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ISSN 1981-6987
COORDENADORA DO PPGLETRAS
Márcia Cristina Corrêa
EDITORA
Programa de Pós-Graduação em Letras
COMITÊ EDITORIAL
Amanda Eloina Scherer
Marcia Cristina Corrêa
André Soares Vieira
Graciela Rabuske Hendges
Larissa Montagner Cervo
Enéias Farias Tavares
Sara Regina Scotta Cabral
Pedro Brum Santos
PROJETO GRÁFICO
Lilian Landvoigt da Rosa
EDITOR RESPONSÁVEL
André Soares Vieira
EDITORAÇÃO
João Moro de Oliveira
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS
André Soares Vieira
REVISÃO
Enéias Farias Tavares
S237d Santos, Alcides Cardoso dos
De gregos que vêem e outros paradoxos da visão
: questões acerca da natureza da visibilidade / Alcides
Cardoso dos Santos. – Santa Maria : UFSM, PPGL-Edi-
tores, 2013.
78 p. ; 19 cm. – (Série Cogitare, ISSN 1981-6987
; v. 13)
1. Filosofia 2. Visibilidade 3. Literatura e imagem
4. Narrativas visuais I. Título II. Série
CDU 101
82.01
Apresentação........................................................................09
Introdução.............................................................................12
2. Fiat lux...............................................................................25
8. Próteses oculares.............................................................68
Bibliografia............................................................................. 74
Apresentação
10
embaralhamento das compreensões sobre a visão que se
encontra a visibilidade e a decorrente paragone entre a lite-
ratura e as artes visuais ou suas aproximações via Ut Pictura
Poesis e Sister Arts.
Inicialmente, tenderíamos a supor que a primeira seria
valorizada por sua capacidade de abstração e conceituação
e a segunda evitada por sua ênfase nos sentidos corpóreos,
ao reduplicar (ou copiar a cópia d)o mundo material. Toda-
via, Santos demonstra que até o texto – em sua capacidade
de produzir imagens – também ganha traços de advertên-
cia, quer por Platão na República, quer por Paulo em Corín-
tios. Em ambos os casos, trata-se de valorizar a cegueira, de
repensar o provérbio comum, que de forma inversa, poderia
também dar título ao ensaio que segue: “Em terra de cego,
quem tem olho é mendigo”.
Trata-se então, no caso do autor, de seguir os passos
de Derrida na trilha desconfortável e desconfortante do “en-
tre”, desalojando e problematizando as opiniões comuns
sobre a filosofia, o cristianismo e a literatura. Santos distin-
gue na parte final de seu percurso ensaístico o ver do saber
ver, distinção que fundamenta a base dos relatos míticos
de cegueira e da seguinte recuperação da visão, relatos
que se multiplicam na tradição ocidental, quer cristã quer
metafísica.
Neste caso, o olhar do cego vela e revela uma limita-
ção física, que em arte simboliza seu oposto: uma amplia-
ção mental ou espiritual. Ao adentrar na escuridão da ce-
gueira, Édipo, Tirésias e Sansão, acessam outra dimensão
da experiência humana. Problema de visão e de visibilidade,
de escuridão e de cegueira, de ver mal e de ver bem demais,
problema de literatura, que diz sem mostrar, e de pintura,
que mostra sem dizer. Complexidades veladas, reveladas,
observadas e desfocadas na (re)visão que Alcides Cardoso
dos Santos empreende nas páginas seguintes.
11
introdução
1
Ó primeira Luz criada, e Vossa magna Palavra, / Seja feita a luz, e sobre
tudo havia luz; / Por quê privado sou de vosso ato primeiro? / O sol para
mim é negro / E silente como a Lua, / Quando a noite abandona / Por sua
vazia cava interlunar. / Se é a luz tão necessária à vida, / A vida mesmo, se
verdade for / Que a luz está na Alma, / E esta por toda parte; por que fora a
visão / A tão frágil globo como o olho confinada? (tradução minha)
Em 1671 o poeta inglês John Milton publica um de
seus mais importantes poemas, Sansom Agonistes, no
qual o herói bíblico Sansão, de força descomunal, é apri-
sionado pelos filisteus e tem seus cabelos cortados e seus
olhos arrancados, devido à traição de sua esposa Dalila. De
acordo com a leitura mais convencional e religiosa do mito,
a causa de perdição do herói bíblico está na sua arrogância
e, sobretudo, no fato de ter caído em tentação por causa de
uma mulher (Dalila). Sua vingança final contra os filisteus
– a morte de todos os presentes à celebração, incluindo os
governantes e o próprio Sansão, em auto-sacrifício –, se dá
por meio da sua fé, que faz com que Deus atenda a seu úl-
timo pedido e lhe restaure a força momentaneamente para
o sacrifício final. A leitura que John Milton faz do mito bí-
blico, como vemos, mantém a idéia cristã do auto-sacríficio
do herói para expurgo de seus pecados e libertação de seu
povo, recobrindo-a, no entanto, de tonalidades autobiográfi-
cas, uma vez que o poeta já estaria totalmente cego antes
mesmo de escrever o Paradise Lost (1667), cegueira prova-
velmente causada, além das causas fisiológicas, pelo traba-
lho árduo e constante em prol da causa republicana junto a
Oliver Cromwell.
Ao recriar o mito bíblico, Milton, defensor convicto da
república em contraposição à monarquia, parece ter tido em
mente não exatamente ou não somente a moral evangélica
de que acima de tudo e antes de mais nada é preciso ter fé,
mas a lição republicana de que somos responsáveis pelos
nossos atos, pois é o reconhecimento feito por Sansão de
que sua queda fora causada pelo seu desejo por uma mu-
lher de bela aparência (pelos seus olhos e pela sua visão,
portanto) que o reconduzirá de volta à sua fé e fará com
que derrote os filisteus, derrubando as pilastras que susten-
tavam o seu templo e restaurando, com o seu sacrifício, a
liberdade do povo de Israel.
Queremos ressaltar, com esta breve recapitulação da
poesia de John Milton e do mito bíblico de Sansão, não tanto
a luta do poeta pela causa republicana, tema já bastante
estudado na fortuna crítica do poeta inglês, mas principal-
13
mente um aspecto que, apesar de ser considerado como
secundário em relação ao tema central da fé e da razão que
perpassa tanto o mito bíblico quanto o poema, nos parece
fundamental: a visibilidade e a visão.
Se uma leitura mais convencional do mito assume a
perda da fé como causa da perdição de Sansão, a leitura
que propomos aponta para uma outra causa que parece
também agir nesta perdição. Trata-se da visão, ou melhor,
de um erro da visão, pois é a beleza física de Dalila que en-
feitiça seus olhos, distanciando seu olhar da espiritualidade,
e sua alma, fazendo-o confessar o segredo de sua força.
Após ter seu segredo delatado aos filisteus por sua amada
e seu cabelo – fonte de sua força – cortado, Sansão tem
seus olhos vazados e, ao pedir a Deus a oportunidade de
reparação do erro por meio de um último sacrifício, Sansão
pede a restauração de sua força e usa, após o mea culpa
pelo seu desvio da fé, um argumento final que nos parece
decisivo na condescendência divina ao seu apelo, que é o
fato de ter tido seus dois olhos vazados. Citamos o texto
original: “Senhor DEUS, peço-te que te lembres de mim, e
fortalece-me agora só esta vez, ó Deus, para que de uma vez
me vingue dos filisteus, pelos meus dois olhos.” (Juízes, 16:
28) (minha ênfase).
O tema da visibilidade e da visão, que nos parece ter
sido tratado como periférico neste mito bíblico tão difundido
na cultura e na literatura ocidentais, aparecerá com mais
destaque na recriação do mito que John Milton realiza neste
poema: estamos nos referindo ao fato de que Sansão la-
menta ter perdido sua visão tanto quanto sua força, como
vemos na epígrafe a este trabalho. Citamos outro trecho
para enfatizar a importância dada por Milton à perda da vi-
são: “O loss of sight, of thee I most complain! / Blind among
enemies, O worse then chains, / Dungeon, or beggery, or
decrepit age!” (MILTON, 1948, versos 67-69). A luz de que o
herói é privado é, para Milton, sem dúvida “the prime work of
god” (verso 71), luz que ilumina a razão e a fé e que permite
ver e entender o mundo, pois que sem ela os olhos nada
podem ver e Sansão ficaria “Shut up from outward light / To
14
incorporate with gloomy night; / For inward light alas / Puts
forth no visual beam” (versos 160-163).
A releitura de John Milton deste mito bíblico nos inte-
ressa principalmente pelo fato de a questão da visibilidade
e da visão já estar colocada no poema de forma clara e ar-
ticulada, paradigmaticamente, diríamos, facilitando, desta
forma, nosso trabalho de reconstrução do que, a partir de
agora, chamaremos de questão da visibilidade.
Afirmamos que a visibilidade é um paradigma porque en-
volve, desde a antiguidade grega até a midiática contempo-
raneidade, um conjunto de valores a axiomas que norteiam
e fundamentam a cultura ocidental, tanto em seu aspecto
científico quanto no senso comum que nutre grande parte
da simbologia e dos mitos populares no ocidente.
A partir de sua aparição no mito bíblico e no poema de
John Milton, discutiremos como a visibilidade é estruturada
pelos seus dois aspectos constituintes, o visível e a visão,
aspectos que se farão presentes na história do ocidente
tanto em suas particularidades quanto no seu entrelaça-
mento e mútua implicação axiológica e histórica. Apesar de
parecerem ao senso comum como uma única instância na
qual os dois termos se definem mutuamente (“o visível é o
que se vê”, diria algum filósofo popular encerrando rapida-
mente o argumento), o visível e a visão tem caracterísitcas
particulares e histórias próprias que ao mesmo tempo em
que os aproxima, os distancia e até mesmo os opõe um ao
outro.
Nosso ponto de partida é a constatação de que na
questão da visibilidade não há somente diferença, mas tam-
bém oposição entre o visível e a visão, isto é, o visível e a
visão não somente diferem um do outro, mas podem até ser
opostos, como veremos adiante, e o nó górdio desta proxi-
midade/diferença/oposição pode ser localizado na axiolo-
gia e na simbologia que estão na base da fé e da razão.
Poderíamos reconstruir este nó górdio central à questão
da visibilidade constatando, inicialmente que, na própria
formação das duas mais importantes tradições ocidentais
de pensamento, o Cristianismo e a Filosofia, fé e razão coin-
15
cidem, apesar de suas diferenças históricas (“a fé começa
onde termina a razão”), na axiologia e na simbologia relacio-
nada ao visível e a visão, isto é, o visível e a visão devem ser
pautados pela fé cristã tanto quanto pela razão filosófica.
Se, por um lado, uma apreciação superficial da ques-
tão que propomos pode levar a crer que a fé cristã historica-
mente difere fundamentalmente do racionalismo filosófico
(o cristão vê com os olhos da fé, enquanto o filósofo vê com
os olhos da razão) por outro, um exame da questão mostra
que fé e razão compartilham a axiologia do visível e da vi-
são, isto é, a concepção fundamental de que existem duas
formas de visível e de visão que correspondem a dois mun-
dos distintos e hierarquizados, de um lado o mundo sensí-
vel, composto por tudo o que é tangível aos nossos sentidos
e paixões (a terra, o mundo, a physis, a realidade material, a
tekhne), por outro, o supra-sensível, composto por tudo que
é transcendente e essencial (o céu cristão, o eidos, o ideal,
a idéia, o topus uranos platônico). A questão da visibilidade,
portanto, só pode ser pensada no âmbito do Cristianismo e
da Filosofia ocidental por meio da constatação do entrelaça-
mento do visível e da visão aos domínios da fé e da razão.
Tomamos como ponto de partida o poema de John
Milton como paradigmático da questão da visibilidade pelo
fato de que o reconhecimento do erro e a sua redenção, que
culmina com a auto-imolação do herói bíblico, constituem,
para Sansão, um aprendizado da fé. Na leitura que propo-
mos, este aprendizado, mais do que fé – ou, talvez, antes de
sê-lo –, é um aprendizado da visibilidade2, pois no poema
percebe-se que o visível (a beleza de Dalila, o templo dos
filisteus, a força descomunal do herói – motivo da vaidade
de que o herói posteriormente se arrependerá) se distancia
da visão (que permitirá ao herói bíblico, já cego, abandonar
sua vaidade e seu desejo e se voltar à fé interior e invisível),
2
Como ensina Merleau-Ponty, o visível é um aprendizado do mundo que
coincide com a atividade do pensamento; ver, portanto, não é simplesmente
olhar, mas construir o mundo com operações “reflexionantes” que trans-
formam a percepção em pensamento e imaginação do real (2000, p. 37
et passim)
16
ou seja, o poema de John Milton oferece ao herói Sansão e
ao leitor um aprendizado da questão da visibilidade, i.e., de
como o visível e a visão historicamente se diferenciaram em
uma visibilidade interior (da alma, da consciência e da razão)
e uma exterior (do mundo, das coisas e das aparências).
O Sansão de Milton, em sua cegueira, vive uma “living
death”, pois está “exiled from light” numa “land of dark-
ness”, resultado de seu próprio erro de confiar no visível e
na visão externa. Seu cativeiro, uma “Prison within Prison”, o
torna, então, duplamente prisioneiro: por um lado prisioneiro
no mundo físico, por outro, prisioneiro no mundo visível.
17
1. Visibilidade e visão: o que há
para se pensar?
3
A questão da representação/apresentação do real e do mundo que a arte
realiza é bastante complexa para que a desenvolvamos aqui. Basta-no, para
o momento, pontuar que a questão da Mimesis, já bastante complexa em
Platão (cf. DERRIDA, 2005) será tratada na Retórica clássica em termos
de adequação (Aedequatio) ou semelhança (Homoiosis), e na Filosofia em
termos de representação (Darstellung) e apresentação (Vorstellung).
19
visão, pois se, por um lado, há o rebaixamento do visível e
da visão física nos discursos do Cristianismo e da Filosofia,
por outro a evolução tecnológica da sociedade ocidental,
desde os seus primórdios cristãos e com maior ênfase nos
inícios novecentistas da Modernidade europeia e ameri-
cana, coloca a visibilidade e a visão como aspectos centrais
da vida, transformando a cultura moderna e contemporânea
em uma cultura fundamentalmente visual e midiática.
Esta tensão entre o rebaixamento do visível e da visão
física em favor do ideal e da visão intelectual/espiritual e a
centralidade da visibilidade e da visão na cultura ocidental
(com maior ênfase na Modernidade, como dissemos) ten-
siona as axiologias popular (que podemos ver em ditados
como “Quem vê cara não vê coração”), a cristã e a filosófica,
herdadas do Platonismo e do Cristianismo4, e nos possibi-
4
De uma forma direta ou inversa, as três religiões abrâmicas (o Cristia-
nismo, o Judaísmo e o Islamismo) têm relações diferentes e particulares
com a questão da visibilidade e da visão. Se, por um lado, o Judaísmo e o Is-
lamismo tradicionalmente têm uma posição crítica em relação à visibilidade
– como se pode ver na restrição ou até mesmo proibição feita à iconografia
dos santos - , tampouco podemos dizer que o Cristianismo simplesmente
incorporou a iconografia dos santos ao seu dogma por meio da represen-
tação visual de seu filho Jesus. Há, no seio da tradição religiosa cristã,
divergências também quanto à representação visual dos santos, como é
o caso do Protestantismo e do Calvinismo. Porém, mesmo a iconoclastia
das tradições protestante e luterana não desautoriza nosso argumento de
que o Cristianismo tem uma relação com a questão da visibilidade e da
visão que difere da Judaísmo ou do Islamismo basicamente pelo fato de
que no Cristianismo, Deus se mostrou aos homens por meio de seu filho na
terra, abrindo espaço, desta forma, para a sua representação e, até mesmo,
idolatria. A utilização da tenologia midiática pelas novas igrejas populares,
demonstram uma afinidade entre religião e midia que já estaria na origem
da religião cristã, no que Jacques Derrida chamou de “mundialatinização”
da igreja católica (1997, 46 et passim). Em outro texto mais recente, “Above
all no journalists”, Derrida torna este ponto ainda mais claro, dizendo que
“Isto, (a teletecnologia do cristianismo), creio eu, mantém, uma certa rela-
ção estrutural com aquilo que provavelmente distingue a Religião Judaica
ou Muçulmana da Cristã, isto é, a encarnação, a mediação, o hoc est meum
corpus, a eucaristia, Deus tornado visível” (2001, p. 58, minha tradução).
No judaísmo o Messias ainda está por vir e, portanto, sua revelação aos
homens ainda não aconteceu, sendo esta a razão de o Judaísmo ser uma
religião da revelação e não uma religião revelada, como é o caso do Cristia-
20
lita tratar a visibilidade/visão como uma questão e falar,
em consonância com alguns teóricos do século XX (Derrida,
Heidegger, Foucault, para citar os nomes mais conhecidos),
de um recalque do visível na sociedade ocidental. Pode-
mos dizer, então, que entre a axiologia que fundamenta o
pensamento – e o rebaixamento – do visível no ocidente
e a história da cultura ocidental – orientada na direção do
materialismo e da tecnologia – há um descompasso teórico
importante que ainda precisa ser pensado.
Nossa reflexão sobre a questão da visibilidade tem a
desvantagem que caracteriza temas que demandam grande
aprofundamento teórico, que é a de ser bastante abrangente
e genérica mas, por outro, tem a vantagem de partir de um
consenso, que é a centralidade da questão da visibilidade
na cultura ocidental. Em termos um pouco mais concretos,
poderíamos dizer que a centralidade da visibilidade na cul-
tura ocidental faz com que a visão oscile entre os extremos
de constatação visual da realidade (a Homoiosis da retórica
ou a Darstellung filosófica) às utopias nas quais outros mun-
dos e realidades possíveis são imaginados e visualizados
pelo pensamento imaginativo da Literatura e das Artes. En-
tre a visão das coisas na forma como elas se dão aos olhos e
o trabalho da imaginação redirecionando o olhar para aquilo
que não se vê mas que sempre se anuncia, toda uma varie-
dade de relações aponta para uma repressão do visível na
cultura, pois, em termos freudianos, poderíamos dizer que o
desejo que aciona toda forma de visão é reprimido pela or-
dem, pelas regras do “que” e do “como” se deve ver. Apenas
a título de sugestão, poderíamos polemizar um pouco mais
afirmando que a repressão ao visível na cultura ocidental
se aproxima bastante da repressão sexual, uma das molas
da neurose das sociedades modernas, como Freud explica
em “O mal-estar na civilização”. Podemos mesmo dizer que
no Ocidente o visível desperta a visão menos para a apre-
21
ensão do real do que para o desejo e a imaginação, ambos
pautados pela ordem e pela repressão, abrindo espaço para
vários tipos de perversão que terão no olhar e na visão seu
epicentro.
Quando nos referimos à tradição filosófica, é preciso
deixar claro que estamos nos reportando fundamental-
mente à axiologia dos diálogos de Platão, pois eles repre-
sentam o momento fundador desta tradição de pensamento
que tem na idéia e no ideal sua origem, justificativa e obje-
tivo. A despeito das diferentes leituras que os seus textos
têm recebido ao longo da história, a teoria platônica dos
dois mundos estabelece os pilares do conhecimento e da
cultura no Ocidente, disseminando a crença em um mundo
ideal e perfeito original e anterior ao mundo imperfeito que
habitamos e, portanto, visível somente à alma.
N´A República, um dos textos fundadores desta tra-
dição de rebaixamento da questão da visibilidade/visão,
Platão cria um dos mitos mais eficientes e influentes para
explicar a teoria dos dois mundos, o mito (ou alegoria) da
caverna, na qual o mundo ideal só pode ser alcançado por
meio da rememoração, da lembrança do conhecimento per-
feito, ideal, que trazemos em nossa alma. Neste processo
de anamnese, o mundo material é como um degrau – senão
um empecilho – no caminho do conhecimento e, portanto,
tudo o que se relaciona a ele deve ser preterido em relação
ao mundo ideal. A percepção que temos do mundo (e a vi-
são tem lugar central dentre os instrumentos da percepção,
como veremos adiante) ocupa, então, o último lugar na ca-
deia de conhecimento que liga os homens à verdade ideal,
como diz Sócrates a Gláucon (PLATÃO, 1996, p. 153):
22
participem da verdade os objetos a que se aplica.
23
que a escolha do termo visibilidade, e não visível, foi feita
para evitar que esta questão seja reduzida à nossa expe-
riência sensível do mundo, isto é, ao visível que o senso
comum denomina “mundo” ou “realidade” ou à represen-
tação deste visível como Homoiosis ou Darstellung. Como
esclarece Merleau-Ponty em O visível e o invisível (2000),
o visível é apenas aquela pequena parte do Ser que se nos
dá aos sentidos e na qual cremos encontrar o real ou, como
dirá poeticamente Wiliam Blake (1988, p. 35), “How do you
know but ev´ry Bird that cuts the airy way, / Is an immense
world of delight, clos´d by your senses Five?”
24
2. Fiat lux
26
ancorado na linguagem.
O outro termo que usamos, a Religião, tão abrangente
quanto o anterior, será usado como referência ao Cristia-
nismo em relação às outras duas religiões abrâmicas, o
Judaísmo e o Islamismo. A diferença fundamental que nos
interessa ressaltar é o fato de a primeira ser uma religião
revelada, isto é, no Cristianismo a concepção que prevalece
é a de que Deus teria se mostrado aos homens na forma
humana de seu filho Jesus, permitindo, desta forma, a
sua representação visual, ao contrário do Judaísmo e do
Islamismo, como dissemos anteriormente (c.f. nota 5). Por-
tanto, Filosofia e Cristianismo serão termos usados de forma
abrangente apenas com o objetivo de discutirmos a questão
da visibilidade e da visão.
Embora a Filosofia e o Cristianismo tenham se consti-
tuido historicamente no Ocidente como modos diferentes de
ser do homem, razão e fé são dois domínios da experiência
humana que, apesar de radicalmente díspares em suas his-
tórias tanto quanto no senso comum (“a fé começa onde
termina a razão”), se aproximam justamente no nó de sua
separação, no seu ponto de contato e afastamento, como
afirma Derrida (1997). Se, como diz o dito popular, “a fé co-
meça onde termina a razão”, no ponto onde uma termina
e a outra começa há de haver algum contato, fora de um
tempo ou de um espaço, nem um domínio nem outro, mas
o “entre” de um contato que não se conforma a uma padrão
ou método. É neste contato diáfano que fé e razão compar-
tilham os seus pressupostos implícitos, nos permitindo ver
que, por um lado, a fé, fundamento histórico de toda forma
de religio, é também fundamento do saber, do “fiduciário ou
da fiabilidade” que fundamenta o saber, conforme as pala-
vras de Derrida (1997, p.10 et passim). É esta inseparabili-
dade original entre o saber e a fé que leva Kant, em um texto
conhecido sobre a origem do mal, a propor a sua igreja “vi-
sível” sobre as bases de uma religiosidade pura ou racional,
expurgando o dogma – a religião eclesiástica – e fazendo
valer a religião moral como vontade e razão humanas.
Se, como dissemos, a fé está na base do saber, por
27
outro lado, também podemos dizer que a razão está na base
da fé, que sempre foi pautada pela abstração racional que
guia seus dogmas e preceitos. Novamente nos reportamos
ao famoso texto de Kant para mostrar que os 4 atributos da
verdadeira igreja/fé que o filósofo postula (universalidade,
pureza, liberdade e imutabilidade – Parte 5.1.4 p. 118) não
são essencialmente diferentes dos atributos da razão postu-
lados pelos filósofos iluministas.
Este argumento da inseparabilidade da fé e da ra-
zão, desenvolvido de forma minuciosa por Jacques Derrida,
Gianni Vattimo e outros no livro A Religião (1997), nos será
importante pelo fato de partir da premissa que Heidegger
usará para se referir às relações entre poesia e pensa-
mento, qual seja, o fato de que a diferença implica neces-
sariamente uma comunhão que a pressuponha, ou seja, fé
e razão só podem ser pensados em sua diferença a partir
do pressuposto – tanto implícito quanto recalcado – de sua
comunhão essencial, como dirá Derrida sobre o elo funda-
mental entre crença e razão “Está(-o) aí onde o saber e a
fé, a tecnociência (“capitalista” e fiduciária) e a crença, o
crédito, a fiabilidade, o acto de fé se combinarão, sempre,
no seu próprio lugar, no nó de aliança de sua oposição.” (p.
11) [ênfase do autor].
Esta percepção do contato e do contágio entre fé e
razão já na pureza de suas origens tem por fundamento
um dos conceitos fundamentais da hermenêutica de Mar-
tin Heidegger e da desconstrução de Jacques Derrida, que
é a diferença (différance), termo pelo qual Derrida reflete
sobre aquilo que, sem tempo e nem lugar, dá origem às
diferenças, uma origem sem origem, o diferenciar das di-
ferenças. O fio condutor do pensamento da desconstrução
derridiana é basicamente a idéia de pensar os pressupostos
não pensados da tradição ocidental, pressupostos este que,
justamente por terem valor heurístico, são dotados do valor
de verdades inquestionáveis ou eternas, justiça, verdade,
democracia, Deus, ou espírito (em nome dos quais, diga-se
de passagem, barbarismos, atrocidades e genocídios foram
perpetrados ao longo da história do Ocidente). Desconstruir
28
– que de modo algum significa destruir –, portanto, estes
valores heurísticos que caracterizam o pensamento oci-
dental significa repensar a herança e o futuro do Ocidente,
abrindo possibilidades para outras formas mais inclusivas e
tolerantes de pensar e viver que possam, algum dia, somar
a estes valores heurísticos a hospitalidade e a aceitação
das diferenças, tornando melhores as vidas das pessoas e
as relações interpessoais bem como as relações no âmbito
mundial.
O pensamento da diferença, da forma como pensado
por Heidegger e Derrida, nos será fundamental para pen-
sarmos a questão da visibilidade, pois a partir das reflexões
desses pensadores, principalmente Derrida, fica claro que
– e este é o nosso argumento central – a visibilidade só
pode ser pensada no contexto da tradição platônico-cristã
que lhe dá origem. Em outras palavras queremos dizer que
para trabalhar a questão da visibilidade de forma produtiva
é necessário retomar os fios que a enredam a outras áreas
do saber e da existência humana no que denominamos a
narrativa da visibilidade.
Um segundo aspecto da narrativa da visibilidade, tão
importante quanto o primeiro e que se entrelaça de forma
inextricável ao primeiro, é a constatação da centralidade
da escrita na civilização ocidental e a repressão histórica
ao seu caráter visível. A cena do seu surgimento na Grécia
antiga é a mesma do surgimento das bases filosóficas, epis-
temológicas e culturais do ocidente e a questão da visibili-
dade que envolve a escrita em diálogos platônicos como o
Fedro, Crátilo ou A República será também a questão da
visibilidade no ocidente. Esta cena primária do surgimento
da escrita é fundamental à questão da visibilidade por ser a
escrita um caso bastante particular de visibilidade, pois se
por um lado ela se tornou instrumento secular de preserva-
ção da verdade, ela o faz justamente por ser um discurso
escrito, dotado de inegável caráter material e visível. Além
de trazer a marca do visível como seu traço fundamental,
a escrita também se presta a outros usos, como o literário,
que foi historicamente pensado como alheio à preservação
29
da verdade, o que levaria à tão conhecida condenação de
Platão aos escritores n’A República (Livro III). Não é por
acaso que, neste momento inaugural, Platão compara a
escrita, no Fedro, à pintura, dizendo que ambas – escrita e
pintura- “têm atitude de pessoas vivas, mas se alguém as in-
terrogar, conservar-se-ão gravemente caladas”, pois ambas
transmitem “uma aparência de sabedoria, e não a verdade”
(1954, p. 256-7). Pela sua força de exemplaridade, pode-se
dizer que esta cena do Fedro cria um paradigma no qual a
escrita é o centro de forças antagônicas que a louvam pela
capacidade de reter e transmitir conhecimento, mas a con-
denam por ser letra impressa, visível e passível de leitura e
interpretação.
Portanto, o que chamamos da narrativa da visibilidade
é uma maneira de pensarmos como a questão da visibili-
dade sempre esteve no centro da história da civilização oci-
dental por meio tanto da questão da visibilidade quanto do
caráter visível da escrita, recalcado nos discursos filosóficos
e religiosos cristãos, mas sempre presente na Literatura.
Reconstruir integralmente esta narrativa seria o
mesmo que tentar reconstruir a Biblioteca de Babel, de que
nos falou Borges, tantos os meandros e bifurcações que
encontraríamos. Apenas exporemos brevemente o ponto
central desta narrativa, que chamaremos de paradigma da
visibilidade, isto é, a assunção transdisciplinar fundamental
na cultura ocidental de que visibilidade e invisibilidade têm
naturezas distintas e opostas e que a invisibilidade, devido
à axiologia platônico-cristã, é superior à primeira por ser a
essência dos valores heurísticos mais caros ao ocidente
(Deus, razão, fé, espírito).
30
3. Visível é o que se vê?
32
ferentes culturas e épocas: o sol é o pai de todos os planetas
e o rei dos astros (como se vê na metafóra do Rei Sol, desde
o deus egípcio Ra até a Cruz Gamada, presente em várias
culturas da antiguidade). A relação do pai com o filho, do sol
ideal/pai para o sol sensível/filho é, portanto, uma relação
complexa e central no Ocidente – matricial, díriamos, com
Derrida e Freud.
Porém, e este é um ponto fundamental de nossa ar-
gumentação e na de Derrida, alguns pressupostos desta
axiologia e simbolismo, de tão auto-evidentes5 que se tor-
naram na história ocidental, foram tomados como valores
heurísticos, deixando de ser pensados em sua origem ou
pressupostos. É o que faz Derrida quando demonstra como
no heliotropo platônico, apesar de o sol ideal ser a origem
de tudo, é o sol sensível que serve de base para o conceito
de sol inteligível/ideal, ou seja, é o filho que possibilita a
existência do pai: “Cada vez que uma retórica define a me-
táfora, implica não só uma filosofia mas também uma rede
conceitual na qual a filosofia se constituiu”, e corre-se o
risco “[...] de tomar os efeitos mais derivados pelos traços
originais de um subconjunto histórico, de uma configuração
precocemente identificada...” (1991, p. 271)
Na ordem espacio-temporal que adviria deste tropo/
metáfora fundadora da cultura ocidental, o sol pai – pelo
fato de ser a origem – deveria ser anterior ao sol filho, mas
o que a leitura de Derrida (1991, 2005) mostra é que a an-
terioridade do sol/pai é bastante complicada pelo fato de
já pressupor – tanto teórica quanto metaforicamente – a
existência do sol/filho. Não se trata de inversão das origens,
mas de seguir a lógica desta metáfora conceitual até o
ponto em que origem deixe de ser original e primeira, fonte
da autoridade e da exclusão e passe a ser uma origem en-
5
A auto-evidência da axiologia e simbolismo do sol exemplifica, de
maneira singular, a sua proximidade com outro “auto”, a auto-imunidade,
demonstrando o potencial totalitário que torna toda forma de “auto” um
risco à democracia ou à aceitação das diferenças (DERRIDA, 1996). Uma
ótima discussão sobre os riscos da auto-imunidade da democracia à
liberdade pode ser encontrada em NAAS, 2006, p. 22 et passim.
33
tre outras, que inclua outras possíveis fontes de luz e de
conhecimento.
Podemos dizer, então, que a metáfora do sol é o ponto
cego da diferença ontológica que fundamenta o conheci-
mento do visível na tradição platonico-cristã, ponto onde os
pressupostos não pensados desta tradição parecem saltar
aos olhos, pois o heliotropo não é senão a fundamentação
de uma metáfora do mundo inteligível (o sol ideal) por uma
metonímia do mundo sensível (o sol sensível). Dizemos
ponto cego porque o heliotropo, como metáfora e conceito
da origem de toda visibilidade, indica já em sua origem o
paradoxo central da questão da visibilidade – a que Derrida
se refere e a que nos referiremos também como o paradoxo
da visibilidade –, que é o fato de que o sol ideal/inteligível,
fonte e essência de toda visibilidade e pai do sol sensível/
visível, ser em sua essência invisível ou, melhor dito, ter uma
essência invisível.
A espeleologia platônica associa diretamente a luz da
caverna ao sol sensível, índice da existência real como mí-
mese imperfeita do mundo ideal. Se caverna e sol sensível
são elementos do mundo real, o mundo ideal terá por índice
o sol inteligível, imagem da perfeição, da beleza e da ver-
dade que, porém, não se pode contemplar diretamente. Fato
interessante, comenta Derrida, é que o sol, conceitualmente
considerado a fonte e a essência do ser, já é uma metáfora,
ou seja, aquilo mesmo que deveria ser o próprio se mostra
metafórico e então, “[C]omo a mimesis, a metáfora retorna
à physis, à sua verdade e à sua presença.” (1981, p. 285).
Este “retorno” ao mundo real, visível, que a metaforicidade
do sol inteligível indica, nos parece deslocar a questão da
visibilidade para um lugar central na ontologia e axiologia
ocidentais, pois o caráter recalcado da visibilidade do real
– da visibilidade visível, em contraposição à visibilidade in-
visível do ideal –, é um dos fundamentos do que se tornou
conhecido como o platonismo – o conjunto de leituras e
interpretações de textos de Platão que lançaram as bases
epistemológicas da cultura ocidental – tanto quanto do Cris-
tianismo. Esta centralidade que estamos reclamando para
34
a questão da visibilidade nos permite perceber que a axio-
logia desenvolvida a partir desta tradição platônico-cristã
determina que o que é visível aos olhos difere em essência
daquilo que é visível à razão e à fé e a visibilidade sensível
(a do mundo real) radicalmente diferente da visibilidade in-
teligível (a das essências, da razão e da fé).
A metáfora do sol usada n´A República não é, por-
tanto, somente uma metáfora entre outras, uma imagem no
meio de tantas outras usadas como exemplos nos diálogos
do filósofo grego, mas um tropo – imagem, metáfora e con-
ceito superpostos – rico o suficiente para povoar o imaginá-
rio de todo o mundo ocidental há, pelo menos, 2.000 anos.
A axiologia do heliotropo implantou a concepção de que o
conhecimento e a verdade advêm da luz que emana do as-
tro rei, tornando possível, por meio da diferenciação entre
a luz verdadeira do sol ideal e a luz falsa do sol sensível,
a conseqüente diferenciação entre o conhecimento verda-
deiro e o falso.
Em termos esquemáticos, podemos resumir o para-
doxo da visibilidade da seguinte forma: a visibilidade sen-
sível é considerada ardilosa, ao passo que a inteligível é
fidedigna; a primeira está associada aos vícios mundanos,
ao passo que a segunda está relacionada ao bem, valor
supremo; a primeira é sensual, enquanto a segunda deve
abdicar dos sentidos. Como a ontologia platônica é regulada
pela oposição de um mundo sensível/visível, inferior e en-
ganoso, a um mundo inteligível/invisível, verdadeiro e bom,
podemos dizer que as duas visibilidades acionam, portanto,
dois modos de conhecimento que a teoria mimética buscou
explicar e regulamentar.
O paradoxo da visibilidade norteou os discursos tanto
da Filosofia como das Artes por muitos séculos, permitindo
perceber os entornos de uma questão que não nos caberá
aqui senão nomear: a filiação dos discursos sobre as rela-
ções entre textos e imagens ao platonismo (SANTOS, 2000).
O que nos interessa, neste momento, é perceber como a in-
vestigação da narrativa da visibilidade revela pontos cruciais
em que o paradigma platônico se enreda ao Cristianismo,
35
nos permitindo perceber que a colocação da visibilidade
como questão mostra o seu recalcamento não somente na
tradição filosófica platônica, mas também – e fundamental-
mente – no Cristianismo.
36
4. Ver para crer, ou melhor,
crer para ver
38
oposto exato também demonstra esta relação inversa da
visibilidade da fé com a visibilidade natural, isto é, quanto
mais fé e confiança na visão interior, menos necessidade
da visão física, culminado com as várias estórias bíblicas
de cegueira como punição pela falta de fé, tal qual Sansão,
e recuperação da visão pela força ou recuperação da fé, tal
qual o velho Tobit, no Livro de Tobias (Livro X), curado da
cegueira por seu filho Tobias com a ajuda do anjo Rafael
(Bíblia de Jerusalém, 2003).
Tal como no paradigma platônico que reconstruímos
com a anamnese da alegoria da caverna, a visibilidade no
Cristianismo se divide em visibilidade sensível/visível e vi-
sibilidade da fé ou invisível, esta última englobando tudo o
que não se pode ver com os olhos, mas que justamente por
essa razão, requer a crença. A estória de São tomé é para-
digmática deste tipo de visibilidade por causa da transfor-
mação pela qual o apóstolo passa: de descrente (“ver para
crer”) ele passa, por causa da fé, a ser crente (“crer para
ver”), passando a ver com os olhos da fé e tornando a visão
natural um acessório dispensável.
A constatação da natureza bipartida da visibilidade na
tradição cristã tanto quanto na tradição filosófica platônica
tem implicações profundas na cultura e no pensamento oci-
dentais, muitas delas reverberadas pela tradição popular na
forma de ditados e provérbios (“Quem vê cara não vê cora-
ção”, “Os olhos são o espelho da alma”, “Quem conhece
o seu coração, desconfia dos olhos”, “O que os olhos não
vêem, o coração não sente”), demonstrando que, assim
como a visibilidade, também a visão é dividida entre a visão
natural (física, aquela que é exercida com os olhos) e a visão
interior, seja ela a da razão (o eidos platônico, a Imago la-
tina) ou a da fé (crença individual cristã). A visão da fé cristã
é aquela que, abdicando da visão farisaica, que precisa de
provas para crer, mostrará o caminho da visão divina, numa
espécie de lex talionis da visão profética, “olho (externo) por
olho (interno) e visão (externa) por visão (interna)”. A invi-
sibilidade da fé, espiritual e subjetiva, e sua relação com
a visão interior somente são possíveis por meio da crença,
39
que aciona, desta forma, a dupla injunção da revelação da
fé cristã: revelar significa desvelar, mostrar, mas, ao mesmo
tempo, re-velar, esconder, tirar da vista, mostrando que o
acesso à fé é o acesso à invisibilidade.
Assim como a visibilidade, a visão também tem, na tra-
dição platônica/cristã, duas naturezas opostas e hierarqui-
zadas, fazendo das muitas estórias bíblicas sobre cegueira
estórias de permuta entre os dois tipos de visão, permuta
que têm por motivação ou objetivo central a revelação da fé:
de um lado, estórias de recuperação da visão física possibi-
litada pela fé, pela sua assunção ou pela sua recuperação
(no caso dos desenganados e dos descrentes); de outro, as
estórias de perda da visão física e consequente aquisição
da visão interna e, muitas vezes, profética.
No primeiro caso, há os cegos de nascença que, como
os coxos e leprosos da Bíblia, terão a benção da justiça di-
vina em compensação pela injustiça dos homens devida à
sua particularidade fisiológica ou anatômica, pois, como dis-
semos anteriormente, a cegueira constitui, na axiologia oci-
dental, um estado de anormalidade ou ab-normalidade, isto
é, um estado anterior à normalidade, estado sem regra, sem
lei, sem fé ou razão. Sendo vistos como uma violação da
natureza, eles são aberrações das quais a civilização desvia
o olhar, cabendo a Deus olhar por eles.6 Aos cegos que não
possuem fé e, portanto, não possuem visão alguma (a física
ou a da fé), só restam as trevas e a esperança de um dia
receber a redenção, como atesta o Evangelho de Mateus
(15:14) a respeito dos filisteus: “Deixai-os; são condutores
cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na
cova” (Bíblia de Jerusalém, 2003).
Esta passagem do texto bíblico, de grande influência
6
A questão da relação dupla de repulsa e atração que as anormalidades
ou transgressões (dentre elas a cegueira ocupa lugar de relevo) causam
ao olhar na cultura ocidental é um tema demais complexo para tratarmos
aqui. Apenas gostaríamos de assinalar que repulsa/atração do olhar para/
sobre o diferente é a fonte de reações como o voyerismo, o fetichismo e as
diferentes perversões que a Literatura soube explorar tão bem, da Filosofia
na alcova, do Marques de Sade, à História do olho, de Goerges Bataille.
40
no imaginário e na simbologia popular, literária e artística do
ocidente, reforça a distinção e a hierarquia implícita entre os
dois tipos de visibilidade e de visão, cuja influência pode ser
detectada em artistas tão distantes no tempo quanto o pin-
tor flamengo Pieter Brueghel (1525-1569), com seu quadro
“Parábola dos cegos”,
41
Suas pupilas, onde ardeu a luz divina,
Como se olhassem à distância, estão fincadas
No céu; e não se vê jamais sobre as calçadas
Se um deles a sonhar sua cabeça inclina.
42
que alimenta os animais tem olhos para a desgraça humana
dos cegos, confirmando o fato de que na ordem natural das
coisas e do mundo não há olhos ou lugar para esta tragé-
dia, sendo eles aberrações dos quais a civilização prefere
desviar o olhar.
O que mais chama a atenção neste quadro é o olhar
dos cegos para cima, como a tentar ver algo que não lhes é
dado perceber, justamente o aspecto que Baudelaire enfa-
tiza em sua versão poética do quadro. Com seus olhos bem
abertos, exibindo seus globos oculares profundos e esbran-
quiçados, eles buscam ver a luz que não lhes é dado perce-
ber, o que dá a seus rostos uma expressão entre o desam-
paro e a bestialidade. Assim como seus bastões, seus olhos
não lhes servem para nada e serão apenas testemunhas
cegas de um destino escuro, reforçando a nossa tese de
que os olhos são dispensáveis à visão e podem, até mesmo,
atrapalhá-la.
O poema de Baudelaire traz o quadro de Brueghel
para a modernidade do século XIX ao enfatizar a feiúra, a
fantasmagoria e o grotesco que o poeta deseja ressaltar
como aspectos fundamentais da modernidade européia ur-
bana novecentista. É certo que esses aspectos para os quais
Baudelaire chama a atenção já estão perpassados pelo seu
olhar poético, denunciando uma estetização da urbanidade
e de seus aspectos negativos que fez parte do programa mo-
dernista em vários países europeus na segunda metade do
século XIX. Nosso intuito, ao trazermos o quadro de Brueghel
e o soneto de Baudelaire para a discussão da visibilidade e
da visão, não é fazermos uma discussão detalhada destes
dois artistas nem tampouco elaborarmos a relação entre
eles, mas tão somente mostrar, com estes exemplos para-
digmáticos, como o tema e as representações da cegueira
denotam uma axiologia e uma simbologia solidamente fin-
cadas nas tradições do platonismo e do cristianismo, que as
lendas e ditados populares repercutem.
O soneto de Baudelaire chama a atenção para alguns
lugares comuns a respeito da cegueira que vale a pena des-
tacar, sobretudo o fato de que os cegos são, como no quadro
43
de Brueghel, uma anormalidade, indicada pelo uso dos adje-
tivos “pavorosos”, “tenebrosos”, “grotescos”, “terríveis”. Se
algum dia neles “ardeu a luz divina”, agora reina somente
“o eterno escuro” pois, sendo um desvio da naturalidade, os
cegos não são considerados parte da criação divina, tendo
sido excluidos do primeiro fiat lux.
Ainda no primeiro grupo dos cegos de nascença, pode-
mos perceber uma diferença que para nós terá fundamental
importância na questão da visibilidade e da visão, que é a
presença da fé, isto é, da visão divina. Os cegos que têm fé
conseqüentemente conseguem ver com os olhos da alma e
a eles será dada a possibilidade da recuperação da visão
física por milagre divino, como um bônus ou recompensa
pela sua crença. Diferentemente dos cegos representados
por Brueghel e Baudelaire, a eles é garantido o que pode-
ríamos chamar de intercâmbio ótico, como podemos ver
nas várias passagens dos evangelhos de Mateus (9:27-31;
20:29-33), Marcos (8:22-26; 10:46-52) e Lucas (18:35-43),
nas quais Jesus restabelece a visão aos cegos pelo fato de
eles, ao contrário dos fariseus, verem com os olhos da fé,
o que os habilita à cura divina apesar de não possuírem a
visão física, natural. Deste restabelecimento da visão natu-
ral pela fé dá testemunho a narrativa do cego Bartimeu, no
Evangelho de Marcos (10:46-52):
44
vou”. No mesmo instante ele recuperou a vista e o
seguia no caminho.
45
5. Uma escrita mais que visível
- Pôs Vulcano
Em vale ameno cândidas ovelhas,
E redis e tapigos e tugúrios.
Coreia ali gravou, qual na ampla cnosso
Fez Dédalo à pulcrícoma Ariadna.
Moços e virgens palma a palma enlaçam.
A terra pulsa: tênue linha as veste,
Veste-os guapo tecido azeitonado;
Elas flóreas grinaldas, eles trazem
Áureos alfanjes em talins de prata.
Com mestra e leve planta, ou já discorrem
Qual do oleiro tocada ao móbil torno
Rápida volve a roda, ou já desfilam [...]
47
Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:
nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.
48
também também exibe uma visibilidade que ela comparti-
lha com a Filosofia e com o Cristianismo, a visibilidade da
escrita. Na história ocidental, a escrita foi rebaixada em fa-
vor da fala, considerada como expressão e presença de um
sentido primeiro, imediato, ideal, a partir do qual a escrita
se apresenta como secundária, imitativa e infiel, como se
pode ler em muitos dos diálogos platônicos. Porém, mais
do que rebaixamento, a escrita sofre historicamente um
recalque do seu caráter visível, isto é, além de imitativa e
secundária em relação à fala, a escrita traz uma face visí-
vel que a aproxima das artes visuais, aspecto este bastante
explorado pela literatura e pelas artes visuais em diferentes
períodos e regiões e que tem, na publicação de Um lance de
dados, poema no qual a visualidade da letra e da página é
trabalhada por Mallarmé a ponto de produzir sentidos que
integram a leitura ao olhar que perscruta, um de seus pon-
tos mais altos. A axiologia que rege a oposição entre fala
e escrita e a hierarquização desta oposicão – sistema que
Derrida, no esteio de Heidegger e Nietszche, chamou de me-
tafísica ocidental – subordina a escrita à lógica da mimese e
provoca a divisão entre uma “boa” e uma “má” escrita, isto
é, uma “escrita” da alma e outra do mundo, uma invisível,
a outra visível (Derrida, 1992b). Porém, como bem aponta
Derrida, assim como no heliotropo que fundamenta a metá-
fora conceitual do sol a que nos referimos anteriormente, o
paradoxo é que é a escrita sensível que serve de base para
a inteligível:
49
Portanto, a escrita no Ocidente traz o caráter duplo de re-
baixamento em relação à fala e de recalque de seu caráter
visível, fato que historicamente culminou no rebaixamenteo
da Literatura tout court como um tipo de escrita não séria,
um faz de conta ou um vale-tudo (Derrida, 1992a).
Ao longo de sua extensa obra, Jacques Derrida bus-
cou sistematizar o pensamento ocidental sobre a escrita e
demonstrar como este pensamento tem suas bases con-
ceituais no platonismo e no Cristianismo, bases estas que
apontam para a cena primária da “fundação” da escrita na
Grécia de Platão e Sócrates e para a forma como a escrita
é pensada a partir da teoria platônica dos dois mundos, a
que já nos referimos anteriormente ao discutir a questão da
visibilidade e sua fundamentação nas tradições de pensa-
mento platônica e cristã (cf. Parte III). O que o filósofo de-
monstra é que entre a idealidade das idéias e a materiali-
dade da escrita sempre houve, apesar da epistemologia que
explica e regula a diferença entre elas, sua contaminação e
seu contágio já nas origens.
Sua reflexão sobre a escrita propõe um pensamento
que desconstrói a oposição entre a idealidade da idéia – em
sua manifestação como essencialidade da voz, da presença
plena que antecederia toda forma de representação – à
materialidade do signo, sua posterioridade e artificalidade,
como diz o filósofo em A diferença (1991a, p. 36):
(Itálicos do autor)
50
da escrita e a autoridade da fala “plena”, Derrida percebe
que a teoria mimética platônica fornece o paradigma teórico
para a separação entre a Filosofia, descrita por Sócrates
como o modo de conhecimento que “traz o olhar constante-
mente posto em coisas fixas e imutáveis que [...] obedecem
em tudo a uma ordem racional [...]” (1996, p. 142) e a Arte,
definida por Platão como um tipo de mimese que
51
que demonstra que Platão condena a escrita tanto por sua
materialidade/visibilidade quanto pela sua capacidade de
produzir visibilidade por meio das metáforas, imagens, tro-
pos e topoi. A escrita, portanto, deve ser contida, regulada e,
até mesmo, controlada, para que não dissemine simulacros,
ameaçando, desta forma, a verdade.
O controle que Platão propõe que seja exercido sobre
a escrita fundamenta a tradição ocidental de repressão do
visível e de valorização do ideal e do transcendente, tradi-
ção esta que fundamenta não somente o discurso filosófico,
mas também o dogma do Cristianismo que, de maneira se-
melhante, também divide a escrita entre a “boa” – a dos
evangelhos, dos santos e dos textos religiosos sancionados
pela autoridade, seja ela papal ou das escrituras sagradas
– e a “má”, aquela que leva à idolatria e à adoração das coi-
sas do mundo, como vemos em Coríntos 2 (3:3-6), quando o
apóstolo Paulo explica a natureza da verdadeira aliança com
Deus. Não é pouca a semelhança com a escrita da alma
platônica:
52
que concretiza as experiências dos limites na sua própria
materialidade/visibilidade, espaço onde diversos saberes e
experiências do mundo se encontram e onde verdade e fé
se misturam às imago mundi para formar aquilo que Fou-
cault, no Prefácio à A arqueologia do saber, chama de he-
terotopias, discursos que derivam das ordens estabelecidas
do saber mas fazem com que a ordem mesma, a “própria”
ordem – o “próprio” da ordem – funcione na chave do outro,
diferentemente do seu funcionamento ortodoxo. Foucault in-
vestiga este funcionamento heterodoxo da ordem por meio
de um conto de Borges e da “enciclopédia chinesa” que o
escritor argentino descreve, mostrando como, ao contrário
das utopias, que “consolam” e conduzem a um “espaço ma-
ravilhoso e liso”, a “cidades com vastas avenidas, jardins
bem plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas
seja quimérico”, as heterotopias (1990, p. XII):
53
diferentes tipos que transitam entre os mundos sensível e
inteligível, criando uma espectralidade que embaralha as
identidades do visível e do invisível, como o faz o espectro
do pai de Hamlet ao voltar ao mundo dos vivos sem, no en-
tanto, abandonar o mundo das almas. Como o espectro do
pai de Hamlet, a Literatura compartilha dos mundos visível
e invisível, da letra e do espírito, sem pertencer totalmente
a qualquer uma destas ordens, o que faz com que seu acon-
tecimento seja sempre um evento imprevisível que põe em
cena um outro não classificável, como dirá Derrida em Es-
pectros de Marx a respeito desta espectralidade da escrita
literária: “O que se passa entre dois, e entre todos os ‘dois’
que se queiram, como entre a vida e a morte, só há-de-valer
de algum fantasma. “ (1994, 10-11 – grifos do autor).
Compartilhando da letra e do espírito mas vagando
entre estas duas lógicas que norteiam a Filosofia ocidental
e o Cristianismo, a escrita literária dá à luz várias anorma-
lidades ou monstruosidades, “figuras teo-zoo-antropomór-
ficas, transplantes ou enxertos proliferantes e cambiantes,
híbridos inclassificáveis dos quais as Górgonas e os Ciclo-
pes são apenas os exemplos mais conhecidos (DERRIDA,
1993, p. 56), uma literatologia, para lembrar o Livro dos
seres imaginários de Borges, na qual os demônios saem à
rua em festa, como na walpurgisnacht goetheana, em que
um dos personagens do sabbath, Proctofantasmista, diz em
tom jocoso aos seus convivas: “Gente maldita, que ousadia
a vossa!/Não se vos provou já que nunca espírito/pode
aguentar-se em pé? Sais-me agora/ até dançantes!” (Cena
III e seguintes).
Retornando à questão que nos propusemos no início,
qual seja, tratar a visibilidade como uma questão e instigar
os desdobramentos desta perspectiva, podemos dizer que
tal procedimento é uma das linhas mestras do pensamento
de Jacques Derrida, um filósofo franco-argelino que escreve
a partir da Filosofia sem jamais ter estado fora da Literatura
- o dentro e o fora de um texto, não por acaso, é um dos pon-
tos fundamentais da desconstrução derridiana. No “entre”
Literatura e Filosofia que a reflexão derridiana abre como
54
caminho para o pensamento – estratégia bem aprendida
com Heidegger (2003, p. 152 at passim) –, Derrida instiga
a via dupla deste termo: tanto no voltar-se do pensamento
sobre si mesmo quanto na sua exposição na theoria, que
entre os gregos antigos tinha o sentido de contemplação
e percepção, ou seja, Derrida instiga a reflexão sobre a
visibilidade reprimida da escrita e da cultura7 por meio de
uma prática de escrita – ou escritura, como a denomina o
próprio Derrida – que herda e desconstrói, no mesmo gesto
textual, a axiologia sobre a visibilidade iniciada com o eidos
platônico e a imago latina. Trilhar este caminho da reflexão
pelo “entre” implica em desalojar as oposições entre a Filo-
sofia, o Cristianismo e a Literatura e retirar o pensamento de
seu locus amoenus nas tradições filosófica e judaico-cristã,
como explica Heidegger em “A essência da linguagem”, ao
dizer que poesia e pensamento – e, acrescentaríamos, fé –
se pressupõem e se cruzam, pois (2003, 133):
7
Não entraremos aqui no importante debate sobre o caráter eminentemente
visual da cultura contemporânea, para o qual sugerimos a leitura do
livro Iconology, Image, Text, Ideology, de W. J. T. Mitchell (The University
of Chicago Press, 1986). Mesmo quando afirma, alhures (1994) que a
nossa época vive o seu “momento pictórico” (“pictorial turn”), toda a sua
argumentação reforça a leitura de Derrida do rebaixamento da visibilidade
na cultura ocidental.
55
Filosofia e Literatura, entre Literatura e Fé, entre Filosofia
e Fé, apenas para citar os desdobramentos que nos inte-
ressam diretamente neste trabalho) que Derrida conduz o
pensamento aos seus momentos aporéticos, aos impasses,
tradicionalmente pensados como contradições, mas explo-
rados por Derrida como instâncias em que o pensamento
precisa se renovar justamente pelo transbordamento de
suas margens.
Colocar a visibilidade como questão eminentemente
filosófica implica em uma epistemologia que pressuponha
a distinção clara entre discurso teórico – sua neutralidade
e objetividade – e seu objeto, como o fizeram Descartes
e Kant, apenas para citar alguns dos textos/filósofos canô-
nicos na questão da visibilidade. Uma primeira dificuldade
desta redução da questão da visibilidade a um campo de
saber específico, o filosófico, é o fato de que o discurso filo-
sófico é, antes de mais nada, um discurso escrito e, portanto
portador da visibilidade recalcada da escrita. Uma segunda
dificuldade seria o fato de uma outra visibilidade constitutiva
da escrita também ser tão recalcada quanto a primeira, qual
seja a visualidade da linguagem escrita (metáforas, ícones
verbais, índices, exemplos, mitos), impossível de ser contida
ou controlada nos discursos de cunho racionalista, como já
apontamos a respeito do uso dos mitos nos diálogos platô-
nicos (Santos, 2000).
Tratar a visibilidade somente no âmbito da fé cristã,
por outro lado, também implicaria em uma redução que,
em última instância, levaria às mesmas aporias do discurso
filosófico, isto é, chegaríamos à conclusão de que o Cris-
tianismo, apesar de invocar sempre a instância pessoal e
subjetiva da fé, é uma religião da escrita, dos mandamentos
que Moisés recebe de Deus e escreve na pedra. Também
não será necessário examinar a Reforma Protestante e a
tradição de apego ao Livro Sagrado para perceber o quanto
o Cristianismo é uma religião da escrita, bastando para tal
atentarmos ao relato contido no Êxodo (34:1) sobre a ne-
cessidade da reescrita dos mandamentos em pedra, após
a quebra das pedras originais: “Então disse o SENHOR a
56
Moisés: Lavra duas tábuas de pedra, como as primeiras; e
eu escreverei nas tábuas as mesmas palavras que estavam
nas primeiras tábuas, que tu quebraste”.
Por outro lado, tratar a visibilidade como uma carac-
terística exclusiva e particular da Literatura, como foi feito
historicamente, implica em aliená-la do conhecimento e da
verdade, reiterando o divórcio histórico entre arte e conhe-
cimento. De Homero a Kafka, Shakespeare a Beckett, Safo
a Eliot, a Literatura tem mostrado seu potencial como forma
de conhecimento do mundo que traz a grande vantagem
em relação à Filosofia e ao Cristianismo, de ser um conhe-
cimento inclusivo, abrangente e democrático, e não foram
poucos os filósofos e pensadores que, de Cervantes a Der-
rida e Blanchot, pensaram a Arte e a Literatura como uma
forma de conhecimento que, diferentemente da Filosofia ou
do Cristianismo, permite imaginar aquilo que é possível, e
não somente o que é real, como bem ensinou Aristóteles na
Poética ao descrever a verossimilhança.
Em Memoirs of the Blind, The Truth in Painting e outros
livros e artigos que envolvem a questão da visibilidade, Der-
rida busca criar um caminho possível para um pensamento
sobre a visibilidade que inclua as tradições filosófica e cristã
sem se restringir a elas, num gesto que poderíamos chamar
de literário, embora seu texto não seja propriamente literá-
rio ou filosófico. Com base nesses textos do filósofo franco-
-argelino, pode-se perceber que se na Filosofia a visibilidade
é negada, recalcada em favor do logos abstrato e invisível,
e no Cristianismo é recusada como idolatria, na Literatura
ela é fundamental e constitui um modo de conhecimento do
mundo. Um possível caminho para o pensamento da visibi-
lidade que desejamos instigar neste texto sob a inspiração
derridiana seria, então, discutir o paradoxo da visibilidade
e explorar as consequências desta discussão, tais como as
duas formas de visibilidade e visão nas tradições filosófica,
cristã e literária.
57
6. O Visível produz cegueira
59
sada por uma existência superior, transcendental, e faz com
que a visão que temos do mundo seja preterida por algo que
não vemos mas que acreditamos – com a crença que funda
tanto a ciência quanto a fé – estar lá (DERRIDA, 1996), no
fundo e no âmago do real. O mundo e o real são, do ponto de
vista da lógica da transcendência, sombras, repetições mal
formadas e cópias imperfeitas desta essência.
Assim define Derrida esta lógica da transcendência
(1993, p. 41, minha tradução):
60
[...] o evento sacrificial, aquilo que vem aos olhos
ou encontra os olhos, a narrativa, o espetáculo ou
representação do cego (que) refletiria, ao se tornar
o tema do primeiro, por assim dizer, esta impossi-
bilidade. (minha tradução, ênfase do autor)
61
uma falha ou incompletude do visível, mas “...que perma-
nece produzida, já desde a origem, pelo evento e estrutura da
obra” (DERRIDA 1993, p. 65). O visível se produz, de acordo
com estas duas lógicas, como a manifestação imperfeita e
imprópria da sua essência invisível, como uma ruína que é
condição de qualquer forma de visibilidade, fazendo com
que a relação entre visível e o real seja sempre um retorno
fantasmático da imagem sobre a coisa. Qualquer represen-
tação verbal ou visual que pretenda realizar adequatio entre
o visível e a realidade, terá então um caráter inegável de me-
mória ou arquivo desta ruína congênita e será a testemunha
de uma impossibilidade, a impossibilidade da visibilidade.
Podemos concluir que o visível é a ruína sobre a qual só
poderá existir memória, isto é, representações. Ruína e me-
mória fazem parte da semântica da visibilidade e nomeiam
as experiências da visibilidade e do visível.
A desconstrução do paradoxo da visibilidade acionado
pelas suas duas lógicas se fará por meio de uma observa-
ção tão simples quanto fecunda: trata-se do fato de que
para ser totalmente estranha, estrangeira à visibilidade, a
invisibilidade deverá já ter sempre habitado a visibilidade,
como afirma Derrida (1993, p. 51):
62
é preciso que nada me retenha em mim mesmo
longe delas, nenhuma “representação”, nenhum
“pensamento”, nenhuma “imagem”, nem mesmo
essa qualificação de “sujeito”, de “espírito” ou de
“Ego”, pela qual o filósofo me quer distrair absolu-
tamente das coisas, mas que no entanto se torna,
por sua vez enganadora, já que como toda desig-
nação, acaba por cair no positivo, por reintroduzir
em mim um fantasma de realidade e por fazer-me
crer que sou res cogitans – uma coisa muito par-
ticular, inapreensível, invisível mas, ainda assim,
coisa.
63
7. Ver é dever (ver)
65
a quem e a que certas botas, e talvez quaisquer
botas em geral, retornam. A quem e a que, em
consequênia, deve-se restitui-las, devolvê-las, para
quitar uma dívida.
[...]
Há uma lei aqui [...] no contrato da verdade (“Eu
te devo a verdade na pintura”), entre a verdade
como adequação (de uma representação, aqui
atributiva, da parte de Shapiro) e a verdade da
presença desvelada (da parte de Heidegger). (tra-
dução minha)
66
fantasmático, espectral, uma vez que a visão busca restituir
um ideal que, como vimos, nada possui de completude ou
pureza original, mas que é composto de rastros e ruínas de
uma incompletude da qual a visão é testemunha involuntá-
ria, e não mais um instrumento da restituição racional ou
religiosa do saber ou da fé.
A lei que estabelece o débito original da visibilidade e
a visão em relação ao real, ao conhecimento/fé e a um pai
simbólico, débito a ser saldado com a verdade, estabelece,
como vimos, a linhagem paterna que regula e regulamenta
a visibilidade, de Isaac a Tirésias e Sansão, de Homero a
Joyce, passando por todos os casos de perda e recuperação
da visão no Velho e Novo Testamento. O débito na origem
do visível e seu pagamento a um sujeito estabelece a visibi-
lidade como um contrato entre sujeitos capazes de verdade
(conhecimento e fé), cuja cláusula principal estabelece que
ver é saber ver e ver com fé, que estabelece que o débito na
origem da visibilidade e da visão é com o pai. As tradições
filosófica e cristã são as instâncias da cultura ocidental
onde os pais reclamam, em nome da verdade, a dívida do
visível. É assim que nos relatos bíblicos a recuperação da
visão se dá pelo filho, luz real que reconduzirá à luz ideal
do pai, como o filho Tobias em relação ao seu pai, Tobit, ou
como Jesus, o filho de Deus, reconduzindo os cegos à luz
do pai por meio da fé, como nos relatos bíblicos de cura na
estrada de Jericó. O filho é a continuidade da ordem da luz,
da visibilidade e da visão.
A lei que rege a visibilidade e a visão estabelece que,
em primeiro lugar, devemos ver, devemos entrar na ordem
da visibilidade e da visão, nos constituindo como sujeitos ca-
pazes de verdade, como cidadãos ou cristãos. Em segundo
lugar, devemos saber ver, isto é, para entrar na ordem da
visibilidade e da visão devemos conhecer suas leis e prati-
car o seu contrato, vendo o que todos vêm na mesma crença
que fundamenta o saber e a fé.
67
8. Próteses oculares
69
Como próteses, os olhos perfazem uma transgres-
são da normalidade que dá lugar a todo tipo de perversão,
monstruosidade ou fetiche, como é o caso dos Ciclopes, das
Górgonas (das quais já citamos a Medusa), do voyeurismo
sadiano e da história do olho que a narrativa de Bataille
ilustra tão bem9. O poema “Os cegos”, de Baudelaire, tam-
bém delata a monstruosidade destes seres no paradigma
metafísico, lembrando a obviedade de que eles não podem
ver coisa alguma e, consequentemente, não podem se ver,
o que nos leva à questionar se, não podendo ver ou se ver,
os cegos podem se encaixar na filiação paterna que governa
a lei da visibilidade. A resposta a este questionamento só
pode ser negativa: não vendo ou não se vendo os cegos (so-
bretudo os cegos de nascença, testemunhos da origem do
visível) não têm noção da vergonha e do pecado que sua
condição encerra, pois a cegueira, no paradigma metafísico-
-cristão, é uma violação da ordem natural passível de puni-
ção, o que os torna seres diferentes e diferenciados. Sendo
literalmente coetâneos da origem da própria visibilidade,
sua existência denota uma falha original na naturalidade do
modelo de visão, da legalidade da lei/ordem da visibilidade
e da própria origem do visível.
O olhar que vê jamais alcançará o mistério original que
a cegueira carrega, fazendo desta uma transgressão e um
estado de anormalidade, uma monstruosidade da qual a ci-
vilização desvia o olhar pois este – o olhar do cego, temido
e odiado – espelha a cegueira daquele que vê, no abismo
sem fundo da visão física, que jamais encontrará o fundo, a
essência daquilo que crê enxergar. Desdobrando a hipótese
abocular um pouco mais, diríamos que um cego não se vê,
na dupla injunção desta construção pronominal: um cego
não pode se ver, assim como também não se pode ver o
mistério que um cego encerra em si.
Testemunho da ruína e memória da visibilidade, o
cego transporta aquele que vê de volta à sua condição cega
com seu olhar medusino que cega a quem o olha nos olhos;
9
Bataille, George. História do olho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003
70
no conluio das próteses oculares, só o que se produz, então,
é cegueira: é o preço que se paga para ver a luz da razão ou
do espírito. Restituir a visão, realizar a transação ocular de
troca da visão física pela intelectual ou divina, é saldar a dí-
vida, restaurar a verdade na ordem da philia, da genealogia
paterna, de devolver a verdade ao pai do logos e da fé.
Como vimos no poema de John Milton que serviu de
mote a esta análise, os exemplos da hipótese abocular são
abundantes tanto na Literatura quanto nas Artes visuais, de
Homero a Saramago, de Brueghel a Magritte, demonstrando
um olhar diferenciado sobre a questão da visibilidade e da
visão e dando testemunho de uma compreensão particular
desta questão. Porém, mais que a pintura – e não entra-
remos na complexa questão das relações entre as artes
visuais e verbais neste momento –, a Literatura tem uma
relação mais profunda, genética, diríamos com a questão
da visibilidade e da visão, como vimos anteriormente, tanto
pela abundância das representações de cenas, temas,
motivos, personagens e símbolos relacionados este tema,
quanto pelo seu caráter escrito e pela abundância de cenas
de escrita e leitura, como vemos exemplarmente na estória
bíblica de Sansão (Juízes 13-16), nazireu que, depois de
ser traído e perder a força descomunal, pede a Deus que
lhe restitua a sua força uma última vez para se vingar dos
filisteus. Embora a vingança contra os filisteus seja desígnio
divino e Sansão um instrumento do Senhor, o herói bíblico
se vinga pelos seus olhos, arrancados em Gaza pelos seus
algozes: “Senhor Deus, peço-te que te lembres de mim, e
fortalece-me agora só esta vez, ó Deus, para que de uma vez
me vingue dos filisteus, pelos meus dois olhos.” (Juízes 16,
29) [minha ênfase].
A fascinação pelo olhar da Literatura se revela na du-
pla injunção desta construção sintática: na fascinação da
Literatura pelo tema do olhar e na fascinação que o olhar
da Literatura sobre o mundo provoca. O ensimesmamento
da Literatura, seu olhar cego e obstinado sobre si e sobre o
mundo produz e espalha a cegueira como doença da visão,
como glaucoma ou como os olhos da Medusa que, mesmo
71
arrancados de sua cabeça ainda cegam a quem os olha.
Na axiologia metafísica e cristã a cegueira advém
como punição, como castigo por um erro sendo, portanto,
uma forma de fazer justiça. Sendo cega, a justiça não vê,
não corre o risco de “cair em tentação” ou de se deixar
enganar pelas aparências, isto é, por ser cega a justiça é
concebida como verdadeira e justa. Exibindo esta cegueira
em relação ao visível, a justiça também exibe a cegueira
sobre si mesma pelo fato de, assim como outros conceitos
fundamentais do ocidente, como democracia e igualdade,
se fundamentar na axiologia platônica e cristã que, como
vimos, informa e regulamenta a questão da visibilidade, ou
seja, a justiça, como valor supremo possibilitado pela abs-
tração racionalista que o Iluminismo instaurou na sociedade
ocidental, ignora os particulares em nome da universalidade
(ADORNO & HORKHEIMER, 1999) que, como todas as abs-
trações, é cega aos particulares tanto quanto à sua própria
cegueira nesta dupla cegueira civilizatória, nesta dupla in-
junção da cegueira.
Prescindível e até mesmo prejudicial à visão intelec-
tual ou divina, o olho é uma prótese ou suplemento da visão
cujo destino não é a propriamente a visão, seu mister não
diz respeito à fé ou ao conhecimento e sua verdade não
está, portanto, na visão, faculdade que o olho humano com-
partilha os outros animais; sua alethéia vai além do ver e
do saber e reside no fato de que somente o homem pode
chorar, afirma Derrida (1993, 126) relendo o poema de
Andrew Marvell “Eyes and Tears”. O luto, a paixão (pathos),
a tristeza, a alegria, aí está a verdade que o olhar re-vela,
no duplo movimento que Heidegger dá ao acontecimento
da verdade, ou seja, o olhar desvela o fundo humano do
homem apenas para velá-lo novamente na mais profunda
treva, levando este olho-verdade a um mergulho no desam-
paro abissal da visão. A essência do olho não parece entrar
na ordem das essências e não pode ser localizada na visão
do conhecimento ou da fé, pois o olho não está ontologica-
mente qualificado para ter acesso à transcendência.
Diferentemente da visão, a essência do olho, o ser-
72
-olho do olho, como diria Heidegger, não está, então, na vi-
são cega que orienta a percepção do real, nem tampouco na
transcendência da visão do conhecimento ou da fé. Só pode
estar naquilo que escapa à lógica da visibilidade e da visão,
naquela atividade involuntária que dissocia radicalmente o
olho da visão, que é o pranto, momento em que pode-se
perceber a verdade do olho. A verdade ou essência lacrimal
dos olhos não será revelada pela cegueira produzida pela
visibilidade ou pela visão intelectual ou divina, mas por um
tipo de cegueira produzida pelos olhos mesmos, a cegueira
revelatória ou apocalíptica:
73
BIBLIOGRAFIA
76
_____ . La tarjeta postal: de Socrates a Freud y más alla.
Edición electrónica de www.philosophia.cl/ Escuela de
filosofia Universidad ARCIS.
77
_____. Iconology. Image, Text, Ideology. Chicago: Chicago
University Press, 1987.
78
política editorial
Volume 1
A Dama, a Dona e uma outra Sóror
Maria Lúcia Dal Farra
Volume 2
Sartoris:
A História na Voz de quem Conta a História
Vera Lucia Lenz Vianna
Volume 3
A Fronteira e a Nação no Séc. XVIII: Os Sentidos e os Domínios
Eliana Rosa Sturza
Volume 4
O Outro no (In)traduzível / L’Autre dans l’Intraduisible
(Edição Bilingüe)
Mirian Rose Brum-de-Paula
Volume 5
Pero Sigo Siendo el Rey:
Referente e Forma de Representação
Fernando Villarraga Eslava
Volume 6
Aquisição, Representação e Atividade
Marcos Gustavo Richter
Volume 7
Da Corpografia: Ensaio Sobre a Língua/Escrita na Materia-
lidade Digital
Cristiane Dias
Volume 8
Perspectivas da Análise de Discurso Fundada por Michel
Pêcheux na França: Uma Retomada de Percurso
Ana Zandwais
Volume 9
Mitos, Héroes y Ciudades: ecorridos Míticos por Algunas Ur-
bes Literarias
Pablo Molina
Volume 10
Mário Peixoto: O Escritor de Permeio com a Crítica
André Soares Vieira
Volume 11
Manuscritos de linguistas e genética textual : quais os de-
safios para as ciências da linguagem? : exemplo através dos
“papiers” de Benveniste
Irène Fenoglio
Volume 12
Mário de Andrade: escritor difícil?
Sonia Inez Gonçalves Fernandez
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
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