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Genocídio

A destruição das minorias raciais

As tampas, em forma de cogumelo, dos tubos ventiladores das


câmaras da morte que pontilhavam o verdejante gramado eram
retiradas e as cápsulas de cianureto desciam através deles. Depois de
algum tempo, os infelizes nelas confinados, ao efeito do gás mortífero,
atiravam-se endoidecidos contra a porta de saída, buscando
inutilmente a fuga. A morte levava de cinco a quinze minutos, depen-
dendo das condições atmosféricas.
Ward Rutherford

Uma ciência nova e pervertida

Esta é a narrativa da escalada do doloroso tratamento dispensado


pelos alemães aos judeus, do anti-semitismo, parte integrante do
dogma do Partido Nacional-Socialista, à aplicação implacável do que
Hitler chamou "Solução Final".

Terminada a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha, cheia de


frustrações e descontentamentos, oferecia todas as condições para a
semeadura do racismo. Judeus e bolchevistas ali estavam para servir
de bodes expiatórios dos reveses por ela sofridos, e a atribuição do
fracasso às maquinações e atividades subversivas desses grupos
ajudou a tornar mais aceitável, por muitos alemães, o problema que
tais reveses criaram. O Partido Nacional-Socialista - em si mesmo
produto da reação nacional à derrota e ao caos econômico do pós-
guerra - divulgou, em fevereiro de 1924, um manifesto em que
formulou em linguagem muito clara a doutrina racista que adotaria. A
cidadania alemã, segundo o manifesto, só deveria ser concedida aos de
sangue alemão, especificando que, portanto, nenhum judeu seria um
nacional. Mesmo antes da publicação do manifesto do partido, Hitler
já havia tornado público o sentimento anti-semita que alimentava. O
Mein Kampf (Minha Luta), escrito durante o período de reclusão que
cumpriu após o fracassado putsch de Munique, de 1923, acusava
francamente os judeus de haver contribuído para o solapamento do
esforço de guerra da Alemanha.

Com o ódio aos judeus colocado como parte integrante da filosofia


nazista, seguia-se que os primeiros a esposar a causa nacional-
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socialista seriam os que compartilhassem do anti-semitismo fanático


de Hitler, porque, no momento, o partido não era tão bem sucedido a
ponto de atrair seguidores ansiosos por ingressar nele. Um dos
elementos da "primeira geração" nazista que mais dispostos se
mostraram a adotar o absurdo da superioridade racial nórdica foi
Heinrich Himmler.

Desenvolvendo inicialmente uma atividade não-remunerada dentro


do partido, Himmler acabou recompensado com um cargo remunerado
e, mais tarde, foi indicado para o cargo aparentemente insignificante
de subcomandante das SS, pequeno grupo integrante das onipotentes
SA de Ernst Röhm. Esse grupo, no começo insignificante, aumentaria
e obscureceria com sua sombra sinistra o grupo em cujo seio colheu a
cevadura que lhe deu força sos tentáculos para dominar os
instrumentos de poder do
estado totalitário.

Hermann Goering na realidade criou a infame Polícia Secreta do


Estado, ou Gestapo, e inaugurou, em 1933, os campos de
concentração para onde os desgraçados rotulados de inimigos do
estado eram levados sem-cerimoniosamente. Mas foi Himmler quem
assumiu afinal o controle dessas organizações de terror e de morte.
Quando Himmler criou o Departamento de Inteligência das SS (o SD),
indicou Reinhard Heydrich, um jovem de aparência nórdica e força
física satisfatória, a verdadeira antitese do próprio Reichsführer-SS,
para o chefiar. Estes dois homens se completavam; um
permanentemente preocupado em inventar teorias raciais malucas, o
outro perseguindo sempre o poder pessoal e a autoglorificação. Eles
faziam uma dupla formidável, e, bem servidos por homens como
Adolf Eichmann, os dois puseram-se a aplicar a selvagem política
racial do Führer, megalomaníaco e insensível.

Semanas depois que Hitler subiu ao poder, em 1933, os judeus


ocupantes de cargos públicos começaram a ser implacavelmente
removidos, e os profissionais liberais e homens de negócios judeus, a
ser boicotados e hostilizados. Daí por diante, a perseguição a esses
infelizes ganhou velocidade incontrolável, passando da hostilização ao
aviltamento, à prisão e deportação, chegando à "Solução Final" - o
aniquilamento total. À medida que as conquistas da Alemanha
aumentavam, também aumentava o número de judeus que caíam nas
garras das SS de Himmler. O gráfico das mortes de judeus apresentava
uma tendência ascendente constante.
Holocausto 3

Para acompanhar o fluxo crescente de vitimas, fazia-se necessário


o aperfeiçoamento dos métodos de executá-los. Na primavera de
1942, as câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau começaram a
funcionar, cada qual com capacidade de aplicar a "Solução Final" a
2.000 desgraçados de cada vez. O gás era introduzido nas câmaras
lançando-se cristais de Zyklon B nos tubos dos ventiladores e os
corpos das vítimas eram depois levados sos fornos nos crematórios
das proximidades. O funcionamento da usina da morte adquiria um ar
de irrealidade com a música de Lehar e Strauss executada, durante a
horrenda operação, por uma orquestra de vitimas potencisis. Os nomes
dos campos de concentração - Treblinka, Sobibor, Majdanek, Belsec,
Chelmno, Dachau, Dora, Mauthausen, Ravensbrück, Sachsenhausen e
Buchenwald - tornaram-se sombriamente evocativos, fazendo-nos
recordar as filmagens feitas pelas autoridades aliadas desses campos à
medida que eram tomados, registrando para a posteridade a terrível
condição de prisioneiro político do Terceiro Reich: figuras
esqueléticas, envoltas em farrapos, que mal se distinguiam dos seus
camaradas mortos; sobreviventes quase incapazes de compreender que
finalmente haviam sido "libertados".

Esses homens são as glórias de batalha das unidades da "Caveira"


das SS, criadas para povoar de sombras os inacreditáveis campos de
concentração, sombras que eram homens, mulheres e crianças de raças
"inferiores", expiando crimes não cometidos, condenados à morte por
acidente de nascimento.

Mesmo com tantos campos trabalhando febrilmente para executar


as ordens do Führer, era difícil acompanhar o ritmo de chegada dos
trens carregados de infelizes trazidos de toda parte da Europa; e assim
as vítimas eram obrigadas a sofrer a indignidade levada ao absurdo, a
promiscuidade mais cruciante, até serem amontoadas nas câmaras de
gás. Apinhadas, com as mãos para o alto e com criancinhas jogadas
em cima delas, as vítimas eram maltratadas até o último instante de
vida.

Como o autor observa, a perseguição sos judeus não era novidade.


Por toda a História, a raça judaica tem sido alvo de medidas
discriminatórias - muitas vezes com total apoio da lei - nalguns países,
havendo exemplos, anteriores a Hitler, de massacres dirigidos contra
ela. Mas os seguidores de Hitler acrescentaram outra dimensão a essas
medidas. Enquanto os excessos a que nos referimos, cometidos antes
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de Hitler, foram perpetrados em clima de exaltação de ânimo, em hora


de aturdimento, Himmler, Heydrich e gente da sua espécie levaram a
efeito o genocídio calma, desumana e friamente planejado. Milhões de
judeus morreram nos campos de concentração da Alemanha nazista,
vitimas de uma pervertida forma de ver as razões por que aqui
estamos.

Os predecessores dos nazistas

Por certo, nada justifica melhor a famosa definição de "História",


de Gibbons, para quem ela é "pouco mais do que o registro dos
crimes, loucuras e desgraças da humanidade", do que o tratamento das
minorias judaicas. Durante quase 2.000 anos os não-judeus têm
demonstrado gratidão àqueles que lhes deram uma visão única da sua
relação com o Infinito, e que proporcionaram o meio, intelectual e
geográfico, para o nascimento do Cristianismo, por perseguições que,
com o correr dos séculos, só têm mudado no fato de que cresceram em
magnitude e engenhosidade. Como Bernard Levin escreveu
recentemente, ao fazer a crítica de um livro sobre esses dois milênios,
enquanto que a maioria das religiões e povos tem sido perseguida por
alguém em determinado momento "somente os judeus sempre foram
perseguidos por todo o mundo".

Mas se a civilização cristã e pós-cristã tem demonstrado uma


distinção peculiar nesse aspecto, a raça já vinha sofrendo muito antes
do nascimento de Cristo. Ela conheceu a ocupação da sua nação-
estado praticamente desde o seu surgimento; seu povo sofreu
deportação e exílio forçado, sob os assírios, egípcios e babilônios.
Tentativas de obrigá-los a abandonar seu Deus único em troca do
panteão do estado foram feitas por quase todos esses opressores e,
mais tarde, pela Grécia e por Roma. Esforços nesse sentido, feitos por
Antioco III, o selêucida, levaram à bem sucedida rebelião de Judas
Macabeu em 167 a.C.

Quando Tibério se tornou imperador, em 14 d.C., sua política para


com os membros judeus do Império Romano se assemelhava à de
Hitler: "o extermínio de toda a raça judia". Os romanos
escandalizaram-se com a desfaçatez de uma pequenina nação que se
atrevia a considerar sua religião superior à deles.
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No ano 30 d.C., o Sinédrio, Supremo Tribunal Judeu, perdeu a


jurisdição sobre seu próprio povo. Em 70 d.C., o Templo de Jerusalém
foi destruído por Tito, após uma revolta judia. No ano 132 d.C. teve
início a rebelião de Bar-Cochba, que foi impiedosamente sufocada
pelos romanos. Esta revolta, a última que os judeus tentaram contra
um algoz estrangeiro até o levante do gueto de Varsóvia, em 1943,
levou os romanos a expulsa-los de Jerusalém, destruindo totalmente a
cidade.

A expulsão dos judeus de Jerusalém é em geral considerada o


começo do período da Diáspora, ou dispersão. Na verdade, sob o
estímulo das constantes perseguições em sua pátria, comunidades
judias já haviam emigrado para outros países.

Se, contudo, os romanos achavam que á nação judia e seu povo


haviam desaparecido da face da terra, estavam enganados. Um ou dois
anos após a queda da sua capital religiosa e política, um desastre do
tipo que precedera o eclipse total de outras nações, os judeus tornaram
a reunir-se em torno de sua fé. Um novo centro foi iniciado em
Jamnia, na costa mediterrânea, onde novas escolas rabínicas foram
fundadas e onde o Sinédrio foi restabelecido.

Mas, estes não eram senão grupos e, como o povo exilado de uma
nação reprimida, os judeus buscavam um santuário onde quer que
pudessem encontrá-lo. Eles normalmente eram bem recebidos, até que
Constantino fez do cristianismo religião do Império Romano. Quando
o império se dividiu, os judeus perderam todos os privilégios que lhes
haviam sido concedidos na Europa Ocidental. A principio, não havia
intenção de separá-los, mas apenas cuidar para que os postos
importantes fossem ocupados por professantes da fé recém-adotada.
Contudo, nos séculos seguintes, a perseguição de parte dos cristãos se
tornaria tão generalizada, tão diversa nas suas formas, que não existe
um só aspecto da tirania nazista para o qual não se encontrem
exemplos anteriores.

Cada vez mais separados dos seus semelhantes, os judeus foram


transformados num painel em que os vícios humanos estavam todos
representados. Eles eram deicidas (não haviam eles permitido a
crucificação de Cristo?); eram os envenenadores de poços; eram
infanticidas, repetindo a crucificação em crianças cristãs batizadas e
usando seu sangue para fazer o Pão da Páscoa.
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O ponto de vista da Igreja Católica é adequadamente resumido


numa série de oito sermões feitos por São João Crisóstomo em 387.
Os judeus, afirmou ele, eram carnais, lascivos, avarentos; eram
bêbados, bordeleiros e criminosos. Sua opinião, e outras idênticas,
encontraram eco pelos séculos afora, e foi esposada por muitos líderes
cristãos. Há os que procuram explicar o anti-semitismo com razões de
ordem econômica - pura manifestação de inveja dos que têm sofrido a
competição dessa minoria em geral diligente e talentosa. A História
absolutamente não apóia esse ponto de vista. A perseguição aos judeus
era fomentada do alto, pelos que não sofriam tal competição. Na Idade
Média, assim como na Alemanha hitlerista, o europeu comum
repudiava as perseguições e perdia mais do que se beneficiava com
elas.

O espetáculo do sofrimento dos judeus, daqueles que cravaram na


cruz o Redentor do homem, era considerada edificante, tal como as
execuções públicas também o eram, por demonstrarem o triunfo da
justiça divina e temporal e por se constituírem numa advertência
terrível quanto aos resultados da impenitência obstinada.

Os pogrom e massacres de guetos promovidos pelos "cruzados" da


Nova Ordem de Hitler emulavam os modelos mais antigos, pois cada
uma das Cruzadas foi precedida de massacres "dos sarracenos em
nosso meio", os saqueadores da Terra Santa, na França, Alemanha,
Espanha e Inglaterra. Quando Benedito, o líder da comunidade judia
de York, foi a Londres, em 1189, levando presentes para a coroação de
Ricardo Coração de Leão, foi recompensado com a morte, juntamente
com dezenas de patrícios seus, na cidade. Sua morte foi seguida de
massacres em Norwich, Stamford e Kings Lynn, culminando com o
realizado na própria cidade de York. Ali, um grupo de judeus
finalmente preferiu o suicídio à violência da ralé.

Assim como as leis de cidadania nazistas tornaram os judeus


cidadãos de segunda classe, o mesmo aconteceu na Inglaterra
medieval, onde eles eram propriedade do rei. Assim como suas
sinagogas foram incendiadas na Alemanha, também o foram em Roma
e na Espanha. Assim como os nazistas extorquiam dinheiro aos
judeus, o mesmo o faziam antigamente os reis e prelados da Europa
Cristã. Algumas grandes igrejas e catedrais que se constituem em
orgulho da Cristandade foram em grande parte construídas com essas
verbas. Assim como os nazistas forçaram a emigração e determinaram
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a expulsão dos judeus, também estes haviam sido expulsos da


Inglaterra e da França.

As acusações, contra os judeus, de conspiração vêm da Idade


Média. Na Espanha, o clero, pregava a necessidade de o país livrar-se
dos judeus. Os judeus, diziam os padres, planejavam a escravização de
todos os espanhóis, a começar pelo rei. Milhares morreram nos
massacres assim inspirados.

A Idade Média também serviu de berço ao sistema de gueto, no


qual o judeu era segregado do ariano, sistema que seria usado
largamente na Polônia e na Rússia nos anos 40. Por mais amargo que
fosse o insulto, isto pelo menos dava certa segurança aos judeus, que
voltavam aos guetos, onde encontravam segurança e oportunidade de
introspecção, sempre que o perigo os ameaçava.

Assim como os alemães instituíram o regime do assassinato


organizado, o mesmo fez Torquemada, o primeiro Grande Inquisidor,
digno predecessor de Heydrich e Eichmann.

Assim como Himmler pregava a virtude transcendental da pureza


do sangue, também na Espanha setecentista a limpieza de sangre
serviu de desculpa para o ataque aos poluidores judeus. Assim como
os nazistas reescreveram a História para imputar aos judeus os
problemas que enfrentavam, também na Idade Média as massas
aprenderam que os judeus eram a tribo de Judas Iscariotes, o traidor
do Cristo.
Quando sua existência na Europa Ocidental se tornou intolerável,
os judeus começaram a mudar-se para o Leste. Ali, disseram-lhes,
predominavam atitudes mais racionais. E assim foi, a princípio. Na
Áustria, seus direitos como seres humanos e cidadãos foram
respeitados. Na Polônia, Hungria, Romênia, no nível do povo comum,
judeus e cristãos conviviam. Mas a Igreja Católica inquietava-se com
a aliança que estabeleceram.

Houve uma oportunidade de acabar com os judeus quando


estourou a guerra entre russos e poloneses. Na Polônia, disseram que
os judeus estavam mancomunados com a Rússia; nesta, que eles
estavam mancomunados com os poloneses. Milhares foram
assassinados.
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Assim como os judeus, segundo testemunhas, enfrentavam os


fuzilamentos nazistas sem pedir piedade, também iam para a fogueira
cantando salmos, virando as costas à oportunidade de salvar-se, mas
não admitindo a retratação e a conversão. Na história dessas mortes
em massa nas fogueiras, tomamos conhecimento do caso de um
menino que encorajava e consolava seu irmão mais novo que se
mostrava aterrado diante das chamas aonde estava prestes a ser
jogado, dizendo-lhe que ele ia para o Paraíso. Também mais tarde,
pais, mães, avós e irmãos mais velhos consolariam os jovens
aterrorizados diante das covas da morte em Ponary e nas câmaras de
gás de Auschwitz.

Mesmo com o Iluminismo, não houve alívio. A ciência foi


destorcida para justificar a perseguição, e a razão era mantida em
xeque. O próprio Voltaire chegou a quebrar a sua reconhecida lógica
para censurar os judeus de ignorantes, bárbaros, avarentos,
supersticiosos e cheios de ódio.

Na Rússia, o pogrom tornara-se instrumento de política do


governo, aplicado sempre que o povo se mostrava inquieto. Mesmo na
guerra de 1914, com a Alemanha, a perseguição aos judeus não sofreu
solução de continuidade. Ela ainda estava acesa quando, como
aconteceu na Alemanha, mais tarde, pôs em perigo o curso da guerra.

E foi pelo próprio Czar Nicolau, em sua residência de campo,


Tsarskoye Selo, em 1905 - o ano da revolução fracassada - que o
notório livro Protocolos dos Sábios do Sião foi promulgado. Trabalho
de um escritor pago pelo governo, era uma amálgama de todos os
absurdos atribuídos aos judeus desde a Idade Média, como complôs
internacionais etc., e que Hitler usou como prova trinta anos depois.
Contudo, o Czar Nicolau II não era homem para quem a razão
significasse muita coisa quando se tratava de atacar judeus: ele dissera
ao Kaiser Guilherme II, da Alemanha, sobre os ingleses: "O inglês é
um judeu".

No resto da Europa, os movimentos populistas e democratizantes


dos meados do século XIX produziram um novo açoite para surrar os
judeus e foram responsáveis pela introdução da palavra "anti-
semitismo". Para os anti-semitas adversários dos movimentos
democráticos, como Gobineau, os judeus eram comunistas e
socialistas. Para os socialistas anti-semitas, como Drumont, então os
judeus eram as eminências negras financeiras do capitalismo.
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Joseph Arthur, Conde de Gobmeau (1816-82), procurou, em seus


quatro volumes do Essai sur L'inégalité des Races Humaines, explicar
a história em termos raciais, ressaltando o eterno conflito entre as
raças dolicocéfalas (ou de cabeça longa) e as raças braquicéfalas (ou
de cabeça larga). Os principais entre os dolicocéfalos eram os povos
nórdicos louros. Os judeus, naturalmente, eram braquicéfalos. Tão
penetrantes foram suas idéias, que os propagandistas ingleses
aplicavam pejorativamente aos alemães o termo "braquicéfalo".

Edouard Drumont (1844-1917) relacionou o anti-semitismo com o


socialismo e o oculto - uma combinação também encontrada entre os
nazistas. E foi um dos seus seguidores, Jacques de Biez, que cunhou o
nome "Nacionais-Socialistas". Ele disse, em 1899: "Somos nacionais-
socialistas porque estamos atacando as finanças internacionais.
Queremos a França para os franceses". Substituindo-se as palavras:
"Alemanha" e "os alemães" nesta última frase, o trecho poderia ter
saído da pena do Dr. Goebbels.

As perseguições ocorridas na Rússia, Polônia, Romênia e Hungria


levaram os judeus a retornar para o oeste. Muitos não foram além da
Áustria, mas números menores chegaram à Alemanha, França e mais
além. Eles foram aceitos, mas não considerados bem-vindos. Criados
em guetos, desenvolveu-se neles o instinto natural para se manterem
unidos, apegando-se a seus hábitos, costumes e linguagem, sempre
temerosos de novos pogrom.

A Igreja Católica viu neles, uma vez mais, uma ameaça à fé do seu
rebanho, afirmando que o judaísmo era a antítese do cristianismo.
Ademais, como a História demonstrava que os judeus eram
inconversíveis, eles tinham de ser expulsos. Mesmo os judeus
batizados eram tidos como "espiões dentro da Igreja" e, como medida
de proteção do cristianismo, tinham de ser tratados como os seus
concidadãos não-batizados. As organizações comerciais viam-nos
como competidores. Os judeus da classe média assimilada de Viena e
Berlim votavam-lhes franca aversão, considerando-os parentes pobres
que de repente se haviam abatido sobre o seu lar, e contrariaram-se
quando descobriram que, além disso, os não judeus se recusavam a
aceitar os protestos dos judeus assimilados de que os judeus que
chegavam haviam chegado sem "serem convidados". "Isto", diziam os
não judeus entre si, "é o que acontece quando se deixa um judeu
entrar. Antes de você perceber, ele trouxe a tribo toda".
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Havia outros fatores em ação na Alemanha. À Guerra Franco-


Prussiana de 1870 seguira-se uma crise econômica, enquanto o
movimento de unificação dos estados alemães, iniciado por Bismarck,
ainda estava em andamento. Era inevitável que isto focalizasse a
atenção sobre a raça, sobre "germanidade".

Os emigrados do leste, com seus estranhos costumes e trajes, não


se enquadravam na imagem racial germânica. Numa comunidade de
estados que de repente se conscientizou de que era um só povo, não
havia lugar para os homens de olhos tristes, com seus longos casacos
pretos, barbas, cabelos cacheados nas têmporas e chapéus chatos. "Os
judeus são o nosso azar", disse um autor do século XIX. Esta frase
viria a tornar-se um lema nazista.

Se, entretanto, sua vida se tornasse difícil (esta a opinião geral)


eles talvez fossem embora, e os movimentos anti-semitas dirigiram
esforços nesse sentido. Já havia sido publicada muita literatura anti-
semita, cada vez mais violenta. A princípio os judeus eram "estranhos"
ou "decadentes", como tornaram a sê-lo na linguagem nazista de
1933-35; antes do fim do século, passaram a ser "parasitas",
"subgente" que só servia para ser "pisoteada".

A teoria da evolução de Darwin, que a princípio abalou muita


ilusão que a humanidade alimentava na década de 1850-60, foi
rapidamente aplicada ao cenário social, por intérpretes que
compensavam em dogmatismo o que lhes faltava em compreensão.
Do ponto de vista da evolução, o anti-semitismo merecia certa
credibilidade científica. Estes falsos conceitos também seriam
adotados pelo nazismo, que representava para seus adeptos "a vontade
biológica do povo".

Milhares de portas até então abertas aos judeus na Alemanha e na


Áustria foram-lhes abruptamente fechadas. Os grêmios estudantis
adotaram resoluções que baniam os judeus de seu seio. Os regimentos
de elite e a reserva de oficiais do exército não mais os aceitavam.
Clubes, sociedades e câmaras de comércio concordaram tacitamente
em não permitir o ingresso de judeus.

Neste aspecto, franceses e alemães, inimigos noutros campos,


fizeram causa comum, pois foram os franceses que "bolaram" o que os
alemães afinal adotaram. Havia, por exemplo, uma Sociedade
Holocausto 11

Gobineau em Freiburg. Mas os franceses, povo afeito às especulações


intelectuais, até hoje raramente agem com base nas suas próprias
especulações. Com os alemães, no entanto, dava-se o contrário. Até a
filosofia mais absurda era aplicada com seriedade.

Gobineau fora amigo pessoal de Richard Wagner, o compositor,


que atacara a memória do falecido Mendelssohn, de quem só recebera
estímulo e apoio, por ser ele judeu. Para o compositor de
"Tannhäuser" e de "O Anel dos Nibelúngios", a música de
Mendelssohn passou a ser por ele considerada "estranha, fria, bizarra,
medíocre, antinatural e pervertida". Por certo foi o anti-semitismo de
Wagner, além de sua música, que o recomendou a Hitler.

A casa de Wagner era um ponto de encontro para o anti-semitismo


"intelectual" e Hitler seria um dos seus futuros visitantes. Mas um
visitante anterior fora Stewart Houston-Chamberlain (1855-1927), o
antisemita britânico e propagandista alemão da Primeira Guerra
Mundial. Chamberlain foi o biógrafo de Wagner e casou com sua
filha. A ele é que devemos a primeira afirmação logicamente coerente
da posição do anti-semita: "Odeio os judeus. Odeio sua estrela e sua
cruz", manifestando seu ódio tanto ao judaísmo como ao cristianismo.

O resultado da Primeira Guerra Mundial fez recrudescer o ímpeto


contra os semitas. A derrota de seus grandes impérios foi uma
experiência profundamente traumática para alemães e austríacos.
Durante as últimas semanas de outubro de 1918, o exército alemão
estava avançando. Na semana seguinte, a 7 de novembro, cuidava-se
do armistício, ficando a Alemanha à mercê das Potências Aliadas, que
jamais a deixaram de considerar, mesmo depois de colocada sob um
governo liberal, como militarista e agressiva.

A fúria contra ela era ainda maior porque os que a combateram


jamais conseguiram dobrá-la na frente de batalha. Milhares de
soldados alemães não-derrotados retornaram à Alemanha,
encontrando-a economicamente falida e incapaz de sustentá-los.
Alguma coisa, raciocinaram eles, deve ter acontecido além do óbvio,
além do motim de marinheiros comunistas em Kiel e do rigor do
bloqueio britânico, para provocar essa situação.

Era certo que, após tantos séculos de difamação e opressão, e do


aumento incessante do anti-semitismo como força intelectual, que
mais cedo ou mais tarde haveria uma erupção. Foi assim que os judeus
Segunda Guerra Mundial 12

passaram a responsáveis pela "punhalada nas costas" da Alemanha. Os


judeus, que encontraram melhor compreensão sob o governo liberal
alemão, chegando a fazer parte desse mesmo governo, foram
considerados partícipes de uma grande conspiração visando á
derrubada da Alemanha; e o anti-semitismo, verdadeira idéia fixa de
certos indivíduos e grupos, passou a força poderosa. Como se fosse
uma nova religião, entregou-se ele a ativo proselitismo.

Os anos de tormento

Hitler mostrou-se anti-semita desde os primeiros pronunciamentos


que fez. Sua muito citada frase no Mein Kampf, declarando que se uns
15.000 "desses inimigos hebreus" tivessem sido asfixiados no
transcurso da Primeira Guerra Mundial "o sacrifício de milhões de
seres na frente de batalha não teria sido em vão", provavelmente foi
criada em 1923, quando ele se encontrava preso na Fortaleza de
Landsberg, mas ele já expressara sentimentos semelhantes num
discurso pronunciado em 1920 e numa carta, em 1919.

Suas idéias sobre o assunto surgiram certamente durante os dias de


dificuldade que viveu em Viena - época em que seu orgulho não o
impedia de aceitar o dinheiro que lhe enviava um judeu amigo de sua
família. Seus associados, uns amargos freqüentadores dos albergues -
antimarxistas, anti-semitas e pangermanistas - passavam o tempo, seu
único bem grátis, na vã procura de bodes expiatórios para as desgraças
da Alemanha, que acreditavam ser a causa das suas próprias
desgraças.

Os historiadores que buscam uma base filosófica para o anti-


semitismo de Hitler têm sugerido várias fontes, entre as quais as
noções do monge cisterciense, Adolf Lenz. Suas opiniões, propagadas
no Arioheröiken, correspondem em grande parte com as de Hitler.
Também aquele apoiava a teoria da "superioridade" ariana e defendia
a eliminação dos judeus por meio de esterilização e deportação. A
verdade é que tudo quanto sugerem esses historiadores não tem
qualquer fundamento. O anti-semitismo de Hitler jamais se apoiou em
razões filosóficas e intelectuais. Na intimidade, ele demonstrava até
desprezo pelas teorias raciais pangermânicas de Alfred Rosenberg e
Walter Darré. Visto que tinha de justificar sua posição de quando em
vez, seus argumentos eram tirados a esmo de conceitos de Gobineau,
Nietzsche, com seu Super-homem, Darwin (Hitler não parava de falar
sobre a "sobrevivência do mais capaz" e de "seleção natural") e, em
Holocausto 13

particular, do "anti-semitismo de salão" dos Wagners e de Stewart


Houston-Chamberlain.

O anti-semitismo de Hitler, como acontece com todo racismo


verdadeiro, era emocional e subjetivo. Quando se começa a analisar os
motivos psicológicos, é preciso considerar-se que Hitler era um
inadaptado e um frustrado sexual. Pois, assim como os racistas
brancos de hoje falam da suposta luxúria e grandes pênis dos negros,
também Hitler escrevia sobre jovens judeus lascivamente à espreita de
jovens alemães para seduzi-las. No delírio das fantasias que criava,
essas imagens podiam levá-lo a paroxismos de fúria. Não há razão
para considerá-lo impotente ou, como os mexericos de tempo de
guerra sugeriam, sexualmente deformado. A evidência da autópsia que
os russos apresentaram demonstra isso. Há, no entanto, razão para se
supor que ele não era atraente para as garotas, sobretudo nos seus
tempos de jovem pobre. Fora a terrível pobreza - para ele sem dúvida
uma degradação - havia nele defeitos insuportáveis, como a grosseria,
a fúria incontida, o fanatismo louco. E não é por coincidência que ele
constantemente se referia ao caráter corruptor das finanças judias, pois
o dinheiro é, com freqüência, um símbolo inconsciente de sangue, e a
"corrupção" do sangue das jovens arianas era precisamente o que ele
via os jovens judeus fazer, em seu pesadelo.

No Nationalsozialistische Deutsche Arbeiter-Partei, para dar ao


partido nazista seu título completo e adequado, seu anti-semitismo
logo recebeu corporificação política. Os Pontos 4 e 5 do manifesto do
NSDAP, publicado em fevereiro de 1924, declarava que a cidadania
alemã estava disponível "somente aos de sangue alemão, independente
de credo religioso". No caso de o significado dessa frase parecer
ambíguo, a frase seguinte torna-a bem específica: "Nenhum judeu",
declara ela, "pode, portanto, ser um nacional". Isto é desenvolvido no
ponto seguinte, que declara que os que não possuem cidadania do
estado são sujeitos "às leis aplicáveis aos estrangeiros".

Estes princípios foram incorporados não só à ideologia do partido


como ao seu comportamento. Sempre paramilitar em caráter (ela
afirmava estar travando uma batalha contra os comunistas), a milícia
do partido eram os Sturmabteilung (Destacamentos de Assalto ou,
mais popularmente, Tropas de Assalto) do Capitão Ernst Röhm.
Quando não estavam desfilando ou combatendo os moinhos de vento
do bolchevismo, eles estavam intimidando os judeus ou provocando
intimidação com discursos pronunciados nas esquinas.
Segunda Guerra Mundial 14

Contudo, já um novo grupo estava surgindo dentro da própria


milícia. Em 1922, uma unidade especial das SA havia sido formada e
recebera o nome de Schutzstaffeln (Formações de Proteção) ou,
abreviado, SS. Três anos depois, um bávaro insignificante e míope,
com um queixo azulado e pequeno, um homem que não apresentava
outras qualidades além de ser um minucioso executor dos deveres do
partido, cujo nome era Heinrich Himmler, ingressou nas SS. Em 1926,
com as SS tendo então cerca de 200 homens, com a tarefa principal de
servir às reuniões do partido, Himmler foi nomeado seu
subcomandante. Em 1929, por ordem direta de Hitler, Himmler, que
tinha então 28 anos, foi nomeado substituto de Erhard Neiden como
comandante, ou Reichsführer das SS. O grupo aumentara em oito
homens, mas se conservava subordinado às SA e Röhm.

Se Himmler dava a impressão de não ser muito imaginativo, a


verdade é que, como Hitler, sua vida interior era cheia de fantasia,
povoada de personagens das lendas germânicas. Ele começou a
admitir que tudo aquilo poderia concretizar-se através das SS. Elas se
tornariam uma força poderosa e independente no nazismo e na
Alemanha, um estado dentro do estado, constituindo-se numa mistura
adoidada da antiga Ordem dos Cavaleiros Teutônicos e dos Jesuítas -
pois seus sonhos sempre tinham uma tintura de misticismo.

Uniformizadas em negro, altamente disciplinadas, em contraste


com as rebeldes SA, o ingresso nas SS passou a ser o sonho dos
jovens alemães. Entretanto, o ingresso na corporação tornou-se
bastante difícil (os futuros recrutas tinham de provar a pureza do seu
sangue nórdico remontando a 1750). Somente um em cada grupo de
dez candidatos satisfazia às exigências da seleção. Quando da invasão
da Polônia as SS totalizavam 26.000 membros.

Em junho de 1931, um jovem louro e de olhos azuis, vindo de


Waldtrudering, e que recentemente ingressara nas SS, foi apresentado
a Himmler por um dos membros da sua equipe. Era Reinhard
Heydrich, que fora atraído para o nazismo por sua noiva, Lina von
Osten, depois de obrigado a demitir-se da Marinha, após um escândalo
que envolveu a filha de um diretor de estaleiro, mas que no fundo
revelou firmeza de caráter de parte de Heydrich.

Na época, Himmler tinha planos para a criação de um Serviço de


Inteligência dentro das SS, embora um dos seus companheiros de
Holocausto 15

partido, Hermann Goering, sempre demonstrasse considerar a polícia


e a segurança áreas de sua propriedade. Portanto, o esforço de
Himmler fatalmente seria uma competição, mas ele sempre foi um
mestre da maquinação. Ele nomeou o jovem Heydrich para dirigir seu
novo departamento ao qual deu o nome de Sicherheitsdienst (SD), ou
serviço de segurança, que tinha inclusive autoridade para investigar e
manter arquivos até mesmo sobre os membros mais altos do partido.
Assim, deu-se a união de dois homens que, entre si, tinham traços de
caráter muito diferentes e que viriam a cobrar alto tributo à vida
humana. Himmler era um homem convencido pelas teorias
excêntricas de "sangue e solo" cujo destino o colocara em posição de
aplicá-las. Ele não era sádico; não sentia prazer com o sofrimento que
viria a impor. Ao contrário, como um Inquisidor, deplorava a
necessidade de ter de adotá-lo. A única vez que presenciou uma
execução, em Praga, em 1941, teve um acesso de histeria, foi
chamado à atenção pelo comandante da cerimônia Heydrich - e
desmaiou. Mas ele deu ordens que mataram milhões.

Tampouco havia indícios de que Heydrich fosse homem sádico e


sanguinário no sentido estrito dos termos, e, ao contrário de Himmler,
não era devoto de nenhuma teoria. Na verdade, é provável que
secretamente ridicularizasse tais coisas. Contudo, era homem muito
ambicioso e dotado, como seu chefe, de grande vocação para a intriga,
superando-o mesmo. Era em suma um amoral, com desenvolvido faro
para descobrir onde estava a vantagem, e sabia como aproveitá-la.
Outros nazistas pelo menos afirmavam ter experimentado certo
conflito interior antes de se decidirem a cumprir algumas ordens
recebidas. Heydrich nem uma vez mostrou qualquer sinal de
perturbação. Se o Partido Nazista fosse baseado no conceito de que a
presença dos judeus na Alemanha lhe era altamente favorável e que
eles deveriam ser recompensados por sua simples existência, Heydrich
poderia tranqüilamente ter cumprido o dever de homenageá-los com o
mesmo zelo, sobretudo por ter ele próprio algum sangue judeu.

Himmler, que sofria de terríveis conflitos (os quais provavelmente


lhe causavam as cãibras estomacais dos últimos anos da guerra),
superou-os pela crença na "pureza do sangue", coisa que considerava
suficientemente importante para vencer todos os escrúpulos, incluindo
a lealdade ao seu chefe, Ernst Röhm. No verão de 1934, um ano e
meio depois que o Presidente Hindenburg nomeou Hitler Chanceler,
Himmler participou de um complô entre os nazistas que temiam as SA
como um exército privado. Isto levou ao assassinato de Röhm e de
Segunda Guerra Mundial 16

centenas de subordinados seus, na "noite das longas facas". A desculpa


era que Röhm estava planejando um golpe, ou Putsch, contra Hitler e
tal foi o sucesso que a destruição de Röhm e seu grupo causou, que as
SS de Himmler ficaram com o controle virtual do campo. As SA
haviam dado à Alemanha muita notoriedade internacional, pela
brutalidade franca e desenfreada com que tratavam os judeus -
sobretudo depois que os comunistas foram atirados à clandestinidade.
As SS eram claramente mais disciplinadas e mais formais no seu
procedimento; numa palavra, mais cavalheirescas. Não obstante,
muitas pessoas compreendiam que, em Himmler e Heydrich, elas
tinham uma dupla mais satânica e mais perigosa do que o
ingenuamente selvagem Röhm.

Enquanto ocorriam essas convulsões, sem que a maioria do povo


alemão soubesse ou lhes desse importância, o NSDAP, já no poder,
começou a avivar as chamas do anti-semitismo, espalhando-as por
toda a pátria. O manifesto do partido, escrito quase dez anos antes,
declarara que os judeus deviam ser tratados como estrangeiros. O país
anfitrião sempre pode pedir aos estrangeiros que "voltem para sua
casa". Mas os judeus da Alemanha, ao contrário dos outros
estrangeiros, não tinham casa; ademais, muitos deles viviam no país
havia gerações. Para eles, a Alemanha vinha antes do judaísmo. A
política, de início aplicada mais ou menos ao acaso, mas que mais
tarde o seria com mais propósito e oficialmente, era tornar para eles as
condições na Alemanha tão insuportáveis que muitos desses
"estrangeiros" prefeririam partir. Mas uma partida em termos só
possíveis para os ricos e influentes que tinham contatos que lhes
permitiriam ser acolhidos em outros locais. Assim, se a política de
Hitler fez alguma coisa, ela forçou a deixar a Alemanha exatamente as
pessoas que ele mais temia e (se seus argumentos fossem seguidos) as
obrigaria a se tornarem um grupo coeso entre os inimigos da
Alemanha.

Não obstante, já na primavera de 1933, semanas após a ascensão


de Hitler ao poder, os judeus começaram a ser demitidos de todos os
cargos públicos; advogados, médicos e lojistas tiveram suas atividades
cerceadas. Os que recusavam deixar-se intimidar, eram fotografados e
tinham seus retratos publicados nos jornais locais. Mas, como o cônsul
americano em Leipzig observou, o público não gostava do boicote. A
gente mais pobre era obrigada a usar as lojas aprovadas pelos nazistas,
e que aumentavam seus preços à medida que a competição diminuía;
outros detestavam o princípio de tal perseguição. Fora da Alemanha,
Holocausto 17

conforme crescia a consciência do que estava acontecendo naquele


país, a aversão que isso fez gerar repercutia nas relações diplomáticas
e comerciais.

Qualquer grupo menos obsessionado pelo racismo talvez tivesse


percebido ser chegado o momento de abandonar a política anti-semita,
mas os nazistas chegaram mesmo a destorcer as críticas estrangeiras
para servirem a seus propósitos, justificando a perseguição com o
argumento de que era em represália às atrocidades e ameaças dos
judeus no exterior.

Quando um ministro sul-africano, em visita à Alemanha, sugeriu a


Hitler que ele devia encontrar uma solução para o problema judeu de
modo que não antagonizasse a Grã-Bretanha, o Führer começou uma
de suas diatribes sobre o anti-semitismo que incluía a ameaça de que
"um dia os judeus desapareceriam da Europa". Para o Ministro das
Relações Exteriores da Checoslováquia, Hitler foi ainda mais claro:
"Destruiremos os judeus... O dia do ajuste de contas chegou".

Todavia, diante das críticas, as medidas anti-semitas tinham de ser


disfarçadas em lei. Muita gente na Alemanha, assim como em outros
países, acreditava que os judeus tinham influência e autoridade
desproporcionais aos seus números. Por isso, as pressões sobre a
comunidade judia, por meio de leis restritivas, eram consideradas
simples medidas de correção desse desequilíbrio, e foram feitas de
modo a parecerem comuns. Tais medidas tiveram o efeito de separar o
judeu do não judeu, tornar a existência do judeu mais dura e, por fim,
criar os meios e a justificativa para a total segregação da comunidade
minoritária.

Se os judeus fossem culpados de tudo o que se lhes atribuía; se as


teorias genéticas adotadas pelos nazistas merecessem aprovação da
ciência verdadeira, ainda assim não seriam admissíveis tanta
perseguição, tanta provocação, tanto desrespeito à condição humana
deles. Estes atos foram talvez apenas ligeiramente menos repelentes
do que as medidas tornadas comuns, mais tarde. De um lado havia os
rufiões e os sádicos compulsivos, indiferentes à identidade dos que
estavam à sua mercê, fossem ou não judeus. Eram vítimas postas à sua
disposição pelo governo, e isto lhes bastava; do outro lado, os
administradores ambiciosos que, na ânsia de impressionar os
superiores, arrancaram de suas almas os últimos resquícios de
decência.
Segunda Guerra Mundial 18

A realidade é que a desculpa dos nazistas para a perseguição dos


judeus tinha poucas pretensões à seriedade intelectual. Era
simplesmente o modo de satisfazer à necessidade de "inimigos", ao
mesmo tempo que justificava a ineficiência e as opressões dos tiranos.

As características opressivas do regime tornaram-se de imediato


óbvias a todos os alemães, judeus ou não. Entre tantas provas disso,
salientava-se o fato de a liderança nazista, uma vez no poder, haver-se
arrogado o poder de polícia. Imediatamente após a ascensão de Hitler
à Chancelaria, foi Goering, e não Himmler, quem abriu os primeiros
campos de concentração aos inimigos políticos. Menos de um mês
após a nomeação de Hitler, a 28 de fevereiro de 1933, o dia seguinte
ao incêndio do Reichstag, oficializaram-se as primeiras medidas
extraordinárias permitindo a prisão de cidadãos comuns e sua
condenação à "custódia protetora" por período indefinido e sem direito
a apelação. A execução desse decreto também foi feita por Goering.
Por volta de abril, só na Prússia, mais de 16.000 pessoas haviam sido
privadas da liberdade. Pelo Natal de 1933, o número de prisioneiros
assumiu tais proporções que Hitler foi obrigado a anunciar uma anistia
para 27.000 detentos, por absoluta falta de espaço para contê-los.

Os campos onde foram encarcerados logo se transformaram em


cativeiros cujos encarregados não eram responsáveis perante ninguém.
Himmler deu início a seus ensaios nesse setor, já tendo desafiado
Goering com a existência do seu SD, e inaugurou um campo de
concentração "modelo" em Dachau, a 20 km de Munique. Ali, os
ideais himmlerianos de ordem e disciplina foram postos em prática.
Caracteristicamente, a administração do campo obedecia a
regulamentos que previam todas as eventualidades, indo da forma
como se executavam as surras de chicote e os enforcamentos, à
maneira como se pagava o prisioneiro-carrasco pelos seus serviços
(três cigarros!). Embora extremamente imorais esses regulamentos,
sobretudo quando sabemos que se referiam a homens e mulheres
contra os quais jamais pesou qualquer acusação específica, eles eram,
em contraste com os regulamentos dos campos de Goering, destinados
a assegurar uma administração organizada.

Para os que cumpririam os deveres de guardas em Dachau,


deveres, diga-se, para uma pessoa normal, difíceis, extremamente
dolorosos, Himmler criou outro departamento das SS, as Totenkopj
Verbände, ou unidades da Caveira (a Caveira sendo o emblema das
Holocausto 19

SS). Entre os que ingressaram no pessoal de Dachau desse modo,


estava um jovem chamado Adolf Eichmann, destinado a subir bastante
na hierarquia das SS.

Assim, pelo final de 1934, Himmler assegurara para si próprio um


lugar quase inatacável, exceto pelo próprio Hitler, no novo estado. Em
suas Formações de Proteção havia um serviço secreto para fazer calar
os inimigos do estado e escolher os lugares para onde seriam enviados
e mantidos. Himmler diligenciava febrilmente no sentido de tornar-se
o que realmente veio a ser, o segundo homem mais poderoso no
Terceiro Reich.

Em 1934, assim como em 1933, não houve nenhuma diminuição


nos tormentos infligidos aos judeus, contra quem era dirigida toda a
sorte de hostilização. As autoridades locais exorbitaram muito da
esfera dos direitos legítimos e até mesmo desprezaram a constituição
alemã. Os judeus foram proibidos de freqüentar parques, andar de
ônibus e nadar em piscinas e, em alguns lugares, os funcionários
públicos viram-se obrigados a assinar uma declaração de que haviam
rompido todas as relações sociais com quaisquer judeus que
conhecessem. Os nazistas às vezes evitavam tais práticas, pelo efeito
que teriam no exterior, e na medida em que os tormentos se baseavam
em estatuto ou decreto, eram sempre justificados pelos nazistas com a
alegação de "conveniência". Assim, quando se começou a calcular o
ingresso de judeus em escolas alemães com base no número deles no
conjunto da população, a desculpa apresentada é que se desejava
"impedir excesso de alunos" nas escolas alemães.

Em 1935, a primeira das Leis de Nuremberg sobre a cidadania do


Reich, que punha em vigor a decisão do partido de transformar os
judeus em estrangeiros, foi anunciada por Hitler numa das Reuniões
Anuais do Partido, realizada naquela cidade a 15 de setembro. Os
moderados do partido (cujo número era grande, embora muito pouco
influenciasse as decisões partidárias) aceitaram tais leis na suposição
de que fossem definitivas nas suas disposições - na realidade elas
foram ampliadas por cerca de 13 decretos suplementares. Alguns
chegaram mesmo a acolhê-las como uma forma de regularizar a
situação vigente, dando aos judeus uma visão de sua posição perante a
lei e certa proteção, mesmo que somente como estrangeiros, o que não
tinham no estado de coisas anterior. A verdade é que o isolamento
social legalizado dos judeus, criado pelas leis de 1935, não só
tornaram as medidas subseqüentes mais rigorosas, como jurídica e
Segunda Guerra Mundial 20

psicologicamente mais facilitadas. Os decretos estabeleciam a criação


de duas classes de cidadão: O Reichsbürger, que tinha de ser de puro
sangue alemão, e o Staatsangehöriger que, embora fossem súditos, não
tinham direito à cidadania. Tal divisão de homens não existia
legalmente desde o Império Romano.

As primeiras Leis de Nuremberg proscreveram os judeus de muitas


atividades, inclusive o exercício do serviço público. Elas proibiam o
casamento com arianos e, mais que isto, davam para os judeus uma
definição tão ampla que nem pela cabeça dos arruaceiros e verdugos
daquela gente havia passado. Como conseqüência, alemães praticantes
da fé cristã e de outras religiões descobriram horrorizados que, em vez
de serem "bons alemães" como se julgavam, eram rotulados como
judeus e cidadãos de segunda classe. Contudo, fato notável é que as
Leis de Nuremberg, nem em 1935 nem posteriormente, tentaram
definir com precisão os judeus. Eles eram sempre descritos vagamente
como "estrangeiros". Mesmo no verão de 1943, Himmler proibiu a
publicação de um decreto que definia a condição de judeu. "Tal
dogmatismo nos tolhe", observou ele.

A reação mundial às Leis de Nuremberg foi fortemente


demonstrada. Berlim fora escolhida sede dos "Jogos Olímpicos" de
1936, mas fez-se uma representação ao Comitê Olímpico
Internacional pedindo a mudança de local, alegando-se que a política
do governo alemão estava em conflito com o espírito dos jogos. Hitler
estava decidido a realizar as olimpíadas em Berlim e as Leis de
Nuremberg foram atenuadas, para que os milhares de visitantes não
testemunhassem os chocantes fatos. Os jogos foram realizados e
tornaram-se um clássico nos anais olímpicos. Uma vez terminados, o
fluxo de legislação anti-semita prosseguiu sistemática e
impiedosamente, corroendo a posição da comunidade judaica. Firmas
judias tinham de distinguir-se e registrarem-se. Judeus eram expulsos
das profissões liberais e das universidades e, em muitos casos,
obrigados a emigrar. Assim teve início o enorme êxodo de homens e
mulheres, muitos dos quais, como Freud, Einstein e Max Planck, eram
figuras de fama mundial.

Do ponto de vista nazista, a intensificação sistemática das medidas


de Nuremberg não era o suficiente. Hitler estava preocupado com o
efeito poluidor das finanças judias sobre a economia ariana. Portanto,
os judeus tinham de ser obrigados a abandonar a atividade econômica.
Mas, para fazer isto, eram necessárias leis de amplas conseqüências e
Holocausto 21

estas precisavam ser justificadas não só perante a opinião pública


alemã como perante a opinião mundial.

O ato seguinte do drama das relações nazistas foi provocado por


um incidente fora da Alemanha. A 7 de novembro de 1938, um judeu
alemão de 17 anos de idade, Herschel Grünspan, que visitava um tio
em Paris, compareceu à Embaixada Alemã solicitando audiência ao
embaixador, o Graf Johannes von Welczek. Um terceiro secretário,
Ernst von Rath - funcionário mais importante do que um estranho, que
comparecia a uma grande embaixada sem ser convidado, tinha o
direito de esperar - atendeu-o. Grünspan sacou de um revólver e atirou
nele, alegando mais tarde ter confundido esse jovem funcionário com
o embaixador. Havia várias circunstâncias suspeitas nesse episódio:
primeiro, a alegação supostamente feita pelo assassino de que tivesse
confundido um homem tão jovem com o embaixador; segundo, a
suposição implícita de que funcionários diplomáticos de carreira
recebem visitantes desconhecidos nas escadas; e terceiro, o fato de
que von Rath era um antinazista já sob vigilância da Gestapo.
Ademais, na Alemanha, houve todos os indícios de que a explosão de
violência subseqüente a este acontecimento havia sido
intencionalmente preparada e uma das razões é que os que
poderiam ter sido acusados de incitá-la haviam-se dado ao trabalho de
se armar com álibis.

O Völkischer Beobachter (Observador Popular) que, sob o lema


Ein Volk, Ein Reich, Ein Führer (Uma Raça, Um Estado, Um
Líder), esclarecia a diretriz oficial do partido, publicou um pequeno
editorial sobre o assassinato a 7 de novembro, dia em que o
mesmo ocorreu. "Evidentemente", dizia ele, "o povo alemão é capaz
de tirar suas próprias conclusões sobre este novo ultraje". Na noite de
9 de novembro, Hitler compareceu a um jantar em Munique,
comemorativo do complô da Cervejaria de 1923, e foi lá que Josef
Goebbels, Reichsminister da Propaganda e sem dúvida inspirador, se
não autor daquele editorial, revelou que as represálias - referindo-se a
distúrbios de rua - já estavam ocorrendo.

Depois do discurso de Goebbels, os que ali estavam reunidos não


tinham muitas dúvidas de que os líderes partidários, em todos os
níveis, iriam organizar e supervisionar a execução de distúrbios, ao
mesmo tempo que cuidariam para não serem identificados como seus
instigadores. Portanto, nisto, eles seguiam o exemplo dos seus chefes,
que estavam num jantar em Munique e não se poderia ligá-los à
Segunda Guerra Mundial 22

violência. A única pessoa que não tinha esse álibi era Goering, mas ele
tratou de estar num trem a caminho de Berlim, enquanto que o único
homem que poderia, sozinho, pôr em ação o "pessoal da represália",
Reinhard Heydrich, estava em Nuremberg. Mas existe um telegrama
que ele enviou naquele dia, instruindo os chefes de policia para que
cumprissem o que lhes cabia nos distúrbios que provavelmente
ocorreriam. Incumbia-lhes cuidar, entre outras coisas, para que
nenhuma propriedade ariana fosse danificada, impedir o saque de lojas
e residências, embora permitindo sua destruição, e assegurar-se que
nenhuma sinagoga fosse incendiada, se situada em lugar onde o
sinistro pudesse pôr em perigo propriedades adjacentes. Outra
mensagem veiculada por um dos seus assistentes mandava que a
polícia do estado prendesse entre 20 a 30 mil judeus, especialmente os
ricos, e tomasse os arquivos das sinagogas.

Durante aquela noite, um furacão de violência se abateu sobre os


judeus em todas as grandes cidades alemães. Quadrilhas de rua, sem
que a polícia as atrapalhasse, destruíram 7.500 lojas, incendiaram pelo
menos 171 prédios de apartamentos e quase 200 sinagogas, incluindo
a famosa e histórica, de Nuremberg, cidade onde Heydrich estava. Ele
fingiu surpreender-se com a notícia.

Apenas 117 desordeiros foram presos, mas 36 judeus morreram


(mais tarde este número foi aumentado para 91) e outros 36 foram
feridos; 20.000 foram colocados sob custódia "para sua própria
proteção". Assim, a "ira espontânea" do povo alemão pelo assassinato
de um desconhecido diplomata, em Paris, voltou-se não contra os
residentes franceses no país mas contra os judeus alemães.

Dos judeus detidos, cerca de 10 mil foram enviados para o campo


de concentração de Buchenwald, de onde, aliás, muitos saíram
mediante resgate.

Grünspan não era, sem dúvida, um subordinado da Gestapo, mas


provavelmente foi instigado por um dos seus agentes provocadores
para disparar o que veio a ser chamado de Kristallnacht (erroneamente
traduzido como "A Noite das Vidraças Quebradas"). Na verdade, os
distúrbios prosseguiram por mais de uma semana, servindo de
desculpa a nova ação contra os judeus alemães, da qual logo se tirou
partido.
Holocausto 23

Não se sabe ao certo que papel teria desempenhado Hitler na


Kristallnacht. De qualquer modo, sua reação a ela foi típica de quem,
como ele, votava aos judeus ódio cego, pois ele aceitou imediata e
incondicionalmente a responsabilidade deles pelo ocorrido e mandou
um diktat a Goering, instruindo-o para que a questão judaica fosse
"coordenada e resolvida de uma vez por todas".

A 12 de novembro, três dias após o início dos distúrbios, com as


quadrilhas ainda vagando pelas ruas, Goering convocou uma reunião,
no seu Ministério da Aviação, para examinar as instruções de Hitler.
As deliberações dos chefes nazistas foram interrompidas por uma
questão resultante dos distúrbios: é que os prédios, em muitos casos,
em que judeus exploravam seu comércio pertenciam a pessoas sem
qualquer vínculo com a raça, e que sofreram prejuízos que montavam
a milhões de marcos com os danos causados às suas propriedades, em
particular com a quebra de vitrinas, e que passaram a cobrar às
companhias de seguros. Se estas pagassem, iriam à falência; se não
pagassem, a credibilidade das companhias de seguro alemães ficaria
vulnerável. Ficou então estabelecida na reunião a imposição de uma
multa comunitária aos judeus para cobrir os danos - o que dá boa
percepção das atitudes nacional-socialistas - e os representantes das
companhias de seguro presentes à reunião receberam a promessa de
Goering de que no futuro não se quebrariam tantas vitrinas.

No devido tempo, as minutas dessa reunião circularam; elas


estipulavam o método de perseguição que se repetiria sempre que a
ordem nazista o determinasse. Os judeus perderiam as propriedades
que possuíssem, recebendo por elas ridícula compensação em
dinheiro. Nas semanas e meses seguintes, as
recomendações apresentadas por uma comissão escolhida e
nomeada pela reunião foram postas em vigor. Os judeus foram
proibidos de freqüentar escolas alemães, cinemas e teatros. Planos
seriam preparados para o recrutamento de judeus para turmas de
trabalhos forçados; redigiu-se uma lei de inquilinato estipulando que a
propriedade de judeus só poderia ser alugada a judeus - a base de um
sistema de gueto. Independente das outras evidências, a rapidez com
que estas medidas foram introduzidas após o incidente de Paris
indicava que as forças do anti-semitismo estavam preparadas.

Se havia qualquer dúvida quanto ao destino que aguardava os


judeus alemães, a reunião de Goering a eliminou. Anunciando a multa
comunitária de um bilhão de marcos para pagar os danos, Goering
Segunda Guerra Mundial 24

disse: "Se no futuro próximo o Reich Alemão entrar em conflito com


potências estrangeiras, não é preciso dizer que nós, na Alemanha,
primeiramente ajustaremos contas com os judeus".

Um artigo publicado na revista das SS, Das Schwarze Korps, a 24


de novembro - uma quinzena após a reunião no gabinete de Goering -
era ainda mais esclarecedor. O autor declarava que os judeus que
ainda estivessem na Alemanha após o começo de uma guerra seriam
"aniquilados".

Por mais importantes que possam ser essas questões raciais e


ideológicas, Heydrich, Goering e seus colegas viam que, a curto
prazo, poderiam obter vantagens econômicas usando os judeus para
levar a efeito uma chantagem internacional de vulto. Heydrich já
vinha "permitindo" a imigração de judeus em troca de pagamentos em
moeda estrangeira de que a Alemanha necessitava e, desde a
Kristallnacht, ele tinha 20.000 judeus sob custódia e propositadamente
submetidos a tais condições, em Buchenwald, que sem dúvida
estariam dispostos a pagar as quantias mais extorsivas pela liberdade.

Mas as tentativas da Alemanha de resolver seu chamado


"problema judeu" não se limitavam a esforços internos. Em comum
com a Romênia e a Polônia, a Alemanha tinha convencido o mundo de
que outros paises poderiam ajudar na concretização do desejo em que
se encontravam de se livrar de parte de sua população. Para este fim,
por iniciativa do Presidente Roosevelt, realizara-se uma conferência
de 32 nações, em Evian, na França, em julho de 1938, onde se discutiu
o problema dos judeus indesejados naqueles três países - sem
resultado. A conferência foi suspensa sem que qualquer dos países
presentes se dispusesse a receber sequer as crianças judias. Para Hitler
e seus anti-semitas, o fracasso da conferência, embora ainda os
deixasse às voltas com seu "próprio problema judeu", era prova de que
o mundo em geral não se importava com o destino dos judeus. O que
os alemães fizessem então com os judeus, estariam fazendo em grande
parte como que um favor aos demais países do mundo, que, pelo que
demonstraram na conferência, aceitaram implicitamente a
responsabilidade pelo destino dos judeus alemães. A Kristallnacht fora
um resultado imediato do fracasso da reunião.

Examinou-se uma variedade de planos, todos destinados a livrar a


Alemanha da sua população judia de modo a evitar a afronta direta à
opinião mundial. Um plano apresentado pelo Ministro da Economia
Holocausto 25

alemão, Hjalmar Schacht, para usar bens judeus no financiamento de


um empréstimo para ajudar a "emigração organizada dos judeus", e
que foi até Londres para exame em dezembro de 1938, fracassou
quando Hitler brigou com Schacht. Outro plano foi o famoso Projeto
de Madagáscar, segundo o qual os judeus alemães seriam acomodados
numa "reserva" naquela colônia francesa. Diz-se que a idéia partira do
Ministro das Relações Exteriores francês, que afirmou que seu
governo estava pensando em mandar 10.000 judeus para lá. Nenhuma
dessas propostas foi aplicada.

A Europa estava caminhando para a situação que os judeus


alemães, que desde Evian sabiam não ter amigos, mais temiam: a
guerra da Alemanha com as grandes potências. Ao mesmo tempo, o
número de judeus em mãos alemães estava aumentando com o
acréscimo de novos territórios. A anexação da Áustria havia colocado
185.000 sob o domínio nazista e o mesmo tipo de tormenta usado no
Reich foi aplicado lá. O resultado disso - satisfatório para o jovem
Tenente Adolf Eichmann, que fora encarregado da emigração em
Viena - foi a partida para o exterior de 45.000 judeus austríacos em
oito meses, contra apenas 19.000 da própria Alemanha. Na
Checoslováquia, 300.000 judeus haviam caído nas garras dos alemães
e também ali, Eichmann, promovido a capitão, desdobrou-se para
obrigar os judeus a deixar o país numa taxa ainda maior do que na
Áustria.

E, para desestimular qualquer hesitação por parte dos que podiam


dar-se ao luxo de deixar o país, Hitler acrescentou seu endosso pessoal
às previsões de Goering e de Das Schwarze Korps. Ele disse ao
Reichstag a 20 de janeiro de 1939: "Se os financistas judeus
internacionais... tiverem novamente êxito em provocar uma guerra
mundial, o resultado não será a bolchevização da terra e, assim, a
vitória da judiaria, mas o aniquilamento da raça judaica na Europa
inteira".

No mesmo ano deu-se a consolidação de todos os serviços de


segurança, sob as SS, no chamado RSHA (Reichssicherheitshaupamt,
ou Departamento Geral de Segurança do Reich), com Heydrich na sua
direção. Foi no ano seguinte que se reconheceu todo o talento de
Eichmann, quando ele foi nomeado chefe do Departamento IVA4b, o
responsável pelos judeus, instalado em edifício próprio, de quatro
andares, na Kurfürstenstrasse, n° 116.
Segunda Guerra Mundial 26

Mas a "emigração" ainda prosseguia, o que significava apenas uma


coisa: a expulsão de judeus de todos os territórios do Reich. Passagens
de navio eram adquiridas pela comunidade judia em geral e os
emigrantes partiam, muitas vezes com pouquíssima possibilidade de
serem aceitos pelos países a que se destinavam, mas na certeza de que
o retorno à Alemanha representava a morte, lenta e penosa, num
campo de concentração. Com a ajuda de Conselhos Judeus, instalados
onde possível (com base num existente que os alemães haviam criado
em Praga), os judeus eram mantidos sob permanente vigilância. A 6 de
julho de 1939, o "Décimo Decreto, suplementando a Lei de Cidadania
do Reich", submeteu a união das organizações de ajuda e caridade
judias, na própria Alemanha, a um departamento de estado controlado
pelo RSHA. Nos termos do mesmo decreto, as firmas judias
remanescentes foram expropriadas sem compensação.. Privados dos
seus negócios, proibidos de exercer qualquer atividade, exceto nos
batalhões de trabalhos forçados que, de qualquer modo, só poderiam
absorver uma pequena proporção - cerca de um quinto - os judeus
alemães, juntamente com os da Áustria e do "Protetorado" (as regiões
desmembradas da República Tchecoslovaca e colocadas sob o
domínio alemão) foram atirados à miséria e aos guetos que tinham
sido preparados para eles pela lei de inquilinato nazista.

Já virtuais prisioneiros do estado (eles dificilmente poderiam ser


chamados de reféns, porque o esforço do exterior para resgata-los
fracassara por indiferença), eles se tornaram prisioneiros reais, quando
a Grã-Bretanha e a França declararam guerra à Alemanha, no dia 3 de
setembro de 1939. Na verdade, a emigração, em escala limitada, para
países neutros continuou, entre os judeus que conseguiam os meios e
os contatos para lhes garantir entrada no território a que se
destinavam; essa emigração prosseguiu, mesmo após a queda da
França. Esses errantes da nova Diáspora se espalharam até Xangai,
onde as forças de ocupação japonesas os encontraram, em 1942. Pela
liberdade, os fugitivos tinham de pagar elevado preço, que às vezes ia
diretamente para as SS - pois Himmler considerava essas trapaças
legítima fonte de renda; às vezes para os bolsos de oficiais corruptos
do RSHA, que forneciam os documentos necessários, quase sempre
forjados. Esses "defensores" da pureza racial desenvolveram seu
comércio nas barbas de Hitler, até quase o último dia da guerra.

Começa o movimento para o leste


Holocausto 27

Por estranho que pareça, os judeus imaginavam perfeitamente


justificável a esperança de que a eclosão da guerra lhes aliviasse as
penas, pois os líderes alemães estariam por demais preocupados para
continuar a persegui-los. E não poderia haver lugar para eles num
grande conflito, como acontecera em 1914? Essas esperanças não
eram de todo infundadas, pois a guerra trouxe certa melhora para
pequeno setor da população judaica. Houve tal escassez de médicos e
dentistas, que se tornou necessário devolver muitos judeus à prática da
profissão.

Contudo, na Polônia, onde havia três milhões de judeus, o maior


grupo até então encurralado pelos alemães, a história foi diferente. À
medida que os alemães avançavam, os pogrom, como os da
Kristallnacht, embora em escala imensuravelmente maior, ganharam
impulso, já agora sem considerar a possibilidade de produzir danos a
propriedades alemães. A população das cidades polonesas, à medida
que eram invadidas, sentia-se encorajada a descarregar seus
sentimentos pela derrota e ocupação contra os judeus. As histórias
fabricadas pelos alemães diziam que eles é que haviam traído a
Polônia. Isto aconteceu a despeito de, in extremis, tendo o governo
polonês oferecido garantias e feito promessas à população judaica, que
perseguira e maltratara durante três séculos, milhares deles se terem
alistado nas forças polonesas, tombando 30.000 deles nas três semanas
de luta.

Os que se entregaram aos pogrom eram os anti-semitas locais mais


perniciosos, em geral criminosos conhecidos, estimulados por alguns
rufiões do exército alemão. Contudo, a verdadeira sombra inspiradora
de toda essa reação era sem dúvida Heydrich, que fornecia os
agitadores profissionais.

Mesmo onde os habitantes locais não participavam, os nazistas


observaram, com satisfação, que eles eram menos sensíveis do que os
alemães ao sofrimento dos judeus, assistindo sem se deixar
sensibilizar aos excessos contra eles cometidos. O anti-semitismo
polonês ocasionou a separação total das duas comunidades, de modo
que não se registravam protestos por parte dos poloneses em defesa
dos seus "bons judeus", um hábito alemão que havia sido alvo de
muita demonstração de desprezo por parte de Himmler, Heydrich e
Eichmann. Alguns protestos que ocorreram partiram de elementos do
exército alemão.
Segunda Guerra Mundial 28

Se o papel de Heydrich como maligno marionetista por trás dos


pogrom é conjetural, elementos das suas forças e das SS
desempenharam papéis mais evidentes. Durante a anexação da
Áustria, supostamente para dar boas-vindas aos seus concidadãos,
fortes medidas de repressão foram consideradas necessárias para que o
país fosse submetido sem problemas. Para ajudar nessa tarefa,
organizaram-se forças-tarefas motorizadas da Polícia de Segurança e
do Serviço de Segurança (SD), com "deveres especiais de policia
política", como rezava o documento oficial para tanto aprovado. Estes
Grupos de Ação móveis (ou Einsatzgruppen) provaram tão
completamente a sua eficiência. que foram utilizados nos Sudetos e na
Tchecoslováquia, com ordem para reproduzir nestes dois lugares o
desem penho demonstrado na Polônia, onde sua missão foi
classificada como "a supressão de todos os elementos hostis ao Reich
e à Alemanha atrás da linha de batalha". Era evidente, aqui como em
outros lugares, quem estava incluído na lista dos "elementos hostis ao
Reich". Não foram ordenadas especificamente execuções de judeus na
Polônia. Aliás, as linhas de controle não estavam tão claramente
demarcadas nessa campanha, como o foram mais tarde, de modo
que, tecnicamente, elas ficaram sob o controle dos comandantes-de-
exército, embora as ordens na realidade fossem dadas por Himmler.
Contudo, as atividades combinadas contra os judeus da Polônia
haviam provocado cerca de 250.000 baixas de setembro até o
fim de 1939.

Desde o começo da campanha, um Einsatzgruppe estava


realizando, por iniciativa própria, fuzilamentos em massa. Essa
unidade, comandada pelo Tenente-Coronel Udo von Woyrsch, mais
tarde foi retirada a pedido do exército. A 24 de outubro, um batalhão
das SS, em Wloclawek, tendo obrigado os judeus locais a usar um
sinal distintivo (a primeira experiência com a estrela amarela de Davi,
mais tarde universalizada), prendeu cerca de 800 e fuzilou muitos
deles "quando tentavam fugir".

Num incidente anterior, embora menor, ocorrido a 14 de setembro,


50 judeus foram levados para dentro de uma sinagoga e fuzilados. Os
perpetradores do crime - homens das SS - foram submetidos a
julgamento, sendo, porém, perdoados pela anistia geral decretada por
Hitler a 4 de outubro.

Até essa época, atrocidades eram cometidas esporadicamente, sem


no entanto denunciar que por trás delas houvesse um plano que as
Holocausto 29

sistematizariam. Mas a 21 de setembro foi tomada a primeira


providência evidentemente planejada: esta foi um relatório de uma
conferência secreta presidida por Heydrich, e que circulou entre os
comandantes-de-exército mais graduados na Polônia. O plano se
cumpriria em três etapas: (I) o movimento de todos os judeus para
"comunidades" (um eufemismo designativo de "guetos") de não
menos de 500 pessoas cada uma e próximas de linhas férreas; (II) a
nomeação de Conselhos Judeus e (III) o registro de todos os judeus
pelos Einsatzgruppen. Os judeus do Reich seriam deportados para a
Polônia - a primeira lufada daquele vento cortante que sopraria sobre
os judeus nos anos seguintes. É significativo que Heydrich
classificasse como "provisórias" tais providências, pois haveria, disse
ele, um "objetivo final", cuja realização demoraria mais. Este
relatório, tomado em conjunto com a ordem de situar as
"comunidades" perto de linhas férreas, tem levado comentaristas à
conclusão de que o "objetivo final" era realmente a Solução Final - o
total extermínio dos judeus. Mas, neste estágio, a providência era
encarada como medida destinada a facilitar a colocação dessa gente
numa reserva judaica a ser criada em Lublin.

Na medida do possível, em meio à guerra, ainda havia tentativas


para forçar a emigração judia. Mesmo na Polônia houve esforços para
empurrá-los para além de uma linha de demarcação entre os setores
alemão e russo - pois também os russos haviam marchado sobre as
províncias orientais da Polônia. Grandes grupos de judeus foram
levados a atravessar para a outra margem do Rio San, que marcava
essa fronteira na maior parte do seu curso. Alguns tiveram a sorte de
lhes permitirem passar; outros, mais tarde, foram recapturados pelos
alemães, na guerra com a Rússia; alguns conseguiram chegar à
segurança das fábricas de armamentos nos Urais e na Sibéria. Os que
não puderam entrar, foram obrigados a cruzar novamente o San ou o
Bug, sendo muitos deles fuzilados, quando não acontecia serem
mortos por afogamento. Os poucos que evitaram esses dois destinos
foram aprisionados.

O resultado da vitória alemã na Polônia fora a divisão da região do


país submetida a seu controle em duas partes: as províncias polonesas
mais ocidentais, até Lodz, foram incorporadas ao Reich; o resto da
Polônia transformou-se no "Governo-Geral", uma espécie de grande
lixeira humana, com oportunidades obviamente tentadoras para as
experiências demográficas com que Hitler e Himmler há muito
sonhavam. Estas estavam para ser realizadas através de um plano
Segunda Guerra Mundial 30

conhecido como o "Fortalecimento do Povo Alemão" para o qual


Himmler foi nomeado Reichskommissar a 12 de outubro. Este plano
acarretaria movimentos de populações inteiras. Os alemães que se
encontravam no exterior seriam trazidos de volta e colocados em
colônias criadas nos territórios poloneses incorporados à Alemanha.
Os poloneses já ali instalados (com suas terras confiscadas) seriam
subjugados por meios tão irrealistas quanto brutais, visando-se
também à deportação em massa de judeus para a região do Governo-
Geral.

A execução do reagrupamento dos judeus planejado por Heydrich


na realidade foi mais lenta do que ele imaginara, pois sempre fora um
planejador totalmente irrealista. Somente em setembro do ano
seguinte é que foi emitida a ordem geral que delimitava a área de
residência judaica, abrindo caminho para colocá-los nos guetos. Uma
das causas do atraso foi que Hans Frank, nomeado por Hitler para
dirigir a administração civil do Governo-Geral, que estava agora
macaqueando um rei medieval no Palácio Wawel, em Cracóvia, sua
nova capital, compartilhava da aversão de muitos alemães pelas SS.
No caso de Hans, a aversão se baseava menos em considerações de
ordem humanitária do que na inveja que o poder e influência dessa
corporação lhe despertavam. Assim que soube do plano, ele protestou
contra a intenção de Himmler de colocar os judeus do Reich em seu
domínio.

A 26 de outubro de 1939 introduziu-se na Polônia o sistema do


trabalho forçado (sem remuneração) para todos os judeus entre os 14 e
60 anos de idade; a 23 de novembro, os judeus e empresas judaicas
foram obrigados a ostentar um sinal característico. No caso de
indivíduos, era uma braçadeira com uma estrela de Davi amarela - só
dois anos mais tarde é que tais sinais foram introduzidos no oeste. A
11 de dezembro, promulgou-se toda uma série de regulamentos
destinados a restringir a liberdade de movimento dos judeus e, a 26 de
janeiro de 1940; eles foram proibidos de se utilizar de trens -
regulamento que se mostrou impossível de ser cumprido.

Nos territórios poloneses incorporados ao Reich havia cerca de


650.000 judeus, dos quais, anunciou Himmler, 500.000 seriam
expulsos para o Governo-Geral da Polônia, a despeito dos protestos de
Frank. Ele cumpriu a palavra, tendo início a deportação antes do fim
de 1939, prosseguindo até o mês de março seguinte, embora houvesse
ligeira interrupção, em janeiro, quando a administração civil de Frank
Holocausto 31

recebeu a adesão dos protestos do Serviço de Economia e


Armamentos do exército. Estes protestos do exército, baseados no fato
de as deportações o privarem de pessoal especializado na Alemanha,
continuariam, sendo em princípio aceitos por Heydrich e Himmler,
que depois entenderam que o exército estava usando o artifício para
salvar judeus do destino planejado para eles. Contudo, nessa época o
exército não era a única fonte de protestos. Outras representações
foram feitas por funcionários das ferrovias estatais, que afirmavam
que o deslocamento das grandes levas de judeus prejudicavam outras
necessidades de guerra - argumento justificado, especialmente mais
tarde.

Nessa época, a principal área de recepção dos deportados, no


Governo-Geral, ficava perto de Lublin, local da "reserva" judia - outro
dos projetos discutidos, iniciados e depois abandonados, isto no
começo de 1940, porque logo se mostrou impraticável para tão grande
número de pessoas.

Nem todos os judeus que demandavam o leste vinham da Polônia


do Reich· alguns provinham da Tchecoslováquia, da Áustria e mesmo
da própria Alemanha. Eles eram numerosos demais para que as áreas
reservadas pudessem absorvê-los - questão que provocou mais
protestos de Frank, por motivos puramente administrativos, e
protestos humanitários do Comandante-de-Exército no Leste,
Feldmarechal Blaskowitz. Muita gente, informou ele, estava morrendo
de fome nos locais de recepção; crianças morriam de frio nos trens de
deportação. Apesar disso, Hitler disse ao correspondente de um jornal
americano, após o abandono do plano, que a fundação de um estado
judeu os obrigaria a "viver em espaço tão reduzido, em tão grande
promiscuidade, que lhes seria impossível atingir um padrão de vida
tolerável".

Destino pior aguardava os judeus alemães deslocados de áreas


como Stettin e Schneidermuhl para a zona do Governo-Geral em
pleno inverno. Cerca de 1.360 deles foram obrigados a marchar
durante 14 horas sobre neve. Por volta de março, 230 estavam mortos,
muitos deles crianças de tenra idade. Que os alemães se importavam
ainda com a opinião pública mundial, a respeito do problema, provam
a rapidez e veemência com que procuravam negar o noticiário da
imprensa neutra sobre as deportações e o que representavam em
termos de sacrifício para os deportados. Preocupava-os também a
Segunda Guerra Mundial 32

possibilidade de que tais informes chegassem ao conhecimento dos


russos, por desconhecerem a opinião destes sobre o assunto.

Uma vez em Lublin, Himmler tinha planos particulares para os


migrantes. Desde a anexação da Áustria em 1938, que levara grande
número de dissidentes políticos para os campos de concentração,
Himmler e colegas começaram a preocupar-se com os benefícios do
trabalho desse contingente não utilizado. As primeiras propostas
apresentadas para o aproveitamento dessa gente sugeriam o seu
emprego na fabricação de tijolos (imitando assim os antigos senhores
de escravos dos judeus, os egípcios) e na exploração de pedreiras;
mas, à medida que a ambição aumentava dentro da liderança nazista,
surgiram projetos melhor elaborados. Himmler, por exemplo, ansiava
por aumentar as fontes de renda das SS, caso estas deixassem de ser a
menina dos olhos do Führer. Mas nenhum dos planos ambiciosos
instituídos ou discutidos jamais chegou a ser plenamente executado,
sobretudo porque para muita gente, inclusive Heydrich, o trabalho
forçado era apenas outra maneira de eliminar os indesejados.

Contudo, Odilo Globocnik, chefe das SS e Chefe de Polícia em


Lublin, começou a organizar o trabalho forçado segundo diretrizes que
ele considerava promissoras e lucrativas. Ao mesmo tempo, o tráfico
de judeus passou a ser feito de duas maneiras, quando cerca de 57.000
judeus poloneses, considerados aptos para trabalhar, foram levados
para a Alemanha nas primeiras seis semanas da ocupação. Muitos
foram empregados nas fábricas de material bélico da Wehrmacht.

O Major-General Globocnik, indivíduo semi-analfabeto, bêbado e


com talento para o logro e a conspiração, usaria o trabalho judeu de
parceria com vários empresários alemães tão corruptos quanto ele, e
faria fortuna antes de ser demitido. Ele considerava o Governo-Geral
e, sobretudo, Lublin um campo especial para o exercício da grande
vocação que possuía para o logro.

Portanto, tudo planejado, teve início o programa de deportação e


"recolonização", o desumano regime de escravização de pessoas
humanas que continuaria até os últimos instantes da guerra.

O tratamento dispensado pelos alemães aos judeus obedeceu a uma


série de etapas cuidadosamente graduadas. A emigração e deportação
era uma delas, e os judeus já na área do Governo-Geral começaram a
ser obrigados, em parte por pressões externas desenvolvidas com esta
Holocausto 33

finalidade, em parte pelo instinto gregário que sempre se manifesta em


tempos de desastre, a entrar na segunda fase: o encerramento em
guetos.

O primeiro deles ficava em Varsóvia. A área escolhida, de acordo


com o gosto nazista pelo tradicional, era a que incluía o local do gueto
medieval, e também, porque houvesse em Varsóvia muito mais judeus
que na Idade Média, parte da antiga área industrial da cidade,
incluindo sua estação ferroviária. A verdadeira intenção da
"recolonização" foi disfarçada com o risível argumento de que os
judeus ali colocados estavam de quarentena, por serem mais sujeitos a
doenças do que os outros. Assim, em setembro de 1940, a zona de
"quarentena" encerrava, além de 240.000 judeus, 80.000 não-judeus
poloneses atrás dos seus alambrados e cercas. No mês seguinte,
abandonou-se o pretexto da quarentena, e os poloneses foram expulsos
do gueto. O lugar por eles deixado foi ocupado por 120.000 judeus. A
promiscuidade e o anti-higiênico subiram a níveis espantosos.

Guetos semelhantes foram criados em outras cidades sob o


controle do Governo-Geral: Cracóvia, Lublin, Radom e Lwow.
Dificilmente, pensavam os nazistas, os que sub-viviam nos guetos
resistiriam ao poluente, à promiscuidade e à fome que a todos eles iam
aturdir. Isto mostrou-se impraticável por duas razões primeira, embora
os judeus na Alemanha, Áustria e Tchecoslováquia não
representassem mais de um ou dois por cento da população total, na
Polônia eles representavam 10 por cento e, em algumas cidades, até
25 por cento. A despeito da sua segregação, havia entre os judeus,
profissionais de diversas atividades, que se colocaram a serviço dos
segregados nos guetos de modo que espantava seus perseguidores, que
se haviam deixado convencer pela propaganda dos próprios nazistas
que rotulava o judeu de comerciante parasita, esperto e especulador.
Mas os judeus poloneses, vivendo numa sociedade em grande parte
hostil, haviam-se tornado mestres consumados na arte da
sobrevivência, contribuindo muito para a comunidade geral. Assim,
quando se tratava da aplicação prática de anti-semitismo, a hostilidade
menos organizada dos poloneses vacilava. As medidas que de início
haviam acolhido começaram a causar-lhes problemas, pois deixaram
de contar com a colaboração de gente que lhes era necessária para
sobreviver sob ocupação repressiva. (Como poloneses eslavos, eles
eram considerados apenas um degrau acima dos judeus na escala
racial alemã, e os poloneses e judeus normalmente eram considerados
em conjunto nos planos alemães de recolonização). Sem perceberem,
Segunda Guerra Mundial 34

os poloneses se haviam tornado dependentes da habilidade dos judeus


e passaram a ter menos entusiasmo por esse aspecto da política nazista
que até então se mostravam dispostos a aceitar.

Mesmo assim, foi tentada a política da fome, que levou a


incontáveis mortes; entretanto, mesmo depois da introdução da
execução sumária para quaisquer judeus surpreendidos fora do gueto
ou que se aproximassem demais do alambrado, não era possível
impedir o comércio com o mundo exterior. Neste aspecto, os próprios
guardas das SS mostraram-se longe de serem incorruptíveis.

Em meio a dificuldades extremas, o Conselho Judeu conseguiu


manter no interior do gueto certa administração. Para começar,
criaram serviços como escolas, hospitais, restaurantes do mercado
negro, cafés, boates e bordéis; estes últimos luxos eram mantidos em
grande parte com a ajuda da Gestapo, que obtinha lucros tentadores
com esse tipo de comércio. Nessa época, os alemães chegavam
mesmo a permitir a introdução nos guetos de pacotes do exterior,
embora isto, mais tarde, fosse proibido. O correio alemão passou a
recusar toda a correspondência destinada ao gueto, dando como razão
para estas providências "o receio de epidemias".

A deterioração da vida nos guetos acentuava-se cada vez mais, à


medida que para lá convergiam quantidades sempre crescentes de
judeus provindos do Reich e de outros lugares. Havia fábricas dentro
dos guetos e fora deles, às quais os judeus tinham permissão de ir
diariamente, mas tais fábricas não tinham capacidade para dar trabalho
a tanta gente desempregada. Os Conselhos Judeus instalaram cozinhas
de campanha para fornecer uma sopa ás vezes feita de feno, mas, por
fim, tiveram de fechar. A desnutrição era a causa mais comum dos
óbitos ali registrados. Todos os dias encontravam-se cadáveres pelas
ruas, em geral despidos, para que outros semifantasmas pudessem
encobrir a quase nudez em que se encontravam.

Nessas circunstâncias, os alemães viam-se continuamente


atribulados pelo medo de uma peste: se as mortes no gueto
superassem a capacidade dos serviços de sepultamento, que
aconteceria então? Ademais, aguardava-se a chegada de número muito
maior de judeus, vindos do leste, se, como se esperava, Goering
suspendesse a proibição das deportações, imposta depois que um
jornal suíço abriu manchetes a respeito. Também havia outras razões
para se esperar que esse número logo aumentasse consideravelmente.
Holocausto 35

A invasão da Dinamarca e Noruega, na primavera de 1940, e depois


da França e dos Países Baixos, colocou todos esses paises sob o tacão
nazista.

Contudo, Heydrich e seu departamento nunca estavam muito


distantes dos acontecimentos e, ambicioso como era, Heydrich sem
dúvida acolhia sempre bem o aumento do seu império, a despeito dos
problemas que lhe traziam - durante seis semanas, após o 10 de maio
de 1940, 350.000 judeus caíram em mãos alemães, dos quais cerca de
120.000 eram refugiados da própria Alemanha. A primeira reação de
Heydrich a esse problema foi usar a zona de Vichy, na França não-
ocupada, segundo os termos do armistício, para sua "recolonizaçâo",
tal como a zona do Governo-Geral da Polônia fora usada como
monturo. Em conseqüência, não se impôs qualquer impedimento aos
que procuravam deixar a Zona Ocupada para irem para lá. Isto
continuou depois que o Governo de Vichy promulgou um Statut des
Juifs a 4 de outubro de 1940, que ordenava o internamento de
refugiados judeus (a população nativa, como cidadãos franceses,
gozava da proteção da lei); 40.000 desses judeus estrangeiros foram
internados em campos instalados em Gurs, Les Milles e Rivesaltes e,
desse modo, privados da liberdade e dos direitos civis. Heydrich
superou-se mandando 7.450 judeus do Reich para a Zona Não-
Ocupada, a 22 de outubro; destes, muitos morreram na viagem. Mas
os franceses, temendo o recrudescimento dessa prática, protestaram
vigorosamente, impedindo que prosseguisse.

Hitler, tão obcecado estava pela idéia de que os judeus eram


agentes de conspirações internacionais, que admitiu que os judeus
ocidentais caídos em suas mãos pudessem ser usados como reféns
para neutralizá-las. Aliás, os reféns eram outra das suas obsessões e,
num estágio da guerra, ele deportou famílias inglesas das ilhas anglo-
normandas com a intenção de transformá-las em reféns contra os
bombardeios do Reich pelos britânicos, distribuindo-as pelas cidades
maiores. Ele acreditava seriamente que os judeus europeus, nesse
plano anterior, pudessem ser mantidos em Lublin ou em outro lugar,
onde constituiriam garantias do "bom comportamento" dos judeus
americanos. O plano deu em nada.

Heydrich, proibido que fora de despejar judeus na França de


Vichy, tentara introduzir o padrão clássico de organizar a população
judia na Zona Ocupada da França, consolidando as organizações de
caridade e criando Conselhos Judeus. A tática nunca funcionou como
Segunda Guerra Mundial 36

funcionara em outros lugares, porque os funcionários do governo


francês, cuja cooperação era essencial, não tinham estômago para
suportar a tal ponto a pureza racial dos ocupantes. Nenhum judeu
francês daria seu nome aos Conselhos Judeus e mesmo nos círculos
pró-Vichy havia muita gente disposta a ajudar os judeus, enquanto que
os judeus franceses naturalizados continuavam sendo considerados
cidadãos franceses. Os que os alemães podiam pegar eram refugiados
que não estavam no país por tempo suficiente para terem preparado
seus papéis de naturalização. Os alemães queriam a todo custo fazer
que franceses dessem a impressão de se terem voltado contra os
judeus franceses e os estavam tratando como foram tratados na
Alemanha, Áustria, Tchecoslováquia e Polônia. Nisto eles eram
constantemente frustrados e devido à sua frustração, embora se
fizessem tentativas e alguns judeus fossem impiedosamente
executados, a perseguição dos judeus na França redundou em
fracasso.

Em outras partes da Europa ocupada, o departamento de Heydrich


estava agindo de várias maneiras, nos dias após a vitória alemã, para
pôr em desenvolvimento as medidas planejadas, tentando incluir as
novas levas de judeus aprisionados num programa geral. Isto tinha
pouco que ver com as atitudes nacionais em relação aos judeus;
praticamente em toda a Europa setentrional e ocidental não era grande
o entusiasmo pela perseguição a judeus e mesmo na Alemanha, cujo
povo fora submetido a oito anos de propaganda nazista, havia muita
omissão e covardia moral diante da injustiça vil, mas também muita
aversão a isso. Assim, durante toda a guerra houve famílias alemães
que ocultaram judeus, famílias de todas as camadas da sociedade,
entre as quais se encontrava pelo menos uma família de aristocratas
prussianos cujo chefe era um general da ativa da Wehrmacht.

Os sucessos e fracassos dos esforços de Heydrich na Europa


ocupada variavam de acordo com o tipo de ocupação a que o país era
submetido e a espécie de organização judia que ali existia antes.
Assim, na Holanda, onde, ao contrário da França, todo o governo do
país estava sob supervisão alemã, com um governo-títere holandês que
em nada desobedecia ao dominador, a prisão e subseqüente
deportação dos judeus foram feitas, a despeito da proibição do
Cardeal-Arcebispo aos policiais católicos que participavam dessa
atividade (sua recusa muitas vezes lhes custava o emprego) e da
aversão do povo holandês por esse tipo de perseguição. A vizinha
Bélgica estava nas mãos de uma administração militar e seu
Holocausto 37

Governador alemão, o General von Falkenhausen, era um adversário


franco do nacional-socialismo. Ali, menos de um terço dos judeus do
país foi arrebanhado. Na Dinamarca e na Noruega foi diferente. A
primeira era considerada um país neutro sob ocupação alemã. A
Noruega, embora governada por um Reichskommissar, como a
Holanda, era adjacente à neutra Suécia que, durante toda a guerra,
deixou sua porta entreaberta aos refugiados judeus, chegando mesmo
a organizar e distribuir abertamente papéis de naturalização suecos
através do seu consulado. Isto, ajudado pelo fato de ser pequena a sua
população de raça judaica e de serem os noruegueses contra o anti-
semitismo, como os holandeses, contribuiu para frustrar os objetivos
de Heydrich.

Aí estão algumas exceções de uma história quase que totalmente


sinistra.

A amargura dos judeus permanecia na ordem do dia, na mesa de


planejamento dos nazistas, que outro absurdo fabricaram: a renovação
do Plano Madagáscar de 1938. Com a França, a quem a ilha pertencia,
sob ocupação, os alemães acreditavam que tal plano era uma
possibilidade e propuseram enviar para lá os "judeus ocidentais", que
seriam mantidos como reféns internacionais. Os estudos de
viabilidade foram iniciados no verão de 1940 por Adolf Eichmann e
duraram quase um ano. Com os mares patrulhados pela marinha
britânica, a possibilidade de eles deslocarem 4 milhões de pessoas - o
número projetado - para uma ilha ao largo da costa oriental africana
jamais pareceu muito viável. Ninguém sabia, por exemplo, onde a
Alemanha encontraria navios suficientes para levar a efeito esse
projeto.

Um segundo plano, também examinado nessa época, porém jamais


investigado a sério, previa a criação de uma Pátria Nacional Judia na
Palestina. Para este, as dificuldades eram ainda maiores. A Palestina,
predominantemente árabe, ainda estava em poder dos britânicos - por
mandato da Liga das Nações - e a administração britânica da região
deixara claro que não aceitaria mais que uns poucos refugiados
judeus, por temer ofender os árabes, política que contribuiria
imensamente para aumentar o sofrimento dos judeus, antes e depois
da guerra. Ademais, acreditava-se que isto pudesse levar a Palestina -
com o nome de Israel - a tornar-se uma espécie de Vaticano judaico.
Segunda Guerra Mundial 38

Nenhum dos dois planos se tornou realidade, embora fosse o


projeto da Palestina de tal modo comentado que deu motivo a boatos
que de vez em quando percorriam os guetos, enchendo de vã
esperança o coração dos que começavam a desesperar.

A versão de que os dois planos não passavam de "disfarce" é


apoiada por duas testemunhas: Himmler (informado a respeito pelo
seu massagista, Felix Kersten) e Baldur von Schirach, gauleiter de
Viena. Hitler esteve com esses dois homens no verão de 1940, quando
da queda da França. A von Schirach, o Führer confidenciou que
pretendia recolocar os judeus vienenses no Governo-Geral da Polônia,
mas a Himmler ele deu a tarefa do extermínio progressivo dos judeus
europeus. Se o Projeto Madagáscar foi sequer mencionado nessa
reunião, deve ter sido rechaçado sumariamente. A instrução de
Himmler recebeu a sanção formal de uma "Ordem do Führer".

Desde o começo haveria dois instrumentos principais de


destruição: "redução natural" (o termo feliz de Heydrich), pelo
mortífero esforço desenvolvido nas turmas de trabalho forçado, e a
liquidação dos sobreviventes em campos de concentração designados
e equipados para a tarefa. Um terceiro método, posteriormente
introduzido nos planos, consistia em ampliar as atribuições dos
Einsatzgruppen do SD, que tinham a função de "limpar" as áreas
deixadas para trás pelo exército. Vários grupos foram criados, um
deles dirigido pelo Coronel SS, Professor Dr. Franz Six, ex-diretor da
Faculdade de Economia da Universidade de Berlim, com a
incumbência de controlar o Grupo de Ação que seria enviado à Grã-
Bretanha após a invasão. O treinamento, em cursos intensivos
especiais, foi ministrado em Prezsch, perto de Leipzig.

Quanto aos outros métodos de extermínio, os locais para serem


desenvolvidos já haviam sido escolhidos, e um deles, Auschwitz,
começou a funcionar como campo de concentração na primavera de
1940. Os outros ficariam em Treblinka, Sobibor, Chelmno e Belsec -
todos, exceto Chelmno, no Governo-Geral. Para liquidar os judeus da
"reserva" de Lublin haveria instalações no campo de trabalho de
Majdanek.

O comandante que Himmler nomeou para Auschwitz, Tenente-


Coronel Rudolf Höss, era um homem a seu gosto: cheio de planos tão
grandiosos quanto irrealistas, incluindo um para estabelecer uma
Holocausto 39

estação de pesquisa agrícola no campo, que se especializaria no


cultivo de plantas e criação de gado.

Além dos locais, impunha-se o recrutamento de pessoal treinado


para os assassinatos em massa e eliminação dos cadáveres (isto, em
particular, causaria um problema). Aos alemães não era estranha a
torpe atividade, pois desde 1939 eles a vinham praticando. Usavam a
câmara de gás para eliminar judeus ou arianos considerados
incuráveis, segundo o programa de eutanásia. Hitler, como sugere o
comentário sobre os judeus registrado no Mein Kampf, tendo sofrido
os efeitos do gás na Primeira Guerra Mundial, tinha uma fixação pelo
assunto. Os métodos usados nos institutos de eutanásia incluíam até o
monóxido de carbono.

Hitler, em deferência à opinião pública, anunciou a supressão de


tal programa em agosto de 1941 - embora ele prosseguisse sob novo
disfarce. Entretanto, isto significava que o pessoal do instituto estaria
disponível para o extermínio dos judeus. Aliás, ele já estava sendo
usado para esta finalidade, pois os incapacitados para o trabalho eram
despachados para o "instituto" mais próximo, numa viagem sem volta.
A quantidade dos enviados a estas usinas da morte atingiu tais
proporções que levou a um impertinente protesto do diretor de um dos
institutos sobre o excesso de trabalho do seu pessoal.

Enquanto se faziam esses preparativos, na Alemanha e em toda a


Europa ocupada recrudesceram as medidas anti-semitas. Na França,
Holanda e Bélgica iniciou-se o registro dos judeus; os guetos
poloneses foram murados.

Na sua maioria, essas providências foram executadas sem


incidentes, mas não de todo. Em fevereiro de 1941, a polícia alemã,
com a milícia de colaboracionistas holandeses, começou a revistar as
casas no quarteirão judaico de Amsterdã porque, segundo se dizia,
haviam feito disparos de uma janela. Quando viram o que acontecia,
os trabalhadores holandeses de uma fábrica das proximidades foram
dar auxílio aos judeus e, na refrega, um miliciano holandês foi morto.
Houve outros conflitos quando os alemães prepararam um enorme
funeral para o morto; 390 judeus, todos jovens, foram presos como
reféns, provocando uma greve geral que abrangeu a cidade inteira. Os
alemães foram obrigados a trazer policiais e tropas das SS da
Alemanha. Sessenta holandeses foram enviados para campos de
Segunda Guerra Mundial 40

concentração, juntamente com os 390 reféns judeus. A maioria deles


morreu antes do término do ano em que isto se verificou, 1941.

Como parte do processo de recrudescimento das medidas anti-


semitas, a 14 de maio 3.600 judeus parisienses foram internados - ato
que provocou muita contrariedade em Vichy e criou problemas nos
entendimentos diários que os alemães mantinham com o governo
Pétain.

Os massacres

Em meio as atividades, em toda a Europa, da RSHA,


particularmente do departamento IVA4b, os planejadores militares
alemães estavam extremamente atarefados, preparando, nos três
últimos meses de 1940, sigilosamente, a estratégia a ser obedecida no
ataque à Rússia, que se realizaria no ano seguinte. Sabemos agora que
Hitler supunha que a Grã-Bretanha estivesse incapacitada como força
beligerante, sentindo-se por isso capaz de livrar-se do seu último
inimigo potencial no continente europeu e, ao mesmo tempo, levar à
concretização o velho sonho de anular o bolchevismo.

Para Himmler, isto sugeria novos e grandes problemas, mas


também novas e grandes oportunidades: problemas porque era de seu
dever desmantelar o regime soviético e policiar as áreas ocupadas;
oportunidades porque lhe seriam ali abertas novas oportunidades de
expor vastos monturos em região bem distante da Alemanha
metropolitana, o que permitiria maior liberdade de ação.

Para o policiamento, criaram-se quatro Einsatzgruppen,


designados A, B, C e D. O número total de integrantes desses grupos
era inferior a 3.000, incluindo especialistas, como operadores de rádio
e intérpretes (alguns dos quais eram mulheres). Eles se dividiam em
unidades ou Kommandos, que tinham de 600 a 900 elementos cada
uma.

A lição da Polônia, onde os Grupos de Ação eram tecnicamente


subordinados ao comando do exército, fez que se estabelecessem
claras demarcações de controle. Os Einsatzgruppen eram
subordinados ao exército quanto a movimento, rações e acomodações,
mas a Heydrich quanto à disciplina, jurisdição e questões técnicas. Em
outras palavras, Heydrich dava as ordens. O exército insistira em que,
Holocausto 41

próximo à linha de frente, os Grupos de Ação deveriam ficar a ele


subordinados, muito embora até mesmo esse direito fosse seriamente
circunscrito.

Otto Ohlendorf, um intelectual simpático, advogado e economista,


que ingressou no SD em 1936, depôs sob juramento, sobre as
instruções que Himmler lhe deu ao ser nomeado para comandar um
dos grupos: "Himmler disse-me que parte importante da nossa tarefa
consistia no extermínio de judeus - homens, mulheres e crianças - e de
funcionários comunistas". Ohlendorf foi responsável pela morte de
90.000 homens, mulheres e crianças.

Mais ou menos em junho de 1941, Himmler mandou que Rudolf


Höss, comandante de Auschwitz, "preparasse instalações naquele
campo para a realização de extermínio em massa". Disse também que
Eichmann lhe traria instruções detalhadas. Antes da visita de
Eichmann, Höss foi ao recém-fundado campo de Treblinka, onde já
funcionava uma câmara de gás, permanentemente, utilizando o
monóxido de carbono gerado por motores de combustão interna. Ele
voltou desfavoravelmente impressionado e diria a Eichmann, quando
este chegou, em julho, que "era impossível usar tais métodos lentos
para o extermínio em massa".

Enquanto Höss estava ausente do campo, seu chefe de segurança,


Capitão Fritzsch, tentou a experiência com cristais de Zyklon B, à
base de ácido prússico para uso em fumigação. Höss repetiu a
experiência em escala maior: 850 prisioneiros, 600 dos quais,
prisioneiros de guerra russos, foram metidos num porão em que se
atiraram os cristais venenosos. Doze horas depois o porão foi aberto,
mas entre as vítimas, tão espremidas que não podiam cair ao morrer,
algumas ainda estavam vivas, tornando-se necessário submetê-las de
novo ao processo. Sugerira-se que não seria boa política instalar-se o
centro de extermínio dentro do próprio campo principal e, na verdade,
as primeiras câmaras de gás foram dois celeiros adaptados à
finalidade, num campo em Birkenwald, situado nas proximidades. A
capacidade dos dois celeiros era de 250 vitimas, de modo que foi
preciso projetar e construir câmaras maiores, que se constituíram em
motivo de orgulho para Höss.

Ele disse que elas foram projetadas por Paul Blodel, um arquiteto
de Dusseldorf, bêbado contumaz, que se distinguiria como
comandante de um Kommando de Grupo de Ação. Contudo, outro
Segunda Guerra Mundial 42

engenhoso matador fez que essas câmaras se parecessem com grandes


banheiros, com chuveiros no teto e tudo o mais. Os que iam morrer
eram informados de que iriam para o banho, recebendo inclusive um
"sabonete" - na verdade um pequeno bloco de cimento, posteriormente
recuperado para ser entregue ao candidato seguinte.

A primeira grande ação antijudia da guerra - talvez o que


precisavam os nazistas para convencer os alemães mais cautelosos de
que tal procedimento não provocaria inevitavelmente a ira da
humanidade - partiu da possivelmente menos importante das três
nações que haviam declarado em Evian, em 1938, o desejo de livrar-se
dos judeus - a Romênia. O país tinha o seu equivalente aos nazistas -
os Guardas de Ferro, que muito contribuíram para fazer da Romênia
um aliado da Alemanha na guerra à Rússia. A 22 de junho, três grupos
de exército alemães iniciaram a penetração da Rússia, um deles
passando pela Romênia. Dois dias mais tarde, a cidade de Jassy foi
violentamente bombardeada pelos russos. Os Guardas de Ferro, que já
haviam massacrado judeus em Bucareste e exposto seus cadáveres nos
açougues rituais judaicos da cidade, voltaram-se então contra os de
Jassy. Os judeus foram arrebanhados durante a noite de 28 de junho;
no dia seguinte, as execuções sumárias tiveram início. Então, cerca de
5.000 deles foram embarcados num trem, 120 em cada vagão, com
destino a Bucareste, a 480 km de distância. O trem jamais chegou à
cidade. Depois de dois dias de percurso pela região, durante os quais,
em várias paradas, os cadáveres eram jogados fora, ele chegou a uma
estação situada ao sopé dos Cárpatos, tendo em seu interior, vivos,
somente 1.000 "passageiros". Se acrescentarmos aos 4.000 que
morreram no trem cerca de 3.000 vitimados nas ruas e durante o
arrebanhamento, cerca de 7.000 judeus perderam a vida.

Hitler falou com calorosa aprovação: "Um homem... como


Antonescu", disse ele acerca do ditador romeno, "age a este respeito
de modo muito mais radical do que nós, até agora". Assim, os
assassinos romenos foram apresentados como exemplos para
emulação alemã e como crítica implícita à sua reticência.

Foi pouco depois disso, no começo de julho, que Heydrich foi


encarregado por Goering de levar a cabo todos os preparativos... "para
a solução da questão judaica". Também foi autorizado a apresentar um
relatório das medidas até então tomadas para a execução da "solução
final da questão judaica" - a primeira vez que se usou esta expressão
por escrito. Perante o Tribunal de Crimes de Guerra instalado em
Holocausto 43

Nuremberg, Goering discutiria o significado dessas cinco últimas


palavras. Heydrich pareceu não ter dúvidas a respeito, pois a 20 de
maio de 1941 o RSHA baixou instruções à polícia alemã e aos
representantes do SD na Bélgica e França. Isto pôs fim à emigração
dos territórios ocupados, bem como à "recolonização" no leste. A
razão apresentada para a aplicação da medida baseava-se na certeza de
que em breve seria adotada a "Solução Final", codinome do
extermínio.

Uma minuta dirigida por Heydrich aos quatro oficiais mais


graduados das SS e da polícia começou a pôr em vigor sua ordem.
Esta punha em relevo as instruções de Himmler a Ohlendorf: que
parte da sua tarefa consistiria em exterminar judeus e funcionários
comunistas. Um parágrafo final instruía-os a não interferir em
quaisquer medidas anticomunistas ou antijudaicas iniciadas pela
população local. Ao contrário, deveriam encorajá-las secretamente,
para que tal encorajamento não fosse atribuído aos ocupantes. Sua
última sentença era uma advertência: "Deve-se tomar cuidado especial
com relação ao fuzilamento de médicos ou pessoas vinculadas à
atividade médica... "

A instrução para encorajar o ânimo local logo foi posta em prática.


Na Lituânia, liberada da União Soviética pela Wehrmacht no começo
da guerra, bandos de assassinos encheram as ruas, matando cerca de
3.000 judeus só em Kovno, a capital, antes que o exército alemão
pusesse fim a tais atividades. Mesmo depois disso, a 4 de julho, dois
dias após a promulgação das ordens de Heydrich, guerrilheiros
lituanos, por ordem dos alemães, fuzilaram 416 judeus, incluindo
quase 50 mulheres, nos arredores de Kovno.

O representante de Heydrich no local, General-de-Brigada SS


Franz Stahlecker, comandante do Einsatzgruppe A, vislumbrou outros
modos de se beneficiar com o anti-semitismo local e suas
manifestações violentas. Ele confinou os judeus num gueto - para sua
"própria proteção" - e quando verificou que o local designado para
este fim era pequeno demais, resolveu o problema de acomodação
executando todos os judeus incapacitados para o trabalho, em grupos
de 50 a 100. Esses assassinatos foram repetidos seis dias depois,
quando 700 reféns retirados de Vilna foram executados nos arredores
da cidade, nos reservatórios de petróleo que o Exército Vermelho
abrira em Ponary. Nesses locais os nazistas deram prosseguimento à
aplicação da Solução Final na Rússia e no Báltico. Em setembro, sob a
Segunda Guerra Mundial 44

alegação de que dois soldados alemães haviam sido assassinados, sem


que dissessem onde, 700 reféns foram executados. Pelo final do ano,
30.000 judeus haviam morrido nos mencionados reservatórios.
Entrementes, em Kovno, 10.000 pessoas foram fuziladas num só dia e,
depois, mais 10.000 em Dvinsk.

Durante os meses de novembro e dezembro, 24.000 pessoas foram


levadas de ônibus para os locais de execução em Riga. Ali, contudo,
os atos foram presenciados por integrantes do exército regular, que
enviaram relatórios dos assassinatos à Alemanha. Isso se repetiria em
muitas outras ocasiões.

O processo usado em Kovno tornou-se o padrão clássico de


destruição de judeus pelos Einsalzgruppen. A população judia de uma
cidade era encerrada em guetos - na prática, qualquer grupo de prédios
que pudesse atender à finalidade de guardar judeus, servissem ou não
para moradia. O gueto tinha seu próprio governo interno, um
Conselho Judeu, cujas funções incluíam providências sobre os que
seriam "recolonizados", que passou a sinônimo de execução. Os
primeiros a serem recolonizados eram invariavelmente os
desempregados, os doentes e órfãos. Reitlinger identificou quatro
estágios na história dos guetos nazistas. Quando foram introduzidos,
eles destinavam-se apenas a impedir que os judeus negociassem. Em
seguida, tornaram-se locais onde eram largados os judeus para
morrerem de fome. Depois, passaram à sede de execução dos semitas
considerados não-essenciais. O último ainda estava por vir: a
destruição total dos habitantes dos guetos.

Os detalhes do método de execução usado nessa época também


foram esclarecidos por Ohlendorf no depoimento por ele prestado no
tribunal: "A unidade escolhida... entrava numa aldeia ou cidade e
mandava que os cidadãos judeus preeminentes reunissem todos os
judeus para fins de recolonização. Eles eram obrigados a entregar
todos os objetos de valor... e, pouco antes da execução a entregar suas
roupas externas. Homens, mulheres e crianças eram levados para um
local de execução, em geral situado perto de um profundo fosso
antitanque. Então, eram fuzilados, ajoelhados ou de pé, e os corpos
jogados no fosso... "

Os carrascos nem sempre eram membros dos Einsatzgruppen.


Sabemos que anti-semitas locais bem como a polícia do lugar
ajudavam nos assassinatos. Sabemos também que civis alemães, que
Holocausto 45

trabalhavam como intérpretes ou como ferroviários, apresentavam-se


como voluntários para integrar os pelotões de fuzilamento, porque
havia possibilidade de saque e de uma ração especial de aguardente.
Com assassinos não muito treinados, não raro as vítimas, por mal
feridas, morriam não dos tiros, mas pela asfixia causada pelo peso dos
corpos atirados sobre elas, ou da terra, quando fechada a sepultura.
Não era incomum, no dia seguinte a um morticínio, encontrarem-se
rastos de moribundos fora da sepultura. Alguns realmente apareciam,
para tratamento, em hospitais, e uns poucos escapavam de todo.

Os massacres continuavam: em Korosten, em Berdichev, em


Ulman, em Winnitsa, na Ucrânia ocidental; em Jitomir, 2.531 judeus
morreram na última semana de julho; outros 407 no começo de agosto
e cerca de 1.668 no começo de setembro. Mais tarde, nesse mesmo
mês, ocorreu o mais cruel de todos os massacres perpetrados pelos
Grupos de Ação. Foi em Kiev, que caiu em poder dos alemães no dia
19.

Cinco dias após a ocupação, o Q-G do Comando da Área de


Retaguarda do 6o Exército, no Hotel Continental, foi destruído por
uma explosão, provavelmente provocada por uma mina armada pelos
russos. Centenas de soldados alemães morreram no combate aos
incêndios subseqüentes.

Decidiu-se que as represálias seriam feitas contra os judeus. Mas o


que mostra toda a loucura inerente a esses fatos, é que tais represálias
seriam secretas, perdendo assim qualquer valor moral de escarmento
que lhes pudesse ser atribuído. O Coronel SS Paul Blobel, chefe do
Kommando 4A do Einsatzgruppe C, o mesmo Blobel que se supõe ter
projetado as câmaras de gás de Auschwitz, foi encarregado das
execuções.

A 26 de setembro, os judeus de Kiev receberam ordens de se


apresentarem dentro de três dias para "recolonização". Esperavam os
nazistas a apresentação de não mais de 6.000. Mas, "graças a uma
organização extremamente hábil", nas palavras de um relatório diário
do Einsalzgruppe, 30.000 chegaram, trazendo suas trouxas. Dois
outros relatórios elevaram o número para quase 34.000.

O local da execução era a ravina Babi Yar, nos arredores de Kiev.


Ali, eles desciam de uma prancha para a ravina e eram mortos com um
tiro na nuca. A operação demorou dois dias.
Segunda Guerra Mundial 46

Os carrascos se iludiam, julgando que a população em geral


ignorava por completo os assassinatos. Estes eram do conhecimento
público, e somente o terror pôde impedir que se comentasse a respeito,
o que deu aos alemães a impressão de que ninguém sabia de nada. O
massacre veio a servir de tema do lamento do poeta russo Eugênio
Ievtushenko.

Por necessidade, a invasão da Rússia trouxe a Galícia para a esfera


de influência nazista. Esta região desde 1919 fazia parte do território
polonês, sendo anexada pela Rússia em 1939. Ali, como no Báltico, as
medidas contra os judeus logo foram instituídas, e as forças locais
encorajadas a participar dos progrom. Num destes, em Lwow, 7.000
judeus foram mortos durante a denominada Aktion Petlura.

Outros massacres tiveram lugar em Kiev, em outubro de 1941 e


janeiro de 1942, nos quais um total de 15.000 pessoas pereceram. Em
Dniepropetrovsk, a 13 de outubro de 1941, 11.000 crianças e velhos
foram mortos numa só ação. Em Borissov, uma semana mais tarde,
todos os 7.620 judeus da cidade foram mortos pelo Einsatzgruppe A; a
6 de novembro, 15.000 em Rwono, na Ucrânia. Durante o mês de
dezembro completaram-se os massacres em Riga, Vilna e Simferopol,
na Criméia, num total de 70.000 vitimas. Em quatro meses, cerca de
350.000 judeus tinham sido fuzilados.

As execuções eram sempre disfarçadas em ações contra


guerrilheiros potenciais ou seus simpatizantes, disfarce que não
demorou a cair por terra, pois um Kommando de um Einsatzgruppe
comunicou o fuzilamento de crianças judias, feito quase que
diariamente, e, em uma ação, a 29 de agosto de 1941, executou 1.469
delas. O Einsatzgruppe A, que já executara 229.052 judeus informou,
por volta de novembro de 1941, que embora tivesse morto apenas 56
guerrilheiros e mais 1.064 comunistas, matara 126.421 judeus. Outras
evidências destrutivas vem de Ohlendorf. Na Criméia, os membros de
duas seitas judias haviam sido arrebanhados. Uma delas era de
muçulmanos convertidos ao judaísmo; a outra, de judeus convertidos
ao islamismo. A primeira seita foi poupada por ordens do
Departamento IVA4b, conforme Ohlendorf revelou; a segunda, de
judeus raciais, foi destruída, provando desse modo que os motivos
raciais, e não o problema de adesão aos guerrilheiros (que nunca foi
suscitado) era o que selava seu destino.
Holocausto 47

Não era possível convencer a ninguém que o fuzilamento de


crianças fazia parte da atividade antiguerrilheira. Para eliminá-las,
introduziu-se o uso, mais discreto, dos caminhões de gás. Eram
veículos adaptados de modo que, ao acionar uma alavanca o
monóxido de carbono gerado nos gases de descarga era injetado no
compartimento dos passageiros. As vítimas eram levadas da prisão ou
do gueto para o local de sepultamento no caminhão e deviam estar
mortas quando chegassem ao destino, método econômico, ainda que
macabro. Mas a intenção nem sempre se cumpria - o que levava os
inovadores do sistema a culpar os motoristas dos "caminhões", e não a
si próprios, pelo fracasso. O uso de caminhões de envenenamento por
gás provocou protestos dos membros dos próprios Einsatzgruppen,
que alegavam que as crueldades implicadas eram moralmente
indefensáveis. Como uma carta que dava instruções sobre o uso
adequado dos caminhões faz referência a cadáveres sujos de
excrementos e rostos contorcidos pela sufocação (em oposição à
asfixia indolor pelo gás que os caminhões deviam provocar), pode-se
ver que até mesmo os empedernidos matadores se nauseavam diante
daquilo. Contudo, o uso da crueldade foi até ampliado.

Uma vez que o horror do que estava sendo feito parecia focalizar-
se mais em detalhes do que em princípios, conclui-se que a questão
não era absolutamente de moral. A aversão era livremente expressada,
por exemplo, pelos soldados comuns, entre os quais se encontravam,
devemos lembrar-nos, muitos que haviam sido em criança doutrinados
em anti-semitismo na "Juventude Hitlerista". Em conseqüência, o
Feldmarechal Walter von Reichenau, comandante do 6° Exército,
sentiu-se compelido a apresentar uma justificativa para o que se estava
fazendo. "O soldado nos Territórios Orientais", declarou ele na
"Ordem do Dia" de 10 de outubro de 1941, "não é apenas um
combatente, segundo as regras da arte da guerra, mas também o
portador de uma ideologia nacional implacável... Portanto, o soldado
tem de se compenetrar da necessidade da aplicação de uma vingança
severa mas justa, contra a judiaria subumana". Contudo, num relatório
oficial, escrito em dezembro de 1941, um oficial de Estado-Maior do
Grupo de Exércitos Centro declarou que o corpo de oficiais, "quase
unanimemente, é contra o fuzilamento de judeus, prisioneiros e
comissários". Na sua opinião o mesmo autor disse, isto era uma nódoa
no exército alemão.

Um membro do departamento de economia do exército na Ucrânia


escreveu que "não havia prova alguma de que os judeus estivessem
Segunda Guerra Mundial 48

largamente empenhados em sabotagem ou atos semelhantes", nem


podiam ser considerados como "representando uma ameaça à
Wehrmacht alemã". Uma expressão mais forte do sentimento partiu do
Reichskommissar Wilhelm Kube, membro-fundador do NSDAP, que
já demonstrara repugnância diante desses excessos e estava sendo
vigiado pela Gestapo a pedido de Heydrich. Ele escreveu a Himmler
sobre a "indescritível brutalidade" e "extrema bestialidade" e
denunciou o que fizeram a uma jovem judia, a quem pediram 5.000
rublos em troca da vida de seu pai, e ela começou a implorar dinheiro
à todos. A carta-denúncia foi ignorada e, pela primavera de 1942, pelo
menos um milhão de judeus haviam perecido nessas ações.

Mas nem todos os judeus, nessas regiões, haviam sido mortos.


Muitos permaneciam nos guetos, marcados com estrelas amarelas no
peito e nas costas, submissos aos Conselhos Judeus. Muitas vezes
ordenavam que lhes dessem o mínimo alimento possível, e somente
depois que o resto da população tivesse sido alimentada "e, de modo
algum, mais do que o suficiente para manter a vida".

Uma nomeação tristemente importante foi feita em setembro - um


passo à frente para a destruição final dos guetos. Tal ato deu a
Eichmann, além das funções que exercia, a responsabilidade pela
organização dos transportes. Suas instruções abrangiam não só o
movimento para o leste, como também o das regiões ocidentais e
setentrionais da Europa ocupada. Também ali se registravam
progressos na "Solução Final", embora, em muitos lugares, houvesse
demora que Heydrich e seu RSHA consideravam exasperante e
deplorável.

Em outubro, com Eichmann já no exercício do novo posto, as


deportações do Reich e além ganhavam velocidade. Bons trens,
carregando 1.000 pessoas, partiam de Berlim, Hamburgo, Hanover,
Dortmund, Düsseldorf, Colônia, Frankfurt, Kassel, Stuttgart,
Nuremberg, Munique, Breslau, além de Viena, Praga, Luxemburgo e
até mesmo de Antuérpia. As deportações prosseguiram até janeiro de
1942 para áreas que incluíam Lodz, Varsóvia, Kovno, Minsk e Riga.
Nessas deportações, as organizações de caridade e ajuda judias
consolidadas - a União Reich - e os Conselhos Judeus eram obrigados
a ajudar, fornecendo listas para a "recolonização".

Em 1941, os Estados Unidos ainda eram neutros e um repórter do


New York Times aproximou-se o suficiente para testemunhar a partida
Holocausto 49

de um trem carregado enviando a seu jornal um relato do que


observou. As deportações também eram de conhecimento público,
pelo menos em Berlim, e causaram tal reação que os líderes do partido
foram obrigados a distribuir folhetos denunciando a "culpa" judaica.

Mesmo assim, muitos não judeus começaram a usar a Estrela de


Davi, que os semitas de Berlim tinham sido obrigados a usar apenas
um mês antes - dois anos depois da sua introdução na Polônia. Num
sermão dirigido aos cristãos na Catedral católica de Sta. Edwiges, no
domingo após uma dessas partidas de trem, o velho cônego
Lichtenberg disse que desejava ser mandado para o leste, a fim de
compartilhar do destino dos judeus. Ele foi satisfeito. Meteram-no em
um campo de concentração onde sofreu e morreu.

Ninguém sabia o que os deportados encontrariam no local de


chegada. Os destinados a Kovno e Riga, num transporte, chegaram no
momento em que se realizava uma "ação especial" - isto é, um
fuzilamento em massa. Foram prontamente arrastados do trem e
juntados às demais vítimas. Outros, temporariamente poupados,
encontraram guetos superapinhados e famintos, para cujos habitantes
a sua chegada não era nada agradável. Frank, o governador-geral da
Polônia, estava furioso com o reinício das "recolonizações" e não se
encontrava disposto a mostrar magnanimidade para com os que o
oneravam.

Com tanta atividade na Alemanha, poder-se-ia supor que não


houvesse muito tempo ou energia para hostilizar os judeus ainda ali
existentes. Longe disso. O ataque à vida e liberdade dos judeus
partindo de todos os setores, que se iniciara em 1933, pareceu
redobrar de ferocidade entre 1941 e final de 1942 e seus efeitos de
tempo de paz, embora desagradáveis, eram limitados, ao passo que
agora começavam a impor terríveis dificuldades. Desde 1940, as horas
de compras dos judeus eram restritas entre 16 e 17h quando, afinal, as
lojas já não tinham mais o que pudessem adquirir para tornar possível
a sobrevivência. Em Berlim, desde junho de 1941, eles tinham cartões
de racionamento especiais, marcados com um "J". Os judeus não
podiam usar os transportes coletivos sem permissão policial, nem
telefone, nem freqüentar restaurantes ou usar as salas de espera das
estações e nem passear no campo. Eles tinham de entregar todas as
roupas de lã e peles - inclusive as golas de pele dos casacos; tinham de
entregar bicicletas, máquinas de escrever, discos, binóculos, rádios e
pintar no lado externo de suas casas a Estrela de Davi. As escolas
Segunda Guerra Mundial 50

freqüentadas por judeus foram fechadas, e sendo-lhes vedada a


matrícula em outras escolas. Por fim, em outubro de 1942, suas rações
de ovos, carne, cereais e leite foram canceladas.

Em todos os setores havia indícios de que estavam em marcha os


preparativos para "a certa solução final do problema judeu". E
enquanto na Rússia e na Polônia os Einsatzgruppen levavam a cabo
suas tarefas sangrentas, os campos de extermínio estavam sendo
instalados; dois deles, Belsec e Chelmno, haviam começado a
funcionar em outubro de 1941.

Mas ainda restavam três problemas básicos. O primeiro era o que,


em certo sentido, Himmler criara, no desejo de tornar os campos de
concentração independentes e contribuintes para a economia de guerra
alemã. Não só o regime de trabalho escravo estava em franca
atividade, tentando minimizar o problema da escassez de mão-de-obra
na Alemanha, como também em alguns setores, nos quais somente o
povo judeu era especialista, Himmler estava numa posição de parecer
indispensável, por ter passado a ser a única fonte supridora de mão-de-
obra judaica. Havia, por exemplo, os cortadores de diamante em
Amsterdã; os peleiros e trabalhadores em couro da Polônia, todos
suprindo necessidades da Wehrmacht. O que aconteceria com essa
gente?

Nada poderia, entretanto, interferir no livre desenvolvimento das


medidas que levassem à "solução" - afirmava o louco antisemitismo
nazista. Logo, as razões da economia se subordinariam ao desejo de
varrer da face da terra o judeu. Em dezembro de 1941, Hinrich Lohse,
Reichskommissar de Ostland (nome aplicado aos territórios russos
ocupados), perguntou se os trabalhadores especializados das fábricas
da Wehrmacht deviam ser liquidados, sendo informado de que "as
regras relativas ao problema (judaico) requerem que as exigências da
economia sejam ignoradas". No fim, Goering (Ministro da Economia),
a quem dificilmente se poderia desconfiar de ser simpatizante dos
judeus, teve de intervir pessoalmente para impedir a interrupção do
esforço de guerra. Ainda assim, a trégua concedida aos judeus durou
apenas doze meses. No ano seguinte, o exército foi obrigado a trocar
operários judeus treinados por poloneses destreinados, mas só depois
que o General von Gienath, comandante do Distrito Militar do
Governo-Geral, foi demitido do comando, por opor-se ao absurdo.
Holocausto 51

O segundo problema era o dos direitos dos restantes judeus


alemães, segundo a lei. O 11 o Decreto Suplementar da Lei de
Cidadania do Reich, promulgado a 25 de novembro de 1941, resolveu
isso. Segundo o decreto, os judeus que estivessem fora do Reich eram
apátridas, enquanto que os que se encontravam no território nacional
tornavam-se apátridas tão logo cruzavam suas fronteiras - mesmo
contra sua vontade. Daí por diante, eles não tinham direito algum
perante a lei.

O último problema com que se defrontavam os diretamente


envolvidos na "Solução Final" implicava outros. Himmler e Heydrich
reconheciam que se encontravam na condição de assassinos de aluguel
de Hitler. Sem dúvida, sabiam do destino dos assassinos de aluguel
uma vez terminada a tarefa. Portanto, queriam garantir-se o direito de
poderem dizer: "Não somos apenas nós, mas todos compartilham da
culpa; estes que aí estão respeitavelmente sentados em seus gabinetes
também participaram do que fizemos".

Nas últimas semanas de 1941, Heydrich dedicou-se à resolução


deste problema.

A destruição dos guetos

Para os historiadores, 1942 foi o ano crítico da guerra; ano que


marcou o início da batalha de Stalingrado; ano de El Alamein; ano em
que os Estados Unidos lançaram todo o seu poderio na refrega. Foi o
ano, enfim, em que a sorte mudou.

Estes eventos não passaram despercebidos para os judeus que se


encontravam na Europa, que ouviam a BBC através de receptores
clandestinamente instalados nos guetos ou liam nas entrelinhas do
noticiário dos jornais alemães sobre as "vitórias" conquistadas. Se isto
lhes dava esperança, esta se mostraria vazia - pois foi naquele mesmo
ano que o extermínio se fez de fato realidade, não obstante os
assassinatos em massa realizados no leste no ano anterior. Em
retrospecto, é fácil tirar-se a conclusão de que Hitler, percebendo o
curso dos acontecimentos, estava decidido numa coisa: que se nada
mais fosse conseguido, sua profecia de 1941 teria de se cumprir. A
judiaria seria aniquilada. Este seria o seu monumento, e não o Reich
de mil anos. Entretanto, como se disse, a "Solução Final" não foi feita
Segunda Guerra Mundial 52

repentinamente, mas etapa por etapa, efetuada de acordo com uma


estratégia sincronizada, perceptível desde o começo da era nazista.

Em vista da importância do ano, é quase simbólico que os meios


que Heydrich buscava para implicar outros na trama tornaram-se
realidade em janeiro de 1942, na Conferência de Wannsee. Depois de
um adiamento de seis semanas, esta teve lugar a 20 de janeiro, e entre
os delegados convidados, além dos funcionários do RSHA, incluindo
Eichmann, encontravam-se civis do Ministério do Interior, do
Ministério das Relações Exteriores e de outros departamentos.

A despeito da linguagem eufemistica usada na apresentação do


assunto, não pode haver dúvida de que seus ouvintes compreendiam
perfeitamente o que Heydrich queria dizer. Os judeus seriam usados
em turmas de trabalho nas quais uma grande parte "desapareceria por
redução natural". Os que sobrevivessem - "indubitavelmente os de
resistência mais sólida" - receberiam "tratamento especial".
"Tratamento especial" significava simplesmente extermínio. Deste
modo, cerca de 11 milhões de judeus - incluindo os da Grã-Bretanha,
após a conquista - seriam aniquilados. Os meios-judeus escolheriam
entre a morte e a esterilização.

Se Heydrich temia demonstrações de indignação dos delegados


reunidos, seus temores mostraram-se infundados. Nem uma única voz
se fez ouvir em protesto. O Dr. Otto Thierack, Ministro da Justiça do
Reich, chegou mesmo a oferecer-se para entregar todos os judeus sob
sua jurisdição ao SD, e Eichmann, em seu julgamento em Jerusalém,
em 1961, falou do contentamento que experimentou, "tal como Pilatos
deve ter experimentado, porque me senti completamente isento de
culpa. Ali, na conferência, as mais eminentes personalidades do Reich
expuseram seus pontos de vista. Os papas estavam dando as ordens. A
minha era obedecer".

Depois de transposto o primeiro obstáculo, a conferência


prosseguiu. Nas palavras de Eichmann: "Passamos a discutir as várias
maneiras possíveis de matá-los".

Que esta reunião não teve outra finalidade senão a de ser um ardil
para incriminar outros, demonstra-o o fato de que as questões
discutidas sob o título "maneiras possíveis de matar" já estavam sendo
energicamente executadas: fome, excesso de trabalho, envenenamento
por gás e fuzilamentos em massa.
Holocausto 53

Para Heydrich, contudo, a ocasião seria uma espécie de Festim de


Baltasar. Ele jamais testemunharia a realização dos seus planos. A 27
de setembro de 1941 fora promovido a General SS e nomeado
Protetor da Boêmia e Morávia. Enquanto visitava seus domínios, ele
foi assassinado por guerrilheiros tchecos, a 27 de maio de 1942. Preço
terrível seria cobrado por esse ato: Lídice, aldeia onde se deu o fato,
seria inteiramente destruída, e mortos quase todos os seus habitantes.

Após a morte de Heydrich, Himmler não nomeou nenhum


sucessor durante uns seis meses, quando então escolheu um ex-
advogado austríaco, o Tenente-General SS Ernst Kaltenbrunner, que
se mostraria um digno sucessor de Heydrich sob os aspectos mais
negativos. Aliás, do ponto de vista de Himmler, ele era mesmo
superior a Heydrich, por ser menos ambicioso. Até que se verificou a
nomeação de Kaltenbrunner, os deveres de Heydrich foram
desempenhados por Eichmann, que a 6 de março convocou uma
conferência para discutir e buscar solução para dois problemas. Um
deles relacionava-se com o transporte; o outro era como se realizaria a
esterilização de judeus casados com não judeus e dos seus filhos. O
segundo problema jamais foi resolvido, a despeito das torturas
infligidas às "cobaias" dos campos de concentração. Hitler não queria
ficar de mãos atadas, se decidisse eliminar também os mestiços.

A 20 de março de 1942, três semanas após a conferência de


Eichmann, sugeriu-se a esterilização de 8.000 judeus de casamentos
mistos, na Holanda, como alternativa para a deportação. As
esterilizações foram executadas no campo de detenção holandês,
Westbork, em alguns casos por médicos das SS, mas normalmente por
médicos particulares. Isto fora feito sem o conhecimento de
Eichmann, que se agastou com o fato, que estava sendo feito mediante
concordância privada entre Himmler e o Alto Líder das SS e da
Policia na Holanda, General Hans Rauter. Como resultado, 8.610
judeus holandeses ficaram em liberdade, porque, nas palavras de
Rauter, não eram mais considerados "perigosos para a Alemanha".
Eles nem sequer tinham de usar o distintivo judeu, enquanto que os
nascidos impotentes podiam obter um certificado disso e também
estavam isentos do distintivo. Esta medida levou a uma outra
exploração para a Gestapo, que fez um comércio ativo com a venda de
certificados de "esterilização".
Segunda Guerra Mundial 54

Após a Conferência de Wannsee, Himmler acelerou os planos para


tornar seus campos de concentração economicamente viáveis,
nomeando um ex-pagador da marinha, Oswald Pohl, para dirigir um
novo departamento das SS encarregado de desenvolver o programa de
trabalho escravo. Ele já providenciara para que não se ignorassem
oportunidades de lucro, como a remoção de obturações de ouro da
boca dos mortos e, em alguns casos, dos vivos. A despeito das sanções
draconianas destinadas a assegurar que só as SS, e nenhum particular,
lucrassem com tais atividades, nas condições vigentes nos campos de
concentração, era impossível pô-las em vigor e acredita-se que
centenas de prisioneiros foram mortos apenas para se lhes arrancar as
obturações de ouro. Um homem, o Kriminalkomissar Christian Wirth,
perito em extermínio, vindo dos velhos institutos de eutanásia, andava
pelos campos com um vidro de geléia vazio no qual recolhia as
obturações de ouro.

Mesmo em 1942 ainda havia personalidades judias de renome -


artistas, músicos, cientistas - vivendo na Alemanha. Himmler sabia
que seu desaparecimento repentino da cena abriria um vazio muito
sensível. O desaparecimento de judeus com altas condecorações de
guerra (obtidas na guerra anterior, claro) também seria embaraçoso,
apesar de Hitler haver declarado que "os porcos obtiveram suas
condecorações fraudulentamente". Para eles foi então criado um gueto
especial. Era a cidade-fortaleza de Theresienstadt, na Boêmia, cuja
população fora evacuada por Heydrich, num de seus primeiros atos
como Protetor. A cidade, cuja população era de 7.000 pessoas, em
breve teria de acomodar 30.000.

Para a inauguração do novo gueto, a que denominaram Reserva


Especial, foram convidados representantes da Cruz Vermelha alemã e
internacional e oficiais dinamarqueses. Himmler mais tarde chegaria
mesmo a vangloriar-se, hipocritamente, para um representante do
Congresso Judeu Mundial: "Este tipo de campo foi projetado por mim
e por meu amigo Heydrich, e pretendemos que todos os campos sejam
assim".

A simples existência de tal lugar, onde, apesar de superlotado


parecia haver certa segurança para os presos, criaria uma demanda de
vagas nele. Isto poderia ser facilmente usado pela Gestapo para um
comércio lucrativo, e milhares de judeus passaram pelas suas portas,
acreditando terem comprado passagem para a vida, quando em
verdade foram morrer nos campos mais a leste. A superlotação
Holocausto 55

continuava a crescer, tornando-se tão intolerável que muitos judeus,


mesmo "isentos," foram finalmente deportados. O trabalho era
compulsório e duro. As rações mal atingiam o nível de subsistência e
alguns internos verificaram que o regime de fome era ali mais duro
que nos mais notórios campos de concentração. Rações mais
generosas eram concedidas aos trabalhadores agrícolas e em
mineração de mica: 250 gramas de pão por dia, com 50 gramas de
batatas e mingau aguado. Em média, cerca de 130 pessoas morriam
diariamente de fome.

Uma outra exploração lucrativa para as SS estava num "plano para


compra de casa" inventado por Eichmann. Segundo esse plano, os que
iam ser mandados para Theresienstadt tinham de entregar todos os
seus bens antes da partida. A desculpa para despojá-los desse modo
era que estes bens seriam usados como títulos de crédito para a
compra de casa e o restante do dinheiro, após a transação, seria
dedicado a prover acomodações para os que não tinham meios. Tal
plano tinha seus atrativos, porque antes da emigração os judeus
tinham de declarar quaisquer bens restantes, que eram
automaticamente confiscados pelo governo. Desse modo, eles
deixavam a impressão de que esses bens eram inteiramente aplicados
às causas "judaicas" (na realidade, iam para os fundos das SS). Ao
chegarem ao gueto, os judeus descobriam o que haviam comprado:
um catre num barracão superlotado - se tivessem sorte, porque
somente 60 por cento dos internados podiam dispor de tal luxo.

Aos olhos de Himmler, além das suas outras virtudes,


Theresienstadt era um meio útil de neutralizar a propaganda de
atrocidades, pois sempre que surgiam perguntas sobre o
desaparecimento de um judeu famoso, este podia ser mostrado. E,
talvez sentindo que a vitória não era mais a recompensa inevitável do
trabalho das armas alemães, Himmler e Heydrich mostravam-se cada
vez mais preocupados com a possibilidade da descoberta dos seus
atos. Noticias de massacres alemães na Rússia já estavam chegando ao
conhecimento do governo soviético, através de sobreviventes e
guerrilheiros, provocando forte protesto de Molotov, Ministro das
Relações Exteriores russo. A recuperação de território por uma bem
sucedida ofensiva russa, mesmo que finalmente detida, poderia levar a
descobertas que seriam mais difíceis de ignorar, atribuindo-as à
propaganda, do que as narrativas dos sobreviventes.
Segunda Guerra Mundial 56

Pouco antes de sua partida para Praga, em maio de 1942, Heydrich


chamou Blobel, o famoso homem da ravina de Babi Yar, e o
encarregou de exumar e destruir totalmente os cadáveres sepultados
nas grandes valas comuns. Ele também teria de cumprir as mesmas
funções nos campos de extermínio à medida que entrassem em
funcionamento, orientando suas administrações sobre os métodos de
destruição dos ossos dos mortos.

Blobel se encontraria totalmente ocupado, pois os massacres ainda


prosseguiam. No último dia de janeiro, por exemplo, 11 dias após
Gross Wannsee, Franz Stahlecker, o homem que instigara os progrom
na Lituânia, comunicou a Heydrich que 229.052 judeus haviam sido
executados nos Estados Bálticos. Em fevereiro e março, foi
novamente visada a Rússia onde, em Kharkov, a mais oriental das
cidades ucranianas, viviam cerca de 81.000 judeus. Destes, uns 20.000
haviam sido surpreendidos pela ocupação alemã. Em dezembro, eles
foram removidos para um "gueto" que na realidade não passava de
barracões abandonados numa fábrica de tratores. Dali eles eram
levados, em grupos de algumas centenas de cada vez, para serem
fuzilados. Finalmente, os barracões, contendo os corpos de muitos que
tinham morrido de frio ou de fome, foram incendiados.

Assim, os Einsatzgruppen, seguindo tão de perto o exército que às


vezes se tornavam uma ameaça à segurança, continuaram fazendo
novas colheitas. Por volta de setembro de 1942 eles haviam atingido o
ponto mais oriental: Kislovodsk, no Cáucaso Setentrional, onde uns
2.000 judeus daquela cidade e milhares de outros, vindos de
Piatygorsk e Essentuki, foram fuzilados. Quando o Exército Vermelho
avançou, esta foi a primeira grande vala comum descoberta. A 29 de
outubro de 1942, os judeus sobreviventes de Pinsk, num total de uns
16.000, foram liquidados.

Mas era na Polônia, sobretudo nas províncias orientais do


Governo-Geral, que a "Solução Final" estava sendo aplicada mais
metodicamente. Os judeus da Galícia Oriental haviam escapado
temporariamente ao destino dos que foram surpreendidos pelo avanço
alemão porque, a 1o de agosto de 1941, a província foi entregue à
administração de Frank, como parte do Governo-Geral, ficando assim
fora da área operacional dos Einsatzgruppen. Porém, em dezembro
daquele ano, numa comunicação aos membros de seu gabinete, Frank
anunciou que seu domínio "tinha de ficar livre de judeus, tal como
havia sucedido no Reich". Há certa evidência de que ele estava
Holocausto 57

preparando também uma "Solução Final"; mas que não se encaixaria


de modo algum nos planos de Himmler, ainda que apenas porque o
Reichsführer-SS e o chefe do Governo-Geral raramente concordavam
e, aliás, Himmler já encarregara Odilo Globocnik da tarefa de executar
a "fase quatro" da operação, destinada a destruir todos os guetos e
reservas poloneses. Esta era a planejada redução dos guetos mediante
a liquidação dos judeus considerados não-essenciais ao trabalho.

Este programa recebeu o codinome de Aktion Reinhard,


homenagem adequadamente prestada à memória de um homem a cujo
gênio maligno muito devia a "Solução Final", o falecido Reinhard
Heydrich. A consumação dos seus planos se tornou possível à medida
que nos campos já existentes e nos que vinham sendo construídos
eram instalados equipamentos para promover por asfixia a morte
coletiva de judeus, na primavera de 1942. Mas, na verdade, no
primeiro lugar escolhido, os únicos meios de execução eram os
caminhões de envenenamento a gás usados na Rússia. Estes foram
desviados para Chelmno, um campo de concentração situado ao redor
de um castelo abandonado, ironicamente chamado "O Palácio",
destinado a sediar o gueto de Lodz. Os caminhões de envenenamento
a gás continuaram sendo usados durante toda a existência do campo,
nos quais as vítimas entravam persuasivamente ou a poder de chicote.
Ao todo, 152.000 judeus foram assassinados ali.

No gueto de Lodz havia umas 30.000 pessoas e fez-se um começo


de recolonização com deportados do Reich e membros de algumas das
comunidades menores adjacentes. Entre janeiro e setembro de 1942,
55.000 vítimas foram transferidas de Lodz para Chelmno. Embora o
índice de mortalidade fosse alto, os caminhões de envenenamento a
gás podiam cuidar aos poucos dos grandes números, e foram a doença,
a fome e o trabalho excessivo os responsáveis pela maioria das
mortes. Aliás, os habitantes do gueto estavam em condições físicas tão
ruins que os necessários ao trabalho forçado passaram a ser trazidos
de outros lugares.

Lodz ficava na fronteira dos territórios incorporados ao Reich e do


Governo-Geral, valendo lembrar que uma das finalidades desse
massacre era proporcionar Lebensraum (Espaço Vital) para os
germânicos que estavam de volta, de acordo com as instruções de
Himmler, como Comissário para o Fortalecimento do Povo Alemão.
Pelo final de 1941, um total de 497.000, inclusive os dos Estados
Bálticos e da Romênia, havia-se mudado para uma área anteriormente
Segunda Guerra Mundial 58

ocupada por um milhão e meio de poloneses e judeus. Por volta de


junho de 1942, 120.000 deles ainda estavam abrigados em campos.
Em agosto de 1943, o número aumentara para 546.000 e havia cerca
de 99.500 em campos e 22.000 perto de Lodz, todos na miséria,
vestindo-se com roupas tiradas aos judeus exterminados.

Em meados de março a morte inaugura outra usina, esta em


Belsec, o primeiro campo permanente para envenenamento a gás. Ele
era dotado de quatro câmaras de gás, com capacidade para 750
pessoas, que eram saturadas com os gases da descarga de um motor
diesel. Freqüentemente o motor enguiçava, quando então as vitimas
passavam horas encerradas nas câmaras, ouvindo-se os seus gemidos
do lado de fora. Não obstante, 15.000 vítimas de Lublin, a "reserva
judia", foram ali asfixiadas. O resto, cerca de 11.000, foi para
Majdanek, onde sobreviveram pelo menos até que as câmaras de gás
ficaram prontas, no outono.

Durante o mês de abril o gueto de Lwow é que foi recolonizado,


quando umas 15.000 pessoas foram removidas durante o primeiro
mês, muitas outras em maio e junho, embora o movimento se
atrasasse porque Belsec estava superlotado.

Outras operações ocorriam simultaneamente nos guetos menores e,


por volta de julho de 1942, 250.000 judeus, do total de 1.600.000 que
havia no Governo-Geral, tinham sido recolonizados.

E os fuzilamentos prosseguiam. No transcurso do verão, cerca de


7.000 crimes por dia eram cometidos; provavelmente cerca de meio
milhão de judeus pereceram em toda a Polônia. Num dos grandes
massacres, em Lida, morreram 16.000. Goering pôde dizer numa
conferência: "Só restam uns poucos judeus vivos. Dezenas de
milhares têm sido eliminados". Pelo final daquele ano, o número dos
assassinados no Governo-Geral saltara de 250.000 para 1.274.166.

Foi do local de um desses banhos de sangue, no aeródromo de


Dubno, na Ucrânia, a 5 de outubro, que um dos relatos mais
completos do que uma execução em massa significava para suas
vítimas chegou até nós. Hermann Gräbe, um engenheiro civil alemão,
depondo no Tribunal de Nuremberg, durante os julgamentos de
Crimes de Guerra, declarou que viu grande número de pessoas
alinhadas contra um grande monte de terra. Entre elas havia uma
mulher, de cabelos brancos, ninando uma criança de não mais que um
Holocausto 59

ano de idade; em outro lugar, um pai segurava a mão de seu filho, de


uns dez anos, afagando-lhe a cabeça, enquanto o menino tentava
conter as lágrimas; uma jovem esguia, de cabelos negros, ao passar
por Gräbe apontou para si mesma e disse: "Vinte e três anos".

Gräbe, espantado por não o terem mandado sair dali; foi para o
outro lado do monte. Havia um poço enorme, contendo talvez uns mil
corpos, quase todos apresentando sangramento na cabeça. Muitos
ainda se moviam; alguns tentavam mostrar, com as mãos erguidas, que
se encontravam ainda vivos, talvez para que os eliminassem de vez.

Numa extremidade do poço sentava-se um homem das SS, com os


pés pendendo para dentro dele, um fuzil-metralhadora nos joelhos e
um cigarro preso aos lábios. O grupo de pessoas que Gräbe vira do
outro lado foi trazido para ali. Ele as viu descer ao poço sob as ordens
do homem das SS. Então houve uma série de disparos. Quando ele
tornou a olhar, alguns corpos ainda se mexiam; outros jaziam imóveis.

Ele viu outro grupo ser trazido para o local de fuzilamento,


inclusive uma mulher paralítica, que por ordem de um SS foi despida
e carregada pelos demais condenados.

Na manhã seguinte, Gräbe retornou ao local do poço; cerca de 30


pessoas haviam saído dali, arrastando-se, tendo algumas chegado a
percorrer certa distância. Logo depois chegou um grupo de SS,
trazendo alguns judeus retirados do cativeiro em que aguardavam a
visita da morte. Após terem carregado, por ordem dos SS, os mortos
de volta ao poço, foram também executados.

Todos, segundo Gräbe, iam humildemente ao encontro da morte,


obedecendo ordens destinadas a facilitar aos carrascos a própria
execução. Ninguém implorava misericórdia. Ninguém procurava
escapar. Ninguém resistia.

Mas a resistência viria depois.

As operações de recolonização realizadas de acordo com a


chamada Aktion Reinhard ainda não haviam chegado ao maior gueto
da Polônia - Varsóvia. Nele havia cerca de 380.000 habitantes e, em
julho, Globocnik, entre outros, achou que havia chegado a hora de
cuidar dele. Para começar, cerca de 7.000 judeus, portadores de
licença de trabalho, por conseguinte com execução adiada, haviam
Segunda Guerra Mundial 60

sido mortos, naquele mês, no gueto de Rowno, o mais próximo do de


Varsóvia. Todas as precauções haviam sido tomadas para que ninguém
neste gueto soubesse do que acontecera lá. Em grande parte as
providências tinham funcionado, mas, com o passar dos dias,
aumentava a possibilidade da descoberta do que havia acontecido, o
que talvez levasse o judeu de Varsóvia, em desespero, a resistir à
recolonização.

Contudo, havia boas razões para o atraso. Uma delas era a escassez
de transporte, causada pelos preparativos para a ofensiva de verão da
Wehrmacht na Rússia, pois Hitler prometera que a campanha no leste
terminaria definitivamente naquele ano. Na verdade, os preparativos
para a ofensiva tinham impedido Heydrich de mandar judeus para os
guetos russos a partir de março. Mas, a despeito do problema,
Himmler conseguiu algumas unidades das Ferrovias Estatais. Por
volta de julho, ainda no início da ofensiva, saia diariamente um trem
levando judeus de Varsóvia para o campo de extermínio em Treblinka,
desde o dia da sua inauguração. Este campo, que entrou em
funcionamento no dia 23 de julho, foi o penúltimo dos principais
campos da morte a ser construído. O último, Sobibor, só foi
inaugurado em fins de outubro, devido a um motim, dirigido por um
polonês, no qual cerca de 150 judeus tentaram uma fuga em massa. A
maioria morreu na área minada que cercava o campo, e somente uns
30 sobreviveram à guerra. Quase um ano depois, idêntica revolta
registrou-se em Treblinka, também dirigida por um polonês, desta vez
um capitão do exército. Os judeus chegaram a penetrar no arsenal e
apossar-se de armas, mas a revolta fracassou, sendo massacrados os
amotinados. Contudo, dois meses depois disso, em novembro de 1943,
o campo foi destruído por explosões. Esvaziadas as valas comuns, a
área foi plantada de pinheiros. Apesar dessas dificuldades, Sobibor e
Treblinka, juntos, conseguiram eliminar mais de um milhão de judeus
da Rússia, Tchecoslováquia, Áustria, Holanda e França.

O processo de seleção, que iniciou a recolonização de Varsóvia em


1942 e enviou para Treblinka tantas e tantas vítimas, foi executado de
acordo com o padrão estabelecido, escolhendo-se os que não possuíam
certificado de trabalho, os velhos, os doentes e as crianças. As listas
tinham de ser fornecidas pelo Conselho Judeu do gueto -
transformando os judeus, ali como em todos os outros lugares, em
cúmplices de seus próprios assassinos.
Holocausto 61

Enquanto os Estados Unidos ainda não estavam em guerra com a


Alemanha, os judeus de Varsóvia que eram cidadãos americanos,
depois de instruídos a se registrarem, foram enviados para uma prisão
especial - o que deveria ter funcionado como advertência de que algo
estava prestes a acontecer, mas nessa época ainda não havia
resistência organizada no gueto. Sabia-se que milhares de judeus
estavam ocultos atrás daquelas paredes, mas as condições eram tais,
que muitos se juntavam voluntariamente às colunas de deportação, só
para conseguir a ração de viagem de pão e geléia.

Embora os documentos alemães registrem que 5.000 judeus


deixavam Varsóvia diariamente, o Conselho Judeu recebera ordens de
fornecer 6.000 por dia, o que não poderia prosseguir indefinidamente
sem acabar incluindo os portadores de certificados. Os alemães
passaram então a proceder como em outros lugares: mudavam
constantemente os certificados, anulando os anteriores. Os que não
possuíam documentos atualizados eram arrebanhados, e muitas vezes
as mulheres e filhos dos portadores de certificados válidos eram
arrastados enquanto o marido se encontrava trabalhando.

Por volta de 15 de agosto metade do gueto se fora, reduzindo-se à


metade a área que lhe correspondia, a primeira de várias reduções
registradas. No dia seguinte, novo certificado de trabalho foi emitido,
limitado a 30.000 trabalhadores, sem incluir seus dependentes. Entre 5
e 12 de setembro organizou-se um novo arrebanhamento. No decurso
desse período, cerca de 100.000 semitas, incluindo empregados do
Conselho Judeu, membros do Ordnungsdienst (a polícia judaica do
gueto), foram recolonizados. O tamanho do gueto foi novamente
reduzido. Por volta de 3 de outubro restavam oficialmente no gueto
uns 30.000 judeus, embora, na realidade, incluindo-se os que
permaneciam escondidos, houvesse uns 60.000 ou 70.000
sobreviventes.

Contudo, os judeus restantes estavam em grande parte livres de


dependentes e, nessa situação, preparados para aceitar as ordens da
grupo de resistência que fora secretamente criado. A longo prazo,
verificou-se que, ao desmembrar as famílias, os alemães cometeram
um erro.

O novo ano, ao começar, encontrou o Conselho Judeu, mesmo


com a população do gueto enormemente reduzida, às voltas com o
preenchimento da cota 5.000 diários relacionando inclusive os que
Segunda Guerra Mundial 62

trabalhavam nas fábricas de armamento. Em janeiro de 1943 Himmler


fez uma visita de surpresa a Varsóvia, mostrando-se irritado ao
verificar que havia ali mais gente do que esperava encontrar. A
recolonização, ordenou ele, tinha de estar terminada até 15 de
fevereiro.

Alguns gerentes de fábrica alemães, tentando conservar seus


empregados judeus, falseavam a verdade ao elaborar as listas de
operários semitas que possuíam, chegando até a ocultá-los, para
manter a produtividade do estabelecimento.

A 18 de janeiro, quatro dias após a visita inesperada de Himmler,


uma coluna de deportados marchava para o ponto de transferência, o
Caldeirão, como era chamado, quando vários deles sacaram de armas
e abriram fogo. Tais armas eram pistolas de fabricação italiana,
adquiridas no mercado negro ao preço de 50 libras cada uma. Esta
insignificante reação foi imediata e mortiferamente respondida,
obrigando os judeus a recuar, à procura de proteção, largando os seus
mortos. Durante três dias a caçada prosseguiu, mas mesmo depois que
os alemães colocaram canhões de campanha para demolir a ala
nordeste do gueto, onde havia cerca de quatro grupos de resistência
ocultos, nem todos foram destruídos, e os alemães suspenderam a
ação.

Himmler ordenou fosse construído um campo de concentração


dentro do gueto e, quando pronto, todos os prédios deveriam ser
arrasados. Mais tarde, os judeus e as oficinas em que trabalhavam
seriam transferidos para Lublin.

Entrementes, a 13 de março, o gueto de Cracóvia foi recolonizado.


Havia ali cerca de 14.000 judeus que foram em dois dias apenas
enviados a campos de extermínio e de trabalho escravo.

No dia em que se iniciou a recolonização de Cracóvia, ao


Conselho Judeu de Varsóvia foi enviada ordem para apresentar 2.000
pessoas a serem colocadas num campo provisoriamente instalado em
Trawniki. Nem o conselho nem seus auxiliares, os policiais judaicos
do Ordnungsdienst, puderam cumprir as ordens. Os grupos de
resistência estavam no controle e o conselho caíra num fogo cruzado.
Se desobedecesse sos alemães, iria para Treblinka; se obedecesse,
seria morto pela resistência. Os alemães tiveram, eles próprios, de ir
apanhar os que desejavam deportar.
Holocausto 63

A 17 de abril, o Major-General SS Jürgen Stroop chegou para


assumir o posto de Alto Líder SS e da Polícia em Varsóvia. Dois dias
depois colocou ele no gueto dois carros blindados, três peças de
artilharia e um tanque francês capturado na Campanha de 1940. Como
demonstração de força o efeito foi nulo, e ele teve de dividir o gueto
em setores controlados por diferentes unidades que o "pacificariam".

Ele tampouco encontrou cooperação entre os donos de fábricas


alemães. Grandes abrigos haviam sido construídos nos terrenos de
muitas das fábricas, contra ataques aéreos. Neles grandes grupos de
judeus se ocultaram, com o conhecimento dos seus empregadores.

A 21 de abril, Stroop conseguiu arrancar mais de 5.200 judeus das


fábricas de armamentos e deportá-los. Mais tarde, ele descobriu que
ainda restavam alguns, que, metidos em uniformes do exército
alemão, roubados à fábrica, passavam por soldados alemães.

Foi neste ponto que, cumprindo ordens de Himmler, Stroop


decidiu pela destruição metódica do gueto, por meio de incêndios e
explosões. Não havia armas suficientes para todos os judeus, além de
muitos deles não apresentarem condições de lutar, os velhos e os
doentes. Numerosos judeus preferiram morrer nas chamas a renderem-
se, embora fosse arrebanhada quantidade suficiente, até 25 de abril,
para serem enviados 25.000 para Treblinka, logo depois desta data.

Mas a batalha estava longe de terminada. Os elementos da


resistência travaram contato com guerrilheiros poloneses, que lhes
forneceram armas e mandaram combatentes para o gueto. No fim, os
que se ocultavam nos esgotos foram dali expulsos por efeito de
bombas de fumaça, que lhes deu a impressão de estarem sendo
envenenados a gás.

A 28 de abril foi capturado um bunker (abrigo) onde viviam alguns


dos membros mais ricos e importantes do gueto. Até então Stroop
evitara fazer explodir os bunkers, para não danificar as fábricas e suas
ferramentas. Mas a política por ele adotada mudara, sendo várias
fábricas dinamitadas. Os moradores dos bunkers, como tantos outros,
preferiram morrer onde estavam.

Já então cerca de 1.100 soldados estavam empenhados na limpeza


do gueto, número não muito grande em comparação com a quantidade
Segunda Guerra Mundial 64

de alemães empenhados em ações guerrilheiras, mas humilhantemente


desproporcional à tarefa. A 9 de maio, Stroop capturou o que admitiu
ser o QG oculto e, com ele, o vice-líder do comitê de resistência.
Mesmo assim, a resistência prosseguiu, embora a 11 de maio ele fosse
informado por um prisioneiro que todos os lideres se haviam
suicidado. Assim, Stroop decidiu suspender a ação.

Pequenos grupos de prisioneiros caíram-lhe nas mãos e, embora


houvesse ele descoberto que os judeus restantes esperavam continuar
ocultando-se, aguardando que ele se fosse embora, Stroop manteve-se
decidido a terminar a batalha. A 16 de maio, dia em que ela terminou
oficialmente, uma sinagoga e um cemitério judeu foram destruídos por
explosões. No próprio gueto, cerca de 7.000 judeus haviam sido
mortos, e para Treblinka e outros campos foram levas enormes. Mas
durante os meses seguintes ainda se arrancavam resistentes dali.

Himmler, ao tomar conhecimento da ação, através de Stroop, que


lhe enviou um relatório copiosamente ilustrado e encadernado a couro,
ordenou que a área do gueto fosse inteiramente arrasada, inclusive
porões e galerias de esgoto e que a área recuperada fosse transformada
num jardim público. Esse trabalho prosseguiria até o Levante de
Varsóvia dos resistentes poloneses, no ano seguinte, quando o
Exército Vermelho estava a uns 24 km dali.

A Aktion Reinhard terminou oficialmente em outubro de 1943, e


em dezembro do mesmo ano Globocnik apresentou sua conta de
"lucros e perdas", que incluía não só o número de mortos mas também
seus pertences, entre os quais, além de termômetros e despertadores,
havia presentes de amor ou estima: lapiseiras de ouro e prata, jóias,
relógios, cigarreiras, isqueiros. O valor desses objetos totalizava
178.745.000 Reichsmarks.

Entrementes, Himmler ainda estava empenhado em seus


empreendimentos comerciais. A 12 de março de 1943 as SS tinham
fundado mais uma de suas próprias empresas, as indústrias Osti
(Leste) GmbH, com Oswald Pohl na presidência e Odilo Globocnik
como diretor-gerente. Sua finalidade era assumir a direção de algumas
das fábricas de Lubtin, já prontas ou em construção. Uma vez
revogadas as medidas de exceção concedidas aos judeus em atividade
nas fábricas de armamento, eles cairiam totalmente sob o controle das
SS, não só os das fábricas da Polônia e outros locais, como os do
Holocausto 65

próprio Reich, cuja deportação Goering fora obrigado a suspender no


ano anterior.

Tudo foi feito para que estes judeus fossem deslocados


rapidamente para o leste. Três composições de deportação partiram de
Berlim, levando operários das fábricas de munição, entre janeiro e o
fim de fevereiro de 1943, sem chamar atenção. Um quarto trem, que a
27 de fevereiro, segundo o cronograma de Himmler, deveria carregar
judeus famosos do Reich, não partiu, embora as fábricas estivessem
cercadas por unidades do Leibstandarte Adolf Hitler, formações de
guardas escolhidos. O arrebanhamento fracassou, pois os judeus
haviam sido avisados. Quatro dias depois, outra tentativa foi frustrada,
desta vez por tremendo ataque aéreo da RAF contra a capital. Houve
uma demonstração de protesto e resistência quando os nazistas
pretenderam arrastar internos de um asilo de velhos. Toda a ação teve
de ser suspensa. Segundo os dados do recenseamento feito em 1933,
havia na Alemanha de antes da guerra 499.682 judeus. Calcula-se que
123.000 tenham sido mortos.

Cerca de 180.000 judeus foram deportados até maio de 1943, dos


quais 100.000 foram enviados para Theresienstadt, onde cerca de
60.000 morreram. Sempre houve grandes números de ocultos; em
1943, provavelmente montava a 40.000.

Mesmo assim, Globocnik pôde vangloriar-se de que, com judeus


vindos de toda parte, havia 45.000 escravos empregados pela Osti. As
mesmo tempo, ele se queixava que não conseguiam receber ordens.
Himmler odiava ouvir falar de fracassos, e Globocnik começou a cair
em desgraça após alguns negócios escusos, sendo em pouco demitido
e estacionado em sua cidade natal, Trieste. Consta que ele suicidou-se
em junho de 1945.

Em junho de 1943, ele foi autor de outra proposta que não


conseguiu alcançar crédito algum. Propunha o deslocamento dos
judeus de Litzmannstadt, próximo de Lodz, para Lublin, e fechar o
campo de Litzmannstadt. Ali ainda havia gente trabalhando em
indústrias isentas e estas foram imediatamente inundadas de ordens
para salvá-las da "recolonização". Himmler já estava farto da
inabilidade e cupidez de Globocnik. No começo de setembro, Oswald
Pohl encarregou-se das suas Funções, de diretor-gerente dos dez
campos da Osti. Mas Himmler também se cansara destes. A 3 de
novembro, cinco deles foram fechados. Sem que qualquer dos
Segunda Guerra Mundial 66

executivos da Osti soubesse, foi feita uma seleção de elementos


escravizados pela torpe organização e, num dos maiores massacres
isolados da "Solução Final", 16.000 judeus, em questão de horas,
foram metralhados, subindo a 40.000 o número de mortos ao fim da
"festa" do sádico. Durante a cremação dos corpos, toda a cidade de
Lublin ficou coberta de cinzas.

Auschwitz

A primavera de 1942 presenciou outro marco na conclusão da


"Solução Final". Foi a entrada em funcionamento das imensas
câmaras de gás de Auschwitz, podendo, cada uma delas, executar
2.000 vítimas de cada vez. Este campo, mais que qualquer outro,
tornou-se sinônimo de extermínio, de tal modo que, quando se dizia
que alguém "fora para Auschwitz", automaticamente aceitava-se a
idéia de sua morte.

Himmler tinha por Auschwitz preferência sobre os demais campos.


Ele recomendou a Rudolf Höss, quando o encarregou da ampliação do
campo, "que nele incluísse instalações de extermínio, que ele estava
favoravelmente situado com relação a comunicações técnicas e... que
a área era fácil de isolar e camuflar". A camuflagem de que falava era
uma fábrica de borracha sintética (Buna) da I. G. Farben, que
empregava mão-de-obra do campo; embora a alguma distância dele,
ou seja, em Monowitz. Na verdade, Auschwitz era composto de dois
campos distintos. O campo de concentração propriamente dito
denominava-se Auschwitz ou Auschwitz I, e o campo de extermínio,
cerca de três quilômetros dali, em Birkenwald, era chamado
Auschwitz II ou Auschwitz-Birkenau.

Para a sua instalação, cerca de 8.000 hectares de terra haviam sido


desapropriados. Somente homens das SS, ou empregados civis com
passes especiais podiam entrar na área. Todo o equipamento para o
assassinato em massa estava oculto nas florestas e, segundo Höss, "era
impossível vê-lo", o que não é de todo verdade. Suas altas chaminés
eram visíveis da ferrovia, e amontoavam-se nas janelas dos trens os
passageiros, que sabiam de que se tratava, de campos de concentração,
embora não conhecessem a totalidade do horror que ali se encerrava.

Auschwitz I e Auschwitz-Birkenau eram, individualmente, os


maiores campos da Alemanha. Assim, como comandante desse
Holocausto 67

complexo, Höss sentia-se uma pessoa de certa importância. Ele tinha


42 anos, era filho de um lojista de Baden-Baden e se destinava ao
sacerdócio. Aos 22 anos, rompeu com a Igreja e ingressou no NSDAP.
Em 1923 fora condenado à prisão perpétua, por participar do
assassinato de um professor que, segundo se dizia, denunciara um
antigo nazista aos franceses ocupantes.

Na prisão ele conheceu Martin Bormann, que viria a dirigir a


Chancelaria do Partido de Hitler. A subida do partido nazista ao poder,
em 1933, ainda o encontrou na prisão, mas em 1934 ele tornou-se
líder de quarteirão no Campo de Concentração de Dachau - o primeiro
campo -, posição concedida a prisioneiros de confiança. Em 1936, foi
feito segundo-tenente no Totenkopf Verbände, as unidades de guardas
SS dos campos de concentração. Assim, este preso e interno de campo
de concentração cruzou a divisa aparentemente intransponível entre
guardado e guarda e, feito isso, subiu ao posto de tenente-coronel das
SS. Uma fotogratia sua, tirada durante o julgamento a que foi
submetido em Varsóvia, mostra um homem de olhos sensíveis e
ansiosos, no rosto a expressão de um sacerdote consciencioso que, a
despeito da religiosidade que aparenta, é vítima de dúvidas. "Uma
personalidade não de todo deste mundo", disse o Dr. G. M. Gilbert,
psiquiatra de Nuremberg. Höss declarou que, embora cumprisse a
Ordem do Führer sobre os extermínios, era portador de sérias dúvidas.

A área sob seu comando, o grupo de campos de concentração


chamado Auschwitz, ficava perto do Governo-Geral, numa área da
Polônia meridional que fora absorvida na Silésia. Assim, o maior dos
campos da morte estava geograficamente dentro do território do
Reich, conforme definido após a queda da Polônia.

Os esforços para disfarçar a função de Auschwitz-Birkenau não se


limitavam à "camuflagem" externa. Como em outros campos
(Treblinka, por exemplo, tinha uma falsa estação ferroviária), tudo era
feito para não despertar nos recém-chegados qualquer suspeita.
Algumas das câmaras de gás eram subterrâneas; outras ficavam no
nível do crematório. Todas eram internamente equipadas com
chuveiros. O terreno que recobria as câmaras de gás havia sido
gramado e em Birkenau uma orquestra cigana tocava para os
condenados, executando trechos de Franz Lehar e Strauss. Os
gramados eram pontilhados de tubos ventiladores através dos quais
eram lançados os cristais de Zyklon B. A grama e os ventiladores eram
muito comuns na prática militar alemã, não dando, portanto, motivo a
Segunda Guerra Mundial 68

suspeitas, embora mais tarde a função dos bunkers fosse do


conhecimento inclusive dos que estavam prestes a entrar neles.

Mesmo os prédios dos crematórios não eram externamente


desagradáveis, embora o tamanho das chaminés talvez parecesse
desproporcional para a finalidade.

Num dia normal, o aspecto tranqüilo que o campo oferecia só era


quebrado pela fumaça que saía daquelas chaminés, pois tudo,
inclusive as melodias da orquestra cigana, havia sido preparado para
que a destruição de homens, mulheres e crianças se fizesse
ininterrupta e livremente.

No mundo do pós-guerra, a imagem que se tem de Auschwitz,


construída tendo por base o que ali se verificou, é do fluxo continuo
de alimento para as câmaras de gás. Na verdade, havia temporadas de
assassinato, correspondendo aos arrebanhamentos realizados por todo
o Departamento IVA46 do RSHA de Eichmann. Na "temporada", de
quatro a seis semanas de duração, dois ou três trens por dia traziam
cerca de 2.000 pessoas - o bastante para encher as câmaras uma vez.
Antes da partida das levas para Auschwitz, um teletipo era enviado de
Berlim, da Kurfürstenstrasse, n° 116, dando o número de pessoas a
serem esperadas, incorporando a expressão: "destinadas, de acordo
com as diretivas, a tratamento especial". Na chegada, o trem era
passado para o desvio de Birkenau. Como medida de segurança, a
locomotiva era desligada da composição, o pessoal da ferrovia,
mandado sair da área, como também os guardas que haviam
acompanhado o trem. Daí por diante, tudo corria por conta da guarda
do campo. Esses artifícios em geral falhavam, porque os ferroviários
com freqüência conseguiam tirar fotografias das "casas de banho" de
Auschwitz e Treblinka para vender, sabendo perfeitamente bem o que
eram tais casas. Algumas dessas fotos chegaram até o gueto de
Varsóvia.

Para os recém-chegados ao campo, a etapa seguinte era o processo


de seleção, feito por médicos das SS. Durante os dois anos e meio de
vigência do sistema, a seleção era sempre realizada no local e pelas
mesmas razões: qualquer um que pudesse servir de empecilho -
criança de tenra idade, mãe com bebê, mulher grávida, doente, idoso -
era automaticamente transferido da coluna dos vivos para a dos que
morreriam imediatamente, muitas vezes por um simples gesto de
bengala.
Holocausto 69

Os que recebiam a trégua temporária eram então levados para a


área de trabalho de Birkenau ou para o campo principal de Auschwitz.

Os escolhidos para a morte, aos quais às vezes se juntavam alguns


que já se encontravam nos campos, eram então levados para um grupo
de prédios onde lhes mandavam despir-se para um banho de chuveiro
para "despiolhar"; então desciam uma rampa que levava à câmara de
gás, se esta era subterrânea, ou percorriam um corredor aberto,
cercado de arame farpado de ambos os lados, se a câmara era na
superfície. Uma vez no interior da câmara, grandes portas de ferro
fechavam-se com estrondo e eles esperavam que a água caísse dos
chuveiros instalados no teto.

Do lado de fora, no gramado, as tampas, tipo cogumelo, dos


ventiladores eram retiradas e à ordem: "Dêem-lhes a comida", os
cristais de cianeto eram lançados nos tubos que levavam ao interior da
câmara e que a percorriam em pilastras de metal perfurado. Depois de
algum tempo, por efeito do gás sentido lá dentro, todos tentavam
escapar; as pessoas se atiravam contra as portas, arranhando-se,
atacando-se mutuamente. A morte demorava de cinco a quinze
minutos.

Quando tudo lá dentro silenciava, quando os gritos de desespero se


calavam, sinal de que a morte pusera fim à agonia dos condenados,
ligavam-se então os exaustores e o Comando Especial, composto de
judeus, que terminariam também nas câmaras, usando máscaras contra
gás e botas, reabriam as portas. Os mortos, agora uma compacta
massa, eram separados, com cordas e ganchos, para que lhes fossem
retirados dentes e obturações de ouro, cabelos e óculos. Então os
corpos eram levados para as fornalhas do crematório, por elevadores
ou vagões ferroviários, dependendo da câmara usada. Eliminados os
cadáveres, os ossos eram reduzidos a pó num moinho (por conselho de
Blobel).

Este é o processo ao qual denominaram Sonderbehandlug -


Tratamento Especial.

Contudo, a capacidade de Auschwitz é que o transformou no local


predileto para a aplicação internacional da "Solução Final". O que ali
ocorria em nada diferia do que se passava nos demais campos de
Segunda Guerra Mundial 70

extermínio, exceto quanto ao vulto da chacina. E isto marcou-o na


memória dos povos.

Tanto na Grécia, como na poesia existencialista da França, o nome


aparece na "nova música" a ser cantada com acompanhamento de
bouzouki. Pois ali, de um total estimado em 67.000 judeus antes da
guerra, pouco mais de 10.000 sobreviveram. Só de Salônica, onde
havia a maior das comunidades de judeus gregos, cerca de 45.000
foram levados.

Na Iugoslávia, que, não estava toda sob ocupação alemã,


provavelmente 55.000 judeus pereceram. A cidade de Belgrado foi
declarada livre de judeus em julho de 1941. Na Croácia, que se fizera
estado independente, cerca de 20.000 judeus se refugiaram com os
italianos, que tinham interesses na área. Os alemães iniciaram esforços
diplomáticos para recuperá-los, mas seus anfitriões introduziram toda
sorte de atrasos e confusões, de modo que, no fim, os alemães tiveram
de contentar-se com os poucos que tinham conseguido agarrar.

A ordem de Hitler fora bem específica: todos os judeus da Europa


deviam ser aniquilados. Assim, não só no leste como também no
oeste, o nome de Auschwitz ressoa como um grito terrível saído de
dentro de uma floresta escura.

A mais importante das nações do oeste era, naturalmente, a França,


e em 1942 na Kurfürstenstrasse n° 116 ainda havia preocupação com a
falta de entusiasmo daquele país pela "Solução Final". O RSNA
mostrava-se de certo modo culpado por não ter insistido, em maio de
1940, no tipo de acordo que funcionara de modo tão admirável na
Rússia, onde seus Einsatzgruppen eram independentes do exército e
resolveram por si próprios o problema judeu. Na França e na Bélgica
foi difícil sequer introduzir a Estrela de Davi, o que só foi feito em
junho de 1942, mesmo assim diante de oposição.

Para tentar pôr as coisas nos eixos, em outubro de 1941 registrou-


se uma tentativa confusa de incendiar duas sinagogas, para que se
tivesse a impressão de que os franceses queriam livrar-se também dos
judeus. Ninguém se deixou iludir, descobrindo-se que a tentativa fora
causada por um francês a serviço da Gestapo. Isto quase se
transformou num incidente internacional.
Holocausto 71

Quando, contudo, houve uma série de ataques a soldados alemães,


o fato foi bem aproveitado pelos nazistas: 1.100 judeus e 500
comunistas foram deportados para "trabalhos forçados" no leste.

No oeste os alemães não haviam criado guetos. Eles persuadiram


os governos dos paises sob seu domínio a abrir "campos de
internação" locais, que, de várias maneiras, serviram aos interesses
dos colaboracionistas que, embora colaboracionistas, não apoiavam
inteiramente os excessos do antisemitismo nazista. Enquanto os
judeus internados estivessem em território nacional, eles achavam que
tudo estava bem, e até mesmo os próprios judeus, livres e internados,
compartilhavam dessa ilusão. Devido a isso, os alemães tiveram êxito,
até que seus verdadeiros planos se tornaram conhecidos, isto é,
conseguir arrebanhar e encarcerar grande número deles nos campos,
de onde poderiam ser tranqüilamente levados para serem
exterminados.

Na França Ocupada havia um desses campos, em Drancy, e dali,


entre abril e junho, saíram cinco trens, levando 5.000 pessoas cada
um, para Auschwitz.

Contudo, Eichmann estava de olho numa leva bem maior e a 16 de


julho realizou-se um arrebanhamento muito bem planejado. Neste,
esperava-se que pelo menos 22.000 judeus apátridas seriam recolhidos
em Paris. Na realidade, a operação conseguiu pouco menos de 13.000,
incluindo umas 4.000 crianças. Desses 13.000, 6.000 foram mandados
diretamente para Drancy; o restante, inclusive as crianças, passaram
cinco dias numa praça de esporte, o "Vélodrome d'Hiver". Os adultos
foram então despachados para Auschwitz e as crianças para Drancy.
No devido tempo, também elas foram enviadas para Auschwitz, com
gendarmes franceses, para sua eterna vergonha, ajudando a arrastar os
pequeninos em pânico para os trens da morte. (A gendarmeria
francesa hoje ostenta orgulhosa a fourragère vermelha da Legião de
Honra, pela sua "luta contra os alemães"!) Em novembro, ferroviários
belgas examinaram vagões que haviam retornado vazios do leste e
encontraram os corpos de 25 crianças de dois a quatro anos de idade.

Estes eram os judeus da cidade mais civilizada do mundo - Paris -


sob o Terceiro Reich de Hitler.

Pelo final do verão, 25.000 judeus haviam sido deportados da


França Ocupada, embora nenhum tivesse deixado o Território Não-
Segunda Guerra Mundial 72

Ocupado de Vichy. Esforços para convencer o governo de Pétain,


através do seu Ministro do Exterior, Laval, para revogar as
naturalizações que tornavam os judeus cidadãos franceses, em geral
foram inúteis. Eichmann podia vituperar quanto quisesse ao ver os
trens retornar vazios ou serem cancelados por falta de carga. Este
crime não pode ser imputado a Laval, embora ele tivesse tornado
insuportável a vida dos judeus franceses, através de seu Comissário de
Assuntos Judaicos, Pellepoix.

Mesmo após a ocupação de toda a França, em novembro de 1942,


os judeus ainda podiam encontrar santuário na zona de ocupação
italiana, no sul. Pois, embora Mussolini tivesse adotado medidas
contra os judeus já em 1938, estas encontraram tão reduzido apoio no
seio do povo, que jamais puderam ser postas em vigor.

País vizinho da França, na Bélgica o campo de internação era a


Caserna Dossin, em Malines. De 4 de agosto de 1942 em diante, um
serviço de trens destinado a levar judeus para Auschwitz estava
funcionando, mas as tentativas de arrebanhamento mostravam-se
difíceis, porque entre os belgas não havia hostilidade para com os
judeus. Serras, com que os prisioneiros podiam abrir buracos nos
trens, eram-lhes contrabandeadas; ferroviários conseguiam deixar as
portas de alguns vagões abertas; e uma vez um trem caiu numa
emboscada organizada por belgas e 150 judeus escaparam. Mesmo
assim, cerca de 25.000 deles foram deportados.

Na Holanda, na segunda quinzena de julho de 1942, 5.742 judeus


foram levados para Auschwitz, retirados do campo de Westbork.
Contudo, como acontecia na Bélgica, a deportação estava sendo um
trabalho difícil. Muitos judeus começaram a ser escondidos em casas
de famílias holandesas (o mais famoso desses judeus foi Anna Frank,
uma frágil menina que permaneceu oculta num sótão com a família e
que escreveu um diário comovente, bastante divulgado). Depois de
buscarem judeus por todos os cantos, os alemães se voltaram contra os
asilos de velhos; desamparados, orfanatos e hospícios, para que os
trens não voltassem vazios, preocupação única dos nazistas.

Foram feitas também tentativas de impor a "Solução Final" na


Escandinávia ocupada. Na Noruega, cerca de 725 judeus foram
arrebanhados pela polícia alemã e pela milícia de Quisling em
novembro de 1942. Destes, só 26 não foram deportados. Outros 158
seguiram em março de 1943. Apenas 13 sobreviveram à guerra.
Holocausto 73

Contudo, um número maior, cerca de 900, conseguiu escapar


cruzando a fronteira da Suécia neutra, ajudados pelo underground
norueguês.

Na Dinamarca, país neutro, mas ocupado pelos alemães, esforços


para usar pressões diplomáticas e medidas destinadas a impor a
"Solução Final" fracassaram quase que totalmente. Duas razões
principais concorreram para isso: uma foi a resoluta posição do Rei
Cristiano - ele disse que se a Estrela de Davi fosse introduzida, ele e
sua corte seriam os primeiros a usá-la, e passou a comparecer às festas
religiosas judias nas sinagogas de Copenhague. A segunda razão do
fracasso era o fato de que, como na Noruega, os dinamarqueses
conseguiram contrabandear muitos judeus para fora do país.

Os esforços de Eichmann não se limitavam sos países submetidos


pela Alemanha. Através do Departamento Deutschland III, do
Ministério das Relações Exteriores de Ribbentrop, foram feitas
pressões sobre os aliados da Alemanha na guerra com a Rússia e até
mesmo sobre países neutros, como Espanha e Portugal - baldadas em
ambos os casos. Em Gross Wannsee, concordara-se que os governos
eslovaco, croata, búlgaro e húngaro seriam abordados e informados de
que os alemães estavam dispostos a livra-los dos seus judeus. Na
Hungria, país aliado à Alemanha contra a Rússia, cerca de 18.000
judeus, entre os muitos que foram deportados para a Europa oriental,
pereceram. Mesmo em fins de 1944 e começos de 1945, de 30.000 a
40.000 judeus da Hungria, inclusive mulheres, crianças e velhos,
foram deportados, alguns para ajudar na construção da Muralha
Sudeste, destinada a impedir que os russos chegassem a Viena. Poucos
conseguiram retornar. As negociações para arrebanhar mais ainda
prosseguiam quando a Hungria se rendeu aos russos e Eichmann, que
estava na cidade, só no último instante escapou de Budapeste.

Na Romênia, outra aliada da Alemanha, com uma população de


692.000 judeus, cerca de 220.000 devem ter morrido. Os judeus
búlgaros tiveram muito mais sorte. Da população judia de 50.000, em
1939, 46.500 sobreviveram até o fim da guerra. As tentativas de impor
a "Solução Final" encontraram toda sorte de obstáculos, inclusive
manifestações públicas quando judeus eram deportados. Dizem que o
Rabino de Sófia esteve oculto na casa do Arcebispo Metropolitano
Ortodoxo, Stefan.
Segunda Guerra Mundial 74

Ribbentrop enviou representações diplomáticas à Eslováquia, o


satélite criado pelo desmembramento da Tchecoslováquia após o
acordo de Munique. Cerca de 17.000 judeus do sexo masculino foram
deportados para Auschwitz em março de 1942, supostamente para
trabalhar, bem como 10.000 outros, mais tarde, dos quais 7.000 eram
crianças. De tal forma as autoridades e os judeus se deixaram
convencer de que se destinavam a trabalhar, que as famílias dos
deportados acabaram pedindo para os acompanhar. Pelo final de
junho, 52.000 pessoas haviam partido, mas, ao terminar a guerra, só
284 sobreviventes havia. Depois de reiterados pedidos para visitar os
campos de trabalho, o governo eslovaco, que era predominantemente
católico, foi avisado, através do Núncio Papal, sobre o que estava
acontecendo com os deportados. O processo foi então suspenso, mas
os alemães tiveram de ser subornados. A Wisliceny, representante de
Eichmann, prometeram 55 mil dólares se ele fosse a Berlim para
suspender os transportes. Só para se garantir de que receberia o
dinheiro, outros 3.000 judeus foram tirados do país às escondidas.

Na Itália também foram feitas demarches no sentido do banimento


dos judeus, mas não obtiveram respostas favoráveis. Só em 1943,
quando os alemães a dominaram, após o armistício, é que os judeus
passaram a ser presos. Então, cerca de 10.000 foram deportados. Nem
mesmo Roma, a Cidade Eterna, foi poupada. Bem nas barbas do
Vaticano, que nada pôde fazer no sentido de salvá-los, 615 foram
levados para Auschwitz.

Dada a quantidade, de toda a Europa, de judeus levados às câmaras


de gás de Treblinka, Sobibor, Majdanek, Belsec, Chelmno e sobretudo
Auschwitz-Birkenau, comumente as vítimas eram forçadas a entrar
nas câmaras da morte de braços erguidos, para que nelas coubesse o
máximo, sendo-lhes ainda jogadas por cima as crianças, inclusive nas
grandes câmaras para 2.000 vítimas, como as de Auschwitz. Os que
sobravam, por falta de espaço nesses recintos, eram rapidamente
alinhados pelos Comandos Especiais, a golpes de cassetete e chicote,
para receberem o tiro na nuca, suplício, afinal, menos doloroso que a
aflitiva morte nas câmaras de gás.

Nesses períodos, o número de cadáveres era excessivo para a


capacidade dos crematórios. Aí então os corpos das vítimas eram
arrastados para enormes buracos e incendiados a gasolina.
Holocausto 75

Pelo que deixou transparecer quando submetido a interrogatório


em Nuremberg, Höss, o homem de olhos ansiosos que tanto se
orgulhava da incumbência de dar cumprimento à ordem do Führer, de
promover a eliminação sistemática de seres humanos, não agüentava
lá muito bem o dantesco. Em geral, ao chefe de segurança de campo,
Capitão Fritzsch, passava a tarefa de dirigir o processo. Às vezes era
obrigado a estar presente. Então: "Eu tinha de observar friamente
enquanto mães, com filhos, rindo ou chorando, entravam nas câmaras
de gás... Minha pena era tão grande que eu tinha vontade de
desaparecer dali; mas não podia mostrar o menor traço de emoção".

Durante o interrogatório, perguntaram-lhe sobre isso: "Como lhe


era possível executar esses atos, a despeito da pena que sentia?"

"Em vista das dúvidas que tinha, o único e decisivo argumento


eram a ordem estrita do Reichsführer Himmler e a razão que
apresentava para emiti-la".

Se nos falha o sentimento de pena quando comparamos o destino


de Höss com o dos que estavam à sua mercê, podemos "consolar-nos"
com a idéia de que Himmler sempre foi profundamente compassivo
para com Höss e sua espécie na terrível tarefa que lhes pedira para
empreender. Assim falou ele numa reunião de Altos Líderes das SS e
da Polícia em 1943: "A maioria de vocês sabe o que significa quando
uma centena de cadáveres jaz largada lado a lado - ou quinhentos - ou
mil. Mas ao mesmo tempo terem-se mantido firmes - à parte as
exceções causadas pela fraqueza humana - terem permanecido homens
decentes... Esta é uma página de glória na nossa história que jamais
foi escrita e jamais será escrita pois deve permanecer secreta".

Mas, apesar do ininterrupto funcionamento dos campos de


extermínio, do sistema ferroviário de Eichmann abrangendo a Europa
inteira, com os trens da morte correndo no horário, o processo não
chegara ao fim. Em uns oito grandes guetos russos e poloneses a
liquidação prosseguia.

O primeiro a ser visado foi Lvow, onde a "recolonização" começou


a 21 de junho e terminou seis dias depois. Mas os judeus de Lwow
não se entregaram sem luta, e ali as armas que conseguiram foram
mais terríveis do que as pistolas dos resistentes de Varsóvia. Piolhos
infeccionados com tifo exantemático tinham surgido no gueto e cerca
Segunda Guerra Mundial 76

de 120 dos homens das SS que executavam a ação foram afetados pelo
mal.

Isto não ajudou muito a prolongar a vida dos judeus de Lwow.


Num local de fuzilamento situado nos arredores da cidade, a "Colina
de Areia", quase toda a população do gueto, de 20.000 pessoas,
morreu. Escaparam uns poucos, que foram encontrados pelo Exército
Vermelho.

De Sosnowiece, o gueto seguinte a ser eliminado, cerca de 25.000


- virtualmente todos os judeus dali - foram mandados para Auschwitz.
Destes, só 500 não foram mortos de pronto. A ação durou uma
semana.

Em Bialystok, onde o processo teve início a 21 de agosto, o


progresso foi mais lento. Os campos de extermínio encontravam-se
abarrotados; além disso, muitos judeus estavam trabalhando nas
fábricas de tecidos da cidade, consideradas essenciais. Quando eles
foram, finalmente, arrebanhados, registrou-se uma tentativa de fuga,
que se frustrou, sofrendo os judeus baixas pesadas. Os sobreviventes -
cerca de 25.000 - foram todos enviados para Treblinka.

Dos guetos poloneses, só restava Lodz, com uma população de


85.000. Das comunidades da Rússia e dos Estados Bálticos, a primeira
a desaparecer foi Minsk, a 14 de setembro. Ali viviam 8.500
sobreviventes do massacre feito pelo Einsatzgruppe, que se foram
reduzindo sos poucos, nos meses seguintes, com o uso dos caminhões
de gás. Da mesma forma desapareceram os judeus ricos daquela
comunidade, deixados para o fim da operação.

Em Vilna, na Lituânia, havia cerca de 20.000 dos quais alguns


haviam sido convencidos a ir para os poços da morte em Ponari, já em
atividade, sob a alegação de que seriam reinstalados no gueto de
Kovno. Houve uma tentativa de resistência quando o programa de
recolonizaçâo começou, que se resumiu numa refrega na estação
ferroviária. A maioria foi para os campos. Quando os russos tomaram
a cidade, encontraram uns 600 judeus ocultos nos esgotos.

A resistência em Riga não passou de falatório e os 15.000 judeus


da cidade foram reduzidos para 4.000. Cerca de metade foi para os
campos de trabalho. O resto, embarcado em trens que, depois de
muitos desvios, saltando de uma linha para outra, cumpriram um
Holocausto 77

longo percurso até Auschwitz, chegando com parte da carga humana


já vitimada pelo frio e pela fome.

O gueto de Kovno continha cerca de 20.000 pessoas, 7.000 das


quais provindas da Alemanha e da Lituânia. Quando já se
encontravam reduzidas á poucos milhares, o presidente do Conselho
Judeu implorou para que eles pudessem esperar ali pelos russos. A
princípio a Gestapo mostrou-se disposta a concordar, mas no último
instante foram todos despachados para a Alemanha.

Chegara a vez de Lodz, onde a evacuação em massa começou em


agosto de 1944. Pelo meio do mês, a população, faminta e
aterrorizada, fora reduzida de 85.000 para 61.000. Durante as semanas
seguintes também eles foram distribuídos pelos campos.

A 17 de dezembro de 1942, a Declaração das Nações Unidas de


que os que praticavam o extermínio dos judeus seriam punidos, foi
lida na Câmara dos Comuns, em Londres, cujos membros ficaram em
silêncio. O gesto, ainda que tocante, era totalmente vazio, pois um ano
antes um vapor havia deixado o porto romeno de Constanza, com 769
refugiados judeus, entre os quais 70 crianças, com destino a Haifa, na
Palestina. O navio sofreu um problema de máquina quando ao largo
de Istambul e, por não terem os refugiados visto de imigração, as
autoridades turcas não permitiram que desembarcassem até que os
britânicos lhes dessem permissão de prosseguir imediatamente para a
Palestina, mas isto lhes foi recusado categoricamente. Depois de dez
semanas, o navio foi levado para o altomar por rebocadores turcos,
onde se rompeu e afundou. Duas pessoas chegaram à praia; as
restantes foram tragadas pelo mar.

Depois de mais de um ano de genocídio maciço, cujos detalhes


eram perfeitamente conhecidos do governo, não havia indícios de que
a cruel política estipulada pelo Documento Branco Britânico de 1939,
restringindo a entrada de judeus na Palestina, viesse a sofrer qualquer
alteração.

Saindo do caos

A possibilidade de derrota da Alemanha, que já em 1942 se


deixava entrever, pelo outono de 1944 se mostrava plenamente
inevitável. As esperanças de vitória dos Aliados aumentaram após os
Segunda Guerra Mundial 78

desembarques do Dia "D", a 6 de junho, e a instalação dos exércitos


aliados no continente europeu.

Os campos de extermínio já vinham funcionando há dois anos,


consumindo numerosíssimas vidas humanas. Enquanto isso, o
Exército Vermelho vinha avançando sistematicamente, expulsando os
alemães de territórios conquistados mais recentemente e passando de
volta pela Polônia e pelos países aliados de Hitler, Hungria, Romênia,
Bulgária. A 24 de julho, o Exército Vermelho entrou em Lublin - onde
não havia mais judeus - e a imprensa aliada publicou as primeiras
histórias dos campos de concentração e do maciço extermínio neles
verificado, pois os correspondentes de guerra puderam ver as
pequenas câmaras de gás (Majdanek, o campo de Lublin, não chegara
a ser um grande centro de extermínio), os crematórios, as latas de
Zyklon B e ossos humanos.

O que restava da população judia confinada na linha do avanço dos


russos não lhes cairia nas mãos, desde que Hitler pudesse evitar. Eles
foram tirados do alcance da libertação e levados para a Alemanha.
Onde isso não podia ser feito, os judeus eram executados
sumariamente. Os deslocamentos para oeste haviam começado já no
verão, quando 27.000 judeus foram evacuados, em julho, de nove
campos, de Radom e Cracóvia, e quase 4.000 do campo aberto no
antigo gueto de Varsóvia, bem como de outros. Durante a marcha,
centenas foram metralhados, e os que sobreviveram foram diretamente
para Auschwitz.

Quando isto não era possível, os migrantes eram simplesmente


amontoados nos campos de concentração alemães, nos quais havia
cerca de 500.000 pessoas - número este que, naturalmente, as seleções
e a "diminuição natural" vinham reduzindo. Contudo, em meados do
verão de 1944, julgavam os nazistas poderem colocar o dobro desse
número nos campos, mas somente uns 100.000 judeus foram somados
sos ali admitidos, sobretudo porque os alemães temiam epidemias, se
mais gente fosse confinada em tais campos.

Os cativos estavam, a essa altura, perfeitamente a par do que os


aguardava. Se não morressem de fome, de frio ou de doença, ou se
não caíssem durante as longas marchas a que eram obrigados, quando
eram fuzilados, seriam exterminados em massa. Afinal de contas,
Auschwitz estava funcionando a todo vapor nessa época, e foi em
maio (antes que o Dia "D" mudasse a direção da guerra) que Himmler
Holocausto 79

falou com franqueza incomum sobre a questão judaica. Os judeus,


disse ele numa reunião de oficiais nazistas, em Posen, deveriam ser
mortos, homens, mulheres e crianças. "Fomos obrigados a admitir que
essa gente tem de desaparecer da face da terra", disse-lhes ele, como
se anunciasse novas providências contra uma peste.

Mas as coisas não eram como pareciam ser.

Himmler pensara profundamente sobre seu próprio futuro numa


Alemanha derrotada e submetida às Nações Unidas. Em particular,
pensava nos seus reféns. Já se inaugurara um campo de troca no
campo de concentração de Bergen-Belsen e, em maio, o mês do seu
discurso, Eichmann teve um encontro com Joel Brand, da Comissão
Sionista de Ajuda de Budapeste, durante o qual foi discutida a troca de
10.000 caminhões pesados, para a máquina de guerra alemã, pela vida
de 700.000 judeus húngaros. Os veículos seriam fornecidos pelos
Aliados através de Salônica, mas o plano deu em nada, quando a
história foi publicada pela imprensa aliada.

Então, em julho, houve outra proposta, desta vez feita por outro
sionista de Budapeste, o Dr. Reszoe Kastner. Era a troca de 100.000
vidas judaicas por cinco milhões de francos suíços. Himmler
examinou os termos da proposta e contrapropôs: 30.000 judeus,
fisicamente perfeitos, por seis milhões de dólares. Os judeus não
seriam entregues, mas "guardados" no campo de trabalho austríaco,
Strasshof. Só foram conseguidos 1.800.000 dólares e, por este preço,
9.000 judeus foram "guardados".

As negociações sofreram nova interrupção, quando Kastner foi


informado de que Himmler estava decidido a não deixar um só judeu
sair da Europa, embora talvez houvesse possibilidade de acordo sobre
os judeus de Bergen-Belsen, entre os quais se encontravam 1.684
judeus de Budapeste. As conversações foram reiniciadas, dessa vez na
Suíça, e, como demonstração de boa-fé do lado alemão, cerca de 318
desse grupo de judeus de Budapeste foram levados até o outro lado da
fronteira, na Basiléia. Os alemães formularam então uma proposta
para suspender não só as deportações, como também os
envenenamentos a gás em troca de material bélico. Mas o negociador
judeu não estava autorizado a aceitar a proposta. Em vez disso, ele fez
uma oferta de 15.000.000 de francos suíços pela suspensão do
banimento de judeus da Tchecoslováquia e Hungria, seguido da
entrega à Suíça dos que restavam em Bergen-Belsen.
Segunda Guerra Mundial 80

O dinheiro para este fim (ao todo 20.000.000 de francos suíços) foi
coletado nos Estados Unidos, em campanhas de caridade, e a
transação poderia ter sido completada com sucesso, mas Cordell Hull,
Secretário de Estado dos Estados Unidos, só consentia na
transferência de cinco milhões para a Suíça. Edward Stettinius Jr., que
substituiu Hull pouco depois; cancelou inclusive a transferência dos
cinco milhões, e somente a 6 de fevereiro é que Himmler os recebeu,
através do Presidente da Suíça, Jean-Marie Musi. Um total de 2.684
judeus foi então transferido para a Suíça. Durante o inverno
providenciou-se um encontro entre Himmler e Musi. Ainda em troca
de dinheiro, em lugar de equipamento e suprimentos médicos; que
Himmler exigira originariamente, 1.200 judeus seriam enviados, por
trem, para a Suíça todas as quinzenas. Os termos do negócio previam
inclusive a criação de um plano de propaganda, a ser feito na Europa,
em que a Alemanha deveria deixar de ser considerada como assassina
dos judeus.

O plano chegou aos ouvidos de um Hitler enfurecido e ultrajado,


que disse a Himmler que ordenasse a destruição de todos os campos
de concentração e extermínio, em caso de perigo de serem tomados
pelo inimigo, sendo antes mortos todos os seus internos.

Mas as negociações inconcludentes e sobretudo o desejo de


Himmler de "mudar sua imagem" resultaram em algum bem. Em
outubro de 1944, as seleções para a câmara de gás em Auschwitz
foram suspensas. Em setembro, uma missão da Cruz Vermelha
Internacional tivera permissão de entrar no campo, embora só para
uma entrevista com Baer, o comandante que substituíra Höss. Mas os
prisioneiros de guerra britânicos que trabalhavam na fábrica de
borracha sintética, e que foram entrevistados, chamaram a atenção da
missão para os envenenamentos a gás, mas quando os seus integrantes
tentaram junto aos internos confirmar a denúncia recebida, eles se
recusaram a falar. Mas após a visita da missão as condições no campo
melhoraram.

Então, em novembro, Himmler deu ordens para que os crematórios


fossem desmontados. Auschwitz chegava ao fim, depois de dois anos
e meio de atividade incessante, como usina da morte. Höss gabara-se
de ter matado 2.500.000 judeus. Porém, o número mais certo, ainda
que horrível, é de 840.000, provindos da Bélgica, Croácia, França,
Alemanha, Tchecoslováquia, Grécia, Holanda, Hungria, Itália,
Holocausto 81

Luxemburgo, Noruega, Polônia, do Báltico e da Eslováquia, tendo


fornecido o maior contingente a Hungria, 380.000, e cerca de 180.000
da Polônia e do Báltico. A grande maioria destes, entre 550.0000 e
600.000, foi seguramente envenenada a gás ao chegar, e "selecionada"
tão logo os trens dos desgraçados alcançavam o desvio de Birkenau.
Mas, além desses, numerosíssimos outros internos daquele campo
morreram na câmara de gás, por serem classificados como "incapazes
para o trabalho".

Os judeus do Comando Especial, que cuidava dos cadáveres em


Auschwitz após o envenenamento a gás, sabiam perfeitamente o
destino que os aguardava com a nova ordem de Himmler e tentaram
uma revolta que fracassou. Em fins de novembro, foram levados para
o Birkenwald e fuzilados.

À medida que os russos se aproximavam, os internos dos campos


começaram a ser distribuídos por outros, situados na Alemanha. Os
primeiros deslocamentos foram relativamente organizados; grande
número de mulheres foram transferidas de Birkenau para Bergen-
Belsen, campo que Josef Kramer, comandante de Birkenau ao tempo
em que era o principal centro de extermínio, recebera ordens de
organizar.

Mais tarde, com 64.000 pessoas ainda no campo e com os canhões


russos já audíveis, a evacuação tornou-se caótica. Milhares viajavam
apenas em uniformes da prisão, em vagões abertos e em pleno
inverno. Outros iam a pé. Distribuíram-nos por Dachau, Dora,
Mauthausen, Ravensbrück, Sachsenhausen e Buchenwald, que
recebeu a maior quantidade, ou seja, 13.886 cativos.

Quando os russos chegaram a Auschwitz, a 26 de janeiro,


encontraram apenas 2.819 inválidos nos campos, à maioria dos quais
puderam devolver a saúde.

Havia então no Reich sitiado cerca de 700.000 internos em campos


de concentração. A vida de todos eles piorava dia a dia,
proporcionalmente à deterioração das condições vigentes na
Alemanha. E a situação em nada melhorou com as demarches
secretamente desenvolvidas por Himmler e outros líderes das SS junto
a autoridades aliadas com o objetivo de salvar a pele. Muitas vezes
essas atividades ocultas resultavam em conflito com seus interesses ou
com os pontos de vista de algum superidealista da "Solução Final",
Segunda Guerra Mundial 82

como Eichmann, que faria o máximo para sabotar os planos dos seus
colegas.

O próprio Himmler estava então empenhado em novas


negociações destinadas a evitar a ordem de destruir os campos e os
que neles se encontravam. A 12 de março ele concordou em suspender
as execuções e entregar os campos intactos. A 19 de abril, o Dr.
Norberg Masur, diretor do setor suíço do Congresso Judeu Mundial,
chegou a Berlim para tratar do problema judeu com seu arquiinimigo.
Himmler, ainda aterrorizado com a possibilidade de que Hitler viesse
a descobrir o que ele fizera, não podia prender-se a coisas específicas,
mas acordaram nalguns pontos, com a ajuda de Kersten, o massagista
de Himmler, que já tanta coisa havia feito para ajudar nessas
negociações salva-vidas.

Mas o jogo de xadrez com vidas humanas prosseguia. Os


representantes da Cruz Vermelha suíça estavam tentando inutilmente
entrar nos campos, falar abertamente com os internos e fazer uma
estimativa do tipo de ajuda necessária. O representante da Cruz
Vermelha sueca, Conde Folke Bernadotte, conseguiu penetrar em
Neuengamme, próximo de Hamburgo, mas o máximo que pôde fazer
foi conversar com um interno de Oranienburg, na presença dos seus
carcereiros e de importantes oficiais das SS.

Naturalmente, quem primeiro entrou em campo de concentração


alemão foram os russos. Os alemães tentaram livrar-se das acusações
que lhes foram feitas alegando que não passavam de propaganda
comunista, referindo a descoberta que fizeram na floresta de Katyn, no
ano anterior quando descobriram os cadáveres de milhares de oficiais
poloneses assassinados pelos soviéticos. Mas outra força aliada se
aproximava de Buchenwald. Eram os americanos e, a 3 de abril, teve
início uma evacuação em massa. Mais de metade dos 48.000
confinados no campo principal foi mandada para o sul da Alemanha,
de trem. Alguns dias depois, 4.500 judeus de um dos campos-satélites
também partiram; 1.500 estavam mortos ao chegarem a Dachau. Tudo
isso a despeito da promessa de Himmler de que o campo seria
entregue intacto.

Mais ou menos ao mesmo tempo, soldados britânicos


aproximaram-se de Bergen-Belsen. As descobertas feitas ali tornaram-
se famosas. No Campo I, 40.000 pessoas foram encontradas vivendo
em meio a 13.000 cadáveres insepultos, mas em condições tão ruins
Holocausto 83

que muitos morreram após a libertação. O tifo, que por ali grassava
violento, vitimou muitos internos, principalmente judeus da Hungria e
Polônia, que eram maioria ali.

Os Aliados têm sido criticados, de certa maneira justificadamente,


por se terem aproveitado logo das descobertas de campos de
concentração para fazer propaganda. Com isso, fizeram que os
alemães decidissem não abandonar as áreas em que havia campos de
concentração sem antes os evacuar, se possível. E o problema fugira
das mãos de Himmler, pois Hitler ordenara que todo interno dos
campos que pudesse andar tinha de ser deslocado.

Quando a evacuação não fosse possível, teriam de ser


massacrados. Isto quase se realizou em Dachau, pois havia um plano
para colocar ali os internos dos campos circundantes e bombardeá-los
do ar. Mas os acontecimentos foram mais rápidos. Os americanos, a
24 de abril, entraram em Dachau, onde encontraram numerosos
semivivos e semimortos.

Em Theresienstadt, onde Eichmann prometera ao representante da


Cruz Vermelha que não havia mais uma única deportação, soube-se, a
12 de abril, que todos os arquivos do campo tinham sido destruídos,
dando a impressão de que se pretendia fazer um massacre. O campo
estava sufocantemente lotado de evacuados de quatro outros campos.
Contudo, graças ás providências tomadas pela Cruz Vermelha, que de
imediato hasteou sua bandeira no campo, os que ali estavam foram
salvos da execução ou evacuação.

Por toda a Alemanha, delegados da Cruz Vermelha lutavam então


por salvar o que restava das populações dos campos de concentração.
Em Mauthausen, superlotado, como todos os outros, de gente vinda de
outros campos, eles conseguiram impedir a concretização do plano de
pôr os prisioneiros numa fábrica subterrânea e fazê-la ir pelos ares. A
8 de maio, o campo foi entregue às tropas de Patton.

Apesar de se encontrar a Alemanha já com os dias contados, as


evacuações não paravam. Em Oranienburg, os prisioneiros eram
removidos praticamente aos olhos dos russos e com os agentes da
Cruz Vermelha sueca impotentes para agir. Tudo o que podiam fazer
era acompanhar a coluna, fornecendo-lhe comida e transportando os
doentes para trás das linhas aliadas. Ao mesmo tempo, de
Sachsenhausen e Ravensbrück, colunas idênticas, de homens e
Segunda Guerra Mundial 84

mulheres famintos, esgotados e desesperançados, estavam sendo


levados para os últimos bolsões de resistência nazistas. Contudo, dera-
se uma ordem que modificara a vigente nessas ocasiões: os
desgarrados não deviam ser fuzilados. Eram recolhidos por caminhões
da Cruz Vermelha.

Quando seus salvadores se debruçavam sobre eles, para levantá-


los, os prisioneiros, já por hábito, imploravam que não os fuzilassem.

A tragédia teve prosseguimento até os últimos dias de abril - dias


que Hitler dedicou á feitura de seu testamento, em que instava seus
sucessores a prosseguir na política por ele adotada.

Alguns dias mais tarde a guerra na Europa terminava.

Hitler estava morto, assim como Heydrich e Himmler.


Kaltenbrunner em breve seria julgado em Nuremberg e, depois,
enforcado. Eichmann desaparecera, e também Höss, por algum tempo.
Muitos seriam descobertos nos anos seguintes; alguns jamais o foram.

Mortos também se encontravam numerosíssimos judeus da


Europa. Em 1939, segundo os números constantes do anuário judeu
americano publicado em 1946-1947, as populações judias da
Alemanha, seus aliados, satélites e nações submetidas montavam a
9.282.500. Por volta de 1946 não iam além de 3.169.000, uma queda
de quase dois terços. Os dois países em que se registraram as mais
acentuadas baixas foram, como seria de esperar, a Áustria e a
Alemanha. A população judaica alemã de 1939, de 240.000 caíra para
um vinte avos daquele número; a população austríaca, de 60.000
desceu para um doze avos. Mas não se pode atribuir o fato
exclusivamente à "Solução Final". No tocante à Alemanha e à Áustria,
houve o concurso também do êxodo maciço registrado após a guerra.
Sem nos determos no exame pormenorizado do número de baixas
nação por nação, por ser de certo modo especulativo, fontes as mais
fidedignas situam em torno de 4.500.000 o número de judeus mortos
no transcurso do segundo conflito mundial.

Entretanto, a rendição incondicional da Alemanha não representou


a solução do problema físico e psicológico dos que sobreviveram ao
holocausto, criado pelo regime nazista e pela "Solução Final".
Holocausto 85

Duas décadas se passariam até que os campos de "Pessoas


Deslocadas" se esvaziassem, enquanto que um mundo negligente, o
mesmo que permitira a realização da "Solução Final", cuidava dos
seus negócios. Tornou-se lugar-comum dizer que, por trás da apatia
humana, o que ocorreu foi um crime mais espantoso que a sangrenta
história do homem registra. Sua enormidade e a complexidade que
dessa enormidade surgiu são tais, que desafiam a narrativa coerente ou
completa. Sob todos os aspectos, foi a realização de uma psicose em
escala nacional. E talvez seja por causa disso que, embora plenamente
documentado - graças sobretudo à devoção dos seus perpetradores à
ordem e ao procedimento - ele ainda esteja cercado por mistérios
oriundos das intrigas e da necessidade de segredo entre homens que
sabiam estar cometendo crime, apesar das desculpas de que agiam em
consonância com suas teorias raciais. Já existem bibliotecas inteiras
sobre o assunto e nenhum dos livros diz tudo o que tem a ser dito;
muitos tratam apenas de uma faceta do problema, de um incidente, da
história de um campo ou de um massacre.

Mas outro lugar-comum é dizer que, apesar de toda a sua


hediondez, o crime foi totalmente inútil. Ele não deu a menor
vantagem aos nazistas. Apesar das invencionices sobre tramas
sionistas, das mentiras reformadas dos "Protocolos dos Sábios de
Sião", das supostas conspirações financeiras da judiaria internacional,
em doze anos de perseguição, com milhões de palavras e de
documentos judeus sendo por eles manipulados, não conseguiram os
nazistas propagandear nada de útil a seus propósitos. Os judeus não
eram os todo-poderosos que Hitler imaginava; nem na Grã-Bretanha
nem nos Estados Unidos eles conseguiram o apoio que poderia ter
salvo grande percentagem deles. Enquanto isso, as provas que os
nazistas encontraram apenas mostravam que os judeus, homens e
mulheres, se consideravam tão alemães quanto seus perseguidores.
Nas sinagogas, a maioria rezava não pelo sucesso de conspirações
apócrifas, mas pelo seu país e pelos seus governantes, como nas
sinagogas britânicas eles hoje rezam pela Rainha e pela nação, usando
as formas do "Livro das Orações" da Igreja Anglicana. Tal era o
patriotismo que nutriam, que as velhas e tradicionais famílias de
judeus alemães se recusavam a deixar o país, aguardando a
"recolonização" em casa, com as malas prontas.

Longe de lucrarem com a "Solução Final", os alemães


contribuíram, instituindo-a, para a própria queda. Além de fazer o
mundo voltar-se contra eles, a medida levou-os ao suicida desperdício
Segunda Guerra Mundial 86

de cientistas, de técnicos e de mão-de-obra especializada. Também


houve má aplicação de recursos técnicos limitados, tais como a
sobrecarga de um sistema de transporte já sob a pressão causada pelos
ataques aéreos aliados. Por causa disso, suprimentos vitais não
chegavam à frente de batalha. Havia o bloqueio das estradas quando
milhares de prisioneiros eram evacuados, e tudo isso no momento em
que a nação já lutava pela própria sobrevivência. Eichmann seria
capaz de rir alegremente diante da queda de qualquer cidade alemã,
desde que o último trem a deixá-la estivesse levando judeus para os
campos da morte!

A fidelidade aos programas da "Solução Final" deve ter criado


para as forças combatentes muito mais dificuldade de comunicação do
que qualquer movimento de resistência. E ela causou um dano muito
maior para a causa alemã. Tem-se afirmado coerentemente que se os
alemães se tivessem comportado de maneira diferente durante a
campanha russa; se Hitler não tivesse dado suas notórias ordens que
fizeram dela uma "guerra sem cavalheirismo", o resultado poderia ter
sido muito diferente. Os Estados Bálticos já se sentiam atormentados
sob o jugo stalinista. Milhares haviam sido deportados, para destruir
neles o nacionalismo e o espírito de independência. Havia outros
grupos assim, na própria Rússia, que podiam passar para o lado
alemão, e às vezes passavam, pois a Rússia, não nos esqueçamos,
ainda é um império de nações independentes reunidas sob um governo
central por czares despóticos e brutais. Se Hitler quisesse destruir o
bolchevismo, este teria sido o meio de fazê-lo. Suas barbaridades
permitiram a Stalin a chance de exigir de todo o povo que travasse
uma "guerra patriótica". E para isso os Einsatzgruppsn muito
contribuíram, pois, seja qual for o sentimento do povo em relação à
minoria que lhe tenha varado a fronteira, mesmo que a tenha na conta
de elemento de libertação, ao ser alvo de barbaridades, de tratamento
impiedosamente cruel, inconcebe o princípio segundo o qual o
"inimigo do meu inimigo é meu amigo". Sobretudo quando, como
aconteceu com os Einsatzgruppen, pouco se cuidava para que somente
as pessoas certas fossem executadas. Administradores alemães, como
Wilhelm Kube, chegaram a protestar que não só judeus, mas também
a população em geral, sem quaisquer conexões comunistas, estavam
sendo saqueados e fuzilados. E mesmo que aqueles grupos tivessem
sido mais escrupulosos, seria bom que lembrassem que tais
demonstrações de violência crua não ajudam em nada a criar
confiança entre os "libertados". Há de sempre prevalecer a sensação
de que também possam vir a ser tratados assim.
Holocausto 87

A "Solução Final" não foi apenas um crime de proporções


inimagináveis, com uma única vítima multipticada ao infinito. Foram
três grandes crimes, dos quais o cometido contra os judeus foi apenas
o primeiro. O segundo foi ter levado homens, em nada diferentes de
seus semelhantes, a se desfazerem do mais comezinho princípio de
decência a ponto de se prestarem a servir de cúmplices na trama
diabólica. É inútil tentar crer que tudo seja culpa do sistema. Os
homens precedem os sistemas; não existisse o homem não existiria o
sistema. Se havia um sistema errado, este era mais antigo que o
instalado pelos nazistas. Era o velho sistema humano da
complacência, da apatia, da covardia moral, de se adotar a posição de
menor resistência.

O terceiro grande crime foi o perpetrado contra toda a raça


humana. Antes da segunda década deste século, a melhor
representação do inferno era encontrada no "Inferno" de Dante ou nas
pinturas de Bosch e Dürer. Entretanto, Verdun, Hiroxima e a "Solução
Final", episódios das duas grandes convulsões mundiais reproduziram
melhor o reino de Satanás que a concepção artística de Dante, Bosch e
Dürer.

Além disso, o que os homens foram ou o que fizeram podem


novamente ser ou fazer. O primeiro crime probabiliza os
subseqüentes. Basta que pensemos na Europa de antes de 1914 para
ver o que três décadas e três visões do Inferno fizeram ao que outrora
era uma crença na boa vontade básica, mesmo dos inimigos. A
"Solução Final" deixou-nos para sempre receosos de que as teorias
raciais que elegeram os judeus em vítimas podem fazer de outro grupo
étnico qualquer alvo de perseguições e abominações.

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