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A arte e a humanizacao do homem: afinal de contas, para que serve a arte? Rose Meri Trojan” Esta questdo tem ocupado por décadas os educadores da drea de Educagio Artistica (particularmente a partir dos anos 80, no processo de revisdo dos currfculos escolares), com o objetivo de justificar a importan- cia desta disciplina na escola basica. Contudo, estes esforgos nao tém convencido a maioria dos profes- sores € alunos, a comegar pela pratica pedagdgica que se desenvolve, mantendo a impressao de inutilidade, de perda de tempo, de “coisa supér- flua”. Que importincia tem ficar desenhando, fazendo cartOes para o dia das mies, ou bandeirinhas para as festas de Sao Jodo? Devia é ter mais tempo para a leitura, a escrita, 0 cAlculo... Esta posigtio € assumida até mesmo pelos dirigentes, quando por exemplo, na ocasido da revistio do Nicleo Comum dos Curriculos, em 1986, Secretérios de Educagao de todo o pafs_propuseram a exclusto da Educagio Artistica. Esta situagdo nos remete novamente 4 questao colocada no infcio do texto e que parece nio ter sido respondida satisfatoriamente. Afinal de contas, para que serve a arte? Para que serve a milsica, 0 teatro, a danga, as artes pldsticas, 0 cinema? A resposta mais comum diz respeito ao prazer, ao lazer, ao deleite do espirito, e tem reforgado a idéia de “coisa supérflua”, de Tuxo, de ocupago ociosa para quem tem tempo (e dinheiro) para freqiientar teatros, cinemas e galerias, Para a grande maioria, que no consegue nem ao menos o seu sustento basico, nado é importante. S6 reconhecem a importancia da arte os artistas e educadores da rea, que enfatizam seu papel no desenvolvimento da famigerada criativi- Professora do Departamento de Planejamento e Admi versidade Federal do Parand. ragio Escolar da Uni- Educar, Curitiba, n.12,p.87-96. 1996. Editora da UFPR 97 TROJAN, R.M. A arte ea bumanizacio do bomem dade, da expresso das emoges, das habilidades sensfveis e que chegam até ao limite de propor a arte como fundamento para a aprendizagem de todo e qualquer conhecimento. De certa forma, esta defesa acaba reforgando a idéia do supérfluo. Que importancia tem conhecer Mozart ou Leonardo da Vinci, ser sensivel ¢ criativo, para 0 mundo do trabalho, na época dos computadores e satélites? Ou, que importincia tem a miisica erudita, 0 balé cléssico ou a pintura cubista, para uma multidio de analfabetos? Cultura imitil! No entanto, a arte sobrevive — inutilmente ou nao, todo mundo ouve miisica, danga, assiste a filmes e se preocupa em pendurar nem que seja a gravura de um calendério na parede (no estamos aqui afirmando que tudo € arte ou nos propondo a um julgamento de valor estético, mas desta- cando a evidéncia da necessidade de contato das pessoas com objetos ou atividades cujo sentido ¢ predominantemente artistico). Do Renascimento até hoje, artistas sio consagrados e se transfor- mam em {dolos. Os meios de comunicagao de massa reservam um espago significativo para as manifestagdes artisticas. Por qué? Para que? Por mais que se imponha como atividade dispensdvel, a produgio artistica no se justifica somente como luxo e decoragdo para as elites, Prova disso so 0 radio e a televistio que, através da veiculagio de misica, novelas € filmes, ocupam a maior parte das horas de lazer da classe traba- Thadora, Eno, para que serve a arte? Se todas as respostas ainda nao con- venceram, a prética teima em contradizer 0 mito da inutilidade. O problema que se coloca ento € o de encontrar a resposta certa. E preciso fazer uma limpeza no terreno da arte, no processo hist6rico de sua cons- trugdo, na obra enquanto mercadoria, no consumo privado, nos desvios provocados pelo modo de produgio de nossa sociedade e pelos valores (ou anti-valores) que produziu e produz. Se o valor da obra de arte se coloca por um lado nos dominios do prazer e da beleza, por outro nao escapa da mercantilizacio. A possibili- dade de acesso ao prazer ¢ & beleza est4 presa 4 condigao de pagar pelo seu prego, Isto significa que, do mesmo modo que o consumo de produtos que atendem as necessidades basicas de sobrevivéncia (como alimentagio, satide, habitagao...), os produtos da arte se apresentam como mercadorias. Assim, nao hé possibilidade de escolha entre “o pio de cada dia” © mais belo espeticulo artfstico para a maioria daqueles que, tendo garan- ida sua subsisténcia, tm recursos “sobrando” para investir no deleite do espfrito. Esté dada a sentenga! #8 Eeucar, Critiba 12, p87 96,1996, Eitora da UEPR TROJAN, R. M.A arte e a buomanizacio do bomen E agora? Voltamos ao comego: todas as aparéncias reforgam 0 papel secundério da arte, mas ainda ndo dio conta de explicar sua existéncia. Precisamos mergulhar nestas aparéncias que se manifestam na vida real dos homens, no seu cotidiano, para encontrar respostas mais convincentes que possam mostrar ou quem sabe até ampliar a importincia da arte na existéncia humana. O que acontece as pessoas quando entram em contato com alguma forma de manifestagao artistica? A beleza de um quadro, de uma misi de-um filme, nos comove — nos faz tir, chorar, pensar... Por que? A historia que se passa no filme nao tem nada a ver com a nossa hist6ria, nem com 0 nosso tempo, nem com as atividades que desen- volvemos, mas pode nos comover até as Lagrimas. Por que? Talvez a res- posta seja a de que comove porque € humana. Por que € humana? Porque mostra a vida dos homens que ontem, hoje e amanh@, sio homens — que pensam, agem, trabalham, se relacionam, sao felizes ¢ sofrem. E isto que permite que uma pega de Sheakespeare tenha validade hoje, quando seu tempo nao mais existe. Ou que um filme de ficgao futurista mostre fatos que se relacionam com 0 mundo de agora. Aqui se pde outro mistério, a ser desvendado: este carter universal humano que se manifesta numa obra particular. A obra se manifesta histo- ricamente, numa determinada época, de acordo com os seus costumes, com as suas possibilidades, condicionada pelo desenvolvimento cientifico € tecnol6gico do seu tempo, mas pode ultrapassi-lo e permanecer, ‘A Quinta Sinfonia de Beethoven ainda € atual porque revela senti- mentos humanos que ainda nos perturbam enquanto humanidade. Os rit- mos sertanejos toca as pessoas que vivem nas cidades, 0 rock alcanga as mais remotas regides rurais. As emogdes revelam a luta dos homens pela superagdo de sua sobrevivéncia e conquista da felicidade ~ ah! 0 reino da liberdade, O avango tecnolégico dos meios de comunicagao e, contraditoria- mente, a necessidade crescente de expansao do mercado capitalista, pro- movem a universalizagaio da cultura artistica, ao mesmo tempo em que reduzem a possibilidade de acesso aos seus produtos. A condigio para concretizar 0 cardter universal da arte est4, ao mesmo tempo, dada e negada. Contudo, esta universalidade nao se descola da obra de arte, que se poe como sintese de toda a potencialidade humana ~ a possibilidade de ser inteiro, perfeito, capaz de realizar tudo. E a hist6ria do final feliz, to- dos querem um final feliz na vida e na arte, ou na arte e na vida... Educar, Curitiba, n.12, p87-96. 1996. Editora da UFPR 9

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