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Adriana Seabra 28.08.

2013
O que acontece no processo escolar que torna autores dos inícios da escolarização em
repetidores de leituras mal digeridas no fim da escolarização?
(Geraldi, 1999, p. 129)
Tal pergunta baseia-se na observação de que, conforme a escolaridade avança e os
alunos apropriam-se da escrita, mais se afastam de uma posição autoral. Seu uso da língua
tende a ser mais expressivo e genuíno em situações de interlocução fora da escola, do que no
meio escolar, cujas concepções de linguagem e de ensino de língua, por diversos motivos,
esvaziam de sentido o uso da escrita pelos estudantes.
No livro “A escola que (não) ensina a escrever” (2 ed. 2012), Colello expõe e discute
esses motivos. Segundo a autora, o ensino escolar da língua materna, no Brasil, é
reducionista. Ele se escora no pressuposto equivocado de que basta transmitir o código
alfabético e a norma gramatical para fazer do aluno um escritor: depois de dominar o sistema
notacional o aprendiz simplesmente transferiria sua competência no uso da fala, para o
exercício da escrita. Donde decorre mais um equívoco, pois a escrita não é mera transcrição
da fala. Os que assim a concebem fazem abstração dos elementos da situação de interação
linguística, a começar, pelo próprio interlocutor (presente, ausente, próximo, distante etc). Em
situações “reais” de uso da língua (quer dizer, fora da ficção escolar), não se escreve, nem se
fala, a não ser que haja algo a ser dito a alguém (nalgum lugar, nalgum momento, por algum
motivo, de algum modo). Por ser, ao mesmo tempo, meio e produto da sociabilização do
Homem, a língua não existe fora do discurso e vai acumulando, no decorrer de sua história,
marcas de suas condições de produção.
Ao tratar a língua como sistema, objeto de descrição das Gramáticas, isolado do uso, a
escola trai “a essência interativa” da linguagem (idem, p.62), comprometendo, por um lado,
os processos de elaboração cognitiva das crianças, pois que estes dependem da relação do
sujeito aprendiz com o(s) outro(s); e, por outro lado, a compreensão da natureza dialógica,
polifônica e responsiva da linguagem. No primeiro caso, a escola está rechaçando os achados
de Piaget e Vygotsky a respeito dos processos ativos e sociais por meio dos quais se efetiva a
construção pessoal do conhecimento; no segundo caso, está dispensando a contribuição de
Bakhtin quanto à constituição dialógica e responsiva dos gêneros discursivos e textuais que
circulam nas diversas esferas sociais de uso da linguagem (por exemplo: um discurso de
contestação do poder organiza-se em resposta a um discurso de poder, dialogando com ele
para refutá-lo). Está, também, obliterando a construção heterogênea, polifônica (o arranjo de
vozes sociais) dos diversos gêneros discursivos.
Assim, a autora sustenta que, na escola, uma concepção reducionista do objeto de
ensino articula-se a uma concepção reducionista do processo de ensino e a uma concepção
reducionista da aprendizagem – e essa tripla articulação faz da escrita que se aprende na
escola uma escrita inócua, ineficaz, um exercício que não tem nenhum sentido a não ser o de
repetir-se como exercício. É aterrador, mas isso nos sugere que as crianças que desenvolvem
uma relação criativa com a escrita o fazem apesar do ensino que recebem.
Acrescentaríamos, por nossa conta, que há também um grande equívoco quanto ao
papel do professor no processo de aquisição da escrita. A escola “reducionista” concebe o
professor como um depositário das regras gramaticais e textuais que, dada sua habilidade
didática, seria capaz de transmiti-las aos alunos. Mas, se é verdade que o professor conhece as
regras da escrita e os estudantes ainda não; também é verdade que estes não vão conseguir
aprendê-las de fato, e conservá-las na memória, a não ser que concebam e ponham à prova
suas próprias hipóteses sobre o funcionamento dessa modalidade de uso da língua. Nesse
processo construtivo o professo é (só mais um) interlocutor do aprendiz, ainda que seja um
interlocutor com certos privilégios.

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