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Ironia reversa – uma reflexão sobre Mato Eles?

Por Marília Marie Goulart

Com extrema contundência Mato Eles? discute a violência que se


impõem sobre três etnias indígenas que, mesmo atravessadas pelos interesses
de diferentes agentes, resistem em reserva situada em Mangueirinha, no
estado do Paraná. Nessa que é a segunda produção dirigida por Sérgio Bianchi
o cinismo e a ironia, que caracterizam a filmografia do diretor, se manifestam
de modo intenso em todas as frestas do documentário. Produzido nos anos 80
o média-metragem lança já em seu título indecorosa questão ao espectador,
perguntando a nós se deve matar eles. Mais do que uma provocação, a
pergunta do título e todo o sarcasmo que dá forma ao documentário apontam
para uma descrença, prematura, no cinema como denúncia, sugerindo um
trajeto que parece orientar certo olhar “bianchiano”. Se a denúncia não lhe é
promissora, a aposta será no cinema de confronto e provocação,
posicionamento que marcará a filmografia do diretor.
Na discussão sobre as tensões, violências e ameaças lançadas sobre os
índios caingangues, guaranis e o único xetá sobrevivente na região, Mato
Eles? articula elementos característicos da ficção e do documentário que por
meio de composições e estilos diversos, de olhares e vozes dissonantes,
constrói certo panorama caleidoscópico dos muitos interesses e perspectivas
que atravessam a situação abordada. A todo tempo, entrevistas, cartelas,
aberturas épicas que se repetem fazem com que o espectador se pergunte se
deve tomar por sério o que vê e o que ouve. A ironia extremada nas falas,
perguntas, trilhas, enquadramento e montagem – e letreiro que textualmente
questiona a veracidade do documentário – embaralham a cabeça do
espectador, dificultando o discernimento do que é ficção e do que é
documentário. Mas isso pouco importa. A própria situação filmada solicita um
esforço para ser crível, acreditada, pois a realidade desafia a
verossimilhança. Não bastasse o genocídio que a população indígena sofre
desde a invasão européia das Américas, em Mangueirinha, em plena reserva
indígena, se instaura uma madeireira. Mais: a madeireira é administrada pela
Fundação Nacional do Índio – Funai, criada no final dos anos 60 para, em tese,
assegurar os direitos dos indígenas. Como abordar a existência de uma
madeireira da Funai atuando à pleno vapor em reserva onde habitam etnias
indígenas que deveriam ser preservadas por esse órgão? Como abordar de
forma séria a presença dessa e de outras madeireiras ao redor da última
floresta de araucária do país? Nesse contexto, a ironia extremada e o tom de
deboche se apresentam como formas possíveis e pertinentes para enunciar, de
modo absurdo, uma situação igualmente absurda. Assim o estilo se deixa forjar
pela situação: “marcado pela aguda e urgente necessidade de questionar o
país em suas mazelas, o trabalho de Bianchi vale-se de uma linguagem que
torna possível a representação do que vivenciamos como ‘Brasil’” (VIEIRA,
2008: 37).
A percepção de que esta é uma situação sem saída, na qual só resta o
sarcasmo é anunciada pelo título que de modo lacônico nos lembra que a
situação não se restringe ao presente, tampouco aos indígenas que habitam a
região abordada pelo documentário. Para além da reserva de Mangueirinha a
pergunta indecorosa ou obscena do título é a matriz genocida da formação do
estado nacional (OTSUKA; TAKEMOTO, 2014), cuja origem deve datar do
primeiro “encontro” ou primeiro morticínio (CUNHA, 2012) da população
indígena. Tragicamente, a matança e a pergunta obscena se arrastam pelos
séculos e vigoram ainda no presente.
Título, estilo e tônica estabelecem uma espécie de confronto e, se
debatendo contra a realidade, o documentário não vislumbra qualquer
possibilidade de saída. Diante do extermínio indígena – destino que é sugerido
também pela imagem de homem armando espingarda que, como um repente,
pontua o documentário – Mato Eles? declara impotência para agir frente a
situação que apresenta.
Em sentindo contrário, a fala e o olhar indígena colocam em suspeita o
que parece inexorável. Ao inquirir Bianchi, o homem de origem indígena revela
não apenas sua plena consciência histórica e social de si e do outro, mas
também o domínio da ironia, tão utilizada por Bianchi. O questionamento faz
com que a população inquirida e colocada em uma posição de vítima no
documentário se mostre muito mais do que receptor inerte dos interesses
econômicos que há mais de quatro séculos abalam as trajetórias e as vidas
dos nativos. Longe da “voz da experiência” (BERNARDET, 1985), ao
questionar Bianchi o indígena não fala mais de si, mas do outro, daquele que
até pouco lhe perguntava e tecia comentário sobre sua existência. O
questionamento do indígena é seguido pelo olhar do jovem que fita serena e
seriamente a câmera.
Quebrando o pessimismo generalizado, a fala e o olhar instauram
relativa esperança diante da calamitosa situação apresentada. Não se trata de
uma “esperança” no modelo teleológico do Cinema Novo; o que a fala e o olhar
suspendem são os próprios modelos aplicados “ao outro”. A pergunta que o
índio lança ao diretor é indecorosa e talvez mais ousada que a do título. A
pergunta do índio rompe com uma normativa de relações, abala o
comportamento esperado de um entrevistado, especialmente de um índio,
atado há tantos séculos pelo branco em suposta docilidade e ingenuidade.
Muito sagazmente o índio se retira do lugar de “outro” onde foi colocado, se
apropria da ironia, e com a mesma seriedade questiona os interesses de
Bianchi. Inquirindo o interesse deste "outro", isto é, o "branco", o índio
abandona o espaço de vitima inerte em que tão habitualmente é colocado,
praticando de modo efetivo a chamada antropologia compartilhada.
A despeito do tom distópico que predomina no filme, o questionamento e
o olhar indígena parecem reverberar o engajamento em que diferentes
populações nativas se lançam – em especial a partir dos anos 80 – culminando
na constituição de 88 em que o indígena é reconhecido como sujeito de direito
(CUNHA, 2012: 22). Engajamento e luta que, mesmo com o incremento da
repressão, vem demonstrando força e persistência nas mais de duas décadas
que se seguem à realização do documentário. Na luta pelo respeito à cultura e
existência indígena a quebra do decoro, isto é, das normativas talhadas no
longo genocídio do povo brasileiro, é fundamental.

Referência Bibliográfica

BERNARDET, Jean-Claude. O modelo sociológico ou a voz do dono. In:


Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CUNHA, Manuela. Introdução a uma história indígena. In: Índios no Brasil  :


história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012.

OTSUKA;TAKEMOTO. Mato Eles? Uma Antropologia às avessas. Olho


d’água, v. 6, 2014.

VIEIRA, João Luiz. O cinema provocação de Sérgio Bianchi. Programadora


Brasil, v. no 2, 2008.

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