sansão la-
menta ter perdido sua visão tanto quanto sua força, como
vemos na epígrafe a este trabalho. Citamos outro trecho
para enfatizar a importância dada por Milton à perda da vi-
são: “O loss of sight, of thee I most complain! / Blind among
enemies, O worse then chains, / Dungeon, or beggery, or
decrepit age!” (MILTON, 1948, versos 67-69). A luz de que o
herói é privado é, para Milton, sem dúvida “the prime work of
god” (verso 71), luz que ilumina a razão e a fé e que permite
ver e entender o mundo, pois que sem ela os olhos nada
podem ver e Sansão ficaria “Shut up from outward light / To

14
incorporate with gloomy night; / For inward light alas / Puts
forth no visual beam” (versos 160-163).
A releitura de John Milton deste mito bíblico nos inte-
ressa principalmente pelo fato de a questão da visibilidade
e da visão já estar colocada no poema de forma clara e ar-
ticulada, paradigmaticamente, diríamos, facilitando, desta
forma, nosso trabalho de reconstrução do que, a partir de
agora, chamaremos de questão da visibilidade.
Afirmamos que a visibilidade é um paradigma porque en-
volve, desde a antiguidade grega até a midiática contempo-
raneidade, um conjunto de valores a axiomas que norteiam
e fundamentam a cultura ocidental, tanto em seu aspecto
científico quanto no senso comum que nutre grande parte
da simbologia e dos mitos populares no ocidente.
A partir de sua aparição no mito bíblico e no poema de
John Milton, discutiremos como a visibilidade é estruturada
pelos seus dois aspectos constituintes, o visível e a visão,
aspectos que se farão presentes na história do ocidente
tanto em suas particularidades quanto no seu entrelaça-
mento e mútua implicação axiológica e histórica. Apesar de
parecerem ao senso comum como uma única instância na
qual os dois termos se definem mutuamente (“o visível é o
que se vê”, diria algum filósofo popular encerrando rapida-
mente o argumento), o visível e a visão tem caracterísitcas
particulares e histórias próprias que ao mesmo tempo em
que os aproxima, os distancia e até mesmo os opõe um ao
outro.
Nosso ponto de partida é a constatação de que na
questão da visibilidade não há somente diferença, mas tam-
bém oposição entre o visível e a visão, isto é, o visível e a
visão não somente diferem um do outro, mas podem até ser
opostos, como veremos adiante, e o nó górdio desta proxi-
midade/diferença/oposição pode ser localizado na axiolo-
gia e na simbologia que estão na base da fé e da razão.
Poderíamos reconstruir este nó górdio central à questão
da visibilidade constatando, inicialmente que, na própria
formação das duas mais importantes tradições ocidentais
de pensamento, o Cristianismo e a Filosofia, fé e razão coin-

15
cidem, apesar de suas diferenças históricas (“a fé começa
onde termina a razão”), na axiologia e na simbologia relacio-
nada ao visível e a visão, isto é, o visível e a visão devem ser
pautados pela fé cristã tanto quanto pela razão filosófica.
Se, por um lado, uma apreciação superficial da ques-
tão que propomos pode levar a crer que a fé cristã historica-
mente difere fundamentalmente do racionalismo filosófico
(o cristão vê com os olhos da fé, enquanto o filósofo vê com
os olhos da razão) por outro, um exame da questão mostra
que fé e razão compartilham a axiologia do visível e da vi-
são, isto é, a concepção fundamental de que existem duas
formas de visível e de visão que correspondem a dois mun-
dos distintos e hierarquizados, de um lado o mundo sensí-
vel, composto por tudo o que é tangível aos nossos sentidos
e paixões (a terra, o mundo, a physis, a realidade material, a
tekhne), por outro, o supra-sensível, composto por tudo que
é transcendente e essencial (o céu cristão, o eidos, o ideal,
a idéia, o topus uranos platônico). A questão da visibilidade,
portanto, só pode ser pensada no âmbito do Cristianismo e
da Filosofia ocidental por meio da constatação do entrelaça-
mento do visível e da visão aos domínios da fé e da razão.
Tomamos como ponto de partida o poema de John
Milton como paradigmático da questão da visibilidade pelo
fato de que o reconhecimento do erro e a sua redenção, que
culmina com a auto-imolação do herói bíblico, constituem,
para Sansão, um aprendizado da fé. Na leitura que propo-
mos, este aprendizado, mais do que fé – ou, talvez, antes de
sê-lo –, é um aprendizado da visibilidade2, pois no poema
percebe-se que o visível (a beleza de Dalila, o templo dos
filisteus, a força descomunal do herói – motivo da vaidade
de que o herói posteriormente se arrependerá) se distancia
da visão (que permitirá ao herói bíblico, já cego, abandonar
sua vaidade e seu desejo e se voltar à fé interior e invisível),
2
Como ensina Merleau-Ponty, o visível é um aprendizado do mundo que
coincide com a atividade do pensamento; ver, portanto, não é simplesmente
olhar, mas construir o mundo com operações “reflexionantes” que trans-
formam a percepção em pensamento e imaginação do real (2000, p. 37
et passim)

16
ou seja, o poema de John Milton oferece ao herói Sansão e
ao leitor um aprendizado da questão da visibilidade, i.e., de
como o visível e a visão historicamente se diferenciaram em
uma visibilidade interior (da alma, da consciência e da razão)
e uma exterior (do mundo, das coisas e das aparências).
O Sansão de Milton, em sua cegueira, vive uma “living
death”, pois está “exiled from light” numa “land of dark-
ness”, resultado de seu próprio erro de confiar no visível e
na visão externa. Seu cativeiro, uma “Prison within Prison”, o
torna, então, duplamente prisioneiro: por um lado prisioneiro
no mundo físico, por outro, prisioneiro no mundo visível.

17
1. Visibilidade e visão: o que há
para se pensar?

A questão de que nos ocuparemos ao longo deste


texto, a visibilidade/visão, perpassa toda a histórica do oci-
dente, dos gregos à atualidade dos mass mídia, e envolve
pelo menos três domínios fundamentais da civilização
humana: a Religião, a Ciência (sobretudo a Filosofia) e as
Artes. O fato de esta questão não ter recebido a atenção
devida nos estudos sobre Religião ou nas diversas vertentes
da Filosofia ocidental (com exceção da “Dióptrica” de Des-
cartes e de algumas reflexões fundamentadas na fenome-
nologia e na hermenêneutica, como as de Merleau-Ponty,
Heidegger, Derrida e Foucault), mas serem fundamentais
à Literatura e às Artes (os temas, motivos, e personagens
ligados à questão da visibilidade/visão estão presentes em
praticamente toda a literatura ocidental) indica uma recepti-
vidade maior e uma problematização mais eficiente e produ-
tiva desta questão pela arte. Com o termo problematização
estamos tentando nomear o processo histórico pelo qual
a Literatura e a Arte são vincadas pela questão da visibili-
dade/visão, por um lado contribuindo para a perpetuação
de um consenso formado sobre a visibilidade/visão formado
tanto por crenças e valores populares quanto pela axiologia
cristã e filosófica, por outro, influenciando a própria forma-
ção e a transformação desse consenso. Em outras palavras
a questão da visibilidade/visão é regida por um conjunto de
valores aparentemente consensual, seja nas crenças propu-
lares, na axiologia cristã e na filosófica, mas que escamo-
teia dissidências e dissonâncias. É claro que existem graus
variados do que chamamos de problematização desse con-
senso, mas o ponto que nos parece importante é perceber
que a Literatura e a Arte são espaços nos quais tanto a Re-
ligião quanto a Ciência confluem sob a égide da imaginação
e que esta última instruirá os processos de representação/
apresentação3 do mundo e dará contornos a esta questão
que muitas vezes distoarão do consenso.
O que estamos chamando de consenso é o conjunto de
valores informados pelo Cristianismo e pela tradição filosó-
fica e compartilhados pelo senso comum no que diz respeito
à questão da visibilidade/visão, valores que asseveram ter
a luz origem no mundo ideal/celestial e serem a visibilidade
e a visão apenas os seus reflexos distorcidos que vemos no
mundo sensível/material (consenso a que John Milton poeti-
camente se refere nos versos 91 a 93, “... if it be true / That
light is in the Soul, / She all in every part” e 162-163, “For
inward light alas / Puts forth no visual beam”).
Porém, quando nos aprofundamos um pouco mais
neste consenso, nos deparamos com dissidências e disso-
nâncias em relação à axiologia e à simbologia sobre a visi-
bilidade e a visão e chegamos a uma situação de impasse
teórico ou aporia que a Literatura e as Artes souberam ex-
plorar e problematizar de forma inegavelmente interessante,
tocando nos pontos nevrálgicos desta questão de forma
imaginativa e com uma forma de pensamento que lhes é
própria, a que Benedito Nunes chamaria de “pensamento
poético” (1998). Tais dissidências e dissonâncias que a Lite-
ratura e as Artes problematizam, longe de serem acidentais,
são congênitas e constituintes da questão da visibilidade/

3
A questão da representação/apresentação do real e do mundo que a arte
realiza é bastante complexa para que a desenvolvamos aqui. Basta-no, para
o momento, pontuar que a questão da Mimesis, já bastante complexa em
Platão (cf. DERRIDA, 2005) será tratada na Retórica clássica em termos
de adequação (Aedequatio) ou semelhança (Homoiosis), e na Filosofia em
termos de representação (Darstellung) e apresentação (Vorstellung).

19
visão, pois se, por um lado, há o rebaixamento do visível e
da visão física nos discursos do Cristianismo e da Filosofia,
por outro a evolução tecnológica da sociedade ocidental,
desde os seus primórdios cristãos e com maior ênfase nos
inícios novecentistas da Modernidade europeia e ameri-
cana, coloca a visibilidade e a visão como aspectos centrais
da vida, transformando a cultura moderna e contemporânea
em uma cultura fundamentalmente visual e midiática.
Esta tensão entre o rebaixamento do visível e da visão
física em favor do ideal e da visão intelectual/espiritual e a
centralidade da visibilidade e da visão na cultura ocidental
(com maior ênfase na Modernidade, como dissemos) ten-
siona as axiologias popular (que podemos ver em ditados
como “Quem vê cara não vê coração”), a cristã e a filosófica,
herdadas do Platonismo e do Cristianismo4, e nos possibi-
4
De uma forma direta ou inversa, as três religiões abrâmicas (o Cristia-
nismo, o Judaísmo e o Islamismo) têm relações diferentes e particulares
com a questão da visibilidade e da visão. Se, por um lado, o Judaísmo e o Is-
lamismo tradicionalmente têm uma posição crítica em relação à visibilidade
– como se pode ver na restrição ou até mesmo proibição feita à iconografia
dos santos - , tampouco podemos dizer que o Cristianismo simplesmente
incorporou a iconografia dos santos ao seu dogma por meio da represen-
tação visual de seu filho Jesus. Há, no seio da tradição religiosa cristã,
divergências também quanto à representação visual dos santos, como é
o caso do Protestantismo e do Calvinismo. Porém, mesmo a iconoclastia
das tradições protestante e luterana não desautoriza nosso argumento de
que o Cristianismo tem uma relação com a questão da visibilidade e da
visão que difere da Judaísmo ou do Islamismo basicamente pelo fato de
que no Cristianismo, Deus se mostrou aos homens por meio de seu filho na
terra, abrindo espaço, desta forma, para a sua representação e, até mesmo,
idolatria. A utilização da tenologia midiática pelas novas igrejas populares,
demonstram uma afinidade entre religião e midia que já estaria na origem
da religião cristã, no que Jacques Derrida chamou de “mundialatinização”
da igreja católica (1997, 46 et passim). Em outro texto mais recente, “Above
all no journalists”, Derrida torna este ponto ainda mais claro, dizendo que
“Isto, (a teletecnologia do cristianismo), creio eu, mantém, uma certa rela-
ção estrutural com aquilo que provavelmente distingue a Religião Judaica
ou Muçulmana da Cristã, isto é, a encarnação, a mediação, o hoc est meum
corpus, a eucaristia, Deus tornado visível” (2001, p. 58, minha tradução).
No judaísmo o Messias ainda está por vir e, portanto, sua revelação aos
homens ainda não aconteceu, sendo esta a razão de o Judaísmo ser uma
religião da revelação e não uma religião revelada, como é o caso do Cristia-

20
lita tratar a visibilidade/visão como uma questão e falar,
em consonância com alguns teóricos do século XX (Derrida,
Heidegger, Foucault, para citar os nomes mais conhecidos),
de um recalque do visível na sociedade ocidental. Pode-
mos dizer, então, que entre a axiologia que fundamenta o
pensamento – e o rebaixamento – do visível no ocidente
e a história da cultura ocidental – orientada na direção do
materialismo e da tecnologia – há um descompasso teórico
importante que ainda precisa ser pensado.
Nossa reflexão sobre a questão da visibilidade tem a
desvantagem que caracteriza temas que demandam grande
aprofundamento teórico, que é a de ser bastante abrangente
e genérica mas, por outro, tem a vantagem de partir de um
consenso, que é a centralidade da questão da visibilidade
na cultura ocidental. Em termos um pouco mais concretos,
poderíamos dizer que a centralidade da visibilidade na cul-
tura ocidental faz com que a visão oscile entre os extremos
de constatação visual da realidade (a Homoiosis da retórica
ou a Darstellung filosófica) às utopias nas quais outros mun-
dos e realidades possíveis são imaginados e visualizados
pelo pensamento imaginativo da Literatura e das Artes. En-
tre a visão das coisas na forma como elas se dão aos olhos e
o trabalho da imaginação redirecionando o olhar para aquilo
que não se vê mas que sempre se anuncia, toda uma varie-
dade de relações aponta para uma repressão do visível na
cultura, pois, em termos freudianos, poderíamos dizer que o
desejo que aciona toda forma de visão é reprimido pela or-
dem, pelas regras do “que” e do “como” se deve ver. Apenas
a título de sugestão, poderíamos polemizar um pouco mais
afirmando que a repressão ao visível na cultura ocidental
se aproxima bastante da repressão sexual, uma das molas
da neurose das sociedades modernas, como Freud explica
em “O mal-estar na civilização”. Podemos mesmo dizer que
no Ocidente o visível desperta a visão menos para a apre-

nismo. Já o Islamismo proíbe radicalmente qualquer representação visual


de Alá ou de seu profeta Maomé. Neste trabalho trataremos apenas do Cris-
tianismo e suas relações com o visível e a visão.

21
ensão do real do que para o desejo e a imaginação, ambos
pautados pela ordem e pela repressão, abrindo espaço para
vários tipos de perversão que terão no olhar e na visão seu
epicentro.
Quando nos referimos à tradição filosófica, é preciso
deixar claro que estamos nos reportando fundamental-
mente à axiologia dos diálogos de Platão, pois eles repre-
sentam o momento fundador desta tradição de pensamento
que tem na idéia e no ideal sua origem, justificativa e obje-
tivo. A despeito das diferentes leituras que os seus textos
têm recebido ao longo da história, a teoria platônica dos
dois mundos estabelece os pilares do conhecimento e da
cultura no Ocidente, disseminando a crença em um mundo
ideal e perfeito original e anterior ao mundo imperfeito que
habitamos e, portanto, visível somente à alma.
N´A República, um dos textos fundadores desta tra-
dição de rebaixamento da questão da visibilidade/visão,
Platão cria um dos mitos mais eficientes e influentes para
explicar a teoria dos dois mundos, o mito (ou alegoria) da
caverna, na qual o mundo ideal só pode ser alcançado por
meio da rememoração, da lembrança do conhecimento per-
feito, ideal, que trazemos em nossa alma. Neste processo
de anamnese, o mundo material é como um degrau – senão
um empecilho – no caminho do conhecimento e, portanto,
tudo o que se relaciona a ele deve ser preterido em relação
ao mundo ideal. A percepção que temos do mundo (e a vi-
são tem lugar central dentre os instrumentos da percepção,
como veremos adiante) ocupa, então, o último lugar na ca-
deia de conhecimento que liga os homens à verdade ideal,
como diz Sócrates a Gláucon (PLATÃO, 1996, p. 153):

E agora demos aos dois segmentos daquela linha


reta, com suas quatro divisões, os nomes que lhes
coopertencem: a inteligência ao mais elevado; o
pensamento ao segundo; ao terceiro chamemos
crença e ao último, percepção das sombras. E po-
nhamo-los em ordem, considerando que cada um
deles participa tanto mais da clareza quanto mais

22
participem da verdade os objetos a que se aplica.

O que o mito da caverna demonstra com clareza é que o


mundo real é composto de sombras do mundo ideal, ima-
gens bruxuleantes que o verdadeiro filósofo deve rejeitar e
das quais o verdadeiro conhecimento deve saber se esqui-
var. A realidade, portanto, é formada de restos e rastros do
mundo ideal, materializados na forma de imagens, na forma
de visibilidade, nos permitindo dizer que a visibilidade é,
como veremos mais adiante, um arquivo de ruínas.
Desta forma, entre a condenação na teoria e utilidade
na prática, entre a rejeição heurística e o desejo irracio-
nal, as imagens condensam, na história e na sua estória,
naquilo que chamaremos de narrativa da visibilidade, uma
boa parte da história do ocidente, como explica um dos mais
importantes teóricos da imagem na contemporaneidade a
respeito da paradoxal relação amor-ódio que o ocidente tem
com as imagens desde os primórdios gregos (MITCHELL,
1995, p. 15):

Por um lado, parece inapelavelmente óbvio que a


era do video e da tecnologia cibernética, a era da
reprodução eletrônica, desenvolveu novas formas
de ilusionismo e simulação visual com poderes
sem precedentes. Por outro, o medo da imagem,
a angústia de que os “poderes das imagens” pos-
sam finalmente destruir até mesmo seus criadores
e manipuladores, é tão antigo quanto a produção
mesma das imagens (minha tradução, ênfase
minha).

Nesse sentido, podemos dizer que a história do ocidente


passa pela história da visibilidade e da visão e que é mesmo
possível retomar os fios desta narrativa a partir do trata-
mento da visibilidade/visão como questão e da percepção
de que os desdobramentos desta questão nos permitem
perceber como a história do ocidente e a história da visibili-
dade/visão são uma e mesma história.
Antes de seguirmos adiante, gostaríamos de lembrar

23
que a escolha do termo visibilidade, e não visível, foi feita
para evitar que esta questão seja reduzida à nossa expe-
riência sensível do mundo, isto é, ao visível que o senso
comum denomina “mundo” ou “realidade” ou à represen-
tação deste visível como Homoiosis ou Darstellung. Como
esclarece Merleau-Ponty em O visível e o invisível (2000),
o visível é apenas aquela pequena parte do Ser que se nos
dá aos sentidos e na qual cremos encontrar o real ou, como
dirá poeticamente Wiliam Blake (1988, p. 35), “How do you
know but ev´ry Bird that cuts the airy way, / Is an immense
world of delight, clos´d by your senses Five?”

24
2. Fiat lux

Para além da construção de uma iconografia ociden-


tal, cujo projeto nos faz lembrar as importantes contribui-
ções de teóricos como Irwin Panofski, Hans Gombrich e
Heinrich Wölflin, tratar a visibilidade como questão implica,
primeiramente, em perceber que se trata de um discurso
transdisciplinar que parte dos pressupostos axiológicos do
Platonismo e do Cristianismo. Em segundo lugar, trata-se de
desdobrar e identificar os entrelaçamentos entre o tema da
visibilidade e, por um lado, os dois discursos fundadores da
cultura ocidental, a Filosofia e o Cristianismo e, por outro,
a Literatura e as Artes. A este duplo mister de percepção
e identificação da presença da visibilidade nos principais
campos do saber da cultura ocidental denominaremos do-
ravante a narrativa da visibilidade. Para construirmos esta
narrativa da visibilidade, uma rápida digressão no intuito de
entendermos mais claramente seus contornos.
A visibilidade, na sua história ocidental, está indisso-
ciavelmente ligada à luz, pois dela depende, tanto no sen-
tido literal – a luz que incide sobre os objetos produz visibi-
lidade, tornando-os visíveis – quanto no sentido alegórico
ou metafórico – como metáfora do conhecimento e da fé já
nos diálogos platônicos e nos textos do antigo testamento.
Apesar de já consolidada pela disseminação na cultura po-
pular da doutrina platônica dos dois mundos, ainda assim
é bom lembrar que a associação da visibilidade com a luz
e o conhecimento tem seu momento fundador na associa-
ção que Platão faz, n’A República, mais especificamente
no mito da caverna (Livro VII), entre o sol sensível e o sol
inteligível. A caverna platônica, equivalente ao mundo real,
é o lugar do qual só se pode vislumbrar o sol sensível, cuja
luz é irreal e ao qual corresponde apenas a ilusão de conhe-
cimento. Superior e transcendente à caverna/mundo real,
há o mundo das idéias, a que o filósofo deve ascender por
meio de seu conhecimento/anamnese, saindo da caverna e
vislumbrando o sol ideal, a luz verdadeira e o conhecimento
ideal. Portanto, se seguirmos esta lógica até seu punctum
caecum, de maneira esquemática mas instrutiva da hipó-
tese que tentamos demonstrar, veremos que a luz do mundo
real é uma forma de escuridão e a visão deste mundo é uma
forma de cegueira.
Este desdobramento do mito da caverna fundamenta
boa parte da simbologia da visibilidade e da visão que per-
passa a cultura, as artes e a literatura ocidental, cujo exem-
plo mais eloquente talvez seja o do cego Tirésias, persona-
gem central da dramaturgia grega e da literatura ocidental
que, após testemunhar em favor de Zeus na querela entre o
deus olímpico e sua mulher Hera, fora transformado em mu-
lher para, sete anos após, voltar à forma masculina e ficar
cego como punição vingativa de Hera. Zeus, não podendo
reverter o castigo de outro deus/a, dá a Tiresias, como
consolo, o dom da visão suprasensível e do conhecimento
transcendente.
Desde os seus primórdios platônico-cristãos a associa-
ção visibilidade-luz esteve sempre enredada a dois domínios
fundamentais da existência humana, a Ciência e a Religião.
Com este termo genérico “Ciência”, diga-se logo, estamos
designando fundamentalmente a Filosofia e sobretudo a Fi-
losofia ocidental desde seu surgimento, com Parmênides e
Heráclito, até a “virada” hermenênutica dos anos 1920 (me
refiro basicamente à publicação de Ser e Tempo, de Mar-
tin Heidegger), na qual o ser deixa sua estrutura estável e
transcendente para se tornar histórico e irremediavelmente

26
ancorado na linguagem.
O outro termo que usamos, a Religião, tão abrangente
quanto o anterior, será usado como referência ao Cristia-
nismo em relação às outras duas religiões abrâmicas, o
Judaísmo e o Islamismo. A diferença fundamental que nos
interessa ressaltar é o fato de a primeira ser uma religião
revelada, isto é, no Cristianismo a concepção que prevalece
é a de que Deus teria se mostrado aos homens na forma
humana de seu filho Jesus, permitindo, desta forma, a
sua representação visual, ao contrário do Judaísmo e do
Islamismo, como dissemos anteriormente (c.f. nota 5). Por-
tanto, Filosofia e Cristianismo serão termos usados de forma
abrangente apenas com o objetivo de discutirmos a questão
da visibilidade e da visão.
Embora a Filosofia e o Cristianismo tenham se consti-
tuido historicamente no Ocidente como modos diferentes de
ser do homem, razão e fé são dois domínios da experiência
humana que, apesar de radicalmente díspares em suas his-
tórias tanto quanto no senso comum (“a fé começa onde
termina a razão”), se aproximam justamente no nó de sua
separação, no seu ponto de contato e afastamento, como
afirma Derrida (1997). Se, como diz o dito popular, “a fé co-
meça onde termina a razão”, no ponto onde uma termina
e a outra começa há de haver algum contato, fora de um
tempo ou de um espaço, nem um domínio nem outro, mas
o “entre” de um contato que não se conforma a uma padrão
ou método. É neste contato diáfano que fé e razão compar-
tilham os seus pressupostos implícitos, nos permitindo ver
que, por um lado, a fé, fundamento histórico de toda forma
de religio, é também fundamento do saber, do “fiduciário ou
da fiabilidade” que fundamenta o saber, conforme as pala-
vras de Derrida (1997, p.10 et passim). É esta inseparabili-
dade original entre o saber e a fé que leva Kant, em um texto
conhecido sobre a origem do mal, a propor a sua igreja “vi-
sível” sobre as bases de uma religiosidade pura ou racional,
expurgando o dogma – a religião eclesiástica – e fazendo
valer a religião moral como vontade e razão humanas.
Se, como dissemos, a fé está na base do saber, por

27
outro lado, também podemos dizer que a razão está na base
da fé, que sempre foi pautada pela abstração racional que
guia seus dogmas e preceitos. Novamente nos reportamos
ao famoso texto de Kant para mostrar que os 4 atributos da
verdadeira igreja/fé que o filósofo postula (universalidade,
pureza, liberdade e imutabilidade – Parte 5.1.4 p. 118) não
são essencialmente diferentes dos atributos da razão postu-
lados pelos filósofos iluministas.
Este argumento da inseparabilidade da fé e da ra-
zão, desenvolvido de forma minuciosa por Jacques Derrida,
Gianni Vattimo e outros no livro A Religião (1997), nos será
importante pelo fato de partir da premissa que Heidegger
usará para se referir às relações entre poesia e pensa-
mento, qual seja, o fato de que a diferença implica neces-
sariamente uma comunhão que a pressuponha, ou seja, fé
e razão só podem ser pensados em sua diferença a partir
do pressuposto – tanto implícito quanto recalcado – de sua
comunhão essencial, como dirá Derrida sobre o elo funda-
mental entre crença e razão “Está(-o) aí onde o saber e a
fé, a tecnociência (“capitalista” e fiduciária) e a crença, o
crédito, a fiabilidade, o acto de fé se combinarão, sempre,
no seu próprio lugar, no nó de aliança de sua oposição.” (p.
11) [ênfase do autor].
Esta percepção do contato e do contágio entre fé e
razão já na pureza de suas origens tem por fundamento
um dos conceitos fundamentais da hermenêutica de Mar-
tin Heidegger e da desconstrução de Jacques Derrida, que
é a diferença (différance), termo pelo qual Derrida reflete
sobre aquilo que, sem tempo e nem lugar, dá origem às
diferenças, uma origem sem origem, o diferenciar das di-
ferenças. O fio condutor do pensamento da desconstrução
derridiana é basicamente a idéia de pensar os pressupostos
não pensados da tradição ocidental, pressupostos este que,
justamente por terem valor heurístico, são dotados do valor
de verdades inquestionáveis ou eternas, justiça, verdade,
democracia, Deus, ou espírito (em nome dos quais, diga-se
de passagem, barbarismos, atrocidades e genocídios foram
perpetrados ao longo da história do Ocidente). Desconstruir

28
– que de modo algum significa destruir –, portanto, estes
valores heurísticos que caracterizam o pensamento oci-
dental significa repensar a herança e o futuro do Ocidente,
abrindo possibilidades para outras formas mais inclusivas e
tolerantes de pensar e viver que possam, algum dia, somar
a estes valores heurísticos a hospitalidade e a aceitação
das diferenças, tornando melhores as vidas das pessoas e
as relações interpessoais bem como as relações no âmbito
mundial.
O pensamento da diferença, da forma como pensado
por Heidegger e Derrida, nos será fundamental para pen-
sarmos a questão da visibilidade, pois a partir das reflexões
desses pensadores, principalmente Derrida, fica claro que
– e este é o nosso argumento central – a visibilidade só
pode ser pensada no contexto da tradição platônico-cristã
que lhe dá origem. Em outras palavras queremos dizer que
para trabalhar a questão da visibilidade de forma produtiva
é necessário retomar os fios que a enredam a outras áreas
do saber e da existência humana no que denominamos a
narrativa da visibilidade.
Um segundo aspecto da narrativa da visibilidade, tão
importante quanto o primeiro e que se entrelaça de forma
inextricável ao primeiro, é a constatação da centralidade
da escrita na civilização ocidental e a repressão histórica
ao seu caráter visível. A cena do seu surgimento na Grécia
antiga é a mesma do surgimento das bases filosóficas, epis-
temológicas e culturais do ocidente e a questão da visibili-
dade que envolve a escrita em diálogos platônicos como o
Fedro, Crátilo ou A República será também a questão da
visibilidade no ocidente. Esta cena primária do surgimento
da escrita é fundamental à questão da visibilidade por ser a
escrita um caso bastante particular de visibilidade, pois se
por um lado ela se tornou instrumento secular de preserva-
ção da verdade, ela o faz justamente por ser um discurso
escrito, dotado de inegável caráter material e visível. Além
de trazer a marca do visível como seu traço fundamental,
a escrita também se presta a outros usos, como o literário,
que foi historicamente pensado como alheio à preservação

29
da verdade, o que levaria à tão conhecida condenação de
Platão aos escritores n’A República (Livro III). Não é por
acaso que, neste momento inaugural, Platão compara a
escrita, no Fedro, à pintura, dizendo que ambas – escrita e
pintura- “têm atitude de pessoas vivas, mas se alguém as in-
terrogar, conservar-se-ão gravemente caladas”, pois ambas
transmitem “uma aparência de sabedoria, e não a verdade”
(1954, p. 256-7). Pela sua força de exemplaridade, pode-se
dizer que esta cena do Fedro cria um paradigma no qual a
escrita é o centro de forças antagônicas que a louvam pela
capacidade de reter e transmitir conhecimento, mas a con-
denam por ser letra impressa, visível e passível de leitura e
interpretação.
Portanto, o que chamamos da narrativa da visibilidade
é uma maneira de pensarmos como a questão da visibili-
dade sempre esteve no centro da história da civilização oci-
dental por meio tanto da questão da visibilidade quanto do
caráter visível da escrita, recalcado nos discursos filosóficos
e religiosos cristãos, mas sempre presente na Literatura.
Reconstruir integralmente esta narrativa seria o
mesmo que tentar reconstruir a Biblioteca de Babel, de que
nos falou Borges, tantos os meandros e bifurcações que
encontraríamos. Apenas exporemos brevemente o ponto
central desta narrativa, que chamaremos de paradigma da
visibilidade, isto é, a assunção transdisciplinar fundamental
na cultura ocidental de que visibilidade e invisibilidade têm
naturezas distintas e opostas e que a invisibilidade, devido
à axiologia platônico-cristã, é superior à primeira por ser a
essência dos valores heurísticos mais caros ao ocidente
(Deus, razão, fé, espírito).

30
3. Visível é o que se vê?

Para relembrar, mesmo que muito esquematicamente,


a fundamentação platônica do pensamento sobre a visibili-
dade, da antiguidade grega aos dias atuais, a Alegoria da
caverna, do Livro VII da Republica de Platão será bastante
instrutiva:

[Sócrates a Gláucon]: A caverna-prisão é o mundo


das coisas visíveis, a luz do fogo que ali existe é o
Sol, e não me terás compreendido mal se interpre-
tares a subida para o mundo lá de cima e a con-
templação das coisas que lá se encontram como
a ascensão da alma para a região inteligível; [...] a
mim me parece que no mundo inteligível a última
coisa que se percebe é a idéia do bem, e isso com
grande esforço; mas uma vez percebida, forçoso
é concluir que ela é a causa de todas as coisas
retas e belas, geradora da luz e do senhor da luz
no mundo visível e fonte imediata da verdade e do
conhecimento no inteligível... (1996, 155)

A luz, concebida já em Platão e Aristóteles como metáfora


do conhecimento e da verdade, liga inegavelmente a ques-
tão da visibilidade ao conhecimento (e à fé, como veremos
adiante), porém de forma inversa e este, podemos dizer, é
o nó górdio de nossa argumentação, isto é, a luz do conhe-
cimento e da verdade é diferente da luz natural, pois esta
última não produz conhecimento ou verdade, podendo até
provocar cegueira e escuridão, como um pharmakon (DER-
RIDA, 2005), o que leva à paradoxal conclusão de que em
Platão, quanto mais luz (natural), menos conhecimento e
menos verdade. O ponto de maior densidade metafórica e
conceitual desta ligação luz-conhecimento-verdade se dá
fundamentalmente na metáfora conceitual do sol, que per-
passa o discurso filosófico de Platão e Aristóteles a Hegel e
que denota, em suas várias nuances, a luz essencial que
traz a essência, a verdade, o logos, o bem, conhecimento
que não se dá aos sentidos humanos – menos ainda à vi-
são – mas que se afirma na tradição platônica como a fonte
de todo ser, como explica Derrida em comentário à presença
do heliotropo na República (DERRIDA, 1991, p. 283):

[O sol] está aí, mas como fonte invisível de luz,


numa espécie de eclipse insistente, mais que es-
sencial, produzindo a essência – ser e aparecer
– do que é. [...] Mantendo-se para além do que é,
figura o Bem de que o sol sensível é o filho: fonte
de vida e de visibilidade, de profiqüidade e de luz.

Derrida chama a atenção para a distinção ontológica que


a metáfora do sol estabelece em sua constituição, a qual
terá conseqüências fundamentais para a questão da visibili-
dade, qual seja, a distinção hierárquica entre o sol/luz inte-
ligível e o sol/luz sensível, sendo o primeiro a “fonte de vida
e de visibilidade”, apesar de invisível, aquele que demanda
os instrumentos conceituais corretos para se contemplar,
fornecidos pelo filósofo. Fonte conceitual e metafórica da
luz, do conhecimento e da verdade no paradigma platônico
e na axiologia e simbolismo ocidentais, o verdadeiro sol é o
sol inteligível, ideal, origem de todas as idéias e conceitos,
do belo e do bom, conceitos que norteiam a humanidade,
na filosofia platônica. A essência e a verdade que o sol ideal
porta, ele as transmitirá, então, de pai para filho, ao sol sen-
sível, gerando o simbolismo do pai e do rei presente nas di-

32
ferentes culturas e épocas: o sol é o pai de todos os planetas
e o rei dos astros (como se vê na metafóra do Rei Sol, desde
o deus egípcio Ra até a Cruz Gamada, presente em várias
culturas da antiguidade). A relação do pai com o filho, do sol
ideal/pai para o sol sensível/filho é, portanto, uma relação
complexa e central no Ocidente – matricial, díriamos, com
Derrida e Freud.
Porém, e este é um ponto fundamental de nossa ar-
gumentação e na de Derrida, alguns pressupostos desta
axiologia e simbolismo, de tão auto-evidentes5 que se tor-
naram na história ocidental, foram tomados como valores
heurísticos, deixando de ser pensados em sua origem ou
pressupostos. É o que faz Derrida quando demonstra como
no heliotropo platônico, apesar de o sol ideal ser a origem
de tudo, é o sol sensível que serve de base para o conceito
de sol inteligível/ideal, ou seja, é o filho que possibilita a
existência do pai: “Cada vez que uma retórica define a me-
táfora, implica não só uma filosofia mas também uma rede
conceitual na qual a filosofia se constituiu”, e corre-se o
risco “[...] de tomar os efeitos mais derivados pelos traços
originais de um subconjunto histórico, de uma configuração
precocemente identificada...” (1991, p. 271)
Na ordem espacio-temporal que adviria deste tropo/
metáfora fundadora da cultura ocidental, o sol pai – pelo
fato de ser a origem – deveria ser anterior ao sol filho, mas
o que a leitura de Derrida (1991, 2005) mostra é que a an-
terioridade do sol/pai é bastante complicada pelo fato de
já pressupor – tanto teórica quanto metaforicamente – a
existência do sol/filho. Não se trata de inversão das origens,
mas de seguir a lógica desta metáfora conceitual até o
ponto em que origem deixe de ser original e primeira, fonte
da autoridade e da exclusão e passe a ser uma origem en-

5
A auto-evidência da axiologia e simbolismo do sol exemplifica, de
maneira singular, a sua proximidade com outro “auto”, a auto-imunidade,
demonstrando o potencial totalitário que torna toda forma de “auto” um
risco à democracia ou à aceitação das diferenças (DERRIDA, 1996). Uma
ótima discussão sobre os riscos da auto-imunidade da democracia à
liberdade pode ser encontrada em NAAS, 2006, p. 22 et passim.

33
tre outras, que inclua outras possíveis fontes de luz e de
conhecimento.
Podemos dizer, então, que a metáfora do sol é o ponto
cego da diferença ontológica que fundamenta o conheci-
mento do visível na tradição platonico-cristã, ponto onde os
pressupostos não pensados desta tradição parecem saltar
aos olhos, pois o heliotropo não é senão a fundamentação
de uma metáfora do mundo inteligível (o sol ideal) por uma
metonímia do mundo sensível (o sol sensível). Dizemos
ponto cego porque o heliotropo, como metáfora e conceito
da origem de toda visibilidade, indica já em sua origem o
paradoxo central da questão da visibilidade – a que Derrida
se refere e a que nos referiremos também como o paradoxo
da visibilidade –, que é o fato de que o sol ideal/inteligível,
fonte e essência de toda visibilidade e pai do sol sensível/
visível, ser em sua essência invisível ou, melhor dito, ter uma
essência invisível.
A espeleologia platônica associa diretamente a luz da
caverna ao sol sensível, índice da existência real como mí-
mese imperfeita do mundo ideal. Se caverna e sol sensível
são elementos do mundo real, o mundo ideal terá por índice
o sol inteligível, imagem da perfeição, da beleza e da ver-
dade que, porém, não se pode contemplar diretamente. Fato
interessante, comenta Derrida, é que o sol, conceitualmente
considerado a fonte e a essência do ser, já é uma metáfora,
ou seja, aquilo mesmo que deveria ser o próprio se mostra
metafórico e então, “[C]omo a mimesis, a metáfora retorna
à physis, à sua verdade e à sua presença.” (1981, p. 285).
Este “retorno” ao mundo real, visível, que a metaforicidade
do sol inteligível indica, nos parece deslocar a questão da
visibilidade para um lugar central na ontologia e axiologia
ocidentais, pois o caráter recalcado da visibilidade do real
– da visibilidade visível, em contraposição à visibilidade in-
visível do ideal –, é um dos fundamentos do que se tornou
conhecido como o platonismo – o conjunto de leituras e
interpretações de textos de Platão que lançaram as bases
epistemológicas da cultura ocidental – tanto quanto do Cris-
tianismo. Esta centralidade que estamos reclamando para

34
a questão da visibilidade nos permite perceber que a axio-
logia desenvolvida a partir desta tradição platônico-cristã
determina que o que é visível aos olhos difere em essência
daquilo que é visível à razão e à fé e a visibilidade sensível
(a do mundo real) radicalmente diferente da visibilidade in-
teligível (a das essências, da razão e da fé).
A metáfora do sol usada n´A República não é, por-
tanto, somente uma metáfora entre outras, uma imagem no
meio de tantas outras usadas como exemplos nos diálogos
do filósofo grego, mas um tropo – imagem, metáfora e con-
ceito superpostos – rico o suficiente para povoar o imaginá-
rio de todo o mundo ocidental há, pelo menos, 2.000 anos.
A axiologia do heliotropo implantou a concepção de que o
conhecimento e a verdade advêm da luz que emana do as-
tro rei, tornando possível, por meio da diferenciação entre
a luz verdadeira do sol ideal e a luz falsa do sol sensível,
a conseqüente diferenciação entre o conhecimento verda-
deiro e o falso.
Em termos esquemáticos, podemos resumir o para-
doxo da visibilidade da seguinte forma: a visibilidade sen-
sível é considerada ardilosa, ao passo que a inteligível é
fidedigna; a primeira está associada aos vícios mundanos,
ao passo que a segunda está relacionada ao bem, valor
supremo; a primeira é sensual, enquanto a segunda deve
abdicar dos sentidos. Como a ontologia platônica é regulada
pela oposição de um mundo sensível/visível, inferior e en-
ganoso, a um mundo inteligível/invisível, verdadeiro e bom,
podemos dizer que as duas visibilidades acionam, portanto,
dois modos de conhecimento que a teoria mimética buscou
explicar e regulamentar.
O paradoxo da visibilidade norteou os discursos tanto
da Filosofia como das Artes por muitos séculos, permitindo
perceber os entornos de uma questão que não nos caberá
aqui senão nomear: a filiação dos discursos sobre as rela-
ções entre textos e imagens ao platonismo (SANTOS, 2000).
O que nos interessa, neste momento, é perceber como a in-
vestigação da narrativa da visibilidade revela pontos cruciais
em que o paradigma platônico se enreda ao Cristianismo,

35
nos permitindo perceber que a colocação da visibilidade
como questão mostra o seu recalcamento não somente na
tradição filosófica platônica, mas também – e fundamental-
mente – no Cristianismo.

36
4. Ver para crer, ou melhor,
crer para ver

Por acreditarem em um deus único único (Iahweh


para os cristãos e judeus e Allah para os muçulmanos), as
3 religiões abrâmicas, Cristianismo, Judaísmo e Islamismo,
fundamentam sua exegese e dogma no momento fundador,
em que este Deus sinaliza ao patriarca Abraão para que este
fosse o “pai de uma multidão de nações” (Gênesis, 17, 5).
Sinais ou revelações como a de Abraão constituem o corpo
teológico de cada uma dessas religiões e geralmente se
manifestam na forma de milagres, aparições, feitos dos pro-
fetas e discípulos e, sobretudo, nos livros sagrados (a Bíblia
para os cristãos, a Torá para os judeus e o Corão para os
muçulmanos), sendo consideradas como sinais diretos de
Deus por meio seus homens santos (profetas, anacoretas,
místicos, visionários, apóstolos, ascetas). No Cristianismo,
que é o que nos interessa neste momento, a revelação é
narrada na Bíblia por meio das profecias e das narrativas
dos apóstolos, as primeiras anunciando a vinda do Messias
e denunciando a corrupção moral dos homens para que pos-
sam se preparar para o dia do juízo, as últimas narrando a
vinda do filho de Deus à terra e sua vida terrena, enfatizando
os feitos do Messias que, ao longo dos séculos, forneceriam
as bases do dogma cristão. Assim como a estória de Jesus,
também as vidas dos santos e dos mártires constituem im-
portante fonte da simbologia cristã, pois a sua canonização
pela igreja tem o duplo aspecto de reforçar o dogma cris-
tão e, ao mesmo tempo, disseminar a fé cristã para uma
público maior, principalmente pela canonização de pessoas
comuns, demonstrando que a fé pode salvar e santificar,
como é o caso de São Francisco de Assis, Santo Antonio,
São Pedro e São José (que constituem, conjuntamente, os
santos padroeiros, no Brasil das festas juninas), São Sebas-
tião e as santas Nossa Senhora da Graça e Nossa Senhora
de Fátima, apenas para citar os mais populares no Brasil.
A revelação cristã, em sua variedade de formas e
manifestações, parece mostrar que no dogma cristão a vi-
sibilidade é tratada como uma questão de fé, isto é, como
uma instância individual, interior e particular que permite
aos homens ouvir ou perceber o chamado divino, o que ge-
ralmente acontece por meio de visões, como as dos profetas
Ezequiel, Isaías e dos santos e ascetas Santa Tereza d’ Ávila,
Santo Antão do deserto ou São João da Cruz. Estas visões,
sendo espirituais, são sempre experiências individuais e in-
teriores, não podendo ser compartilhadas, isto é, ouvidas
ou vistas por outras pessoas, e sua perpetuação e difusão
se deu por meio de seus relatos místicos. Mais importante,
estas visões espirituais também mostram que a fé, por ser
individual e interior, deve ser invisível, deve ter uma natureza
e essência diferente das visões mundanas, isto é, os sinais
da revelação são “vistos” por uma visão interior que, como
veremos adiante, se separa e muitas vezes antagoniza a
visão física que serve de fundamento à ciência. Podemos
dizer, provocativamente, que os santos são aqueles videntes
que vêem o invisível.
Por ser uma instância individual e invisível, a visibi-
lidade acionada pela fé implica em uma relação inversa
com a visibilidade da visão natural, de forma que, via de
regra, quanto mais visão física tiver o homem, quanto maior
a confiança nas imagens do mundo que o cerca, menor a
sua fé (a estória bíblica de São Tomé é paradigmática desta
inversão, pois antes de adquirir a fé que dispensa a visão
natural, Tomé se fia nas imagens do mundo real, duvidando
até mesmo da ressurreição de Cristo – João 20: 20-29). O

38
oposto exato também demonstra esta relação inversa da
visibilidade da fé com a visibilidade natural, isto é, quanto
mais fé e confiança na visão interior, menos necessidade
da visão física, culminado com as várias estórias bíblicas
de cegueira como punição pela falta de fé, tal qual Sansão,
e recuperação da visão pela força ou recuperação da fé, tal
qual o velho Tobit, no Livro de Tobias (Livro X), curado da
cegueira por seu filho Tobias com a ajuda do anjo Rafael
(Bíblia de Jerusalém, 2003).
Tal como no paradigma platônico que reconstruímos
com a anamnese da alegoria da caverna, a visibilidade no
Cristianismo se divide em visibilidade sensível/visível e vi-
sibilidade da fé ou invisível, esta última englobando tudo o
que não se pode ver com os olhos, mas que justamente por
essa razão, requer a crença. A estória de São tomé é para-
digmática deste tipo de visibilidade por causa da transfor-
mação pela qual o apóstolo passa: de descrente (“ver para
crer”) ele passa, por causa da fé, a ser crente (“crer para
ver”), passando a ver com os olhos da fé e tornando a visão
natural um acessório dispensável.
A constatação da natureza bipartida da visibilidade na
tradição cristã tanto quanto na tradição filosófica platônica
tem implicações profundas na cultura e no pensamento oci-
dentais, muitas delas reverberadas pela tradição popular na
forma de ditados e provérbios (“Quem vê cara não vê cora-
ção”, “Os olhos são o espelho da alma”, “Quem conhece
o seu coração, desconfia dos olhos”, “O que os olhos não
vêem, o coração não sente”), demonstrando que, assim
como a visibilidade, também a visão é dividida entre a visão
natural (física, aquela que é exercida com os olhos) e a visão
interior, seja ela a da razão (o eidos platônico, a Imago la-
tina) ou a da fé (crença individual cristã). A visão da fé cristã
é aquela que, abdicando da visão farisaica, que precisa de
provas para crer, mostrará o caminho da visão divina, numa
espécie de lex talionis da visão profética, “olho (externo) por
olho (interno) e visão (externa) por visão (interna)”. A invi-
sibilidade da fé, espiritual e subjetiva, e sua relação com
a visão interior somente são possíveis por meio da crença,

39
que aciona, desta forma, a dupla injunção da revelação da
fé cristã: revelar significa desvelar, mostrar, mas, ao mesmo
tempo, re-velar, esconder, tirar da vista, mostrando que o
acesso à fé é o acesso à invisibilidade.
Assim como a visibilidade, a visão também tem, na tra-
dição platônica/cristã, duas naturezas opostas e hierarqui-
zadas, fazendo das muitas estórias bíblicas sobre cegueira
estórias de permuta entre os dois tipos de visão, permuta
que têm por motivação ou objetivo central a revelação da fé:
de um lado, estórias de recuperação da visão física possibi-
litada pela fé, pela sua assunção ou pela sua recuperação
(no caso dos desenganados e dos descrentes); de outro, as
estórias de perda da visão física e consequente aquisição
da visão interna e, muitas vezes, profética.
No primeiro caso, há os cegos de nascença que, como
os coxos e leprosos da Bíblia, terão a benção da justiça di-
vina em compensação pela injustiça dos homens devida à
sua particularidade fisiológica ou anatômica, pois, como dis-
semos anteriormente, a cegueira constitui, na axiologia oci-
dental, um estado de anormalidade ou ab-normalidade, isto
é, um estado anterior à normalidade, estado sem regra, sem
lei, sem fé ou razão. Sendo vistos como uma violação da
natureza, eles são aberrações das quais a civilização desvia
o olhar, cabendo a Deus olhar por eles.6 Aos cegos que não
possuem fé e, portanto, não possuem visão alguma (a física
ou a da fé), só restam as trevas e a esperança de um dia
receber a redenção, como atesta o Evangelho de Mateus
(15:14) a respeito dos filisteus: “Deixai-os; são condutores
cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na
cova” (Bíblia de Jerusalém, 2003).
Esta passagem do texto bíblico, de grande influência

6
A questão da relação dupla de repulsa e atração que as anormalidades
ou transgressões (dentre elas a cegueira ocupa lugar de relevo) causam
ao olhar na cultura ocidental é um tema demais complexo para tratarmos
aqui. Apenas gostaríamos de assinalar que repulsa/atração do olhar para/
sobre o diferente é a fonte de reações como o voyerismo, o fetichismo e as
diferentes perversões que a Literatura soube explorar tão bem, da Filosofia
na alcova, do Marques de Sade, à História do olho, de Goerges Bataille.

40
no imaginário e na simbologia popular, literária e artística do
ocidente, reforça a distinção e a hierarquia implícita entre os
dois tipos de visibilidade e de visão, cuja influência pode ser
detectada em artistas tão distantes no tempo quanto o pin-
tor flamengo Pieter Brueghel (1525-1569), com seu quadro
“Parábola dos cegos”,

Pieter Brueghel, o velho. Parábola dos cegos (1568)


Disponível em: < commons.wikimedia.org/wiki/File:Pieter Bruegel
the Elder-The Parable of the Blind Leading the Blind >.
Acessado em 25 Setembro 2013. 

e o poeta Baudelaire, com seu conhecido soneto “Os cegos”,


no qual a reação de horror a estes desviados da ordem na-
tural, mesclada a um certo voyeurismo, pode ser lida já na
primeira estrofe (1985, 343):

Contemplai-os, ó minha alma; eles são pavorosos!


Iguais aos manequins, grotescos, singulares,
Sonâmbulos talvez, terríveis se os olhares,
Lançando não sei onde os globos tenebrosos.

41
Suas pupilas, onde ardeu a luz divina,
Como se olhassem à distância, estão fincadas
No céu; e não se vê jamais sobre as calçadas
Se um deles a sonhar sua cabeça inclina.

Cruzam assim o eterno escuro que os invade,


Esse irmão do silêncio infinito. Ó cidade!
Enquanto em torno cantas, ris e uivas ao léu,

Nos braços de um prazer que tangencia o espasmo,


Olha! também me arrasto! e, mais do que eles
pasmo,
Digo: que buscam estes cegos ver no Céu?

Realizado no contexto das revoluções que o Renascimento


europeu trouxe com filósofos e astrônomos como Copérnico
e Galileu, o quadro de Brueghel nos permite detectar os ele-
mentos fundamentais da axiologia renascentista a respeito
da visibilidade e da visão. Em uma análise ligeira, com o
objetivo único de nos ajudar a entender a visibilidade/visão
como questão, pode-se ver o contraste entre o primeiro
plano – cegos caminhando com a ajuda uns dos outros – e
o plano de fundo, no qual vemos uma paisagem campestre.
No primeiro plano, o movimento dos cegos reproduz
literalmente a parábola dos cegos da Bíblia (Lucas 4, 39),
pois um cego guia o outro numa linha de seis cegos que se-
guem segurando bastões de madeira ou tocando no ombro
do outro, sendo que o primeiro deles já caiu no barranco e
os outros se encaminham para o mesmo destino. O destino
que se concretizou para o primeiro, a queda, certamente se
fará acontecer aos demais, pois esses são os cegos que não
possuem fé e que estão condenados à escuridão dupla do
mundo material e do espiritual.
O segundo plano ou plano de fundo faz contraste mar-
cante com o primeiro, apresentando uma paisagem cam-
pestre com uma igreja e alguns animais domésticos como
vacas, galinhas ou patos, em total indiferença à tragédia
humana do primeiro plano. Tampouco o homem ao fundo

42
que alimenta os animais tem olhos para a desgraça humana
dos cegos, confirmando o fato de que na ordem natural das
coisas e do mundo não há olhos ou lugar para esta tragé-
dia, sendo eles aberrações dos quais a civilização prefere
desviar o olhar.
O que mais chama a atenção neste quadro é o olhar
dos cegos para cima, como a tentar ver algo que não lhes é
dado perceber, justamente o aspecto que Baudelaire enfa-
tiza em sua versão poética do quadro. Com seus olhos bem
abertos, exibindo seus globos oculares profundos e esbran-
quiçados, eles buscam ver a luz que não lhes é dado perce-
ber, o que dá a seus rostos uma expressão entre o desam-
paro e a bestialidade. Assim como seus bastões, seus olhos
não lhes servem para nada e serão apenas testemunhas
cegas de um destino escuro, reforçando a nossa tese de
que os olhos são dispensáveis à visão e podem, até mesmo,
atrapalhá-la.
O poema de Baudelaire traz o quadro de Brueghel
para a modernidade do século XIX ao enfatizar a feiúra, a
fantasmagoria e o grotesco que o poeta deseja ressaltar
como aspectos fundamentais da modernidade européia ur-
bana novecentista. É certo que esses aspectos para os quais
Baudelaire chama a atenção já estão perpassados pelo seu
olhar poético, denunciando uma estetização da urbanidade
e de seus aspectos negativos que fez parte do programa mo-
dernista em vários países europeus na segunda metade do
século XIX. Nosso intuito, ao trazermos o quadro de Brueghel
e o soneto de Baudelaire para a discussão da visibilidade e
da visão, não é fazermos uma discussão detalhada destes
dois artistas nem tampouco elaborarmos a relação entre
eles, mas tão somente mostrar, com estes exemplos para-
digmáticos, como o tema e as representações da cegueira
denotam uma axiologia e uma simbologia solidamente fin-
cadas nas tradições do platonismo e do cristianismo, que as
lendas e ditados populares repercutem.
O soneto de Baudelaire chama a atenção para alguns
lugares comuns a respeito da cegueira que vale a pena des-
tacar, sobretudo o fato de que os cegos são, como no quadro

43
de Brueghel, uma anormalidade, indicada pelo uso dos adje-
tivos “pavorosos”, “tenebrosos”, “grotescos”, “terríveis”. Se
algum dia neles “ardeu a luz divina”, agora reina somente
“o eterno escuro” pois, sendo um desvio da naturalidade, os
cegos não são considerados parte da criação divina, tendo
sido excluidos do primeiro fiat lux.
Ainda no primeiro grupo dos cegos de nascença, pode-
mos perceber uma diferença que para nós terá fundamental
importância na questão da visibilidade e da visão, que é a
presença da fé, isto é, da visão divina. Os cegos que têm fé
conseqüentemente conseguem ver com os olhos da alma e
a eles será dada a possibilidade da recuperação da visão
física por milagre divino, como um bônus ou recompensa
pela sua crença. Diferentemente dos cegos representados
por Brueghel e Baudelaire, a eles é garantido o que pode-
ríamos chamar de intercâmbio ótico, como podemos ver
nas várias passagens dos evangelhos de Mateus (9:27-31;
20:29-33), Marcos (8:22-26; 10:46-52) e Lucas (18:35-43),
nas quais Jesus restabelece a visão aos cegos pelo fato de
eles, ao contrário dos fariseus, verem com os olhos da fé,
o que os habilita à cura divina apesar de não possuírem a
visão física, natural. Deste restabelecimento da visão natu-
ral pela fé dá testemunho a narrativa do cego Bartimeu, no
Evangelho de Marcos (10:46-52):

Chegaram a Jericó. Ao sair de Jericó com seus dis-


cípulos e grande multidão, estava sentado à beira
do caminho, mendigando, o cego Bartimeu, filho de
Timeu. Quando ouviu que era Jesus, o Nazareno,
que passava, começou a gritar: “Filho de David,
tem compaixão de mim!” E muitos o repreendiam
para que ele se calasse. Ele, porém, gritava mais
ainda: “Filho de David, tem compaixão de mim!”
Detendo-se, Jesus disse: “Chamai-o!” Chamaram
o cego, dizendo-lhe: “Coragem! Ele te chama. Le-
vanta-te”. Deixando o manto, deu um pulo e foi até
Jesus. Então Jesus lhe disse: “Que queres que te
faça?” O cego respondeu: “Rabbuni! Que eu possa
ver novamente!” Jesus lhe disse: “Vai, tua fé te sal-

44
vou”. No mesmo instante ele recuperou a vista e o
seguia no caminho.

Vimos que a questão da visibilidade/visão se fundamenta


no paradoxo da visibilidade e que este pressupõe a distin-
ção clara e hierarquizada entre dois tipos de visibilidade e
de visão. Esta dualidade, característica fundante do pensa-
mento ocidental, implica não somente a distinção e a valo-
ração de cada lado, mas sobretudo o fato de que deve haver
necessariamente uma escolha por um dos lados e esta
escolha terá o peso e o valor da verdade. Deve-se, então,
saber diferenciar e escolher entre o visível verdadeiro/visão
verdadeira e o visível falso/visão falsa, saber reconhecer a
essência e não se deixar enganar pelas falsas aparências.
O erro na escolha ou a indecisão entre as duas formas de
visibilidade/visão podem ter consequências funestas para
quem escolhe e para os envolvidos, como foi o caso de Is-
sac, que por deficiência de visão – pois seus outros senti-
dos funcionavam bem – abençoa a Jacó no lugar de Esaú,
fazendo com que este último, mesmo sendo o primogênito,
tivesse que servir a seu irmão mais novo. (Gênesis 27).
Em resumo, se o platonismo e a metafísica, por um
lado, enfatizam a visibilidade inteligível (a eidos ou forma
ideal) e o Cristianismo, por outro, instiga a visão interior
da fé invisível, ambos compartilham uma visão de mundo
e uma epistemologia que hierarquiza o invisível em detri-
mento do sensível e exterior.
John Milton, Breughel e Baudelaire, nos mostram com
suas obras literárias e artísticas que a Literatura e a Arte
têm tido a árdua tarefa de deslocar a axiologia que rege o
olhar sobre a visibilidade e a visão para abrir outros possí-
veis caminhos do pensamento sobre este tema. Um primeiro
passo neste processo de deslocar o olhar da axiologia dos
lugares comuns da visibilidade e da visão se dá justamente
pelo fato de a Arte e a Literatura representarem estas ce-
nas e imagens de visão e cegueira misturando os opostos e
como que anulando os efeitos de sua oposição.

45
5. Uma escrita mais que visível

Em contrapartida à Filosofia e ao Cristianismo, a Li-


teratura traz, desde Homero, a visibilidade como um sinal
de Caim, como um estigma que a marca indelevelmente,
sobretudo pelo fato de esta visibilidade ser dupla: por um
lado a Literatura aciona em sua linguagem uma visibilidade
que poderíamos chamar de “própria”, que se concretiza nas
imagens, símbolos, metáforas, ecfrases, descrições, cenas
e personagens que povoam os textos literários; por outro,
a Literatura exibe a visibilidade da escrita, fato que a apro-
xima tanto quanto a distancia da Filosofia e do Cristianismo,
como já dissemos anteriormente.
Um dos mais clássicos exemplos da visibilidade “pró-
pria” da linguagem literária é famosa descrição do escudo
de Aquiles no Canto XVIII da Ilíada (2009), na qual Homero
descreve o trabalho do artesão Vulcano e os elementos vi-
suais fundamentais da cosmogonia homérica por ele utiliza-
dos para confeccionar o escudo:

- Pôs Vulcano
Em vale ameno cândidas ovelhas,
E redis e tapigos e tugúrios.
Coreia ali gravou, qual na ampla cnosso
Fez Dédalo à pulcrícoma Ariadna.
Moços e virgens palma a palma enlaçam.
A terra pulsa: tênue linha as veste,
Veste-os guapo tecido azeitonado;
Elas flóreas grinaldas, eles trazem
Áureos alfanjes em talins de prata.
Com mestra e leve planta, ou já discorrem
Qual do oleiro tocada ao móbil torno
Rápida volve a roda, ou já desfilam [...]

Outra forma de manifestação da visibilidade que é peculiar


e fundamental à linguagem literária – além da capacidade
descritiva a que nos referimos no parágrafo anterior – é a
sua capacidade, que as ciências da linguagem, sobretudo
a Retórica, classificam como “figuras” (os tropos, tais como
metáforas, metonímias, sinédoques, ícones e índices), con-
siderando-as, grosso modo, como desvios do uso padrão.
Preferimos pensar nesses usos da linguagem como forma-
dores e inseparavelmente misturados ao uso padrão, sendo
“padrão” um termo que denota muito mais um esforço con-
ceitual do que uma realidade evidente.
Diferentemente do caso anterior (a descrição do es-
cudo de Aquiles), em que a ecfrase dita o desenvolvimento
temporal da linguagem na prosa para possibilitar o efeito
visual, as imagens no texto literário se dão por uma espé-
cie de suspensão do tempo em favor de uma espacialidade
imagética, que direciona a linguagem para as cercanias da
poesia ou, pelo menos daquela linguagem fundante que
Heidegger chamou de Dichtung. Como exemplo eloquente
da imagética que carateriza a linguagem no seu uso literário
lembramos os primeiros versos do poema “A lição de poe-
sia”, de João Cabral de Melo Neto, poeta que foi marcada-
mente influenciado pela pintura, sobretudo a surrealista, e
que soube trazer esta influência para o domínio da lingua-
gem, explorando a carga visual e simbólica das palavras:

Toda a manhã consumida


como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

47
Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:
nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

Um terceiro tipo de manifestação da visibilidade “própria”


que a linguagem literária traz como sinal indelével é a repre-
sentação do que chamaremos de “cenas de visibilidade”,
isto é, imagens, motivos, narrativas, personagens, temas e
topoi diretamente relacionados à questão da visibilidade,
tais como a visão e a cegueira, a luz e a escuridão, a escrita
e a leitura, os olhos e os livros, apenas para citar as cenas
mais conhecidas. Este tipo de visibilidade é tão recorrente
na literatura – do personagem Tirésias de Homero e Sófo-
cles ao Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago – que
poderíamos mesmo dizer que esta visibilidade é constitutiva
da linguagem literária, uma visibilidade de que a literatura
não pode prescindir.
A visibilidade “própria” da linguagem literária, nas
suas diferentes formas de manifestação, embaça e emba-
ralha os contornos da separação entre o sentido “próprio” e
o figurado da linguagem que, historicamente serviu de base
à oposição entre o discurso filosófico (ou, mais generica-
mente, científico) e o literário. Aquilo que, a partir da Poética
de Aristóteles, se chamou de “próprio”e “figurado”, aquilo
que está na base mesma de sua separação não é, ao fim
e ao cabo, senão um tropo pelo qual busca-se nomear o
original, primeiro e puro, em oposição ao derivado, impuro,
como explica Derrida: “A metafísica – mitologia branca que
reúne e reflete a cultura do Ocidente: o homem branco toma
a sua própria mitologia, indo-europeia, o seu logos, isto é
o mythos do seu idioma, pela forma universal do que deve
ainda querer designar por razão” (Derrida 1991, p. 253).
Mas além da sua visibilidade “própria”, a Literatura

48
também também exibe uma visibilidade que ela comparti-
lha com a Filosofia e com o Cristianismo, a visibilidade da
escrita. Na história ocidental, a escrita foi rebaixada em fa-
vor da fala, considerada como expressão e presença de um
sentido primeiro, imediato, ideal, a partir do qual a escrita
se apresenta como secundária, imitativa e infiel, como se
pode ler em muitos dos diálogos platônicos. Porém, mais
do que rebaixamento, a escrita sofre historicamente um
recalque do seu caráter visível, isto é, além de imitativa e
secundária em relação à fala, a escrita traz uma face visí-
vel que a aproxima das artes visuais, aspecto este bastante
explorado pela literatura e pelas artes visuais em diferentes
períodos e regiões e que tem, na publicação de Um lance de
dados, poema no qual a visualidade da letra e da página é
trabalhada por Mallarmé a ponto de produzir sentidos que
integram a leitura ao olhar que perscruta, um de seus pon-
tos mais altos. A axiologia que rege a oposição entre fala
e escrita e a hierarquização desta oposicão – sistema que
Derrida, no esteio de Heidegger e Nietszche, chamou de me-
tafísica ocidental – subordina a escrita à lógica da mimese e
provoca a divisão entre uma “boa” e uma “má” escrita, isto
é, uma “escrita” da alma e outra do mundo, uma invisível,
a outra visível (Derrida, 1992b). Porém, como bem aponta
Derrida, assim como no heliotropo que fundamenta a metá-
fora conceitual do sol a que nos referimos anteriormente, o
paradoxo é que é a escrita sensível que serve de base para
a inteligível:

O paradoxo a que devemos estar atentos é então


o seguinte: a escritura natural e universal, a escri-
tura inteligível e intemporal recebe este nome por
metáfora. A escritura sensível finita, etc., é desig-
nada no sentido próprio; ela é então pensada do
lado da cultura, da técnica e do artifício: procedi-
mento humano, astúcia de um ser encarnado por
acidente ou de uma criatura finita. (1973, p. 18)

49
Portanto, a escrita no Ocidente traz o caráter duplo de re-
baixamento em relação à fala e de recalque de seu caráter
visível, fato que historicamente culminou no rebaixamenteo
da Literatura tout court como um tipo de escrita não séria,
um faz de conta ou um vale-tudo (Derrida, 1992a).
Ao longo de sua extensa obra, Jacques Derrida bus-
cou sistematizar o pensamento ocidental sobre a escrita e
demonstrar como este pensamento tem suas bases con-
ceituais no platonismo e no Cristianismo, bases estas que
apontam para a cena primária da “fundação” da escrita na
Grécia de Platão e Sócrates e para a forma como a escrita
é pensada a partir da teoria platônica dos dois mundos, a
que já nos referimos anteriormente ao discutir a questão da
visibilidade e sua fundamentação nas tradições de pensa-
mento platônica e cristã (cf. Parte III). O que o filósofo de-
monstra é que entre a idealidade das idéias e a materiali-
dade da escrita sempre houve, apesar da epistemologia que
explica e regula a diferença entre elas, sua contaminação e
seu contágio já nas origens.
Sua reflexão sobre a escrita propõe um pensamento
que desconstrói a oposição entre a idealidade da idéia – em
sua manifestação como essencialidade da voz, da presença
plena que antecederia toda forma de representação – à
materialidade do signo, sua posterioridade e artificalidade,
como diz o filósofo em A diferença (1991a, p. 36):

A ordem que resiste a esta oposição, e resiste-lhe


porque a sustenta, anuncia-se num movimento de
diferança (com um a) entre duas diferenças ou en-
tre duas letras, diferança que não pertence nem
à voz nem à escrita no sentido corrente e que se
mantém [...] entre a palavra e a escrita, mais além
também da familiaridade tranquila que nos liga a
uma e outra e nos apazigua às vezes na ilusão de
que elas são coisas diferentes

(Itálicos do autor)

Ao questionar, em sua obra, a origem mesma da repressão

50
da escrita e a autoridade da fala “plena”, Derrida percebe
que a teoria mimética platônica fornece o paradigma teórico
para a separação entre a Filosofia, descrita por Sócrates
como o modo de conhecimento que “traz o olhar constante-
mente posto em coisas fixas e imutáveis que [...] obedecem
em tudo a uma ordem racional [...]” (1996, p. 142) e a Arte,
definida por Platão como um tipo de mimese que

[...] implanta um regime perverso na alma de cada


um, condescendendo com o elemento irracio-
nal que nela existe, elemento que não distingue
o grande do pequeno, mas encara as mesmas
coisas às vezes como grandes e às vezes como
pequenas, criando aparências inteiramente desli-
gadas da realidade.

Como bem observa Derrida, esta bipartição original da mi-


mese, da mesma forma que o heliotropo, de que falamos
anteriormente, demonstra já uma complexidade nesta cena
de origem da escrita e da visibilidade na cultura ocidental
que torna bastante difícil, contrariamente ao que desejava
Platão, separar a “boa” da “má” mimese, a “boa” da “má”
escrita, assim como a “boa” da “má” visibilidade:

O que importa para os nossos propósitos aqui é


esta duplicidade “interna” da mimeisthai que Pla-
tão quer dividir para separar a mimesis boa (que
reproduz fielmente e verdadeiramente mas que,
porém, já é ameaçada pelo simples fato de sua
duplicação) da má, que deve ser refreada, como a
loucura… e o jogo (danoso). (1992b, p. 134)

O valor, então, da escrita, como de toda forma de duplica-


ção mimética, não se encontra nela mesma mas a ela se
agrega de acordo com a natureza do seu modelo e a escrita
será boa se mimetizar o ideal, mas se reproduzir o mundo
(que já é uma duplicação do mundo ideal) será produtora de
simulacros ou fantasmas (A República, Livro X, 598 a-e), o

51
que demonstra que Platão condena a escrita tanto por sua
materialidade/visibilidade quanto pela sua capacidade de
produzir visibilidade por meio das metáforas, imagens, tro-
pos e topoi. A escrita, portanto, deve ser contida, regulada e,
até mesmo, controlada, para que não dissemine simulacros,
ameaçando, desta forma, a verdade.
O controle que Platão propõe que seja exercido sobre
a escrita fundamenta a tradição ocidental de repressão do
visível e de valorização do ideal e do transcendente, tradi-
ção esta que fundamenta não somente o discurso filosófico,
mas também o dogma do Cristianismo que, de maneira se-
melhante, também divide a escrita entre a “boa” – a dos
evangelhos, dos santos e dos textos religiosos sancionados
pela autoridade, seja ela papal ou das escrituras sagradas
– e a “má”, aquela que leva à idolatria e à adoração das coi-
sas do mundo, como vemos em Coríntos 2 (3:3-6), quando o
apóstolo Paulo explica a natureza da verdadeira aliança com
Deus. Não é pouca a semelhança com a escrita da alma
platônica:

Evidentemente, sois uma carta de Cristo, entre-


gue ao nosso ministério, escrita não com tinta,
mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas
de pedra, mas em tábuas de carne, em nossos
corações.
[...]
Foi ele [Deus] quem nos tornou aptos para sermos
ministros de uma Aliança nova, não da letra, e sim
do Espírito, pois a letra mata, mas o Espírito comu-
nica a vida. (ênfase minha)

Se a Literatura compartilha com a Filosofia e o Cristianismo


o fato de serem experiências do mundo e modos de conhe-
cimento fundamentalmente escritos, delas se separa pelo
fato de, diferentemente das duas últimas, produzir uma es-
crita que não almeja a verdade ideal ou a fé, mas que se rea-
liza como uma experiência-limite do mundo, da verdade e da
fé, mesclando estas instâncias em uma forma de linguagem

52
que concretiza as experiências dos limites na sua própria
materialidade/visibilidade, espaço onde diversos saberes e
experiências do mundo se encontram e onde verdade e fé
se misturam às imago mundi para formar aquilo que Fou-
cault, no Prefácio à A arqueologia do saber, chama de he-
terotopias, discursos que derivam das ordens estabelecidas
do saber mas fazem com que a ordem mesma, a “própria”
ordem – o “próprio” da ordem – funcione na chave do outro,
diferentemente do seu funcionamento ortodoxo. Foucault in-
vestiga este funcionamento heterodoxo da ordem por meio
de um conto de Borges e da “enciclopédia chinesa” que o
escritor argentino descreve, mostrando como, ao contrário
das utopias, que “consolam” e conduzem a um “espaço ma-
ravilhoso e liso”, a “cidades com vastas avenidas, jardins
bem plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas
seja quimérico”, as heterotopias (1990, p. XII):

[...] inquietam, sem dúvida porque solapam secre-


tamente a linguagem, porque impedem de nomear
isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns
ou os emaranham, porque arruínam de antemão a
“sintaxe”, e não somente aquela que constrói as
frases — aquela, menos manifesta, que autoriza
“manter juntos “ (ao lado e em frente umas das ou-
tras) as palavras e as coisas. Eis por que as utopias
permitem as fábulas e os discursos: situam-se na
linha reta da linguagem, na dimensão fundamen-
tal da fábula; as heterotopias (encontradas tão fre-
qüentemente em Borges) dessecam o propósito,
estancam as palavras nelas próprias, contestam,
desde a raiz, toda possibilidade de gramática; des-
fazem os mitos e imprimem esterilidade ao lirismo
das frases. (1990, p. 7-8)

Como espaço das heterotopias ou de pluralização da ver-


dade pela co-habitação de vários discursos e saberes, a
Literatura põe em circulação uma consciência de sua du-
pla visibilidade como imagética e escrita, trazendo à tona
e acenando esta visibilidade reprimida com imagens de

53
diferentes tipos que transitam entre os mundos sensível e
inteligível, criando uma espectralidade que embaralha as
identidades do visível e do invisível, como o faz o espectro
do pai de Hamlet ao voltar ao mundo dos vivos sem, no en-
tanto, abandonar o mundo das almas. Como o espectro do
pai de Hamlet, a Literatura compartilha dos mundos visível
e invisível, da letra e do espírito, sem pertencer totalmente
a qualquer uma destas ordens, o que faz com que seu acon-
tecimento seja sempre um evento imprevisível que põe em
cena um outro não classificável, como dirá Derrida em Es-
pectros de Marx a respeito desta espectralidade da escrita
literária: “O que se passa entre dois, e entre todos os ‘dois’
que se queiram, como entre a vida e a morte, só há-de-valer
de algum fantasma. “ (1994, 10-11 – grifos do autor).
Compartilhando da letra e do espírito mas vagando
entre estas duas lógicas que norteiam a Filosofia ocidental
e o Cristianismo, a escrita literária dá à luz várias anorma-
lidades ou monstruosidades, “figuras teo-zoo-antropomór-
ficas, transplantes ou enxertos proliferantes e cambiantes,
híbridos inclassificáveis dos quais as Górgonas e os Ciclo-
pes são apenas os exemplos mais conhecidos (DERRIDA,
1993, p. 56), uma literatologia, para lembrar o Livro dos
seres imaginários de Borges, na qual os demônios saem à
rua em festa, como na walpurgisnacht goetheana, em que
um dos personagens do sabbath, Proctofantasmista, diz em
tom jocoso aos seus convivas: “Gente maldita, que ousadia
a vossa!/Não se vos provou já que nunca espírito/pode
aguentar-se em pé? Sais-me agora/ até dançantes!” (Cena
III e seguintes).
Retornando à questão que nos propusemos no início,
qual seja, tratar a visibilidade como uma questão e instigar
os desdobramentos desta perspectiva, podemos dizer que
tal procedimento é uma das linhas mestras do pensamento
de Jacques Derrida, um filósofo franco-argelino que escreve
a partir da Filosofia sem jamais ter estado fora da Literatura
- o dentro e o fora de um texto, não por acaso, é um dos pon-
tos fundamentais da desconstrução derridiana. No “entre”
Literatura e Filosofia que a reflexão derridiana abre como

54
caminho para o pensamento – estratégia bem aprendida
com Heidegger (2003, p. 152 at passim) –, Derrida instiga
a via dupla deste termo: tanto no voltar-se do pensamento
sobre si mesmo quanto na sua exposição na theoria, que
entre os gregos antigos tinha o sentido de contemplação
e percepção, ou seja, Derrida instiga a reflexão sobre a
visibilidade reprimida da escrita e da cultura7 por meio de
uma prática de escrita – ou escritura, como a denomina o
próprio Derrida – que herda e desconstrói, no mesmo gesto
textual, a axiologia sobre a visibilidade iniciada com o eidos
platônico e a imago latina. Trilhar este caminho da reflexão
pelo “entre” implica em desalojar as oposições entre a Filo-
sofia, o Cristianismo e a Literatura e retirar o pensamento de
seu locus amoenus nas tradições filosófica e judaico-cristã,
como explica Heidegger em “A essência da linguagem”, ao
dizer que poesia e pensamento – e, acrescentaríamos, fé –
se pressupõem e se cruzam, pois (2003, 133):

[...] precisam um do outro ao extremo, precisam


de cada um em sua vizinhança. Qual o campo em
que essa vizinhança tem seu âmbito próprio, isso a
poesia e o pensamento terão de definir cada um a
seu modo, não obstante ambos se encontrarem no
mesmo âmbito. Como há séculos nos alimentamos
do preconceito de que o pensamento é coisa da
ratio, ou seja, do cálculo em sentido amplo, falar
sobre a vizinhança de pensamento e poesia pa-
rece sempre muito suspeito.

A lição do “entre” que Derrida aprende de Heidegger se


torna uma linha mestra da desconstrução e é estrategica-
mente instigando os desdobramentos deste “entre” (entre

7
Não entraremos aqui no importante debate sobre o caráter eminentemente
visual da cultura contemporânea, para o qual sugerimos a leitura do
livro Iconology, Image, Text, Ideology, de W. J. T. Mitchell (The University
of Chicago Press, 1986). Mesmo quando afirma, alhures (1994) que a
nossa época vive o seu “momento pictórico” (“pictorial turn”), toda a sua
argumentação reforça a leitura de Derrida do rebaixamento da visibilidade
na cultura ocidental.

55
Filosofia e Literatura, entre Literatura e Fé, entre Filosofia
e Fé, apenas para citar os desdobramentos que nos inte-
ressam diretamente neste trabalho) que Derrida conduz o
pensamento aos seus momentos aporéticos, aos impasses,
tradicionalmente pensados como contradições, mas explo-
rados por Derrida como instâncias em que o pensamento
precisa se renovar justamente pelo transbordamento de
suas margens.
Colocar a visibilidade como questão eminentemente
filosófica implica em uma epistemologia que pressuponha
a distinção clara entre discurso teórico – sua neutralidade
e objetividade – e seu objeto, como o fizeram Descartes
e Kant, apenas para citar alguns dos textos/filósofos canô-
nicos na questão da visibilidade. Uma primeira dificuldade
desta redução da questão da visibilidade a um campo de
saber específico, o filosófico, é o fato de que o discurso filo-
sófico é, antes de mais nada, um discurso escrito e, portanto
portador da visibilidade recalcada da escrita. Uma segunda
dificuldade seria o fato de uma outra visibilidade constitutiva
da escrita também ser tão recalcada quanto a primeira, qual
seja a visualidade da linguagem escrita (metáforas, ícones
verbais, índices, exemplos, mitos), impossível de ser contida
ou controlada nos discursos de cunho racionalista, como já
apontamos a respeito do uso dos mitos nos diálogos platô-
nicos (Santos, 2000).
Tratar a visibilidade somente no âmbito da fé cristã,
por outro lado, também implicaria em uma redução que,
em última instância, levaria às mesmas aporias do discurso
filosófico, isto é, chegaríamos à conclusão de que o Cris-
tianismo, apesar de invocar sempre a instância pessoal e
subjetiva da fé, é uma religião da escrita, dos mandamentos
que Moisés recebe de Deus e escreve na pedra. Também
não será necessário examinar a Reforma Protestante e a
tradição de apego ao Livro Sagrado para perceber o quanto
o Cristianismo é uma religião da escrita, bastando para tal
atentarmos ao relato contido no Êxodo (34:1) sobre a ne-
cessidade da reescrita dos mandamentos em pedra, após
a quebra das pedras originais: “Então disse o SENHOR a

56
Moisés: Lavra duas tábuas de pedra, como as primeiras; e
eu escreverei nas tábuas as mesmas palavras que estavam
nas primeiras tábuas, que tu quebraste”.
Por outro lado, tratar a visibilidade como uma carac-
terística exclusiva e particular da Literatura, como foi feito
historicamente, implica em aliená-la do conhecimento e da
verdade, reiterando o divórcio histórico entre arte e conhe-
cimento. De Homero a Kafka, Shakespeare a Beckett, Safo
a Eliot, a Literatura tem mostrado seu potencial como forma
de conhecimento do mundo que traz a grande vantagem
em relação à Filosofia e ao Cristianismo, de ser um conhe-
cimento inclusivo, abrangente e democrático, e não foram
poucos os filósofos e pensadores que, de Cervantes a Der-
rida e Blanchot, pensaram a Arte e a Literatura como uma
forma de conhecimento que, diferentemente da Filosofia ou
do Cristianismo, permite imaginar aquilo que é possível, e
não somente o que é real, como bem ensinou Aristóteles na
Poética ao descrever a verossimilhança.
Em Memoirs of the Blind, The Truth in Painting e outros
livros e artigos que envolvem a questão da visibilidade, Der-
rida busca criar um caminho possível para um pensamento
sobre a visibilidade que inclua as tradições filosófica e cristã
sem se restringir a elas, num gesto que poderíamos chamar
de literário, embora seu texto não seja propriamente literá-
rio ou filosófico. Com base nesses textos do filósofo franco-
-argelino, pode-se perceber que se na Filosofia a visibilidade
é negada, recalcada em favor do logos abstrato e invisível,
e no Cristianismo é recusada como idolatria, na Literatura
ela é fundamental e constitui um modo de conhecimento do
mundo. Um possível caminho para o pensamento da visibi-
lidade que desejamos instigar neste texto sob a inspiração
derridiana seria, então, discutir o paradoxo da visibilidade
e explorar as consequências desta discussão, tais como as
duas formas de visibilidade e visão nas tradições filosófica,
cristã e literária.

57
6. O Visível produz cegueira

Gostaríamos, agora, de discutir alguns pontos a res-


peito da visibilidade e da visão ou, mais especificamente,
das duas formas de visibilidade e visão que Derrida deno-
mina as duas lógicas da visibilidade e as duas hipóteses
da visão, sugeridos em diferentes textos e mais especifica-
mente tratados no livro Memoirs of the Blind: the Self-Por-
trait and Other ruins (1993). Porém, uma rápida digressão
sobre a história ocidental da visibilidade nas artes visuais e
na escrita será de considerável utilidade.
A primeira formulação das relações entre escrita e ar-
tes visuais acontece no ut pictura poesis de Simônide Ceos
e Horácio, que afirmaram ser a poesia uma pintura em pa-
lavras e a pintura uma poesia muda. Leonardo Da Vinci, in-
formado pelo humanismo renascimento italiano, transforma
o tropo horaciano em paragone entre as artes da pintura e
da poesia, decidindo em favor da virtù visiva, pois a pintura
tem a vantagem de restituir o objeto diretamente aos olhos,
sendo, por esta razão, equiparada a uma ciência, enquanto
a linguagem se perde na confusão babélica das diferentes
línguas (DA VINCI, 2000, p. 53 et passim).
Já no século XVIII, os iluministas defenderam a supe-
rioridade da escrita em razão de sua universalidade e neu-
tralidade, que permite aos homens a passagem do mito à
razão à medida que as sociedades evoluíam por meio de leis
e do conhecimento. Um dos defensores mais importantes
da superioridade da escrita neste cenário setecentista é o
teórico e dramaturgo alemão W. G. Lessing que, em 1766
no seu famoso Laoconte ou sobre as fronteiras da pintura
e da poesia, defende a poesia pelo fato de esta restituir a
imagem não diretamente, mas de forma imaginativa, arte
em que não é igualada pela pintura (LESSING, 1998).
Esta reconstrução bastante esquemática da história
das relações entre as “artes irmãs” da poesia e da pintura
nas formulações de Horácio, Da Vinci e Lessing, teve por ob-
jetivo mostrar que não é somente a capacidade da pintura
ou da poesia de representar fielmente o real que está em
jogo, mas a natureza e o status da representação e suas
linguagens. Nos interessa sobremaneira a percepção que
podemos extrair desta formulações de que a poesia e a pin-
tura ou, em termos que nos interessam mais diretamente, a
escrita e a imagem compartilham algo para além de suas di-
ferenças formais ou conteudísticas, pois se a poesia é uma
pintura em palavras da mesma forma que a pintura é um
poema em imagens, não se pode dizer que as duas artes
sejam totalmente estranhas uma à outra.
Derrida retoma os fios desta história por meio de uma
reflexão sobre a visibilidade no Ocidente, suas origens e des-
dobramentos religiosos, filosóficos e literários, mostrando
como esta questão se fundamenta em duas lógicas que se
implicam mutuamente. A primeira delas, a “lógica da trans-
cendência” (1993, 41 et passim), se refere ao fato de que
na cultura ocidental a transcendência é pensada como con-
dição e fundamento de qualquer forma de existência, como
causa primeira, incondicionada e invisível (o Ser, Deus, O Es-
pírito) de todas as coisas e seres. De acordo com esta lógica
e retomando o heliotropo platônico, o sol é uma essência
invisível a partir da qual se forma o conceito de sol que, por
sua vez, será a matriz do sol real. A lógica da transcendência
implica em que para de fato enxergarmos o sol é necessário
transcender o sol real e deixar que a essência do sol – o sol
inteligível – guie a nossa visão interna. É esta a lógica que
fundamenta a nossa concepção da realidade como perpas-

59
sada por uma existência superior, transcendental, e faz com
que a visão que temos do mundo seja preterida por algo que
não vemos mas que acreditamos – com a crença que funda
tanto a ciência quanto a fé – estar lá (DERRIDA, 1996), no
fundo e no âmago do real. O mundo e o real são, do ponto de
vista da lógica da transcendência, sombras, repetições mal
formadas e cópias imperfeitas desta essência.
Assim define Derrida esta lógica da transcendência
(1993, p. 41, minha tradução):

A primeira lógica (a lógica da transcendência) seria


a condição invisível da possibilidade do desenho8,
o desenho mesmo, o desenho do desenho. Ela
nunca seria temática. Ela nunca poderia ser pos-
tulada ou tomada como objeto representável do
desenho.

A segunda lógica da visibilidade, a lógica do sacrifício, é


aquela que diz respeito à dimensão fenomênica da visibi-
lidade, a forma com que as coisas e os objetos do mundo
se dão à representação e ao conhecimento, estes últimos
formados a partir da percepção das coisas e da concepção
de que a percepção pode nutrir o verdadeiro conhecimento
do mundo.
O evento sacrificial, então, é temático, produz as ima-
gens e representações de todas as naturezas e torna visí-
vel a essência da cada ser, de cada coisa, sua identidade
mesma por meio da transcendência do real em direção ao
essencial, em direção ao invisível, o que nos permite dizer
que as coisas se tornam visíveis somente à medida em que
manifestam a sua essência invisível, razão pela qual Derrida
diz que a lógica sacrificial reflete a impossibilidade da visi-
bilidade. Nas palavras de Derrida (1993, p. 41, et passim),
8
No texto original, Derrida faz referência aos desenhos dos cegos, no duplo
sentido de desenhos sobre cegos e do desenho que, como qualquer visível,
traz a marca da cegueira como condição fenomenológica e existencial.
Este segundo aspecto do desenho é que nos permite trazer a discussão de
Derrida para o âmbito da visibilidade tout court.

60
[...] o evento sacrificial, aquilo que vem aos olhos
ou encontra os olhos, a narrativa, o espetáculo ou
representação do cego (que) refletiria, ao se tornar
o tema do primeiro, por assim dizer, esta impossi-
bilidade. (minha tradução, ênfase do autor)

A lógica do sacrifício, então, é aquela que reflete o paradoxo


da lógica da transcendência, fazendo com que toda forma
de visibilidade seja uma manifestação da lógica da trans-
cendência, desta impossibilidade do visível na sua origem
ou, jogando com as palavras de forma provocativa, é a lógica
do sacrifício que torna possível a impossibilidade do visível.
As duas lógicas da visibilidade só podem ser pensadas
a partir da suposição da separação radical entre o visível
(que não pode ser restrito ao material, uma vez que a pró-
pria condição da visibilidade, a luz, é invisível, como bem
lembra Merleau-Ponty em O olho e o espírito) e o invisível
que fundamenta tanto a tradição filosófica quanto a cristã.
Porém, se pensadas como questão, as duas lógicas da visi-
bilidade conduzem à constatação de que sua separação só
é possível pelo de já ter sempre havido entre elas contato e
contaminação. Sua implicação mútua nos mostra que terá
sempre havido mistura e contato entre as ordens do visível
e do invisível, sendo o que chamamos de visível formado por
rastros, traços, espectros e toda a sorte de habitantes das
regiões intermediárias entre os dois mundos com os quais
nem sonha a nossa vã filosofia, a lembrar a conhecida pre-
leção de Hamlet.
Pensar a visibilidade como questão, então, significa
aprofundar o paradoxo da visibilidade e pensar a origem
sem origem e sem lugar do visível, como uma impossibili-
dade que se realiza no visível, o que nos leva a pensar no vi-
sível como a possibilidade (evento sacrificial) do impossível
(a pureza da essência do visível).
Mais do que traços e rastros, podemos dizer que o vi-
sível é a ruína de algo que jamais terá sido inteiro, completo
ou original, uma ruína que não é produzida a posteriori como

61
uma falha ou incompletude do visível, mas “...que perma-
nece produzida, já desde a origem, pelo evento e estrutura da
obra” (DERRIDA 1993, p. 65). O visível se produz, de acordo
com estas duas lógicas, como a manifestação imperfeita e
imprópria da sua essência invisível, como uma ruína que é
condição de qualquer forma de visibilidade, fazendo com
que a relação entre visível e o real seja sempre um retorno
fantasmático da imagem sobre a coisa. Qualquer represen-
tação verbal ou visual que pretenda realizar adequatio entre
o visível e a realidade, terá então um caráter inegável de me-
mória ou arquivo desta ruína congênita e será a testemunha
de uma impossibilidade, a impossibilidade da visibilidade.
Podemos concluir que o visível é a ruína sobre a qual só
poderá existir memória, isto é, representações. Ruína e me-
mória fazem parte da semântica da visibilidade e nomeiam
as experiências da visibilidade e do visível.
A desconstrução do paradoxo da visibilidade acionado
pelas suas duas lógicas se fará por meio de uma observa-
ção tão simples quanto fecunda: trata-se do fato de que
para ser totalmente estranha, estrangeira à visibilidade, a
invisibilidade deverá já ter sempre habitado a visibilidade,
como afirma Derrida (1993, p. 51):

Para ser absolutamente estrangeira ao visível e


até mesmo ao potencialmente visível, à possibili-
dade do visível, esta invisibilidade habitará ainda
o visível, ou melhor, virá assustar esta visibilidade
a ponto de se confundir com ela, para assegurar,
a partir do espectro desta impossibilidade mesma,
seu mais próprio recurso.

Esta diferença entre o visível e o invisível será pensada por


Merleau-Ponty como o domínio histórico das ciências da
razão, levando o filósofo a concluir que a percepção que
temos do mundo não coincide com a idéia que dele temos,
afirmando, assim como o faz Derrida, a fantasmagoria da
representação como desejo de adequação (2000, p. 59):
Se devo existir em ek-stase no mundo e nas coisas,

62
é preciso que nada me retenha em mim mesmo
longe delas, nenhuma “representação”, nenhum
“pensamento”, nenhuma “imagem”, nem mesmo
essa qualificação de “sujeito”, de “espírito” ou de
“Ego”, pela qual o filósofo me quer distrair absolu-
tamente das coisas, mas que no entanto se torna,
por sua vez enganadora, já que como toda desig-
nação, acaba por cair no positivo, por reintroduzir
em mim um fantasma de realidade e por fazer-me
crer que sou res cogitans – uma coisa muito par-
ticular, inapreensível, invisível mas, ainda assim,
coisa.

Assim como Derrida, Merleau-Ponty também vai concluir


que a invisibilidade não é estranha ao visível, mas o habita
desde sempre como condição de sua existência, embara-
lhando, por consequência, as lógicas da visibilidade e da
visão (Idem, p. 224):

Quando digo que todo visível é invisível, que a


percepção é impercepção, que a consciência tem
um “punctum caecum”, que ver é sempre ver mais
do que se vê – é preciso não compreender isto no
sentido da contradição: - É preciso não imaginar
que ajunto ao visível perfeitamente definido como
em-Si um não-visível (que seria apenas ausência
objetiva), isto é, presença objetiva alhures, num
alhures em si – É preciso compreender que é a
visibilidade mesma quem comporta uma não-
-visibilidade [...]

63
7. Ver é dever (ver)

O segundo ponto que gostaríamos de desenvolver,


após esta breve apresentação da questão da visibilidade, é
o que Derrida chama de as duas hipóteses da visão, que po-
demos resumir esquematicamete como 1. a representação
do visível em sua origem traz mais débito do que fidelidade
e 2. o movimento de saldar o débito com a verdade está
na origem de toda representação, do alfabeto escrito à arte
pictórica.
O débito na origem do visível está enraizado na tradi-
ção judaico-cristã tanto quanto na metafísica e diz respeito à
natureza do visível, ou seja, a visibilidade denota uma perda
do ideal ou da fé, uma destituição já na origem de todo e
qualquer visível, que pode ser pensada por meio do tanto
do paradigma cristão da queda bíblica quanto da plasma-
ção do mundo pelo demiurgo platônico: em ambos os casos
trata-se da perda de luz eterna, que é divindade ou essência
ideal.
A queda/perda é sempre uma queda para o visível,
para o mundo que se vê, uma vez que o divino e o ideal
não podem ser vistos com os olhos mas por meio de uma
visão interna (como no caso dos santos, profetas ou exege-
tas cristãos). O débito genético da visibilidade em relação
ao ideal e à fé nos parece indicar que mais do que uma
questão de percepção visual, a visibilidade é a “observação
da lei além da visão, da organização da verdade junto com
o débito, da organização da verdade do débito” (DERRIDA
1993, 29). É com a verdade, então, que a visibilidade e a
visão têm o seu débito genético, o qual deve ser saldado se-
gundo as leis do conhecimento e da fé, numa ordem que faz
do débito e do pagamento uma restituição da verdade a um
sujeito primeiro, primordial, um pai simbólico que é a origem
fantasmal de toda lei, como observa Freud em Moisés e o
monoteísmo.
A economia desta relação que poderíamos chamar
de fiduciária na origem do visível e da visibilidade sobrede-
termina os discursos da religião, da Filosofia e até mesmo
da crítica de arte, como bem demonstra Derrida (1987) a
respeito da polêmica Shapiro-Heidegger sobre as pinturas
do par de botas do camponês, de Van Gogh. O que Derrida
aponta nesta polêmica é que o movimento de restituição se
dá primeiramente entre a representação e a coisa, pois é ne-
cessário “abandonar um débito mais ou menos fantasmagó-
rico [e] restituir as botas, retorná-las a seu dono por direito”
(p. 258), isto é, o débito primeiro é da representação com a
coisa. Em seguida, a restituição se dá entre a coisa (com a
sua representação já idealmente ajustada a si) e um sujeito,
movimento que se torna possível por meio da propriedade,
pois “[...] a restituição reestabelece (a verdade), por direito
ou propriedade, colocando o sujeito novamente em sua ins-
tância, em sua instituição” (261) [ênfase do autor, minha
tradução], isto é, a restituição é feita a um “sujeito que diz
eu” (Idem, Ibidem). Ao substituir o termo mais conhecido,
mimesis, por restituição, com suas conotações econômicas,
legais, religiosas e simbólicas, Derrida enfatiza o débito que
fundamenta a conversão da imagem ideal (eidos) em con-
ceito, em realidade e, por fim, em representação, na teoria
platônica do conhecimento (Platão, 1996, Livro VII). O último
passo desta restituição se dá do sujeito para com a verdade,
seja ela adequação ou revelação (DERRIDA, op. cit., p. 318):

Restituir (“returning”) terá maior abrangência [por-
tée] nesta discussão...se aqui se trata se saber

65
a quem e a que certas botas, e talvez quaisquer
botas em geral, retornam. A quem e a que, em
consequênia, deve-se restitui-las, devolvê-las, para
quitar uma dívida.

[...]
Há uma lei aqui [...] no contrato da verdade (“Eu
te devo a verdade na pintura”), entre a verdade
como adequação (de uma representação, aqui
atributiva, da parte de Shapiro) e a verdade da
presença desvelada (da parte de Heidegger). (tra-
dução minha)

Van Gogh, Par de sapatos (1886)


Disponível em: < wikipedia.org/wiki/File:VanGoghShoes1885.jpg>.
Acessado em 25 Setembro 2013.

Dissemos que a visibilidade é o débito originário cujo resgate


orienta o conhecimento e a fé, agora é preciso dizer que este
resgate da dívida passa necessariamente pela percepção,
isto é, pela visão. No modo da “verdade” que orienta tanto
a metafísica quanto o Cristianismo é a visão que reconduz
as representações do visível à coisa e ao ideal, um retorno

66
fantasmático, espectral, uma vez que a visão busca restituir
um ideal que, como vimos, nada possui de completude ou
pureza original, mas que é composto de rastros e ruínas de
uma incompletude da qual a visão é testemunha involuntá-
ria, e não mais um instrumento da restituição racional ou
religiosa do saber ou da fé.
A lei que estabelece o débito original da visibilidade e
a visão em relação ao real, ao conhecimento/fé e a um pai
simbólico, débito a ser saldado com a verdade, estabelece,
como vimos, a linhagem paterna que regula e regulamenta
a visibilidade, de Isaac a Tirésias e Sansão, de Homero a
Joyce, passando por todos os casos de perda e recuperação
da visão no Velho e Novo Testamento. O débito na origem
do visível e seu pagamento a um sujeito estabelece a visibi-
lidade como um contrato entre sujeitos capazes de verdade
(conhecimento e fé), cuja cláusula principal estabelece que
ver é saber ver e ver com fé, que estabelece que o débito na
origem da visibilidade e da visão é com o pai. As tradições
filosófica e cristã são as instâncias da cultura ocidental
onde os pais reclamam, em nome da verdade, a dívida do
visível. É assim que nos relatos bíblicos a recuperação da
visão se dá pelo filho, luz real que reconduzirá à luz ideal
do pai, como o filho Tobias em relação ao seu pai, Tobit, ou
como Jesus, o filho de Deus, reconduzindo os cegos à luz
do pai por meio da fé, como nos relatos bíblicos de cura na
estrada de Jericó. O filho é a continuidade da ordem da luz,
da visibilidade e da visão.
A lei que rege a visibilidade e a visão estabelece que,
em primeiro lugar, devemos ver, devemos entrar na ordem
da visibilidade e da visão, nos constituindo como sujeitos ca-
pazes de verdade, como cidadãos ou cristãos. Em segundo
lugar, devemos saber ver, isto é, para entrar na ordem da
visibilidade e da visão devemos conhecer suas leis e prati-
car o seu contrato, vendo o que todos vêm na mesma crença
que fundamenta o saber e a fé.

67
8. Próteses oculares

Aprofundando ainda mais as duas lógicas da visão


e sua inserção na ordem e na lei que regem a questão da
visibilidade, chegamos a uma constatação central a esta
questão: assim como a visibilidade, a visão também é divi-
dida em interna e externa e, portanto, visão e olhos não são
necessariamente a mesma coisa, eles se diferenciam radi-
calmente. Os olhos, testemunhas oculares da ruína na ori-
gem do visível, são o instrumento da visão externa, aquela
da qual se deve desconfiar, aquela cuja finalidade primeira e
única na axiologia filosófica e cristã é servir de instrumento
para o pagamento da dívida do visível com o ideal e a fé. Os
olhos devem ser neutros e cumprir seu desígnio de possi-
bilitar o trânsito do humano com o ideal e a fé, sendo que
os desvios desta função dão origem, como já dissemos, à
teratologia que povoa a literatura e o imaginário ocidental
desde os tempos de Parmênides.
Sendo instrumentos não essenciais à visão do ideal e
da fé, os olhos também podem (se) desviar da ordem e da
lei, induzindo ao erro e à perdição e podemos dizer que, as-
sim como as lentes e outros instrumentos oculares, eles são
próteses, acessórios cuja necessidade é, digamos, um mal
necessário. A proliferação ocular (monóculos, binóculos, te-
lescópio, microscópio, caleidoscópio, etc) que encontramos
na cultura ocidental, do mesmo modo que as próteses subs-
titutivas dos olhos para os cegos (as bengalas e as pontas
dos dedos) atestam a dissociabilidade entre visão e olhos,
reiterando a distinção que fizemos anteriormente entre a
visão divina/intelectual e a física/natural.
Uma das representações mais inequívocas da dis-
sociabilidade entre visão e olhos, que não deixa dúvidas
quanto ao caráter protético dos olhos, são os cegos, como
podemos ver nestes poucos exemplos da literatura clássica
grega: Édipo, que fura os olhos para ver com os olhos da
razão; Tirésias que, perdendo a visão por castigo de Hera
adquire o dom da profecia pela piedade de Zeus; a Medusa,
cujos olhos, carregados para longe de seu corpo por Perseu,
ainda mantêm o poder de transformar em pedra quem para
eles olhar, ou ainda Demócrito, que arranca os olhos para
melhor pensar, como nos lembra o belo poema “Elogio da
sombra”, de Jorge Luis Borges.
Disseminadas na Literatura bem como na cultura po-
pular, as estórias de cegueira e visão mostram que, tendo
olhos mas não podendo enxergar e se valendo de próteses
substitutivas dos olhos e da visão, os cegos constituem, na
tradição ocidental filosófica e cristã, um estado de anorma-
lidade, de violação da lei natural que faz deles testemunhos
e produtos da queda bíblica. Avatares da queda original,
só se recuperarão dela os cegos que forem tocados pela
visão intelectual ou ungidos pela dádiva da profecia ou vi-
são divina, casos em que logram saldar uma dívida genética
na origem da visibilidade e da visão. A hipótese abocular
(possibilidade de intercâmbio da visão física pela intelectual
ou divina – que não é restrita aos cegos, mas que neles se
faz mais evidente pela sua condição), iguala os olhos e os
instrumentos de visão complementares (óculos) ou substitu-
tivos (as bengalas e as pontas dos dedos) pelo seu caráter
protético, permitindo concluir que a visão física ou externa
pode ser considerada como um desvio da ordem natural da
qual toda visibilidade física deriva (a visão interna – inte-
lectual ou divina). Esta ordem natural e ideal estabelece a
premissa de que a natureza invisível do conhecimento e da
fé prescinde dos olhos, fazendo com que o débito na origem
do visível seja pago em uma moeda diferente da material e
a transação ocular se dê na dimensão filosófica/espiritual.

69
Como próteses, os olhos perfazem uma transgres-
são da normalidade que dá lugar a todo tipo de perversão,
monstruosidade ou fetiche, como é o caso dos Ciclopes, das
Górgonas (das quais já citamos a Medusa), do voyeurismo
sadiano e da história do olho que a narrativa de Bataille
ilustra tão bem9. O poema “Os cegos”, de Baudelaire, tam-
bém delata a monstruosidade destes seres no paradigma
metafísico, lembrando a obviedade de que eles não podem
ver coisa alguma e, consequentemente, não podem se ver,
o que nos leva à questionar se, não podendo ver ou se ver,
os cegos podem se encaixar na filiação paterna que governa
a lei da visibilidade. A resposta a este questionamento só
pode ser negativa: não vendo ou não se vendo os cegos (so-
bretudo os cegos de nascença, testemunhos da origem do
visível) não têm noção da vergonha e do pecado que sua
condição encerra, pois a cegueira, no paradigma metafísico-
-cristão, é uma violação da ordem natural passível de puni-
ção, o que os torna seres diferentes e diferenciados. Sendo
literalmente coetâneos da origem da própria visibilidade,
sua existência denota uma falha original na naturalidade do
modelo de visão, da legalidade da lei/ordem da visibilidade
e da própria origem do visível.
O olhar que vê jamais alcançará o mistério original que
a cegueira carrega, fazendo desta uma transgressão e um
estado de anormalidade, uma monstruosidade da qual a ci-
vilização desvia o olhar pois este – o olhar do cego, temido
e odiado – espelha a cegueira daquele que vê, no abismo
sem fundo da visão física, que jamais encontrará o fundo, a
essência daquilo que crê enxergar. Desdobrando a hipótese
abocular um pouco mais, diríamos que um cego não se vê,
na dupla injunção desta construção pronominal: um cego
não pode se ver, assim como também não se pode ver o
mistério que um cego encerra em si.
Testemunho da ruína e memória da visibilidade, o
cego transporta aquele que vê de volta à sua condição cega
com seu olhar medusino que cega a quem o olha nos olhos;

9
Bataille, George. História do olho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003

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no conluio das próteses oculares, só o que se produz, então,
é cegueira: é o preço que se paga para ver a luz da razão ou
do espírito. Restituir a visão, realizar a transação ocular de
troca da visão física pela intelectual ou divina, é saldar a dí-
vida, restaurar a verdade na ordem da philia, da genealogia
paterna, de devolver a verdade ao pai do logos e da fé.
Como vimos no poema de John Milton que serviu de
mote a esta análise, os exemplos da hipótese abocular são
abundantes tanto na Literatura quanto nas Artes visuais, de
Homero a Saramago, de Brueghel a Magritte, demonstrando
um olhar diferenciado sobre a questão da visibilidade e da
visão e dando testemunho de uma compreensão particular
desta questão. Porém, mais que a pintura – e não entra-
remos na complexa questão das relações entre as artes
visuais e verbais neste momento –, a Literatura tem uma
relação mais profunda, genética, diríamos com a questão
da visibilidade e da visão, como vimos anteriormente, tanto
pela abundância das representações de cenas, temas,
motivos, personagens e símbolos relacionados este tema,
quanto pelo seu caráter escrito e pela abundância de cenas
de escrita e leitura, como vemos exemplarmente na estória
bíblica de Sansão (Juízes 13-16), nazireu que, depois de
ser traído e perder a força descomunal, pede a Deus que
lhe restitua a sua força uma última vez para se vingar dos
filisteus. Embora a vingança contra os filisteus seja desígnio
divino e Sansão um instrumento do Senhor, o herói bíblico
se vinga pelos seus olhos, arrancados em Gaza pelos seus
algozes: “Senhor Deus, peço-te que te lembres de mim, e
fortalece-me agora só esta vez, ó Deus, para que de uma vez
me vingue dos filisteus, pelos meus dois olhos.” (Juízes 16,
29) [minha ênfase].
A fascinação pelo olhar da Literatura se revela na du-
pla injunção desta construção sintática: na fascinação da
Literatura pelo tema do olhar e na fascinação que o olhar
da Literatura sobre o mundo provoca. O ensimesmamento
da Literatura, seu olhar cego e obstinado sobre si e sobre o
mundo produz e espalha a cegueira como doença da visão,
como glaucoma ou como os olhos da Medusa que, mesmo

71
arrancados de sua cabeça ainda cegam a quem os olha.
Na axiologia metafísica e cristã a cegueira advém
como punição, como castigo por um erro sendo, portanto,
uma forma de fazer justiça. Sendo cega, a justiça não vê,
não corre o risco de “cair em tentação” ou de se deixar
enganar pelas aparências, isto é, por ser cega a justiça é
concebida como verdadeira e justa. Exibindo esta cegueira
em relação ao visível, a justiça também exibe a cegueira
sobre si mesma pelo fato de, assim como outros conceitos
fundamentais do ocidente, como democracia e igualdade,
se fundamentar na axiologia platônica e cristã que, como
vimos, informa e regulamenta a questão da visibilidade, ou
seja, a justiça, como valor supremo possibilitado pela abs-
tração racionalista que o Iluminismo instaurou na sociedade
ocidental, ignora os particulares em nome da universalidade
(ADORNO & HORKHEIMER, 1999) que, como todas as abs-
trações, é cega aos particulares tanto quanto à sua própria
cegueira nesta dupla cegueira civilizatória, nesta dupla in-
junção da cegueira.
Prescindível e até mesmo prejudicial à visão intelec-
tual ou divina, o olho é uma prótese ou suplemento da visão
cujo destino não é a propriamente a visão, seu mister não
diz respeito à fé ou ao conhecimento e sua verdade não
está, portanto, na visão, faculdade que o olho humano com-
partilha os outros animais; sua alethéia vai além do ver e
do saber e reside no fato de que somente o homem pode
chorar, afirma Derrida (1993, 126) relendo o poema de
Andrew Marvell “Eyes and Tears”. O luto, a paixão (pathos),
a tristeza, a alegria, aí está a verdade que o olhar re-vela,
no duplo movimento que Heidegger dá ao acontecimento
da verdade, ou seja, o olhar desvela o fundo humano do
homem apenas para velá-lo novamente na mais profunda
treva, levando este olho-verdade a um mergulho no desam-
paro abissal da visão. A essência do olho não parece entrar
na ordem das essências e não pode ser localizada na visão
do conhecimento ou da fé, pois o olho não está ontologica-
mente qualificado para ter acesso à transcendência.
Diferentemente da visão, a essência do olho, o ser-

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-olho do olho, como diria Heidegger, não está, então, na vi-
são cega que orienta a percepção do real, nem tampouco na
transcendência da visão do conhecimento ou da fé. Só pode
estar naquilo que escapa à lógica da visibilidade e da visão,
naquela atividade involuntária que dissocia radicalmente o
olho da visão, que é o pranto, momento em que pode-se
perceber a verdade do olho. A verdade ou essência lacrimal
dos olhos não será revelada pela cegueira produzida pela
visibilidade ou pela visão intelectual ou divina, mas por um
tipo de cegueira produzida pelos olhos mesmos, a cegueira
revelatória ou apocalíptica:

A cegueira que abre os olhos não é a que escurece


a visão. A cegueira revelatória ou apocalíptica, a
cegueira que revela a verdade mesma dos olhos,
seria o olhar velado pelas lágrimas. Não é cego e
nem vidente: é indiferente à sua visão embaçada.
Ele implora: em primeiro lugar para saber de onde
estas lágrimas fluem e de quais olhos elas escor-
rem. De onde ou de quem este luto ou estas lágri-
mas de felicidade? (DERRIDA 1993, p. 127, minha
tradução)

Humano e inumano, o olho será a benção e a maledicên-


cia da visão; por um lado, é ele que chora e não o sujeito,
na independência muscular desta prótese que obedece ao
impulso fisiológico; por outro, é justamente por ser um en-
trave à visão que ele possibilita a cegueira revelatória, fonte
do pathos que acompanha o olho. O mistério que o olho
guarda para si também é o mistério que ele guarda de si,
como um segredo cuja revelabilidade jamais pudesse ser
revelada mas que é sempre instigado pelo olho do outro, no
qual o mistério da autonomia desta prótese se prolifera e
dissemina, provocando a fantasmagoria que ronda o olho, o
visível e a visão. Os olhos não vêem e não se vêem, mesmo
quando me olho no espelho, pois até mesmo aí – ou, talvez,
justamente aí – é um outro olho que me olha, um olho radi-
calmente outro que me perscruta de dentro de sua revelabi-
lidade e de seu segredo.

73
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MENTO, E.; GLENADEL, P. (org) Em torno de Jacques Derrida.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.

78
política editorial

A Série Cogitare foi criada com o objetivo de divulgar


a contribuição de pesquisadores que tenham participado
de atividades junto aos cursos de Mestrado e Doutorado
em Letras da UFSM, na forma de palestras, conferências
e outros trabalhos de pequena extensão. Também visam
à produção de textos teóricos ou críticos produzidos por
professores vinculados às linhas de pesquisa do PPGL
- UFSM.
Esses trabalhos devem ser resultado de projetos
vinculados às linhas de pesquisa do Programa de Pós-
Graduação em Letras, permitindo, assim, a divulgação de
alguns resultados produzidos pela investigação nas áreas
de Estudos Lingüísticos e Literários da UFSM.
A publicação de traduções deverá complementar os
textos já pertencentes ao domínio público, relacionados à
pesquisa desenvolvida pelo Programa, e que contribuam
para fomentar novas perspectivas. Devem apresentar
prefácio que justifique a importância do texto e sua vin-
culação com o trabalho de pesquisa desenvolvido pelo
tradutor.
Volumes publicados

Volume 1
A Dama, a Dona e uma outra Sóror
Maria Lúcia Dal Farra

Volume 2
Sartoris:
A História na Voz de quem Conta a História
Vera Lucia Lenz Vianna

Volume 3
A Fronteira e a Nação no Séc. XVIII: Os Sentidos e os Domínios
Eliana Rosa Sturza

Volume 4
O Outro no (In)traduzível / L’Autre dans l’Intraduisible
(Edição Bilingüe)
Mirian Rose Brum-de-Paula

Volume 5
Pero Sigo Siendo el Rey:
Referente e Forma de Representação
Fernando Villarraga Eslava
Volume 6
Aquisição, Representação e Atividade
Marcos Gustavo Richter

Volume 7
Da Corpografia: Ensaio Sobre a Língua/Escrita na Materia-
lidade Digital
Cristiane Dias

Volume 8
Perspectivas da Análise de Discurso Fundada por Michel
Pêcheux na França: Uma Retomada de Percurso
Ana Zandwais

Volume 9
Mitos, Héroes y Ciudades: ecorridos Míticos por Algunas Ur-
bes Literarias
Pablo Molina

Volume 10
Mário Peixoto: O Escritor de Permeio com a Crítica
André Soares Vieira

Volume 11
Manuscritos de linguistas e genética textual : quais os de-
safios para as ciências da linguagem? : exemplo através dos
“papiers” de Benveniste
Irène Fenoglio

Volume 12
Mário de Andrade: escritor difícil?
Sonia Inez Gonçalves Fernandez
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Prédio 16, Sala 3222 – Bloco A2
Campus Universitário – Camobi
97105-900 – Santa Maria, RS – Brasil
Fone: 55 3220 8359
E-mail: ppgletras@gmail.com
http://www.ufsm.br/ppgletras

Impresso na
Imprensa Universitária
UFSM - 2013

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