NOVO
TE STAMENTO
ASTE
JSÄO P A U L O
ALAN RICHARDSON
PROFESSOR DE TEOLOGIA CRISTÃ
NA UNIVERSIDADE DE NOTTINGHAM
CONSELHO DELIBERATIVO
Júlio A n d r a d e Ferreira
Presidente
Aharon
Secretário
Sapsezian
Geral
INTRODUÇÃO
A
TEOLOGIA
DO
NOVO
TESTAMENTO
ASTE
S Ã O PAULO
Titulo do original em inglês:
AN INTRODUCTION T O THE THEOLOGY OF THE NEW TESTAMENT
SCM Press Ltd .
Londres
1961
II CONHECIMENTO E REVELAÇÃO 41
FÉ E OUVIR
homens possam crer nele é necessário que alguém lhes fale a res- mitivos reaparece em diferentes formas e palavras através do NT.
peito dele, e algumas vezes a palavra pístis é empregada no sentido
do conteúdo da pregação sobre Cristo, a crença em Cristo (e.g. At
A PREGAÇÃO DO EVANGELHO
6.7; 13.8; 14.22; 24.24; Gl 1.23; Ef 4.5, 13; I Tm 4 . 1 ; 5.8; Jd
3.20; Ap 2.13). A fé, no sentido da mensagem proclamada pelos A pregação da Igreja é considerada no NT um dos sinais da
apóstolos e evangelistas, era a afirmação do que Deus fizera em chegada da era do cumprimento. Ouvimos muito pouco sobre pre-
Cristo. Desde a publicação do livro de C. H. Dodd, The Apostolic gação no A T ; Jonas pregara aos ninivitas (Jn 3.2) e eles se arre-
Preaching ( A pregação apostólica), em 1936, tornou-se costume penderam (Mt 12.41). Jonas tornou-se um sinal semêion aos habi-
referir-se à pregação cristã original como o Kérygma distinguindo-a tantes de Nínive, como o Filho do Homem também se tornou um si-
do ensino (didaché) e da exortação (paráklesis) ética e doutrinária
(6) V e r D o d d , The Apostolic Preaching, e d . de 1944, 21-4.
(5) Ver infra, 231
nal aos de sua própria geração (Lc 11.30). A pregação da Igreja de missionária da Igreja é em si mesma um dos sinais do fim. ( 7 )
é, além disso, o oferecimento ao mundo do verdadeiro sinal que vem Os sinais do fim reaparecem no Apocalipse, na visão dos Quatro
do céu. O significado interior da pregação é escatológico. Quase Cavaleiros (Ap 6.1-8). O cavaleiro do Cavalo Vermelho represen-
não há dúvida de que o próprio Jesus adotou deliberadamente o ta a guerra: êle tem uma espada na mão. O cavaleiro do Cavalo
conceito da "pregação do Evangelho" no sentido de proclamação da Preto representa a fome: segura uma balança na mão e clama —
vinda do dia da salvação, de acordo com (o segundo) Isaías; pelo "Uma medida de trigo por um denário". O cavaleiro do Cavalo
menos o emprego neotestamentário da forma euanguelídzesthai, "pre- Amarelo, cujo nome é Morte, representa a perseguição. Estes são
gar as boas novas", baseia-se na forma usada em Isaías, quando se três dos sinais falados pelo Senhor, e estão profundamente impres-
refere à proclamação do dia da salvação, ou do cativeiro da Babi- sos na consciência da Igreja. Mas há também o cavaleiro do Cavalo
lônia ou num sentido messiânico mais profundo (Is 40.9; 41.27; Branco; em contraste com os outros, não é uma figura sinistra: tem
52.7, citado em Rm 10.15; cf. Na. 1.15; Lc 2.10) . Segundo São uma coroa, símbolo de vitória, e sai "vencendo e para vencer". Rea-
Marcos e os evangelistas em geral, o euanguélion de Jesus consistia parece em Ap 19.11-16, onde é chamado "Fiel e Verdadeiro", e o
no anúncio da chegada da salvação prometida (o Reino de Deus), no seu nome é "o Verbo de Deus" (ho lógos tôu Theôu). Representa, na-
cumprimento do kairós (Mc 1.15). No seu sermão em Nazaré, se- turalmente, o quarto sinal escatológico, a pregação missionária da
gundo a narrativa de São Lucas, Jesus apropriadamente refere a Igreja: "Sai da sua boca uma espada afiada, para com ela ferir as
si mesmo as palavras de Is 61.1, no sentido em que Deus o tinha nações" (Ap 19.15; cf. Hb 4.12; Ef 6.17). A Igreja apostólica
ungido échrisen, "Cristizado" para pregar o Evangelho aos pobres tinha em alta consideração o poder da palavra de Deus, enquanto
(euanguclísasthai ptochóis L X X ) (Lc 4.18) Em outro local, vê pregada; não apenas como palavra de salvação, pois aos que lhe re-
na sua pregação do Evangelho aos pobres o cumprimento messiâ- sistiam era a palavra de julgamento: "e julga e peleja com justi-
nico das Escrituras (Mt 11.5; Lc 7.22) ; a pregação de Jesus ou ça" (Ap 19.11) . O próprio Jesus declarara que não viera para tra-
dos discípulos, juntamente com os milagres, era o sinal de que o zer paz à terra, mas espada (Mt 10.34) ; a "espada da sua boca",
Reino de Deus estava perto (Mt 10.7; Lc 10.9) . Jesus compreen- a palavra pregada, é o instrumento da decisão messiânica (cf. Is
dia a sua própria missão em termos da proclamação (Io dia da sal- 11.4; 49.2; Os 6.5; Ap 1.16). Durante o período das "aflições",
vação ; e a evidência do NT indica que êle ensinou e comissionou um antes da vinda do fim, a Igreja deve ser a Igreja que testemunha,
grupo de discípulos para empreender a tarefa mundial de pregar trazendo, apesar de todas as perseguições, a oportunidade de arre-
segundo o conceito escatológico de Isaías, isto é, da missão do Servo pendimento e fé a todas as nações. A figura do Servo apresentada
(Mc 8.35; 10.29; 13.8-10). A palavra euanguélion tornou-se um ter- em Isaías está de novo no fundamento de todo este conceito, o arau-
minus technicus no vocabulário do NT e a Igreja tornou-se uma Igre- to sofredor da salvação que ilumina os gentios. O NT acentua o fa-
ja pregadora porque Jesus adotou a interpretação de Isaías, do ofí- to de que a Igreja recebeu de seu Senhor ressurreto o renovado
cio messiânico, em termos de Servo do Senhor. mandamento de ser sua testemunha "até os confins da terra" (At
1.8) e de fazer "discípulos de todas as nações" (Mt 28.19; cf. Mc
Em Mc 13.4, depois de ter Jesus falado sobre a destruição vin- 16.15). A pregação missionária da Igreja deverá continuar até a
doura do templo, os discípulos perguntaram: "Dize-nos quando su- consumação dos Tempos (héos tês synteléias tôu aiônos, Mt 28.20).
cederão estas coisas, e que sinal (tò semêion) haverá quando todas Jesus não diz que todas as nações devem aceitar (ou que aceitarão)
elas estiverem para cumprir-se?" Jesus lhes respondeu dizendo que o Evangelho antes do fim; na verdade, êle não nos induz a um
certas coisas deveriam acontecer em primeiro lugar, "mas ainda não otimismo simplista a respeito desta possibilidade: "Estreita é a
é o fim (tó télos): haverá guerras — nações se levantarão contra na- porta e apertado o caminho que conduz para a vida, e são poucos
ções — terremotos, fomes e perseguições contra os discípulos. Estes os que acertam com ela" (Mt 7.14; Lc 13.24). A tarefa dos
serão trazidos diante de governadores e reis, por amor do seu no- missionários é pregar a todos os povos do mundo (oikouméne,
me (13.7-9). A estes sinais acrescenta mais um: "é necessário que Mt 24.14; pâsa ktísis, Mc 16.15), quer ouçam ou não. Há boas
primeiro o Evangelho seja pregado a todas as nações" (13.10). A
versão de São Mateus é até mais explícita: " E será pregado este
(7) P o r u m a espécie cie tour de force e x e g é t i c o , G . D . K i l p j a t n c k c h e g a a
Evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as estranha conclusão de q u e " n ã o h á universalismo e m Marcos. N ã o há pregação
nações. Então virá o fim (télos) " (Mt 24.14). Eis aí o ponto de par- d o E v a n g e l h o aos gentios neste m u n d o e n ã o há interesse n o seu destino n o m u n -
tida da Igreja apostólica e não temos razão alguma para supor que d o v i n d o u r o " ; v e r s e u ensaio, e m S t u d i e s in the Gospels, ed. D . E . N i n e h a m , 19o5:
ela não tenha entendido o Mestre neste importante tema: a ativida- " T h e Gentile Mission in Mark and Mark 1 3 . 9 - 1 1 " , 145-58. V e r t a m b é m J. J e r e -
mias, Jesus, Promise to the Nations, E T , 1958.
razões para se pensar que estamos vivendo agora na primeira mitia a parádosis geral da Igreja, e que pregava entre os gentios
época em que se cumpre este mandamento do Senhor, e que os ou- sua própria apreensão do euanguélion, de que tanto gentios como ju-
tros "sinais do fim", a respeito dos quais êle falou, parecem cum- deus são justificados pela fé e não pelas obras da lei. Compreende
prir-se gradualmente, de modo espetacular, neste século de guer- totalmente o ensino do Senhor de que o plano divino da salvação
ras mundiais, de explosões atómicas e de falta de alimentos; mas não pode ser consumado até que todas as nações tenham ouvido as
seremos bastante sábios se atentarmos para a advertência das Es- novas. Segundo esta convicção, lança-se êle mesmo na incrível ta-
crituras de não procurar saber a data do fim (Mc 13.32; At 1.7) refa de pregar o Evangelho a todas as nações; viaja incansavel-
e de nos conservarmos vigilantes e preparados, como servos que mente através da Ásia Menor, Grécia e Roma, espera mesmo ir até
aguardam o retorno do Senhor (Mc 13.33-37). Em todos os pe- a Espanha (Rm 15.28). Provavelmente entendeu, desapontado
ríodos da história, entre a primeira vinda de Cristo "em grande hu- diante de suas primeiras esperanças, que não viveria para ver a
mildade" e seu reaparecimento final, "em sua gloriosa majestade", consumação de sua grande obra e que a evangelização de todo o
os sinais têm estado sempre presentes — guerras, convulsões, fo- oikonméne seria um processo longo e gradual. Mas cumpriu as pa-
lavras do Senhor; deu seu testemunho diante de reis e governado-
mes, perseguições e o testemunho da Igreja — e num verdadeiro
res, cortes e concílios; sofreu em sua própria carne as aflições do
sentido podemos dizer que nenhuma época está mais próxima da Messias, tema a que tantas vezes alude ( I I Co 1.5-7; 4.10; Fp
syntéleia (consumação) do que outra. Os sinais do fim estão 3.10; Cl 1.24, e t c ) . Compreende cabalmente que sendo a Igreja
presentes em todas as épocas. O estudo do NT deve, portanto, uma "cooperação no Evangelho" (Fp 1.5) é conseqüentemente uma
proibir-nos de pensar que a história da Igreja seja uma narrativa participação nos sofrimentos de Cristo (Fp 3.10; cf. 1.29), visto
de êxitos, e também impedir-nos a desilusão e a descrença, quando que o Evangelho é em si mesmo "a palavra da cruz" ( I Co 1.18).
a pregação do Evangelho resulta em fracasso e suscita oposição. Co-
mo já disse alguém, com muita sabedoria, a única coisa surpreen-
dente a respeito da perseguição é encontrar cristãos que ficam sur- OUVIR E OBEDECER
presos, quando são perseguidos, não obstante as advertências fei-
tas claramente pelo Senhor (Mt 5.11 s . ; 10.16-39; Jo 15.18-21). Fé no sentido neotestamentário não é mero assentimento in-
telectual a uma hipótese ou dogma. A única exceção talvez seja a
São Paulo entendeu que o mandamento do Senhor, de pregar Epístola de Tiago onde, por isso mesmo, é considerada inadequada
o Evangelho a todas as nações, dirigia-se especificamente a êle. como meio de justificação: mesmo os demônios acreditam em pro-
Acredita que está predestinado por Deus, desde o seu nascimento, posições como esta que Deus é uno ( T g 2.19). > Deve-se rejeitar
(8
para realizar esta obra, como Jeremias, no passado: "Paulo, servo a salvação somente pela fé, se esta fôr definida como assentimento
de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o Evan- intelectual (Tg 2.14-26). No NT em geral a fé aparece intima-
gelho de D e u s . . . " (Rm 1.1). Recebera seu mandato e seu Evan- mente associada com a audição, e na linguagem bíblica ouvir é quase
gelho de Deus e não dos homens (Gl 1.1, 11 s . ) . Cristo não lhe sinônimo de obedecer. Toda teologia bíblica é teologia da palavra:
enviara a batizar — outros o fariam — mas a pregar o Evangelho Deus profere sua palavra, o homem deve ouvir e obedecer. Daí ter
( I Co 1.17). Sobre êle pesa esta obrigação: "ai de mim se não sido a fé cristã disseminada pela atividade característica da prega-
pregar o Evangelho!" ( I Co 9.16; cf. Rm 15.15 s . ) . Quando ção. Deus ofereceu salvação a todos os que invocam seu nome.
Paulo fala no "meu Evangelho" (Rm 2.16; 16.25) não quer dizer "Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? e como crerão
que possui um outro além do Evangelho da Igreja toda. Não pode naquele de quem nada ouviram? e como ouvirão, se não há quem
haver "outro Evangelho" (Gl 1.6-9), e Paulo acentua que a sua pre- pregue? como pregarão se não forem enviados?" (Rm 10.14 s.). " A
gação é fiel à parádosis (tradição, catecismo) da Igreja que êle fé (pístis) vem pelo ouvir (akoé)" — e ouvir é o resultado da prega-
tem transmitido aos seus convertidos ( I Co 11.2, 23-25; 15.1-3). ção da palavra de Cristo (Rm 10.17). Pístis ecs akoês — é o que sig-
Por "meu Evangelho" quer significar "minha apreensão pessoal da nifica " f é " nos escritos de São Paulo e no NT em geral; é resposta à
verdade de Cristo", pois sabe muito bem que o Evangelho é um mis- palavra pregada de Cristo; é obediência ao chamado de Deus para
tério que só pode ser apreendido através de fé pessoal (Rm 16.25; a salvação. A palavra shama', "ouvir", do AT, tem o sentido de
Ef 6.19), posto que permanece sempre oculto para os que não crêem "obedecer" e é assim traduzida nas versões inglesas das Escrituras.
( I I Co 4.3) . Apresentou " o Evangelho que prego entre os gentios" ( N o antigo Israel as orelhas dos escravos eram furadas para acen-
diante das "colunas" da Igreja em Jerusalém, que parecem tê-lo
aprovado, visto que reconheciam o seu "apostolado aos gentios"
(Gl 2.1-10) . Parecia assim que Paulo lealmente aceitava e trans- (8) V e r in/ro, 238 s.
tuar o seu dever de obediência). Nos LXX a palavra é muitas vezes como um ser responsável, uma pessoa que pode aceitar ou rejeitar
traduzida por hypakóuo ("escutar"), verbo freqüentemente empre- o chamado à salvação. Considerando que o homem não é um fan-
gado no NT com o significado de "obedecer". A fé é resposta obe- toche nas mãos de Deus, e que Deus lhe fala chamando-o pelo nome,
diente e pessoal à comunicação pessoal de Deus transmitida através a resposta da fé só pode ser uma decisão real, mas tendo consciência
das palavras dos pregadores. Assim o próprio Jesus deu instruções de que toda a iniciativa é de Deus e de que Êle mesmo cria até a
sobre a maneira como suas palavras deveriam ser ouvidas (obede- possibilidade da fé, o cristão é levado a se expressar através da
cidas). "Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as linguagem da predestinação e pensa na fé como um dom absoluto
pratica, será comparado a um homem prudente, que edificou a sua de Deus. É, todavia, um dom que pode ser recusado, desde que Deus
casa sobre a rocha..." (Mt 7.24; Lc 6.47) ; "Minha mãe e meus não se impõe à força sobre nós (cf. Mc 10.17-22). A obediência
irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus c a praticam" (Lc cristã só é possível mediante o auxílio divino, e é de tal natureza
8.21); "Bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a que o homem pode a qualquer momento recusá-la. Então podemos
guardam!" (Lc 11.28; cf. Jo 12.47). A parábola do Semeador é entender que a fé não se conquista ou se atinge de uma vez para
especialmente a respeito de ouvir: "Os que foram semeados em boa sempre, a partir de um determinado momento; é uma relação que
terra são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a recebem..." deve ser mantida por meio de esforço constante, visto que o homem
(Mc 4.20; Mt 13.28; Lc 8.15) ; na verdade, todas as parábolas têm não está livre da tentação da descrença e da desobediência ( I Co
um sentido oculto que somente o ouvido interior e responsivo pode 9.26 s.). A vida cristã é uma constante luta pela fé (Fp 1.27).
perceber: "E com muitas parábolas semelhantes lhes expunha a Sendo a fé uma virtude, a descrença é pecado; é desobediência. "O
palavra, conforme o permitia a capacidade dos ouvintes" (Mc 4.33 deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos" (II Co
etc.) ; "Atentai no que ouvis" (Mc 4.24) ; "Ouvi-me todos e enten- 4 . 4 ) ; "o príncipe da potestade do ar" é o espírito que agora atua
dei" (Mc 7.14). As parábolas encenadas da cura do surdo trans- nos "filhos da desobediência" (Ef 2.2). Antes de sua conversão à
mitem o mesmo sentido de abertura dos ouvidos interiores dos que fé, aqueles que agora são cristãos estavam mortos nos seus "delitos
estão surdos às palavras de Deus (cf. esp. Mc 7.32-37, Ephphathá). e pecados" (Ef 2.1). A afirmação de que descrença é pecado,
"Ouvir" no pleno sentido bíblico inclui compreender e obedecer. Sem parece para muitos, no mundo moderno, coisa dura de ser dita, mas
tal compreensão e obediência não existe fé. Fé, portanto, envolve é este o ponto de vista coerente da Bíblia. Os homens que estão preo-
decisão pessoal, confiança, entrega e obediência; é a aceitação sin- cupados apenas com este mundo, seus valores e prazeres, resistem
cera das exigências de Deus sobre o homem, na situação em que este ao Evangelho cristão por causa das exigências que lhes faz; o ateís-
se encontra, com resposta apropriada na vida e na ação. É assim mo é, muitas vezes, a racionalização da recusa de enfrentar o desafio
que no N T o vocábulo obediência transforma-se virtualmente em da obediência. "É difícil crer", disse Kierkegaard, "porque é difícil
expressão técnica para designar a aceitação da fé cristã (e.g. At obedecer".
6.7; Rm 1.5; 6.17; 16.19; Gl 5.7; II Ts 1.8; I Pe 1.2; 3.1; 4.17).
Em I Pe 1.14 tékna hypakoês significa simplesmente "cristãos". FÉ E ARREPENDIMENTO
O exemplo da própria obediência de Cristo não está muito distante A relação entre fé e arrependimento nos Evangelhos chama a
do pensamento que fundamenta este uso. São Paulo constata a deso- atenção para o aspecto moral do ato da entrega a Deus em fé;
bediência de Adão com a obediência de Cristo (Rm 5.19), e o su- contudo, a noção de arrependimento é fortemente escatológica. O
premo ato de obediência de Cristo foi sua morte na cruz (Fp 2.8; conceito bíblico de arrependimento encerra a idéia fundamental de
cf. Mc 14.36; Hb 5.8 s.). O discípulo cristão deve levar "cativo volta ou retorno a quem se deve obediência, como o rebelde que vem
todo pensamento à obediência de Cristo"; todo seu pensamento deve de novo servir o seu rei legítimo ou a esposa infiel que volta a seu
ser exercido à luz da fé cristã ( I I Co 10.5). marido. Representa a reorientação básica da personalidade toda.
O tema principal da pregação dos profetas do A T era que Israel
Mas, em que pese a fé envolver necessariamente decisão e res- deveria "retornar" ao Senhor; Deus aceitaria a pessoa do penitente.
posta, o NT assim mesmo a considera um dom de Deus. É Deus Êle não se compraz em cultos ou sacrifícios (Am 5.21-25; Os 5.6;
quem chama e converte, quem abre os olhos cegos e desobstrui os 6.6; Mq 6.6-8; Is 1.11-17; Jr 6.20; 7.21-23; 14.12; SI 40.6;
ouvidos surdos, quem dá o que exige. "Pela graça sois salvos, me- 51.16); na verdade, o sistema sacrificial destinava-se apenas aos
diante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus" (Ef 2 . 8 ) ; é pecados de ignorância (Nm 15.27-31). Deus não perdoa o penitente
a ação de Deus em Cristo que torna a fé possível, de modo que ela em virtude de reparos que este possa fazei , mas porque perdoar é
-
só pode ser entendida como um dom da graça. A importância da da natureza de Deus (Is 43.25; SI 103.3,8-18). Alguns profetas
decisão humana não fica, porém, obliterada. Deus trata o homem
necessidade de um salvador; quando a pregação de Jesus a estes
falaram em "retornar" e andar humildemente com Deus, como se dirige, acaba caindo em terreno pedregoso. São os "justos" (i.e.,
simples possibilidade; o homem pode voltar a Deus, se o tentar, autojustos) que não precisam de arrependimento (Lc 15.7; cf. Mc
com suficiente empenho. Mas em nível mais profundo o AT reco- 2.13-17). Estão tipificados na figura do irmão mais velho em Lc
nhece que é exatamente isto o que o homem não pode fazer: êle não 15.25-32 ou nos fariseus que levantavam objeções à amizade de
pode oferecer a Deus sua retidão, mas penitência, um "coração Jesus com os "pecadores". O arrependimento é então um sine qua
compungido e contrito" (SI 51.17; Is 64.6) ; só Deus pode criar um non da vida cristã, não só no seu início mas em todos os estágios;
"coração puro" ou um "novo espírito" (SI 51.10; Jr 31.31-34; envolve o constante reconhecimento do fato de que toda fé e virtude
Ez 36.25-29). "Converte-me e serei convertido" (Jr 31.18). Os são dons de Deus e não conquista nossa. Mas está, inevitavelmente,
profetas do retorno do exílio (Dêutero-Isaías, Ageu, Zacarias) espe- associada, em especial, com o começo da vida cristã. É provável que,
ravam que este acontecimento significaria o retorno ao Senhor, em desde os tempos primitivos, o reconhecimento do arrependimento —
sentido espiritual; mas, com o desapontamento desta esperança, tor- abandono do mundo, da carne e do diabo e entrega à verdade, à
nou-se mais acentuado o caráter escatológico d'o arrependimento de retidão e ao Cristo — fosse requerido dos catecúmenos na ocasião
Israel. Deus derramaria sobre Israel o novo espírito no fim dos do batismo, da mesma forma como a confissão de fé. Este ato de
tempos, quando instaurasse o seu reino. Na expectativa da vinda arrependimento batismal não será jamais repetido, mesmo quando
do reino de Deus, quando Deus derramaria o seu Espírito, João alguém se tendo tornado apóstata retorne a Cristo, pois o batismo
Batista, o último dos profetas, chamou os homens ao arrependimento não é recebido mais de uma vez; talvez seja este o sentido das difí-
e o simbolizou no seu "sinal" profético do batismo (baptismo- me- ceis palavras de Hb 6.6.<9> Contudo, não quer dizer que toda a vida
tanóias, Mc 1.4), antecipando o batismo do Espírito Santo que cristã não seja um longo pi-ocesso de "conversão", assim como a fé
haveria de vir (Mc 1.8). O próprio Jesus pregou o arrependimento constantemente precisa de reapropriação. "Arrepender-se" e "crer"
juntamente com a necessidade de fé no ato de Deus de instaurar o são verbos que podem ser empregados especialmente em relação com
seu reino (Mc 1.15). 0 ato inicial dos catecúmenos, de "conversão" e de " f é " ; assim, em
Depois da ressurreição de Cristo a Igreja proclamou que Deus Rm 13.11 lemos: " A nossa salvação está agora mais perto do que
havia de fato oferecido o arrependimento como dádiva, tanto a quando no princípio cremos" — ê hóte epistéusamen (cf. também
judeus como a gregos. "Deus... o exaltou Príncipe e Salvador, a 1 Co 15.11). A ênfase que às vezes se dá à "conversão" no sentido
fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão de pecados" de uma data definida e absolutamente importante na vida cristã,
(At 5.31); "também aos gentios foi por Deus concedido o arre- característica de certos tipos de seitas, não tem muito apoio no ensino
pendimento para vida" — i.e., a vida do mundo vindouro (At global do N T ; este não considera a conversão um processo que possa
11.18). É a bondade de Deus que leva os homens ao arrependi- ser completado integralmente, uma vez para sempre, numa data
mento (Rm 2 . 4 ) ; através do ministério pastoral da Igreja, Deus específica; além disso tal ênfase tende a depreciar a fé cultivada
dá aos homens "o arrependimento para conhecerem plenamente a por crianças que crescem desde a infância em lares cristãos, pelas
verdade" ( I I Tm 2.25). Não é de se surpreender que o dom do quais o NT demonstra tanto interesse. As versões inglesas das
arrependimento, estando associado com a descida do Espírito (cf. Escrituras raramente empregam a palavra "convertido"; a palavra
esp. At 11.18), esteja tão intimamente ligado ao batismo. Além "conversão" dificilmente poderia ser considerada bíblica, aparecendo
disso, convém lembrar que já havia esta associação mesmo desde a nas versões inglesas somente em A t 15.3. Deveríamos ainda acres-
pregação do "batismo da conversão" de João. São Lucas, indubita- centar que o AT usa freqüentemente o vocábulo "arrepender-se" no
velmente, tinha em mente o futuro batismo no Espírito Santo de sentido moralmente neutro de "mudar a mente" (e.g. "O Senhor
Pedro, em Pentecostes, quando escreveu as seguintes palavras de se arrependeu de haver constituído Saul rei sobre Israel", I Sm
Jesus a Pedro: "Tu, pois, quando te converteres (epistrépsas), for- 15.35; cf. também 15.29; Nm 23.19; SI 106.45; 110.4); neste
talece os teus irmãos" (Lc 22.32). Pela "conversão" os homens sentido Judas "arrependeu-se", i.e., mudou sua mente (Mt 27.3).
podem preparar o caminho da vinda do Espírito, mas é Deus quem As palavras metanoêin e metamélesthai do NT, embora não signi-
dá arrependimento e fé. Como vimos, nesta questão de fé há coisas fiquem mais do que "mudar a mente", de fato levam consigo as
que os homens podem e devem fazer: devem reconhecer a necessi- nuanças bíblicas de epistréphein, voltar, voltar-se para. No seu con-
dade do salvador sem o qual não receberão o dom da salvação. Um texto neotestamentário (com exceção de Mc 27.3) deveriam ser
véu cobre seus corações e não conhecem a verdade; "quando, porém,
algum deles se converte (epistrépse) ao Senhor, o véu lhe é reti-
rado" ( I I Co 3.16). Os que se afastam do Senhor não conhecem a (9) V e r infra, 343 s.
lidas no sentido bíblico da dádiva escatológica do arrependimento seu nascimento na carne era a inauguração da nova criação, e sua
através da descida do Espírito nos últimos dias. morte fora potencialmente a morte de toda a raça humana, da mesma
forma como sua ressurreição fora potencialmente a recriação de toda
REGENERAÇÃO a humanidade. O Espírito escatológico é o sopro que Deus insufla na
sua nova criação, dando-lhe nova vida (cf. Jo 21.22; Ez 37.5-10,14;
O Quarto Evangelho não menciona arrependimento, mas a noção Sabedoria 15.11). O verbo enephysese, em Jo 20.22 lembra Gn
semelhante do novo nascimento (Jo 3.3-8; cf. 1.12 s.). A idéia de 2.7; cf. Gn 1.2; e a idéia da nova criação está assim claramente
regeneração (palingueneuía) estava "no ar", tanto entre os judeus implícita;< > cf. também o "vento impetuoso" no Pentecostes, o
13
como entre os gregos. A metáfora do "renascimento" é muito co- batismo dos apóstolos no Espírito Santo, segundo São Lucas (At
mum, ocorrendo a homens inteligentes de qualquer época ou local, 2 . 2 ) . O verbo anaguennáo ocorre no NT somente em I Pe 1.3 ("nos
não sendo necessária a elaboração de teorias que demonstrem sua regenerou para uma viva esperança") e 1.23 ("fostes regenerados,
passagem do uma cultura para outra. Como sugere E.G. Sehvyn, não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante o lógos de
surge da experiência expressa em frases como: "Tornei-me uma Deus"). O sentido da recriação em Cristo está presente em todos os
pessoa completamente diferente", enquanto o conceito análogo de escritos do NT. O cristão é nova criação ( I I Co 5.17; Gl 6.15) ;
"nova criação" seria já a colocação em metáfora teológica da ver- anda em novidade de vida (Rm 6.4) e serve em novidade de espí-
dade contida neste outro tipo de frases: "O mundo transformou-se rito (Rm 7.6) ; seu "homem interior" é renovado dia a dia ( I I Co
num lugar bastante diferente". "Nós somos justificados", conclui, 4.16) ; sua mente também (Rm 12.2) : em resumo, é refeito à ima-
"diante da variedade de contexto no qual anaguénnesis e palingue- gem original do Criador (Cl 3.10). Judeu e gentio tornam-se um
nesía aparecem, dizendo que estas palavras eram empregadas nos só novo homem em Cristo (Ef 2.15; Gl 3.28). Chegou o dia da
círculos heleno-judeus para designar qualquer estágio decisivamente criação do novo céu e da nova terra, e os cristãos são as primícias
novo na natureza, na história ou na vida pessoal " . ( W ) A idéia de da Nova Era: "segundo o seu querer, êle nos gerou pela palavra da
regeneração encontra-se também nas religiões de mistérios, sendo verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas"
usada (como metamorphosis) para descrever a mudança pela qual (Tg 1.18; cf. Rm 8.23; Ap 14.4). Os cristãos primitivos sabiam
o iniciado passa. O judaísmo rabínico, contudo, apesar do dito que já estavam vivendo no dia esperado da regeneração porque
comum de que "o prosélito é como a criança recém-nascida", não tinham recebido os dons do Espírito. O próprio Jesus prometera aos
possuía doutrina alguma de regeneração individual ; mas no ju- ( 1 2 )
discípulos, os quais por amor tudo haviam abandonado para o seguir,
daísmo posterior surgiu forte expectativa de segundo ou novo nas- que na comunidade messiânica da dispensação missionária, quando
cimento para Israel como nação (Ez 37; Is 65.17; 66.22), que esta- o Evangelho tivesse sido pregado em todo o mundo, receberiam "já
ria unido à criação de um novo céu e de uma nova terra, numa vasta no presente, o cêntuplo (nyn en tô leairô tóuto) de casas, irmãos,
cena de regeneração cósmica (cf. também Enoque 25.6; 50.1; Ba- irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições; e no mundo por vir
ruque 5.1-9; II Pe 3.13; Ap 20.11; 21.1). Podemos acrescentar (en tô aiôni tô erchoméno) a vida eterna (dzoèn aiónion)" (Mc
que nem palinguenesía ou anaguennáo acham-se nos L X X (ou, nesse 10.30). Muitos cristãos proscritos por suas próprias famílias, em
sentido, na literatura grega clássica). virtude da profissão de fé em Cristo, nos dias de São Marcos, teriam
O NT afirma que este poderoso ato de nova criação ou de rege- experimentado o benefício de uma nova família na comunidade da
neração cósmica foi consumado por Deus em Jesus Cristo, embora Igreja. No mesmo contexto em que São Marcos apresenta este dito,
seja, em nossos dias, percebido apenas pelos olhos da fé; em breve São Mateus introduziu muito significantemente este outro: "Jesus
viria o tempo em que ela seria revelada a todos os homens, na lhes respondeu: em verdade vos digo que vós, os que me seguistes,
paroitsía ou apocalipse de Cristo. A vinda de Cristo por ocasião de quando na regeneração (palinguenesía), o Filho do Homem se assen-
tar no trono da sua glória, também vos assentareis em doze tronos
para julgar as doze tribos de Israel" (Mt 19.28). Do ponto de vista
(10) The First Epistle of St. Peter, 1946, 122. V e r t a m b é m C . E . B . C r a n f i e l d ,
e m T W B B , 31 ( a ) . C . H . D o d d e m T h e Interpretation of the Fourlh Gospel,
de São Mateus, Cristo terá toda a autoridade no céu e na terra depois
49 s., cita trechos d o C o r p u s Hcrmeticum ( e s p . o h i n o p e r i palinguenesías, C. H . da sua ressurreição dentre os mortos (28.18), verdade esta simboli-
X I I I ) p s r a m o s t r a r q u e , c o m o n o p e n s a m e n t o j o a n i n o , o c o n h e c i m e n t o do D e u s , zada no NT geralmente pela figura de Cristo sentado à mão direita
q u e d á v i d a eterna, é possuído por aqueles q u e passaram pelo renascimento, p r o -
c e d e n d o d o r e i n o de soma ou sares p a r a o r e i n o de pnêuma ou nous; m a s este
m a t e r i a l h e r m é t i c o é, n a t u r a l m e n t e , p o s t e r i o r a o N T .
(13) Também E. C. H o s k y n s , The Fourth Gospel, segunda edição revisada,
(11) V e r r e f e r ê n c i a s d a d a s p o r B ü c h s e l , e m K i t t e l , T W N T , I . 671-4.
1947, 547
(12) A s s i m t a m b é m D o d d , I F G , 304, r e f e r i n d o - s e a S t r a c k B i l l . , I I 420-3.
com o início da vida cristã e, conseqüentemente, com o batismo. A
de Deus (Mc 16.19; A t 2.23; Rm 8.34; Ef 1.20; Cl 3.1; Hb 1.3,13; ordem dos eventos era, em primeiro lugar, a aceitação pelo ouvinte
I Pe 3.22), ou, no Apocalipse, por Cristo sentado com o Pai no seu da palavra pregada, o lógos Christôu, o euanguélion ou kérygma,
trono (Ap 3.21). Este texto teria sido entendido por São Mateus vindo então a instrução, na pístis ou na parádosis, dada pelos mes-
tres da Igreja; vinha depois o seu batismo no qual fazia a confissão
no sentido de que os apóstolos haviam sido separados por Cristo
pessoal de fé (homología), e finalmente era admitido à Eucaristia e
para governar a Igreja — i.e., as doze tribos cto novo Israel —
à plena comunhão da Igreja.
considerada como a esfera da "regeneração" já antecipadamente
consumada. Desde os primeiros dias da vida da Igreja havia uma tradição
É provável que o significado da regeneração esteja exposto com (parádosis) de ensino (didaché) à qual os pregadores da Igreja
mais clareza no ensino de Jesus sobre a necessidade de o homem eram leais. Continha a exposição do kérygma segundo a descrição
ser como as criancinhas. "Em verdade vos digo: Quem não receber dos fatos históricos da vida, ministério, morte e ressurreição de
o reino de Deus como uma criança, de maneira nenhuma entrará Jesus, juntamente com palavras do próprio Senhor, importantes para
nele" (Mc 10.15); "Em verdade vos digo que, se não vos conver- interpretar estes fatos e que tiveram significação decisiva para a
terdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis vida e testemunho das comunidades primitivas de discípulos (ekkle-
no reino dos céus" (Mt 18.3). Tornar-se novamente criança signi- síai). Esta tradição adquiriu, por fim, forma literária em nossos
ficava ser feito de novo, nascer pela segunda vez; o Quarto Evan- Evangelhos Sinóticos; o Quarto Evangelho é uma profunda medita-
gelho interpreta este tema da seguinte maneira: "Se alguém não ção sobre ela. São Paulo, como já vimos, sempre se preocupou em
nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus" (Jo 3.3). Ingressar transmitir esta parádosis, fielmente, e exortava seus convertidos
na nova era significa tornar-se uma nova pessoa, penetrando na a ela. Aprendemos com São Paulo que não existe conflito entre a
parádosis katà Christón (Cl 2.8) e pístis no seu mais profundo
esfera da regeneração messiânica. Talvez encontremos aqui a chave
para a compreensão da difícil passagem de Mt 11.11: "Em verdade sentido, e que esta precisa da primeira e nela se fundamenta, uma
vos digo: Entre os nascidos de mulher, ninguém apareceu maior do vez que a fé não é simples estado subjetivo, nem crença num "prin-
que João Batista; mas o menor no reino dos céus é maior do que êle". cípio espiritual" ou aceitação de um "nome" mágico, mas é fé numa
Quer dizer que os nascidos uma só vez (nascidos somente de mu- pessoa histórica real que de fato viveu, ensinou, morreu e ressus-
lher) não são regenerados no sentido escatológico (não moral); os citou. Em I Co 11.23-25 encontramos São Paulo lembrando aos
que nasceram pela segunda vez no Reino de Deus são até mesmo coríntios a maneira como lhes havia ensinado a tradição da Ceia
"maiores" do que os maiores deles. < > A realidade básica do cristão
14
do Senhor, e em 1 Co 15.3-7, a tradição da ressurreição do Senhor:
não é a verdade moral mas escatológica. Diz respeito às relações da os coríntios deveriam conservar fielmente as próprias palavras da
pessoa humana com a esfera da regeneração. Os cristãos oram tradição do Evangelho que êle lhes ensinara (15.1 s.). Exorta os
assim: "Concede que nós, regenerados, e feitos teus filhos por ado- tessalonicenses: "permanecei firmes e guardai as tradições (para-
ção e graça, sejamos de dia em dia renovados por teu Santo dóseis) que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola
Espírito ".(15) nossa" ( I I Ts 2.15), e lhes ordena em nome do Senhor Jesus Cristo
A relação entre o conceito escatológico de regeneração e o batis- a que se afastem de todos os que não andam segundo a parádosis
mo cristão é bastante óbvia, considerando que o batismo é o sacra- recebida por meio dele e dos seus companheiros de trabalho ( I I Ts
mento do "nascimento do alto", do ingresso no Reino de Deus e na 3.6). Adverte os colossenses contra a tradição dos homens (pará-
esfera da operação do Espírito Santo. É interessante notar que a dosis tôn anthrópon) (Cl 2 . 8 ) , pois êle mesmo já havia experi-
única vez em que ocorre a palavra palinguenesía (além de Mt 19.28) mentado a futilidade de seguir estas mesmas tradições humanas
no NT é num contexto relacionado com o batismo: "Segundo sua denunciadas pelo Senhor Jesus (Gl 1.14; Mc 7.8). Dá graças a
misericórdia, êle nos salvou mediante o lavar regenerador (dià Deus porque os romanos tornaram-se obedientes "de coração à for-
loutrôu palingtienesías) e renovador (anakainóseos) do Espírito
ma de doutrina (typos didachés) a que fostes entregues (paredó-
Santo, que êle derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus thete)" (Rm 6.17) ; São Paulo admite que a Igreja, que êle não
Cristo, nosso Salvador. A fim de que, justificados por graça, nos fundara, tinha sido instruída num só catecismo ou typos didachés
tornemos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna" (Tt universal.
3.5-7). Fé, arrependimento e regeneração são temas relacionados Passada a época de São Paulo, e desaparecidas as grandes au-
toridades sobre a tradição oral, ensinos estranhos começaram a
surgir entre inovadores heréticos, que forçaram a Igreja a se apegar
(14) Devo esta sugestão ao D r . R . P. C. Ha.ison
(15) Livre de Oração C o m u m , Coleta d o d i a de Natal.
cada vez mais na conservação do "depósito" (parathéke) apostólico
original. Esta palavra ocorre três vezes nas Epístolas Pastorais
(1 Tm 6.20; I I Tm 1.12,14), não sendo encontrada em outras
porções do NT. Os sucessores dos apóstolos tinham o dever im-
prescindível, na direção da Igreja, de guardar "o bom depósito"
(kalén parathéken) através do poder do Espírito que habita em nós
( I I Tm 1.14). Não nos surpreende encontrar na literatura sobrevi-
vente da era subapostólica a preocupação com a necessidade de lutar
"pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos*' (tê hápacs
paradothéise tôis hagiois pístei) (Jd 3 ) . Em dias tão difíceis para ¡I
os cristãos, a lembrança de que haviam feito a profissão de fé batis-
mal animava-os, assim como Timóteo, lembrado de que havia con-
fessado a boa confissão (homológuesas tèn kalèn homologían) pe-
rante muitas testemunhas: Cristo também testemunhara (marty- CONHECIMENTO E REVELAÇÃO
résantos) a boa confissão diante de Pôncio Pilatos no seu batismo
de morte ( I Tm 6.12 s.).< > É provável que nos primeiros dias da
16
vida da Igreja o "credo" professado pelos candidatos ao batismo Os hebreus não tinham o mesmo otimismo dos gregos sobre as
"perante muitas testemunhas" (i.e., toda a igreja local) não pas- possibilidades humanas de conhecer a realidade última. Os filósofos
sasse de uma fórmula pequena e simples como "Jesus é Senhor" ou gregos não duvidavam da capacidade dos que se entregavam ao bios
"o Messias Jesus é Filho de Deus" (cf. At 8.37; 16.31; Rm 10.9 theoretikós com a finalidade de compreender a verdade (alétheia)
s.; I Co 12.3; Hb 4.14, que parece citar uma homologh batismal, ou o ser último (tó óntos ón) na sua essência pura e imutável. Co-
"Jesus o Filho de Deus"; I Jo 4.15). É possível que I Tm 3.16 seja nhecer o que é constitui a mais alta conquista humana; por meio
a reminiscência de um hino-credal de batismo. Diante da multipli- deste conhecimento o homem participa da natureza do que contem-
cação desconcertante de mestres e seitas que negavam ou contradi- pla e, conseqüentemente, da qualidade do eterno. Este conhecimento,
ziam elementos do catecismo universal ou tradição da Igreja, as fór- que é uma forma d'e ver (theoría), constitui o bem supremo do
mulas credais elementares foram aumentadas com o único objetivo homem. O pensamento hebraico desconhece completamente esta
de excluir o ensino falso, e foi assim que surgiram os credos batis- visão otimista da possibilidade do conhecimento humano da realidade.
mais mais elaborados. Assim, durante o segundo século e até mesmo
Para os hebreus o conhecimento de Deus não é adquirido pela con-
depois, estabilizaram-se formas tais como o Antigo Credo Romano
ou a confissão que nós conhecemos hoje como o Credo Apostólico.< 17)
templação do seu ser e dos seus atributos, mas peia obediência aos
seus mandamentos, e no AT nada encontramos que nos leve à visão
"teórica" ou mesmo "mística" de Deus. A contemplação da forma
eterna e imutável do Bem ou do Ser em si mesmo não faz parte da
compreensão bíblica do conhecimento de Deus; este vem apenas
por meio da obediência real à vontade concreta e particular de Deus
no momento vivo da decisão que se chama "agora". Os profetas de
Israel possuíam, de fato, conhecimento de Deus, mas não como
resultado de visão mística ou de especulação filosófica; ganharam-no
pela obediência à vontade divina nas crises da história de sua nação.
Veio-lhes pelo "ouvir" e não pelo "ver".
ou ao cristianismo: poderia, isto sim, iniciar-se num dos muitos diosos que tão facilmente encontram influências gnósticas operando
cultos de mistérios. Notemos, porém, que quando estudiosos como no NT argumentam que o começo deste tipo de pensamento já deve-
Bultmann descrevem a doutrina gnóstica, as "evidências" do pri- ria estar razoavelmente bem definido no primeiro século; então pro-
meiro século a que recorrem são do próprio NT. Considerando que curam evidências no NT, e desta maneira incorrem no perigo de
o N T está aberto a diversas interpretações, este procedimento tor- interpretar escritos primitivos através de escritos posteriores.
na-se bastante contestável; se não houver evidência real da existência
de "gnosticismo" desenvolvido já no primeiro século, fora do NT,
então, dificilmente poderemos usar o NT para este propósito. Poder- O CONHECIMENTO DE DEUS NO NOVO TESTAMENTO
se-ia dizer, apenas, que certas noções estavam "no ar", durante a Não encontramos nos Evangelhos Sinóticos muito material qus
última parte do primeiro século, e que, subseqüentemente, foram nos leve diretamente ao tema do conhecimento de Deus pelo homem;
cristalizadas nas doutrinas das seitas gnósticas, conhecidas hoje por mas há um dito atribuído a Jesus que é da máxima importância.
meio de escritores como Irineu, no segundo século. Todas as outras porções do NT que tratam deste assunto podem ser
Na época do NT o mundo antigo sofrera grande malogro. consideradas comentários deste texto. É o versículo 27 do capítulo
Desaparecera o otimismo dos filósofos clássicos a respeito do poder 11 de São Mateus ( = Lc 10.22), que pode muito bem ser definido
da mente humana, de contemplar a verdade eterna e manter comu- como um raio joanino nos céus sinóticos: "Tudo me foi entregue
nhão com o Reino ideal; o cepticismo e o relativismo da filosofia por meu Pai. Ninguém conhece o Filho senão o Pai; e ninguém
posterior, combinados com a insidiosa expansão de certos tipos de conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser reve-
crenças orientais, notavelmente de cultos mágicos e misteriosos, lar". Bultmann acha que "este versículo se nos apresenta com lin-
haviam destronado o intelecto filosófico e exaltado a crendice. A guagem gnóstica" e que, portanto, Jesus não teria proferido palavras
religião "estabelecida" dos antigos deuses do Monte Olimpo não era dessa natureza.' ' Este versículo, porém, pode claramente ser enten-
5
mais uma realidade viva no coração do povo, mas mero cerimonia- dido na perspectiva hebraica de "conhecimento", em perfeita con-
lismo exterior para as celebrações do Estado; o "não conformismo" sonância com o ensino do NT. Vemos neste caso um exemplo fla-
florescente dos cultos de mistérios oferecia aos iniciados o aprendi- grante de como, não obstante a existência de interpretação bíblica
zado secreto necessário à salvação e lhes conferia poderes sobrena- perfeitamente exeqüível, é possível encontrar motivos gnósticos
turais. Embora a verdade última fosse considerada inacessível
(2>
quando os quisermos achar. Dificilmente saberemos se este dito (no
à razão do homem, sem qualquer auxílio, os cultos de mistérios afir- original aramaico) foi de fato pronunciado por Jesus, na forma em
mavam revelá-la aos seus participantes; deus concede a gnose na que o conhecemos; sua importância está em resumir a compreensão
visão extática ou mística, e o iniciado é renascido através da opera- que a Igreja apostólica tinha dos ensinos de Jesus sobre sua relação
ção mágica da palavra regeneradora (lógos palinguenesías). Esta com Deus e as conseqüências desse fato para as relações da huma-
gnose divinamente comunicada parece ter sido, de fato, mistura de nidade em geral com Éle.< ' Se, como esperamos demonstrar,")
6
especulação cosmológica e mitologia (cf. pseudónymos gnósis de Jesus se considera o Filho Messiânico de Deus, nas linhas do pensa-
I Tm 6.20). Possuir gnose é ter poder, pois é o dynamis divino que mento hebraico tradicional ( e . g . SI 2.7; I I Sm 7.14; Ex 4.22 s.,
torna o homem pneumatikós, participante da natureza divina e, etc.), é nessa qualidade que todas as coisas lhe são entregues. O
assim, imortal. A versão mais intelectualizada deste tipo de mis- próprio Jesus toma o lugar do antigo Israel na qualidade de Filho
tério em forma de crença religiosa-filosófica tornou-se a expressão de Deus. Ninguém conhece o Filho senão o Pai, da mesma forma
padronizada do paganismo superior do segundo e terceiro séculos; como ninguém "conheceu" Israel senão Javé (Am 3.2, etc.) ; assim
49
ÇP!Vf!IR1 A D i n r»r5TV!f»r»r»r»i n
também sou conhecido" (I Co 13.12). Tanto o A T como o NT
coisa, com efeito não aprendeu ainda como convém saber. Mas se
descrevem o dia do Senhor como de perfeito conhecimento.
alguém ama a Deus, esse é conhecido por êle" ( I Co 8.1-3). Sig-
nifica que o poder salvador não é gnose, mas amor. O amor nos
fala do sentido real do conhecimento; não temos direito de nos van- REVELAÇÃO GERAL A TODA A HUMANIDADE
gloriar de nosso conhecimento, pois o verdadeiro não é o que temos Podemos deduzir de passagens como Gl 4.8 s. que São Paulo
de Deus, mas o que Deus tem de nós. Quando falamos em conhe- considerava os gentios ignorantes do verdadeiro Deus até o rece-
cimento verdadeiro ou salvador tudo é de Deus e nada é nosso; fora bimento do Evangelho de Cristo. E, como os profetas do AT,
deste tipo de sabedoria que Paulo preferia chamar cie o.gápe, por culpa-os. O conhecimento que deveriam ter de Deus fora obscure-
ser uma relação pessoal com Deus, toda a gnose das academias e cido por sua pecaminosidade e especialmente pela idolatria (Rm
seitas reduziam-se a nada. Mesmo os judeus não tinham ocasião 1.18-32). Parece que São Paulo aceitava o ponto de vista contem-
de se gloriar da posse da "forma da gnose e da verdade na lei" porâneo do judaísmo rabínico, o de que certas exigências éticas
(Rm 2.20), porque tal conhecimento, muito longe de salvá-los, era eram obrigatórias para todos os homens, inclusive os gentios. Este
de fato sua condenação (Rm 2.17-29). tipo de pensamento assimilara certas idéias gregas que andavam
O problema da gnose é tratado por São Paulo em sua verda- "pelo ar", tais como a noção estóica de uma lei moral universal ou
deira perspectiva bíblica, quando considera de primeira importân- lei da natureza. Esta já se encontrava, por exemplo, em Sabedoria
cia o conhecimento que Deus tem de nós e não o que poderíamos 13.1-9, que vai ser base do pensamento de Paulo em Rm 1.18-32.
ter a respeito dele como base de nossa salvação. Nós amamos a É interessante notar que não existe palavra hebraica para "natu-
Deus somente porque êle "nos conhece" ( I Co 8.3), significando reza", e que esta idéia é totalmente estranha ao A T ; contudo, no
na linguagem bíblica que êle nos chama, entra em relação pessoal primeiro século A. D. um discípulo da escola de Gamaliel é capaz
conosco, encarrega-nos de realizar a sua obra, etc. Não somos de escrever esta sentença: "Não vos ensina a própria natureza
levados ao conhecimento de Deus por causa de nossa habilidade ou (physis auté) ser desonroso para o homem usar cabelo comprido?"
mérito; assim, Paulo escreve aos Gálatas: "Outrora, porém, não ( I Co 11.14).(12) Os rabinos haviam realmente formulado uma dou-
conhecendo a Deus, servíeis a deuses que por natureza não o são trina do conhecimento universal de Deus, com suas características
(i.e., os demônios ou divindades pagãs) ; mas agora que conheceis próprias. (13) Desde os dias de Adão tem havido revelação, ou no
a Deus (nyn dé gnóntes Theón), ou antes sendo conhecidos por Deus dizer de São Paulo, em Rm 1.20, "desde o princípio do mundo",
(mâllon dé gnosthéntes hypó Thcôu), como estais voltando outra renovada nos dias de Noé, quando a história recomeçou depois do
v e z . . . ? " (Gl 4.8 s.)- Os convertidos procedentes do paganismo Dilúvio (Gn 9.1-7). Os "mandamentos relacionados com Noé"
conheciam o verdadeiro Deus por meio da pregação da palavra de eram considerados válidos para toda a humanidade, incluindo injun-
Cristo, possível somente porque Deus em seu amor transbordante ções tais como não adorar ídolos, não blasfemar, estabelecer a jus-
os "conhecera" em primeiro lugar. Existe, então, para todos os tiça, não matar, não cometer adultério, não roubar e assim por
que respondem à palavra de Deus, em Cristo, um verdadeiro conhe- diante — mas não havia forma fixa. É bem provável que os "decre-
cimento de Deus que lhes é suficiente, embora não seja ainda per- tos apostólicos", publicados pelo Concílio de Jerusalém (At 15.20,
feito e final. Nesta vida só temos conhecimento parcial ( I Co 13.9), 29), pretendiam ser a versão cristã deste código noeense: embora
pela fé, não pela vista. O que temos da mente de Cristo, através da os cristãos gentios estivessem dispensados da observância meti-
fé, é suficiente para a nossa orientação diária ( I Co 2.16). Mesmo culosa da lei de Moisés, deveriam guardar a lei moral universal;
agora já temos bastante luz, "espírito de sabedoria e de revelação esta sugestão, pelo menos, explica uma passagem muito controver-
no pleno conhecimento dele, iluminados os olhos do vosso coração, tida, embora ofereça suas dificuldades. Os rabinos judeus sabiam
para saberdes.. . " (Ef 1.17 s . ) . Aqui novamente temos uma muito bem que os gentios reconheciam certos padrões éticos, con-
metáfora neotestamentária — o conhecimento é a visão dos olhos quanto nem sempre vivessem segundo eles; e instintivamente per-
do coração, ou seja, da fé; é o único tipo de conhecimento que cebiam que tal consciência moral só poderia ter vindo, em última
podemos ter no presente século. É parcial, per specidum, e desapa- análise, do Deus da retidão, cuja revelação especial havia sido dada
recerá no dia final da revelação quando "então conhecerei como na Tora de Moisés. Assim, São Paulo reconhece, em Rm 2.14 s.,
caráter velado de seu ser e de seus caminhos testemunhados no NT, O NT transmite, de maneiras diversas, o sentido do profundo
seja igual aos "mistérios" das religiões greco-orientais. Mas é, pelo mistério da revelação, mesmo sem mencionar a palavra mystérion. O
contrário, a continuação e realização no NT da antiga consciência caráter oculto da verdade e sua inacessibilidade, sem o concurso
hebraica do mistério profundo do ser de Deus e da sua inacessibili- da fé, estão implícitos através de suas páginas. Temos, assim, o
dade às parcas capacidades de todas as inteligências criadas. mistério da pessoa de Cristo, o mistério do Reino de Deus, o mis-
tério do plano divino da salvação. Na Bíblia mistério não é a mesma
coisa que segredo. Não deixa de ser mistério quando se revela; o
(19) Cf. J . B . L i g h t í o o t s o b r e C l 1.27 ( S t . Paul's Epistles to the Colossians segredo, sim, desaparece. Como já vimos, não poderíamos empregar
and Philemon, 3." ed., 1879, 168.': "mystérion é encontrada quase sempre em cone-
x ã o c o m p a l a v r a s q u e d e n o t a m r e v e l a ç ã o o u p u b l i c a ç ã o ; e . g . , apoJcalj/pteín, opofcá-
apropriadamente o verbo "revelar" no sentido de transmitir infor-
lypsis, R m 16.25; E f 3.3,5; I I T s 2.7; gnorídzein, R m . 16.26; E f 1.9; 3.3,10; 6.19; mações cotidianas, comuns (cf. as costumeiras manchetes de jor-
phanerôun, C l 4 . 3 ; R m 16.26; I T m 3.16; lalêin, C l 4 . 3 ; I C o 2.7; 14.2; léguein, 1 nais: "O representante da agência estrangeira revelou q u e . . . " ) .
C o 15.51".
(20) V e r W . Stãhlin, The Mystery of God, t r a d u ç ã o i n g l e s a , 1937, 14; G . S.
H e n d r y , TWBB, 108. (21) Ver infra, 94-7.
Quando o mistério da pessoa de Cristo é revelado aos discípulos à visão").(23) As próprias palavras das Escrituras também são
(cf. Mt 16.17) não se torna menos misterioso do que era. Qualquer véus; na metáfora de Lutero, elas são lençóis humanos nos quais
segredo, embora oculto no presente, pode "tornar-se público", de Cristo está deitado. Todas as formas da revelação são necessaria-
um momento para outro, perdendo, assim, seu caráter próprio. Mas mente ocultações da verdade e sinais da infinita condescendência
o mistério, não; jamais fica aberto à inspeção pública, mesmo de Deus, que'acomoda sua majestade divina à capacidade de nossa
quando pregado dos telhados. Para ilustrar: é provável que Judas fraqueza humana.
tivesse revelado (no sentido jornalístico do termo) ao Sumo-Saeer-
dote o segredo do messianismo de Jesus; mas o seu mistério não o
revelou nem o poderia, ignorando-o completamente o Sumo-Sacer-
dote. A inscrição de Pilatos anunciava a todos que Jesus era o rei
dos judeus; mas o mistério interior do reinado de Jesus jamais será
desvendado por meio de um cartaz de anúncios públicos. O mistério
da pessoa de Cristo não é, de modo algum, idêntico ao assim cha-
mado "segredo messiânico". Os escritores do NT, como já vimos,
conscientemente ou não, reservam a palavra apokalyptein para a
manifestação do mistério e não no sentido jornalístico de publicar
notícias e informações.
(22) Ver A. L. Lilley, Religion a n d Revelation, 1S32, 49. (23) São Tomás de A q u i n o , L a u d a , Sion, Salvalorem.
III
tação de Deus; há enorme abismo entre dizer que Cristo é reflexo o estágio inicial da realização do plano divino que logo haveria de
de Deus ou luz de Deus e afirmar que a luz é um aspecto de
(9)
culminar na aurora do dia da luz. São Paulo ensina a mesma dou-
Deus; aqui está, em resumo, a diferença entre o cristianismo apos- trina: "Deus que disse: de trevas resplandecerá luz — êle mesmo
tólico e o "antigo paganismo". Os escritores no NT pregam o Evan- resplandeceu em nossos corações, para iluminação (photismós) do
gelho de Cristo e não uma religião metafísica da luz. O conceito de conhecimento da dócsa de Deus na face de Cristo" ( I I Co 4.6). A
luz no NT é basicamente escatológico e, talvez, possa ser resumido Igreja cristã — comunidade escatológica dos últimos dias — con-
nas palavras de São João: "as trevas se vão dissipando e a verda- siste de todos os que têm sido chamados das trevas para a maravi-
deira luz já brilha" ( I Jo 2.8; cf. Rm 13.12). Os últimos profetas lhosa luz de Deus ( I Pe 2 . 9 ) , libertados do poder das trevas (Cl
do AT ensinaram que o fim seria igual ao princípio; a luz feita no 1.13), que já caminham na luz do tempo final (Ef 5.8 s.; cf.
primeiro dia da criação (Gn 1.3) haveria de brilhar em seu com- Jo 11.9; 12.35 s.; I Ts 5.4 s.; I Jo 1.7). Por meio do batismo
pleto esplendor original, quando se cumprissem as últimas coisas. abandonaram as obras das trevas, vestiram as armaduras da luz
Zc 14.6 s. parece esposar este conceito apocalíptico: "naquele dia" (Rm 13.12) e foram-lhes iluminados os olhos do coração (Ef 1.18).
não haverá mais dia e noite como os conhecemos; será um dia sin- Tornaram-se participantes dos santos na luz (Cl 1.12) e, pela fé,
gular conhecido do Senhor como interminável: "haverá luz à tarde". estando "na luz" ( I Jo 2.10), aguardam o dia da revelação quando
Idéias semelhantes podem ser encontradas em Is 24.23; 30.26; o Senhor vier para trazer "à plena luz as coisas ocultas das trevas"
58.8,10; 60.1-3. As Escrituras canónicas hebraicas referem-se ( I Co 4.5). Cabe-lhes a tarefa de dar testemunho escatológico,
mais claramente à luz arquetípica da nova criação dos últimos dias, enquanto não chega a consumação final, trazendo as nações à luz
em Is 60.19: como no princípio, antes da criação do sol e da lua, (At 13.47; 26.17 s.). A tarefa principal da Igreja missionária é,
a luz da presença divina irradia todo o brilho necessário: "Nunca então, a realidade escatológica de Cristo como "luz de revelação aos
mais te servirá o sol para luz do dia, nem com o seu resplendor a gentios" (Lc 2.32; cf. Is 42.6; 49.6; 52.10; 60.3) e como tó phôs
lua te alumiará; mas o Senhor será a tua luz perpétua, e o teu Deus tôu kósmou (Jo 8.12; cf. 9.5; 11.9; 12.46); cabe ao novo Israel
a tua glória". II (4) Esdras 7.39-42 mostra-nos como esta idéia a missão recusada pelo antigo. "O dia" está próximo e temos diante
foi retomada pelo judaísmo posterior: "Este dia não tem sol, nem de nós a evidência do cumprimento da profecia das Escrituras: " e
lua ou estrelas... nem trevas, nem tarde, nem manhã... nem meio- fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar
dia, nem noite, nem amanhecer, nem brilho, nem esplendor, nem tenebroso, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em vossos
luz, a não ser o esplendor da glória do Altíssimo" (nisi solummodo corações" ( I I Pe 1.19; cf. Mq 4.2; Lc 1.78; Ap 2.28; 22.16).
splendorem claritatis Altissimi — talvez, como já foi sugerido, apáu-
A metáfora da luz empregada no N T é, então, judaica e estato-
gasma dócses hypístou).
lógica — especialmente nos escritos joaninos. O AT ensinara que a
É neste contexto geral que os versículos sobre luz no N T devem palavra de Deus é luz ou que dá luz (SI 119.105; cf. Gn 1.3), e os
ser lidos. A abertura do último ato divino da história começa com rabinos identificaram Torá com a luz (baseados em Pv 6.23: " O
a vinda de Jesus Cristo e sua Igreja: "as trevas se vão dissipando mandamento é lâmpada e a instrução luz"; cf. Test. Levi 14.4).
e a verdadeira luz já brilha" ( I Jo 2.8). A verdadeira luz (tó fôs São João diz que não é a Torá a luz do mundo, como ensinavam os
rabinos, mas Cristo, o lógos-sophía de Deus (cf. Hb 1.3; Sabedoria
7.26). Já brilha a verdadeira luz, que é da criação e do fim: a ful-
(8) B a r r e t t , G S J , 277.
(9) Cf. H b 1.3; hòs òn apáugasma tês dócses . . . a u t õ u . A p a l a v r a apáugasma,
u m hápax legómenon n o N T , n ã o o c o r r e n a s t r a d u ç õ e s dos L X X d a s E s c r i t u r a s
c a n ó n i c a s h e b r a i c a s , m a s a p a r e c e e m S a b e d o r i a 7.26, citado p e l o autor d a E p i s t o l a (10) V e r Dodd, I F G , 204 n.
aos H e b r e u s ; sophía é c o n s i d e r a d a apáugasma fotos aidíou. Esta citação m o s t r a (11) O verbo katalambánein ( e m Jo 1.5: he skotía auto ou katelaon), que
q u e o Auct. Heb. aceita a identificação de C r i s t o c o m a p r e e x i s t e n t e S a b e d o r i a d e significa "apreender", inclui também o sentido de " v e n c e r " e "entender ; 1
estão
D e u s , e m b o r a ( c o m o o q u a r t o e v a n g e l i s t a ) n ã o u s e sophía. ambos subentendidos aqui. V e r Barrett, G S J , 132.
gurante estrela matutina, anunciadora da aurora do dia do Senhor, Gl 3.21; I Pe 3.18).< > Cumprem-se em Cristo as escrituras pro-
12
já foi vista por ocasião do nascimento de Jesus (cf. Ap 22.16). Os féticas a respeito dos rios purificadores plenos de águas vivas: "Le-
escritos dos profetas a respeito dos últimos dias começam a se cum- vantou-se Jesus e exclamou: Se alguém tem sede, venha a mim e
prir: o sol da justiça nasceu trazendo salvação em suas asas (Ml beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura, do seu interior
4.2). O vidente vislumbra em sua visão que as últimas coisas são fluirão rios de água viva. Isto êle disse com respeito ao Espírito
como as primeiras e a nova criação está banhada da luz arquetípica que haviam de receber os que nele cressem" (Jo 7.37-39). Estas
da presença de Deus: " A cidade não precisa nem do sol, nem da lua, palavras misteriosas significam que as águas vivas dos rios purifi-
para lhe darem claridade, pois a glória de Deus a iluminou, e o cadores procedem da Igreja, a nova Jerusalém, o corpo, cheio do
Cordeiro é a sua lâmpada" (Ap 21.23) ; e: "Então já não haverá Espírito, dos crentes em Cristo. Assim também acontece na visão
noite, nem precisam eles de luz de candeia, nem da luz do sol, por- do profeta em Ap 22.1 s., quando todas as coisas se cumprem na
que o Senhor Deus brilhará sobre eles" (Ap 22.5). O plano univer- nova Jerusalém: o rio da água da vida, brilhante como cristal, sai
sal de Deus realiza-se e as nações passam a andar na luz do paraíso do trono de Deus e do Cordeiro, no meio da praça da cidade celes-
(Ap 21.24). tial. A árvore da vida está novamente à margem do rio do paraíso,
da mesma forma como já esteve à margem do rio que saía do Éden
(Gn 2.9 s.), produzindo seus doze frutos e as folhas "para a cura
A VIDA DA ERA VINDOURA dos povos", como Ezequiel há muito tempo já previra em sua visão
(Ez 47.12; cf. também Ap 2.7; 22.14, 19). O homem, excluído que
Na Bíblia só Deus é a fonte da vida; é "o Deus vivo", em con- fora da fonte divina da vida, em virtude do seu pecado (Gn 3.24,
traste com os deuses mortos e inertes do paganismo (e.g., Dt 5.26; a espada refulgente para guardar o caminho da árvore da vida),
I Sm 17.26,36; SI 42.2; 84.2, etc; cf. Mt 16.16; 26.63, etc. — esta é agora, pelo Espírito vivificante de Cristo, restaurado ao estado
expressão ocorre cerca de quatorze vezes no N T ) . A metáfora do original de comunhão com o Deus vivo para quem fora criado pela
"poço vivo" ou das "águas vivas" (Jr 2.13; 17.13; Jo 4.10) é primeira vez e agora recriado.
natural numa terra de clima quente e seco (Ct 4.15; SI 42.1 s.)
onde Deus também é considerado a fonte da vida (SI 36.9). Poste- O conceito de vida que o NT toma do judaísmo posterior é
riormente, o conceito de "vida" adquiriu no judaísmo caráter nitida- então, puramente escatológico. O Espírito de Deus insuflará vida
mente escatológico representando uma qualidade da era vindoura; na nova criação dos últimos dias como já o fizera na primeira (Gn
nos últimos escritos do AT podemos encontrar a imagem do rio puri- 2.7; cf. SI 104.29 s.; Jó 33.4) ; cf. Ez 37.9 s. e esp. v. 14: "Porei
ficador, ou das águas vivas, que correrá de Jesusalém na era mes- em vós o meu Espírito, e vivereis". O judaísmo fariseu entendia
siânica (Ez 47.1.12; Zc 14.8; Jl 3.18; cf. Is. 12.3; 33.21), trazendo que a dádiva do Espírito de vida nos últimos dias estava ligada à
vida ao mundo. São João, em cujos escritos a escatologia judaica ressurreição dos mortos, como em Jo 5.29: "Os que tiverem feito
é adaptada aos fins cristãos com grande habilidade, toma esta idéia o bem, para a ressurreição da vida (eis anástasin dzoés), e os que
e representa Cristo como o cumprimento da promessa das "águas tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo". Em Dn
vivas" (Jo 4.10) nos últimos dias: "a água que eu lhe der será 12.12 aparece a idéia da ressurreição geral pela primeira vez, com
nele uma fonte a jorrar para a vida eterna" (Jo 4.14). Os rabinos clareza, na literatura judaica: "Muitos dos que dormem no pó da
acreditavam que a Tora, ou as Escrituras que a continham, era terra ressuscitarão (anastésontai), uns para a dzoé aiónios, e outros
veículo de vida: "Examinais as Escrituras porque julgais ter nelas para vergonha e horror eternos (aischyne aiónios)". Ocorre aqui
a vida eterna (dzoé aiónios)" (Jo 5.39) ; " A Torá é grande porque pela primeira vez a expressão dzoé aiónios nas traduções gregas do
concede, a todos os que a praticam, vida nesta e na era vindoura"
(Pirque Oboth 6.7). Mas a vida está no Verbo (Jo 1.4) feito
carne em Cristo e não nas Escrituras ou na Torá — que é a vida (12) V e r e m o s no Capitulo Quinto que o N T não distingue bem o Cristo res-
s u r r e t o d o E s p i r i t o S a n t o (infra. 122). A r e l i g i ã o b í b l i c a f i r m e m e n t e d e c l a r a q u e
superabundante de Deus, da era vindoura (dzoé aiónios), trazida a s o m e n t e D e u s p o d e c o n f e r i r vida aos m o r t o s , n ã o i m p o r t a n d o m u i t o se C r i s t o o u
nós por Cristo, que é dzoé (Jo 3.16; 10.10; 20.31), e cuja vida é a o E s p í r i t o S a n t o g a n h e o título d e ho dzoopóion, visto q u e c m q u a l q u e r caso a
vida de Deus: "Porque assim como o Pai tem vida em si mesmo, o b r a seria d o p r ó p r i o D e u s . E m J o 5.21, R m 4.17, H b 11.19 e t c . D e u s d á v i d a
também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo" (Jo 5.26). Êle aos m o r t o s ; c m J o 5.21 (cf. 6.33,51 e t c . ) , 1 C o 15.22, 45. C r i s t o é o d o a d o r d a
v i d a ; e e m J o 6.63 ( í ò pnéumá estin íô d í o o p o i o o i m ) , R m 8.2, 10 s., II C o 3 . 6
é o pão da vida (6.51). É o doador da vida que ao concedê-la ressus- ( l ò pnêuma dzoopoiêi) é o Espírito que dá a vida. O cristianismo do N T nega,
cita os mortos (5.21; 6.33; 11.25 s.), identificado com o Espírito isso s i m , a p r e t e n s ã o d o j u d a í s m o r a b í n i c o ( e . g . , J o 5 . 3 9 ) d e q u e a Torá s e j a a
vivificador (Jo 6.63; cf. I Co 15.22,45; II Co 3.6; Rm 8.2,11; d o a d o r a d a v i d a : nomos ho dynámenos dzoopoiêsai ( G l 3.21).
AT, dando-nos segura indicação do que queriam dizer os judeus de (4) Esdras 7.12 s.; 8.52-54). Em todo o NT dzoé aiónios significa
língua grega. É frase inteiramente judaica: aparece só uma vez "vida do mundo vindouro". É sinônimo de he basiléia tôu Theôu.
Assim, na discussão sobre as condições para entrar no reino de Deus
em Filo (de Fuga 78) e não se encontra nos escritores pagãos reli-
o jovem rico pergunta em Mc 10.17: "Bom Mestre, que farei para
giosos ou filósofos, a não ser muito tempo depois do NT.< ' É 13
do último ato do drama da história do mundo já estão sendo repre- podemos, assim, manipular esta idéia, se o desejarmos, mas seria
sentadas, suas manifestações preliminares já se tornam visíveis aos grave erro imaginar que os escritores do NT também tenham agido
olhos da fé. O A T há muito tempo já havia demitizado a noção de desta maneira, d ) Nem é possível encontrar neste assunto diferen-
8
um deus ou deuses que demonstram sua ira por meio de tempestades, ças entre Paulo (ou os demais escritores do N T ) e Jesus.d ' É 9
trovões e outros fenômenos naturais, concebendo a ira de Javé em verdade que a palavra orgué só aparece nos lábios de Jesus em Lc
relação íntima com a idéia da aliança. A ira de Deus desce sobre 21.23 (mas não nas passagens pars., Mc 13.19; Mt 24.21, que
os israelitas que violam a aliança (e.g., Lv 10.6; Nm 16.46; 25.3; registram thlipsis), mas êle se refere muitas vezes ao juízo vin-
I Cr 27.24; SI 78.31, 49,59, etc.) e sobre os gentios que afligem o douro empregando a conhecida figura apocalíptica, he heméra krí-
povo da aliança (e.g., SI 79.6 s.; Jr 50.11-18; Ez 38.18 s.). Com seos (Mt 10.15; 11.22,24; 12.36, 41 s.) e a expressão rabínica,
o correr do tempo e com a impressão de que o julgamento de Deus he krísis tês gueénnes (Mt 23.33).
sobre os opressores de Israel era indefinidamente adiado, a espe-
rada aplicação da ira divina concentrou-se aos poucos no Dia do Jesus, sem dúvida, ensinou a terrível realidade do juízo final
Senhor, o Dia do Juízo (Is 2.10-22; Jr 30.7 s.; Jl 3.12-17; Ob 8.11; (e.g. Mt 5.21 s.; Mc 9.43-48, e t c ) , mas podemos explicar o signi-
Sf 3.8). Nos dias de nosso Senhor os rabinos usavam a expressão ficado de sua linguagem parabólica e pictórica. Considera-se êle
"a ira" como sinônimo de juízo final dos gentios e dos judeus após- relacionado com orgué e krísis do mesmo modo como com basiléia,
tatas (cf. I I (4) Esdras 7.36 s., "a fornalha da Gehenna").d5) E
João Batista revivendo o antigo ensino profético de que Israel e não
(16) Sanday e Headlam, Romans (ICC), 1895, R m 1.18, ad loc; G. Stãhlin,
tanto os gentios deveriam temer o dia do Senhor (cf. Am 3.2; 5.18; TWNT, V . 430 s.
Jl 2.1 s.), pergunta desdenhosamente: "Quem vos induziu a fugir (17) C. H. Dodd, Romans (The Moffatt New Testament Commentary),
da ira vindoura?" (Mt 3.7 = Lc 3.7). No NT orgué e essencial- 1932, 23.
mente orgué méllousa ou orgué erchoméne ( I Ts 1.10), embora já (18) C o n t u d o , d e p o i s q u e foi escrito este capitulo, s u r g i u s o b r e o assunto o
ótimo e s t u d o d e A . T . H a n s o n , The Wrath of the L a m b (1957), a d v o g a n d o c o m f i r -
esteja presente no mundo sua ação oculta. Podemos então correta-
m e z a o p o n t o d e vista " i m p e s s o a l " . P o r outro lado, C . K . B a r r e t t n o seu r e -
cente c o m e n t á r i o s o b r e R o m a n o s (1957) a f i r m a q u e " é d u v i d o s o se este p o n t o
de vista v a i p e r m a n e c e r " ( 3 3 ) .
(15) S t r a c k - B i l l . , I, 115 s. (19) Dodd, ibid.
dzoé ou dócsa. É portador da ira divina quando, por exemplo, pro- alcançar este propósito (Rm 13. 4 s.), e o poder de César é um dos
fetiza a ruína de Jerusalém e o julgamento divino sobre o judaísmo, seus principais instrumentos; a fúria destruidora de Roma e das na-
que é figueira sem fruto (Mc 11.14,20; Lc 13.34 s.; 19.41-44; ções é um dos efeitos assinaladores da operação da orgué divina na
cf. Mc 12. 9 s.). Traz consigo os " a i s " do Messias, pois estas coisas aproximação do fim (Ap 11.18; 14.10; cf. Mc 13.7 s.). A destrui-
devem acontecer antes que sobrevenham o fim (Mc 13. 5-27). O ção de Jerusalém no ano 70 A.D. é considerada muito especialmen-
Messias exercerá inevitavelmente o julgamento de Deus (Mt 25. te como manifestação do julgamento de Deus sobre os judeus in-
31 s.; Jo 5. 22, 30; 8. 16; 9. 39; Rm 14.10; II Co 5.i 10; II Tm 4.1,8; fiéis (Lc 21.23 s.), identificada no pensamento do vidente com "a
I Pe 4.5; Ap 6.10; 19.11), tornando-se impossível a separação da grande cidade" — ora Babilônia, Sodoma, Jerusalém ou Roma —
ira de Deus do caráter e obra de Jesus-Messias. Deus e Cristo são tipificando luxúria, domínio, prazer sensual e orgulho próprio, ob-
um só mesmo no juízo, como o NT e a teologia católica coerentemen- jetos especiais da ira de Deus ( A p 11.8; 14.8, 10; 16.19; 17.1-18.
te afirmam; apenas um determinado tipo de teologia protestante 24). O julgamento de Deus não se mostra apenas nos eventos espe-
tentou contrastar a ira de Deus com a misericórdia de Cristo. Mas taculares da história universal. É um processo sempre presente,
é somente em Ap 6.16 que o N T explicitamente atribui orgué a onde quer que a palavra de Deus seja proclamada; os homens jul-
Cristo no mais puro sentido escatológico; na sua vívida visão dos gam-se, por assim dizer, segundo a aceitação ou rejeição do Evange-
"ais" do fim o profeta adota a terrível expressão "a ira do Cordei- lho (Hb 4.12 s.). Os que praticam o mal já estão julgados ao odiar
r o " / ' Lembremo-nos, contudo, que o NT ensina ser o próprio Cris-
20
a luz (Jo 3.18-20) ; a rejeição da pregação do nome de Cristo tam-
to, no milagre da misericórdia divina, também arauto da orgué divina bém é a rejeição da dzoé, e significa o mesmo que incorrer na ira de
em outro sentido: sobre êle caem as maldições messiânicas' ' e toma 21
Deus (Jo 3.36). Quando aceitamos o Cristo neste dia de oportuni-
sobre si em benefício da humanidade o peso inteiro do juízo de Deus dade antecipamos já o verdadeiro veredicto do "último dia" (Jo 3.18;
de tal modo que a justiça divina não desaparece diante da absolvi- 12.48). Devemos ainda aguardar este veredicto com temor e tremor
ção dos pecadores (Rm 3.24-26). A cruz de Cristo é a manifestação (Rm 2.6), sem abusar da bondade longânima de Deus, desconfiando
A isível da orgué tóu Theóu: é a revelação suprema da ira de Deus
r
de nossos próprios méritos, pondo toda a nossa esperança em Jesus
contra toda maldade e injustiça dos homens (Rm 1.18; cf. II Co que nos livra da ira vindoura ( I Ts 1.10). O julgamento está acon-
5.21; Mc 15.34). O escritor joanino salienta esta verdade a seu tecendo aqui e agora, segundo a afirmação de São João (Jo 3.18 s.) ;
modo. Em suas visões do fim, contempla todos os que haviam ser- São Paulo chama nossa atenção para um exemplo da orgué, descendo
vido ao anti-reino da besta e adorado sua imagem recebendo para sobre certos judeus que se tinham oposto à pregação do Evangelho
beber " o cálice do vinho do furor" da ira de Deus (Ap 16.19; cf. aos gentios em Tessalônica ( I Ts 2.16). O juízo divino também
14.10) ; mas na visão do Fiel e Verdadeiro, o Verbo de Deus, o Rei opera misteriosamente nos sacramentos da Igreja; > a Igreja é (22
dos reis o Senhor dos senhores, que usa muitos diademas e governa aqui na terra o lugar onde se inicia o julgamento divino ( I Pe 4.17).
as nações com vara de ferro, o vidente nota que suas vestes estão O fato de que a orgué escatológica de Deus está assim agindo é
manchadas de sangue — seu próprio sangue: "e pessoalmente pisa i esultado da aproximação das últimas coisas com a vida do Messias
-
o lagar do vinho do furor da ira do Deus Todo-poderoso" (Ap 19. Jesus; como nos diz São João sucintamente: "nyn krísis esti tóu
11-16). A metáfora do lagar pisado ("as vinhas da ira") (cf. 14.20) kósmou tóuto; agora o príncipe deste mundo será expulso" (Jo 12.31;
vem de Is 63.3, quando descreve um conquistador pisando o sangue cf. 16.11). O julgamento, assim como orgué da qual é expressão, é
de seus inimigos; o significado de Ap 19.15 é que Cristo conquis- é uma realidade futura que manifesta seu poder no presente. Os
tou por meio de seu próprio sangue, e a última referência que o NT cristãos devem, portanto, aceitar humildemente as evidências da
faz à orgué divina dá-nos a imagem cristã de Deus como aquele que krísis divina, agindo tanto no mundo como entre si, ( I Pe 5.6),
provê os meios para a propiciação de sua ira (cf. I Jo 4.10). confiando que Deus não os designou para a orgué ( I Ts 5.9) e que
no derradeiro ajuste de contas não haverá condenação (katákrima)
Embora a ira de Deus venha a ser revelada somente nos "últi- para os que estão em Cristo Jesus (Rm 8.1). Ou, como diz São
mos dias" (Rm 2.5), está, não obstante, em ação aqui e agora reali- João: "Nisto é em nós aperfeiçoado o amor, para que no dia do juí-
zando o propósito de Deus. A orgué obra por meio do Estado para zo mantenhamos confiança" ( I Jo 4.17).
Do ponto de vista bíblico a salvação, assim como o julgamento, salvação, encontrado especialmente no Dêutero-Isaías, tem caráter
é conseqüência inevitável da justiça divina. Justiça (em hebraico escatológico e, devido a essa configuração de libertação do êxodo (e
zedheq, nos LXX comumente dikaiosyne) é para os hebreus o cará- da Babilônia) é considerado típico da salvação que Deus realizará
ter fundamental de Deus, enquanto que para os gregos é essencial- nos últimos dias, quando efetivar sua nova criação, o novo céu e a
mente uma virtude natural humana (cf. a "justiça" da República de nova terra (cf. Is 65.17; 66.22). O "dia" desta nova criação será,
Platão, procedente da dikaiosyne inata do homem). ' Para os ,£3
por excelência, o dia da salvação. Toda a carne adorará perante o
hebreus justiça não era viver de acordo com a natureza mais eleva- Senhor (Is 66.23). O esquema da salvação do NT procede do AT,
da, mas fazer a vontade de Deus que se tornara conhecida através tendo sido tipificado na criação original do mundo (considerada co-
da Tora. Tudo o que Deus faz é justo porque, por definição, somente mo ato de salvação das garras do Dragão) e da libertação no Mar
quer a justiça (cf. Gn 18.25), exigindo-a também de seu povo. O Vermelho. O NT afirma que o grande ato da salvação e a nova cria-
justo, díkaios, vive (i.e., prospera) pela fé (no mandamento de ção já aconteceram na morte e ressurreição de Jesus Cristo, embo-
Deus) (Hc 2.4). Mas porque Deus é díkaios até mesmo Israel em ra sua consumação final venha a ser revelada apenas na parousía de
sua rebeldia e pecado será restaurado e salvo. Deus permanece Cristo. Enquanto isso, entre a primeira e a segunda vinda de Cristo,
fiel à aliança e à promessa, embora Israel nem sempre o tenha sido; a Igreja é a comunidade escatológica da salvação (hoi sodzómenoi, os
assim, não abandona seu povo, buscando como apagar suas iniqui- que estão no estado de se salvar, At 2.47; I Co 1.18; II Co 2.15; cf.
dades e justificá-lo, para que todos venham à sua presença como I Co 15.2) ; já é mesmo agora a nova criação, surgindo escatològica-
justos. " . . .mas me deste trabalho com os teus pecados, e me can- mente no presente século, embora seu caráter verdadeiro seja conhe-
saste com as tuas iniquidades. Eu, eu mesmo, sou o que apago as cido somente pela fé ( I I Co 5.17; Gl 6.15). Por esta razão, tanto
tuas transgressões por amor de mim, e dos teus pecados não me nas últimas partes do AT como no NT, "salvação " torna-se sinô-
lembro. Desperta-me a memória (da Aliança) ; entremos juntos em nimo de "redenção". O ato divino da libertação do Egito é consi-
juízo; apresenta as tuas razões, para que possas justificar-te" (Is derado a redenção de Israel, como um escravo que se torna livre;
43.24-36). É por amor dele (isto é, porque não pode negar sua seria o dever do go'el (redentor, parente próximo) para os prisio-
própria natureza, quebrando a aliança) que Deus justificaria Israel neiros. Não temos aqui sugestão alguma de que Deus tenha pago
e seu servo escolhido, Jacó, derramando seu Espírito sobre a semen- a alguém pela redenção de Israel; estamos apenas diante de vívida
te deste (Is 44.2 s.; cf. Dt 9.5; Ez 38.22, 32). A salvação pode metáfora que ressalta o poderoso ato salvador de Deus na história.
ser esperada em Israel não por causa de sua própria retidão mas A salvação do novo povo de Deus pelo Messias é o tema central do
porque Deus é justo: Javé é "Deus justo e salvador" (Is 45.21). NT, retornando inúmeras vezes a metáfora da redenção, embora
A relação de justiça e salvação caracteriza especialmente Is novamente sem qualquer sugestão de que alguém tivesse recebido
40-55. Nos primeiros documentos do AT salvação significava sim- pagamento pelo resgate/ ) 25
plesmente livramento de perigos físicos e da catástrofe nacional (e. Podemos dizer, então, que a profecia do AT, nos seus melhores
g., Jz 15.18; I Sm 11.9, 13, e t c ) . Com o passar do tempo, o termo momentos, enunciou a doutrina da salvação efetuada por meio da
começou a ser aplicado especialmente para designar a grande liber- justiça de Deus apesar da pecaminosidade e tremenda indignidade
tação do Egito no Mar Vermelho (Ex 14.13; 15.2) e, por analogia, de Israel. Temos então uma doutrina de justificação, por meio da
também para a libertação de Babilônia e a volta do exílio (Is 45.17; fidelidade de Deus, apenas, e não através das obras. Significa que,
46. 13; 52.10). Assim como na antiga mitologia hebraica a criação embora Israel tivesse sido infiel à promessa da aliança, Deus não o
era considerada o grande ato divino da salvação (cf. SI 74. 12-14), era, e, movido por sua retidão, encontrou o meio de justificar o povo
também a salvação verificada no êxodo do Egito (ou na volta dos pecador de Israel. Mas este alto conceito da salvação divina não foi
compreendido no judaísmo posterior, sendo substituído pelo sistema
legalista que transformou a religião num tipo de contabilidade que
(23) Cf. G. S c h r e n k . TWNT. E T , Righteousness ( B i b l e K e y W o r d s ) , 1951, p. anotava nossos débitos e créditos para com o Deus justo. Segundo
14, q u e faz r e f e r ê n c i a à R e p . iv, 433 ss. E m b o r a na m i t o l o g i a g r e g a Dike fosse u m a
deusa ( v i n g a d o r a da J u s t i ç a ) , dikaiosyne foi c o n s i d e r a d a p a r t e d a o r d e m n a t u r a l ,
o judaísmo rabínico era díkaios (considerado justo) o homem cujos
como q u a l q u e r outra virtude humana. A Bíblia grega raramente emprega o ter-
m o dike; o c o r r e três v e z e s no N T ( A t 28.4; I I T s 1.9; Jd 7 ) , estando p r e s e n t e
e m todos esses casos o sentido d e justiça v i n g a d o r a . (24) Ainda sobre o assunto ver infra, 203-7.
(25) Sobre redenção v e r a i n d a infra, 217-22.
24.25; I Tm 6.11; Tg 1.20; 3.18; I Pe 3.14; I Jo 3.7,10; Ap
méritos pesassem mais que as transgressões; se fosse muito esfor- 22.11). Dificilmente um escritor como o quarto evangelista empre-
çado poderia aumentar seus pobres e inadequados méritos, recor- garia o termo (somente aparece em Jo 16.8,10) ; mas em I Jo 2.29
rendo à superabundância de merecimentos armazenados por Abraão, está implícito que dikaiosyne é uma qualidade de vida conferida no
Isaque e Jacó, por heróis de Israel e, especialmente, pelos mártires batismo. Somente Cristo é ho díkaios ( I Jo 2.1,29; At 3.14; 7.52;
Macabeus. São João Batista protestou contra o conceito "dos mé- 22.14 — talvez seja título messiânico). Fora das epístolas paulinas,
ritos dos pais": "Não comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos I Pe 2.24 é uma passagem singular, ao associar a vida de justiça
por pai a Abraão" (Mt 3.9; Lc 3.8). A doutrina rabínica ensinava com a morte de Cristo, mas (como Paulo jamais o faz) aplica Is 53
que a salvação vem pelas obras; os atos de caridade, as esmolas e a à paixão de Cristo.
piedade tinham valores de crédito, e se a soma total das boas ações
fosse maior do que a soma das más então seríamos considerados São Paulo concebe a dikaiosyne Theôa, seguindo o pensamento
inocentes no Juízo Final. Quando Jesus reviveu todo o conceito de de Dêutero-Isaías, como o dynamis poderoso e emanante de Deus,
salvação de Isaías, ensinando que esta não dependia da retidão do comparável (digamos) à sophía ou agápe divinos. É conceito abso-
homem, mas da justiça emanante e salvadora de Deus, opôs-se às lutamente escatológico. A justiça divina que surgirá no fim dos
doutrinas clássicas do judaísmo farisaico, entrando em choque com tempos já se manifestou na história. O julgamento e a salvação que
os seus representantes: a exaltação farisaica dos "preceitos dos seriam trazidos nos últimos dias por essa justiça já foram conse-
homens" já havia sido profetizada pelo próprio Isaías (Mc 7.6 s., guidos na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Por esse meio
citando Is 29.13). Em lugar da doutrina da salvação por meio dos todos os que crêem e são batizados em Cristo tornam-se "justifi-
méritos e das obras humanas, Jesus ensinou a justificação dos peca- cados" ou são assim considerados por Deus. Cumprem-se, então, as
dores pela justiça procedente de Deus. É o tema das parábolas do profecias da antiga dispensação. "O Senhor fêz notória a sua sal-
Filho Pródigo (Lc 15.11-32; notar a doutrina farisaica do mérito vação; manifestou a sua justiça perante os olhos das nações" (SI
sustentada pelo irmão mais velho, vers. 25-30), do Fariseu e do 98*2; cf SI 24.5; 71.15 s.). "Mas no Senhor será justificada toda
Publicano (Lc 18.9-14; notar esp. dedikaioménos, v. 1 4 ) ; dos Tra- a descendência de Israel, e nele se gloriará" (Is 45.25). "Assim
balhadores na Vinha (Mt 20.1-16) e da Grande Ceia (Lc 14.16-24). diz o Senhor: Mantende o juízo, e fazei justiça, porque a minha
Está implícito no conceito que tinha de si mesmo como instrumento salvação está prestes a vir, e a minha justiça prestes a manifes-
da salvação divina para os pecadores penitentes: "Não vim chamar tar-se" (Is 56.1; cf. também 46.12 s.; 51.5 s.). Para São Paulo
justos, e sim, pecadores" (Mc 2.17). Transparece em seus atos de estas profecias estão cumpridas no Evangelho de Jesus Cristo, no
cura (o leproso, Mc 1.40-45; o paralítico, Mc 2.1-12, etc.) e em suas qual, diz êle, revela-se a dikaiosyne Theôu, embora no presente
relações com homens e mulheres pecadores (Zaqueu, Lc 19.1-10; século seja conhecida e comunicada somente pela fé (ek písteos eis
a mulher pecadora, Lc 7.36-49). Tanto nas palavras como nas obras pístin) (Rm 1.17; cf. Fp 3.9), esse Evangelho é dynamis Theôu
Jesus proclama-se o Servo-Messias já profetizado por Isaías: "O eis soterían (Rm 1.16). A justiça e a salvação procederam de Deus
meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento (i.e., obediência), na vida de Jesus Cristo.
justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre si"
(Is 53.11).<26) Para São Paulo, a morte de Cristo revela especialmente a jus-
tiça de Deus (e, conseqüentemente, sua salvação). Afirma em Rm
Entre os escritores do NT, somente São Paulo revive e desen- 3.25 s. que o propósito de Deus, ao entregar Cristo como expiação
volve o conceito de Isaías da justiça divina que opera a salvação, dos pecados dos que nele crêem, por meio de sua morte sacrificial
expressando assim vigorosamente o ensino de Jesus a respeito da ("sangue"), era demonstrar sua justiça. Tal demonstração torna-
justiça justificadora de Deus. Paulo emprega dikaiosyne mais va-se necessária no presente kairós para evitar conclusões erradas
vezes do que todos os demais escritores do NT juntos. Estes outros a respeito da paciência de Deus para com os pecados das gerações
autores do NT empregam-na segundo o significado que lhe foi atri- passadas. Assim, êle poderá ser visto como díkaios, o Deus Justo,
buído pelos LXX e pelo uso comum judaico, a saber, dikaiosyne é
que (segundo a profecia das Escrituras) justifica o remanescente
a conduta que agrada a Deus em harmonia com sua vontade, embora,
fiel de Israel, isto é, os que têm fé em Jesus. Movido por sua pró-
naturalmente, a vontade divina seja interpretada à luz do ensino
e da obra da Jesus (e.g., Mt 5.6, 10,20; 6.1,33; Lc 1.75; At 10.35; pria retidão não pode ir contra sua aliança e promessa: livremente
justifica os que haviam quebrado essa aliança e não tinham forças
para conquistar a própria justiça e salvação. Assim, Deus derrama
(26) S o b r e justificação v e r a i n d a infra, 231-38.
sua justiça salvadora, através da morte sacrificial de Cristo e a
única exigência que faz aos que querem ser salvos é que creiam e
sejam batizados na fé em Jesus Messias. < > 27
IV
O REINO DE DEUS
A expressão "Reino de Deus" que aparece nas versões comuns
da Bíblia não é boa tradução de he basiléia tóu Theôu, visto que
basiléia (como seu equivalente aramaico malkuth) significa "domí-
nio", "soberania" — "reinado" mais do que "reino". Não é tanto
o lugar onde Deus governa mas a própria soberania de Deus. Desde
o tempo em que os primeiros mestres da religião profética demiti-
zaram a antiga noção ritual do rei como deus/ ) os hebreus conhe- 1
(basiléia) ao Deus e P a i " ( I Co 15.23 s.) ; Cristo estará sujeito teria São João buscado seus "mil anos"? É bem provável que esta
ao Pai, e Deus será tudo em todos (15.28). Parece que Paulo enten- figura tenha bases no SI 90.4: a parousía será no "dia de Jesus
dia que Cristo entregaria a basiléia ao Pai, quase imediatamente Cristo" (Fp 1.6; cf. I Co 1.8; Fp 2.16), ou no "dia do Senhor"
depois da parousía, mas não o diz explicitamente. (I Ts 5.2; II Ts 2.2), ou ainda mais simplesmente, "naquele dia"
ou "no dia" ( I Co 3.13; I I Ts 1.10; I I Tm 1.12; 4.8; Hb 19.25;
O autor do Apocalipse é mais definido. Conta-nos (Ap 20.4-6) II Pe 1.19). Será como um dos dias da criação (Gn 1.1-2.4), que
que haverá uma "primeira ressurreição" de mártires decapitados, os rabinos imaginavam representar mil anos cada um segundo o
ao recusarem adorar o imperador romano; viverão e reinarão com SI 90.4; o dia do Senhor será, de fato, aquele em que a nova criação
Cristo durante mil anos. Depois, então, virá a ressurreição dos vier a ser, quando o que está sentado no trono disser: "Eis que
outros mortos. Os mártires que ressuscitarão em primeiro lugar são faço novas todas as coisas" ( A p 21.5; cf. I I Co 5.17). > (5
93
RIO fnitirnnnia
aproximação do cumprimento da profecia de Daniel de que a basi- de sua aproximação fossem proclamadas através da terra, seria
léia tôu Theóu seria o reino de nosso Kyrios e não de Kyrios Káisar, ainda mistério incompreensível fora da experiência pessoal da fé
enquanto ouve as vozes dos governadores celestiais do antigo e do no propósito divino da salvação. Jesus assinala que, embora as
novo Israel cantando: "Graças te damos, Senhor Deus, Todo-pode- multidões se aglomerem ao seu redor, é bem pequeno o número dos
roso, . . . porque assumiste o teu grande poder e passaste a reinar" que crêem e entendem. Poucos, diz êle, passam pela porta estreita
(Ap 11.15-17). A grande estátua de bronze do Equus Maximus, e pelo apertado caminho que conduz à vida (dzoé), sinónimo de he
de Domiciano, foi consagrada, em Roma, em 91 A. D.; São João basiléia tôu Theôu (Mt 7.14; cf. Lc 13.23 s.). Na Parábola do
tem a visão de outro cavaleiro, sobre o cavalo branco, Lóaos Theôu, Semeador (Mc 4.3-9 e pars.) grande parte da boa semente da pala-
vencendo e para vencer (Ap 6.2; 19.11-16, 19-21). Durante muitos vra pregada cai onde os pássaros a devoram, onde a aridez a resseca
séculos foram inúmeros os mal-entendidos surgidos no cristianismo e os espinhos a sufocam; somente uma porção dá frutos.' ' Assim 7
(9) N o SI 51.4 p o d e m o s e n c o n t r a r u m a ilustração d o u s o d e construção (11) L u c a s r e t é m hí7ia m a s omite a cláusula mépote; abrevia e comprime
f i n a l q u a n d o n ã o se p r e t e n d e n a d a m a i s d o q u e u m r e s u l t a d o : o salmista n ã o a p a s s a g e m n u m único v e r s í c u l o s e n d o , e m conseqüência, seu t r a t a m e n t o d e l a d e
q u e r dizer q u e cometeu pecado p a r a dar a D e u s a oportunidade de pronunciar p o u c o interesse p a r a o p r e s e n t e propósito. M a t e u s e L u c a s a l t e r a m a e x p r e s s ã o
o j u l g a m e n t o justo, m a s q u e suas t r a n s g r e s s õ e s r e s u l t a r a m no e x e r c í c i o da justiça -de M a r c o s ?ni/stérion tês basiléias, q u e está no s i n g u l a r , p a r a o p l u r a l íá mys-
d e D e u s . Cf. V . T a y l o r , T h e G o s p e í According St. M a r k , 1952, 256: " A frase téria tês basiléias. ( M t 13.11 e L c 8.10 é n o t á v e l e x e m p l o d a c o n c o r d â n c i a d e s -
( M c 4.12) se b a s e i a e m I s 6.9 s., q u e n a f o r m a d e u m a o r d e m d e s c r e v e i r o n i c a - tes dois e v a n g e l i s t a s c o n t r a M a r c o s ) . É p r o v á v e l q u e q u a n d o M a t e u s e L u c a s p r o -
m e n t e o q u e seria, de fato, o r e s u l t a d o d o m i n i s t é r i o d e Isaías: " V a i , e dize a d u z i r a m seus escritos " o s m i s t é r i o s " s i g n i f i c a v a m " o s s a c r a m e n t o s " , i d é i a c o m u m
este p o v o . . . " O emprego d e u m a ordem para expressar u m resultado é tipica- n o s e g u n d o s é c u l o , e d e s e j a s s e m c o m u n i c a r esse sentido aqui. A V u l g a t a traduz
raente s e m i t a " . mystérion p o r sacramentum e m D n 2 . 1 8 ; 4 . 6 ; T o b i a s 12.7; S a b e d o r i a 2.22; E f 1.9;
(10) A citação é d e B . W . B a c o n , H a s t i n g s , D C G , I I , 213 b . 3.3,9; 5.32; I T m 3.16; A p 1.20; m a s a q u i a p a l a v r a e m p r e g a d a é mysterium.
com esse propósito nas narrativas do NT seria, contudo, anacro- o "tipo" de São Pedro nos versículos seguintes; ou o cego de nas-
nismo. Milagres eram eventos comuns numa época em que se des- cença em Jo 9 ) ; também os exorcismos são passíveis de elaboração
conhecia a fixidez da lei natural, tendo cada cidade seus próprios teológica (e.g., legião, Mc 5.1-20). Os dois primeiros tipos são,
fazedores de maravilhas. Não provava divindade alguma o fato de naturalmente, o mais antigo material da tradição dos Evangelhos
alguém expelir demônios ou realizar milagres: tais pessoas pode- sobre os atos miraculosos de Jesus; e junto com esse antigo mate-
riam ter um pacto com Belzebu ou com qualquer outro espírito (Mc rial foram também preservadas as palavras do Senhor.
3.22). Esperava-se que qualquer homem bom, especialmente se
fosse mestre da Lei, tivesse o poder de curar e de expelir maus Primeiramente, à pergunta de João Batista: "És tu aquele quo
espíritos (cf. Mt 12.27). Os sinóticos mostram que os atos pode- estava para vir?" Jesus responde com a intenção de que os mensa-
rosos de Jesus deslumbravam o povo, espalhando sua fama por toda geiros de João pudessem ver por si mesmos que se cumpriam as
a nação (Mc 3.7-12, etc.) ; mas, como o próprio São Marcos admite, palavras proféticas a respeito do tempo do Messias: "Os cegos vêem
tais milagres eram interpretados de muitas maneiras (Mc 6.14-16). (iyphlói anablépousi), os coxos andam, os leprosos são purificados,
O problema levantado no primeiro século não se confinava em pro- os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo
var que Jesus de fato realizava milagres, mas em saber de onde pregado o Evangelho" (Mt 11.4 s. = Lc 7.22). Estas palavras
procedia a autoridade para os fazer (Mc 11.28). Perceber a eesou- combinam duas passagens de Isaías: "Então se abrirão os olhos
dos cegos, e se desobstruirão os ouvidos dos surdos; os coxos saltarão
sía atrás dos milagres de Cristo era penetrar no mistério de sua
como cervos, e a língua dos mudos cantará" (Is 35.5 s.) ; e: "O
pessoa; não percebê-la era o mesmo que ouvir parábolas somente Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu,
como enigmas, sem lhes compreender o sentido. Jesus queria que as para pregar boas novas aos pobres (LXX, ptochôis) ; enviou-me a
pessoas respondessem aos seus atos portentosos não com deslum- curar os quebrantados de coração, e proclamar libertação (LXX,
bramento, mas com arrependimento e f é : " A i de ti, Corazim! ai áphesin) aos cativos, e a pôr em liberdade os algemados (LXX,
de ti, Betsaida! porque se em Tiro e em Sidom se tivessem operado typhlôis anáblepshi); a apregoar o ano aceitável do Senhor e o dia
os milagres que em vós se fizeram, há muito que elas se teriam da vingança do nosso D e u s . . . " (Is 61.1 s.). As palavras de nosso
arrependido com pano de saco e cinza" (Mt 11.21; Lc 10.13). Senhor não nos deixam dúvida de que considerasse seus milagres
Jesus recusou-se a realizar milagres com o objetivo de fascinar o como evidências ou semeia da aproximação do dia do Senhor predito
povo, compelindo-o, assim, a aceitar, contra a vontade, sua palavra por Isaías. Sua relação com o dia ou reino de Deus, que se aproxima,
(Mt 4.1-11; Lc 4.1-13). Também não quis dar um sinal (i.e., torna-se clara quando lê na sinagoga de Nazaré Is 61.1 s. (Lc
fazer um milagre) aos fariseus quando procuraram pô-lo à prova 4.16-30), declarando a seguir: "Hoje se cumpriu a Escritura que
(tentá-lo) (Mc 8.11 s.; Mt 16.1-4; Lc 11.16); os homens devem acabais de ouvir" (4.21). Jesus fora ungido pelo Espírito Santo
discernir pela fé os sinais que se lhes dão; não devem solicitar sinais pnêuma Kyríou ep'emé, hôii héineken échrisén me — ("fêz-mo.
de sua própria imaginação, "para que vejamos e creiamos" (Mc Cristo") para proclamar as boas novas do reino de Deus aos "po-
15.32). Cristo era o verdadeiro Sinal descido do Céu, e seus mila- bres" (i.e., na linguagem bíblica os humildes e devotos) e demons-
gres eram sinais (semeia) para os que o reconheciam; para os outros trar a chegada do reino de Deus em suas dynámeis — especialmente
que estavam "fora" da comunidade da fé êle não passava de pedra a parábola representada ou seméion da abertura dos olhos do cego.
dt tropeço e seus milagres eram apenas térata, "maravilhas" que Notemos que São Lucas (4.18) cita os LXX quando escreve typhlôis
suscitavam deslumbramento e até mesmo admiração, mas essencial- anáblepsin ("restauração da vista aos cegos"). As profecias de
mente não passavam de enigmas inexplicáveis: tois éeso en parabo- Isaías dão ênfase nesta abertura dos olhos cegos, e há uma passagem
lâis tà pánta.
especial muito importante que atribui esta função diretamente ao
Servo do Senhor, com quem Jesus se identificava na sua qualidade
Não devemos surpreender-nos, portanto, diante do paradoxo de Filho do Homem :<12) lemos em Is 42.1-7 (o primeiro "Cântico
de Jesus recusar-se a dar sinais aos que lhos pediam, enquanto rea- do Servo", 42.1-4, com os versos posteriores) que o Servo do Senhor,
lizava milagres como sinais que eram compreensíveis aos que res- seu escolhido em quem se compraz, será dado como mediador da
pondiam à proclamação da vinda do reino de Deus. Podemos dividir Aliança com o povo, e luz para os gentios, para abrir os olhos aos
os milagres do Evangelho, aproximadamente, em três grupos: os cegos, para tirar da prisão o cativo, e do cárcere os que jazem em
sinais de Isaías, os exorcismos e as parábolas-milagres, mais elabo- trevas. As palavras que Jesus ouviu em seu batismo (Mc 1.11) 3 > (1
Jesus, e não desejavam um Messias desse tipo. Talvez São João lógicos dessa natureza dominaram as narrativas de nossos evan-
tenha construído sua parábola do Lázaro baseado na história de gelistas, sendo muito difícil destacar nelas os fatos estritamente
Lucas, a do "Rico e de Lázaro" (Lc 16.19-31); esta parábola trata históricos "que realmente aconteceram". Nossa compreensão "dos
da recusa específica de mostrar o sinal da ressurreição ao "rico" acontecimentos" dependerá grandemente do que pensamos a respeito
descrente e satisfeito consigo mesmo. Materialistas dessa espécie de Cristo — quem era e que realizou. Falando em linhas gerais, po-
não se convertem por meio de "sinais": eles têm as Escrituras, mas demos distinguir três pontos de vista sobre os milagres referentes
não se "arrependem": "Tampouco se deixarão persuadir, ainda que à alimentação. Na antiga concepção racionalista o "milagre" con-
ressuscite alguém dentre os mortos". São João dramatiza a verdade sistia em ter Jesus persuadido a multidão a dividir suas provisões,
da parábola de Jesus: os milagres do Senhor não convertem os prin- uns com os outros, seguindo o exemplo altruísta dos discípulos que
cipais dos judeus nem mesmo a ressurreição do próprio Cristo. distribuíam seus pães e peixes. Poder-se-ia dizer, com Schweitzer,
que de fato tudo não passou de uma refeição sacramental em que
OS MILAGRES DA NATUREZA Cristo distribuiu a todos um fragmento de pão em sinal de que, par-
ticipando de sua mesa na obscuridade, dela haveriam também de
Os assim chamados "milagres da natureza" nos Evangelhos participar na sua glória."8) Por fim teríamos que Jesus, sendo o
têm caráter altamente teológico. Devemos notar que muitas vezes Cristo, o Filho de Deus, realizou de fato o semeia do Pão da Vida,
o que nos parece um "milagre da natureza" poderia ser simples exor- como testemunham os documentos apostólicos; podemos dizer que
cismo, segundo as crenças do primeiro século: Jesus expele o demó- as histórias dos milagres da alimentação, cuja natureza maravilho-
nio da tempestade em Mc 4.35-41 da mesma forma como ordena a sa talvez tenha sido percebida somente pelos discípulos, revelam
saída de espíritos imundos de endemoninhados (cf. epetímese e pe- Jesus em sua glória na qualidade de Filho do Homem, escatológico,
phímoso em 4.39 com Mc 1.25). Os dois milagres do mar, a ex-
pulsão do demônio da tempestade (Mc 4.35-41) e a caminhada so-
(16) Cf. H o s k y n s e D a v e y , The Riddle of the New Testament, 1931,169 e 172.
bre o mar (Mc 6.45-52), ilustram a unidade de Cristo com aquele (17) C o n t r a a i n t e r p r e t a ç ã o eucarística d o s m i l a g r e s d e a l i m e n t a ç ã o v e r G .
Senhor cujo poder é dramaticamente descrito no AT, quando fala H . B o o b y e r , J T S , N S , V o l . I l l , P a r t e 2 ( o u t u b r o d e 1952); e m f a v o r dessa i n t e r -
no controle que êle exerce sobre os abismos, as tempestades, ventos p r e t a ç ã o v e r A l a n R i c h a r d s o n , " T h e F e e d i n g of t h e F i v e T h o u s a n d " e m I n t e r p r e -
t a t i o n ( R i c h m o n d , V a . ) , a b r i l d e 1952, 144-9; t a m b é m Miracle Stories, 94-8.
(18) A. Schweitzer, The Quest of the Historical Jesus (ET, 1911), 374.
IO?" '
5 C £ A I a
" R Í O h a r d S O n
- A I i r a c ! e
Stories of the Gospels, 1941, 113.
trazendo, pelo milagre da nova criação, a aurora do dia do Se-
nhor.< ' Muitas vezes Jesus empregou a imagem do banquete mes-
19
dade do Evangelho galileu. Talvez, como sugere o Dr. Austin Far- sença (SI 51.11; 139.7; notar em cada caso o paralelismo; nos L X X
rer,< ) a Igreja primitiva, que viu na multiplicação dos pães analo-
21
literatura profética primitiva (e.g., Is 24.27; Zc 9.14); segundo 3.22; cf. Jo 1.32 s.). Desde então Jesus viveu sob a inspiração e
Charles, Joel é o último escritor apocalíptico do AT que não usou no poder do Espírito (e.g., Mc 1.12; Mt 4 . 1 ; Lc 4.1,14,18*; Mt
pseudônimo. É claro que, nesse período, o Espírito, que era antes 12.1.8.28), sem que se manifestasse mesmo aos discípulos escolhidos.
Coma escreveu São João: "O Espírito até esse momento não fora
de tudo o espírito da profecia, não seria considerado realidade pre-
dado ' (7.39). Não devemos surpreender-nos, então, ao encontrar
-
sente; e somos deveras amplamente ensinados que a revelação dada tão poucas referências nos Evangelhos ao Espírito Santo, a não ser
na Torá comunicava-se não pelo Espírito mas mediante anjos (Ju- em conexão com o nascimento e o batismo de Jesus. Em Mt 12.28
bileus 1.27; Test. Dn 6; Dt 33.2; At 7.38,53; Gl 3.19; Hb 2 . 2 ) . Jesus diz que expulsa "os demônios pelo Espírito de Deus", signifi-
Mas a doutrina do Espírito não foi completamente suprimida ou es- cando que o faz "pelo poder divino"; São Lucas, levado pelo inte-
quecida: o Espírito projetava-se no futuro. Os profetas canónicos resse de sua tipologia, altera a expressão para "pelo dedo de Deus",
haviam ensinado que o Espírito de Deus agiria na nova criação dos querendo dizer a mesma coisa (Lc 11.20; cf. Êx 8.19; 31.18; Dt
últimos dias, habitando em cada membro da renovada Israel e sen- 9.10; SI 8.3). Segundo o relato de São João, Jesus deu aos discí-
do o meio através do qual todos teriam acesso direto a Deus (Ez pulos instruções formais sobre a futura vinda do Espírito Santo
11.19; 36.26 s.; 37.14; Is 32.15; Zc 12.10; Jr 31.34 e especial- (Jo 14.16-18,26; 15.26; 16.7-14), não havendo nada improvável a
mente Jl 2.28 s.). Assim se desenvolve o conceito totalmente esca- este respeito pois considerava sua morte como a inauguração da era
tológico do Espírito Santo que se encontra no NT.< > 4
da nova aliança com o novo Israel dos últimos dias. Os próprios
sinóticos indicam que Jesus falou, de fato, sobre a vinda do Espírito.
São Marcos nos conta, como já vimos, que Jesus predisse a iminente
vinda do reino de Deus com poder (Mc 9.1) ; e São Marcos deveria
(2) R . H . C h a r l e s , Apochrypha and Pseudcpigrapha, II, p. viu. saber que a basiléia en dynámei significava a Igreja de Cristo ple-
(3) C h a r l e s , ibid. na de Espírito.")
(4) O c a r á t e r escatológico do E s p i r i t o n ã o t e m l u g a r p r o e m i n e n t e n a l i t e r a -
t u r a Q u m r a n , n ã o e s t a n d o o " e s p i r i t o da v e r d a d e " l i g a d o i n t e g r a l m e n t e c o m o ( s )
M e s s i a s o u c o m a e r a m e s s i â n i c a . A t r a v é s d a história os dois espíritos ( d a v e r -
d a d e e d o e r r o ) estão e n t r e g u e s a u m a luta incessante d e n t r o d o h o m e m , s e n d o
Jesus também menciona a blasfêmia contra o Espírito Santo.
q u e o espírito d a v e r d a d e v e n c e r á s o m e n t e n a e r a f i n a l , q u a n d o D e u s fizer n o v a s Na versão de Marcos, da controvérsia sobre Belzebu, Jesus termina
todas a s coisas ( 1 Q S i v . 2 1 : G a s t e r , S D S S , 55 s . ) . S e g u n d o W . D . D a v i e s ( e m sua parábola do Homem Valente afirmando que todos os pecados e
S t e n d a h l , S N T , 171-82) h á s o m e n t e u m a p a s s a g e m n o s rolos o n d e se a t r i b u i s e m blasfêmias humanas poderão ser perdoados, "mas aquele que blas-
q u a l q u e r a m b i g ü i d a d e c a r á t e r escatológico no e s p í r i t o d a v e r d a d e ( a s a b e r , 1 Q S
iv. 20 s., o n d e s e d i z q u e o e s p í r i t o da v e r d a d e s e r á " a s p e r g i d o " s o b r e os h o m e n s
femar contra o Espírito Santo não tem perdão para sempre, visto
n o f i m dos t e m p o s ) . É s u r p r e e n d e n t e , e m vista d e a c o m u n i d a d e de Q u m r a n que é réu de pecado eterno (ouk échei áphesin eis tòn aiôna, all'éno-
t e r t i d o u m a v í v i d a e x p e r i ê n c i a d o f i m . M a s o conceito d o E s p í r i t o nos rolos foi, chós estin aioníou hamartématos). Isto porque diziam: Está pos-
na precisa frase d e W . D . D a v i e s , " d o m e s t i c a d o d e n t r o de u m a c o m u n i d a d e l e g a - sesso de um espírito imundo" (Mc 3.29 s.; cf. Mt 12.31). O con-
l i s t a " , n ã o h a v e n d o contacto com o d i n â m i c o E s p í r i t o S a n t o d a I g r e j a apostólica.
O s essênios, t o d a v i a , e s p e r a m a i n d a pela v i n d a d a e r a f i n a l , e n q u a n t o q u e a
I g r e j a cristã, q u e j á r e c e b e u o Espírito, constitui-se e m sinal de q u e o t e m p o
(5) V e r infra, 174.
final j á começou.
(6) V e r infra, 178-81.
<7) Supra, 66s.
texto mostra muito bem que Jesus entendia ser a rejeição do novo I Ts 4.8; Ef 4.30; cf. Is 63.10). Ananias e Safira mentiram ao
Eon (o reino de Deus) e o abandono dos sinais de sua chegada Espírito Santo e tentaram "o Espírito do Senhor" (At 5.1-11), so-
como os exorcismos que demonstravam a derrubada do anti-reino frendo a penalidade máxima. Tem-se observado muitas vezes que
de Satanás — como se fossem obras de Belzebu, a própria rejeição nos Evangelhos São Pedro é quem mais blasfema contra o Filho do
da salvação trazida por Deus, incorrendo-se, assim, na culpa do pe- Homem (a negação, Mc 14.66-72 e pars.) ; é perdoado (cf. Mc 16.7)
cado imperdoável contra a nova era: tò aiónion hamártema signi- e desde então serve e obedece ao Espírito Santo.
fica "pecado contra o Eon da salvação", excluindo inevitavelmente
os que nele incorrem do perdão oferecido aos que se arrependem e Por fim, deveríamos lembrar que o Evangelho de São Marcos
crêem. A principal decorrência da palavra aiónios não é "eterno" relata Jesus dizendo aos discípulos que seriam fortalecidos pelo Es-
ou "para sempre", mas "pertencente à era vindoura"; da mesma pírito Santo, em sua obra de pregar o Evangelho a todas as nações:
forma é dúbia a tradução de ouk échei áphesin eis tòn aiôna por "Quando, pois, vos levarem e vos entregarem, não vos preocupeis
'"não tem perdão para sempre", sendo melhor dizer "não tem perdão com o que haveis de dizer, mas o que vos fôr concedido naquela hora,
na era vindoura", i.e., não entrará na basüéia tôu Theôu. Em isso falai; porque não sois vós os que falais, mas o Espírito Santo"
Mt 12.32 e Lc 12.10 a versão é levemente diferente: Jesus declara (Mc 13.11). A versão de São Lucas deste versículo é muito inte-
que a blasfêmia contra o Filho do Homem será perdoada, "Mas se ressante: "Assentai, pois, em vossos corações de não vos preo-
alguém falar contra o Espirito Santo, não lhe será isso perdoado, cupardes com o que haveis de responder; porque eu vos darei boca
nem neste mundo nem no porvir" (versão de São Mateus). Talvez e sabedoria a que não poderão resistir nem contradizer todos quan-
queira dizer que é perdoável não reconhecer na humilhação do Servo tos se vos opuserem" (Lc 21.14 s.). São Lucas, que em Atos tão
Messias a pessoa real do Filho de Deus (cf. Is 53.4 s.; Lc 23.34) dramaticamente descreve o cumprimento dessa profecia pela vin-
e que, portanto, a blasfêmia contra o Filho do Homem poderá ser da do Espírito, não distingue entre a atividade do Espírito e a
perdoada; mas rejeitar a demonstração do reino de Deus no poder operação do Cristo Ressurreto ("Eu vos darei boca" — cf. Êx
do Espírito, como se experimenta na vida da Igreja, é colocar-se 4.12 — "e sabedoria" — cf. At 6.10: " E não podiam sobrepor-se
fora da esfera do perdão. A blasfêmia contra o Espírito Santo sig- à sabedoria e ao Espírito com que êle (Estêvão) falava"). É o
nificaria, assim, apostasia, o pecado dos que "uma vez foram ilu- ensino que também São João atribui a Jesus: o Espírito, o Para-
minados e provaram o dom celestial e se tornaram participantes do cleto, que Jesus enviará da parte do Pai, dará testemunho por meio
Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do do testemunho dos discípulos (Jo 15.26 s.), sendo a ação do Espí-
mundo vindouro, e caíram" (Hb 6.4-6). Não é possível perdoá-los rito a mesma do Cristo Ressurreto, que vem aos seus discípulos na
(ibid. e cf. também Hb 10.26-31; 12.14-17). Apostatar da fé é vinda do Paracleto (cf. Jo 14.18, "voltarei para vós outros"). Como
"ultrajar o Espírito da graça" (Hb 10.29). Falar contra o Filho já sugerimos, não há razão de dúvidas sobre a esperança que Jesus
do Homem não é pecado imperdoável para os que ainda não foram tinha do cumprimento imediato da profecia do derramamento do
"iluminados" ( i . e . , creram e foram batizados) ; a possibilidade de Espírito nos últimos dias; nada é mais provável do que isso. Os
arrependimento e fé estará sempre aberta a estes. Mas quando Evangelhos dão-nos evidências suficientes para afirmar que, de
os cristãos batizados abandonam a Igreja cometem o pecado supre- fato, Jesus ensinou aos apóstolos a expectativa do dom do Espírito.
mo e imperdoável, a blasfêmia contra o Espírito Santo. Não im-
portando as palavras empregadas por nosso Senhor — a dificulda-
de principal é saber que sentido poderia ser atribuído à expressão O ESPÍRITO SANTO NA IGREJA APOSTÓLICA
"blasfêmia contra o Espírito Santo" antes da descida do Espírito
— parece que a Igreja apostólica entendeu-a com o sentido de que a A religião cristã deve sua existência à intensa convicção da
apostasia era pecado mortal. Em I Jo 5.16 s. há distinção entre Igreja Apostólica de que ocorrera a descida do Espírito Santo; a
o pecado "mortal" e "venial"; pecados "não para a morte" poderão experiência que a comunidade cristã tivera do Espírito provava a
ser perdoados por Deus; mas há também hamartía prós thánaton, chegada da era messiânica e o cumprimento das profecias das Es-
e não tem sentido orar pelos que cometeram esse tipo de pecado. O crituras em Jesus Cristo. Participar na Igreja era participar no
tom geral das epístolas joaninas sugerem que "pecado para morte" Espírito Santo, koinonía tôu Hagíou Pnéumatos ( I I Co 13.14; Fp
seja apostasia (cf. I Jo 2.19; cf. Jo 13.20; 17.2). Provavelmente 2 . 1 ) ; o Espírito de unidade (cf. Ez 11.19) agiu tão poderosamente
erraríamos se considerássemos todo o pecado contra o Espirito San- que "da multidão dos que creram eram um o coração e a alma"
to como apostasia. "Resistir a" ou "entristecer" o Espírito Santo são (At 4.32) ; sob o poder unificador do Espírito os primeiros cristãos
pecados reconhecidos vivamente pelos escritores do N T ( A t 7.51; "tinham tudo em comum" (At 2.44-47). Os fiéis constituem um
só corpo porque há só um Espírito (Ef 4.3 s.) ; os cristãos indivi-
duais bebem do mesmo Espírito ( I Co 12.13; Ef 2.18). O batis-
mo era o momento da iniciação pessoal de cada cristão na esfera da assim orienta. É, de fato, o Espírito de liberdade, tirando os h«-
operação do Espirito Santo, que o selava "para o dia da redenção" mens dos grilhões da lei (Gl 5.13-18; Rm 8.2; I I Co 3.6, 17; cf. Jo
i(Ef 4.30). Recebia nessa ocasião a dádiva do Espírito que ao lhe 8.31-36). É nesse poder que os cristãos escolhem alegremente fa-
•designar sua tarefa ou ministério especial dentro do ministério zer a vontade de Deus. O Espírito os auxilia em todos os momen-
total da Igreja também lhe conferia o dom ou graça (Chárisma) tos, até mesmo em sua profunda vida de oração, no próprio centro
para realizá-lo ( I Co 12.12-31). Havia diversidade de dons, cada de suas personalidades; e ora com eles até mesmo nas orações inar-
membro do corpo de Cristo executando sua própria função ( I Co ticuladas, intercedendo pelos santos (Rm 8.26 s.). É o Espírito de
12.4-11; cf. Hb 2.4). Mas todos os cristãos possuíam o Espírito vida (Jo 6.63; I Co 15.45), que insufla vida na nova criação, a
•que não era considerado privilégio especial de determinada "ordem" Igreja, como originalmente o fizera na primeira criação (Gn 1.2;
ou "ordens" dentro da Igreja. Era sinal de imaturidade espiritual 2.7, etc.) ; e alternadamente é a própria vida (o ruach, o pnêuma)
•de muitas pessoas nas igrejas gentílicas a tendência de admirar os exalada na nova criação (Jo 20.22; Ap 11.11). Por isso depois do
tipos mais espetaculares de Charísmata — as manifestações extra- batismo do Espírito Santo os cristãos andam em novidade de vida,
ordinárias, extáticas e excitantes da ação do Espírito, tais como a a vida da nova criação, da era vindoura (Rm 6.4; 7.6, e t c ) . É
;glossolalia ou o "falar em línguas". Paulo esforçou-se por mode- o Espírito de adoção, posto que é recebido no batismo onde os cris-
rar o zelo dos coríntios neste emocionalismo "avivalista"; quando tãos são adotados na família de Deus e feitos herdeiros com Cristo;
êle fala nesse assunto em I Co 14 ficamos alarmados a respeito do o Espírito dá testemunho interior, assegurando aos batizados que
•culto cristão primitivo. O apóstolo não quer negar que a glossolalia de fato são filhos de Deus, dando-lhes a capacidade de clamar "Aba",
seja genuinamente um sinal da atividade do Espírito, mas esta não Pai (Rm 8.12-17; Gl 4.6). Esse testemunho interior é concedido a
deveria distrair a atenção das coisas mais importantes: "Dou graças todos os cristãos, enquanto que o dom da profecia é um Chárisma
a Deus, porque falo em outras línguas mais do que todos vós. Con- especial entregue somente ao ministério particular dos "profetas"
tudo, prefiro falar na igreja (en ekklesía) cinco palavras com o
dentro da Igreja (Rm 12.6; I Co 12.10, 29; Ef 4.11) ; toda a pro-
meu entendimento, para instruir outros, a falar dez mil palavras
fecia, tanto na antiga como na nova dispensação, deve-se à operação
em outra língua" ( I Co 14.18 s.). Esse capitulo torna claro que
"falar em línguas", desde o tempo de Paulo, é fenômeno que fre- do Espírito de profecia ( I I Pe 1.21; cf. I Pe 1.10 s.; Ap 1.10;
qüentemente reaparece na Igreja, especialmente em reuniões aviva- 19.10; e, e.g., At 21.11). Em I Co 12.8-10 São Paulo menciona
listas. Sob o impulso da excitação religiosa dissipam-se as faculda- nove dons ou atividades do Espírito entre os membros da Igreja;
des críticas da inteligência, proferindo os devotos sílabas sem sen- vão desde "sabedoria" até a interpretação de línguas. Sob a influên-
tido, que, não obstante incompreensíveis, possuem estranho poder cia de Is 11.2, na versão dos LXX desenvolveu-se na Igreja o con-
de comunicação da emoção religiosa aos outros. São Paulo tenta ceito sétuplo do Espírito e de suas atividades, e tornou-se tradição,
orientar a atenção dos coríntios para o que chama de "melhores especialmente no Spiritus septiformis da teologia devoeional latina. <8)
dons" e "caminho sobremodo excelente" ( I Co 12.31). Esses dons No Apocalipse joanino encontra-se esta representação sétupla do
são a fé, a esperança e o amor, especialmente o amor (13.13). Mes- Espírito: os "sete espíritos" em Ap 1.4 denotam, obviamente, o
mo se falássemos línguas angelicais e não tivéssemos amor seríamos Espírito Santo, ocorrendo num contexto trinitário (cf. também
simplesmente como o bronze que soa (13.1). O verdadeiro fruto do A p 3 . 1 ; 4 . 5 ; 5 . 6 ) . Mas é mais provável que tenha sido influenciado
Espírito é "amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bonda- por Zc 3.9 e 4.10 (junto ao fato de que o vidente está pensando
de, fidelidade, mansidão, domínio próprio" (Gl 5.22). Não são nas sete igrejas) do que em Is 11.2, desde que o texto dos LXX
possibilidades naturais que alcançamos quando nos esforçamos de- não é em geral de grande importância no Apocalipse. Esses sete
vidamente; são dons escolhidos do Espírito; não são virtudes natu- espíritos devem ser entendidos aqui como expressão imaginosa do
rais, são sobrenaturais. A vida cristã é constante apreensão do po- caráter sétuplo da operação de um só Espírito Santo. São João não
der sobrenatural do Espírito; pode ser descrita como caminhar, ser os caracteriza individualmente; tal literalismo não faz parte de
levado ou viver pelo Espírito (Gl 5.16,18,25; Rm 8.4,14; e t c ) . seus propósitos poéticos. Em Ap 5.6 eles são os olhos do Cordeiro
Éle é o Espírito de poder ( I I Tm 1.7; cf. At 1.8; 10.38; Rm
15.13; I Co 2.4; Ef 3.16), que dá aos cristãos a capacidade de (8) O s L X X a c r e s c e n t a m o espírito de d e v o ç ã o ( e u s é b e i a ) aos seis a t r i -
realizar atos além de suas próprias forças. É um poder compulsi- b u t o s d a v e r s ã o h e b r a i c a d e I s 11.2: " O Espírito de sabedoria e de entendi-
vo, não coercivo; guia, leva, dirige (e.g., At 8.29; 10.19;11.12; m e n t o , o Espírito de conselho e de fortaleza, o E s p í r i t o de conhecimento e d e
temor do S e n h o r " .
13.2;20.23,28;21.11, etc.) sem anular a personalidade dos que
enviados por toda a terra. Declara, então, o caráter universal ("a
todas as nações") da missão do Espírito, que é o Espírito de Cristo, o Espírito de Cristo descubra o véu que está nos corações dos
em forma poética (cf. Lc 24.47; Jo 14.26; 15.26; 16.7; Gl 4 . 6 ) . homens. A letra da Torá — as Escrituras escritas — mata; mas o
espírito vivifica as palavras ( I I Co 3.6). O mesmo conceito do
O TESTEMUNHO DO ESPÍRITO Espírito infundindo vida às palavras — à "letra morta" — das
O testemunho do Espírito Santo não se dá ao mundo direta- Escrituras aparece em II Tm 3.16. A história, contada por São
mente, mas por meio dos membros da Igreja, que o receberam. Lucas, do caminho de Emaús, tem o mesmo sentido em forma de
Aparentemente, havia na Igreja apostólica uma ordem de evange- parábola, pois o Cristo Ressurreto e o Espírito Santo não se dife-
listas especialmente dotados pelo Espírito para a pregação do Evan- renciam no NT, no que concerne às suas operações/ ) O (Espírito 9
gelho de Cristo (Ef 4.11; I I Tm 4.5; At 21.8), conquanto as do) Cristo Ressurreto interpreta nas Escrituras todas as coisas a
evidências mostrassem que todos os cristãos, não importando seu seu respeito (Lc 24.27). É a experiência da Igreja primitiva e dos
"ministério" individual, devessem testemunhar, sempre que possível. cristãos em todas as épocas: "Porventura não nos ardia o cora-
Os discípulos testemunham juntamente com o Espírito Santo (Jo ção... quando nos expunha as Escrituras?" (24.32). O Cristo
15.26 s.). É a presença do Espírito neles que os leva a testificar Ressurreto era na Igreja apostólica o verdadeiro intérprete das Es-
tão livremente e com tanta ousadia a verdade de Cristo — as pala- crituras: fora de sua presença e inspiração não passavam de enigmas
vras parresía e parresiádzomai ocorrem freqüentemente no N T misteriosos, como são consideradas ainda hoje pelos judeus des-
nesse contexto (e.g., At 4.29,31; Ef 6.19; cf. Mc 13.11). crentes ( I I Co 3.13 s.). São Lucas quer ressaltar a presença atuante
de Cristo na exposição das Escrituras na Igreja: "Então lhes abriu
Acima de tudo, êle é no NT o Espírito de testemunho; sua o entendimento para compreenderem as Escrituras" (Lc 24.45).
principal função é testemunhar o Cristo (Jo 15.26; 16.13-15) ou, São Lucas e São Paulo estavam pensando, naturalmente, nas Escri-
alternadamente, a verdade (alétheia), pois Cristo é a verdade (Jo turas do AT ( I I Co 3.14, epi tê anagnôsei tês palaiás diathékes),
14.6). Dessa forma pode também ser chamado de Espírito da ver- que constituíam a Bíblia da Igreja apostólica; mas o que estava
dade (Jo 16.13), sendo sua função levar os discípulos do Cristo implícito no testimonium Sancti Spiritus internum (ou, como pode-
Ressurreto a toda a verdade (ibid.); pode-se mesmo dizer que o ríamos dizer, testimonium internum Christi resurreeti) foi achado
Espírito é a verdade ( I Jo 5.7) como também se diz de Cristo. É verdadeiro nelos cristãos de todos os tempos em relação às Escri-
o Espírito de Cristo, devendo ser, portanto, da verdade, porque turas do NT.«o)
Cristo é a verdade, i.e., a realidade última manifesta em ação:
verdade é algo a ser feito, e não somente "pensado" ou "crido" (cf. O Esnírito de testemunho traz aos nossos corações o significado
Jo 7.17). Quando São João fala no Espírito que guia os discípulos do fato de Cristo (Jo 14.26) ; mas permanece ainda sendo o Espí-
a toda a verdade (16.13) não emprega essa palavra no sentido mo- rito de profecia, a guiar a Igreja a toda a verdade (Jo 16.13),
derno que nós conhecemos — e.g., todas as verdades da ciência mostrando as coisas que haverão de acontecer (Ap 1.19; 4.2; cf.
moderna, da medicina, da tecnologia, etc. Refere-se à experiência 1.1; 22.6), i.e.. "revelações" da parousía como se mostram no
que os discípulos, de fato, tiveram. Percebemos nos Evangelhos que Apocalipse. O Livro do Apocalipse deve ser tomado como o único
até a crucifixão do Senhor os discípulos não tinham alcançado com- comentário adequado às palavras: "Quando vier, porém, o Espírito
preensão segura e adequada dos profundos ensinos do Mestre, mas da verdade, êle vos guiará a toda a verdade... e vos anunciará as
depois da ressurreição entenderam tudo o que Jesus tentara trans- coisas que hão de v i r " (Jo 16.13). O caráter escatológico do Espí-
mitir-lhes em seu ministério terreno, sob a orientação do Espírito: rito Santo, no pensamento joanino, vê-se também na insistência de
"êle vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que que a obra reveladora do Espírito é uma revelação "oculta" da
vos tenho dito" (14.26). Foi o que aconteceu aos apóstolos: somente verdade, em sentido bíblico. O Espírito, desde agora, julga o mundo,
depois da ressurreição entenderam a verdade que Jesus lhes ensi-
convencendo-o do pecado da descrença, dando testemunho da justiça
nara e vivera diante deles. Em todas as épocas o Espírito Santo
toma o que é de Cristo e o manifesta à compreensão dos corações de Deus que se manifestou na exaltação de Cristo junto ao Pai (cf.
crentes; não dá testemunho de si mesmo, mas de Cristo. É o intér- Rm 1.17), e da realidade do julgamento, ao testemunhar que o
prete das Escrituras; sem o seu testemunho interior na leitura e príncipe deste mundo já foi julgado (Jo 16.8-11). Mas o mundo
na pregação das Escrituras a mensagem permaneceria aprisionada não o pode receber, nem saber coisa alguma a seu respeito; o teste-
nas palavras escritas ou faladas. Ou, na metáfora de São Paulo em
I I Co 3.14-18, o sentido das Escrituras permanece "velado" até que (9) V e r ainda, infra, 122s.
(10) V e r s o b r e o assunto A l a n R i c h a r d s o n , Apologética Crislã, 287-298 (ver-
são b r a s i l e i r a ) .
miinho do Espírito veio somente aos discípulos de Cristo (Jo 14.17) ;
Resta-nos mencionar ainda uma outra indicação do caráter
há um ocultamento do Espírito, como também d'e Cristo, pois o
Senhor se manifesta aos discípulos e não ao mundo (Jo 14.22). escatológico do Espírito no NT, i.e., o conceito de "penhor" (arra-
bón) da salvação final que será, um dia, posse dos cristãos. Um
Além disso devemos considerar no título peculiarmente joa- arrubón é algo dado em conta, "depósito" ou primeira prestação,
nino atribuído ao Espírito, i.e., o "Paracleto", profunda marca garantia de que o pagamento total será feito. O Espírito Santo,
escatológica. Na linguagem secular ho parákletos significa "advo- no qual os cristãos foram "selados" por ocasião do batismo, é
gado", quem defende num tribunal, ou, mais geralmente, "ajudador". "penhor" ou garantia de sua herança (arrabón tês kleronomías
Mas as palavras paráklesis e parakalêin nos LXX e no NT possuem hemõn) na esfera da redenção final (Ef 1.14). Deus "pagou"
significação caracteristicamente bíblica. Fiéis judeus esperavam nos (redimiu) sua própria posse, deixando um "depósito" como prova.
dias do nascimento de Jesus a paráklesis de Israel (Lc 2.25), i.e., O Espírito é a certeza outorgada aos que são ungidos e selados (i.e.,
o cumprimento dos ditos proféticos de Isaías sobre o "conforto" e batizados) ; deu-lhes Deus "o penhor do Espírito em nossos corações"
a "consolação" do remanescente que confiara na promessa divina da ( I I Co 1.22; 5.5). Na vida presente, i.e., na era do Espírito, não
redenção (cf. Is 40.1; 51.12; 66.13). O livro de Isaías termina gozamos ainda a plenitude de nossa herança de filhos de Deus e
com o quadro escatológico da consolação de Israel fiel, "como alguém
co-herdeiros de Cristo; possuímos, no entanto, a garantia do Espí-
a quem sua mãe consola" (66.13), quando Javé vem em fogo e
turbilhão para redimir e julgar (66.15, cf. a descida do Espírito rito, que testemunha em nossos corações a verdade de nossa filiação
em Pentecostes com línguas de fogo e o sopro de forte vento, At. e herança (Rm 8.16 s.). Ou, como São João o expressa, sabemos
2.2 s.), para ajuntar todas as nações que verão sua áócsa (66.18), que Deus "permanece" em nós pelo espírito que nos deu ( I Jo 3.24),
tomando delas alguns para sacerdotes e levitas (66.21; cf. Ap 1.6; e nós, da mesma forma, também permanecemos nele (I Jo 4.13).
5.10; 20.6), ao fazer a nova criação, "os novos céus e a nova terra" O Espírito Santo é o dom da presença e do poder de Deus dentro
(66.22; cf. Is 65 17; Ap 21.1; I I Pe 3.13). A vinda do Espírito, de nós nesta vida, e a garantia da plenitude da vida divina que será
"o Consolador", representa o cumprimento dessas profecias, conhe- nossa na era vindoura.
cidas somente dos discípulos que haviam recebido o Espírito, e não
do "mundo". A consolação de Israel cumpre-se na Igreja, sendo A DÁDIVA DO ESPÍRITO: PENTECOSTES
então apropriado chamar o Espírito de " o Consolador". Todos os
afligidos com as angústias do destino de Israel nas vicissitudes de Os escritores do NT concordam que o Espírito Santo só foi
sua história mundana eram consolados pelo conhecimento do esplen- concedido depois da ressurreição e exaltação de Cristo, eventos com
dor escatológico, revelado pelo Espírito Santo, que desde agora já os quais estava intimamente relacionado. Mas não há unanimidade
aparecia: havia consolação em Cristo (Fp 2.1), pois Deus ungira-o sobre a maneira e o tempo em que veio. Somente dois autores des-
com o Espírito "para consolar todos os que choram, e a pôr sobre crevem a dádiva original do Espírito, São Lucas e São João; suas
os que em Sião estão de luto. .. óleo de alegria em vez de pranto" narrativas diferem nos pormenores todos, com exceção do que ocor-
(Is 61.1-3). O próprio Jesus anunciou o cumprimento dessas pro- reu em Jerusalém. Segundo São João, a ascensão do Senhor ter-se-ia
fecias: "Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados" dado entre seu aparecimento a Maria Madalena, cedo, de manhã
(Mt 5.4; cf. Lc 4.17-21; Jo 16.20-22; II Co 1.7; Ap 7.17; 21.4). (20.17), e aos discípulos, no mesmo dia, ao cair da tarde, quando
as portas estavam trancadas (20.19) ; nessa ocasião o Senhor Res-
Notemos que paráklesis com o sentido de exortação ou encora- surreto teria distribuído o Espírito Santo aos discípulos por "insu-
jamento ao exercício da paciência até a parousía é um dom especí- flação" (enephysese kài leguei autóis, Lábete Pnêuma Háguion)
fico do Espírito (Rm 12.8; cf. I Co 14.3) ; tal consolação ou espe- (20.22). Assim, segundo São João, a ressurreição, ascensão e dádiva
rança paciente procede especialmente do estudo das Escrituras (Rm do Espírito teriam ocorrido no mesmo dia; é o que teríamos, por
15.4 s.). São Lucas entende que o sentido do nome Barnabé seria certo, inferido do quarto Evangelho se não estivéssemos familiari-
"filho da paráklesis" ( A t 4.36) ; embora tenha alcançado essa tradu- zados com a versão de São Lucas. São Paulo parece concordar com
ção, é provável que para São Lucas o apóstolo Barnabé recebera o o ponto de vista joanino: não faz distinção muito clara entre a
Chárisma especial da exortação. Confortar os que choram à luz da ressurreição e a ascensão de Cristo, considerando o aparecimento do
esperança escatológica cristã é um dos ministérios para o qual a Senhor no Caminho de Damasco da mesma natureza do seu apare-
Igreja recebeu "dons especiais do Espírito Santo".* ' 11 cimento a Pedro, aos outros apóstolos e aos irmãos ( I Co 15.5-7),
como se todos tivessem (como no seu caso particular) acontecido
(11) LOC, Coleta da Festa de São Barnabé. depois da ascensão.
São Lucas, no entanto, dá-nos uma narrativa completamente
de relatórios de testemunhas oculares de fatos triviais. Podemos
diferente e muito mais pormenorizada dos eventos da ascensão e da
apenas estudar seus efeitos na história, mas não os próprios eventos.
vinda do Espírito; os outros escritores do N T não corroboram seu
A profunda intuição da mente religiosa, encontrada na Bíblia e
ponto de vista. AÍém disso, parece que São Lucas encaixa sua his-
fora dela, afirma que os olhos humanos não podem perceber os
tória num esquema teológico bastante elaborado. Acentua um
meios pelos quais a divindade realiza seus atos miraculosos. Não
período de "espera" entre a ressurreição e a dádiva do Espírito
quer dizer que haja incerteza na fé cristã a respeito da historicidade
(Lc 24.49,53). Em A t 1.3 diz que Jesus apareceu aos apóstolos
da ressurreição, da exaltação de Cristo ou da vinda do Espírito
"durante quarenta dias", havendo depois disso ainda alguma espera
Santo; mas também quer dizer que não devemos esperar que a Bí-
(1.4) ; assim, a ascensão ter-se-ia dado no fim desses quarenta dias
blia nos dê narrativas desses eventos para serem lidas como se
(1.9-11), quando os apóstolos voltam para Jerusalém (1.12; cf.
fossem descrições inteiramente literais "do que aconteceu". Deus
Lc 24.52). Então, no dia de Pentecostes, sete semanas depois da
nos oculta o modo como opera suas maravilhas, mesmo nas narrati-
ressurreição de Cristo, o Espírito desceu sobre os apóstolos; a casa
vas que nos transmitem seu significado e verdade. Ao insistir numa
onde estavam reunidos encheu-se de "um vento impetuoso" < e 12>
dade c M l n l l T r a
T° S t r a r
«Presentação da v e r !
q U e U m a
NT, diante da importância que tinha no AT. Jesus é representado fariseu, o Messias é uma figura impressionante que será sacerdote,
pelos evangelistas como o novo Moisés, o novo Josué, o novo Elias, rei e profeta; cf. Test. de Rubem 6.7-12; Test. de Levi 8.14; Test.
etc; talvez haja apenas uma pcrícope na tradição, que descreva de Judá 24.1-3; Test. de Dã 5.10 s.; Test. de José 19.8-12. Depois
Jesus como o novo Davi, a saber, na história da travessia do Senhor da desavença com os fariseus essa expectativa desapereceu, e no
através dos milharais, no sábado (Mc 2.23-28). Jesus defende o primeiro século a.C. surgiram adições que expressavam a esperança
comportamento dos discípulos, mencionando o precedente de Davi de um Messias de Judá. > Ao tempo do NT não se esperava mais
(4
em I Sm 21.1-6; é provável que essa história pretenda ser um tipo um Messias procedente de Levi, não havendo traços dessa idéia em
de cumprimento do "que fêz Davi". A referência joanina à travessia seus escritos, embora persistissem outras influências do Testamento
de Jesus pelo ribeiro Cedrom (Jo 18.1) é demasiadamente obscura dos Doze Patriarcas. Na literatura canónica a única passagem que
para ser entendida como cumprimento de II Sm 15.23. Os escritores aguarda um Messias não-davídico talvez seja o SI 110, embora não
do N T não destacam o reinado davídico como tipo do reinado de tenhamos certeza de sua data e forma original. Se fôr Macabeu,
Cristo. Seguem assim o ensino do próprio Senhor, que deveria sen-
tir certo embaraço diante dos sentimentos nacionalistas suscitados (3) R. H . C h a r l e s , Apocrypha and Psexulepigrapha, I I , 289.
pela noção do Messias davídico. Ao ensinar no templo parece repu- (4) C h a r l e s , op. cif., 294. N o t e m o s , c o n t u d o , q u e a o p i n i ã o d o s estudiosos c o n -
s i d e r a q u e C h a r l e s i n t e r p r e t o u m a l a e v i d ê n c i a d o Testamento dos Doze Patriar-
diar essa idéia, citando SI 110.1 para provar que o filho de Davi cas, q u e , de fato, a p r e s e n t a m u m a d o u t r i n a d e dois M e s s i a s , u m d a t r i b o s a c e r -
poderia não ser o Senhor de Davi (i.e., o Messias) (Mc 12.35-37). d o t a l d e L e v i e o u t r o d a l i n h a r e a l d e J u d á . A d o u t r i n a essênia ( q u e p a r e c e
O Messias é incomparavelmente maior do que qualquer rei terreno, ser e s s a ) dos dois M e s s i a s d e s e n v o l v e a t e n d ê n c i a tão a n t i g a q u a n t o o r e c o n h e c i -
e o reinado messiânico não deveria ser reduzido às dimensões de um m e n t o d o s " d o i s u n g i d o s " de Zc 4.14, q u e s ã o Josué, o p r í n c i p e , e Z o r o b a b e l , o
s u m o - s a c e r d o t e (cf. A g 1.14; 2.4 s . ) . A seita d e Q u m r a n p r o f e s s a v a a d o u t r i n a
mero império davídico (cf. Jo 6.15; 18.36). Jesus não recusou o dos dois M e s s i a s ( " o s u n g i d o s de A a r ã o e I s r a e l " , I Q S ix. 10 s.; G a s t e r , S D S S , 15,
título de Rei dos Judeus (Mc 15.2), mas rejeitou as noções de um 67, 108); e o D o c u m e n t o de D a m a s c o atesta a m e s m a e s p e r a n ç a , se K . G . K u h n
reinado mundano, não querendo nenhuma coroa terrena; quando o está certo ao a f i r m a r q u e os dois M e s s i a s estão i m p l í c i t o s na f r a s e : " a v i n d a d o
M e s s i a s d e A a r ã o e I s r a e l " ( C D x i i . 23; x i v . 10; x i x . 10; cf. x x . 1) e m sua
filho de Davi entrou na cidade davídica (Mc 11.10) para reivin-
f o r m a o r i g i n a l . Essa d o u t r i n a n ã o d e i x o u v e s t í g i o s no N T , q u e reflete a e x p e c t a t i v a
dicar seu legítimo governo, o prometido "trono de Davi" (Lc 1.32) n o r m a l dos j u d e u s d o s dias de nosso S e n h o r . S o b r e o p r o b l e m a , v e r K . G. K u h n ,
transformou-se numa cruz fora dos muros da cidade. O novo Davi " T h e T w o M e s s i a h s of A a r o n and I s r a e l " ( s e p a r a t a d e N T Studies 1, 1954-5, e m
não viera restaurar o reino a Israel ( A t 1.6) como poderoso con- S t e n d a h l , S N T , 54-64).
poderá referir um governador existente, como Simão, ou um prín-
cipe ideal da dinastia hasmoneana ainda por nascer. Esse, descrito Primeiramente seria inacreditável que o Marcos bilíngüe (e outros
como "meu senhor", senta-se à destra de Deus e governa em Sião tradutores) perpetrassem a gafe de traduzi-la por ho hyiòs tôu an-
no meio de inimigos; será "sacerdote para sempre, segundo a ordem thrópou, que é tanto um barbarismo em grego como "filho do homem"
ole Melquisedeque" (cf. Gn 14.18) — i.e., não mais um Messias em nossa língua. São Marcos e os outros entenderam-no como ter-
levítico ou davídico; destronará muitos reis e julgará entre as na- minas technieus, traduzind'o-o literalmente, na falta de expressão
ções. Seja qual fôr o sentido original do Salmo, é um dos testimonia grega equivalente. Em segundo lugar, enfrentamos graves dificulda-
das Escrituras freqüentemente citado no NT <> para prefigurar o 5 des teológicas, ao supor Jesus querendo dizer, por exemplo, que o
reinado e o sacerdócio de Jesus Cristo que transcende completamente homem como tal tem poder na terra para perdoar pecados (Mc 2.10)
tudo o que se contém na expectativa judaica popular de um Messias ou que seja Senhor da instituição divina do sábado (Mc 2.28) ; se
davídico. É nesse sentido que Jesus, naturalmente, argumenta em Marcos acreditasse que essa era a intenção de Jesus o teria dito
Mc. 12.35-37. O escritor aos Hebreus molda a partir daí seu pen- facilmente. A expressão poderia, então, reforçar o sentido de Homem
samento sobre a derivação do sumo-sacerdócio de Cristo (Hb 5-7). como tal, homem par excellence, como se vê em Jo 19.5: Ide, ho
ánthropos —• bar nasha poderia significar "o Homem", e como tal
seria a designação do Messias. Mas não estamos em terreno muito
O FILHO DO HOMEM: EZEQUIEL E DANIEL seguro.
"Filho do Homem" é a designação preferida de Jesus; ocorre
oitenta e uma vezes nos Evangelhos e encontra-se em todas as "fon- Fora de Ezequiel, a outra passagem do AT de grande impor-
tes" principais (Marcos, Q, M. L e João). Em todos os casos é tância para o que estamos considerando é Dn 7.13 s.: "Eu estava
empregada por Jesus a respeito de si mesmo (Jo 12.34 dificilmente olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens
seria uma exceção real). Além dos Evangelhos, só aparece uma vez do céu um como o Filho do homem, e dirigiu-se ao Ancião de dias,
no NT, em At 7.56 (sem mencionar as citações do A T em Hb 2.6; e o fizeram chegar até êle. Foi-lhe dado domínio e glória, e o reino,
Ap 1.13; e 14.14). Não temos evidências seguras de que o título para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem;
era sinônimo de Messias quando Jesus começou a usá-lo.' ' A inter- 6
o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais
pretação de "Filho do Homem" é, portanto, de primeira importân- será destruído". A figura humana ("como o Filho do homem")
cia na compreensão do ensino de nosso Senhor a respeito de sua contrasta fortemente com os "quatro animais" que a precedem, um
pessoa e missão. leão, um urso, um leopardo e um animal terrível e forte, sem nome,
No Antigo Testamento "filho do homem" (hebraico, ben adam com dez chifres. Cada animal representava os impérios que haviam
ou, seu sinônimo, ben 'enosh) é um semitismo para "homem"; e.g., oprimido os judeus, sendo o quarto o império grego Selêucida. An-
SI 8.4: "Que é o homem, que dele te lembres? e o filho do homem, tíoco Epifânio é o perseguidor que vem depois dos dez reis (os dez
que o visites?" Não é expressão freqüente, a não ser em Ezequiel, chifres) : "Proferirá palavras contra o Altíssimo, magoará os santos
onde o profeta a emprega (ben 'enosh) mais de noventa vezes para do Altíssimo, e cuidará em mudar os tempos e a lei" (7.25). Depois
designar-so a si mesmo. Não lhe explica o significado, mas parece de seu julgamento e deposição (7.26) "o reino e o domínio, e a
indicar a dignidade da pessoa totalmente insignificante a quem majestade dos reinos debaixo de todo o céu, serão dados ao povo
Deus condescende dirigir sua palavra: "Filho do homem, põe-te em dos santos do Altíssimo; o seu reino será reino eterno, e todos os
pé, e falarei contigo" (Ez 2.1). A forma aramaica bar 'enash ocorre domínios o servirão e lhe obedecerão" (7.27). A figura humana
em Dn 7.13; no aramaico posterior (segundo século A.D.) a forma representa Israel, que, depois da opressão dos impérios pagãos que
bar nash significava simplesmente "homem" ou "a gente" (como culminou com a tentativa de Antíoco de abolir a Tora, recebe agora
"on dit", "man sagt", "one feels"). Se pudéssemos presumir que de Deus ("o Ancião de dias") o governo sobre todas as outras nações
esse costume foi preservado até o primeiro século, diríamos que do mundo, perpetuamente. Não sugere a existência real de um Filho
Jesus empregou a expressão para mencionar, com modéstia, sua do Homem messiânico, pois a figura daquele que era "como o Filho
pessoa; e.g., Lc 9.58: "O Filho do homem não tem onde reclinar do Homem" era somente um símbolo de Israel nas imagens do
a cabeça". Mas há duas boas razões para abandonarmos essa idéia. sonho do vidente, assim como os animais representavam os impérios
pagãos. Não havia Messias — a não ser que reconheçamos Israel
como a comunidade messiânica. Temos aqui — importantíssimo
(5) C. H . D o d d , Aec. Scrip., 34 s„ 120 s. para o desenvolvimento da teologia do NT — notável quadro do
(6) A expressão " F i l h o do H o m e m " ainda não foi encontrada na literatura simbolismo visual a predizer a queda do último e mais terrível dos
de Qumran.
opressores e a concessão de domínio mundial à nação sofredora de
que ecoem frases dessa compilação, e nem podemos pensar que Jesus
Israel ("o povo dos santos do Altíssimo"). Como vimos, no quarto tenha mesmo lido essa obra, embora seja possível que Paulo e o
capítulo, essa idéia fundamenta o conceito que Jesus tinha da dádiva escritor joanino a conhecessem. Por outro lado, é bem provável
do reino ao "pequeno rebanho" chamado por Deus para ser o novo que Jesus se tivesse influenciado pela visão de Daniel, da dádiva
povo dos santos do Altíssimo. do reino ao povo dos santos do Altíssimo, que por sua vez está lon-
ge do conceito de Enoque do Filho do Homem celestial. Charles
O FILHO DO HOMEM: ENOQUE E 2 (4) ESDRAS diz que este se desenvolve a partir de uma passagem de Daniel, en-
quanto que Mowinckel acha que Dn 7.13 s., e as Similitudes têm
Nas Similitudes de Enoque <?) "o Ungido" identifica-se com o base comum.dl) Mas há considerável diferença entre "um como
Filho do Homem. A opinião dos estudiosos divide-se diante dessa Filho do homem" simbolizando poeticamente o povo de Israel e o
obra: não consideram unanimemente que ela dê evidências de que Messias celestial preexistente de Enoque; é bem provável, contudo,
nos dias de nosso Senhor o título "Filho do Homem" fosse designação que os dois conceitos possam remontar ao antigo mito do Primeiro
aceita para o Messias, indicando seu tipo particular (celestial ou Homem. <12)
sobrenatural). R. H. Charles afirma que "a influência de Enoque
É possível que o mesmo mito antigo e não-bíblico do Primeiro
foi muito maior do que a de todos os outros livros da literatura apó-
Homem esteja presente em 2(4) Ed 13 (na Apócrifa), onde "Es-
crifa e da pseudo-epigráfica reunidos" sobre os escritores do Novo
dras" sonha ver "como se fosse a semelhança de um homem" emer-
Testamento/ ) e acredita-se ainda na Europa, em geral, que os con-
8
Q aqU1 S e ã m d a ; 6 C t R Bultma
Theology of the Nexo
O terceiro grupo desses ditos tem caráter escatológico onde se
afirma a glória do Filho do Homem exaltado e triunfante. Aqui
direta do sumo-sacerdote se êle era o Messias (Mc 14.61 s.) seria:
"Sim, eu sou o Messias, e tu o compreenderás quando vires o Filho
também estão envolvidas as quatro "fontes" dos Evangelhos sinó-
do Homem assentado à direita do Todo-poderoso e vindo com as
ticos: Mc 8.38; 9.9; 13.26; 14.62; Mt 12.40 = Lc 11.30; Mt
nuvens do céu"; ou, talvez: "Chama-me "Messias" se o termo te
24.27 = Lc 17.24; Mt 24.37 = Lc 17.26; Mt 21.44 = Lc 12.40;
agrada — Eu não o considero muito adequado; entenderás quem
Mt 10.23; 13.41; 19.28; 24.39; 25.31; Lc 17.22,30; 18.8 (R. H.
sou eu quando v i r e s . . . " Pelo menos é o que São Marcos entendeu
Fuller considera compilações Mt 16.28; 24.30; Lc 12.8).<14) Bult-
ser o tom da confissão de Jesus no tribunal, e Bultmann e outros
mann admite que este terceiro grupo proceda diretamente de Jesus,
críticos não aduziram razões mais adequadas que nos levem a con-
mas argumenta que êle não se identificou com o Filho do Homem,
siderá-los mais bem informados no assunto.
referido sempre na terceira pessoa; a identificação fora feita pela
Igreja mais tarde. Mesmo o tão seguro Fuller tropeça aqui e diz O conceito "Filho do Homem" dos Evangelhos envolve radical
que Jesus não se considerou Filho do Homem durante a vida terre- reinterpretação das noções comuns entre os judeus sobre o Messias,
na, mas apenas "designado para o ser" — aquele que deveria so- exigida pela profunda intuição espiritual da frase "o Filho do Ho-
frer e então, só aí seria o Filho do Homem vindo na glória. d 5 ) Esse mem deve sofrer". Sem dúvida, tal discernimento baseava-se em
ponto de vista não é aceitável porque, como veremos, Jesus desig- Is 53 e no reconhecimento de que o Servo Sofredor do Senhor, aí
nou-se "Filho do Homem" para significar "o Messias que sofre se- configurado, era uma profecia do Messias. Adquirida esta compre-
gundo as Escrituras"; a feição distintamente cristã da doutrina do ensão, outras passagens podem ser aduzidas, especialmente SI 22 e
Messias, em oposição à judaica, era que o Cristo deveria sofrer, ten- 69. A passagem inteira Is 52.13-53.12, incluindo quase todas as
do Jesus empregado o termo para conotar precisamente esse con- suas frases, ecoa através do Novo Testamento — Sinóticos, João,
ceito de messianismo . " O Filho do Homem deve sofrer", disse Jesus Atos, Paulo, Hebreus e I Pedro. < > Os escritores do NT conside-19
ao ensinar os discípulos: "Cristo havia de padecer", diziam os pre- ram o termo "Filho do Homem" idêntico a "Servo" (cf. o uso de
gadores cristãos ao proclamar a doutrina escríturística do Messias, docsádzein em Jo 12.23 com Is 52.13 ( L X X ) ; cf. At 3.13, etc).
cumprida agora na morte e ressurreição de Jesus (At 3.18). Além (20) "O Filho do Homem vai (ao sofrimento) como está escrito a
disso, como Fuller já nos indicou anteriormente, ( > não havia um 16 seu respeito" (Mc 14.21), porque êle é o Servo do Senhor.<2i) Efe-
conceito já consagrado e corrente de Filho do Homem nos dias de tuava-se esplêndida síntese dos temas do AT, não apenas como novo
nosso Senhor, como ainda pensam alguns estudiosos europeus sem ensino teológico, mas também como programa de ação para o mi-
qualquer atitude crítica;< > então "Filho do Homem" deveria sig-
17 nistério de Jesus. Segundo Bultmann, contudo, Jesus não tinha
nificar aquilo que Jesus dissera aos discípulos a respeito. Eles ti- consciência alguma disso, creditando-se toda esta originalíssima e
nham idéias feitas sobre o Messias, que careciam de correção radi- profunda reinterpretação da teologia do A T a algum mestre teólo-
cal; por isso Jesus preferiu a expressão "Filho do Homem", capaz go anônimo da Igreja Helenística, antes da conversão de São Paulo.
de receber, mais do que a outra, conteúdo escriturístico (Mc 8.29- Jesus conhecia apenas as noções convencionais "enoquianas", so-
31). O ponto de vista de Bultmann de que Jesus nunca se identi- bre o Filho do Homem, comuns nos seus dias; o verdadeiro criador
cou com o Filho do Homem escatológico flui naturalmente de seu da doutrina cristã de Cristo seria algum gênio anônimo que expli-
desejo de mostrar que Jesus não tivera consciência messiânica, li- cara a nova teologia da Igreja depois que esta se espalhara pelo
berando a fé em Cristo de todas as questões históricas, tais como mundo helénico. Bultmann, de fato, não se preocupa em procurar
esta, se êle se considerava ou não o Messias. > Baseia-se na filo- (18 saber a identidade desse inovador teológico genial; contentava-se
sofia existencialista moderna e não na consideração profunda da em dizer vagamente que "a reinterpretação do conceito (judeu, do
evidência histórica, e não a precisamos seguir aqui. A dificuldade Messias Filho do Homem) não foi feita por Jesus, mas pela Igreja
levantada sobre a referência de Jesus à vinda do Filho do Homem ex eventu".^ Mas a esplêndida interpretação teológica que se
na terceira pessoa é artificial, não estando obscuro o sentido de
suas palavras. Assim o significado da resposta de Jesus à pergunta
(19) C . H . D o d d , Acc. Scrip., 94; v e r a lista de p a s s a g e n s d o N T à s págs. 92-4;
t a m b é m d o S I 22, p á g s . 97 s.; SI 31 e 34, págs. 98 s.; SI 69, p á g s . 57-9, 96 s.; S I 119,
cípulos suportassem os sofrimentos do Filho do Homem, mas acabou mem ou nesta criança que eu encontro o meu juiz, o Filho do Ho-
sendo crucificado não entre Tiago e João, que lhe haviam pedido mem, a quem posso agora socorrer ou rejeitar; encontramos Cristo
posições de privilégio à sua direita e à sua esquerda na glória (Mc nos miseráveis que suplicam nossa misericórdia e piedade em meio
de sua repulsa (Mt 25.35-46). Costumamos pensar no Bom Sama-
10.37), mas entre dois ladrões; dessa forma Jesus acabou carregan-
ritano da parábola (Lc 10.25-37) como um tipo de Cristo; e está
do sozinho o quinhão do Filho do Homem. < 3) É uma sugestão bem 2
certo, pois Jesus "andou por toda parte, fazendo o bem" (At 10.
plausível, pois Jesus poderia ter entendido a figura do Servo, de 38). Mas em sentido mais profundo o homem que cai entre ladrões
Isaías, mais como um remanescente justo do que um simples indi- é representante de Cristo — o "próximo" que precisa de mim. Cristo
víduo. Mas é difícil provar que Jesus assim pensava, porque a tra- é aquele despojado, batido e deixado quase morto, socorrido e cui-
dição do Evangelho se formou por pessoas que viram, só em Jesus, dado pelo samaritano. Está aqui o coração do agápe cristão: "a
as verdadeiras indicações do Filho do Homem. Há, contudo, como mim o fizestes". Não há mérito em nosso serviço, pois o melhor
veremos, profunda verdade neotestamentária no conceito do Filho que fizermos é indigno dele que tanto fêz por nós. O pobre sofredor
do Homem coletivo, que procede do ensino e da vida do próprio que eu auxilio faz-me um favor, e não eu a êle, pois êle me mostra
Jesus. Cristo, torna Cristo real para mim, capacita-me a tocar, tratar e
servir a Cristo.
A grandeza e a originalidade do ensino de Jesus sobre o Filho
do Homem está na maneira em que a presente pessoa humilde, sem
ter mesmo um lugar onde reclinar a cabeça, prestes a ser rejeitada Representando Cristo toda a humanidade e estando presente em
e sofrer morte vergonhosa, é a mesma pessoa do Filho do Homem cada pessoa viva, faz dos seres humanos seus representantes, sai-
que estará à destra de Deus — o "meu senhor" do SI 110.1 — que bam eles ou não, de modo que recebê-los significa receber o próprio
virá com as nuvens do céu (Mc 14.62) na glória de seu Pai com Cristo. Aplica-se nesse caso a idéia judaica da representação pessoal
os anjos, retribuindo a cada um segundo suas obras (Mt 16.27). que mais tarde produziu a instituição denominada shaliach, pela
O Filho do Homem, que vem buscar e salvar os perdidos, o Pastor qual alguém pode representar legalmente outra pessoa ou socieda-
Redentor de Israel de Deus (Lc 19.10; 15.3-7; Ez 34.16) é o de, agindo por ela. Jesus, porém, não emprega o conceito em
(25)
mesmo Juiz na última grande controvérsia entre Javé e a humani- forma legal, quando nomeia certas classes de pessoas, que espe-
dade rebelde, sentado no trono de sua glória para o julgamento das
cialmente necessitam de sua proteção, como representantes seus, a
nações, o Pastor Governador que separa as ovelhas dos cabritos (Mt
25.31 s.; Ez 34.17) e dá o reino aos santos, os benditos do Pai, para saber, as criancinhas e os apóstolos, as primeiras por causa de sua
os quais estava preparado desde a fundação do mundo (Mt 25.34; fraqueza e inocência, e os outros pelos sofrimentos e perigos que
cf. Dn 7.13 s.; Lc 12.32; 22.28-30). Não admira que a falta de envolviam a fiel pregação do Evangelho (Mc 9.37 e Mt 18.5; Mt
fé não possa captar a profundidade do paradoxo do amor todo-po- 10.40-42; Lc 10.16; Jo 13.20; cf. Gl 4.14; Fm 17). Cada sofredor
desamparado é um shaliach de Cristo; os apóstolos são sheluchim
(plural de shaliach) não por causa de indicação legal a uma "suces-
são apostólica" mas porque lá estão desamparados "como ovelhas
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mem/ ) 26 humanidade; é o Senhor que está à destra de Deus. Mas Paulo está
São Paulo leva a sério a idéia de que os discípulos de Cristo de- citando aqui outro testimonium, que é o SI 8.6, onde se diz do Filho
vem participar dos sofrimentos do Filho do Homem, com quem se do Homem: "Sob seus pés tudo lhe puseste", onde a criação animal
uniram pelo batismo na sua morte (Rm 6.4 s.), e se regozija ao é a subjugada: lembramos que na visão de Dn 7 o império dos
"preencher o que resta das aflições de Cristo... a favor do seu cor- animais cede lugar ao reino dos santos do Altíssimo representado
po, que é a Igreja" (Cl 1.24); a Igreja participa nos sofrimentos de pela figura daquele que era "como o filho do homem". Importa
Cristo (Fp 3.10) e estes fluem na vida da Igreja ( I I Co 1.5-7; cf. lembrar que todos os três testimonia do AT sobre o Filho do Homem
Fp 1.29; Rm 8.17; Gl 6.17). Cristo e a Igreja são um só corpo, usados pela Igreja apostólica « 0 ) (SI 8.4-8; 80.17; Dn 7.13 s.)
no qual, quando um membro sofre todos sofrem com êle ( I Co 12. referem-se a uma figura coletiva; ajustam-se naturalmente ao con-
26 s.). Tudo isto está implícito no conceito de Jesus a respeito do ceito do NT do Filho do Homem que reúne a nova humanidade em
Filho do Homem sofredor que ajuntou para si o remanescente fiel si mesmo e torna-se o clímax e a culminação do longo processo da
de Israel. Como freqüentemente se diz,' ?) Paulo abandona a ima- 2
criação e da recriação, o último Adão, não mais formado do pó da
gem semita do "Filho do Homem", mas retém a idéia; sua doutrina terra, mas o Filho do Homem celestial ( I Co 15.45-47). > <31
sendo santificados. Assim encontramos num tipo não-paulino de joanina do conceito do "Filho do Homem" é substancialmente a
cristianismo primitivo o conceito do Filho do Homem coletivo, cuja mesma das outras partes do NT e, segundo os fundamentos que
perfeição consiste em levar "muitos filhos" à glória na unidade do temos para afirmar, aquela que foi originalmente ensinada por Jesus
santificador e do santificado. aos apóstolos. Nesse caso como em outros, a sugestão, muitas vezes
A doutrina do Filho do Homem encontrada nos sinóticos, em feita, de que São João desenvolve elaboradamente a doutrina cristã
São Paulo e na Epístola aos Hebreus, é desenvolvida e exposta pelo primitiva, e a leva a um grau jamais imaginado por Jesus e os
autor do quarto Evangelho segundo seu modo próprio de expressão. primeiros discípulos, é tremendo exagero. São João esclarece e
Entende plenamente o ensino sinótico sobre a representação de reafirma a doutrina a seu modo, mas não lhe acrescenta nem subtrai
Cristo nos discípulos e por meio deles, dando sua própria versão de coisa alguma; não é inovador nem fazedor de doutrinas, mas expo-
certos ditos que aí se relatam: "Quem recebe aquele que eu enviar, sitor fiel e inteligente da tradição recebida.
a mim me recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou"
(Jo 13.20; cf. Mt 10.40; Lc 10.16); "Não é o servo maior do que O MITO GNÓSTICO DO HOMEM CELESTIAL
seu senhor. Se me perseguiram a mim, também perseguirão a vós
Não tínhamos mencionado ainda o mito gnóstico do Homem
outros" (Jo 15.20; cf. Mt 10.24 s.: também Jo 13.16). São João
Celestial porque estávamos tratando da doutrina do Filho do Homem
não evita, como o faz São Paulo, a expressão "Filho do Homem",
no Novo Testamento, escudados em fontes puramente bíblicas. Há,
empregando-a cerca de treze vezes. C. H. Dodd diz que "o termo
porém, alguns autores, especialmente Bultmann,* ^) que vêm no 3
o conceito de seu próprio ministério e missão. Ao rejeitar o ponto a partir da figura do Servo do Senhor, delineada pelos profetas do
de vista de que êle adotara noções comuns das especulações apoca- A T ; nela entendeu seu próprio caráter, vocação e destino. Está
lípticas ou que fora influenciado pela mitologia oriental gnóstica, presente no pensamento de Jesus a oscilação entre o servo do Senhor
devemos dar as razões de nossa preferência por uma explicação como indivíduo e como comunidade, como se verifica nos escritos do
diferente, a saber, que foi baseado em material bíblico que Jesus A T ; era mais fácil para os hebreus do que para nós, entender como
elaborou a interpretação de sua própria pessoa e missão. Esse pen- Israel poderia ser um patriarca individual e também uma nação tão
samento não é incompatível com a crença na divindade do Filho de numerosa como a areia do mar; a doutrina hebraica da personali-
Deus, pois nosso Senhor, sendo verdadeiramente encarnado, seu dade leva-nos a entender que todos os homens estão "em Adão" ou
cérebro operou humanamente, pensando e agindo em relação com "em Cristo", enquanto permanecem independentes entre si; e noção
outras mentes, embora não presumamos descrever o processo psico- difícil de ser entendida no mundo moderno, que separa tão rigida-
lógico. Não o consideramos uma espécie de crítico bíblico do pri- mente os seres uns dos outros.
meiro século, que se pusesse a analisar o AT, procurando nele ele-
mentos que pudessem ser "aceitáveis", para depois sintetizá-los numa É fácil de entender a escolha do termo "Filho do Homem".
teologia reconstruída. Melhor analogia, embora ainda inadequada, Jesus considerava-se, como Ezequiel (Ez 12.6; 24.24), um sinal
seria a do pintor que segura sua palheta repleta de cores dos mais para sua geração. O sinal do Filho do Homem era dado aos que
variados matizes; a mente do artista cria com elas combinações "ouviriam" que o propósito de Deus de salvação estava por se rea-
novas e belas: as cores estavam todas presentes na palheta e, de lizar. O Livro de Ezequiel foi aceito entre a literatura canónica
certa forma, na pintura, mas ainda não eram a pintura; a obra de judaica desde cerca do ano 200 a.C. (cf. Eclesiástico 49.8) ; e Eze-
arte não existiria até o momento em que a imaginação criadora do quiel foi considerado, com Moisés, Elias e Eliseu, um shaliach de
pintor tomasse as cores — não todas e nem a mesma proporção — Deus, como nenhum outro profeta. Esses quatro teriam realizado
e as misturasse numa nova forma de significado. Foi assim que inúmeros prodígios, incluindo até mesmo ressurreições dentre os
Jesus moldou a teologia do NT, criando-a a partir dos mistérios e
mortos que, no curso natural dos acontecimentos, seriam obras do
das intuições policrômicas do AT.
próprio Deus (Ez 37.1-14 creditaria a Ezequiel a realização de um
ato dessa natureza).<39) Mas, como o livro desse profeta se desvia
Mostram-nos as evidências que Jesus preferiu o título "Filho da Lei de Moisés, foi proibido aos judeus menores de trinta anos de
do Homem" a "Messias" não porque tivesse dúvidas a respeito de idade/ ' por pouco não sendo classificado entre os apócrifos. Con-
40
si mesmo como aquele que cumpria as profecias das Escrituras sobre tudo, exerceu grande influência no mundo hebraico, especialmente
o Ungido do Senhor, mas porque o nome de "Messias" estava aberto sobre os judeus da escola apocalíptica; o autor do Apocalipse de
a muitas falsas interpretações. Por outro lado, o título "Filho do São João seria um destes. O próprio Jesus foi profundamente afe-
Homem" poderia receber o significado que Jesus lhe quisesse dar. tado por êle; suas parábolas pastorais claramente resultaram de
Fora o título escolhido por Ezequiel, como servo do Senhor, com meditação sobre Ez 34. O "Filho do Homem" que fora posto "por
quem Deus, condescendentemente, falara e revelara sua verdade, e sinal... à casa de Israel" (Ez 12.6) emerge, à maneira hebraica,
como, deveras, falara a todos os "seus servos, os profetas" (Am no Servo do Senhor, de Isaías, e em outros tipos proféticos do Mes-
3.7). Nosso Senhor considerava os profetas do AT representantes sias vindouro; reúne e representa coletivamente o Israel de Deus;
e antecipadores do servo messiânico do Senhor, cuja vinda anuncia- é, deveras, o Israel de Deus, a humanidade recriada do novo Adão,
vam: Isaías mesmo era tipo do 'ebed lave cuja glória e humildade o Homem no qual a imagem de Deus restaura-se perfeitamente.
predissera (Is 9.6 s.; 11.1-9; 53 etc.; nada se sabia de um "segundo"
ou "terceiro" Isaías) ; Jeremias, com seu testemunho fiel, inabalável
paciência nas perseguições, tipificava o Rei Justo a respeito do qual (38) Cf. C . H . D o d d , Acc. Scrip., 117 n.: " D i z e r , c o m o é costume, q u e o A T
escrevia (Jr 23.5) ; Ezequiel era o sinal dado por Deus à sua gera- n a d a s a b e a respeito de u m F i l h o d o H o m e m s o f r e d o r , é i n e x a t o " . R e f e r e - s e a
D n 7.13 s.. N ã o d e v e m o s e s q u e c e r q u e o p r ó p r i o D a n i e l ( D n 2 e 6, etc.) é u m t i p o
ção, tendo mencionado o Pastor Servo que haveria de salvar o reba- d e C r i s t o : s o f r e e é v i n d i c a d o , p o d e n d o Is 53 a p l i c a r - s e p e r f e i t a m e n t e a êle. D e v e -
nho de Deus (Ez 34.23) ; Daniel, que sofrera por amor da justiça, m o s d e i x a r d e l a d o todas a s noções críticas q u a n d o tentamos e n t e n d e r c o m o
predissera a dádiva do Reino a "um como o Filho do homem", que Jesus teria lido o A T .
havia sofrido muita tribulação mas haveria de ser exaltado (Dn (39) Cf. S t r a c k - B i l l . , I I I , 5 s.
(40) J e r ô n i m o , Praefatio ad Ezech.
145
S E M I N Á R I O CONCORRIA
Inicia-se já a obra do Bom Pastor de reunir o rebanho espalhado
(Ez 34.12-16), a congregação do Senhor, o povo dos santos do Altís-
simo, que é o significado real da existência e da missão da Igreja
de Jesus, o Messias; mas não fruirá a plenitude, a não ser quando
o Filho do Homem, em glória, sentar-se para julgar as nações e o
Pastor Governador separar as ovelhas dos cabritos (Mt 25.31 s.;
Ez 34.17).
VII
"FILHO DE DEUS"
No mundo helénico, onde não se levava muito a sério a distinção
entre o divino e o humano, "filho de Deus" poderia significar pouco
mais do que um homem muito bom (cf. Mc 15.19 com Lc 23.47:
"filho de Deus" tinha o sentido de "justo"). O mundo estava cheio
de "homens divinos" (thêioi ándres) que diziam ser filhos de Deus
e eram até mesmo adorados como manifestações da divindade (cf.
At 8.10; 12.22; 14.11 s.; 28.6). E o imperador, naturalmente, era
divi filius. Essa linguagem baseia-se na antiga crença grega de
que os homens descendem fisicamente dos deuses; reis, filósofos,
sacerdotes e justos tinham seu ser em virtude da ascendência divina
(cf. At 17.28). É enorme a distância que vai entre esse pensamento
e a crença na criação do homem por Deus. Dificilmente poderíamos
que assim se considerou pela primeira vez; foi êle que relatou a mente não foi produzida literariamente pela "comunidade helénica"
experiência de seu batismo e da tentação no deserto ensinando aos atesta que Jesus, de fato, usou o termo. Torna-se ainda mais pro-
discípulos o que demonstravam. Ambas expõem o que significa vável porque, considerando-se o Ungido do Senhor, o título "Filho
dizer que Jesus é Filho de Deus. O Filho amado em que Deus se de Deus", segundo as evidências que existem, teria conotações mes-
compraz (Mc 1.11; cf. Mt 3.17; Lc 3.22) não é apresentado apenas siânicas na época; cf. Mc 14.61: "És tu o Cristo, o Filho do Deus
em termos do SI 2.7 mas também de Is 42.1: "Eis aqui o meu Bendito?" e Mt 16.16: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo".
servo, a quem sustenho; o meu escolhido, em quem a minha alma Fora do NT a evidência mais antiga seria 2(4) Ed 7.28 s. (onde
se compraz".* ) Jesus concebeu sua filiação como a obediência per-
6 "meu filho, o Messias" talvez não seja original), 13.32,52; 14.9;
feita do Servo do Senhor. A repetida expressão: "Se és Filho de mas essa obra já pertence à última parte do primeiro século A.D.w
Deus", na história da tentação (Mt 4.3,6; Lc 4.3,9), chama a aten- São Paulo emprega a expressão "Filho", ou "Filho de Deus",
ção para o fato de ser a filiação de Cristo idêntica à obediência do em passagens doutrinárias; alguém já disse que seria possível
Servo. Vê-se, pela própria forma da narrativa dos Evangelhos, que reconstruir a partir daí uma declaração confessional completa. O
é a obediência do Novo Israel. Como o antigo Israel, o "filho" que Evangelho está interessado no Filho de Deus (Rm 1.3 s., 9 ) , sendo
Deus chamara do Egito, e fora batizado no Mar Vermelho e tentado o tema da pregação de Paulo ( I I Co 1.19); Deus enviou o seu Filho,
no deserto, o Messias, Filho de Deus, é também batizado e tentado; nascido de mulher judia, para que fôssemos seus filhos adotivos
não importando nosso ponto de vista sobre a historicidade da fuga (Gl 4.4 s.); embora êle fosse o objeto do amor de Deus (Cl 1.13),
para o Egito (Mt 2.13-15), podemos descobrir na citação que Ma- Deus não o poupou (Rm 8.32), para que fôssemos reconciliados por
teus faz de Os 11.1 (Mt 2.15) profunda verdade teológica. O Novo meio dele (Rm 5.19) e conformados à sua imagem (Rm 8.29), até
Israel é chamado do "Egito" para estabelecer-se nova e melhor atingirmos a unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho (Ef
aliança, destinada a superar a incapacidade humana no cumprimento 4.13). Na comunhão do Filho de Deus ( I Co 1.9) aguardamos a
da condição essencial da obediência. Através do ministério de Jesus parousía ( I Ts 1.10) e o dia em que todas as coisas lhe estiverem
somente os demônios, com sua intuição sobrenatural (Mc 3.11; sujeitas, sujeitando-se também êle, "para que Deus seja tudo em
5.7), reconhecem a filiação do Senhor (segundo a narrativa de todos" ( I Co 15.28). Tal é o kérygma do cristianismo apostólico
Marcos), embora tenha sido afirmada na presença de três teste- apresentado com o auxílio de um termo que, sendo familiar aos
munhas escolhidas pela voz que viera da nuvem na transfiguração: gentios no contexto das crenças religiosas populares helénicas, se
"Este é o meu filho amado" (Mc 9.7) — as mesmas palavras que tornou instrumento de instrução missionária.
Jesus empregaria na parábola dos Lavradores Maus: ho hyiós mou
ho agapetós, (Mc 12.6). O antigo Israel é rejeitado, não mais sendo Em Hb a expressão "Filho", ou "Filho de Deus", ocorre cerca
o "filho" amado de Deus; o ato final da desobediência é a morte do de doze vezes — quatro vezes mais do que os títulos de kyrios, em
filho, a quem certamente se aplicariam as palavras: "Respeitarão a contradição com o uso paulino. É bastante pronunciada a ênfase
meu filho" (Mc 12.6). Duas passagens sinóticas preocupadas com bíblica sobre filiação no sentido de obediência. A cristologia de
o ensino de Jesus mostram-no designando-se Filho de Deus. É o Hebreus erige-se sobre o SI 2.7 (cf. Hb 1.5; 5.5), sendo, toda, uma
dito " Q " de Mt 11.27 = Lc 10.22 ("Ninguém conhece o Filho exortação a que "conservemos firmes a nossa confissão", Jesus, o
senão o P a i " ) , o qual como já vimos, > é a afirmação caracteristi-
(7
Filho de Deus (4.14). Como Filho de Deus, o lugar de Jesus é
camente hebraica de que o verdadeiro conhecimento de Deus per- superior ao de Moisés ou dos anjos, embora sua Filiação não seja
tence apenas ao Filho de Deus, porque o conhecimento vem pela uma posse independente de Deus, mas a expressão cabal da obediên-
agrada" (8.29; cf. 10.36-38) : "Não procuro a minha própria von- "Pode-se afirmar com certeza que, quando o cristianismo surgiu,
tade, e, sim, a daquele que me enviou" (5.30; cf. 6.38; 17.4). O "Senhor" era um predicado divino conhecido de todo o mundo orien-
conceito joanino de filiação é bíblico, nada tendo a ver com os mitos t a l " / ' Era uma palavra disponível aos pregadores da missão aos
13
pagãos a respeito de "filhos de Deus". gentios, cuja tarefa principal consistiria em mostrar aos converti-
dos porque havia para os cristãos apenas um Senhor, Jesus Cristo
A expressão particularmente joanina ho monoguenés huiós em- ( I Co 8.6). Atos, Paulo e, em geral, o NT,d*) demonstram abundan-
prega-se em relação a Cristo no NT somente em Jo 1.14,18; 3.16,18; temente o amplo uso de Kyrios na Igreja do primeiro século: apare-
I Jo 4.9 (em Lc 7.12; 8.42; 9.38; também a respeito de Isaque em ce só ou em combinação com "Jesus" e "Cristo" — "nosso Senhor",
Hb 11.17, não tem sentido teológico). É sinônima de agapetós que "o Senhor Jesus", "nosso Senhor Jesus Cristo", "Cristo Jesus nosso
Senhor", "o Senhor Cristo", etc. Podemos concluir que era empre-
aparece nos sinóticos (Mc 1.11; Mt 3.17; Lc 3.22, e Mc 9.7; cf.
gada universalmente na liturgia e na catequese. Para os cristãos
12.6), visto que tanto monoguenés como agapetós traduzem nos L X X de língua grega o fato de Kyrios representar Javé e Adonai nos L X X
a mesma palavra hebraica que designa "único". O fato de agapetós acrescentar-lhe-ia uma dimensão misteriosa de significado.
ter sido usada para o único filho de Abraão explica, sem dúvida, sua
aplicação a Cristo, o Cordeiro de Deus (LXX, Gn 22.2,12; Jo 1.29, Apesar disso não devemos supor (com W. Bousset) que o título
36) e também sua importância nas descrições sinóticas do batismo Kyrios tenha sido dado a Jesus pela Igreja gentílica, por exemplo,
deJesus,* ' onde tem o sentido de "meu único filho".O-D Da mesma
10
em Antioquia. Temos em I Co 16.22 evidência contrária, quando
forma monoguenés quer dizer "amado" para São João, pois êle pro- Paulo insere a fórmula litúrgica aramaica, Mar an atha, "o Senhor
cura ressaltar a verdade de que "o Pai ama o Filho" (Jo 3.35; 5.20; vem" — fórmula possivelmente traduzida em Ap 22.20 por Amén,
10.17; 15.9; 17.23-26). Mas deixa claro que a filiação de Cristo érchou, Kyrie. Esse versículo é suficiente para provar que o título
é única em virtude da relação que tem com o Pai, enquanto nós somos "Senhor" não foi inventado pela comunidade helénica. É provável
filhos pela ecsousía de Cristo (Jo 1.12). Nas versões gregas do que a frase Óntos eguérthe ho Kyrios (Lc 24.34) também fosse uma
AT ho agapetós designa Israel (cf. ho eklektós) e também o Servo fórmula litúrgica aramaica. O termo aramaico Mar (senhor) sem-
pre leva consigo um sufixo pronominal como, por exemplo, Mari
(meu senhor), Maran (nosso Senhor); segundo o Talmude, é possí-
(10) V e r infra, 180.
(11) Cf. C. H . T u r n e r , JTS, Vol. X X V I I , 1926, 113 ss. S o b r e agapetós como
(12) The Names of Jesus, 40.
título distinto, "o Amado", e . g . , E f 1.6; Ep. Barn. 3.6; 4.3,8; cf. C l 1.13, v e r J.
(13) Light from the Ancient East (ET, 2. a
e d . r e v i s t a , 1927), 350.
A r m i t a g e R o b i n s o n , St. P a w l ' s Epistle to the Ephesians, 1903, N o t a A d i c i o n a l , 229:
(14) O s únicos l i v r o s onde a palavra kyrios n ã o se e n c o n t r a s ã o Tito e as
"O A m a d o " como Título Messiânico".
epístolas j o a n i n a s ; v e r p o r m e n o r e s e estatísticas e m V - T a y l o r , o p . cit., 41-5.
vel que os rabinos fossem respeitosamente cumprimentados com a de Deus e Senhor, foi preciso reconhecer imediatamente sua pre-
expressão Mari. us> Assim, se concluíssemos que Jesus fosse sau-
existência. Se êle fosse igual a Deus, divino, não poderia ter origem
dado pelos discípulos com essa palavra, o título não estaria sendo
empregado no sentido cristológico desenvolvido. Somente Lucas temporal; teria passado pelo fenômeno do nascimento e experimen-
entre os sinóticos sugere que Kyrios empregava-se comumente nos tado a vida humana, mas não poderia ter começado a existir somente
dias do ministério de Jesus (cf. seu freqüente: " E o Senhor naquele momento particular do reinado de Herodes, o Grande. Tudo
d i s s e . . . " ) . Por outro lado, os discípulos entendiam que Jesus citara nele levava à crença na preexistência, sua pessoa, mensagem e obra.
o SI 110.1 em relação a si mesmo e falara do Messias como "Senhor" Não teria sido o que a experiência cristã da salvação declarava que
(Mc 12.35-37) ; esse testimonium exerceu considerável influência êle era, se não tivesse escolhido fazer-se homem, sendo Deus; e o
no desenvolvimento da cristologia da Igreja primitiva.d > Além 6 Evangelho cristão perderia sua originalidade, fascínio e sentido, se
disso os Evangelhos mostram Jesus ensinando aos discípulos a exis- 0 divino Filho não tivesse escolhido voluntariamente a forma de
tência de uma relação kyrios-áôulos, entre eles (Mt 10.24 s.; Lc escravo e se fizesse obediente até à morte de cruz (Fp 2.5-8; II Co
17.5-10; Jo 13.13 s.; 15.15,20), de tal modo que nos dias de seu 8.9). "Não como nós, escolheu a pobreza do nascimento e a humi-
ministério veio a ser considerado por eles como o Senhor de suas lhação da vida. Consentiu não somente em morrer mas também
vidas. Contudo, o verdadeiro significado do Senhorio de Cristo só em nascer... Seu sacrifício começou quando veio ao mundo, e sua
foi alcançado depois da ressurreição, pois nesse evento tiveram a cruz pertencia ao cordeiro morto antes da fundação do mundo" (Ap
certeza de que Deus o fizera Kyrios e Christós, êle que fora crucifi- 13.8; cf. I Pe 1.19 s.).<i»
cado ( A t 2.36). Mas mesmo assim sua fé no senhorio de Cristo A idéia de preexistência não era totalmente alheia ao judaísmo
estava presa às experiências vividas nos dias de sua carne, quando rabínico; era a maneira poética de sublinhar a importância religiosa
responderam ao seu chamado, seguiram-no e mostraram-se obedien- de alguma coisa; a Torá, o Templo e o Messias já tinham sido pen-
tes à sua vontade. Não tinham eles testemunhado seu senhorio sobre sados assim.* ) Havia, contudo, uma realidade preexistente que se
19
os maus espíritos e observado sua autoridade para com homens e levava muito a sério: a sabedoria de Deus; identificar qualquer coisa
multidões? Não se pode negar que o testemunho apostólico sobre o com a sabedoria preexistente era atribuir-lhe a mais alta realidade
senhorio de Cristo baseia-se na realidade histórica, na experiência divina possível depois de Deus. Na época do NT era lugar-comum
real dos apóstolos que lhe tinham submetido as vidas em obediência,
entre os adeptos do judaísmo rabínico dizer que a Torá era idêntica
aceitando-o como seu verdadeiro Senhor. Fora de tal realidade
histórica seria difícil explicar como o senhorio de Cristo tornou-se à sabedoria de Deus, aplicando-se à lei tudo o que fora dito sobre
na Igreja primitiva o artigo central — e, talvez, único por algum a sabedoria. Entende-se então que quando escritores do NT, como
tempo — da confissão de fé. É provável que o mais antigo credo Paulo e João, identificam Cristo com a sabedoria de Deus, reivindi-
batismal tivesse sido a simples fórmula: "Jesus é Senhor" (cf. cam para êle a mais alta categoria possível, pois nada a excedia no
Rm 10.9; I Co 12.3; Fp 2.11).<i?) Mesmo se Maran e Kyrios judaísmo rabínico. Queria dizer que Cristo superara a Torá como
fossem expressões usadas unicamente depois da ressurreição, ainda fonte de justiça, santificação e redenção, como Paulo o declara em
assim estariam baseadas no senhorio do Jesus da história, experi- 1 Co 1.30; ou, no dizer de São João, Cristo e não a Torá é o pléroma
mentado na vida dos discípulos. de toda a graça: " A lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça
e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo" (Jo 1.16 s.; cf. 1.14).
O pléroma Cháritos kài elethéias não é a lei de Moisés, como pensa-
vam os judeus rabínicos, mas Jesus Cristo.
A SABEDORIA DE DEUS Era natural que a Igreja apostólica considerasse sophía-lógos
Os títulos até agora considerados (Messias, Filho do Homem, a mais alta categoria para a interpretação da pessoa de Cristo. A
Filho de Deus e Senhor) não contêm, necessariamente, a idéia da Igreja primitiva não herdou suas categorias a partir das especula-
preexistência de Cristo, se rejeitarmos o ponto de vista de que o ções religiosas gregas, mas das Escrituras do AT, segundo a com-
conceito de Jesus do Filho do Homem tenha caráter "enoquiano". preensão do judaísmo rabínico; este fora influenciado considera-
Mas, quando a Igreja começou a adorar Jesus Cristo como Filho velmente pelo pensamento helénico, sendo o ensino paulino e joanino
a respeito de sophía e lógos exemplo característico da teologia rabi-
(15) V e r A . E. J. R a w l i n s o n , The New Testament Doctrine of Christ, Bampton
L e c t u r e s de 1926, N o t a d e A p ê n d i c e n. 1, 231-7; t a m b é m pâgs. 37 e 76-9 d o texto. as) A citação é d e P . T . F o r s y t h , P e r s o n and Place of Jesus Christ, 1909;
s e x t a edição, 1948, 271.
(16) Cf. C. H . D o d d , A c c . S c r i p . , 34 s.
(19) V e m W . D . D a v i e s , PRJ, 162; W . L . K n o x , St- Paul and the Church of
(17) Cf. O . C u l l m a n n , The Earliest Christian Confessions, E T , 1949, 41 e 55-62.
the Gentiles, 1939, 112 s.
nica cristianizada do período helénico, i.e., do pensamento judaico Assim, enquanto o conceito judaico rabínico da sabedoria nada tinha
da Palestina cativo à obediencia de Cristo ( I I Co 10.5). O desen- em comum com as mitologias gnósticas sobre emanações (mesmo
volvimento de uma cristologia baseada no conceito de sabedoria do se uma delas se chamasse Sophía), poderia facilmente ser entendido
AT, que preparou categorias de pensamento aptas a expressar no por algum filósofo "temente a Deus", como descrição poética do
NT a doutrina apostólica da pessoa de Jesus Cristo, é bastante conhe- papel representado pela razão (lógos) imanente dos estóicos: "Efe-
cido, podendo ser resumido em poucas palavras. tivamente há nela um espírito de inteligência, santo, único, multí-
A mais antiga personificação da sabedoria (hokmah, sophía) plice, sutil, discreto, ágil, imaculado, claro, suave, amigo do bem,
encontrada na literatura chamada por esse mesmo nome acha-se em penetrante, a quem nada pode impedir, benéfico, amante dos homens,
Jó 28.12-27, sendo pouco mais do que uma ênfase poética sobre a benigno, estável, constante, seguro, que tudo pode, tudo vê, e que
qualidade divina da sabedoria que opera no universo e na conduta encerra em si todos os espíritos, inteligente, puro. Porque a sabe-
da vida humana. Mas em Pv 8.22-31 ela é personificada e substan- doria é mais ativa do que todas as coisas ágeis, e atinge tudo por
cializada como instrumento de Deus e arquiteto ("mestre-de-obra", causa da sua pureza" (Sabedoria 7.22-24, versão brasileira do Pe.
L X X : harmódzousa, harmódzo, "juntar", especialmente a obra do Matos Soares). Havia muito em comum entre a sophía judaica e o
marceneiro) na criação e também regozijando-se no mundo (oikou- lógos dos estóicos; ambos encontram-se no judaísmo da dispersão.
méne) habitável, dando vida e salvação à humanidade. Eclesiástico Não temos o propósito de investigar até que ponto o autor do Livro
24.1-34 dá-nos um conceito mais elaborado: aquele que criou a sabe- da Sabedoria (c. 50 a.C.) se deixou influenciar pelo pensamento
doria antes do início do mundo, fêz para ela um tabernáculo em Israel grego, mas não há dúvida de que qualquer judeu educado de Alexan-
e estabeleceu-a em Sião (vs. 8-10). O v. 33 evidencia que pelo começo dria dificilmente ficaria imune às idéias filosóficas helénicas. Não
do segundo século a.C. a sabedoria já tinha sido identificada com a devemos imaginar que houvesse distinção radical entre o judaísmo
Torá, "a lei que Moisés nos ordenou por herança". Desde então era
da Palestina e o grego; pelo contrário, encontravam-se constante-
comum no judaísmo rabínico considerar a sabedoria e a Torá iguais,
sendo esta, portanto, o instrumento pré-existente da criação, sem o mente, tendo os rabinos da Palestina inúmeras oportunidades de
qual nada teria sido feito; e na verdade, tudo foi criado por causa aprender a respeito do Logos estóico ou de Filo. Havia muito inter-
da ToráS 2Q)
A essas passagens acrescentaríamos ainda Sabedoria câmbio; estudantes gregos, digamos, de Tarso, estudariam em Jeru-
7.15-8.1, onde ela recebe a designação de "artífice de todas as salém sob a orientação de um mestre como Gamaliel, não sendo o
coisas" (pánton techenitis) (7.22), "clarão da luz eterna" (apáu- tráfico das idéias numa só direção.* > 21
gasmá estin photós aidíou) (7.26). Além disso tem também sua parte Foi assim que os mestres da Igreja tinham à mão um conceito
na esfera da salvação: "Através das gerações, transfunde-se nas escriturístico e rabínico quando lhes foi necessário articular a dou-
almas santas e forma os amigos de Deus e profetas" (7.27). trina da divindade preexistente de Cristo. É interessante notar que
não foram as personalidades do NT que os estudiosos geralmente
Por volta do primeiro século A.D. o judaísmo já havia desen- associam com Alexandria que identificaram Cristo com a sophía
volvido a doutrina da sabedoria com nuanças comuns ao conceito Theôu, a saber Estêvão (At. 7.1-53) e o escritor aos Hebreus. A
estóico do lógos, ou razão imanente das coisas. A doutrina judaica palavra sophía não ocorre na Epístola aos Hebreus, embora seu
surgira logo depois do exílio, quando Javé era considerado o criador autor tenha sido, segundo opinião geral dos eruditos, um judeu
do universo, absolutamente transcendente, todo-poderoso e santo, helenista. Paulo e o quarto evangelista, ambos educados no rabi-
com o propósito necessário de suprir o judaísmo com o conceito da nismo da Palestina, é que usam a categoria da sophía Theôu. Numa
imanência divina, embora expresso de modo mais poético do que de suas passagens, São Paulo declara explicitamente que Cristo é
metafísico. Foi de valor incalculável: expressava a convicção judaica o poder de Deus e a sabedoria de Deus ( I Co 1-24), i.e., Deus em
do significado cósmico da moral numa época em que o conceito da ação, a sophía Theôu da literatura da sabedoria, denominado aí como
transcendência podia degenerar na crença num Deus além do bem "exalação (vapor, atmís) do âynamis Theôu" (Sabedoria 7.25).
e do mal (cf. SI 73.11; Jó 22.12 s.) e anulava as extravagâncias Paulo procura explicar que não se refere à sophía gnóstica mito-
de eóns e emanações, intermediários e "seres de luz", produzidos lógica; não se preocupa com a sabedoria mundana ou com a espe-
em profusão pelos mestres religiosos helénicos, em seus esforços
para encurtar a distância entre o mundo humano e o reino divino. (21) Cf. D . D a u b e , The New Testament and Rabbinic Juâaism (1956), i x : "A
distinção m u i t o a c e n t u a d a e n t r e o j u d a í s m o r a b í n i c o e o h e l é n i c o n o p e r í o d o d o
N T está s e n d o a b a n d o n a d a posto q u e m u i t a s i d é i a s h e l é n i c a s t i n h a m sido a d o t a d a s
^ ^ ^ ^ S ^ ^ ^ ^ ^ r a b í n Í C
° S Ô b r e a
Sabedoria e a h á m u i t o p e l o r a b i n i s m o , e q u e o p r o c e s s o d e assimilação, e m b o r a tivesse d i m i n u í d o
n ã o se e s t a n c a r a c o m p l e t a m e n t e " . Cf. t a m b é m p. 86.
.156
culação helénica: tal sabedoria humana é loucura diante de Deus.
Bem o demonstrou a "palavra da cruz", tendo Cristo sido revelado
como a sophía Theóu ( I Co 1.18-31). Jesus Cristo fêz-se para nós desejoso de apresentar o Evangelho cristão em forma aceitável aos
a sabedoria que procede de Deus, sendo, por isso mesmo, justiça, "pagãos educados"; e outro, autor do último livro do NT, judeu
santificação e redenção (1.30). O interesse de Paulo aqui não é fanaticamente devotado aos temas apocalípticos, quase incapaz de
especulativo ou metafísico; preocupa-se em convencer os coríntios escrever o grego, entregue às fantasias milenaristas de tipo judaico,
da inutilidade de procurar resolver os intrincados problemas da mito- revestidas de certo verniz cristão. Mas não estamos preocupados
logia e da especulação, que são "sabedoria deste mundo", agora que com o problema literário: poderia ter havido toda uma escola de
já lhes viera a verdadeira sophía Theóu. Na carta aos Colossenses, diferentes "Joãos" por detrás da literatura joanina do NT. Nossa
foi-lhe necessário acusar com mais veemência as especulações gnós- preocupação é mostrar a existência de certa unidade de visão teo-
ticas, recorrendo mesmo à literatura da sabedoria para esse propó- lógica nessa literatura, especialmente no que tange à doutrina da
sito. Talvez quisesse, inconscientemente, dar à teologia da sabedo- Palavra de Deus.* ' A palavra "João" significará, então, a mente
22
ria a tarefa de expulsar das igrejas gentias toda a sorte de espe- comum que anima a literatura joanina, sem afirmar com ela a auto-
culações e fantasias, como já lhes expulsara do judaísmo em que ria de um indivíduo (o filho de Zebedeu, João de Éfeso, etc.) ou
havia sido criado. Cristo é "a imagem do Deus invisível, o primo- de uma escola de mestres.
gênito de toda a criação; pois nele foram criadas todas as coisas...
Tudo foi criado por meio dele e para êle" (Cl 1.15-17). É a mesma No Novo Testamento lógos (quando usado tecnicamente) signi-
linguagem dos livros da sabedoria já citados, sendo muito significa- fica quase sempre a mensagem ou boa nova — proclamada por Jesus
tivo que Paulo em uma das duas grandes afirmações da preexistência (e.g., Mc 2.2; 4.14; Mt 13.19; Lc 5.1; 8.11) ou pelos apóstolos a
de Cristo (a outra é Fp 2.5-11) a empregue com tanta naturalidade respeito de Cristo (e.g., At 6.2; 13.5; I Co 1.18; II Tm 2.9; Ap
e presteza, sem citar diretamente, mas indicando de modo compreen- 1.9). Desde que o próprio Cristo é a palavra ou mensagem pregada
sível que essa linguagem se tornara o veículo do seu pensamento. pela Igreja, não está longe disso a literatura joanina quando o iden-
Habitava em Cristo o pléroma da divindade, assim como tinha estado tifica com a palavra de Deus — conceito que a teologia do A T passa
na sabedoria, segundo a literatura desse nome; habitava em Cristo à do NT, A palavra (hebraico, áabhar) na teologia do A T era
somatikôs, "corporalmente" (Cl 2.9). Conquanto a antiga sabedoria (como sabedoria ou espírito) um dos meios de se falar na atividade
tivesse residido em Israel e tabernaculasse no meio do povo (Ecle- criadora de Deus; Deus criara o mundo pela sua palavra. Não
siástico 24.8), a nova sophía incorporava-se em Cristo que era, cole- envolvia, originalmente, a substancialização da "palavra", e não era
tivamente, o verdadeiro Israel de Deus (Gl 6.16). Em Cristo estão necessário o emprego de letra maiúscula: Deus cria o mundo ao
ocultos todos os tesouros da sophía (Cl 2 . 3 ) . falar: "Disse Deus: Haja... e houve" (Gn 1.3,6 s., 9, 14, 20, 24
— as "seis palavras" da Criação). Não se pode imaginar maneira
mais notável ou menos antropomórfica de descrever o poder sobe-
A P A L A V R A DE DEUS rano de Deus de criar; transcende-se completamente o conceito de
São João é o único escritor do NT que descreve Cristo como um Deus que faz as coisas com as mãos; apenas pronuncia sua
Palavra de Deus (lógos Theóu), nomeada, assim mesmo, explicita- vontade e ela se faz: "Mandou êle, e foram criados" (SI 148.5;
mente, apenas no prefácio do Evangelho, ou "Prólogo", como geral- cf. SI 147.15-19; também SI 107.20; Is 55.11). "Os céus por sua
mente se denomina Jo 1.1-18. A tendência de alguns críticos atuais palavra se fizeram, e pelo sopro de sua boca o exército deles. Pois
do quarto Evangelho de considerar o prólogo uma helenização do êle falou, e tudo se fêz; êle ordenou, e tudo passou a existir" (SI
kérygma, ou pelo menos de ter sido uma tentativa de apresentar o 33.6,9). Mas a palavra do Senhor não age apenas na criação e na
Evangelho aos pagãos filosofantes do mundo helénico, traz dois ordenação providencial do mundo; é também o meio empregado por
resultados infelizes: Em primeiro lugar, obscurece a unidade e o Deus para comunicar a Israel a sua vontade salvadora: "Veio a
caráter bíblico do ensino joanino a respeito da sophía-lógos; e, em palavra de Deus a . . . " < 3) Assim, lógos Theóu, como sophía Theóu,
2
samento "joanino" enfraquece diante da suposição de que são dois (23) N o s l i v r o s proféticos os L X X e m p r e g a m s e m p r e l ó g o s p a r a traduzir
os autores com o nome de João — um, judeu helenizante, dono de a f r a s e ^familiar: " V e i o a p a l a v r a do S e n h o r " ; m a s nos l i v r o s históricos lógos e
mente filosófica, desprezando as noções milenaristas e apocalípticas, rema são u s a d o s i n d i s c r i m i n a d a m e n t e . T a l v e z s e j a interessante n o t a r que em
L c 3 . 2 : j ' v e i o a p a l a v r a d e D e u s a J o ã o " , e m p r e g a - s e rema; é p r o v á v e l que São
L u c a s n ã o t e n h a e m p r e g a d o lógos p o r q u e j á se t o r n a r a u m terminus technicus
cristão.
expressavam no judaísmo a atividade de Deus na criação, provi- sidade de se ir além das fontes do AT e dos materiais rabínicos para
dência, revelação e redenção. O judaísmo rabínico não precisava interpretar quaisquer escritos joaninos, que são plenamente hebrai-
desses dois conceitos, conservando-os, porém, porque se achavam cos e palestinos. < ' 24
cionar a sabedoria criadora com a Palavra de Deus. ceito reaparece em Ap 3.14, onde Cristo é chamado he archè tês
ktíseos tôu Theôu, título oriundo de Pv 8.22 (cf. Cl 1.15, 18, protó-
Não sabemos exatamente por que São João escolhe lógos e evita tocos páses ktíseos... hós estin archè), onde arché deveria ser
sophía, embora afirmemos que o lógos de seu prólogo seja tanto o entendido como o princípio da criação e não, naturalmente, como a
lógos Theôu como a sophía Theôu das Escrituras do AT. Abstém-se primeira coisa criada. A designação de arché aparece novamente em
de sophía, provavelmente, porque era termo mal empregado no Ap 21.6 e 22.13, ressaltando o conceito joanino de Cristo como o
mundo helénico: não quer que se pense em Cristo e no Evangelho primeiro princípio e alvo da criação, o princípio e o fim (íò télos).
O prólogo do Evangelho chama a atenção para a atividade da saphía-
como se fossem mais um tipo de sophía humana contra o que São
lógos na criação do mundo, enquanto que o Apocalipse joanino apre-
Paulo tanto teve que advertir os seus convertidos. O vocábulo sophía senta Cristo não apenas como arché, mas também télos do processo
(ou nesse caso sophós) não se vê nos escritos joaninos a não ser nas do mundo. É importante não isolar o prólogo dos outros escritos
doxologias de Ap 5.12 e 7.12 (que bem podem ser citações de um hino joaninos, pois se o fizermos, perderemos a unidade global desse
cristão ou até mesmo de um hino ao imperador "divino") e nos pensamento.
versículos problemáticos de Ap 13.18 e 17.9. Da mesma maneira
o escritor da Epístola aos Hebreus também a evita, embora não tenha Naturalmente, a notável originalidade da doutrina joanina do
aversão alguma ao emprego de conceitos filosóficos gregos para lógos, que difere da sophía ensinada pelos escritores da literatura
interpretar a pessoa e a obra de Cristo, e, sem dúvida, pense no da sabedoria (para não mencionar o lógos impessoal de Filo e dos
Senhor em termos de sabedoria de Deus: a linguagem de Hb 1.1-3 estóicos) está contida na asserção assombrosa e simples de que ho
é decisiva, com reminiscências distintas de Sabedoria 7.26. Mesmo lógos sàrcs eguéneto (Jo 1.14). O lógos puro de Filo e dos filósofos
São Paulo emprega parcimoniosamente sophía Theôu, não obstante gregos, sendo divino, não poderia relacionar-se com a matéria má
ser um conceito fundamental na sua cristologia. Também podería- e com a carne corrupta; e nada demonstra mais claramente o caráter
mos procurar descobrir as razões que levaram São Paulo a não hebraico e bíblico do pensamento joanino do que a insistência na
usar o conceito de lógos Theôu, especialmente diante de sua doutrina encarnação do lógos, que não somente estava com Deus mas era,
da nova criação em Cristo. Mas só podemos fazer conjeturas. Tal- de fato, Deus (ou divino) (Jo 1.1). O lógos tomou corpo. Filo e
vez Apolo o tivesse advertido da tentativa de Filo para reconciliar os estóicos não poderiam jamais concebê-lo, e se o fizessem abstra-
Moisés e Platão por meio de sua doutrina do lógos, como princípio
divino da razão, a respeito do qual falaram as Escrituras, quando
interpretadas por alegorias corretas! Talvez evitasse o termo pelas (24) C. H . D o d d í ê z t r e m e n d o esforço p a r a e n c o n t r a r a f i n i d a d e s entre a l i n -
mesmas razões que levaram João a não usar sophía: suas conotações g u a g e m do quarto Evangelho e a de F ü o e do Corpus Hermeticum e também s e m e -
l h a n ç a s d e p e n s a m e n t o ( Í F G , e s p e c i a l m e n t e 276 s.; t a m b é m 10-73). É p r o v á v e l q u e
gnósticas. Mas o fato de João empregar lógos não significa que se incline a e x a g e r a r a s s e m e l h a n ç a s e a o m e s m o t e m p o p e r c a d e vista os m a i s
tivesse conhecimento de Filo; todas as tentativas feitas para des- notáveis paralelos c o m o pensamento apocalíptico judaico e judaico-cristão. É
cobrir paralelos verbais ao uso joanino servem apenas para encon- c u r i o s o e n c o n t r a r nesse g r a n d e l i v r o s o m e n t e q u i n z e r e f e r ê n c i a s a o A p o c a l i p s e d e
S ã o J o ã o n o índice, d e z d a s q u a i s são c o n s i d e r a d a s e m a p e n a s m e i a p á g i n a ( 2 3 1 ) .
trá-los no AT. É possível que João tenha escolhido a palavra lógos N o t a r , p e r contra, as a f i n i d a d e s entre o q u a r t o E v a n g e l h o e o Testamento dos Doze
por motivos apologéticos; seria compreensível aos intelectuais do Patriarcas e n u m e r a d a s p o r E. S t a u f f e r , New Testament Theology, Apêndice II,
mundo grego; o próprio judaísmo rabínico recebera influência dos 334-7. A s descobertas d e Q u m r a n i l u s t r a m o c a r á t e r j u d a i c o d o q u a r t o E v a n g e l h o
estóicos, influenciando-os também por diversas maneiras. Mas São ( v e r W . F . A l b r i g h t e m T í i e Background o} the New Testament and its Eschatology,
ed. W . D . D a v i e s e D . D a u b e , 153-71; t a m b é m R . E. B r o w n e m S t e n d a h l , SNT,
João não fala num lógos Theôu, ou em qualquer outro tópico cristo- 183-207).
lógico, que careça de elucidação em categorias gregas; não há neces- (25) V e r a lista d e p a r a l e l o s citada p o r C. H . D o d d , I F G , 274 s.
tamente, não o poderiam ter conhecido. Nem qualquer outra pessoa, a Luz do Mundo. A Tora, como diz sucintamente no prólogo, foi
diz São João, se certos homens não tivessem visto realmente com dada por Moisés; a realidade da graça nos vem através de Jesus
seus olhos o lógos vivo, ouvido suas palavras e tocado nele com suas Cristo (1.17). Grande parte das expressões do prólogo são réplicas
mãos, e ainda se outros não tivessem crido no testemunho destes à teologia rabíníca da Torá, concebida como agente de Deus na cria-
( I Jo 1.1-3). (É tremendamente errôneo afirmar, como freqüen- ção e governo do mundo.' ?) Mas esse papel que se atribuía à Torá
2
temente se faz, que o termo lógos somente aparece em seu pleno não passava de um conceito meramente poético, que não se levava mui-
sentido cristológico no prólogo do Evangelho; cl. também Ap 19.13). to a sério, enquanto que as palavras de São João a respeito do lógos
A verdade sobre a encarnação do lógos não é algo que pode ser encarnado em Jesus Cristo para a salvação do mundo não eram mi-
conhecido pela razão pura, mas somente por encontro histórico tológicas (como o mito de Platão do Demiurgo, no Timeu) : ho lógos
(eguéneto), A fé cristã não é, portanto, uma filosofia, mas um sàrcs eguéneto. A sabedoria, i. e., o próprio Deus em ação, torna-se
kérygma. , | carne e sangue, entra na história humana — é o que significa sares
neste contexto joanino.
O contexto onde está inserida a declaração de que o lógos se
fêz carne lembra-nos de vários temas dos livros da sabedoria:
sophía assentou seu tabernáculo em Jacó e encontrou sua herança O antigo escritor cantara a sabedoria que habitara em Israel:
em Israel (Eclesiástico 24.8). Israel, podemos dizer, possuía a kài ho ktísas me katépausen tèn skenén mou
Torá (i.e., sophía). Mas a rejeitou: o lógos veio para os seus (tá kài eipen En Iakob kataskénoson,
ídia), mas seu próprio povo (hoi ídioi) não o recebeu (Jo 1.11). kài en Israel katakleronométheti,
Lembramo-nos também de um outro poeta da sabedoria, cuja can- en skené haguía enópion autôu eleitóurguesa
ção está incorporada agora em Enoque 42. 1 s., que cantou a ma- kài hóutos en Sion esteríchthen.
neira como ela procurou um tabernáculo na terra: " A sabedo-
ria não encontrou lugar onde habitar; foi-lhe então designada mo- (Eclesiástico 24.8,10).
rada nos céus. A sabedoria veio viver no meio dos filhos dos ho- Como lemos em Baruque 3.29-37, ninguém precisa subir ao céu
mens, e não achou lugar de repouso; a sabedoria retornou aos céus para trazer os mandamentos (Torá) (cf Dt 30.12 s.), porque a sa-
e assentou-se entre os anjos". Assim São João considera Cristo, o bedoria veio à terra e conversou com os homens: Deus a "conce-
Verbo, que, rejeitado na terra, retorna à casa do Pai no céu, prepa- deu a Jacó seu servo, e a Israel seu amado". A metáfora da sabe-
rando lugar para os que o tinham recebido (Jo 14.2 s.). Pois al- doria "tabernaculando" em Israel baseia-se, naturalmente, nas his-
guns o receberam, "nascidos de Deus" (i.e., batizados; cf Jo 3.3, tórias do Pentateuco a respeito do tabernáculo no deserto onde a
5), com o direito de se tornarem filhos de Deus ( i . e . , os que pelo glória de Deus habitava entre os homens: " A nuvem cobriu a tenda
batismo se tornavam membros da Igreja, a família de Deus) (Jo da congregação, e a glória do Senhor encheu o tabernáculo" (Êx
1.12). No fundo desses pensamentos persiste o tema joanino do 40.34-38). Deus o prometera a Israel: "Porei o meu tabernáculo
verdadeiro e do falso Israel. Temos "os judeus que diziam possuir no meio de vós... Andarei entre vós, e serei o vosso Deus, e vós
a Torá, a sabedoria celestial que habitara em Israel; mas não eram sereis o meu povo" (Ly 26.11 s.). Vemos assim as fontes do con-
filhos de Abraão (Jo 8.39-44); cf. Ap 2.9: " A blasfêmia dos que ceito joanino de Deus "tabernaculando" entre os homens; skenóun,
a si mesmos se declaram judeus, e não são, sendo antes sinagoga de lit. "habitar como numa tenda", "acampar" ou (num neologismo)
Satanás" (também Ap 3.9). É somente em Cristo, o verdadeiro "tabernacular", que nos LXX representa a palavra hebraica
Israel, que habita a sophía Theôu. As reivindicações feitas pelos shakham, habitar (e.g., Jz 5.17), encontra-se no NT apenas no
rabinos em benefício da Torá aplicavam-se verdadeiramente a quarto Evangelho e no Apocalipse (Jo 1.14; Ap 7.15; 12.12; 13.6;
Cristo, a sophía encarnada de Deus. Os rabinos diziam que a Torá 21.3). Baseia-se na promessa de Deus de que "habitaria" ou "an-
era viva agora e no mundo vindouro; era, como a água, vida para daria" em Israel (Lv 26.11 s.; Ez 37.27; Zc 2.10; 8.3,8), cum-
o mundo. Era também pão, como o maná do céu, dado por Deus prida, segundo os autores da sabedoria, na sophía de Deus descida
para o sustento do mundo; e vinho. Suas palavras eram vida para entre o povo, concebida pelos rabinos como a Torá, a glória de Is-
o mundo.' ) São João contrasta a verdade de Cristo com as pre-
26 rael. Assim entendemos Jo 1.14: a promessa de Deus cumpria-se
tensões da Torá ao declarar que Cristo é a Vida, a Água Viva, o na pessoa de Jesus Cristo; as palavras de Eclesiástico 24.8 profe-
Verdadeiro Pão, Vide (cf. também o milagre de Caná, 2.1-11), e tizam a seu respeito: "o lógos-sophía se fêz carne, e habitou entre
Deus habitará (skenósei) com eles. Eles serão povos (laói — um típica que começou a existir no primeiro dia da criação não se acha-
plural muito significativo) de Deus e Deus mesmo estará com eles va na Torá de Moisés, mas brilhou na face de Jesus Cristo (I Co 4.6;
(será seu Deus)" (Ap 21.3). O sophía-Christós dará ainda livre- cf Gn 1.3; Pv 6.23; SI 119.105, e t c ) . Cristo ocupou o lugar da
mente da água da vida a quem tiver sede (Ap 21.6; cf. Jo 4.10; 7.37; Torá, no judaísmo, excedendo-o. Tê-lo conquistado nos corações
Ap 22.17). No quarto Evangelho e também'no Apocalipse a sabe- dos judeus devotos requer explicação adequada, pois a transforma-
doria-verbo de Deus é o conceito teológico dominante; encarna em ção do próprio centro de uma religião viva e vigorosa deve ter sido
Cristo e habita entre os homens, cumprindo as antigas promessas movida por uma causa igual à grandeza do efeito. Certamente se-
das Escrituras; e o fim ou télos de todo o processo cósmico será a ria a pessoa histórica de Jesus. Os Evangelhos apresentam-no, de
criação do novo céu e da nova terra onde o Verbo habitará não fato, completando e cumprindo a obra de Moisés. Evidencia-o cla-
apenas com alguns discípulos escolhidos, mas com "as nações" (laói). ramente a maneira como lidava com a Torá. Falava com autoridade
Cristo será então contemplado tanto como o télos como a arché, o e não como os escribas que interpretavam a velha lei; e seus ouvin-
Ômega e o Alfa (Ap 1.8, 17, e t c ) , o Amém (Ap 3.14) de toda
a longa liturgia da história do mundo. Nesse ínterim, porém, o jul-
(30) T a l v e z devamos acrescentar u m a nota p a r a dizer q u e n ã o é p r o v á v e l q u e
gamento do mundo se processa em preparo para a consumação. De- a d o u t r i n a d o lógos d e S ã o João seja u m a s u b s t a n c i a l i z a ç ã o d e m e n i r » ( a r a m a i c o :
corre inevitavelmente do fato de ter vindo a luz ao mundo (Jo 3.18 " p a l a v r a " ) , f r e q ü e n t e n o s T a r g u n s d o A T , c o m o artifício r a b í n i c o p a r a e v i t a r o
n o m e d e D e u s . A p a l a v r a r a b í n i c a memra era empregada apenas devocionalmente,
n ã o s e n d o u m p r i n c í p i o d e e x p l a n a ç ã o filosófica. Cf. C. K . B a r r e t , GSJ, 128:
(28 > V e r s u p r a , 68. "Memra é u m b e c o s e m s a í d a no estudo d o s f u n d a m e n t o s b í b l i c o s d a d o u t r i n a
(29) V e r s u p r o , 29. do Lógos de São João".
(31) V e r W . D . D a v i e s , PRJ, c a p . 7, e s p . 148-50.
tes maravilhavam-se diante do que reconheciam ser uma espécie de de um novo Deuteronômio/ * ) O certo é que toda a tradição do
3 5
kainè didaché, nova Torá (Mc 1.22,27). "Ouvistes que foi dito aos Evangelho, como já notamos, enquadra-se na forma do Pentateuco,
antigos. .. Eu, porém, vos d i g o . . . " (Mt 5.21 s., 27 s., 33 s., 38 s., porque a libertação de Israel do Egito era o único exemplo de re-
43 s.). As raízes da doutrina cristã de Cristo, considerado a Sa- denção que os escritores do NT conheciam/ ) Jesus era o novo 37
bedoria de Deus, estão firmemente ligadas às obras e à pessoa his- legislador, o profeta libertador semelhante a Moisés, e o mediador
tórica de Jesus. Não pretendeu anular a Torá mosaica; não foi de uma nova aliança. Era tudo isso, não porque algum rabino edu-
contra ela que se dirigiu, mas contra as evasões dos escribas ("a cado o tivesse imaginado, depois de longa e persistente meditação
tradição dos anciões") (Mc 7.13). Chama a Torá de "palavra de na teologia do AT, mas porque êle era o que era, aquele que compelia
Deus" (ho lógos tóu Theôu) (Mc 7.13). Seu "novo ensino" ti- os seguidores a pensar no sentido das coisas qu? fazia e nas pala-
nha a intenção cTe corrigir as adaptações introduzidas na Torá por vras que proferia, em termos já aplicados uma vez a Moisés e à Torá,
causa da dureza dos corações humanos (Mc 10.5) ; queria restau- e que desde então só poderiam ser apropriados a êle.
rá-la à sua pureza original e cumpri-la (Mt 5.17). "Até que o
céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da lei" A "forma do Pentateuco" de todos os quatro Evangelhos é res-
posta suficiente às teorias sobre a helenização da fé professada pela
(Mt 5.19). Não nos surpreende então que os discípulos vissem nele Igreja apostólica. Se pudermos resumir rapidamente o caminho
o esperado "profeta semelhante a Moisés" (Dt 18.15,18). Assim, que tomou a cristologia do NT, como notamos neste capítulo e no
quando nos Evangelhos Jesus recebe o título de "um profeta" ou precedente, observaríamos três estágios. Em primeiro lugar, temos
"profeta", devemos entender que é Moisés ou o novo Moisés que o aparecimento de Jesus, "o Profeta" que surpreendeu o povo ju-
está implícito: não quer dizer que Jesus seja um a mais na série daico e seus rabinos, ao reivindicar autoridade para aperfeiçoar e
dos profetas do AT, mas, especificamente, o Moisés que deveria vir cumprir a Torá, e ao demonstrar por palavras e sinais que o pro-
(cf. Mt 21.11, 46; Lc 7.16; 13.33; 24. 19; Jo 4.19; 6.14; 7.40; feta anunciado por Moisés havia chegado. Em segundo lugar, te-
9.17). Além disso, Jesus dera "sinais" que demonstravam essa ver- mos a cristologia do Messias-Servo, ensinada por Jesus aos discí-
dade aos que tivessem olhos para ver (os milagres da alimentação). pulos, nos últimos estágios de seu ministério terreno, que se ba-
É o Evangelho de São Mateus que mais procura apresentar o seava na compreensão escriturística de que o Profeta, quando vies-
ensino do senhor como a nova Torá dada pelo "profeta Jesus, de se, seria rejeitado pelos que o deveriam ouvir. Em terceiro lugar,
Nazaré da Galileia" (Mt 21.11). Embora escrito em grego, seu ju- temos na Igreja apostólica, a cristologia mais elaborada do verbo-
daísmo é do Talmude e não de Alexandria; assemelha-se ao rabinis- -sabedoria, que depois da ressurreição, sob a luz do Espírito Santo,
mo de Jâmnia, que veio dominar o judaísmo.* ) B. W. Bacon in- 32
chegou a conclusões que estavam inevitavelmente envolvidas na vida,
dicou há tempo que Mateus colecionou o ensino do Senhor em cinco ensino, obra, morte e ressurreição de Jesus. Essa cristologia apos-
"livros" ou discursos, inspirado nos cinco livros da lei/ ) a saber, 33
tólica, ao identificar o verbo-sabedoria de Deus, criador, transcen-
Mt 5-7; 9.36-11.1; 13.1-53; 18.1-19.1; 24-25; cada uma dessas deu grandemente os limites da cristologia do primeiro tipo, embora
cinco secções termina com a fórmula: " E aconteceu que, concluin- suas categorias não deixassem de ser judaicas. Como bem entendeu
do Jesus estas palavras", não sendo acidental esse arranjo.* ) Po- 34
o autor da Epístola aos Hebreus, uma cristologia do "Novo Moisés"
de-se argumentar dizendo que São Mateus assim teria organizado não expressaria adequadamente toda a verdade sobre o Apóstolo e
o material de seu Evangelho para sugerir que a promulgação da Sumo-Sacerdote da confissão cristã: Moisés, devemos entender, foi
nova lei acompanhava-se dos mesmos sinais e maravilhas manifes- somente um servo na família de Israel, embora fosse o maior deles;
tados por Javé na libertação do povo do Egito.* ) São Lucas teria 35
mantinha o cuidado da casa somente até a vinda de Cristo, o Filho
adotado outra maneira de dividir seu material, embora apresente e herdeiro. Ou, numa metáfora diferente, diríamos que Cristo não
Jesus, a seu modo, como o dispensador de um novo "Protonômio" e era, como Moisés, apenas urna parte da casa: era o edificador da
casa inteira (Hb 3.1-6).
(32) V e r G . D . K i l p a t r i c k , The Origins of the Gospel According to St. Mat-
thew, 1946, 106.
(33) Studies in Matthew, 1930.
(34) Este a r r a n j o e m cinco " l i v r o s " n ã o d e i x a d e ser significativo, m e s m o se
p e n s á s s e m o s no E v a n g e l h o c o m o u m t o d o na f o r m a de u m n o v o h e x a t e u c o ( v e r
A u s t i n F a r r e r e m Studies in the Gospels, ed. D . E. N i n e h a m , 7 5 - 7 ) . O f a t o de u m
escritor d o N T c o n s i d e r a r C r i s t o u m n o v o M o i s é s n ã o o i m p e d e d e p e n s a r n e l e ,
t a m b é m , c o m o u m n o v o Josué. (36) V e r C. F. E v a n s e m Studies in the Gospels, 37-53.
A VIDA DE CRISTO
Sabe-se hoje muito bem que os quatro Evangelhos não nos dão
suficiente material para se escrever uma biografia de Cristo no
sentido moderno. Logo após a aceitação geral de que o Evangelho
de São João era de caráter "teológico", a crítica da forma chegava
também a conclusão semelhante em relação ao Evangelho de São
Marcos. A geração anterior de estudiosos, representada, por exem-
plo, pelo livro de F. C. Burkitt, Gospel History and its Transmission
(1906), batera-se veementemente em favor da veracidade histórica
do resumo da vida de Jesus que se vê em Marcos; mas os críticos da
forma, representados, por exemplo, pela obra de Karl Ludwig
Schmidt, Der Rahmen der Gesckickte 3em (1919), procuraram mos-
trar que a moldura da narrativa onde Marcos teria incluído as diver-
sas pericopae, que flutuavam livremente na tradição, não passava
de conveniente invenção literária do evangelista, não podendo ser
considerada de natureza histórica. Posição intermediária foi toma-
da por C. H. Dodd num artigo muito importante: "The Framework
of the Gospel Narrative", publicado em 1932,d' no qual assevera
que fora preservado na tradição cristã primitiva um esboço esque-
mático do ministério histórico de Jesus que veio a ser usado por
São Marcos, quando escreveu seu Evangelho. Vincent Taylor em
The Life and Ministry of Jesus (1954) e muitos outros estudiosos
britânicos e americanos adotam posição semelhante.
Deixando de lado o fato de que as histórias natalinas de Mateus e uma profecia de que Cristo seria chamado Nazareno, mas jamais
Lucas são tão judaicas como qualquer outra parte do NT, é neces- se explicou a que texto das Escrituras se referia (Mt 2.23). A ma-
sário indicar um fato óbvio para demolir esse tipo de argumenta- tança dos inocentes e a fuga para o Egito poderiam ser tidas como
ção superficial. Não existe paralelo algum, em qualquer religião ou lendas inventadas para cumprir profecias do AT, mas no caso da
primeira a "profecia" é-lhe tão distante que somos forçados a aban-
donar a teoria; mas o nascimento em Belém e sua residência em
(6) N ã o e x i s t e p r o b a b i l i d a d e a l g u m a d e q u e L c 1.34 seja u m a c o r r u p ç ã o
textual, posto q u e u m só m a n u s c r i t o das antigas v e r s õ e s latinas das E s c r i t u r a s
Nazaré são fatos corroborados por São Lucas, que não podem ser
( c. A . D . 150-200) dificilmente f a r i a frente às o u t r a s a u t o r i d a d e s t o d a s ( v e r J. M . explicados como criações de São Mateus para cumprir profecias do
C r e e d , Gospel according to St. Luke, 13 s . ) . S ã o L u c a s e q u a c i o n a o E s p í r i t o S a n t o AT. A história dos sábios (Mt 2.1-12) não pretende realizar pre-
com a dynamis d o A l t í s s i m o . E m interessante estudo d e episkiádzo, "cobrir", D. dição alguma; parece, antes, uma profecia que aguarda cumprimen-
D a u b e a f i r m a q u e a n a r r a t i v a d a a n u n c i a ç ã o , d e L u c a s , indica u m p a r a l e l o e n t r e
M a r i a e R u t e ; cf. L c 1.38: " A q u i está a s e r v a d o S e n h o r " , c o m R.t 3.9: "Sou
to (a reunião dos gentíos). Mas devemos cuidar para que nosso jul-
R u t e , t u a s e r v a ; estende a tua c a p a s o b r e a tua s e r v a . . . " " N a literatura rabínica, gamento não seja afetado pelas interpretações cristãs tradic'onais:
R u t e é c o n s i d e r a d a ao m e s m o t e m p o a r e p r e s e n t a n t e d o v e r d a d e i r o p r o s é l i t o e por exemplo, a tradição sempre considerou o episódio como "a ma-
t a m b é m a n c e s t r a l d e D a v i o d o Messias. S u a v i d a é, m u i t a s vezes, i n t e r p r e t a d a
c o m o p r e f i g u r a ç ã o d e eventos messiânicos. B o a z , nesse caso, r e p r e s e n t a o p r ó p r i o
D e u s " ( D . D a u b e , The New Testament and Rabbinic Judaism, 33). Explicar-se-ia
(8) V e r C. K . B a r r e t t , The Holy Spirit and the Gospel Tradition, 1947, 6-10.
assim o " e n v o l v i m e n t o " d e M a r i a p e l o Espírito S a n t o .
(9) Ver s u p r a , 150.
(7) The Meáialor, E T , 1934, 322-7.
nif estação de Cristo aos gentíos", mas nada existe na história á Espírito Santo" (1.20). Chama-se Jesus, Josué, o Libertador, que
sugerir que os magos representavam, para Mateus, os judeus da conduzirá o Novo Israel à Terra da Promessa/ ) 11
dispersão. (Nem nos d'iz que eles eram três!). Seremos prudentes,
se tivermos diante desses contos, ricamente devocionais, uma ati- São Lucas dá muita importância ao papel tomado pelo Espírito
tude de reverente agnosticismo no que concerne aos fundamentos Santo em todas as circunstâncias do nascimento de Jesus. O nasci-
históricos. mento de João Batista é também miraculoso como o de Isaque; não
é outro senão o novo Elias predito por Malaquias (4.5 s.; cf. Ecle-
Nada prova o fato de o nascimento virginal de Cristo ° ) não (1
siástico 48.10), e está "cheio do Espírito Santo, já do ventre mater-
ser mencionado nos outros livros do NT, além de Mateus e Lucas, no" (Lc 1.15) ; sua mãe Isabel e o pai, Zacarias, também estão
a não ser a verdade muito óbvia de que não fazia parte do kérygma cheios do Espírito Santo (Lc 1.41, 67). Durante a apresentação no
original. Não se pode determinar a época em que a cláusula sobre templo o Espírito Santo desce sobre Simeão (2.25-27) e, presume-se
a natividade teria sido incluída nas confissões batismais de fé. Mas (embora não se diga explicitamente), sobre Ana, a profetisa (2.
não haveria de esperar muito, posto que se ajustava perfeitamente 36-38). Como na história completamente diferente de Mateus, onde
nesse contexto: Cristo nascera, como nascem os cristãos, não "do os anjos são portadores de revelação divina (Mt 1.20; 2.13 —
sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem (anér), embora o anjo tenha aparecido a José em sonhos; Lc 1.11-20; 1.26-
mas de Deus" (Jo 1.13) : quando os cristãos, no batismo, confes- 37, a anunciação; 2.9-15, os pastores), é o Espírito Santo, e não os
sam a fé nesse nome, recebem o poder de serem feitos filhos de anjos, o agente de Deus no evento do nascimento de Cristo. Três
Deus (Jo 1.12). Nascem "do Espírito", e o nascimento de Cristo hinos proclamam o despontar da nova era: o Magnificai de Maria
resulta da operação do Espírito. É o que significa principalmente (Lc 1.46-55), o Benedictus de Zacarias (1.68-79), e o Nunc Dimittis
( 2 . 29-32): he anatolé ecs hypsous (Lc 1.78; cf. Ml 4.2) — a
o nascimento virginal para Mateus e Lucas: o sinal da inauguração
nova aurora — já chegou; Deus "visitou e redimiu o seu povo"
das últimas coisas, o primeiro resultado da dádiva do Espírito San-
(1.68); "amparou a Israel seu servo" (1.54) ; e os olhos humanos
to nos dias finais, quando a nova criação instaurava-se no dia da contemplaram, deveras, a salvação (2.30). São hinos tão judaicos
redenção de Israel (Is 32.15; Ez 36.26 s.; 37.14; SI 51.10 s.; Jl como qualquer Salmo do A T e, contudo, cristãos como qualquer
2.28 s.; 12.10, etc.). O nascimento de Cristo era para a humanida- outra porção do NT em sua convicção de que já foi inaugurada a
de o que o batismo do cristão é para o indivíduo, o início das últi- era da promessa no momento em que Cristo foi concebido pelo Es-
mas coisas, ambos resultando da operação do Espírito Santo. O pírito Santo.
Espírito Criador (Gn 1.2; SI 33.6; 104.30; Sabedoria 7.21 s.,
25; Judite 16.14) traz a nova criação; o Espírito doador da vida A doutrina do nascimento virginal de Cristo é parte integrante
começa a soprar sobre a nova humanidade (cf. Gn 2.7; Jo 20.22). da teologia do NT. Expressa a verdade de que Deus pôs em movi-
mento a seqüência de eventos que há de culminar no julgamento
O Espírito, o poder do Altíssimo (Lc 1.35), é o agente dispensa-
final do mundo e na salvação dos eleitos; é doutrina bíblica e judai-
dor da vida por ocasião do nascimento do novo homem, Jesus Cristo
ca como qualquer outra encontrada no NT. O nascimento de Cristo
(cf. I Co 15.45). As duas narrativas acentuam a instauração da é um evento escatológico que faz parte da nova era, manifestando
nova era. ~R de muita importância e significado o uso repetido, a esperada atividade vivificadora do Espírito nos últimos dias. É
em Mateus, da palavra guénesis ( 1 . 1 ; 1.18); êle está escrevendo singular, não tendo paralelos no AT ou no mundo pagão; São Ma-
um novo Livro de Gênesis, que descreve a guénesis de Jesus Cristo, teus e São Lucas no-lo apresentam em seu ambiente escatológico
o novo Adão, a nova criação. Os cinco cumprimentos daquilo "que próprio, demonstrando claramente que não consideram Cristo um
fora dito pelo Senhor, por intermédio dos profetas", discutidos no dos Thêioi ándres da religiosidade greco-oriental. É único porque
penúltimo parágrafo acentuam a verdade de que aconteciam agora ocupa aquele lugar reservado à vinda do Salvador na economia di-
as coisas esperadas pelos profetas do passado: "Maria... achou-se vina da redenção, a qual o A T proclama por antecipação e o NT
grávida pelo Espírito Santo" (1.18). "O que nela foi gerado é do evidencia como já realizado. É singular porque Jesus Cristo tam-
bém o é, não se ajustando a modelos de "gênios religiosos" ou "ho-
(10) L e r e m J o 1.13, qui... natus est, c o m o hòi... eguennéthesan não pode
ser c o n s i d e r a d o o r i g i n a l , e m b o r a a p a r e ç a e m d i v e r s a s a u t o r i d a d e s ocidentais; m a s (11) J e s u s é a f o r m a l a t i n a d e Iesòus, q u e , p o r sua vez, é a t r a n s l i t e r a ç ã o
poderia ser dito q u e S ã o J o ã o cita o n a s c i m e n t o dos cristãos ( " d a á g u a e d o grega de Josué ( n o a n t i g o h e b . e a r a m a i c o , Jeshua); cf. A t 7.45 e H b 4 . 8 . , N ã o
E s p í r i t o " , J o 3 . 5 ) q u e , assim c o m o o n a s c i m e n t o h u m a n o d e Jesus, p r o c e d e d a era raro e n t r e os j u d e u s ( L c 3.29; C l 4 . 1 1 ) . A p a l a v r a h e b r a i c a s i g n i f i c a " J a v é
v o n t a d e d i v i n a e n ã o da h u m a n a ; v e r C. K . Barre.tt, GSJ, 137 s. salvará" (cf. M t 1.21).
mens divinos"; é elemento não radicado no quadro total do teste- 38). Contrasta-se o orgulho de Eva, gerador da ambição fatal de
munho apostólico de Cristo, que tem sido dado à Igreja sob a orien- ser "como Deus" (Gn 3 . 5 ) , com "a humildade da sua serva" (Lc
tação do Espírito Santo. A relutância de alguns cristãos modernos 1.48). Assim como Eva foi despedida "vazia" do Paraíso (Gn
em crer no nascimento virginal de Cristo procede da incompreensão 3.23 s.), Maria foi, como os famintos, "repleta de bens" (Lc 1.53).
da Bíblia e da natureza de seu testemunho; a ignorância do signi- Cumpre-se o Protevangelium (Gn 3.15) : a descendência da mulher
ficado das Escrituras sempre resulta na falha de se perceber a fere a cabeça da serpente; o Filho de Maria liberta do poder do
ação maravilhosa de Deus (cf. Mt 22.29). pecado os decaídos filhos de Eva. Os sofrimentos da gravidez de
Eva (Gn 3.16) contrastam com o júbilo de Maria: "O meu espí-
A BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA rito se alegrou em Deus, meu salvador" (Lc 1.47). A missão de
dar à luz filhes, diz o escritor de I Tm 2.15 misteriosamente, par-
Quando São Lucas diz que Jesus é o primogênito de Maria ticipa na responsabilidade da redenção; fala sobre as mulheres em
(tòn huiòn autês tòn protótokon, 2 . 7 ) , considera-o, sem dúvida, o geral e não Maria, em particular. Contudo, é um pensamento que
mais velho dos irmãos (cf. Lc 8.19 s.). Provavelmente (embora se aplica com relevância a quem foi altamente favorecida, ou agra-
não possamos ter certeza, por ser Lucas um teólogo extremamente ciada (Lc 1.28), cujo filho veio a ser chamado de santo, o Filho de
sutil) não percebeu que os irmãos de Cristo, dos quais êle é o Deus (Lc 1.35). O Magníficat de Maria expressa a gratidão pelo
protótokos, i. e., todos os cristãos batizados, são, no verdadeiro sen- privilégio singular de ser portadora do ônus da redenção, e tam-
tido, filhos de Maria, que é a "mãe" de todos os cristãos, assim, como bém a alegria de ter nascido ao mundo O HOMEM (cf. Jo 16.21).
Eva era "a mãe de todos os seres humanos" (Gn 3.20). O NT, en- A Igreja inteira regozija-se com ela cantando o Magníficat; os cris-
tretanto, não desenvolve o paralelo entre Maria e Eva como o faz tãos de todas as gerações a têm chamado de "bem-aventurada" (Lc
entre Adão e Cristo; Jo 16.21 e I Tm 2.15 seriam referências de- 1.48). Não podemos dizer exatamente até que ponto São Lucas,
masiadamente vagas para apoiar essa analogia. Talvez esteja im- que registra o cântico de Maria, percebeu todas as suas conseqüên-
plícito em Ap 12.1-6 e 13.17, onde, numa passagem altamente fi- cias bíblicas, especialmente o paralelismo com Eva; mas, como os
gurada, São João descreve a visão da "mulher vestida do sol" que estudiosos modernos têm boas razões para considerá-lo um teólogo
dá à luz "um filho varão". Não há dúvida de que este é Cristo, que compreende a Bíblia com profundidade e sutileza, somos levados
pois terá "autoridade sobre as nações, e com cetro de ferro as re- a crer que não lhe escaparam considerações como essas.* ' 12
mita-se ao papel histórico de ter dado Cristo à luz. Os Evangelhos omite todas as referências ao batismo de Jesus, apresenta João Ba-
raramente a mencionam fora das narrativas natalinas de Mateus tista dando testemunho da descida do Espírito, como pomba, sobre
e Lucas: os sinóticos descrevem como "sua mãe e seus irmãos" pro- êle (Jo 1.32 s.) e declara-o abundantemente dotado pelo Espírito
curavam Jesus, quando êle exercia o ministério público (Mc 3.31- (Jo 3.34).
35; Mt 12.46-50; Lc 8.19-21) ; João diz que ela estava presente por O relato sinótico do batismo de Jesus emprega o artifício ra-
ocasião do milagre de Caná (Jo 2.1-5) e também que ela estava bínico do Bath-qol para expressar o significado divino do evento.
entre as mulheres ao pé da cruz no Calvário, tendo sido entregue As palavras proferidas pela "voz dos céus" (Mc 1.11) identificam
por êle aos cuidados do discípulo amado (19.25-27). Não há Jesus como o Servo do Senhor, já descrito nos cânticos de Isaías a
outras referências a ela nos Evangelhos além de Mc 6.3 ( = Mt esse respeito: "Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo (Mc
13.55) e o hipotético v. 27 de Lc 11. At 1.14 é a única referência 1.11; cf. Mt 3.17; Lc 3.22). Refere-se a Is 42.1: "Eis aqui o meu
fora dos Evangelhos, onde lemos que Maria estava com as mulheres servo, a quem sustenho; o meu escolhido, em quem minha, alma se
que "perseveravam unânimes em oração" juntamente com os dis- compraz; pus sobre êle o meu Espírito". Na versão de Isaías lida
cípulos, logo após a ascensão. Os evangelhos apócrifos procuram por Marcos, que não era a dos LXX, (cf. Mt 12.18-21) huiós apa-
compensar a quase ausência de interesse dos evangelistas canónicos rece em lugar de pais e agapetós de eklektósS ^ Lembram tam- 15
mas nada conseguem acrescentar ao conhecimento histórico, que te- bém o SI 2.7: "Tu és meu filho, eu hoje te gerei". A segunda par-
mos, de Maria. Não se encontra na Igreja neotestamentária qual- te da citação não é do Salmo, não havendo, naturalmente, idéia de
quer atitude de hiperdulia * > sendo a única referência sobre o assun-
13
uma cristologia adocionista. O dia do batismo, como bem sabiam
to no NT a palavra do Senhor deprecando toda a veneração exces- os cristãos, era do "novo nascimento", e Cristo no seu batismo foi,
siva de um relacionamento físico e considerando mais abençoada a por assim dizer, "gerado" de seu Pai como o seu único filho, ou
relação moral: "Uma mulher, que estava entre a multidão, excla- seu filho amado.
mou e disse-lhe: Bem-aventurada aquela que te concebeu e os seios
que te amamentaram! Êle, porém, respondeu: Antes bem-aventura- A narrativa de Marcos dá-nos a impressão de que somente
dos são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam!" (Lc 11.27 Jesus teria visto os céus rasgarem-se e o espírito descendo como
s.). pomba, como numa visão, só êle ouvindo a voz (cf. Mc 1.10, êide) ;
Mateus muito pouco altera essa impressão ao dizer que Jesus viu
a pomba descendo (Mt 3.16) ; mas Lucas sugere que todos teriam
O BATISMO DE JESUS visto esses eventos (cf. somatikô éidei, 3.22). Não podemos hoje
Ainda há pouco era comum dizer-se que a importância do ba- reconstruir "o que aconteceu" no batismo, porque os escritores dos
Evangelhos não estavam preocupados com esse tipo de informação,
tismo de Jesus por João no Rio Jordão devia-se à profunda expe-
o que de modo algum afeta nossa compreensão do sentido do even-
riência religiosa que êle tivera nessa ocasião, convencendo-se de sua to. Poderemos estar certos de que o próprio Jesus teria ensinado
missão e poderes divinos. Psicologizar dessa maneira repugna ao aos discípulos qual era esse significado; e, também, razoavelmente
ponto de vista dos Evangelhos sinóticos que jamais pretenderam inferir que êle já aceitara sua vocação de Servo-Messias, quando,
falar das "experiências" de Jesus. O batismo era-lhes importante com as multidões, ia ser batizado por João. Aceitara o papel de Ser-
porque representava a unção de Jesus com o Espírito Santo para o vo Sofredor que fora ferido pelas transgressões do seu povo, em-
ofício e tarefa do Servo Messiânico do Senhor. Assim como os reis bora nunca tivesse feito injustiça nem se achasse dolo algum em
de Israel, ungidos, tornavam-se meshiah Javé, o Ungido do Se- sua boca (Is 53.8 s.). Era o Servo (cf. ho diakonôn, Lc 22.27) que
nhor (e.g., I Sm 16.13; SI 89.20; I I Rs 9 . 3 ) ; como ainda, mais justificaria a muitos, levando sobre si as iniquidades deles (Is 53.
tarde, os sacerdotes recebiam a unção para o exercício de seu ofício 11), sendo esta a razão pela qual se batizara. Aquele que não tinha
sagrado (Êx 29.7; 40.13-15; Lv 8.12; SI 133.2, e t c ) ; e, acima pecado recebe o batismo de João "de arrependimento para remissão
de tudo, como a figura, descrita por Isaías, do Profeta, fora ungi- de pecados" (Mc 1.4) pela mesma razão que morrera: "O Senhor
da com o Espírito do Senhor (Is 11.2; 42.1; 44.3; 61.1), tam-
bém Jesus, o Profeta Messiânico, Sacerdote e Rei, é agora ungido
(14) O s profetas não são ungidos no A T ; E l i s e u seria a ú n i c a e x c e ç ã o ( 1 R s
(13) Hiperdulia ( " v e n e r a ç ã o " — p a l a v r a n ã o e n c o n t r a d a no N T ) , s e g u n d o 1 9 . 1 6 ) . A f i g u r a d o p r o f e t a , s e g u n d o Isaías, é, n a t u r a l m e n t e , u m caso todo especial
os teólogos católicos r o m a n o s , d i s t i n g u e - s e de latria (cf. latréia, Jo 16.2; R m 9.4; o u ideal, q u e toma t a m b é m o c a r á t e r d e rei ( I s 9.6 s., etc.) e d e s a c e r d o t e ( I s 5 3 - 1 2 ) .
12.1; H b 9 . 1 , 6 ) , q u e é a s u p r e m a a d o r a ç ã o o f e r e c i d a , p r o p r i a m e n t e , só a D e u s . (15) S o b r e a g a p e í ó s , v e r s u p r o , 150 e 152 s.
fêz cair sobre êle a iniqüidade de nós todos" (Is 53.6). Na quali-
dade de Homem Representativo, leva ao batismo de arrependimen- Cordeiro sacrificial dado por Deus para tirar o pecado do mundo. * > 16
to os pecados do mundo, como os carregaria mais tarde ao batismo Toda a teologia do sacrifício do N T estaria assim implícita no ato
da cruz. Há profundo significado em Jesus ter concebido sua morte de Jesus ser batizado "para remissão de pecados". Não há razão
como um batismo, a ser participado pelos discípulos (Mc 10.38 s.; para se supor que Jesus não sabia exatamente o que estava fazendo;
Lc 12.50) : a retirada do povo de Deus da escravidão do Egito, por é, certamente, mais provável que o próprio Jesus tivesse feito, êle
meio do batismo no mar da morte ( I Co 10.1 s.), através de um mesmo, esta profunda reinterpretação do plano da salvação do'AT,
êxodo maravilhoso (cf. Lc 9.31), até à Terra da Promessa. do que a Igreja, uma ou duas décadas depois.
Não se compreende imediatamente o simbolismo da pomba na
O batismo de Jesus é, então, prenúncio de sua morte. Se dis-
descrição do batismo (Mc 1.10; Mt 3.16; Lc 3.22) por não haver
sermos que aquele que não cometeu pecado não deveria ter recebido
analogias que se lhe assemelhem nos escritos rabínicos.* ) Talvez 17
falado com Deus, amedrontando-se os filhos de Israel (Êx 34.29 s.) ; Moisés e Elias figurem na história por causa da expectação do
da mesma forma, quando Jesus desceu do Monte da Transfiguração, "profeta semelhante a Moisés" e de Elias, que haveria de surgir nos
a multidão "tomada de surpresa, correu para êle, e o saudava" (Mc últimos tempos (Ml 4.4 s.; Mc 9.11, etc.) ; Lohmeyer aproxima-se
9.15) : o evangelista deixava aos mestres da Igreja, que deveriam da verdade, quando supõe que os três discípulos são o Keim und
usar suas compactas notas, a tarefa de explicar aos catecúmenos o Kern, os membros fundadores, da comunidade escatológica, receptora
sentido dessa "surpresa". São Lucas, tendo notado que fora a face do mistério revelado do Filho do Homem na glória de sua parousía.
de Moisés que brilhara (Êx 34.29, L X X : dedócsastai he ópsis tôu Segundo São Marcos, Pedro, Tiago e João percebem, num lampejo,
chrómatos tôu prosópou autôu), acrescenta, à brancura das vestes a futura glória do Messias, que eles confessam, desvelando-se por um
de Jesus, que "a aparência do seu rosto se transfigurou" (tò eidos momento o incógnito de sua pessoa. Mas apenas São Lucas men-
tôu prosópou autôu héteron, Lc 9.29). A voz de dentro da nuvem ciona a dócsa, acrescentando que fora vista pelos discípulos (9.31
(Bath-qol) repete (com pequenas variações), nos três sinóticos, as s.); embora a idéia da dócsa escatológica não esteja ausente da narra-
mesmas palavras celestiais proferidas no batismo de Jesus: "Este tiva de Marcos. A sugestão de São Pedro, de se construírem três
é o meu filho amado"; nota-se, porém, uma adição: " A êle ouvi" tabernáculos não é, naturalmente, fora de propósito, como geral-
(akóuete autôu), citada virtualmente de Dt 18.15: autôu akóu- mente se pensa: faz parte do simbolismo escatológico da história.
sesthe, " A êle ouvirás". A voz de dentro da nuvem testemunha que Os judeus buscavam a presença do Messias habitando entre os eleitos
este é o profeta prometido, semelhante a Moisés, a quem o povo de (aqui representados por Moisés e Elias) (cf. Ez 37.27; 43.7,9;
Deus deve ouvir. Zc 2.10 s.; 8.3,8; Tobias 13.10; Jo 1.14; Ap 21.3, e t c ) , e Pedro
vagamente entende que se aproximam os dias em que o tabernáculo
A introdução de Elias no quadro, ao lado de Moisés, não altera de Deus estaria com os homens. Mas ainda não se haviam cumprido
o caráter da narrativa sinótica da transfiguração: é notável exem- os tempos; a obra de Cristo não se completara — Pedro não com-
plo do ensino cristológico judaico cristão primitivo do tipo que con- preendia plenamente todas as coisas; não percebera que Cristo deve-
siderava Jesus Cristo o Profeta semelhante a Moisés. Pois no pensa- ria sofrer: "Pois não sabia o que dizer" (Mc 9.6). São Lucas
mento rabínico o próprio Elias já era um segundo Moisés, que dá-nos o aspecto crucial da situação: Moisés e Elias falam com
contendera pela Tora e recebera a graça de conversar com Deus no Jesus exatamente sobre o que eles não poderiam ainda entender,
"monte de Deus" (Horebe-Sinai: I Rs 19.8); é "outra vez" Moisés, "sua partida, que êle estava para realizar, em Jerusalém" (Lc 9.31).
assim como Eliseu era uma espécie de "segunda edição" de Elias, O novo Moisés deve cumprir seu êxodo libertador antes de sua
segundo a doutrina bíblica das personalidades que fluem umas nas assumptio, de sua elevação (Lc 9.51) à glória do reino celeste. Mas
outras. Tanto Moisés como Elias (no conceito rabínico) não haviam a glória já lhe pertence, embora oculta; e no Monte da Transfigu-
morrido, mas tinham sido transladados ao céu — ponto de vista ração testemunhas escolhidas contemplam-na num lampejo de ante-
também adotado por São Lucas. Assim, não está estritamente cor- cipação. Para os apóstolos a experiência da transfiguração foi um
reto afirmar que, na história da transfiguração, Moisés representa meio de certeza sobre o cumprimento das coisas que os cristãos
a lei e Elias os profetas, que igualmente dão testemunho de Jesus, esperam; foi uma revelação momentânea da glória no meio das
porque Moisés é, essencialmente, "o Profeta", e Elias, apenas Moisés trevas, como a lâmpada que ilumina um lugar escabroso, consi-
outra vez. As duas figuras tinham sido assimiladas no pensamento
judaico, pelo menos desde a época em que teria sido escrito Ml 4.4
s. Moisés e Elias representam, nessa história, a antiga ordem, con- (18) V e r E. L o h m e y e r , D a s Evangelium des Markus, G . H . B o o b y e r , St. Mark
and the Transfiguration Story, 1942, e e s p . A . M . R a m s e y , The Glory of God and
trastada com a nova, na qual aquela se cumpria. Logo após o teste- the Transfiguration of Christ, 1949, 101-11.
derada suficiente até que o dia clareie e desponte a estréia matutina tes.<2D A anâlempsis Moyséos prefigurava assim a ascensão de
da gloriosa parousía já desvelada ( I I Pe 1.16-19). Pela fé a dócsa Cristo, e lemos em Lc 9.51 s.: " E aconteceu que, ao se completarem
de Deus já é vista, desde agora, brilhando na face (prósopon) de os dias em que devia êle ser assunto ao céu (eguéneto dè em tó sym-
Jesus Cristo, como resplandecera uma vez na face de Moisés ( I I Co plerôusthai tàs heméras tês analémpseos autóu), manifestou no sem-
4.6; Êx 34.29-35). O esplendor visível da dócsa na face de Jesus blante a intrépida resolução de ir a Jerusalém, e enviou mensageiros
Cristo diante de três testemunhas era graciosa concessão de Deus que o antecedessem..." O substantivo anâlempsis aqui é um hápax
aos apóstolos escolhidos, como aquela dócsa de luz que resplandecera no NT, mas, naturalmente, o verbo analambánein descreve a ascen-
sobre Paulo no caminho de Damasco (At 22.11). A transfiguração são de Cristo ( A t 1.2, 11, 22; I Tm 3.16; Mc 16.19). Nos L X X
era um sinal para todos os que cressem no testemunho apostólico e em outros escritos judaicos emprega-se anâlempsis para transla-
de que a fé e a esperança do Evangelho de Cristo não eram ilusórias. dações milagrosas. C. F. Evans, sem dúvida, acerta quando chama
a atenção para a maneira cuidadosa como São Lucas trata o tema de
São Lucas, em particular, considera Jesus o novo Moisés que Jesus como o novo Moisés e também — idéia caracteristicamente
reapresenta o drama da salvação onde a Tora fora o kérygma origi- de Lucas — como o novo Elias. > (22
A HISTÓRIA DA PAIXÃO
de Jesus não se enquadram perfeitamente dentro do esquema do
Pentateuco, indicando o respeito que tinham os evangelistas canó- Todos os escritores do NT acreditam que o AT prediz a história
nicos pela. história, não tentando ajustá-la a planos predeterminados. do Evangelho, pelo menos em figura. As Escrituras judaicas eram,
Por exemplo, Moisés no monte santo estabelecera com Deus a aliança nos dias apostólicos, os únicos escritos sobre a revelação de Deus;
sagrada, ratificando-a com o sangue de vítimas animais (Êx 24) ; conseqüentemente, essa revelação deveria conter, pelo menos por
mas não se sugere nenhuma aliança no Monte da Transfiguração, meio de tipos e símbolos ocultos, uma certa previsão dos eventos que
porque os evangelistas não estavam procurando um cumprimento haveriam de dar-se nos dias da salvação messiânica. A posição do
tipológico, embora notável, que viesse contrapor-se à cena histórica NT está resumida em I Pe 1.10-12: "Foi a respeito desta salvação
da realização da aliança na noite em que Jesus fora traído (Mc que os profetas indagaram e inquiriram, os quais profetizaram
14.24; cf. Êx 24.8). Mas, sendo judeus, buscam paralelos tipoló- acerca da graça a vós outros destinada, investigando atentamente
gicos sempre que possíveis, especialmente porque o esquema do Pen- qual a ocasião ou quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo
tateuco, da salvação, era o único modelo kerygmático conhecido: o Espírito de Cristo, que neles estava, ao dar de antemão testemunho
ato divino da salvação proclamado no AT seria, inevitavelmente, sobre os sofrimentos referentes a Cristo, e sobre as glórias que os
tomado como o tipo daquele que se cumpria no kérygma apostólico. seguiriam. A eles foi revelado que, não para si mesmos, mas para
A história de Moisés prenuncia a de Jesus. A permanência no vós outros, ministravam as coisas que agora vos foram anunciadas
deserto, a subida ao monte santo, a alimentação com pão descido por aqueles que, pelo Espírito Santo enviado do céu, vos pregaram
do céu e o "êxodo" em Jerusalém são realizações óbvias do modelo o evangelho". Os mistérios da salvação, ocultos no AT, mesmo para
mosaico; mas dificilmente encontraríamos paralelo da ressurreição os profetas, manifestam-se agora por meio do Espírito, quando são
no Pentateuco; os escritores do NT, é verdade, não procuram forçar proclamadas pelos pregadores da Igreja as boas novas do ato de
essas analogias. < °) São Lucas, porém, ao descrever a Ascensão,
2
Deus em Cristo.
depois de quarenta dias, parece alinhar-se à crença rabínica comum Vê-se claramente esse ponto de vista na história da paixão. Se
na assunção de Moisés. No AT somente Enoque (Gn 5.24; Ecle- os pregadores cristãos tivessem mesmo alguma coisa escandalosa
siásticos 44.16; 49.14; Hb 11.5) e Elias ( I I Rs 2.11) são trans- para anunciar (cf. I Co 1.23; Gl 5.11; I Pe 2.9; Dt 21.23), deve-
ladados ou "elevados" ao céu sem morrer; daí sua preeminência na
literatura apocalíptica como reveladores de segredos. Mas por volta
(21) A o b r a c o n h e c i d a c o m o A Assunção de Moisés, d a q u a l e x i s t e u m só
do primeiro século A.D. também Moisés recebe honras semelhan- m a n u s c r i t o latino, f o i e s c r i t a o r i g i n a l m e n t e e m h e b r a i c o e a r a m a i c o p o r u m
f a r i s e u quietista, l o g o a p ó s a m o r t e d e H e r o d e s , o G r a n d e . É n u m a p ê n d i c e
e x t r a v i a d o d e s s a o b r a , c i t a d o p e l o s escritores d a patrística g r e g a , q u e a p a r e c e m
referências à disputa entre M i g u e l e Satanás, a respeito d o corpo d e Moisés, seguida
(19) V e r o d e s e n v o l v i m e n t o deste tema e m Studies in the Gospels, ed. D . E. d a t r i u n f a n t e " a s s u n ç ã o " d e M o i s é s a o c é u ( J d 9 faz a l u s ã o a essa l e n d a , o u
N i n e h a m , no a r t i g o de C. F . E v a n s , " T h e C e n t r a l S e c t i o n of S t L u k e ' s G o s p e l " cita essa o b r a ) . V e r a e d i ç ã o d e R. H . C h a r l e s (1897); t a m b é m F . C. B u r k i t t ,
37-53. art. " M o s e s , A s s u m p t i o n o f " e m H D B I I I , 448-50; e C. F. E v a n s , o p . cit.
(20) V e r infra, 191-3. (22) O p . cit., v e r t a m b é m s u p r a , 119.
riam antes de tudo demonstrar que Cristo morrera segundo as Escri- diz terem-lhe dado vinho misturado com fel (Mt 27.34), também
turas ( I Co 15.3). Existem boas razões para se pensar que a his- recusado, após ter sido provado. Pode ser ainda que o registro da
tória da paixão foi a primeira parte da tradição do Evangelho a tradição em alguns manuscritos de Mateus 27.49, de que correra
receber forma definitiva, < 3) não sendo difícil percebê-lo. Desde o
2 água do lado lancinado de Jesus (como explicitamente o declara
princípio fora preciso responder às objeções de que Jesus não era Jo 19.34) baseie-se no SI 22.14: "Derramei-me como água".
o Messias, não apenas por causa das dificuldades escriturísticas Esses exemplos são suficientes para mostrar que os evangelis-
(Dt 21.23), mas também porque a justiça romana, depois de julgá-lo, tas, quando escreveram as histórias da paixão, procuraram ilustrar
condenara-o à morte como malfeitor. A essa objeção bastava deixar a convicção da Igreja primitiva de que as Escrituras tinham um
que os fatos falassem por si mesmos, contando-se com simplicidade télos a respeito de Cristo (Lc 22.37). A história da paixão fera
e sem ornamentos a história de sua morte. Desde o começo tornou-se predita pelos profetas: "O Filho do homem vai, como está escrito
parte essencial da pregação do Evangelho; e achou-se nela maravi- a seu respeito" (Mc 14.21; cf. Lc 24.25-27,44; At 3.18,24). Tudo
lhosa força para convencer os corações humanos. o que ocorrera, mesmo os pequenos pormenores do drama da paixão,
haviam sido pelo "determinado desígnio e presciência de Deus" (At
Surgida a crença de que a figura de Isaías do Servo do Senhor
2.23). Em Mt 26.53 Jesus declara: "Acaso pensas que não posso
era uma profecia a respeito de Cristo (Mt 12.18-21; At 3.13,26; rogar a meu Pai, e êle me mandaria neste momento mais de doze
4.27,30; 8.32-35; I Pe 2.21-25), seguia-se naturalmente que todos legiões de anjos? Como, pois, se cumpririam as Escrituras, segundo
os pormenores do oráculo de Is 52.13-53.12 deveriam ter sido cum- as quais assim deve suceder?" Diz também aos que o vêm receber
pridos, segundo o entender dos evangelistas; o mesmo se aplicava com espadas e cacetes: "Tudo isto, porém, aconteceu para que se
ao SI 22 e algumas outras passagens. Assim, Mc 15.29 s. (" . . . blas- cumprissem as Escrituras dos profetas" (Mt 26.56). Os vívidos
femavam dele, meneando a cabeça e dizendo: A h ! tu que destróis o pormenores das narrativas da paixão, tais como as sortes lançadas
santuário e em três dias o reedificas! Salva-te a ti mesmo, descendo pelos soldados ou a esponja de vinagre, não foram escritos porque
da cruz") é clara reminiscência do SI 22.7 s. ("Todos os que me os evangelistas fossem bons contadores de histórias, desejosos de
vêem zombam de mim; afrouxam os lábios e meneiam a cabeça: impressionar os leitores, mas porque tais incidentes demonstravam
Confiou no Senhor! livre-o êle, salve-o, pois nele tem prazer"). Ma- o princípio: tôuto tò guegramménon dêi telesthênai (Lc 22.37). O
teus, para não perder o paralelo com o SI 22, coloca nos lábios dos escândalo da cruz (Gl 5.11) fora predeterminado pela vontade de
principiantes sacerdotes a citação bem definida do Salmo: "Confiou Deus em todas as suas minúcias. Na vida e morte de Jesus Cristo,
em Deus; pois venha livrá-lo agora, se de fato lhe quer bem" (Mt 0 problema do livre arbítrio e da predestinação expressam-se de
27.43). É provável que a cena onde os soldados repartem as vestes maneira crucial, e é exatamente aqui também que deverão encontrar
de Jesus lançando sortes sobre elas (Mc 15.24) seja inferência do solução. Aquele que fora predeterminado escolhe livremente o des-
SI 22.18: "Repartem entre si as minhas vestes, e sobre a minha tino que lhe cabia: "Não seja o que eu quero, e, sim, o que tu
túnica deitam sortes". Alguns manuscritos de Marcos acrescentam queres" (Mc 14.36). Em Cristo, o eleito de Deus, encontram-se
outro versículo (Mc 15.28) para acentuar o sentido da crucifixão liberdade perfeita e absoluta determinação; a liberdade humana
entre dois ladrões: " E cumpriu-se a Escritura que diz: com mal- une-se com a onipotência divina. O problema do livre arbítrio e da
feitores foi contado" (Is 53.12) ; em Lucas, a citação é feita por determinação resolve-se na nova humanidade de Jesus Cristo/ ' 24
Jesus, quando se dirige aos discípulos depois da última ceia (Lc A história da paixão não pode ser considerada sem a pregação
22.37). O oferecimento do vinagre numa esponja (Mc 15.36) cum- da ressurreição, da qual é prelúdio. Tomadas juntas, essas narra-
pre o SI 69.21: "Por alimento me deram fel, e na minha sede me tivas, cumprem a idéia de vindicação, tão freqüente no AT. " A pedra
deram a beber vinagre". Mateus, por certo, tinha esse versículo que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra
em mente, quando transformou a declaração de Mc 15.23 de que, angular" (Mc 12.10, citando o SI 118.22; cf. também At 4.11;
tendo chegado ao Gólgota, deram a Jesus vinho com mirra (a popu- 1 Pe 2.7; comparar Is 28.16 com Ef 2.20). É natural que Israel,
lar posca ou bebida dos soldados), que êle recusou, na outra em que tendo sofrido tanto no decurso de sua história, buscasse em Deus
(23) Cf. V . T a y l o r , The Formation of the Gospel Tradition, 1933, 44 ss.; R . H . (24) Importante consideração desse p r o b l e m a encontra-se em D. M. Baillie,
L i g h t f o o t , History and Interpretation in the Gospels, 1934, 126 ss.; M . D i b e l i u s , G o d Was in Christ, 1948, esp. 106-32 [ O b r a t r a d u z i d a p a r a o p o r t u g u ê s s o b o título
From Tradition to Gospel, E T , 1934, 23; R. B u l t m a n n , Form-Criticism, E T , 1934, 65.
Deus Estava em Cristo, publicada pela ASTE].
t,
" . . . porquanto para isto mesmo fostes chamados, pois que também
a recompensa (ekdíkesis); é um tema bastante comum, especial- Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo..." O mais
mente nas passagens apocalípticas (e.g., Zc 3; Dn 7, e cf. Ap pecaminoso dos atos humanos jamais cometido, a crucifixão do
passim). O desejo de vindicação quase se confunde com o de vin- Messias de Deus, tornou-se pelo poder divino o veículo da salvação
gança contra os opressores, sendo que a palavra ekdíkesis pode dos pecadores: a vingança de Deus é, na apresentação final do NT,
significar qualquer um desses sentimentos. As orações dirigidas a um amontoar de brasas vivas de seu amor sobre a cabeça dos ini-
Deus pedindo-lhe o extermínio da injustiça muito facilmente podem migos (cf. Rm 12.20).< 6' 2
"SEGUNDO AS ESCRITURAS"
A Igreja apostólica acreditava que Cristo ressuscitara "ao ter-
ceiro dia, segundo as Escrituras" ( I Co 15.4). "Assim está escrito
que o Cristo havia de padecer e ressuscitar dentre os mortos no
terceiro dia" (Lc 24.46; cf. 24.25 s.). Entretanto é bastante difícil
encontrar passagens específicas do A T que pudessem ser considera-
das profecias definidas da ressurreição de Cristo no terceiro dia.
Is 53.10-12 prediz a recompensa triunfante do Servo justo, mas
não é citado no NT como um texto de prova; o Sl 22 também, de Israel na terra do exílio e subseqüente ressurreição (Ez 37.1-14)
tomado como um todo, fala do triunfo após o sofrimento, não sendo e que, segundo o NT, o Messias deveria recapitular a história de
conhecido dos escritores do NT o ponto de vista crítico de que os Israel.
vs. 22-31 pertencem a outra composição. Há profecias de ressur- A terceira, mais problemática, seria Êx 19.10 s.: "Disse tam-
reições nos Salmos, e.g., Sl 2.1 s. (citado em At 4.25 s.), Sl 16.8-11 bém o Senhor a Moisés: "Vai ao povo, e purifica-os hoje e amanhã...
(At 2.25-28), Sl 110.1 ( A t 2.34 s.), Sl 118.22 ( A t 4.11, etc.). e estejam prontos para o terceiro dia: porque no terceiro dia o
Mas nenhuma dessas passagens prenuncia a ressurreição no terceiro Senhor, à vista de todo o povo descerá sobre o Monte Sinai". Talvez
dia; contudo, é o que São Lucas e São Paulo entendem estar nas pudéssemos dizer que a inexplicável introdução de Mt 28.16: "para
Escrituras. Talvez estivessem pensando em três outras passagens o monte que Jesus lhes designara", fosse alusão à descida do Senhor
do AT.
sobre o monte, ao terceiro dia, na história do estabelecimento da
A primeira seria Os 6.2: "Depois de dois dias nos revigorará; Antiga Aliança. Mas tudo não passa de meras probabilidades que
ao terceiro dia nos levantará, e viveremos diante dele". Não signi- nos indicam a dificuldade que existe para se encontrarem nas Es-
ficaria muita coisa para o pensamento moderno, mas pareceria crituras profecias da ressurreição no terceiro dia. Diríamos, antes,
adequada aos escritores do NT. Oséias está anunciando a restaura- com segurança, que essa história não foi composta a partir de pre-
ção de Israel depois do castigo, após sua infidelidade: o NT consi- cedentes do A T (como a história da paixão, se fosse o caso, o seria
dera Cristo o novo Israel, castigado por nossos pecados e ressuscitado a partir do Sl 22 e de Is 53) e que escritores do NT não acharam
para nossa justificação (Rm 4.25). O novo Israel recapitula e fácil reunir porção considerável de testimonia da ressurreição. Di-
cumpre a história do antigo. O AT fora escrito, como diz São Paulo, ficilmente teríamos nos Evangelhos o episódio da ressurreição se
typikôs — "como figura"; a forma do Cristo é discernível no todo a história de Cristo tivesse sido escrita por eruditos rabinos basea-
e nas partes. As coisas que aconteceram a Israel "lhes sobrevieram dos nas profecias do AT sobre o Messias, mesmo se pudesse compor
como exemplos (typikôs), e foram escritas para advertência nossa, dessa maneira uma narrativa da paixão. Tal história haveria de
de nós outros sobre quem os fins do século têm chegado" ( I Co concluir com algo semelhante à "assunção de Moisés". Os eventos
10.11). Então Cristo é o cordeiro do sacrifício cristão e a Ressur- da vida, morte e ressurreição de Jesus não se ajustam exatamente
reição é a Páscha cristã (cf. I Co 5.7 s.) : a Igreja lê Êx 12.1-14 à forma do Pentateuco; os evangelistas canónicos sentem-se à von-
como lição do AT na manhã do domingo da Páscoa. E também canta tade com o material histórico disponível, não se preocupando mes-
o Áisomen pántes laói de São João Damasceno (c. A.D. 750) : mo quando nem tudo possa perfeitamente enquadrar-se no esquema
do Pentateuco ficando assim muitos elementos fora das previsões
messiânicas de salvação do A T .
"Ó fiéis, ao céu erguei
Salmos de louvores.
Regozija-se Israel:
A EVIDÊNCIA DOCUMENTÁRIA DA RESSURREIÇÃO
Não mais sofre as dores
Da cruel escravidão. Há suficiente evidência no NT de que a parádosis apostólica
Por livrar seu povo, continha desde os primeiros tempos relatos das aparições do Senhor
Fê-lo Deus passar o mar após a ressurreição. Esses eventos eram contados aos catecúmenos
Para um mundo novo." juntamente com as outras descrições da vida e ditos de Jesus. Os
pregadores proclamavam a ressurreição, naturalmente, como parte
(Trad. de E. M. Krischke) integrante do kérygma da Igreja, e nós podemos considerar os dis-
A segunda passagem seria Jn 1.17: "Esteve Jonas três dias cursos atribuídos por São Lucas a São Pedro ( A t 2.14-36; 3.12-26;
e três noites no ventre do peixe". Mt 12.40 evidencia que pelo 4.8-12; 5.29-32; 10.34-43) como exemplos autênticos da pregação
menos a Igreja dos tempos do NT entendia esse texto como profecia cristã primitiva.W As pessoas que se achegavam à comunidade da
da morte e ressurreição de Cristo: "Assim como esteve Jonas três Igreja, atraídas pela mensagem de seus pregadores, eram remetidas
dias e três noites no ventre do grande peixe, assim o Filho do homem aos que tinham a missão de instruí-las a respeito da parádosis so-
estará três dias e três noites no coração da terra". (São Lucas não bre o Senhor Jesus, que era a base do ensino da Igreja em todas as
interpreta o semêion de Jonas dessa maneira; Lc 11.20-32). Mas
se essas referências nos parecem pouco prováveis, devemos lembrar-
nos de que a aventura de Jonas era uma parábola do "sepultamento" (1) V e r supra, 26 s.
questões de fé e moral. Foram preservados no NT, resumidamente, Como exemplos Mt 28.8-10, Mt 28.16-20 e Jo 20.19-21. São períco-
dois exemplos da parádosis da ressurreição de Cristo. pes com todas as características de tradição popular "nas quais uma
O primeiro acha-se em I Co 15.19, em que Paulo recorda aos história muitas vezes repetida é polida e repisada, como a pedra
convertidos de Corinto as palavras com as quais lhes pregara o gasta pela água, até que nada mais nela permaneça a não ser o essen-
Evangelho. Considera-as parádosis comum da Igreja e não seu cial, na forma mais notável e impressionante". (3) Têm todas o mes-
ensino particular; é "o que também recebi" (v. ¿5). Leva-nos ao mo modelo: A. A Situação: os seguidores de Cristo são destituídos
tempo em que não havia nenhum Evangelho escrito. Conta como de seu Senhor; B. O Aparecimento do Senhor; C. A Saudação; D.
Cristo ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, e apa- O Reconhecimento, e E. A Palavra de Ordem. Estão presentes de-
recera a Cefas (i.e., Pedro), aos Doze (aos OnzeV), a mais de qui- veras todos os elementos que, em outros contextos, levariam os crí-
nhentos irmãos de uma só vez, depois a Tiago, mais tarde a todos ticos da forma a crer que as perícopes eram primitivas. São per-
os apóstolos, e por fim a êle mesmo (Paulo). Alguns pontos per- feitamente concretas e não simbólicas ou analógicas; não são, por
manecem obscuros nesse resumo. O aparecimento a Pedro nao é certo, invenções mitológicas destinadas a explicar o histórico. Con-
descrito nos Evangelhos, embora Lc 24.34 o mencione e, talvez, Mc trastadas, por exemplo, com as descrições do batismo e da transfi-
16.7 remotamente o entenda. Os Evangelhos canónicos também guração, não contêm temas teológicos elaborados nem simbolismo
nada dizem sobre o aparecimento a Tiago; e não temos outra refe- apocalíptico ou escatológico. Dão testemunho (segundo os mais se-
rência ao caso dos quinhentos irmãos, entretanto essa era a tradi- veros princípios da crítica da forma) da realidade da ressurreição
ção que Paulo recebera e entregara as Igrejas; e havia, no seu tem- como evento histórico, tanto quanto qualquer outro que tenhamos
po muitas pessoas que poüeriam pôr em duvida o seu ensino, se êie conhecido por meio dos paradigmas dos Evangelhos sinóticos.
se tivesse afastado da tradição geralmente aceita.
Em adição a esse elemento paradigmal, há também, nas narra-
O segundo exemplo da parádosis da Igreja, também resumido, tivas da ressurreição, o elemento visivelmente didático, que procura
acha-se em Mc 16.9-15. Muitos estudiosos do NT, recentemente, transmitir a verdade teológica por meio de histórias. Mas não devem
tendem a considerar Mc 16.9-20 ("o Longo Final") composição de ser encarados como simples exemplos de arte de narrar; são obras
outro escritor que teria trabalhado com as partes finais de São Ma- literárias de padrão elevado, não há dúvida, mas com fins didáti-
teus e São Lucas, que lhe teriam precedido. Mas é um ponto de vis- cos; não se esgotam em ser "histórias de boa qualidade", como pen-
ta gratuito; ainda seria viável que o autor estivesse preservando savam os críticos da forma, ao considerar a mais ou menos imagi-
uma parte da parádosis que as porções finais de São Mateus e São nária classe de Novellen (e.g., O Endemoninhado Geraseno ou o
Lucas apresentassem com maior elaboração literária. A passagem Jovem Epiléptico). Bons exemplos de trechos literários e didáticos
relata o aparecimento do Senhor Ressurreto a Maria Madalena, coisa seriam Lc 24.13-35, no Caminho de Emaús ou Jo 21.1-14, o Apareci-
que os discípulos não acreditaram; também "a dois deles que esta- mento a Pedro e aos outros seis discípulos no Mar da Galileia. Ba-
vam de caminho para o campo", e que não lhe deram crédito (con- seiam-se, sem dúvida, em fato concreto, mas por causa de seu pro-
fundo ensino teológico, e de se terem tornado parábolas de tão alta
trastar com Lc 24.34), e finalmente "aos Onze, quando estavam à
qualidade, escapa-nos a percepção de sua forma original. É pro-
mesa" e comiam, tendo Jesus lhes censurado a incredulidade e or- vável que São Lucas tivesse contribuído à parádosis comum com
denado que fossem por todo o kósmos e pregassem as boas novas a antiga história da jornada dos dois discípulos "que estavam de
a toda a criação. Não nos parece haver razões para duvidar da exis- caminho para o campo" (Mc 16.12 s.), transformando-se ela na
tência de uma parádosis original desse tipo, transmitida pelos mes- maravilhosa parábola do Cristo Ressurreto que abre as Escrituras
tres da Igreja desde os tempos apostólicos até a época em que os
Evangelhos vieram a ser lidos e, mais tarde, aceitos canonicamente, (testimomum Spiritus sancti internum) e que é a história da euca-
suplantando a transmissão oral da tradição. ristia: o partir do pão acompanhado pela exposição das Escrituras
Dentro dessa parádosis, ou esquema geral, é possível discernir ( A T ) na Igreja apostólica. Talvez São João também tivesse desen-
perícopes especiais que foram transmitidas pelos mestres da Igreja, volvido outro elemento primitivo da tradição que resultou, mais tar-
desde os dias mais primitivos. C. H. Dodd, recentemente, indicou de, em Lc 5.1-11 ( A Pesca Maravilhosa), e que serviu como a bela
a existência, nas narrativas da ressurreição, de perícopes de tipo parábola do triunfo missionário da Igreja, em obediência à ordem do
paradigmal (apotegmas, narração de pronunciamentos) . Cita ( 2 )
Mestre ressurreto. Não o sabemos; mas é certo que ambas as histó-
rias, embora sendo parábolas realmente teológicas, contêm, no mais
(2) E m s e u " E s s a y i n the F o r m - C r i t i c i s m of the G o s p e l s " , e m Studies in the
Gospels, ed. D . E . N i n e h a m , 9-35. (3) O p . cit., 10.
profundo sentido, a verdade da história: ã experiência da Igreja berta do túmulo vazio pelas mulheres que haviam ido "muito cedo
apostólica da realidade e do poder da ressurreição de Cristo. no primeiro dia da semana", para ungir o corpo do Mestre crucifi-
cado (Mc 16.1-8; cf. Mt 28.1-7; Lc 24.1-12; Jo 20.1-10). A idéia
Devemos, por fim, observar na tradição literária da ressurrei-
de que a ressurreição de Cristo foi um evento puramente "espiri-
ção ainda o motif apologético. Exemplifica-se claramente na his-
tual", enquanto o cadáver teria ficado no túmulo, é muito moderna;
tória de Mateus, da Guarda do Sepulcro e da Escolta (Mt 27.62-66),
baseia-se em teorias da impossibilidade do milagre, derivadas da fí-
destinada a replicar a mentira dos "Judeus" de que os discípulos
sica do século dezenove. Os que defendem esse ponto de vista dizem
teriam roubado o corpo de Jesus (Mt 28.11-15). Da mesma forma,
que não há referência alguma ao túmulo vazio na parádosis rece-
podemos encontrar trechos contrários à interpretação docética que
bida por São Paulo (I Co 15.3-8) e que, portanto, não fazia parte
considerava a ressurreição de Cristo apenas "espiritual". Assim em
da tradição primitiva. Podemos contra-argumentar dizendo que
Lc 24.41-43 o Senhor ressurreto come "um pedaço de peixe assado",
São Paulo e outros omitiram a história da visita das mulheres ao
e em Lc 24.39 êle diz: "Apalpai-me e verificai, porque um pnêuma
sepulcro porque não desejavam que o caso da ressurreição de Cristo
não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho". Igualmente
dependesse da evidência de mulheres histéricas. É, porém, mais im-
em Jo 20.26-29 Tomé é convidado a pôr sua mão no lado de Cris-
portante a consideração de que São Paulo, ou qualquer outro judeu
to.' ' São Lucas conta-nos como São Pedro corrobora a verdade da
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espera a redenção, a qual inclui o corpo (cf. Rm 8.23) ; a ressurrei- de Cristo "à destra" do Pai, são resultados de um só ato de Deus
ção dos cristãos com seus "corpos espirituais" — é o argumento de que assim faz justiça <> a Cristo, depois de sua humilhação na cruz
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I Co 15, como um todo. Assim a ressurreição de Cristo não é caso (Rm 8.34; Fp 2.9, e t c ) . São inúmeras as passagens em que a res-
de sobrevivência espiritualista, capaz de ser pesquisada objetiva- surreição não é tratada como evento separado da ascensão (e.g.,
mente; não é a sobrevivência de um homem, que poderia ser afir- At 2.32 s.; Ef 1.20; 4.9 s.; I Tm 3.16; I Pe 3.21 s.).
mada numa sessão espírita; é a ressurreição da humanidade, o novo
Adão. É o princípio da nova criação dos últimos dias: êle é "as Contudo, a verdade da ressurreição não é a mesma da ascensão.
primícias dos que dormem" ( I Co 15.20-23). Não é um evento "na- Como escreveu A. M. Ramsey: "Distinguem-se claramente no sig-
tural"; não pode ser descrito cientificamente porque não é processo nificado teológico. Uma coisa é afirmar a ressurreição de Jesus:
ou evento dentro da ordem natural, embora tenha conseqüências bem outra (embora intimamente relacionada com a primeira) é
importantíssimas para essa mesma ordem. Não se podem dar ex- asseverar que Cristo agora participa da soberania de Deus sobre
plicações científicas para eventos da ordem escatológica. É o even- os céus e a terra".(8) O símbolo ( i . c , doutrina, dogma) da as-
to do Êxodo na história da salvação do Novo Israel, o ato misterio- censão, poderíamos dizer, é a maneira pictórica de expressar a im-
so e sobrenatural escolhido por Deus para tirar seu povo da terra da portância do evento histórico da ressurreição de Cristo. Menciona-
escravidão para o reino da promessa, sujeito para sempre à sobe-
mos atrás que a ressurreição era um evento escatológico, sem suge-
rania de seu Filho amado (cf. Cl 1.13). O poder da ressurreição de
Cristo era a verdadeira fonte vital da Igreja apostólica (Fp 3.10; rir que não fosse histórico; o sentido da proclamação do NT é que
Ef 1.19 s.; Cl 2.12; Rm 6.5; I Pe 1.3; 3.21, etc). A ressurreição as coisas finais entram na história, sendo a ressurreição o supremo
de Cristo é o sinal concedido a todos os que crêem que Cristo é "po- evento dramático e escatológico dentro da história. A ressurreição
derosamente demonstrado Filho de Deus" (Rm 1.4; cf. At 2.36; não é (como pensaria Bultmann) um artifício mitológico capaz de
13.33, e t c ) . Pertence à esfera da escatologia e da fé e não ao âm- expressar o significado do evento histórico da crucificação; é his-
bito da ordem natural e da verificação científica. À saudação cristã tórico em si mesmo, embora não possa ser explicado "cientifica-
primitiva: "O Senhor Ressuscitou", havia somente uma resposta: mente", i.e., como um acontecimento da ordem natural. É singu-
"Aleluia". lar, não se ajustando às classificações científicas; a diferença, en-
tão, entre eventos históricos enquadrados na complexidade de seu
caráter singular, e os eventos da ordem da natureza, é que os pri-
A ASCENSÃO DE CRISTO meiros não se repetem. Toda a proclamação do NT depende do
fato histórico da ressurreição. A pregação apostólica original não
Poderíamos pensar que o ensino apostólico primitivo não sepa- era a promulgação de teologia ou de ética, e muito menos de filosofia
rava completamente a ascensão da ressurreição de Cristo como o existencialista; era a declaração de um fato acontecido. > A ressur- <9
remidos, participando já os cristãos do seu trono, posto que foram cerdócio de Cristo superior ao de Aarão, posto que seu antecessor,
Abraão, recebera a bênção de Melquisedeque e lhe dera o dízimo (Gn
14). Além desse capítulo de Gênesis, o nome de Melquisedeque só
(10) Cf. A . M . R a m s e y , o p . ciís. retorna ao AT no SI 110; o argumento da superioridade de Melqui-
(11) V e r s u p r a , 154. E m A t 7.56, e x c e p c i o n a l m e n t e , E s t ê v ã o ao m o r r e r v ê sedeque sobre o sacerdócio de Aarão havia sido levantado, provàvel-
C r i s t o d e p é , à d e s t r a de D e u s . D e n o t a r i a atitude d e intercessão; se a l e v a r m o s
a d i a n t e p o d e r i a r e p r e s e n t a r C r i s t o c o m o suplicante e n ã o c o - g o v e r n a d o r . São
C r i s ó s t o m o s u g e r e q u e C r i s t o se l e v a n t a r a p a r a s a u d a r o seu p r i m e i r o m á r t i r ;
a i m a g e m é bonita mas não é provável. (12) Cf. C. H . D o d d , A c c . S c r i p . , 34 s.
mente, em favor da dinastia asmoneana, achando-o o Auct. Heb. trada de nosso sumo-sacerdote no santuário da presença de Deus
adequado aos seus propósitos. O sacerdócio de Cristo seria superior ( i . e . , o céu). O verdadeiro tabernáculo (he skenè alethinós), erigido
ao de Aarão por causa de sua realeza (7.2) e eternidade. O autor por Deus e não pelos homens, está no céu ( 8 . 2 ) . O terreno, cons-
de Hebreus conclui que Melquisedeque prenuncia perfeitamente o truído por Moisés, é apenas "cópia" e "sombra" (hypóãeignia, skiá)
sacerdócio perpétuo de Cristo (7.3) "segundo o poder de vida in- daquele (8.5). Não é tanto um conceito platônico, como às vezes
dissolúvel" (7.16), porque Gn 14 não menciona seus antepassados se pensa, mas principalmente judaico e escatológico, de acordo com
nem seu destino futuro. Cristo anula assim todo o sacerdócio hu- o ponto de vista da epístola toda, que é também escatológico.<13)
mano. No passado, sucediam-se as ordenações sacerdotais porque Cristo, como é dever de todo sacerdote, leva uma oferta ao entrar
eram todos mortais e precisavam ser substituídos, mas o sacerdócio no santuário ( 8 . 3 ) ; é o seu próprio sangue e não o de bodes e be-
de Cristo não passa a sucessor algum, porque êle vive para sempre zerros (cf. 9.13; 10.4). Era a única oferta verdadeira e possível.
para interceder por nós (7.23-25). Ao completar sua obra sacerdotal, na ascensão, assenta-se à destra
Dessa maneira o sacerdócio de Cristo é inviolável e eterno de Deus e intercede constantemente por nós. Segundo o autor de
(7.24) sem significar que êle tenha de repetir eternamente a ofer- Hebreus a ascensão é o culmínio da obra expiadora de Cristo, a apre-
ta de si mesmo perante um altar celestial; nem quer dizer que o sa- sentação de seu sangue perante o tabernáculo celeste; o Auct. Heb.
crifício do Calvário tenha sido simples manifestação temporal de omite a ressurreição como evento distinto para desenvolver, a seu
verdade eterna. Mesmo que o Auct. Heb. tenha empregado idéias modo, a realização tipológica do ritual do dia da expiação; não há
ou linguagens de fontes platônicas, não perdeu a consciência bíblica lugar para a ressurreição nesse esquema. Cristo ofereceu-se no Cal-
da importância do que se faz na história. Cristo ofereceu o sacri- vário como vítima sacrificial na qualidade de sumo-sacerdote de nos-
fício de seu corpo ( i . e . , êle mesmo) (10.10) no Calvário; fê-lo uma sa confissão; ao subir ao céu levou a oferta, seu próprio sangue,
vez só e para sempre (ephápacs, 7.27; 9.12,28; 10.10) ; a oferta foi para o "verdadeiro tabernáculo". O dia da ascensão é o dia da ex-
também só uma e não muitas (9.26; 10.14). Diferia completamente piação cristã.
dos sacrifícios diários, muitas vezes repetidos, dos sacerdotes de Em terceiro lugar, Cristo é Profeta. Caracterizava os profetas
Aarão, incapazes de tirar o pecado do mundo (10.11). A afirmação do AT o fato de serem enviados da parte de Deus ( I I Cr 36.15 s.; Jr
de que o Auct. Heb. ensina que Cristo está no céu continuamente ofe- 25.4; 26.5; 29.19, etc.; Mt 23.34; Lc 11.49; Mc 12.2-5) ; na lin-
recendo-se (ou seu sangue) a Deus baseia-se numa interpretação guagem comum do NT eles são "apostolados" (i.e., "enviados")
falsamente platonizante que ignora o kephálaion — "essencial das com missão ou mensagem especial de Deus. Dessa forma, o NT con-
coisas" (8.1) — defendido pelo autor: devido ao único, perfeito e sidera Cristo o Profeta par excellence — "O profeta que devia vir
irrepetível sacrifício do Calvário, "possuímos tal sumo-sacerdote, que ao mundo" (Jo 6.14; cf. Jo 1.21; 7.40; Mt 21.11), i.e., o cum-
se assentou à destra do trono da Majestade nos céus" ( 8 . 1 ) . Cris- primento da profecia de Dt 18.15,18, do profeta semelhante a Moi-
to toma o lugar do vizir e não a postura e lugar do suplicante. sés. Moisés, porém, deixou mandamentos que não podiam ser
Intercede por nós revestido do poder efetivo de co-governador assen- cumpridos pelos seus descendentes, após sua "assunção", sendo
tado à destra do Deus soberano. Depois do que fêz na história não necessária uma aliança superior (Hb 7.22; 8.6 s., e t c ) . Cristo
mais são precisas ofertas pelo pecado (10.18). O supremo milagre realizara a aliança que, após sua ascensão, poderia ser cumprida
da graça é que êle, cheio de poder e capaz de todo o julgamento, pelos seus seguidores. Moisés simplesmente promulgara a lei, mas
seja nosso sumo-sacerdote, que nos tirou os pecados e vive para in- Cristo podia conceder aquilo que exigia. Derramava do céu os dons
terceder por nós. Podemos, portanto, deixar-nos levar (6.1), apro- de sua graça, ou, alternadamente, os dons do Espírito Santo, sobre
ximar-nos (10.22) e ter "intrepidez para entrar no Santo dos San- a Igreja terrena (Ef. 4.8, citando imprecisamente o SI 68.18:
tos" (10.19). Através dele oferecemos nossos sacrifícios de louvor "Quando êle subiu às alturas, levou cativo o cativeiro, e concedeu
(13.15) e boas obras (13.16), "pois com tais sacrifícios Deus se dons aos homens"; ds) At 2.33; Jo 16.7). Eis aí a necessidade da
compraz" (13.16). Cristo é nosso altar onde podemos oferecer ascensão; enquanto estava limitado, no espaço e no tempo, o poder e
nossos dons e participar do alimento celestial (13.10).
O autor de Hebreus apresenta Jesus cumprindo a forma pre-
vista no ritual do dia da expiação (Lv 16). A vítima animal é mor- (13) V e r C. K . B a r r e t t , " T h e E s c h a t o l o g y of the E p i s t l e to the H e b r e w s " e m
The Background of the New Testament and its Eschatology, ed. W . D . D a v i e s e D .
ta "fora do acampamento" (cf. 13.11 s.) e só depois o sacerdote D a u b e , esp. 383-93.
entra no santo lugar para oferecer o sangue como oferta pelo peca- (14) V e r supra, 166.
do (13.11). A ascensão de Cristo é considerada o momento da en- (15) V e r s u p r a , 66.
a influência de Cristo eram bastante restritos (Le 12.50); "con- fosse tomada aô pé da letra; êle sabia melhor do que nós qué a
vinha" que êle fosse (Jo 16.7), a fim de retornar como Espirito verdade religiosa, verdade última, que transcende as fronteiras do
Universal, presente com os discípulos através de todos os tempos e entendimento intelectual, só poderia ser alcançada por meio da ima-
em todos os lugares (Jo 14.16,26; 15.26; 16.7,13,16), mesmo "até ginação inspirada na fé, ouvindo os homens, cada um em sua lin-
à consumação do século" (Mt 28.20). Tendo sido enviado da parte guagem própria, a proclamação dos atos poderosos de Deus.
do Pai, manda agora os discípulos para a sua missão no mundo
(Jo 20.21). Mas é somente em Hb 3.1 que Cristo recebe o título Gustaf Aulén, em seu importante livro Christus Victor, d?)
de "Apóstolo" — "O Apóstolo e Sumo-Sacerdote da nossa confis- procura mostrar a existência de uma teoria da expiação, de autoria
são, Jesus". do próprio Cristo, anterior às outras duas que têm dominado a teo-
logia ocidental por muito tempo — a de tipo "objetivo", relacio-
nada com a "teoria da satisfação" de Santo Anselmo, e a de tipo
CHRISTUS VICTOR "subjetivo", ligada ao nome de Abelardo e à teologia liberal mais
O NT apresenta a ressurreição e ascensão de Cristo em figuras recente, desde Schleiermacher até Rashdall. O conceito dominante
simbólicas e até mesmo mitológicas como a vitória divina sobre os no NT e entre os padres da Igreja antiga, que Aulén chama de
poderes hostis do mal. Emprega para esse fim alegorias primitivas "ponto de vista clássico", tem a forma de representação dramática
semelhantes às que aparecem nos antigos mitos do Vencedor Divino ou mitológica da expiação como a vitória ganha por Cristo contra
que destrói o dragão do caos. Os editores do AT, tendo esse con- os "poderes" do mal que escravizam o homem, especialmente o
ceito sido completamente "demitizado" pelos profetas de Israel, con- Diabo, o Pecado e a Morte. Esse conceito do Christus Victor desen-
tentaram-se com preservar a antiga linguagem mitológica em certas volveu-se especialmente na Escandinávia, por estudiosos como o já
porções das Escrituras (e.g., SI 74.12-14; 89.8-10; Jó 9.13; 26.12 falecido Anton Fridrichsen, de Uppsalla.dS) Prestaram valioso ser-
s . ) ; a libertação histórica de Israel do jugo egípcio (e.g., Êx 14.21; viço despertando a atenção para este elemento dramático ou mito-
15.1-21) e também a do cativeiro da Babilônia (Is 51.9-11; Ez lógico na apresentação da verdade de nossa salvação no NT, embora
29.3 s.) seriam, então, expressas na linguagem do antigo mito. Não dificilmente poderíamos dizer que conceitua um ponto de vista (e
nos surpreende que os escritores do NT lancem mão dessas imagens muito menos uma teoria) da expiação. O significado fundamental
que são, afinal, elementos comuns do pensamento das pessoas simples. da expiação no NT é, como veremos, incorporação à humanidade
Elas não empregam conceitos filosóficos; pensam através de ima- redimida de Jesus Cristo, através do batismo no "corpo espiritual
gens. A Bíblia é sempre contemporânea porque emprega imagens e de Cristo", a Igreja ou Israel de Deus. A verdade da assim chamada
não conceitos filosóficos para se expressar. Se tivesse procurado "teoria clássica" é que a expiação só se torna possível "em Cristo"
transmitir a verdade de Deus e do homem por meio de categorias pelo que êle fêz, representado mitológicamente pela figura de sua
filosóficas, já seria, por certo, um livro antiquado. Fala a todas as vitória contra os poderes do mal. O "ponto de vista clássico" apre-
gerações na linguagem pictórica, comum à humanidade toda, facil- senta o fato da salvação mais do que a expiação, como também se
mente compreensível, a não ser quando os homens em seu refina- pode verificar no seu correspondente da antiga mitologia semítica:
mento perdem contacto com as fontes vivas da realidade pensada, "Ora, Deus, meu rei, é desde a antiguidade; êle é quem opera feitos
que estão nas raízes mais profundas da própria personalidade. salvadores no meio da terra. Tu, com o teu poder, dividiste o mar;
Erra-se ao supor (como Bultmann) d6) que o homem moderno enten- esmagaste sobre as águas, a cabeça dos monstros marinhos. Tu espe-
deria melhor o significado do Evangelho quando se abandonasse o daçaste as cabeças do crocodilo, e o deste por alimento às alimárias
seu simbolismo mitológico. Não se pode dizer, como Bultmann parece do deserto" (SI 74.12-14). A nova criação em Cristo é ato salvador
fazê-lo, que os escritores do NT não tiveram consciência da lingua- como a primeira criação, quando o dragão do caos que habitava nas
gem mitológica empregada, por exemplo, na ascensão de Jesus ao profundezas (Tiamai) foi morto pelo Rei divino. Visto ter sido
céu ou em sua descida ao inferno. Somente formas simbólicas pode- considerada ato de nova criação, a salvação trazida por Deus no
riam transmitir o sentido de tudo isso; os homens de todas as gera- êxodo (e.g., Is 43.15-19; Sabedoria 19.6-8),<w envolvendo outra
ções (com exceção dos mais artificiais) poderiam entender clara- vez a libertação do poder do abismo, não nos surpreende encontrar
mente o que se queria dizer. É incrível que, digamos, São Lucas, no NT a salvação em Cristo representada como ato de nova criação
ao contar a história da ascensão de Cristo esperasse que a parábola
(17) E T p o r A . G . H e b e r t , 1931.
(16) Cf. seu famoso ensaio em Kerygma anã Myth, ed. H. W. Barotsch, (18) V e r esp. R a g n a r L e i v e s t a d , Christ the Conqueror, 1954.
E T , 1953. (19) E v e r a i n d a S t r a c k - B i l l . , I, 69 s., 594-6.
e vitória contra 08 poderes do mal. Os milagres marítimos dos Evan- militar: os santos são duas vezes vencidos na luta contra a besta do
gelhos, em particular, deveriam ser lidos em relação com essa idéia abismo (Ap 11.7; 13.7). Em duas outras passagens os santos ven-
(Mc 4.35-41; 6.45-52).< "> Não obstante estarem esses conceitos
2
cem pelo poder de Cristo: quando o Dragão (Satanás, Diabo) é lan-
intimamente relacionados com a doutrina da expiação, não são a çado fora do céu por Miguel, a vitória dá-se "por causa do sangue
mesma coisa; seria melhor dizer que a idéia do Christus Victor tem do Cordeiro" (12.11) ; e o vidente ao contemplar o "mar de vidro"
a ver com o conceito da criação-salvação mais do que com a expiação vê "os vencedores da besta" (15.2). O autor do Apocalipse não
pelo pecado; ou, ainda, que se relaciona mais com a derrota e des- teme o antigo conceito mitológico da luta divina contra o Dragão
truição dos "poderes" estranhos (não humanos) do que com a recon- para representar o significado cósmico dos eventos da crucifixão e
ciliação de homens rebeldes e pecadores com o Deus santo. A morte da ressurreição de Cristo; as cenas são poéticas e dramáticas,
vitoriosa de Cristo é, naturalmente, o traço de união entre os dois devendo assim ser consideradas. Era lugar-comum na literatura
conceitos: Cristo triunfa sobre "os principados e as potestades", apocalíptica judaica dizer que as últimas coisas serão como as pri-
vencendo-os na batalha (Cl 2.15), cancelando a dívida contra nós meiras: a nova criação representará e restaurará a "gênesis" ori-
(Cl 2.14) e perdoando todos os nossos delitos (Cl 2.13) ; como indi- ginal do céu e da terra. Assim, o lógos que no princípio venceu o
víduos, apropriamo-nos desses benefícios, quando somos sepultados
caos (tohu wa-bhohu, Gn 1.2; cf. Is 45.18) e o abismo (tehom, cf.
com Cristo no batismo e ressuscitamos com êle para a vida (Cl 2.12).
Bab. Tiamat), o lógos-hiz que precedeu à luz do sol, contra o qual
O NT ensina que Cristo venceu (os poderes maus que domi- as trevas não prevaleceram (Jo 1.5), no final dos tempos há de
nam) o mundo (Icósmos) (Jo 16.33) e que pela fé nele os cristãos conquistar a besta do abismo e o Dragão do caos com seus exér-
também podem vencer (os poderes maus que dominam) o mundo citos do Hades: o lógos Theôu surge na visão do Apocalipse como o
( I Jo 5.4 s.). O verbo nikáo aplicado a Cristo é, no NT, quase cavaleiro do cavalo branco, ao qual foi dado um stéphanos, indo
exclusivamente joanino.< > Em I Jo afirma-se que os cristãos ven-
21 "vencendo e para vencer" (Ap 6.2; 19.11-16). Os exércitos da
cem ho pouerós (2.13 s.). ou espíritos descrentes e o espírito do besta pelejarão "contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, pois
anticristo ( 4 . 4 ) , ou o mundo (5.4 s.), crendo que Jesus e o Filho é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis" (Ap 17.14). "O Leão da
de Deus. Da mesma forma o Apocalipse considera os cristãos como tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu" ( 5 . 5 ) . O poder das trevas
aqueles que participam da vitória de Cristo, e fala nas recompensas que dominara sobre o presente século, foi destruído pelo Vencedor
recebidas pelo vencedor (ho nilcón) (2.7,11,17,26; 3.5,12,21; 21.7), na nova criação, havendo desde então o dia eterno que não precisa
inclusive o direito de sentar-se no trono do Pai (3.21). À primeira de sol (Ap 21.23; 22.5; cf. Is 60.19 s.; Enoque 45.4 s.).( > 23
vista, para um judeu como o autor do Apocalipse, a metáfora da A compreensão do kósmos no NT difere da gnóstica e helénica,
vitória é bastante estranha: é a do victor ludorum. Mas se explica. por não considerar mau o mundo material/ ' O kósmos foi criado 24
Os jogos gregos eram, naturalmente, ritos pagãos em honra dos deu- por Deus (Mt 24.21; Mc 13.19; Jo 1.10; At 17.24; Rm 1.20, e t c ) ,
ses ("olímpicos") e do imperador divino ("a besta") ; fazem parte sendo fundamentalmente bom (cf. Gn 1.31). * > Caiu, porém, sob o 25
a grinalda de louros ou coroa {stéphanos, Ap 2.10; 3.11, etc; cf. tology, e d . W . D . D a v i e s e D . D a u b e , 428) a s s i n a l a q u e o p o n t o de vista d e q u e
a n o v a c r i a ç ã o eliminará os poderes das trevas é claramente apresentado no M a -
I Co 9.25).< > Mas nikáo é também empregado como metáfora
22
n u a l d e D i s c i p l i n a d o M a r M o r t o , p r e d o m i n a n d o , t a m b é m , n a s fontes r a b í n i c a s .
( V e r G a s t e r , SDSS, 55 s . ) .
(24) A p a l a v r a icósmos t e m n o N T a m a i s v a r i a d a escala de sentidos q u e
(20) Cf. s u p r a , 102.
v a i d e s d e o " f r i s a d o de c a b e l o s " ( I P e 3 . 3 ) até " o u n i v e r s o c r i a d o " . No grego
(21) T e m o s , entretanto, a p a s s a g e m m u i t o significativa d e L c 11.22: epdn de
clássico q u e r dizer, b a s i c a m e n t e , " a r r a n j o h a r m o n i o s o " o u " o r d e m " , d a i " o r n a -
ischyróteros autôu epellhòn nikése a u í ó n : J e s u s é m a i s forte q u e S a t a n á s , a m a r -
m e n t o " , " d e c o r a ç ã o " ( t a m b é m nos L X X : G n 2 . 1 ; D t 4.19, e t c . ) . Depois passou
r a n d o - o e d i v i d i n d o seus d e s p o j o s , c o m o p r o v a m os e x o r c i s m o s ( v e r supra, 100).
a significar " o u n i v e r s o " ( m a s os L X X n ã o a e m p r e g a m a s s i m ; Sabedoria e W
A l é m d e R m 3.4 ( q u e cita o S I 50.6 d a L X X , q u e seria 51.4 na v e r s ã o d e A l m e i d a ,
M a e a b e t i s são os l i v r o s m a i s antigos q u e a m e n c i o n a m c o m este s e n t i d o ) , e. g., Jo
ed. r e v i s t a e a t u a l i z a d a no B r a s i l ) e 12.21, todas a s outras ocorrências s ã o e m Jo
21.25; A t 17.24; R m 4.13; I C o 3.22; 8.4; F p 2.15. P o r fim empregou-se p a r a
( u m a ) , I Jo (seis) e A p (dezesseis v e z e s ) . O s u b s t a n t i v o nike a c h a - s e a p e n a s
" o s h a b i t a n t e s d o m u n d o " , " a r a ç a h u m a n a " , t e n d e n d o a substituir g u è ou oikoumene
e m I J o 5.4: he nike he nikésasa tòn kósmon. A f o r m a posterior (da metade
d o s L X X ; p o d e r i a a p e n a s s i g n i f i c a r " o m u n d o e s u a e s p o s a " , e. g.: ''Eis aí v a i
d o p r i m e i r o s é c u l o ) tò nikos a p a r e c e nas citações d o A T e m M t 12.20 ( I s 4 2 . 3 ) ,
o m u n d o a p ó s ê l e " ( J o 12.19) e m b o r a S ã o J o ã o p r o v a v e l m e n t e lhe dê d u p l o
I C o 15.54 s. ( O s 13.14) e e m I C o 15.5T: " G r a ç a s a D e u s q u e nos d á tò mfcos
sentido, c o m o e r a o costume.
p o r i n t e r m é d i o d e nosso S e n h o r J e s u s C r i s t o " .
(22) C h r i s t and the Caesars, de E. S t a u f í e r , r e l a t a c o m i m a g i n a ç ã o e a r t e (25) A e x p r e s s ã o ( a p ô ) katabolès kósmou, m u i t o e m p r e g a d a n o cristianismo
a influência dos jogos imperiais sobre o pensamento d o autor do Apocalipse. p r i m i t i v o ( M t 25.34; L c 11,50; Jo 17.24; E f 1.4; I P e 1.20; H b 4 . 3 ; 9 . 3 6 ; A p 13-8;
P á g s . 179-91. 17.8) r e f e r e - s e , n a t u r a l m e n t e , à c r i a ç ã o d o m u n d o p o r D e u s .
poder do maligno (cf. I Jo 5.19: ho kósmos hólos en tô ponerô kêitai), finalmente, "lançados vivos dentro do lago do fogo que arde com
surgindo daí no NT o sentido de kósmos como mundo contra Deus, enxofre", depois de sua luta com o Cavaleiro do Cavalo Branco
rebelde. Neste sentido o kósmos ignora Deus (Jo 1.10; 14.17) (Ap 19.20 s.). Outra versão dessa profecia acha-se em Ap 20.1-3,
preocupando-se apenas com a sua própria sabedoria louca ( I Co 7-10, com o mesmo sentido.
1.20 s.; 3.19). Odeia Cristo porque êle dá testemunho de que suas Satanás, por assim dizer, ter-se-ia deteriorado desde sua pri-
obras são más (Jo 7 . 7 ) ; opõe-se a Cristo porque sua pessoa e sobe- meira aparição no A T na qualidade de membro respeitável do con-
rania não são deste mundo (Jo 8.23; 18.36) ; por essa mesma ra- selho celeste (Jó 1 e 2; cf Zc 3.1 s.), ocupando a posição de acusa-
zão os discípulos também são odiados (Jo 15.19; 17.14), tendo en- dor público.' Somente depois da época do A T é que foi identifi-
28)
tão que sair do mundo ( I Co 5.10; 11.32). Os cristãos não devem cado com a Serpente de Gn 3 (a mais antiga referência acha-se em
amar o mundo (Jo 2.15-17; Tg 1.27; 4.4; II Pe 2.20, e t c ) . O Sabedoria 2.24: "Pela inveja do demônio a morte entrou no mun-
mesmo sentido depreciativo encontra-se em relação à palavra aión do"), ponto de vista adotado pelos rabinos, depois aceito por São
quando se diz ho aión hõutos em contraste com ho aión ho erchómenos Paulo (Rm 16.20: "O Deus da paz em breve esmagará debaixo dos
(e.g., Mt 12.32; Mc 10.30); cf. Gl 1.4: Cristo entregou-se "a si vossos pés a Satanás"; cf. Gn 3.15; II Co 11.2 s.), e pronunciado
mesmo pelos nossos pecados para nos desarraigar deste aión perver- pelo Vidente (Ap 12.9; 20.2). Satanás e seus lacaios, os demônios,
so". Nas versões comuns da Bíblia aión é traduzido por "mundo"; agitam-se freneticamente, apreensivos, quando se encontram com o
no sentido de "este século" não se distingue do uso do NT de kós- Vencedor, Cristo (Mc 1.24, e t c ) . Lê-se em Enoque 90.20-27 que
mos, significando o mundo em oposição aos propósitos de Deus o Messias julgará os demônios; crenças dessa natureza parecem ter
(e.g., Mt 13.22; Mc 4.19; Lc 16.8; 20.34; Rm 12.2; I Co 1.20; inspirado Mt 8.29: "Vieste aqui atormentar-nos antes de tempo! —
2.6; 3.18). Em I Co 1.20 e Ef 2.2 s. kósmos e aión são sinônimos. i.e., antes do juízo final. São João, que não relata nenhum caso
O mundo tem estado sob o poder de Satanás e de seus servos de exorcismo em seu Evangelho, considera esse tema a seu modo:
demoníacos. A parábola do Valente Armado, que é um comentário "O príncipe deste mundo já está julgado" (Jo 16.11; cf. 16.33).«9)
de Jesus a propósito da acusação de expulsar demônios pelo poder São Paulo acredita que "os santos" participarão no julgamento mes-
de Belzebu, expõe claramente o ponto de vista de que o poder de siânico não apenas do mundo, mas também dos anjos ( I Co 6.2 s.).
Cristo sobre os maus espíritos prova a derrota de Satanás e a apro- Os anjos seriam tipos demoníacos (as epístolas de São Paulo não
ximação e extermínio de seu reino (Mt 12.24-29; Lc 11.15-22; Mc mencionam a existência de anjos bons; cf. I Co 11.10; II Co 12.7),
3.22-27) .< Jesus proclama antecipadamente a sua vitória: "Eu
26) como em Enoque 1-36 onde os demônios são espíritos desencarna-
vi a Satanás caindo do céu como um relâmpago", quando os setenta dos (cf. Mt 12.43-45; Lc 11.24-26) identificados com os anjos
retornavam contando que até os demônios se submetiam ao nome de caídos de Gn 6.1-4 (cf. também Jd 6; I I Pe 2.4: "Anjos quando
Cristo (Lc 10.18). Idéia semelhante encontra-se em Ap 12.7-17,
onde se diz que a fúria demoníaca dos inimigos da Igreja prende-se
ao fato de Satanás ter sido expulso do céu, espalhando sua cólera (28) A p a l a v r a h e b r a i c a satã significa " a d v e r s á r i o " , " a c u s a d o r " , n a l i n g u a g e m
c o m u m d e c a d a d i a ( c . g., I I S m 19.22; I R s 5 . 4 ; 11.25; cf. N m 2 2 . 2 2 ) . Foi aos
pela terra e pelo mar, "sabendo que pouco tempo lhe resta".' ) Os 27
p o u c o s q u e S a t ã se tornou o t e n t a d o r a n g é l i c o ( e m I C r 21.1 l e v a D a v i d a o p e c a d o
autores de obras apocalípticas costumavam dizer que "as coisas fi- de n u m e r a r I s r a e l , e n q u a n t o q u e c m I I S m 24.1 é o p r ó p r i o J a v é q u e o f a z ) . N o
carão piores antes de melhorarem"; o próprio Senhor advertia os N T o n o m e p r ó p r i o d e S a t ã ou S a t a n á s é u s a d o muitas vezes ( M c 3.26; 4.15;
L c 10.18, e t c ) , tendo sido t r a d u z i d o p a r a o g r e g o t a m b é m p o r ho Diábolos, calu-
discípulos "de tamanha tribulação como nunca houve desde o prin-
n i a d o r , a c u s a d o r , m a l d i z e n t e ( e x a t a m e n t e o oposto d e ho parâkletos); o adjetivo
cípio do mundo" (Mc 13.19). Agora que está sendo derrotado e d i á b o i o s , c a l u n i a d o r , a p a r e c e e m I T m 3.11; I I T m 3 . 3 ; T t 2.3. E m M t 12.24-27 (cf.
tem os dias contados, Satanás, como besta selvagem encurralada, 1 0 . 2 5 ) : M c 3.22; L c 11.14-23 identifica-se c o m B e l z e b u , p a l a v r a d e o r i g e m d e s c o -
destruirá furiosamente o que puder até que seja êle mesmo aniqui- n h e c i d a e g r a f i a incerta, q u e p o d e r i a s e r u m a identificação z o m b e t e i r a c o m o
d e u s ( d e m ô n i o ) d e E c r o m (cf. I I R s 1 . 2 ) , i n t i t u l a d o " s e n h o r d a s m o s c a s " . É
lado completamente. No Apocalipse êle e o seu falso profeta são, m u i t a s v e z e s c n s i d e r a d o u m s e r dos a r e s (cf. E f 2 . 2 ; L c 1C.18, etc.) m a s , s e g u n d o
o p e n s a m e n t o j u d a i c o d a época, h a b i t a r i a c o m seus d e m ô n i o s no i n f e r n o (cf. I I P e
2.4; J d 6 ) . A a m b i g ü i d a d e a respeito d e s u a m o r a d a é a p e n a s u m a e n t r e m u i t a s
indicações d e q u e os j u d e u s inteligentes s a b i a m q u e se t r a t a v a de s í m b o l o p i c t ó r i c o
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