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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO


MESTRADO EM DIREITO

Jaqueline Bertoldo

RESISTÊNCIAS MIGRANTES E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: UM


ESTUDO DAS ASSOCIAÇÕES DE IMIGRANTES HAITIANOS E
SENEGALESES DE PORTO ALEGRE-RS

Santa Maria, RS
2018
Jaqueline Bertoldo

RESISTÊNCIAS MIGRANTES E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: UM ESTUDO DAS


ASSOCIAÇÕES DE IMIGRANTES HAITIANOS E SENEGALES EM PORTO
ALEGRE-RS

Projeto de Pesquisa, na área de Direitos Emergentes


na Sociedade Global, com ênfase na Linha de
Pesquisa Direitos da Sociobiodiversidade e
Sustentabilidade, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Direito da UFSM.

Orientadora: Profa. Dra. Giuliana Redin

Santa Maria, RS, Brasil


2018
SUMÁRIO

1. Tema 3
2. Delimitação do Tema 3
3. Problema de Pesquisa 3
4. Objetivos 3
5. Justificativas 3
6. Metodologia 4
7. Plano provisório 6
8. Referencial teórico 6
9. Cronograma 14
10. Referências 14
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1 TEMA
Migrações, cidadania e participação política no espaço público em face da condição de
exclusão do não-nacional no Estado-Nação.

2 DELIMITAÇÃO DO TEMA
Resistências migrantes: um estudo acerca da participação política das associações de
imigrantes haitianos(as) e senegaleses(as) da cidade de Porto Alegre-RS em face da
inexistência do vínculo de cidadania com o Estado.

3 PROBLEMA
A migração internacional na atualidade cada vez mais tem colocado em cheque a
compreensão de cidadania e do Estado-Nação moderno, estruturas essencialmente violentas à
população migrante e à pluralidade e diversidade existentes no planeta. Por outro lado, muitas
são as experiências de resistência da população migrante por meio de práticas próprias, tanto
pela criação de redes sociais, coletivos e associações civis. Assim, diante da exclusão de
participação ativa e efetiva da população migrante no espaço público no país, em virtude da
inexistência do vínculo de cidadania com o Estado, em que medida as associações de
imigrantes haitianos e senegaleses da cidade de Porto Alegre – RS proporcionam atuação
política no espaço público onde estão inseridos esses(as) imigrantes?

4 OBJETIVOS
O objetivo geral da pesquisa é compreender em que medida as associações de imigrantes
haitianos e senegaleses propiciam a atuação política dessa população no espaço público no
município de Porto Alegre – RS diante da sua condição de exclusão dos direitos de cidadania
e participação política dentro do modelo jurídico-politico do Estado-Nação.

5 JUSTIFICATIVA
O tema das migrações já ocupa papel central nas agendas a nível internacional e também em
muitos países, principalmente em razão do grande número da população migrante e refugiada
em nível global e dos efeitos e consequências que esses fenômenos causam em diversos
níveis, social, político, econômico e cultural. Os estudos mais aprofundamentos sobre o tema,
demonstram que os(as) migrantes internacionais estão inseridos nas estruturas de produção
econômica a nível global por meio de uma lógica de apropriação biopolítica dessa categoria,
com a produção da “clandestinidade” e assim consequentes realidades de exploração dessa
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mão de obra e processos de preconceito e xenofobia, sendo pessoas estranhas dentro da


Nação. Além disso, não sendo considerados como cidadãos(ãs), aos(às) migrantes é negada a
possibilidade de participação dentro do espaço público, não tendo direitos políticos e não
podendo exprimir sua vontade e reivindicações perante o poder público. Diante dessa
realidade, as associações de migrantes constituem instrumentos importantes na organização de
migrantes no país. Sendo assim, o presente estudo se justifica social e cientificamente em
razão da importância de estudar como se dá essa relação entre as associações de migrantes e o
Estado, percebendo quais os elementos de resistência dessa população diante da exclusão
perante a construção jurídico-política do que se entende por cidadania na modernidade.
Ademais, esse estudo vai ao encontro de uma percepção das migrações como um fenômeno
natural e positivo dentro da sociedade, de modo que se pode aprender muito com e sobre as
migrações, buscando uma nova compreensão para as posturas temerárias e xenófobas cada
vez mais frequentemente adotadas pelos governos, mídia e população em geral. Sendo assim,
o trabalho também encontra suas justificativas pessoais no comprometimento da pesquisadora
com a luta pelo direito humano de imigrar e na construção de uma sociedade plural, diversa e
democrática, onde as migrações têm muito a contribuir e ensinar.

6 METODOLOGIA
Como abordagem que direciona a pesquisa, se pretende entender dialeticamente a
relação entre as resistências migrantes por meio de sua organização em associações e as
dinâmicas que excluem essa população do direito ao exercício cidadão dentro da Nação.
Nesse sentido, inicialmente, se buscará compreender como se dão esses processos exclusão
do(a) migrante, política, cultural e socialmente, percebendo em que medida é negada a
possiblidade de ser visto e ouvido dentro do Estado em razão de não possuir um vínculo de
cidadania. Em um segundo momento, se buscará um estudo aprofundado de duas associações
de migrantes no Estado do Rio Grande do Sul, de modo a identificar em que medida essas
organizações proporcionam participação dessa população, propiciando ou não diferentes
maneiras e práticas de “cidadania”. Por fim, como forma de síntese, se buscará responder a
problemática que direciona a pesquisa, compreendendo como se dão as interações entre esses
grupos sociais e as formas excludentes do modelo Estatal.
Como método de procedimento utilizar-se-á a pesquisa bibliográfica e documental
para revisão teórica acerca do tema, bem como revisão crítica e histórica da legislação
migratória no que se refere aos direitos políticos, direito de associação e a relação de controle
com o Estado. Ademais, pretende-se fazer o estudo das associações de migrantes por meio de
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observação participante. Conforme Severino (2007, p. 120), na pesquisa participante o


pesquisador “compartilha a vivência dos sujeitos pesquisados, participando, de forma
sistemática e permanente, ao longo do tempo da pesquisa, de suas atividades. O pesquisador
coloca-se numa postura de identificação com os pesquisados”. Destaca-se que a realização da
pesquisa participante se dará em razão da atuação da pesquisadora junto ao Migraidh – Grupo
de Ensino, Pesquisa e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana internacional, onde
atua diretamente com organizações de migrantes pelos direitos dessa população. Assim, a
coleta de dados far-se-á por meio da observação e vivência das situações e realidades vividas
pelos(as) imigrantes nas associações escolhidas, identificando suas formas de organização,
desafios e reações, atividades desenvolvidas e demais circunstâncias que se apresentarem à
pesquisadora. O registro será realizado por meio de um diário de campo com observação
sistemática do campo por um período aproximado de quatro meses.
A escolha das associações se deu, em primeiro lugar, pela delimitação territorial objeto
da pesquisa, qual seja o Rio Grande do Sul, mais especificamente a cidade de Porto Alegre
por consistir um local com grande população migrante, onde a organização e mobilização de
migrantes já está mais consolidada. A escolha das nacionalidades senegalesa e haitiana se deu
em razão do número expressivo desses migrantes na cidade. Além disso, a existência de
variáveis que caracterizam as diferentes populações pode ser um fator determinante nos
resultados da pesquisa, servindo assim para uma análise comparativa e que confere maior
grau de cientificidade ao estudo. Como exemplo, traz-se a questão legal e de regularização
migratória, em que a população haitiana conta com uma facilitação documental pela via do
visto humanitário, ao contrário da população senegalesa que, em geral, apresenta dificuldades
muito maiores na regularização dos fluxos. A diferença entre o perfil de ambas as migrações,
desde as motivações que levam esses sujeitos a migrar, níveis de formação e ocupação em que
se dedicam, aspectos culturais, relação com o Governo Brasileiro e outras características
próprias de ambos os fluxos também constituem como variáveis que foram determinantes na
escolha das nacionalidades a serem estudadas.
Como teoria de base que direciona a pesquisa, utilizar-se-á autores da crítica ao
Estado-Nação, em especial Hannah Arendt, Abdelmalek Sayad e Costas Douzinas, além da
teoria de Mezzadra sobre migrações e movimentos sociais. Segundo o autor, mesmo não
sendo considerados cidadãos dentro da Nação, os(as) imigrantes já agem como tal,
compreendendo a migração como força criativa dentro das estruturas sociais e políticas e da
dimensão exclusiva da cidadania (MEZZADRA, 2011). Assim, pretende-se realizar a
pesquisa empírica a partir de ambas as teorias, de modo a identificar seus pontos de
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intersecção, além de apresentar os resultados práticos das agências migrantes como processo
próprio de reconstrução do próprio entendimento moderno sobre cidadania e suas dimensões.

7 PLANO PROVISÓRIO

1 EXCLUÇÃO E MIGRAÇÕES NO ESTADO-NAÇÃO MODERNO


1.1 AS MÚLTIPLAS VULNERABILIDADES DO SUJEITO DAMOBILIDADE
1.2 A CIDADANIA COMO EXCLUSÃO: MIGRANTES SEM VOZ E AÇÃO
2 CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: NOVOS SUJEITOS E OLHARES
DESDE AS MIGRAÇÕES
2.1 A PESQUISA PASSO A PASSO: ESCOLHAS E CAMINHOS PARA APROXIMAÇÃO
2.2 AS EXPERIÊNCIAS DE ORGANIZAÇÃO DOS(AS) MIGRANTES HAITIANOS:
TRABALHO, ESTUDO E PRECONCEITOS
2.3 A ASSOCIAÇÃO DE SENEGALESES EM PORTO ALEGRE: PELO DIREITO AO
TRABALHO E A LIVRE MANIFESTAÇÃO RELIGIOSA
3 DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA UMA NOVA CONCEPÇÃO DE CIDADANIA

8 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A migração econômica internacional, normalmente associada aos processos de


desigualdade social, é caracterizada por consistir em um fenômeno complexo, onde as causas
e efeitos do ponto de vista da condição humana encontram as barreiras da tradicional forma
do Estado-Nação. Atualmente, tendo em vista as consequências econômicas e sociais do
fenômeno migratório, a pauta já ocupa um espaço privilegiado nas agendas globais e também
nacionais.
O fenômeno migratório evidencia assim as regras de funcionamento do sistema estatal
e expõe as bases de sua instituição, já que “pensar a imigração (ou a emigração), é pensar o
Estado.” É nos casos de migrações internacionais que se revela mais forte a linha de
separação entre o nacional e o não-nacional, que mesmo sendo mínima em si traz efeitos e
consequências de capital importância. É justamente essa distinção ou fronteira que está no
cerne da constituição do Estado-Nação e que cria assim o sujeito estrangeiro, presença
estranha dentro dos limites de determinado território e por isso sistematicamente excluído
(SAYAD, 2000, p. 20).
Redin (2013, p. 29) demonstra como se caracteriza esse processo institucionalizado de
exclusão em que a participação na vida pública é determinada pela estrutura político-jurídica
do Estado, através do critério da cidadania. A partir dessa discussão, cabe então aprofundar o
que se compreende por cidadania e como se deu a construção desse conceito ao longo da
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história como base de um sistema político-jurídico que separa o status referente à pessoa, ou
seja, da personalidade ou subjetividade jurídica, do status de cidadão, referente à cidadania.
Como explica o constitucionalista José Afonso da Silva (2014, p. 349-35), a cidadania
é um status ligado ao regime político que “qualifica os participantes da vida do Estado”, ou
seja, é um atributo que possuem aquelas pessoas pertencentes a uma determinada comunidade
estatal e que, por meio dessa relação, tem o direito de participar do governo, podendo falar e
ser ouvido pela classe de representantes políticos. Sendo assim, no direito brasileiro, os
cidadãos são aqueles que possuem o direito de votar e ser votado, por possuir direitos
políticos plenos. (SILVA, 2014, p. 450).
Ferrajoli (2004, p. 100) explica que o universalismo dos direitos do homem, bem
como a ideia de igualdade, buscou abranger no conceito de direitos da pessoa (e não dos
cidadãos) quase todos os direitos fundamentais. Existe, no entanto, uma classe de direitos que
são atribuídos aos indivíduos exclusivamente por sua condição de cidadão: os direitos
políticos. Ocorre que, na atualidade, com a crise dos Estados e das comunidades nacionais,
com as migrações em massa e as crises étnicas, bem como a desigualdade cada vez maiores
entre Sul e Norte, deve-se perceber que a cidadania não é mais um fator de inclusão e de
igualdade como na origem do Estado Moderno, mas, ao contrário, constitui um fator de
exclusão e discriminação (FERRAJOLI, 2004, p. 117).
A noção de cidadania pressupõe que o simples nascer na sociedade humana “investe o
indivíduo de uma soma inalienável de direitos” (SANTOS, 2011, p. 81). No entanto, como
explica o Milton Santos (2011, p. 84), a diferença entre a retórica e os fatos está nos seus
limites enquanto situação social, jurídica e política. Por isso, a cidadania se aprende e se
conquista, assim como a liberdade, só é efetiva se estiver garantida mediante mecanismo
institucionais que assegurem sua fruição e, quando houver negativa, mecanismos para
reclamá-la. O que se busca dizer com isso é que a dimensão da cidadania não é imutável, mas
ao contrário, foi tomando diferentes pesos e medidas ao longo da história, até um momento
fundamental quando, no século XIX, “com a emergência do Estado-Nação em toda a Europa,
esse conceito adquiriu um importante elemento: a qualidade de membro” (HAGUETTE apud
SANTOS, 2011, p. 84).
Revelam-se assim as contradições existentes ainda hoje dentro do modelo de Estado
Moderno, com o grande marco da Declaração dos Direitos do Homem. Conforme demonstra
Hanna Arendt, sendo os direitos do Homem inalienáveis não haveria necessidade de qualquer
autoridade ou lei para concebê-los: o próprio homem seria a sua “origem e seu objetivo
último” (ARENDT, 2012, p. 396). Ocorre que, nas palavras da autora, “mas o homem havia
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surgido como ser completamente emancipado e isolado, que levava em si mesmo sua
dignidade, sem referencia a alguma ordem superior que o incorporasse, diluía-se como
membro do povo” (ARENDT, 2012, p. 396). Ou seja, os direitos humanos passam a ser
assegurados a partir da soberania do povo ao qual pertencia o indivíduo, vinculando,
necessariamente, a uma nacionalidade.
No caso das migrações internacionais, o elemento territorial também é fundamental
para compreender a exclusão de determinados indivíduos do direito de influenciar nos rumos
e decisões dessa Nação em razão de um critério territorial que faz com que não possua o
vínculo político de pertencimento necessário para existir naquele território. (REDIN, 2013, p.
29).
Essa segregação-escravização do humano pelo vínculo formal de cidadania, fruto de
um artifício da modernidade incrustado no legalismo da vontade soberana, isto é,
individualista, é uma violência silenciosa. Ao encaixotar o indivíduo sob o manto do
nacionalismo e forjar sua condição humana pelo atributo do direito subjetivo
(subjetivo individual), o sistema moderno do Estado-Nação legitima e impõe
lentamente uma categoria de pertencimento que está além da noção da pessoa
humana. (REDIN, 2013, p. 29-30).

Dessa forma, a concepção de espaço público da modernidade, estruturada a partir da


ordem jurídica e do Estado, “inclui o estrangeiro pela exclusão”, à medida que reconhece este
como sujeito de direitos humanos, mas lhe nega a possibilidade de participar do espaço
público. Sua vida é assim reduzida à “vida nua” já que o estrangeiro “pertence” ao Estado
como objeto de produção, sendo esse mais um exemplo de manifestação da biopolítica. O
Estado-Nação se apropria desse ser e controla os elementos da vida humana a partir da
manifestação do seu poder/autoridade que delimita quem está dentro e quem está fora, quem
tem direito a ter direitos e quem será nulificado. (REDIN, 2013, p. 31-32).
Explica Redin (2013, p. 32-33) que como consequência dessa biopolítica está a
“inscrição moderna da vida no político” por meio nascimento, ou seja, a criação de um
cidadão soberano a partir do vínculo com um determinado Estado-Nação, separando assim e
segregando os nacionais dos não-nacionais. Assim conclui a autora: “Ao estrangeiro: o
confinamento e ausência do direito de ação no espaço público”. (REDIN, 2013, p. 41). O que
faz dos sujeitos seres políticos é justamente a capacidade e faculdade para ação, para reunir-se
com seus pares e agir na busca de objetivos em comum. Sem essa possibilidade, os imigrantes
ficam confinados ao espaço privado, onde lhes é retirada qualquer capacidade de ação.
(REDIN, 2013, p. 43).
A partir dessa análise, Sayad (2000, p. 22) explica que a presença imigrante, deslocada
e extraordinária em sua essência, precisa se conformar com a neutralidade política, ou seja,
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necessariamente excluída da esfera política. Assim se revela a dimensão exclusiva da


cidadania, que separa aqueles que estão dentro dos que estão fora do “espaço jurídico, político
e simbólico” constituído como Nação (MEZZADRA, 2005, p. 99). Conforme explica Redin
(2013, p. 28-29) a estrutura político-jurídica da modernidade condiciona a participação do
indivíduo na vida pública através do critério da nacionalidade, em que a lógica do sujeito
individual possuidor de direitos subjetivos não se aplica ao migrante estrangeiro, retirando-lhe
a “subjetividade, a identidade, capacidade de escolha e ação”.
Ou seja, é essa violência silenciosa que condiciona totalmente o sujeito migrante ao
espaço privado, já que o retira totalmente qualquer atuação na esfera pública. Todo esse
cenário que caracteriza o espaço-tempo das migrações contemporâneas coloca o(a) migrante
em situação de múltiplas vulnerabilidades, já que esse sujeito está para o controle do Estado,
sendo que a privação dos seus direitos humanos fundamentais se dá na medida em que sua
opinião não é significativa e sua ação não é eficaz perante o espaço público. Através dessas
premissas nota-se como a realidade do(a) migrante os coloca em um patamar distante dos
nacionais, sendo que sua presença nunca é plena no espaço do Estado, tanto politica, jurídica
e simbolicamente.
Conforme explica Redin (2013, p. 27) o problema desse sistema é que a política
pressupõe diversidade e pluralismo e a modernidade, ao contrário, acabou com a possibilidade
de compreensão de um sujeito coletivo e da preservação de sua identidade o que acaba por
refletir na capacidade de voz e ação desses sujeitos na vida pública.
O estudo dos fenômenos migratórios no século XXI e dos seus impactos culturais
revela assim uma série de conexões, inclusive culturais, entre os locais de origem e destino
dos(as) migrantes. Tanto aqueles que ficam no país de origem, como aqueles que emigram
acabam por fazer parte de um mesmo sistema que, além de redefinir elementos da identidade
e da cultura nos locais de chegada, também afeta o sistema cultural do local da saída, pois a
própria família muitas vezes se manteve na terra de origem. “Por isso, a migração de
trabalhadores e suas famílias amplia o horizonte cultural das sociedades, desafiando as
fronteiras político-administrativas”. (REDIN, 2013, p. 45).
Assim, denota-se que as mudanças da atualidade colocam em xeque as tradicionais
arquiteturas multiculturais. “Os Estados e as legislações nacionais, as políticas educativas e de
comunicação que ordenavam a coexistência de grupos em territórios distintos são
insuficientes diante da expansão de mesclas interculturais” (CANCLINI, 2004, p. 14).
Dessa maneira, Canclini (2004, p. 39) apresenta uma compreensão de cultura não mais
como um substantivo, mas sim como um adjetivo, ou seja, aquilo que é cultural, como sendo
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a dimensão que permite compreender as diferenças, contrastes e comparações. Assim, a


cultura não é algo do qual detém em si um determinado grupo, mas constitui um recurso do
qual disponibilizamos para falar das fronteiras das diferenças.
A questão da migração econômica se insere em uma dimensão de espaço-tempo
caracterizada por uma cultura de “aculturação”. Por isso, as estruturas estatais e
políticas públicas tradicionais do Estado não respondem à complexidade dessa
questão, posto que são pautadas pela “ilusão”, ou artifício da identidade nacional,
como se fosse possível pensar em uma cultura estanque, identificada dentro de
fronteiras sociais, onde, no máximo, seriam administradas as condições de interação.
(REDIN, 2013, p. 45).

A partir desses elementos é que se constrói o imigrante como o “outro”, “inimigo dos
nacionais”, já que o Estado-Nação está para os seus nacionais, onde se revelam assim a
violência das fronteiras territoriais, simbólicas e sociais. Isso significa que nossa vida política
tem por base a ideia de que produzimos a igualdade por meio da organização entre pares,
entre seus iguais e em razão disso que o Estado-Nação moderno busca e insiste na
homogeneidade, eliminando as distinções e diferenças naturais. Conforme explica e conclui a
autora “O estranho é um símbolo assustador pelo fato da diferença em si, da individualidade
em si, e evoca essa esfera onde o homem não pode atuar nem mudar e na qual tem, portanto,
uma definida tendência a destruir” (ARENDT, 2012, p. 411).
Nesse sentido, a figura do estrangeiro está associada ao “outro”, um sujeito que
apresenta ameaças ao emprego, à identidade nacional, a ordem dentro da Nação. Por outro
lado, importante frisar que a xenofobia ao estrangeiro, em especial na América Latina, Europa
e outros lugares do mundo, está diretamente associada na discriminação étnico-racial. “O
“outro-estrangeiro” é caracterizado como tal, sobretudo se não é branco e possui origens
indígenas, afro-latinas ou afrocaribenhas.” (STEFFENS, 2016, p. 7). Esses são os(as)
migrantes por excelência estrangeiros(as) e cujas diferenças culturais são impassíveis de
convivência e aceitação.
O pensamento de Boaventura de Souza Santos também é fundamental para
compreender como se dão os processos de exclusão com a modernidade. Segundo o autor, o
pensamento moderno ocidental consiste em um sistema de distinções visíveis e invisíveis que
acabam por dividir a realidade social entre aqueles que estão “deste lado da linha” e aqueles
que estão do “outro lado da linha”. Ocorre que justamente essas distinções invisíveis fazem
com que aqueles que estão do “outro lado” desapareçam como realidade, tornando-se
invisíveis, inexistentes, ou seja, não existem “sob qualquer modo de ser relevante ou
compreensível” (SANTOS, 2007, p. 71).
A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-
presença dos dois lados da linha. O universo “deste lado da linha” só prevalece na
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medida em que esgota o campo da realidade relevante: para além da linha há apenas
inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética. (SANTOS, 2007, p. 71).

Boaventura de Souza Santos (2007, p. 78) explica que os imigrantes indocumentados,


os terroristas e os refugiados constituem três formas principais dessa exclusão radical e
inexistência jurídica. As leis antiterror e a onda de legislações migratórias securitistas segue a
“lógica reguladora do paradigma ‘apropriação/violência’ em muitas de suas disposições”.
Mesmo diante dessa realidade que exclui os(as) migrantes, suas experiências
demonstram uma série de arranjos e resistências para superar as barreiras e concretizar o
projeto migratório no Brasil. Nesse sentido é que Mezzadra (2011, p. 73) tem desenvolvido
uma teoria sobre a autonomia das migrações, ou seja, a migração compreendida como força
criativa dentro das estruturas sociais, culturais e econômicas. A partir dessa nova percepção,
se pode olhar para as migrações com um olhar que priorize suas “práticas subjetivas, os
desejos, as expectativas, e os comportamentos dos próprios migrantes”.
O autor entende que ao lado de novas formas de dominação e exploração, surgem
também práticas de liberdade e igualdade, que podem ser identificadas a partir desse olhar
para as migrações como movimentos sociais em sentido literal.
A abordagem da autonomia das migrações deve, neste sentido, ser compreendida
como uma nova perspectiva de análise das “políticas de mobilidade” – que enfatiza
a dimensão subjetiva no interior das lutas e enfrentamentos que constituem
materialmente o terreno dessas políticas. (MEZZADRA, 2011, p. 73).

Assim, conclui que a partir dessa nova ótica de pensar as migrações, a abordagem da
autonomia das migrações afirma que os(as) migrantes, ao invés de estarem buscando ser
cidadãos, já agem de fato como cidadãos, insistindo que efetivamente já são cidadãos.
Certamente, essa percepção adota outra conceitualização de cidadania, pois embora os(as)
migrantes não sejam considerados cidadãos no sentido jurídico do termo, eles acabam por
contribuir de forma decisiva para a transformação e nova compreensão do que
tradicionalmente se entende por cidadania. Conforme explica Mezzadra (2011, p. 76).
Desde este ponto de vista, a exploração dos migrantes deve ser rastreada no âmbito
do processo migratório e da experiência dos migrantes, sempre confrontada com os
agenciamentos e ações dos migrantes como sua condição de possibilidade de serem
migrantes e como base material de seu poder de contestação.

É nesse contexto que se busca então compreender como se dão essas rugosidades entre
o Estado e sua estrutura político-jurídica engessada que exclui e busca se apropriar do sujeito
coletivo migrante e, por outro lado, as formas próprias de organização dessas populações, em
especial por meio das associações. De um lado a estrutura político-jurídica do Estado-Nação
que exclui a população migrante da possibilidade de participação no espaço público por não
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possuir o status jurídico de cidadãos, e de outro uma série de estratégias e elementos próprios
da migração que vão configurando novas formas de pensar a relação dos sujeitos com o
território, a cultura e a própria participação política no espaço público.
Diante das realidades do processo migratório que continuamente isolam a população
migrante na sociedade de destino, as associações migrantes têm ocupado papel fundamental
em romper com as barreiras da exclusão estrutural e das múltiplas vulnerabilidades a que
estão sujeitas essas pessoas ao longo do processo migratório. Horta (2010, p. 11) explica que
isso ocorre por conta do caráter multifuncional que possuem essas organizações, atuando
diretamente na vida dos(as) migrantes nos diferentes desafios que a mobilidade apresenta,
como também sendo local para vivência e reforço cultural e identitário, minimizando os
efeitos da distância e do isolamento.
[...]estas organizações têm-se revestido de uma multiplicidade de funcionalidades,
constituindo-se como estruturas vitais de processos de socialização, de reforço de
laços culturais comuns, de afirmação identitária, de solidariedades e de práticas de
entreajuda, desempenhando um papel fundamental na vida dos migrantes face a
situações de isolamento e, frequentemente, de adversidade decorrentes do percurso
migratório. Por outro lado, as organizações de migrantes têm-se, igualmente,
constituído como um espaço privilegiado de mobilização social e política visando a
defesa dos interesses dos seus membros. (HORTA, 2010, p. 11).

Fator importante também identificado pelos estudos sobre associativismo migrante é


sobre a importância das associações migrantes como instrumento de mobilização social e
política para defesa dos interesses e direitos dos seus membros, intervenções essas que
normalmente são baseadas em “certos aspectos inerentes à identidade étnica”. Nesse sentido é
que se pode distinguir entre “mobilização para etnicidade e mobilização através da
etnicidade” (SARDINHA, 2010, p. 63).
Da mesma forma que a migração apresenta a marca da “dupla presença”, as
associações de migrantes também transitam em dois contextos: o país de origem e o de
recepção. “Por um lado, vêem no país ancestral as suas origens culturais e identitárias, que
valem a pena preservar e proteger. Por outro, responsabilizam o país de recepção como aquele
que deve facilitar a inserção dos cidadãos de países terceiros” (SARDINHA, 2010, p. 60).
Dessa forma, os estudos tradicionais sobre as associações sempre questionaram essa
dualidade das organizações, pois ao mesmo tempo em que têm papel fundamental na
conservação de identidades e laços culturais, podem também constituir como barreira à
integração local na sociedade receptora.
Com relação específica aos fluxos que se busca compreender com o presente trabalho,
ou seja, a migração haitiana e senegalesa no Rio Grande do Sul, por meio de suas associações
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na cidade de Porto Alegre, cabe também fazer algumas considerações. Os novos fluxos
migratórios no país tiveram aumento expressivo a partir do ano de 2010, quando o Brasil,
após a crise econômica global que atingiu os Estados Unidos e em função dos megaeventos
esportivos sediados no país, concomitantemente com o avanço da economia, acabou
tornando-se um país muito atrativo para migrantes em busca de oportunidades de trabalho,
como senegaleses e haitianos. No caso dos haitianos, esse fluxo aumentou muito em razão do
terremoto que assolou o país no ano de 2010, aliado a melhora das condições econômicas do
Brasil e também a abertura humanitária que o país adotou com relação a essa população.
Nesse sentido, Denise Cogo (2013, p. 24) explica a importância de não desconsiderar
as circunstâncias materiais como causa da migração, bem como as relações de dominação e
desigualdades em que se inserem as dinâmicas migratórias, mas ao mesmo tempo perceber
como essas migrações “passam a se definir pela sua capacidade de portar e sintetizar uma
pluralidade de posições, vínculos, relações, conflitos e disputas sociopolíticas, econômicas e
culturais nas sociedades contemporâneas”.
A autora faz menção assim às diversas associações de migrantes haitianos pelo país
que, juntamente com outras organizações da sociedade civil interagem no espaço público,
reivindicando um tratamento humanizado à imigração haitiana, podendo contar suas próprias
histórias, dar visibilidade às suas causas, ampliar processos de integração, bem como na
criação e participação de espaços para implementação de políticas migratórias. (COGO, 2013,
p. 30).
Por outro lado, no caso dos(as) migrantes senegaleses a procura é em especial por
melhores oportunidades de trabalho no Brasil em virtude da falta de emprego ou das más
condições de trabalho no país. Assim, as redes de migrantes, associações e demais redes se
mostram fundamentais nas dinâmicas migratórias desses sujeitos e na inserção do mercado de
trabalho. Além disso, é marcante na migração senegalesa o fato de esses(as) imigrantes não
aprenderem o português, o que dificulta muito seu processo de integração na sociedade
brasileira. Por outro lado, eles(as) mantêm muito forte os costumes e tradições religiosas,
sendo inclusive motivo de reivindicação por templos e mesquitas onde possam manifestar sua
fé. (TEDESCO; GRZYBOVSKI, 2011, p. 344).
Por fim, destaca-se que a presente pesquisa busca discutir a temática migratória sob a
ótica dos Direitos da Sociobiodiversidade e Sustentabilidade, tendo em vista a defesa pelo
Direito Humano de Migrar a partir da “prerrogativa da liberdade de deslocamento com a
preservação e respeito das identidades construídas, da cultura que cada ser humano encerra e
resignifica em si”. (CRISTINO, 2016, p. 12). Por meio dessa pesquisa, busca-se questionar as
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tradições da modernidade que, por meio de critérios territoriais, exclui parte da população da
possibilidade de ter voz e ação dentro da Nação onde se encontra. Assim, por meio de uma
nova lógica, pautada em uma ecologia de saberes, pretende-se dar voz aos que estão do outro
lado da linha, historicamente sujeitados pelo capitalismo e pelo colonialismo (SANTOS,
2007, p. 85). Nesse sentido é que as experiências e formas próprias da dinâmica migratória
tem muito a contribuir e ensinar, na medida em que se reconhece uma heterogeneidade de
conhecimentos e pluralidade cultural.

9 CRONOGRAMA

Atividades AGO-DEZ JAN-JUL AGO-DEZ


2018 2019 2019

Revisão bibliográfica do projeto de pesquisa X

Encontros com o orientador X

Redação preliminar X

Trabalho de campo – coleta de dados X X

Análise dos dados X

Redação final do projeto de dissertação X

Qualificação X

Elaboração da dissertação X X

Revisão Final X

Defesa X

REFERÊNCIAS

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