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O tempo que passa e o tempo que não passa

Na psicanálise, tempo e memória só podem ser considerados no plural

Silvia Leonor Alonso

É muito comum pensar no tempo como tempo seqüencial, como categoria ordenadora que
organiza os acontecimentos vividos numa direção com passado, presente e futuro, um tempo
irreversível, a flecha do tempo, um tempo que passa. Também estamos acostumados a pensar
na memória como um arquivo que guarda um número significativo de lembranças, semelhante
a um sótão que aloca uma quantidade de objetos de outros momentos da vida, que lá ficam
quietos, guardados, disponíveis para o momento no qual precisamos deles e queremos
reencontrá-los. No entanto, a forma na qual a psicanálise pensa o tempo e a memória está
muito distante desta maneira de concebê-los. Na psicanálise, tanto o tempo quanto a memória
só podem ser considerados no plural. Há temporalidades diferentes funcionando nas instâncias
psíquicas e a memória não existe de forma simples: é múltipla, registrada em diferentes
variedades de signos.

Há um tempo que passa, marcando com a sua passagem a caducidade dos objetos e a finitude
da vida. A ele Freud se refere no seu curto e belo texto de 1915, “A transitoriedade”, no qual
relata um encontro acontecido dois anos antes, em agosto de 1913, em Dolomitas, na Itália,
num passeio pelo campina na companhia de um poeta. Ambos dialogam sobre o efeito
subjetivo que a caducidade do belo produz. Enquanto para o poeta a alegria pela beleza da
natureza se vê obscurecida pela transitoriedade do belo, para Freud, ao contrário, a duração
absoluta não é condição do valor e da significação para a vida subjetiva. O desejo de
eternidade se impõe ao poeta, que se revolta contra o luto, sendo a antecipação da dor da
perda o que obscurece o gozo. Freud, que está escrevendo este texto sob a influência da
Primeira Guerra Mundial, insiste na importância de fazer o luto dos perdidos renunciando a
eles, e na necessidade de retirar a libido que se investiu nos objetos para ligá-la em substitutos.
São os objetos que passam e, às vezes, agarrar-se a eles nos protege do reconhecimento da
própria finitude. Porém, a guerra e a sua destruição exigem o luto e nos confrontam com a
transitoriedade da vida, o que permite reconhecer a passagem do tempo.

No entanto, no entender de Freud, a nossa atitude perante a morte não implica essa certeza.
Se de um lado aceitamos que a morte é inevitável, quando se trata da própria morte tentamos
matá-la com o silêncio, desmenti-la, reduzi-la de necessidade à contingência. “No inconsciente,
cada um de nós está convicto de sua imortalidade”, afirma Freud, em De guerra e morte.
Temas de atualidade. Nada do pulsional solicita a crença da própria morte. Esta só se constrói
secundariamente, a partir da morte dos próximos, da dor e da culpa pela mesma. Nem a
própria morte nem a passagem do tempo têm registro no inconsciente, afirma Freud.

O tempo do inconsciente não é um tempo que passa, é um “outro tempo”, o tempo da “mistura
dos tempos”, o tempo do “só depois”, o “tempo da ressignificação”.

A forma na qual se constroem as lembranças nos mostra isso, assim o explicita Freud em um
texto de 1899: “As lembranças encobridoras”, valendo-se de um exemplo que, embora não
revele no texto, é uma lembrança dele mesmo que surge durante umas férias de sua
adolescência. Quando Freud tinha 16 anos viajara para Freiberg, sua cidade natal, sendo este
o primeiro retorno desde a sua infância. Nesta ocasião, vive uma paixão por Gisela, a
primogênita da família que o hospeda. Trata-se de um momento no qual, para Freud, os
projetos de futuro estão em jogo: a sobrevivência econômica e o amor. Nesse momento, surge
nele uma lembrança infantil: três crianças, entre elas ele mesmo, brincam e colhem flores numa
campina verde e coberta de flores amarelas. Formam ramos de flores e os meninos arrancam o
que está nas mãos da menina por ser o mais lindo. Ela corre, chorando, até uma camponesa
que lhe oferece, para seu consolo, um pedaço de pão. Eles vão também atrás de um pedaço
de pão que a camponesa lhes entrega. Nesta lembrança dois detalhes se destacam: a força do
amarelo das flores e o sabor do pão, tão acentuados que beiram à alucinação.
O retorno à cidade natal mobilizara em Freud as vivências da infância, reativando marcas
mnêmicas, marcas sensoriais de detalhes aparentemente insignificantes – porém fundamentais
– que são carregadas pelas lembranças e às quais estas devem a sua vivacidade. Marcas da
erotização e também dos lutos, da ausência de objetos. Essas marcas se oferecem como
pontos de contato com as fantasias posteriores que sobre elas se projetam, criando pontos de
condensação. Assim, duas fantasias que tocam temas fundamentais da vida do jovem Freud –
a fantasia amorosa com a moça da família que o hospeda e a fantasia sobre sua sobrevivência
econômica – projetam-se sobre a lembrança infantil que lhe faz de tela. O amarelo do vestido
que a moça vestia no primeiro encontro faz um ponto de condensação com as flores da
infância, intensificando o amarelo das flores da lembrança. Da mesma maneira, a fantasia
sobre a sua sobrevivência econômica, através da frase “ganhar o pão”, confere uma
intensidade maior ao sabor do pão na lembrança. Fantasias, lembranças e pensamentos de
épocas posteriores se enlaçam simbolicamente com as da infância, intensificando, deformando
ou transformando a lembrança infantil. Estas lembranças são as lembranças encobridoras.

Mas não é um tipo especial de lembrança que nos interessa e sim a dinâmica psíquica que
nela se põe em jogo e que pode ser estendida à construção das fantasias e ao funcionamento
geral da realidade psíquica. Neste funcionamento, a memória não é única nem fixa, ao
contrario, as lembranças vão sendo construídas num processo de retranscrição. Freud
inaugura uma teoria da memória ao afirmar que o material das marcas mnêmicas reordena-se
de tempos em tempos, formando novos nexos. Na constituição da lembrança há, portanto, uma
mistura de tempos. Os tempos não mantêm uma cronologia, passado, presente e futuro se
misturam, se confundem. A lembrança infantil é como um quadro. O espaço do enquadramento
é dado pelo próprio texto da lembrança, no qual se combinam traços. Traços que revelam as
marcas de erotização e também os processos de luto vividos que deixaram as marcas do
objeto ausente. Ou seja, há um passado que se cria e se recria em novas articulações.

Ao assinalar a existência deste outro tempo que é o tempo da ressignificação, Freud distingue
o funcionamento do inconsciente do da consciência e rompe com a idéia de uma causalidade
linear, de um passado que determina um presente, afastando-se de um determinismo
mecanicista. Não procuramos no passado a causa do presente. O que passou se fez realidade
psíquica.

A historia de um sujeito não é, portanto, uma linha reta, mas é traçada por pontos de
condensação nos quais as tramas do vivido se entrecruzam e pulsam, forçando a presença do
passado no atual, resistindo a qualquer linearidade cronológica e construindo uma realidade
psíquica que não coincide totalmente com a realidade material.

O tempo do après-coup é um conceito fundamental no arcabouço teórico freudiano. Há


acontecimentos da infância que se inscrevem difusamente, marcas psíquicas que ficam
informes, indefinidas, à espera de um acontecimento e que só depois adquirem sentido. Temos
então a idéia de um passado que não é fixo, mas que se ressignifica no presente.

Nesse “outro tempo” que não respeita a cronologia, nesse tempo do só depois, há movimento -
que retranscreve, que articula novos nexos, rearticula as inscrições do vivido - construindo
sonhos no dormir, fantasias e pensamentos na vigília. Há movimento das dimensões pulsionais
e desejantes que, misturando os tempos, produz novos sentidos. O tempo não passa no
sentido do tempo seqüencial, em uma direção irreversível, mas, na mistura dos tempos, as
marcas mnêmicas nas mãos do “processo primário” condensam-se, deslocam-se e criam
novos sentidos.

Mas há também, no psiquismo, uma outra relação entre passado e presente na qual o après-
coup parece não operar mais, a imobilidade impera, assim como “eterno retorno do mesmo”,
como mera insistência pulsional, fazendo do passado um destino. “Neurose de destino”, dirá
Freud. No funcionamento da compulsão de repetição, o pulsional mais puro, sem possibilidade
de representação, se encarna no atual, se apossa dele como sombra vampiresca e, no fora da
linguagem, perde-se qualquer possibilidade de fazer o luto, de transformar a perda em
ausência. Nessa presença da pulsão pura, a expressão “o tempo não passa” ganha toda a sua
força.
A diferenciação dos funcionamentos temporais no psiquismo está presente ao longo da obra de
Freud, sendo um dos fios importantes da metapsicologia freudiana. As concepções de memória
e causalidade psíquica subvertem a psicologia da consciência e são parâmetros básicos que
fundamentam a clínica psicanalítica.

Silvia Leonor Alonso é psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto


Sedes Sapientiae e professora do curso de Psicanálise deste Instituto desde 1980. É co-
organizadora e autora das coletâneas Freud:um ciclo de leituras (São Paulo: Escuta, 1997) e
Figuras Clinicas do feminino no mal-estar contemporâneo (São Paulo:Escuta, 2002). Autora
(em parceria) do livro Histeria (São Paulo: Casa do Psicólogo,2004).

Referências bibliográficas

FREUD, S. (1915). De guerra y muerte. Temas de actualidad. Obras Completas Buenos Aires:
Amorrortu editores (vol.14).

FREUD, S. (1915). La transitoriedad. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu editores. (vol.
14).

FREUD, S. (1899). Los recuerdos encubridores. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu
editores. (vol. 3).

PONTALIS, J. B. (2005). Este tiempo que no pasa. Topia editorial. Buenos Aires.

LAPLANCHE, J (1980). La sexualidad. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión.

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