Você está na página 1de 21

O tradutor

implícito.
Considerações
acerca da
translingualidade
de Os Sertões (1)
LLY
ZI
LD

1 Propus o conceito de “tradutor


O

implícito” pela primeira vez no


H

“Es gehört schon zum


RT

curso de pós-graduação sobre


BE

“A tradução como análise,


reinterpretação e universali-
zação da obra literária: o caso

Begriff eines Romans, de ‘Os Sertões’ e outros ca-


sos”, ministrado no DTL da USP
em agosto e setembro de
1997, depois em palestras no
VII Encontro Nacional de Tra-
dass er keine dutores/I Encontro Internacio-
nal de Tradutores, São Paulo,
USP, 10/9/1998, como tam-
bém na Faculdade de Letras
Nationalität haben muss” da UFRJ, em 1/12/98. Agra-
deço sugestões de Margarethe
Steinberger (PUC-SP), Willi
Bolle (USP), João Cézar de
Castro Rocha (UERJ), Márcia
Cavalcanti (UFRJ).
BERTHOLD ZILLY
é crítico literário e
(Friedrich Schlegel, 2 “Faz parte do próprio concei-
to de romance que ele não
tradutor de Os Sertões, precisa ter nacionalidade”; ci-
de Euclides da Cunha,
para o alemão Literarische Notizen)(2). tado de acordo com Neue
Rundschau, 1996, p. 5.

REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000 85


vra seria uma não-palavra.
A NECESSIDADE DO BOM Por um lado os autores incitam a fanta-
sia do leitor, da qual as obras, incompletas
ENTENDEDOR e abertas de certo modo, precisam; por outro
lado procuram guiá-la. Naturalmente, pode
É um truísmo que textos literários, e não haver também leituras a contrapelo, contra
apenas estes, são escritos e sobretudo pu- ou ao largo das intenções do autor, o que se
blicados para serem lidos, embora possam dá muitas vezes em obras que perduram
também ter outras finalidades. E é um por séculos e que provam com isso a sua
truísmo, realçado e analisado mas não capacidade de revelar e ao mesmo tempo
descoberto pela estética da recepção, que a provocar inesperados significados. Com o
leitura é constitutiva para a sua existência mundo e os leitores em transformação, as
e sobrevivência. Não houvesse leitores, não obras são lidas à luz de novas experiências,
haveria textos, haveria meras acumulações interesses, idéias e perguntas, modifican-
de letras em papel ou na tela do computa- do parcialmente o seu sentido, numa dialé-
dor, sem sentido nenhum. Os textos, para tica de mesmice e transformação, continui-
existirem plenamente, precisam da sua con- dade e diferenciação, que geralmente se
cretização, atualização e, quando narrati- chama vida das obras ou tradição literária
vos ou dramáticos, encenação mental pelo e que os autores, quando muito, só vaga-
leitor, assim como as peças de teatro preci- mente podem prever ou pressentir com
sam da representação, os filmes da exibi- muita antecedência.
ção e as partituras da execução, pelo menos Para o conjunto das condições, exigên-
imaginada, por parte de quem as entende e cias, orientações dirigidas ao leitor,
sabe evocar. prefigurando o seu papel até certo ponto, o
Os autores estão cientes disso, e portan- teórico da literatura Wolfgang Iser, que
to desde há muito não apenas se preocu- sempre enfatizou a função constitutiva do
pam em discursar ou narrar, para informar, ato de leitura para a existência das obras,
ensinar, entreter, edificar, para expressar propôs, nos inícios dos anos 70, o termo
seus afetos e desafetos, para transmitir a “leitor implícito” (3). São dispositivos e
sua visão do mundo, para atacar ou se de- marcas que assinalam ao leitor de que modo
fender, mas se preocupam também com que ele deve ler um texto para realizar mental-
tal mensagem ou história – os ensinamentos, mente grande parte das potencialidades do
a trama, as cenas, os personagens – sejam seu sentido, são fôrmas a serem preenchi-
percebidas numa determinada perspectiva das no ato da leitura, não totalmente confi-
e lidas “corretamente”. Nomeadamente os guradas, antes inacabadas, semi-abertas,
textos literários, mais do que os pragmáti- exigindo criatividade e subjetividade da-
cos, pressupõem um leitor que seja um quele que lê. É de um leque de possíveis
parceiro do autor, um colaborador, que en- leituras, difícil de se definir precisamente,
tenda as intenções inscritas neles, que que cada leitor escolhe e realiza a sua lei-
reconstitua e mobilize as suas idéias, alu- tura pessoal. O que vale para Fielding pode
sões e emoções, que saiba preencher as ser generalizado: “O papel do leitor inscri-
suas elipses, lacunas e reticências. Vale to no romance tem que ser percebido como
de modo especial para esse leitor o ditado condição de um possível efeito; de jeito
brasileiro “A bom entendedor meia pala- nenhum determina as reações, mas prepara
vra basta”, porque a literatura, diferente- um âmbito de decisões seletivas que, uma
mente de textos pragmáticos ou acadêmi- vez tomadas, resultam em variedades indi-
cos, vive justamente de meias palavras às viduais de realização […]” (4 ).
quais é preciso acrescentar mentalmente a O conceito de leitor implícito é deduzi-
3 Iser, 1996, pp. 63-79; ver tam-
outra metade, para assegurar-lhes o/ou um do por Iser sobretudo da prosa narrativa
bém Iser, 1994.
sentido. Sem bom entendedor, capaz des- moderna, desde o Iluminismo, nomeada-
4 Idem, 1994, pp. 92-3, citação
traduzida por mim. sa operação complementar, a meia pala- mente do romance com acentuada função

86 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000


referencial e apelativa, que constrói um sível, como também entre as muitas tradu-
mundo ficcional muito próximo do mundo ções possíveis de um texto há aquelas que
empírico do leitor, tematizando, confirman- correspondem mais e outras que correspon-
do e questionando modos de encarar a re- dem menos às propriedades da obra. Esté-
alidade extraliterária. Essas sugestões para tica e moralmente, um conto ou romance
uma visão do mundo e atitudes em relação tanto confirma como transcende os valores
a ele pressupõem a colaboração ativa do e as expectativas do leitor que deve acompa-
leitor, carente porém, na opinião dos escri- nhar e realizar essas estratégias, mesmo que
tores, de um certo direcionamento. delas discorde parcial ou radicalmente. Com
O leitor implícito é uma espécie de a crescente distância histórica entre a cria-
contrapartida do narrador, geralmente tão ção de uma obra e a sua recepção, o ato da
invisível e anônimo quanto este, mesmo leitura pode ser cada vez menos previsto e
que o público seja apostrofado em fórmu- direcionado pelo escritor, de modo que com
las como “prezado leitor”, num fictício o tempo o leitor real vai ganhando maior
diálogo, freqüente na literatura do século autonomia em relação ao leitor implícito sem
XVIII e da primeira metade do século XIX. que este se torne desimportante (5).
Essas apóstrofes são apenas um dos possí-
veis recursos do autor para preestabelecer
a atitude receptiva, um dos elementos por-
tanto do leitor implícito que não é persona- O TRADUTOR – UM ENTENDEDOR
gem, nem figura empírica. Também não é
um leitor ideal que por sua vez seria capaz POR EXCELÊNCIA
de realizar todas as instruções do leitor
implícito, todos os significados intencio- O tradutor evidentemente também é
nados pelo autor, e além disso todos os sig- leitor, um leitor especialmente atento, assí-
nificados em que o autor não pensou nem duo, escrupuloso, crítico e exaustivo na
poderia ter pensado, incluindo aqueles que tarefa da (re-)constituição dos significados
se revelam ao longo da história. Pode natu- da obra, um leitor potenciado. Pois ele é
ralmente aparecer um leitor explícito, como um Vorleser em vários sentidos, ou seja,
personagem, por exemplo o leitor de cartas um pré-leitor e pró-leitor, aquele que lê
dentro de um romance, leitura ficcional que antes dos outros e pelos outros, sendo ao
eventualmente também faria parte do es- mesmo tempo um recitador, aquele que lê
tratagema do leitor implícito. Mesmo os em voz alta para os outros, para uma audi-
textos herméticos “prevêem” o papel do ência, prefigurando a sua compreensão do
leitor, para terem determinados efeitos, texto, espécie de preletor, que ensina como
entre os quais a desejada impressão de her- se deve ler. Entenda-se audiência princi-
metismo. palmente no sentido metafórico, como
Há portanto uma duplicidade de estru- leitorado, mas não exclusivamente, pois até
turas: a) a do próprio texto, b) a das suas os textos destinados unicamente a serem
previstas leituras. Essas estruturas, que em lidos em silêncio têm uma dimensão acús-
realidade se fundem numa só, pois consti- tica realizada pela imaginação sonora do
tuem o texto, condicionam uma infinidade leitor, importante traço estilístico, um dos
de leituras virtuais, de que cada ato concre- mais difíceis e dos mais necessários a ser 5 W. Iser, ainda que enfatize a
historicidade dos textos, pare-
to de leitura só pode realizar uma parte, transposto para o idioma-alvo, inclusive no ce dela eximir o leitor implíci-
pois cada grupo de leitores e cada leitor caso de Os Sertões. A leitura tradutória to. Ora, se tudo é historicamen-
te mediado em um texto e nada
individual têm as suas próprias experiên- condiciona as leituras de milhares de pes- nele é absolutamente invariá-
vel, o leitor implícito também
cias práticas e estéticas, a sua visão do mun- soas na língua de chegada, sendo grande, deve ser um atributo histórico,
do, seus valores e suas normas de conduta, quase inevitável, o perigo de o tradutor agir, parcialmente datado, não ape-
nas genericamente, mas tam-
além de variáveis estados de ânimo. Se o sem querer, como espécie de filtro, como bém concretamente em cada
número de possíveis leituras de determina- censor em relação a certos aspectos do ori- obra, evoluindo com ela e com
as mudanças históricas das
do texto é infinito, nem toda leitura é pos- ginal. Pois o que o tradutor não entende, suas leituras.

REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000 87


não capta, não intui, não adivinha pelo professor, o historiador ou teórico da lite-
menos, e o que ele não repensa, reformula, ratura –, parecido porém ao organizador de
recria, fica inacessível para o leitor da cul- uma edição crítica, o tradutor não pode
tura de chegada, lesado no seu direito de ter selecionar determinados trechos ou aspec-
acesso à quase-totalidade dos significados tos, mas tem que examinar e interpretar o
do original. Por outro lado, o modo como o texto todo. É um condenado, um
tradutor entende uma obra nos seus deta- acorrentado ao seu objeto de estudo, obri-
lhes e no seu conjunto vai prefigurar de gado a segui-lo e a persegui-lo obstinada-
modo decisivo as possíveis leituras da tra- mente em todos os seus meandros e rami-
dução e as idéias que os seus leitores fazem ficações, detendo-se em minúcias e abran-
do original (6). gendo o todo alternadamente, não podendo
O desejo de fazer jus a esta tarefa de alta pular capítulos, frases, palavras ou nomes
responsabilidade leva o tradutor a um pa- enigmáticos. A obra inteira, em sua
pel quixotesco, o de um leitor hiperatento, macroestrutura como em sua microes-
hipersensível, com todas as antenas liga- trutura, em todos os seus pormenores até a
das, aspirando a uma leitura completa, última vírgula, tem que passar pelo crivo
totalizadora, sonhando em realizar em sua da sua crítica racional ou intuitiva, pois tudo
mente todo o potencial de significados exis- é importante ou pode sê-lo, e para tudo,
tente em determinada época e contexto ainda que na prática seja impossível, ele
social, incluindo a história da recepção, na tem que procurar uma equivalência na lín-
medida em que esta entra na constituição gua de chegada.
do sentido da obra. O tradutor é parente É como um cartógrafo que, diferente-
espiritual de Pierre Menard, no conto de mente do geógrafo, não pode se limitar a
Borges, que não por acaso relê e reescreve estudar determinados aspectos de uma área,
justamente o Don Quijote, cuja “tradução”, tendo que conhecê-la, pesquisá-la, e depois
embora literalmente idêntica ao original, representá-la em sua quase-totalidade, de
tem um sentido bastante modificado, mo- acordo com a escala, claro, “escondendo”
dernizado, atualizado diante dos aportes e porém o resultado das suas pesquisas no
6 Sobre a íntima relação entre lei-
tura e tradução cf. Mosca, p. perguntas de trezentos anos de história das desenho dos mapas. Ao contrário do
191.
idéias, decorridos desde a estréia do livro. cartógrafo, porém, o tradutor não produz
7 Também se pode comparar a
Num segundo passo, que na prática apenas um modelo, uma imagem abrangen-
tradução com uma peça musi-
cal reinstrumentalizada, uma freqüentemente coincide com o primeiro, te, mas abreviada e simplificada do objeto
sonata barroca por exemplo,
com ornamentos esquisitos para o tradutor procura oferecer ao leitor estran- estudado, ele produz ao contrário, por as-
nós, transposta de órgão para geiro uma contrapartida equivalente aos sim dizer, uma segunda paisagem nos
piano, ou de instrumentos de
sopro para cordas. Mesmo os múltiplos atributos e significados do origi- moldes da primeira, na escala um a um, um
elementos estranhos e
incompreendidos, datados, lo- nal, restringidos, modificados e enriqueci- parque barroco por exemplo, levado a ou-
calmente restritos, ou irracio- dos pela língua e cultura de chegada. Essa tras latitudes e longitudes, básica mas não
nais, se não são equívocos
óbvios, devem ser preservados, aspiração de ser um leitor ideal, que reali- exclusivamente com os materiais do novo
contra a tentadora idéia de,
zaria uma compreensão completa, é neces- terreno, de acordo com a morfologia do
conforme o nosso entendimen-
to funcional de hoje, racionali- sariamente um desejo vão, na melhor das novo meio. Como na recriação paisagística,
zarmos e modernizarmos tudo.
As grandes obras de épocas hipóteses uma idéia regulativa, tão quimé- na tradução nem todos os atributos do ori-
ou regiões remotas nos tocam rica quanto a outra pretensão, a de dar a ginal se prestam igualmente ao traslado, o
justamente por essa dialética
entre estranhamento e familiari- essa interpretação “completa” uma expres- que não dispensa da obrigação de pesquisar
dade, tradicionalidade e mo-
dernidade, confrontando-nos são estética em outra língua, preservando, e de tentar o inviável, pois às vezes só o
com particularidades jamais contra todas as regras da lógica, a identida- exame escrupuloso revela a relativa
adivinhadas que por outro lado
revelam por vezes aspectos de da obra na diversidade das línguas, as- intransponibilidade de certas expressões,
atuais e universais. A tradução segurando o maior volume possível de
deve respeitar os traços data-
compensadas muitas vezes em trechos vi-
dos sem cair numa tendência invariâncias entre original e tradução. zinhos, ou parafraseadas, ou explicadas em
arcaizante, promovendo ao
contrário uma cautelosa atuali- Diferentemente de outros “metalite- notas ou em posfácio, de modo que o todo,
zação que desvenda os traços ratos” que também lêem por e para outros grosso modo, é transponível sim (7). Pois
modernos da obra sem ignorar
a sua idade. leitores – o resenhista, o comentador, o a tradução é a arte do impossível.

88 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000


O tradutor, além de ler, como qualquer lise, admirando-se com tudo, pegando em
um, a olho nu, faz uma leitura por assim tudo, revolvendo tudo, como se fosse uma
dizer radiográfica, sonográfica, química, criança erudita, mesclando uma abordagem
usa lupa e microscópio, mas também binó- de leigo com aquela do filólogo e crítico
8 Em certos casos, estas pergun-
culo invertido; ele procura, percebe e ava- literário ou outro especialista, conforme o tas do tradutor se devem a uma
espécie de coerção lexical ou
lia, embora muitas vezes só intuitivamen- tipo e o assunto do texto. Não acha nenhum gramatical da língua de che-
te, os atributos manifestos e encobertos do detalhe simplesmente natural e óbvio, tudo gada que o obriga a uma
desambigüização, ou seja, a
original, em todos os níveis, semântico, pode ter um segundo ou terceiro sentido, um esclarecimento não neces-
ideológico, sintático, alegórico, fônico, rít- tudo pode não significar aquilo que a gente sário na língua de partida, por
exemplo no caso do pronome
mico, eventualmente gráfico, prevendo e pensou no primeiro momento, tudo pode alemão “sie” que pode signifi-
car “ela”, “eles (homens)”,
ponderando o efeito de seu traslado para a ter uma correpondência intra ou inter- “elas”, “eles e elas”, ou, em
língua e cultura de chegada com suas coor- textual, importante de ser transposta para a início de frase em que só há
maiúsculas, pode até significar
denadas diferentes. No fim, tem-se familia- versão de chegada, qualquer palavra repe- “o senhor”, “a senhora”, “os
senhores (homens)”, “as senho-
rizado intimamente com a obra, está quase tida algumas vezes pode eventualmente ser ras”, “os senhores e as senho-
em casa nela, conhece suas qualidades e os uma palavra-chave, constituindo uma ras”; e nem sempre o contexto
sintático deixa claro o exato
seus defeitos, um pouco como o mordomo isotopia. significado, quando isso é sem
sabe dos vezos do seu amo, mas, diferente- importância para o autor. Por
outro lado “irmãos” pode sig-
mente daquele, o tradutor não é tentado a nificar “ Brüder ” (irmãos ho-
mens) ou “Geschwister” (irmãos
perder o respeito pela instância a cujo ser-
viço está, pois a conhece e valoriza em seu INSTINTO DE UNIVERSALIDADE (9) e irmãs), aí o tradutor alemão
precisa interpretar e optar de
acordo com outras informações
conjunto, relativizando os seus pontos frá- no texto, mas dificilmente pode
manter toda a ambigüidade,
geis. Ademais, o tradutor não é apenas o O encontro de uma obra com outra cul- cuja perda, se ela é estetica-
servidor, ele é, de um modo mais enfático tura e língua revela aspectos e camadas de mente importante, pode preju-
dicar a tradução. Ou seja, nem
do que o leitor normal, também o dono da significados que geralmente não entraram sempre um acréscimo de trans-
sorte do original, podendo assegurar-lhe, parência e claridade é um
na estrutura propositalmente elaborada do benefício estético. A desam-
graças ao seu trabalho de crítica e imagina- texto, mas que objetivamente nele existem. bigüização no entanto pode
ser também um ganho em
ção, graças à sua erudição, sensibilidade e É com razão que se distingue a intenção do plasticidade e sensorialidade,
perseverança, uma segunda vida, em outra autor da intenção do texto, pois, por mais por exemplo no caso da tradu-
ção de “piano” em determina-
cultura. consciente e cerebral que seja o ato da es- do contexto cultural, caracteri-
zado por uma estética entre
Apesar da necessária empatia, o tradu- crita, nele entram intuições inconscientes, decadentista e vanguardista e
tor precisa manter uma perspectiva de fora, só parcialmente subjetivas, em grande par- um estilo de vida aristocrático,
finissecular, em A Confissão de
principalmente no começo do trabalho, te coletivas, social e historicamente condi- Lúcio, de Mário de Sá-Carnei-
resistindo aos perigos da familiaridade não ro, em que entre os três termos
cionadas, e uma vez pronta a obra, ela ga- genéricos que a língua alemã
questionada, simpática em si, com que as nha dinâmica própria, intersubjetiva, por oferece – “Piano”, “Klavier”,
“Flügel” – este último, que sig-
obras, principalmente as clássicas, são li- vezes surpreendente. Além disso, no de- nifica “piano de cauda”, é o
das na cultura de partida. A imediata pro- correr da história da recepção, com o mun- mais condizente com o ambi-
ente social e artístico, além de
ximidade cultural e lingüística pode embo- do circundante e os leitores em transforma- ser o mais concreto, sugestivo
e “sensorial”, ao nível
tar o olhar do leitor, turvar a sua sensibili- ção, vai mudando também a intenção de estilístico; ver Sá-Carneiro,
dade e argúcia, sugerir-lhe uma fácil com- um texto. 1995, p. 86.

preensão, às vezes ilusória. Qualquer tra- Se qualquer obra de qualidade estética 9 Ver Schwartz (1999), citando
a interpretação que o crítico
dutor que pediu esclarecimentos a um fa- e de veracidade social ou psicológica, português Abel Barros Baptista
lante nativo, mesmo erudito, da língua de enfocando e interpretando estruturas pro- faz de Machado de Assis:
“Não nego que haja em Ma-
partida já fez a experiência de que às vezes fundas da condição humana, tem uma ori- chado referências a um con-
texto brasileiro, mas tenho ou-
este nem sequer entendeu logo o problema, entação para públicos estrangeiros, em cer- tro tipo de indagação, saber o
percebendo-o só depois de perguntas adi- tos casos esse “excedente” de significados que ele pode dizer a um euro-
peu no final do século 20”,
cionais, explicativas, do tradutor (8). com respeito à língua e cultura de partida é abordagem que também po-
deria ser a de um tradutor. O
Este tem que ser racional e analítico premeditado. Há muitos indícios de que os título do artigo alude ao famo-
como o crítico acadêmico, perseverante e autores do chamado boom da literatura so ensaio “Instinto de Nacio-
nalidade”, em que Machado
desconfiado como um detetive e ao mesmo hispano-americana dos anos 60 e 70, e es- de Assis procura definir aspec-
tempo ingênuo e empolgado como o leitor pecialmente os epígonos do realismo má- tos de brasilidade na literatura
por volta de 1870; ver tam-
comum para quem escreve em última aná- gico, do tipo Isabel Allende, dirigiram-se bém Assis, 1986.

REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000 89


conscientemente a um público internacio- nal, por mais enraigado que seja na sua lín-
nal. Talvez a aspiração ao reconhecimento gua, cultura, região, nação e época, trans-
além dos limites lingüísticos e culturais seja cenda essas divisas, revelando aspectos
uma das marcas da literatura latino-ameri- exemplares, universais e modernos, com-
cana, de Sarmiento a Borges, Fuentes ou preensíveis, apreciáveis e enriquecedores
García Márquez, e de um modo geral um para integrantes de outras culturas. É natu-
traço das literaturas de regiões não- ral que o tradutor realce esse apelo universal
hegemônicas do globo, cujos escritores das obras, os seus traços transculturais e
visam, como reminiscência mas também trans-históricos, aculturando-as e atualizan-
como desforra com respeito ao colonia- do-as, sem tirar-lhes a historicidade, a pátina,
lismo, o público dos países metropolita- a cor local, o matiz alheio.
nos, e através deles o mercado literário Na era do pós-colonialismo cresce o
mundial. É que o centro intelectual dessas número de autores das ex-colônias cuja
culturas ex-cêntricas se encontrou e de cer- escrita de certa forma é uma tradução ou
ta forma continua se encontrando fora de- transculturação, já que não escrevem em
las e fora do seu continente, sobretudo em sua língua materna ou de infância mas em
Paris, a “capital do século XIX” no dizer de francês ou inglês, ou português, sobre a
Walter Benjamin, o que também vale para realidade e o imaginário de suas culturas de
a inteligência latino-americana (10). origem. Talvez a parte mais original e ino-
Há um leitor empírico muito próximo vadora da literatura inglesa e francesa ve-
do tradutor que é o leitor estrangeiro co- nha hoje da periferia, de autores não-euro-
nhecedor da língua do original. É um tra- peus, tradutores de originais nunca escri-
dutor em potencial, pois ele também trans- tos, fenômeno caracterizado por alguns
fere, de propósito ou não, pelo menos par- críticos com o lema: “The Empire writes
cialmente o espaço ficcional, os persona- back”(11). Ou seja, a periferia dos antigos
gens, os valores morais e as qualidades impérios coloniais conquista, no plano da
estéticas de um texto para o seu próprio produção literária, as metrópoles, o que ali-
ambiente cultural e lingüístico, usando ás já se verificou na antiga Roma, onde a
eventualmente, como o tradutor também, maioria dos escritores do baixo-império vi-
dicionários e outras ferramentas para se nha das províncias. É também enquanto crí-
certificar de uma correta compreensão de ticos e intérpretes que intelectuais de cultu-
detalhes. Atualiza o texto como leitor da lín- ras não-hegemônicas, inclusive de antigas
gua de partida, mas também como espontâ- colônias, enriquecem e aprofundam a vida
neo idealizador de uma tradução fragmentá- literária européia e a norte-americana.
ria, com que vai inserindo o livro estrangei-
ro na sua própria cultura. É compreensível
que o leitor de fora se interesse principal-
mente pelas qualidades em que as obras trans- DO LEITOR IMPLÍCITO AO
cendem as suas origens, por seus traços
transculturais e trans-históricos, para cuja TRADUTOR IMPLÍCITO
revelação tem especial competência
interpretativa. Ora, essa legibilidade da obra Na medida em que o tradutor é um lei-
para o leitor estrangeiro conhecedor da lín- tor por excelência, com ambição de se apro-
gua do original é indício de sua ximar do leitor ideal, é de se perguntar se o
10 Ver por exemplo Nelle, 1996. traduzibilidade. Quando fica manifesto que conceito iseriano pode ser aplicado a ele,
11 Ver Ashcroft et alii, 1989; Iyer, um autor e um livro têm algo a dizer a um de modo que haveria o leitor-tradutor im-
1996. Obviamente, a mirada
público fora do âmbito da língua de partida plícito, e portanto o tradutor implícito. O
no mercado mundial caracteri-
za a literatura de entretenimen- e da época em que foi escrito, torna-se im- papel do leitor previsto dentro do texto te-
to, aqui não cogitada, escrita
para ser best-seller internacional, prescindível a figura do tradutor. Este, como ria como corolário o do tradutor igualmen-
confeccionada conforme recei- leitor e crítico de outro âmbito cultural, tam- te previsto, embora menos manifesto, um
tas padronizadas e seguras, que
lhe garantam o sucesso. bém procura aqueles traços em que o origi- feixe de orientações e recomendações de

90 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000


como determinada obra deve ser lida por gestões para a tarefa do tradutor. O leitor
falantes de outras línguas e como para estas implícito, num sentido enfático e extensi-
deve ser trasladada. vo, se nos afigura portanto ao mesmo tem-
Parece procedente a crítica de Terry po como tradutor implícito.
Eagleton de que Iser teria contemplado uni- Se qualquer leitura é uma concretiza-
lateralmente um leitor liberal, tolerante, ção, recriação e encenação (13), isso mais
aberto, culto, refinado, e teria considerado vale ainda para a tradução que é, como vi-
inadequadas as leituras de pessoas menos mos, um ato aprofundado e ampliado de
instruídas ou menos abertas, sem capaci- leitura, mais crítico e ao mesmo tempo mais
dade de desfrutarem as relações inter- empático do que o ato da leitura normal. O
textuais e as qualidades diferenciais. O lei- mundo ficcional que o tradutor evoca e
tor iseriano, principalmente o do século XX, presentifica não permanece imaginado e
de fato é concebido como um leitor quase incompleto como o do leitor normal; ele,
ideal, capaz de realizar criticamente as re- ao contrário, é objetivado e materializado
comendações do leitor implícito, dispondo em um novo texto capaz de evocar em ou-
de ampla cultura geral, abstraindo parcial- tros leitores aproximadamente o mesmo
mente de sua subjetividade, com uma ati- mundo ficcional, através de equivalentes
tude que poderia ser caracterizada pela fór- procedimentos estéticos, que é enquadra-
mula kantiana do “prazer desinteressado”. do em outro contexto cultural e outro mun-
É um conceito que promove uma implícita do vivenciado, originando por isso novos
exclusão dos operários como também de significados. O tradutor é leitor na medida
pessoas fortemente engajadas emocional em que evoca o mundo ficcional no ato da
ou politicamente (12). leitura, seguindo crítica e criativamente as
Quanto ao leitor-tradutor, no entanto, instruções do leitor implícito, mas ele tam-
cabe sim concebê-lo como leitor aberto, bém é autor, na medida em que dá palpável
culto, conhecedor das tradições poéticas, realidade lingüística a esse mundo ficcional.
retóricas, filosóficas, morais a que se refe- Vai embutir no texto de chegada, por sua
re implícita ou explicitamente o escritor, vez, um conjunto de dispositivos para ou-
perfeitamente apto ao papel de leitor pre- tros atos de leitura, um segundo leitor im-
visto na obra. Se Eagleton tem razão em plícito, calcado no do texto de partida, de
não descartar a legitimidade de leituras com acordo com as estratégias de apropriação e
menos experiência literária, senso históri- recriação do tradutor, que podem oscilar
co e abertura ideológica, se ele considera entre os pólos extremos do total estra-
pessoas pouco instruídas como leitores nhamento e da total assimilação com res-
competentes mesmo que só realizem pe- peito ao novo âmbito cultural. O leitor da
quena parte dos significados de um texto, tradução por sua vez realiza significados
isso no entanto não vale para o leitor-tradu- que resultam da realização que fez o tradu-
tor, que não deve poupar esforços para jus- tor dos significados do original, sendo por-
tamente tentar aproximar-se do leitor ide- tanto um re-leitor que só pode evocar aqui-
al. Talvez o tradutor seja quem mais com- lo que o seu pré-leitor evocou e fixou, o que
pletamente segue as orientações do leitor não exclui uma interpretação própria, par-
implícito, transcendendo-o ao mesmo tem- cialmente autônoma com respeito ao tra-
po, detectando especialmente aqueles tra- dutor, que deve, por mais necessária que
ços que se dirigem a um público bem maior seja a sua visão subjetiva, manter, na medi-
do que o da cultura de origem, a um leitorado da do possível, as ambigüidades, polis-
virtual de todas as línguas e épocas, em semias, indefinições da obra, permitindo
última instância: a todo o gênero humano. uma multiplicidade de leituras e interpre-
Entende as orientações do autor para o lei- tações. A tradução bem-sucedida é quase 12 Eagleton, 1997, pp. 107 e
segs.
tor, principalmente os seus aspectos tão polifônica, pluridimensional, sugesti-
translinguais e transculturais, mesmo que va quanto o original, emancipando-se par- 13 Sobre o conceito de encena-
ção ver Iser (Rio de Janeiro,
não tenham sido premeditadas, como su- cialmente da intenção e do leitor implícito 1996, pp. 356-63).

REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000 91


criado pelo tradutor, desdobrando-se em circunstância não essencial, uma questão
outros rumos, num processo de objetivação de vaidade ou de interesse econômico. Por
que lembra o do original. isso estratégias explícitas ou implícitas no
O tradutor implícito, na medida em que sentido de orientar o leitor estrangeiro e o
abrange um feixe de orientações que valem tradutor seriam desnecessárias.
também para o leitor de línguas e culturas A importância da tradução para a vida
estrangeiras, seria o denominador comum dos originais é uma temática ampla e muito
dos elementos de translingualidade, discutida sobre a qual aqui convém esbo-
transculturalidade, traduzibilidade, inscri- çar apenas umas poucas observações. Tal-
tas nas obras, já que estas não esgotam o vez não seja supérfluo chamar a atenção
seu sentido na real ou possível recepção para um fato tão familiar que fica desperce-
pelo leitorado-alvo, tendo um superávit de bido fora da área filológica: os próprios
significados, transcendendo a época e a materiais de que são construídos os textos
comunidade lingüística para que foram – os idiomas e o que neles se objetiva, as
escritas. Essas instruções para a tarefa do convenções literárias, os parâmetros
tradutor, como aquelas para o ato da leitu- interpretativos, os conhecimentos e idéias
ra, não são imutáveis; elas, pelo contrário, das mais diversas áreas – se devem a uma
podem mudar ao longo dos tempos, de longa tradição tradutória, no sentido pró-
modo que o tradutor, com toda a atenção e prio e figurado. As línguas européias, e
sensibilidade de que é capaz, vai tateando, outras provavelmente também, em maior
olhando, escutando o texto para perceber ou menor grau, são resultados de múltiplos
como ele quer ser lido e traduzido no tem- processos de tradução, de empréstimos
po presente e para determinada cultura-alvo. lexicais, empréstimos semânticos, decal-
ques de provérbios, influências sintáticas,
imitação e recriação de metáforas, adoção
e assimilação de mitos, provérbios, cren-
OS ORIGINAIS PRECISAM DAS ças, ideologias que sempre aparecem em
forma de linguagem (14). Esse parentesco
TRADUÇÕES? que se deve à mesmice das origens greco-
latino-francesas, bíblicas, científicas das
Poder-se-iam alegar algumas objeções. línguas européias e aos contínuos intercâm-
Uma diferença entre leitor implícito e tra- bios entre elas, garante-lhes um grande
dutor implícito seria a seguinte: se o ato da patrimônio cultural e terminológico comum
leitura sem dúvida é constitutivo para a exis- que tende a se universalizar pelo mundo
tência dos textos, se ele está previsto e prefi- afora, hoje sob a égide do inglês estadu-
gurado na sua composição, estilo, temática, nidense. A própria ferramenta de que se
perspectiva narrativa – o ato da tradução serve um escritor, seja latino-americano,
aparentemente não o é. A plausibilidade de seja alemão ou inglês, compartilha portan-
se conceber o papel do leitor previsto nas to um enorme fundo de conceitos, imagens
obras não valeria portanto para o papel do e modos de pensamento com outras lín-
tradutor. Os originais, pelo menos à pri- guas e culturas, excedendo já por isso o seu
meira vista, podem prescindir da tradução, próprio âmbito lingüístico e cultural, o que
o que fica provado pelo fato de que há facilita a tarefa do tradutor, apesar da ame-
milhares, se não milhões de obras não aça dos falsos amigos. As línguas européias
traduzidas na história das literaturas. Fo- em grande parte são criações de tradutores,
ram ou são lidas, sim, precisam ser lidas principalmente a partir do latim. Quem es-
para ter plena realidade, mas não necessa- creve em português escreve parcialmente em
14 Um exemplo de empréstimo se- riamente ser traduzidas. Ser lido ou não ser “europês”, ou “ocidentês”, ou seja, a sua obra
mântico é o termo “levantamen-
to em massa”, em Os Sertões, lido é uma questão fundamental para qual- em muitos de seus elementos lingüísticos e
evidentemente calcado no fran- quer texto; ser traduzido ou não poderia intelectuais provém de outras línguas e cul-
cês “levée en masse” (cf. Zilly,
1997, p. 8). parecer, do ponto de vista do autor, uma turas e a elas se remete.

92 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000


Nem todos os escritores acentuam es- e para o qual colaborou também como tra-
ses traços translinguais tanto quanto dutor e teórico da tradução (16). Cada uma
Euclides da Cunha, mas nenhum os pode das literaturas nacionais ou regionais seria
ignorar. Seria dificílimo escrever um texto infinitamente mais pobre, e as obras que
de alto nível estético e significativo com hoje fazem parte do patrimônio cultural da
respeito à condição humana para uma só humanidade praticamente não existiriam
comunidade lingüística, pois o próprio ou seriam bem diferentes. As obras clássi-
material lingüístico e as formas literárias, cas da Antigüidade, do antigo Israel, dos
além das mensagens por assim dizer antro- indianos, dos chineses, também da Idade
pológicas, iam transbordá-la. As obras, Média, das chamadas línguas menores, do
principalmente as do mesmo âmbito islandês, dos idiomas bálticos por exem-
civilizatório, já estão, por sua translin- plo, todas elas produtos de trocas culturais
gualidade e transculturalidade, com um pé e traduções, seriam, não fossem traduzidas
em outras línguas e culturas, pedindo e por sua vez, esquecidas, a não ser para um
suscitando traduções, para complementar número ínfimo de conhecedores. Não per-
os elementos tradutórios que lhes são ine- tenceriam realmente à vida literária mun-
rentes (15). É verdade que um elemento dial, no sentido de um processo de inter-
transferido de um sistema de signos para câmbios e discussões entre texto, crítica,
outro tem seu valor modificado, de modo público. Seriam uma Bela Adormecida à
que geralmente não há identidade total, mas espera do seu príncipe, o tradutor, que as
sim semelhanças micro e macroestruturais. resgatasse e as fizesse reviver, idênticas e
Qualquer livro brasileiro é, entre outras transfiguradas ao mesmo tempo.
coisas, resultado de três mil anos de inter- O tradutor é duas vezes crítico, na me-
câmbios culturais e processos tradutórios, dida em que faz uma análise e interpreta-
cada vez mais contínuos e densos, sem os ção, seja racional seja intuitiva, do origi-
quais não haveria as línguas nem os modos nal. Ademais, o próprio texto, em que ele
de pensar que temos, nem os textos, e mui- objetiva e ao mesmo tempo “esconde” essa
to menos as suas traduções. O fundo co- crítica, transformando-a em forma estéti-
mum de meios de expressão é particular- ca, também constitui um comentário críti-
mente grande entre as línguas neolatinas, co, embora não analítico, em relação ao
dominadas há séculos pelo francês, que até original, além de ser sua reprodução
hoje tenta impor-lhes os seus neologismos, metamorfoseada, uma transcriação, como
disputando o seu poderio com o inglês. diz Haroldo de Campos, sendo qualquer
Se a história da recepção de uma obra tradutor, necessariamente, um crítico pelo
não pode prescindir dos atos de leitura e da menos implícito (17). A sua interpretação
crítica literária que os acompanha, dificil- pode ser valiosa também para o conhece-
mente pode prescindir da tradução que tam- dor da língua de partida, de modo que só 15 Na crítica literária e nos estu-
dos culturais de hoje em dia
bém é crítica, comentário, exegese, mar- em parte o original e a tradução se substi- muitas vezes se usa o termo
tradução ou tradutor numa
cando fortemente a fortuna dos livros, seu tuem mutuamente, fazendo-o cada vez acepção semimetafórica, para
papel na vida literária fora do seu âmbito menos à medida que ganha importância a caracterizar relações intertex-
tuais ou intratextuais de termos
lingüístico, mas freqüentemente com re- função poética em um texto (18). Sendo e de idéias, que geralmente
de fato têm elementos de tra-
percussões dentro dele. Um Shakespeare assim, é particularmente esdrúxula a opi- dução no sentido próprio (ver
nunca traduzido não seria o Shakespeare nião, muito difundida entre “cientistas da Villaça, 1998).

que existe hoje na Inglaterra, apesar do literatura” na Alemanha, de que só deve ler 16 Ver Berman, 1984, pp. 87-
110.
papel hegemônico do inglês. Sem tradução traduções quem não conhece a língua do
17 Ver Campos, 1992, pp. 31-
não haveria tradição literária internacional, original, de modo que bibliotecas na área 48; Campos, 1989, pp. 94-
quase não haveria intertextualidade além de letras não precisariam comprar tradu- 5.

das fronteiras lingüísticas, não haveria a ções, já que os estudiosos conhecem ou 18 À medida que fica mais impor-
tante a função referencial, au-
Weltliteratur que Goethe idealizou também deveriam conhecer as respectivas línguas menta o grau de traduzi-
como expressão do alcance universal da originais. Deixam-se guiar pela ingênua bilidade e de substituibilidade
do original; ver Jakobson,
poesia, no sentido mais amplo da palavra, idéia de que a tradução seria apenas uma 1969, pp. 118-62.

REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000 93


imperfeita reduplicação do original, mule-
ta daquele coitado deficiente cultural que O TRADUTOR COMO CO-EDITOR
não lê fluentemente as grandes obras nos
idiomas originais. DO ORIGINAL
Se, não apenas na literatura, mas tam-
bém na filosofia, teologia, jurisprudência, Um dos efeitos mais freqüentes e me-
na própria crítica literária por vezes, os nos percebidos que a tradução exerce sobre
clássicos campos da hermenêutica, é praxe o original é de ordem filológica: concerne
corrente e elucidativa usar, na leitura de à escolha e ao estabelecimento da própria
textos difíceis, polissêmicos, herméticos, versão a ser traduzida.
um comentário descritivo ou analítico, por Como qualquer leitor, o tradutor, no caso
que não se valer também de um comentário de uma obra com várias tiragens e edições,
palavra por palavra, frase por frase, em tem que fazer uma opção e, tratando-se de
forma de tradução que quase sempre é uma uma edição crítica, tem que optar de vez
elucidação, uma atualização e universa- em quando entre várias lições dos mesmos
lização, com parcial desambigüização so- trechos, e mesmo que haja uma única lição
bretudo tratando-se de textos não- ele pode tropeçar em palavras ou frases que
ficcionais? Um exemplo clássico é justa- lhe parecem corrompidas, pondo-lhes a nu
mente o instigante mas hermético ensaio sua frágil consistência filológica. Pode se
de Walter Benjamin, “A Tarefa do Tradu- tratar de erros ortográficos, lexicais ou gra-
tor”, que desdobra melhor o seu potencial maticais, raciocínios ilógicos ou equívo-
de significados quando se começa a tradu- cos factuais, por exemplo a menção de
zi-lo ou a estudá-lo em traduções já feitas, Hannover como porto marítimo em roman-
mas não acabadas, pois uma tradução nun- ce brasileiro dos anos 70, sendo intencio-
ca fica pronta (19). Um dos métodos mais nado evidentemente Hamburgo, imperfei-
eficientes para entender um texto que re- ções que o leitor, percebendo-as, vai emen-
19 Benjamin, 1994; ver também siste à imediata compreensão é traduzi-lo, dar tacitamente, ao passo que outras emen-
os ensaios de Jacques Derrida,
Carol Jacobs, Paul de Man e sendo o tradutor o guia do crítico, e vice- das exigem pesquisas, ponderações e hesi-
outros sobre o ensaio de Benja-
min, em Hirsch (1997). versa, motivo pelo qual o autor do presente tações. Se o leitor geralmente pula um tre-
20 Störig, 1973, p. VIII. A obser- artigo empreendeu a transposição de Os cho que lhe parece corrompido, essa saída
vação de Jean Paul (1763- Sertões ao alemão. é barrada ao tradutor que não pode se es-
1825) pode ser entendida
como uma espécie de A traduzibilidade portanto não é uma quivar à obrigação de decidir qual a versão,
autolegitimação, pois as suas
próprias obras, best-seller na
circunstância exterior e aleatória das obras. qual a lição, qual a emenda em que deve
Alemanha da época, por sua Estas, principalmente as mais significati- basear a versão de chegada. Tem a respon-
fantasia transbordante, seu hu-
mor um pouco excêntrico, com vas e expressivas, as de mais alto nível sabilidade de escolher as lições mais con-
notas melancólicas, e sua sen- estético, as mais ricas e concretas em expe- dizentes com a vontade do autor, com a
sibilidade Biedermeier, espécie
de romantismo idílico caseiro, riências humanas, as de mais rico potencial atualidade histórica e com o grau de instru-
típico da burguesia alemã, prin-
cipalmente do seu componente de sentidos, essas sim pedem, exigem, mas ção do leitor-alvo.
feminino, na primeira metade também desafiam e repelem a tradução. Pois Quanto mais um texto é marcado pela
do século XIX, de fato se opõem
ao traslado a outras línguas, justamente por serem bem-sucedidas ao forma, ou seja, pela função poética, na acep-
apesar de sua inegável quali-
dade literária. Há quem diga
nível formal, arraigadas em sua cultura, ção de Jakobson (21), mais problemáticas
que Aleksander Púchkin, um dos lançando mão do rico instrumental de sua são essas correções e conjecturas, de modo
maiores autores russos de to-
dos os tempos, também é língua, são particularmente difíceis de se que muitos editores hesitam em emendar
intraduzível, consistindo sua traduzir, um quebra-cabeças para o tradu- trechos defeituosos ou problemáticos, prin-
maior qualidade na sua aura
incorpórea, criada pelo estilo, tor. O escritor romântico alemão Jean Paul, cipalmente quando se trata de uma obra
que seria banalizado em qual-
quer tradução: ver Viktor na sua Vorschule der Ästhetik (Estudo Pre- clássica cuja consagração parece se esten-
Jerofejew, “Das Rätsel der liminar de Estética), chegou a afirmar que der aos próprios erros. A pretensão do tra-
Unübersetzbarkeit: Gab es
Puschkin überhaupt? Zu seinem as obras de fácil traduzibilidade não mere- dutor de produzir um texto esteticamente
200. Geburtstag am 6. Juni”,
in Frankfurter Rundschau, 5/6/
cem uma tradução, pelo que se poderia coerente, em que cada detalhe deve ter fun-
1999, p. ZB 2. deduzir que só as intraduzíveis é que a ção e sentido, eliminando erros desvir-
21 Jakobson, 1969. merecem (20). tuadores da intenção do autor, é de execu-

94 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000


ção particularmente difícil e requer especi- dical antípoda da futura estética da recep-
al cautela em textos de vanguarda do sécu- ção de que Wolfgang Iser será um dos ex-
lo XX, já que o desvio das normas lingüís- poentes. Esboça uma visão essencialista,
ticas, estilísticas e lógicas faz parte de sua quase teológica e messiânica da arte, mas
qualidade estética. Seria desejável que fos- ao longo da argumentação enfatiza por outro
se permitido ao tradutor prestar contas des- lado a radical historicidade das obras, as
se seu trabalho filológico e editorial em mudanças do seu sentido com as mudanças
forma de notas finais, pois ele parte de um dos tempos, o que já soa bem menos es-
original que a rigor, na sua exata e comple- sencialista. Dá pouca importância à mensa-
ta forma, em todos os seus detalhes, nunca gem, ao conteúdo, à função referencial,
foi impresso, que ninguém acharia se o como diria Jakobson, realçando a forma,
procurasse, que é uma versão invisível, reivindicando uma “formvolle Über-
embora elaborada conscienciosamente. setzung”, uma tradução marcada pela for-
Exagerando um pouco, pode-se dizer que ma (22).
cada tradutor traduz o seu próprio original Admite Benjamin por um lado que cer-
que, com suas emendas só reconhecíveis tos significados ficam encobertos nos ori-
indiretamente, através da tradução, pode ginais, esperando pela sua tradução, como
eventualmente repercutir em reedições do que por um passe de mágica, para serem
texto de partida, o que já aconteceu com a desvendados e animados, avivados; por
edição crítica de Os Sertões. Os tradutores outro lado acrescenta a restrição, para logo
não fazem alarde dessa sua tarefa de filólogo questionar a importância do tradutor, que o
e editor crítico, por ser tão comum e apa- seu trabalho nada significa para as obras
rentemente banal. Em verdade, porém, é originais, o que não deixa de ser uma certa
uma das várias maneiras de que a tradução contradição, mesmo porque admite tam-
lança luz sobre o original, revelando os seus bém que as obras vivem e sobrevivem, como
atributos intrínsecos. substâncias orgânicas, como seres vivos,
em grande parte através das traduções. O 22 Benjamin, 1955, p. 53.
que vive pode mudar, crescer, amadurecer, 23 Ver Benjamin, 1955, p. 44. A
“ter um amadurecimento tardio, posterior”, comparação com as bananas
A TRADUÇÃO NAS ENTRELINHAS, pode envelhecer, ou morrer talvez, o que o
naturalmente é anacrônica ou
talvez até indigna de assunto
tão elevado, mas talvez não
autor não diz mas o que se pode deduzir. O
SEGUNDO BENJAMIN termo alemão nachreifen poderia signifi-
fora do lugar, pois também são
produtos transpostos para ou-
tro contexto social e cultural,
car também que as obras não estão total- ficando idênticos e transforman-
Sobre várias das questões de que temos mente maduras na hora do seu acabamen- do-se ao mesmo tempo, tanto
física como simbolicamente.
tratado, Walter Benjamin teceu instigantes to, e que tal como as maçãs, colhidas duras A. Berman (Berman, 1996) ob-
serva que as próprias traduções
reflexões no seu famoso ensaio “Die e azedas para ficarem comestíveis no de- não conheceriam essa
Aufgabe des Übersetzers”. Seria temerário correr do inverno, ou as bananas, colhidas Nachreife, seriam por assim di-
zer maduras com o seu acaba-
tentar aqui analisar um texto que há déca- verdes e exportadas dos trópicos para a mento, envelhecendo mais rá-
pido do que os originais, uma
das vem desafiando os estudiosos, opon- Europa, precisam amadurecer posterior- constatação em princípio plau-
do-se a uma exegese unívoca, mantendo mente para poderem ser “consumidas” (23). sível, que no entanto não deve
ser absolutizada; por exemplo
um certo hermetismo até hoje. Mas dei- Talvez até se possa dizer que os textos nunca as traduções de Homero por
xem-me tirar uma idéia interessante, para a ficam totalmente acabados, já que preci- Johann Heinrich Voss, do fim
do século XVIII, até hoje são as
nossa temática, dessa “Tarefa do Tradu- sam da colaboração do leitor, nem ficam mais lidas em língua alemã; e
por outro lado as traduções de
tor” cujo título aliás também pode signifi- totalmente maduros para sempre, já que obras gregas, como da
car “A Desistência do Tradutor” ou “A uma nova constelação histórica pode even- Antígone de Sófocles, por
Hölderlin, também de duzen-
Capitulação do Tradutor”, como já foi ob- tualmente envelhecê-los ou, ao contrário, tos anos atrás, só no nosso
século revelaram toda a sua
servado por vários críticos e como vocês rejuvenescê-los. qualidade e modernidade,
talvez saibam. Já na primeira frase porém De qualquer forma eles sobrevivem nas como aliás demonstra o pró-
prio Berman (1984, pp. 250-
o autor postula a total indiferença da obra traduções que garantem a sua “glória”, ter- 78), de modo que quando
com respeito à leitura e portanto à tradu- mo no fundo incompatível com uma visão Brecht fez uma adaptação
daquela tragédia, apoiou-se
ção, aparecendo à primeira vista como ra- essencialista da obra literária, que, se real- na tradução de Hölderlin.

REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000 95


mente independesse da leitura, também e ao seu âmbito lingüístico através da sua
poderia e deveria prescindir da glória. Se traduzibilidade: “Pois todos os grandes es-
esta lhe é importante, a tradução também o critos, em qualquer grau, e os escritos sa-
é, sendo o original sozinho incapaz de gerá- grados em grau máximo, contêm nas entre-
la e mantê-la. Mais importante é outro pa- linhas a sua tradução virtual” (26). O teó-
pel das traduções. Mesmo que elas fossem rico da literatura Karlheinz Barck, anali-
desnecessárias para as próprias obras lite- sando Benjamin, fala da “traduzibilidade
rárias tomadas isoladamente, seriam neces- como propriedade inscrita em toda obra
sárias sim para a relação entre as línguas original de valor […], algo como uma ad-
pós-Babel, de tendências não apenas cen- vertência (ou uma convocação) do original
trífugas mas também centrípetas, conver- a exigir a tradução” (27).
gindo no intercâmbio entre as literaturas, Temos aí, em outras palavras, a idéia do
na vida literária mundial. Esta vive das tradutor implícito, um conjunto de marcas
divisões mas também da permeabilidade e balizas para o tradutor na sua lida para
entre as línguas, reforçando-a, acentuando aproximar a obra de uma hipotética língua
a profunda afinidade entre elas, menos em geral da humanidade, atendo-se e dando
relação aos próprios significados do que no seguimento aos seus traços de translin-
modo de significar, na sua capacidade de gualidade e traduzibilidade. E naturalmen-
simbolizarem o mundo e de permitirem a te ele resgata essa transcendência da obra
24 Benjamin, 1955, p. 48; ver comunicação entre os homens. Cabe ao tra- para além do seu âmbito lingüístico tanto
também Benjamin,1994, pp.
22 e 23, onde a versão portu- dutor tornar transparente essa aspiração das melhor quanto mais procura transmitir a
guesa reza: “Esta [a tarefa do línguas pela complementação por outras, sua forma, justamente aquilo que é mais
tradutor] consiste em encontrar,
para a língua na qual se tra- inerente aos textos originais. A totalidade difícil e quase impossível de se transmitir,
duz, determinada intenção a
partir da qual nela é desperta- das intenções das línguas que vão além delas introduzindo na obra de chegada traços e
do o eco do original. […] A mesmas seria a língua pura, talvez: a lin- elementos do original, tornando-a provo-
tradução não se vê, como a
obra de arte verbal, por assim guagem humana com todas as suas poten- cadoramente estranha na sua nova familia-
dizer, na floresta interna da lín-
gua; mantém-se fora desta, fren-
cialidades expressivas e comunicativas, a ridade lingüística, deixando nela trans-
te a ela e, sem a penetrar, con- utopia de a humanidade ter uma língua só, parecer traços formais da língua e cultura
voca o original para nela in-
gressar no único lugar onde o infinitamente rica, mais empiricamente – de partida. Pois o tradutor, como reivindica
eco pode dar a ouvir a obra da aquilo que as línguas mais diversas têm em Rudolf Pannwitz, citado por Benjamin,
língua estrangeira em sua pró-
pria língua. Sua intenção se comum, graças às faculdades universais do deve “indianizar, helenizar, anglicizar o
dirige a outro objeto que não
apenas o da obra de arte ver- intelecto humano, o que mais tarde seria alemão”, e, por que não, também abrasilei-
bal, a saber, a uma língua em aliás uma preocupação da gramática rá-lo, acrescentamos nós (28). “A verda-
sua totalidade, a partir de uma
única obra de arte numa língua gerativa, de Noam Chomsky. deira tradução é transparente, não oculta o
estrangeira, mas é em si mes-
ma diversa: a intenção do es-
O tradutor teria a tarefa justamente de original, não o ofusca, mas faz com que
critor é ingênua, primeira, intui- colaborar com essa imensa obra de aproxi- caia tanto mais plenamente sobre o origi-
tiva, a do tradutor derivada,
última, intelectual. Pois o que mação das línguas, tornando transparentes nal, como se forçada por seu próprio meio,
realiza seu trabalho é o motivo as estranhezas e as convergências entre elas, a língua pura. Isso se obtém sobretudo pela
maior de uma integração das
muitas línguas na língua verda- juntando fragmentos para a grande obra da literalidade na transposição (Übertragung)
deira”.
língua pura, utópica, messiânica. As tra- da sintaxe, e justamente é a literalidade o
25 Idem, 1994, p. 29.
duções são etapas nesse caminho, cujo que mostra a palavra, e não a frase, como o
26 Idem, ibidem, p. 32. destino é inalcançável. O tradutor deve, elemento originário do tradutor. Pois a fra-
27 Barck, 1994, pp. 38-9. segundo Benjamin, encontrar através do seu se é o muro diante da língua do original; a
28 Benjamin, 1994, p. 30. trabalho aquela intenção dirigida para o literalidade, a arcada” (29).
Pannwitz era membro do seleto
círculo de literatos em torno do idioma de chegada, a partir da qual nele é Sabemos que essa idealização da ver-
poeta Stefan George (1868-
1933) que, com atitude elitista
despertado o eco do texto de partida (24). são interlinear não pode ser tomada ao pé
e autoritária, propagava uma “Resgatar em sua própria língua a língua da letra, e nem o próprio Benjamin o fez
poesia cultual, hierática, hermé-
tica, embora voltada também pura, ligada à língua estrangeira, liberar, enquanto tradutor, é uma hipérbole quase
à modernidade, recebendo pela transcriação (Umdichtung), a língua barroca, pois, se realizada rigorosamente,
muitos impulsos do simbolismo
francês. pura, cativa na obra, é a tarefa do tradutor” tornaria o texto de chegada hermético, dei-
29 Idem, ibidem, p. 30. (25). As obras se transcendem a si mesmas xaria de promover o seu perviver e invia-

96 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000


bilizaria o seu papel transcendente em rela- Antoine Berman, outro conhecedor da obra
ção ao original, rumo à língua pura. É pos- benjaminiana, disse que “toute oeuvre
sível sim, por exemplo no alemão, com sua prévoit sa traduction dans sa structure”
relativa liberdade na colocação das pala- (33), ele parece prefigurá-lo. Vai na mes-
vras, imitar parcialmente a seqüência dos ma direção uma outra frase do falecido tra-
elementos lexicais do original, forçando um dutor e teórico francês:
pouco as suas regras sintáticas, sem quebrá-
las realmente. Pois seria problemático tor- “Le rapport interne qu’une œuvre entretient
nar estranho ou até incompreensível na tra- avec la traduction (ce que’elle contient en
dução aquilo que no original é corriqueiro soi de traduction ou de non-traduction) 30 A tradução de Lemprière’s
Dictionary, de Lawrence
e nada chamativo, de modo que a estranhe- détermine idéalement son mode de Norfolk, para o alemão foi
za, além de caracterizar a tradução de um traduction interlangues, ainsi que les criticada justamente por con-
ferir estranheza a trechos nada
modo geral, dentro dos limites de uma ‘problèmes’ de traduction que’elle peut estranhos em inglês; ver
inteligibilidade condizente com o gênero e poser. Ou encore: le rapport que sa langue Gerzymisch-Arbogast, 1994,
pp. 18 e segs.
o assunto, só deve se aplicar àquilo que entretient avec une ou plusieurs autres
31 Rosemary Arrojo, como outros
também é estranho no original (30). Assim langues […] détermine sa traduction dans teóricos pós-modernos, aplica
esse termo à própria obra lite-
haveria dois tipos de estranhamento, carac- une autre langue” (34). rária, que seria palimpsesto na
terizando por um lado o texto-alvo como um medida em que não é uma
estrutura estável de signos e
todo, na medida em que nele vêm à tona significados, mas carente de
ser reinterpretada, reescrita de
atributos do original e da sua cultura, e por
outro lado o desvio, no original, de determi- EUCLIDES TRADUTOR certa forma, em cada ato de
leitura, de modo que camadas
de interpretações vão se
nados detalhes lexicais e sintáticos com res- superpondo ao longo dos tem-
peito à norma e ao horizonte de expectativa, A idéia da tradução é uma presença na pos. O original, cujo conceito
começa a se dissolver parcial-
tendo o tradutor que recriar essa qualidade vida e na obra de Euclides. O próprio autor mente, portanto é uma “máqui-
na de significados em potenci-
diferencial. Para caracterizar a tradução que é um viajante entre dois mundos, é media- al” (Arrojo, 1986, p. 23), me-
permite a transparência das qualidades do dor, explicador, intérprete, ‘Übersetzer e táfora bem elucidativa. A do
palimpsesto porém talvez cai-
original, reivindicada por Benjamin, cabe- Übersétzer, barqueiro entre duas margens ba melhor à tradução, através
da qual se pode vislumbrar
ria uma metáfora bastante apreciada hoje e também trasladador de mensagens entre tanto a história da recepção,
em dia, a do palimpsesto (31). duas linguagens e culturas. Tem valor sim- as camadas de sucessivas in-
terpretações, como também o
As convergências entre Benjamin e a bólico a atividade simultânea desse enge- estilo do original, além do seu
posterior estética da recepção com respeito nheiro letrado como construtor de uma pon- conteúdo referencial, de modo
que a tradução seria o
à tradução foram estudadas por Haroldo de te atravessando o Rio Pardo, no interior palimpsesto dos palimpsestos.
Campos num artigo em que se aproxima da paulista, e como autor de Os Sertões, livro 32 Campos, 1989, pp. 94-5.
idéia do tradutor implícito: “O texto tradu- destinado a atravessar o abismo de igno- 33 Berman, 1995, p. 25, nota
zido, como um todo (como um ícone de 25.
rância e incompreensão entre a população
relações intra-e-extratextuais), não deno- sertaneja e os intelectuais do litoral. É com 34 Idem, 1985, p. 113. Esta ci-
tação se refere à tradução do
ta, mas conota seu original; este, por seu boas razões que se usa a metáfora da ponte Paradise Lost de Milton por
Chateaubriand e ao estreito
turno, não denota, mas conota suas possí- para caracterizar a atividade tradutória, diálogo daquele com o latim,
veis traduções. Ocorre assim uma dialética ponte que, ainda que à primeira vista de o hebreu, o grego e o italiano,
no que foi seguido por seu tra-
perspectivista de ausência/presença. A tra- mão única, funciona nos dois sentidos, vis- dutor. Não fica claro se
Berman, quando estudou Ben-
dução é crítica do texto original na medida to que, como já dissemos, a tradução tam- jamin, referiu-se à sua idéia da
em que os elementos atualizados pelos bém lança luz sobre o original (35). traduzibilidade inscrita nas
obras, uma vez que o seu texto
novos atos ficcionais de seleção e combi- Para tornar a “terra ignota” menos ig- publicado sobre o ensaio de
nação citam os elementos ausentes; o ori- nota, Euclides basicamente se vale de dois Benjamin só é fragmento de
artigo maior, ainda não publi-
ginal, por sua vez, passa a implicar as suas métodos complementares: aproveita a sabe- cado; ver idem, 1996. Devo
o conhecimento deste texto ao
possíveis citações como parte constitutiva doria e a terminologia do sertanejo, citada psicanalista Marcelo Marques.
de seu horizonte de recepção (a sobrevida em grifos ou não, para denominar, descre- 35 Ver por exemplo o título do li-
do original, o seu perviver, na terminologia ver e explicar o sertão como natureza e vro de José Paulo Paes, Tradu-
ção: a Ponte Necessária (São
de W. Benjamin)” (32). sociedade, o seu clima, solo, fauna, flora, Paulo, Ática, 1990); sobre a
A idéia do tradutor implícito está por metáfora do tradutor como
agricultura, artesanato, cultura, religião, construtor de pontes ver tam-
assim dizer no ar há muito tempo. Quando violência. Deixa-se encantar por vezes, bém Hönig, 1997, p. 19.

REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000 97


como um etnógrafo meio romântico, pela de um sertão híbrido, europeizado,
vida patriarcal, quase bíblica do sertanejo, asiatizado e africanizado, de modo que pode
pela simbiose em que vive com a natureza, ser incorporado ao imaginário da nação e
e pelo seu folclore, registra e quase continua do mundo (37).
a auto-representação do povo e de seus A linguagem que utiliza e que cria,
cantadores, citando-a e enquadrando-a na embora enriquecida de numerosos termos
linguagem da ciência e da história, pratican- regionais, é no entanto transregional, pan-
do uma tradução intralingual, do português lusitana e até cosmopolita, transcendendo
do sertão ao português dos letrados urbanos as épocas e as variedades do português,
e cosmopolitas, “sertanizando-o” até certo amalgamando palavras e construções sin-
ponto, trabalho continuado por posteriores táticas do Brasil todo, do Amazonas até o
intérpretes da sertanidade, entre os quais Rio Grande do Sul, de Portugal, de Vieira
Graciliano Ramos e Guimarães Rosa (36). até o Naturalismo e o Parnasianismo, in-
Outro método tradutório usado por cluindo inúmeros termos técnicos univer-
Euclides vai pelo caminho inverso, às ve- sais. O autor, preocupado com a falta de
zes se encontrando com o primeiro a meio comunicação e entendimento entre cultu-
caminho. Leva a erudição européia ao ser- ras e nações, cria um português que contém
tão, jogando sobre ele sua rede numerosos elementos de sua própria tradu-
terminológica e conceitual, traduzindo – ção para uma língua geral de todos os ho-
concreta e metaforicamente – os fenôme- mens civilizados, em que todos, também
nos desconhecidos do sertão para a lingua- os seres emudecidos e vencidos, incluindo
gem e o ideário do Velho Mundo, com os as plantas, os animais e as pedras sofridas,
36 O aproveitamento da sabedo- seus termos científicos, antropológicos ou tenham vez e voz, para que se possa supe-
ria e até da superstição popu- filosóficos, seus modelos interpretativos, rar “as loucuras e os crimes das nacionali-
lar se encontra no livro todo,
mas de maneira concentrada conceitos ideológicos, conhecimentos geo- dades” (38).
na segunda parte, intitulada O
Homem, III subcapítulo, que
gráficos, lançando mão de um sem-núme- A comparação e a equiparação, por mais
começa com a famosa frase “O ro enciclopédico de metáforas, alegorias, elucidativas que sejam, tendem a subordi-
sertanejo é, antes de tudo, um
forte”, assim como nos dois parábolas, antonomásias ou classificações, nar o desconhecido ao já conhecido, tolhen-
subcapítulos subseqüentes; ver estabelecendo filiações, afinidades, analo- do-lhe a sua singularidade, sua imponência,
Cunha, 1985, pp. 179-255.
gias e sistematizações por vezes audazes, sua força. O artista em Euclides, ciente desse
37 Os padrões conceituais ou es-
téticos para explicar o Brasil tomadas do inventário da história univer- perigo, neutraliza-o, principalmente com
provêm da geografia, da geo-
logia, da história, das religiões
sal e de quase todas as ciências, misturando recursos literários e até ficcionais, ao man-
ou da literatura do Velho Mun- história natural e história humana. ter o sertão e sua guerra no semimistério,
do. Euclides fala no extinto
“Himalaia brasileiro”, em Por que explicar o sertão via Europa, ao enfatizar sua alteridade, sua resistência
“ciclópicos coliseus”, em Ásia e África? É que o Velho Mundo, a sua às categorizações e explicações, sua gran-
“cânions”, “menires”, também
em “paisagens alpestres” (Cu- terminologia, os seus códigos intelectuais diosidade, transformando-o em mito naci-
nha, 1985, p. 94). O Brasil é
visto por dentro e por fora. O e éticos eram bem mais familiares aos le- onal e saga universal. Ele vai, durante a
mês de março é caracterizado trados brasileiros do que a realidade do redação do livro, freando um pouco a ten-
como de “primavera” (idem, p.
195). É evocada várias vezes interior do seu próprio país. A intenção do dência comparativa, para abrasileirar a sua
a visão que tiveram do Brasil os
primeiros descobridores, os “fo-
autor, enquanto patriota, era justamente visão do Brasil, denominando-o e ex-
rasteiros” dos tempos coloniais. fazer com que eles voltassem o olhar imbu- plicando-o mais com recursos nativos. O
38 São as últimas palavras de Os ído de coisas européias para o interior bra- livro que ia se intitular A Nossa Vendéia,
Sertões, espécie de legado ao
leitor e ao tradutor, até hoje de sileiro, sem abandonar o cosmopolitismo, acabou sendo nacionalizado como Os Ser-
óbvia atualidade. necessário para a compreensão do Brasil. tões, título autóctone, auto-referencial, no
39 Euclides, que incorporou tantos As charnecas da Bretanha, a Ásia Menor qual o Brasil não se define mais pela seme-
estrangeirismos no seu livro to-
davia tão genuinamente brasi- dos primeiros séculos do Cristianismo, a lhança com aspectos do antigo continente
leiro, conseguiu, junto com ou-
tros “sertanistas” como Guima-
Arábia, a Palestina ou o Saara, a Europa colonizador, mas dele se emancipa (39).
rães Rosa, Graciliano Ramos, medieval, as estepes eurasiáticas precisa- Podem-se portanto observar dois pro-
Glauber Rocha, incorporar pelo
menos uma palavra aos dicio- vam ser levados ao sertão, para torná-lo cedimentos intelectuais e lingüísticos com-
nários de várias línguas euro- mais familiar, desestranhando-o, designo- plementares: por um lado o sertão é inte-
péias, sertão; ver Duden, 1993-
95, vol. VI, verbete Sertão. tizando-o parcialmente. Vemo-nos diante grado na cultura universal, é elevado,

98 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000


nobilitado, inclusive com seus elementos manidade, na acepção de Benjamin. Reali-
misteriosos e desconcertantes, como uma za elementos de uma tradução interlingual
das grandes paisagens do imaginário mun- a ser continuada por seus tradutores (41).
dial. Por outro lado a cultura universal ex- Pois se aproveita exaustivamente os recur-
plica o sertão, o que relativiza a sua parti- sos da língua portuguesa em todas as suas
cularidade e incompreensibilidade. O ser- dimensões e ramificações, acentua também
tão é terminológica e cognitivamente do- os seus traços transculturais e translinguais.
mado, esclarecido, explicado, porém con- Grande parte das dificuldades com que se
segue manter boa parte de sua misterio- vêem às voltas o leitor e o tradutor provém
sidade que também é exemplaridade, pois, da extrema riqueza vocabular, cheia de
sendo palco de um drama paradigmático regionalismos, arcaísmos, termos técnicos,
de âmbito mundial, ele até influi na civili- eruditos e estrangeiros, dos apelos que o
zação que provoca a desmascarar-se em leitor-tradutor implícito faz à nossa cultura
toda a sua brutalidade. É tipicamente geral, necessária para realizar os significa-
euclidiana a vacilação entre o desejo de dos da obra e tomar uma atitude em relação
analisar e esclarecer tudo, atitude do escri- aos eventos narrados e à história universal.
tor científico, e de manter a cor local, um Euclides não inova como os modernistas,
certo encantamento, o respeito pelo alheio, não inventa nenhuma palavra, nenhum ele-
obscuro e até sinistro, atitude do escritor mento estilístico, é profundamente conser-
poético, ao passo que como historiador e vador em relação ao material lingüístico,
antropólogo ele estaria entre os dois pólos. mas a maneira extremada de que usa e abu-
A atitude iluminista está ligada à esperança sa dos recursos tradicionais e contemporâ-
na perfectibilidade ou pelo menos neos do português, da retórica e poética
reformabilidade do sertão e da civilização, ocidental, é inédita, ao mesmo tempo ar-
assim como na conciliação entre os dois, caica e moderna na sua mestiçagem
ao passo que a atitude poética é profunda- discursiva, quase sempre elevada e subli-
mente trágica, exceto breves momentos lí- me, mesmo na sua estética da feiúra que
ricos, ainda que não haja homologia total lembra o Naturalismo.
entre as antíteses: iluminismo versus en- São elucidativas neste contexto as pró-
cantamento, por um lado, e reformismo prias observações do autor sobre a
versus tragicidade resignada, por outro lado. traduzibilidade de Os Sertões para o fran-
Essa estratégia discursiva na represen- cês. Já em 1897, antes de ter escrito a pri-
tação da realidade, com sua oscilante eqüi- meira linha do livro, havia tratado de pro-
distância entre o descobrir e o encobrir, a curar um tradutor para o francês, ou seja,
incorporação do estranho ao conhecido e o escreveu Os Sertões visando não apenas o
estranhamento do conhecido, caracteriza, leitor brasileiro europeizado, mas o leitor
grosso modo, também a atividade tradutó- francês e através dele os intelectuais da
ria ao longo da sua história, principalmente civilização internacional, da qual o idioma
nos últimos dois séculos. Tradutores e pen- de Renan e Taine era língua geral, até a
sadores como Hölderlin, Voss, Goethe, Primeira Guerra Mundial. Em 15 de maio
Schleiermacher, Benjamin, Berman ou de 1900, dois anos antes de concluir Os
40 Ver Berman, 1984; Milton,
Campos, com muitas diferenças entre si no Sertões, escreveu ao seu eventual tradutor, 1993; Wuthenow, 1969;
o poeta baiano Pethion de Villar: Störig, 1973.
grau de radicalidade, dedicaram-se a
equacionar esses dois tipos opostos de exi- 41 Sobre os conceitos de tradu-
ção intralingual, interlingual e
gências: esclarecer e ao mesmo tempo pre- “Talvez [o livro] não faça jus à consagração intersemiótica ver: Jakobson,
1969, pp. 63-72. Euclides
servar o estranho (40). de uma versão para o francês a que espontâ- também pratica este último tipo
Euclides portanto não traduz apenas do nea e cavalheirescamente te propuseste quan- de “tradução”, ao fazer de
conta de através da narrativa
português ao português, mas está com um do aí estive. Transplantado à mais vibrátil copiar apenas quadros e ce-
nas, Cunha, 1985, p. 178;
pé no francês e nas outras línguas euro- das línguas, por um parisiense dos trópicos, ver também Zilly, 1998.
péias, numa língua comum da civilização temo que o meu estilo, algo bárbaro, não se
42 Galvão/Galotti, 1997, p.
mundial, rumo talvez à língua pura da hu- afeiçoe a tão delicado relevo” (42). 119.

REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000 99


Sabia ou intuía que vigorava na França o neo ao mesmo tempo (46).
ideal da belle infidèle, segundo o qual uma Já na “Nota Preliminar”, o escritor-his-
tradução tinha que se adequar ao ideal toriador deixa claro que o tema do livro não
43 Sobre a famosa fórmula de estilístico de clareza apolínea, e que seria é só a guerra de Canudos, nem só a constru-
Nabuco ver: Andrade, 1960, difícil resgatar algo do estilo híbrido, meio ção da nação brasileira mas a história da
pp. 301 e segs.; a respeito do
mimetismo do estilo euclidiano positivista, meio barroco, altamente retórico, civilização, na sua expansão e luta com
escreve na p. 302: “Euclides,
um homem com a natureza, do
rebuscado, maneirista quase, com sua culturas atrasadas, periféricas, temática
começo ao fim da sua vida, sinonímia transbordante e seus períodos sin- bem moderna, ainda que ele expresse suas
evidenciando, no seu estilo,
aprendizagem com ela, não táticos amontoando-se atravancadoramente. considerações na terminologia social-
poderia ter trazido o sertão até Nota-se porém o seu desejo de que a tradu- darwinista da época. Se Euclides escreve o
nós sem o cipó, sem os rodeios
caprichosos do cipó, ção justamente deixasse transparecer esses livro “ante o olhar de futuros historiado-
dominador de caules e trans-
missor de ‘diálogos’ na flores- traços “bárbaros”, arrevesados, desmesura- res” (47), não pensa somente nos historia-
ta, barbante, corda, cabo de dos, hiperbólicos, um estilo escrito “com dores brasileiros, que naquele tempo exis-
aço, indispensáveis à vida
perigosa e desprovida no ser- cipó”, no dizer de Joaquim Nabuco, com tiam em número ínfimo. Dirige-se ao pú-
tão… Joaquim Nabuco traçou,
sem o querer, talvez, o elogio
pretensão mimética em relação à realidade blico brasileiro e internacional, à posteri-
de um aspecto relevante do inóspita, ínvia, áspera, mas grandiosa do dade, ao futuro, à História una, com maiús-
estilo euclidiano, sugerindo,
numa única frase, o exame de sertão, avessa a uma representação amena, cula, que congrega a humanidade de todos
certa maneira de expressar do comedida, ponderada (43). os tempos. “A História não iria até ali” (48),
estilista de Os Sertões ”; ver
também Mosca, 1997. não iria ao “homizio” que é o sertão, terra
A primeira tradução francesa
só apareceu em 1947, e real- de crimes, do esquecimento e da impunida-
mente aplainou os traços rudes de. Todavia, a História foi até ali, represen-
e “bárbaros” de Os Sertões, de
acordo com o “tão delicado
UM LIVRO QUE PEDE PARA SER tada por seu cronista e advogado Euclides
relevo” da língua francesa, ao
da Cunha, para que escrevesse seu relato-
passo que a tradução de Jorge
Coli e Antoine Seel, de 1993, TRADUZIDO requisitório, obra historiográfica com for-
tentou, com êxito, seguir o tra-
dutor implícito do original; ver tes conotações morais e jurídicas, destina-
Cunha, 1947; 1993. A primei- Os Sertões prevê a sua tradução na sua da quase que hegelianamente não ao Juízo
ra tradutora para o francês,
Sereth Neu, definiu o proble- temática, em seu estilo, na sua sintaxe, na Final mas ao Juízo Universal que somos
ma da seguinte maneira, justifi-
cando implicitamente a estraté- retórica, nas alusões a personagens históri- todos nós.
gia da belle infidèle: “Dans le cas, fatos e doutrinas, nos conhecimentos e Na mesma página termina um dos
jeu des assonances qui est à la
base même du langage, le valores pressupostos no leitor, tendo um subcapítulos da última parte, “Últimos
brésilien apparaît comme un
paysage de montagnes e de
forte excedente semiótico em relação aos Dias”, com a conhecida frase: “Mas que
vallées, avec mille échappées leitores brasileiros da época. Se estes já são entre os deslumbramentos do futuro caia,
nouvelles, avec des points de
vue ou des recoins inattendus, semi-estrangeiros que vivem de uma “civi- implacável e revolta; sem altitude, porque
avec des envolées vers les lização de empréstimo” (44), importante a deprime o assunto; brutalmente violenta,
sommets. Son accent tonique
évoque l’idée d’une mélodie parcela do público-alvo são estrangeiros de porque é um grito de protesto; sombria, por-
dont le thème monte, descend,
hésite, avant de retomber dans verdade, os letrados do mundo civilizado, que reflete uma nódoa – esta página sem
le silence. Le français, c’est la leigos e acadêmicos, leitores comuns e his- brilhos…”.
plaine, unie, précise, subtile,
aux horizons nuancés, dans des toriadores de outras culturas e vindouras A afirmação sobre a falta de brilhos tem
lointains bleus e clairs…” (Cu-
nha, 1947, p. VII). Uma rela-
épocas que só podem ser alcançados atra- que ser relativizada, pois o escritor acende
ção das traduções publicadas vés de traduções (45). Nessa pretensão de diante dos nossos olhos todo um fogo de
até 1990 se encontra em
Garcia, 1995, pp. 17-18. falar ao mundo, Euclides procura prefigurar artifício retórico-poético e desdobra toda
Os primeiros críticos, como José o horizonte de expectativa do leitor e er- uma arte encenatória, feito um prestidigi-
Veríssimo, ainda que quase
unânimes no elogio e até no guer umas balizas para a tarefa do tradutor, tador, justamente para dar um brilho som-
entusiasmo com a obra em seu
conjunto, esbarraram no não hesitando em emular com os melhores brio e sublime ao seu livro, na sua luta contra
“gongorismo” do autor que te- autores da literatura e da historiografia o esquecimento. Não é porém o fulgor das
ria “viciado seu estilo […], so-
brecarregado a sua linguagem universais, através de numerosas alusões guerras clássicas, de cujas representações
de termos técnicos, de um
boleio de frase como quer que
às grandes epopéias, tragédias, romances e grandiosas se lembra com uma mistura de
seja arrevesado, de arcaísmos relatos da humanidade, da Antigüidade até admiração e ironia e que no fundo lamenta
e sobretudo de neologismos, de
expressões obsoletas ou raras, o tempo presente, de Homero até Hugo, de um pouco não poder seguir na sua narrativa
abusando freqüentemente con- Tucídides até Renan e Taine, marcando a sobre a guerra: “[A História] Afeiçoara-se
tra a índole da língua […]”. Ver
Riedel/Viegas, 1996, p. 19. sua ambição de ser clássico e contemporâ- a ver a fisionomia temerosa dos povos na

100 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000


ruinaria majestosa das cidades vastas, na ma temática, mas voltadas para as coletivi-
imponência soberana dos coliseus dades. Intuía que a violência não se pode
ciclópicos, nas gloriosas chacinas das ba- analisar exclusivamente ao nível individu-
talhas clássicas e na selvatiqueza épica das al ou familial, ou da hereditariedade. As
grandes invasões. Nada tinha que ver na- reticências convidam o leitor a especula-
quele matadouro” (49). ções a esse respeito, uma delas podendo ser
O autor não deixa dúvida de que inscre- a conjetura de que Euclides pode se ter con-
44 Cunha, 1985, p. 241.
ve essa guerra civil feia, criminosa, ordiná- siderado a si mesmo como o tal sábio.
45 Um dos elementos do tradutor
ria, na História com H maiúsculo, exem- As ferocidades cometidas em Canudos implícito em Os Sertões é a
plificando com ela a sua pessimista visão lançam luz sombria sobre a civilização que primeira pessoa do plural, que
geralmente significa, além do
da história. Considera a guerra ao mesmo deixa de ser civilizada nas suas periferias. plural da modéstia: nós os le-
trados, cultos, civilizados das
tempo uma tragédia, eternizada num belo Vemo-nos mais uma vez diante de uma grandes cidades do Brasil;
monumento literário, e um crime bárbaro, questão de filosofia da história que trans- também: nós, os brasileiros
inimigos de Canudos; mas
de que acusa o Brasil civilizado e a civili- cende de longe a guerra no sertão, fechando- além disso pode significar: nós,
zação toda, perante as divindades seculari- se o ciclo de reflexões históricas iniciado os homens civilizados do mun-
do inteiro.
zadas que são a História e a Ciência, que na “Nota Preliminar”, mas desta vez sem a
46 Cunha, 1985, p. 86, 221,
espera façam um dia justiça. forte conotação racista do começo do livro. 584. Ver também o índice
onomástico em: Cunha, 1998.
E o livro termina com as três famosas Como escritor científico, que não escreve A crítica da época logo equi-
frases: “Que a ciência dissesse a última uma epopéia, embora esteja imbuído do parou Os Sertões aos grandes
nomes da literatura universal (ver
palavra. Ali [no crânio de Antônio Conse- espírito desse gênero, Euclides não pode Riedel/Viegas, 1996), a Tolstoi
(p. 13), Góngora (pp. 19, 60;
lheiro] estavam, no relevo de invocar uma musa, mas as freqüentes refe-
esta última aliás, a única com-
circunvoluções expressivas, as linhas es- rências a instâncias universais como futuro paração com intenção menos
elogiosa), Michelet (p. 22),
senciais do crime e da loucura…[§] É que e história, ciência, humanidade, civiliza- Scott (p. 23), Xenofonte (p. 23),
ainda não existe um Maudsley para as ção desempenham parcialmente esse pa- Flaubert (p. 23), Dante (p. 31),
a Bíblia (o Apocalipse, pp. 23
loucuras e os crimes das n a c i o n a l i d a - pel. Devem ajudar o “narrador sincero” (51) e 55; os profetas de Sião, p.
54), Ernest Renan (p. 36),
des…” (50). como ele se autodenomina, na sua difícil Humboldt, Martius, Bates (todos
Nas duas primeiras frases, a ciência tarefa de pesquisar e expressar a verdade p. 58). Além disso já as primei-
ras resenhas louvaram o cará-
aparece, no discurso indireto livre, como sobre Canudos, assinalando ao leitor que ter pictorial e escultural das des-
crições, comparando-as com a
suprema autoridade dos oficiais e dos mé- trata ao mesmo tempo das grandes ques-
fotografia (p. 22), com
dicos cientificistas, que levaram o crânio tões da humanidade em cuja tradição escri- Rembrandt, com Michelangelo.
do inimigo morto triunfal e macabramente ta ele insere o seu texto. Nota-se tanto no 47 Cunha, 1985, p. 85.
para Salvador e dos quais Euclides se dis- enredo como em alguns comentários o vis- 48 Idem, ibidem, p. 538.
tancia pela ironia do tom, questionando o lumbre de uma dialética da civilização que, 49 Idem, ibidem, p. 538.
valor da frenologia, pois sabe que os exa- para progredir e se expandir, engendra o 50 Idem, ibidem, pp. 572-3. As
mes do dr. Nina Rodrigues não tiveram mal que afirma combater, traindo-se a si duas últimas frases do livro são
separadas não apenas por
resultados esclarecedores. Na frase final, mesma, observação que um século mais novo parágrafo mas também
pela diferença dos modos nar-
que por si só constitui um subcapítulo, ele tarde, depois de duas guerras mundiais e rativos, apresentando-se a pri-
reivindica uma ciência melhor, em nível genocídios horrorosos, parece-nos mais meira como discurso indireto
livre e a segunda como comen-
internacional, para explicar as loucuras e plausível talvez do que aos contemporâ- tário do narrador; sendo as
duas ligadas simetricamente
os crimes, as violências e as guerras de neos do autor, que se perfila diante de nós pela figura do quiasmo. O títu-
grupos sociais, das nações, dos Estados, como cronista e profeta dos crimes da civi- lo do livro a que se alude é Le
Crime et la Folie, na tradução
não apenas no sertão, mas no mundo. Ter- lização: “Nesse investir, aparentemente francesa de 1891, portanto ele
mina o livro reivindicando outro, uma con- desafiador, com os singularíssimos civili- é invertido por Euclides; ver
Andrade, 1960, p. 255.
tinuação de Os Sertões, com temática mais zados que nos sertões, diante de semi- Henry Maudsley (1835-
1918), médico e psiquiatra
transnacional ainda, um estudo sobre as bárbaros, estadearam tão lastimáveis inglês, adepto do determinismo
causas das barbáries antigas e modernas, selvatiquezas, obedeci ao rigor incoercível evolucionista, notabilizou-se
naquela época por suas pes-
para o qual invoca não uma musa, mas a da verdade” (52). quisas sobre as causas da
criminalidade que viu em per-
autoridade de um psiquiatra inglês conhe- O leitor, e portanto o tradutor, é convi- turbações mentais, hereditárias
cido por seu livro sobre crimes e loucuras dado a ler, entender e transpor para a sua e influenciadas pelo meio.

de indivíduos, a fim de que outro sábio o cultura, em um livro só, três modos de 51 Cunha, 1985, p. 86.
complemente com pesquisas sobre a mes- enfocar, de pesquisar e de representar essa 52 Idem, ibidem, p. 584.

REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000 101


53 Essas três abordagens – a cien- realidade, correspondendo a três discursos de com olhar de pintor, fotógrafo ou quase
tífica, a sociológica, a literária
– correspondem àquilo que o que se haviam distanciado cada vez mais cineasta, induzindo o leitor e portanto o
sociólogo alemão Wolf
Lepenies chama de “As Três ao longo do século XIX e cuja fusão era tradutor a vê-la e recriá-la do mesmo jeito.
Culturas”, não diferenciando inusitada na Europa da época: o discurso É programática a reflexão que antecede a
porém muito claramente entre
a literatura e a crítica literária; científico, o historiográfico-antropológico, conhecida frase “O sertanejo, antes de tudo,
ver Lepenies, 1996. Essa tríade
discursiva foi detectada clara- o literário (53). Ou seja, Euclides procura é um forte”:
mente por alguns críticos da pri- conter ou até reverter a crescente diferen-
meira hora, por exemplo por J.
da Penha e sobretudo por José ciação entre os modos de apropriação e de “Prossigamos considerando diretamente a
Veríssimo; ver Côrtes Riedel/
Viegas, 1996, pp. 11, 19; ver representação da realidade que no Ilumi- figura original dos nossos patrícios retar-
também p. 33, onde é repro-
duzido o parecer sobre a ad- nismo e na primeira métade do século XIX datários. Isto sem método, despretensio-
missão de Euclides da Cunha muitas vezes ainda se encontravam em um samente, evitando os garbosos neologis-
ao IHGB, de 1903.
autor só, d’Alembert, Diderot, Humboldt, mos etnológicos. [§] […] Sejamos simples
54 Há meio século, nos Estados Uni-
dos ainda prevalecia o interes- Goethe, Martius, Saint-Hilaire e muitos copistas. [§] Reproduzamos, intactas, to-
se informativo e erudito, de
modo que o tradutor para o in- outros. Opõe-se à crescente divisão e espe- das as impressões, verdadeiras ou ilusó-
glês deu ao livro um cunho pre- cialização do trabalho intelectual ocorrida rias, que tivemos quando, de repente, […]
dominantemente acadêmico,
realçando sua função referencial no século XIX, tentando superar a distân- demos de frente, numa volta do sertão, com
e publicando-o numa editora uni-
versitária, ao passo que as re- cia entre: 1) as ciências naturais, empíricas, aqueles desconhecidos singulares, que ali
centes traduções para o francês
e para o alemão acentuam a
exatas, quantitativas, 2) as ciências sociais estão – abandonados – há três séculos” (55).
função poética do texto; ver e históricas, hermenêuticas, qualitativas, e
Cunha, 1944; 1947; 1993;
1994. Um critério que salta aos 3) a abordagem literária, empática, imagi- Euclides, com toda a força evocativa da
olhos é a colocação das indis-
pensáveis notas explicativas do nativa, já que os dois primeiros modos de sua retórica erudita e no entanto sensorial,
tradutor que na versão inglesa representação se averiguaram insuficien- subordina, em última instância, os discur-
como também na primeira ver-
são francesa se encontram no tes para captar a complexidade e a contra- sos científico e histórico-antropológico ao
pé da página, ao passo que
quase todos os demais traduto- ditoriedade dos fatos. Esforça-se por apli- literário, que evoca o recente passado atra-
res, para não intervir no fluxo da
leitura e para dar ao livro, já
car, reunir, fundir os modos cognitivos e vés da descrição pictorial e da narração
pelo layout, um caráter mais lite- discursivos correspondentes a essas três teatral, como se guiasse os leitores por uma
rário, preferiram notas finais e/
ou um glossário, como apêndi- áreas na luz dos conhecimentos e teorias do exposição de quadros e por um anfiteatro
ce, que o leitor pode, se quiser,
ignorar mais facilmente durante seu tempo, para narrar a Verdade sobre o com cenas de uma tragédia, transmitindo-
a leitura, já que consultá-las sertão, a guerra, a civilização, a alma hu- lhes informações, emoções, perplexidades
exige esforço e curiosidade adi-
cionais. Sobre a versão inglesa mana, incluindo aspectos de opacidade, (56). Predominam, como intenções de efei-
ver Milton, 1997.
Um dos recursos de acentuar, incoerência, misteriosidade. Empreendi- to, a comoção trágica e a indignação moral,
na versão alemã, a literariedade mento hercúleo, sobre-humano, impossí-
do texto consiste em dar prefe-
além do prazer estético. Prazer que se deve
rência, na translação de termos vel quase, mas coroado de um resultado a duas qualidades quase contraditórias do
científicos ou técnicos, ao termo
baseado no léxico de origem que, se é algumas vezes desigual e incoe- livro: o seu caráter monumental, imponen-
germânica nos casos em que a
língua alemã oferece duas alter- rente, nem por isso deixa de ser convincen- te, autoritário, impenetrável, temível qua-
nativas: um termo mais acadê- te, elucidativo, valioso em todos os três se, por um lado, e por outro o seu caráter
mico, geralmente de origem
greco-latina; e um termo ora campos da atividade intelectual, principal- sensorial, plástico, sonoro, empolgante,
popular, ora traduzido como em-
préstimo semântico, com radi- mente como obra historiográfica e literá- persuasivo, apelativo, provocando atitudes
cal de origem germânica; por ria. Essa tríade discursiva é ao mesmo tem- tão opostas quanto o culto, a veneração
exemplo “podômetro” pode ser
traduzido como “Podometer” ou po uma incumbência ao tradutor, que deve respeitosa por um lado, e o uso pragmático
como “Schrittzähler”; “cautério”,
pode ser “Kauterium” ou, even- tentar recriá-la na sua língua, reponderando e familiar como fonte de informações e
tualmente, “ Brennschere ”;
“animalidade primitiva” pode cautelosamente a correlação entre os três citações por outro. Esses traços estéticos
ser “primitive Animalität” ou, discursos, dando menos ênfase à vertente opostos pressupõem dois gêneros de leitu-
eventualmente, “ursprüngliche
Tiernatur ”; “a natureza científica, hoje mais datada (54). ras, uma mais passiva, humilde, poética,
estereografa-se” não dá para tra-
duzir literalmente, mas poder-se- Na obra euclidiana se opõem e se reve- emocional e empática, de qualquer forma
ia escrever “ die Natur tritt zam o cientificismo por um lado e o ceticis- aceitando muitas incompreensões, e outra
stereographisch hervor ”, ou
“bietet sich stereographisch dar”, mo para com as ciências, inclusive as soci- mais esforçada, mais árdua, mais cognitiva,
ou “ bietet einen
stereographischen Anblick ”, ais, por outro lado, sendo de um modo ge- obrigando o texto a relaxar o seu her-
podendo-se substituir talvez
“ stereographisch ” por ral as duas atitudes dominadas pela percep- metismo. O tradutor, naturalmente, procu-
“plastisch”, palavra um pouco ção tão exata quanto impressionista e ima- ra abranger as duas leituras.
mais agradável ao ouvido. So-
ando a palavra ginosa do literato, que vê e recria a realida- Recentes mudanças na vida intelectual

102 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000


e nas ciências humanas salientam a atuali- amadorístico e retardatário da tradição “stereographisch” bastante feio
em alemão, optei por “die Natur
dade de Os Sertões como discurso híbrido greco-romana e do ensaísmo iluminista, meisselt sich heraus”, o que sig-
nificaria aproximadamente “a
poético-historiográfico-científico, modifi- visto a partir de hoje ele, ao contrário, sur- natureza esculpe-se” ou “cinze-
cando o papel do leitor e do tradutor inscri- ge como autor moderno, pois de algumas la-se”, solução menos científi-
ca, certo, porém mais plástica
to no livro. Se a simultaneidade e até fusão décadas para cá a história do tempo presen- e mais acessível, e sobretudo
mais sonora, mais poética. De
de abordagens intelectuais tão díspares num te virou disciplina respeitadíssima nas uni- um modo geral os termos cien-
mesmo livro era na época quase um sinal versidades do mundo inteiro. tíficos alemães de origem es-
trangeira, principalmente por
de atraso, explicável em um país sem A literariedade do livro não é uma qua- sua sonoridade estranha,
despoetizam o estilo e, enquan-
universidades, sem cursos de ciências exa- lidade invariável, visto que o seu grau e o to signos imotivados, com seus
radicais desconhecidos ao lei-
tas fora da medicina e da engenharia, sem seu caráter dependem em grande parte do tor comum, são pouco sugesti-
cursos de ciências sociais e de letras, hoje leitor, do seu horizonte de expectativa, do vos; ao passo que as palavras
menos eruditas de origem
em dia essa poetização do discurso cientí- seu interesse cognitivo assim como da con- germânica, geralmente com-
postas, têm sonoridade mais
fico e sociológico, essa renúncia ao juízo juntura histórica. Na medida em que au- agradável, sendo além disso
coerente e ao domínio total da análise e da menta a distância cronológica e cultural mais sensoriais e sugestivas, por
seu parentesco reconhecível
sistematização, essa plurivocidade também entre o ato da leitura e a primeira publica- com outras palavras, ou seja,
por seu caráter de signos moti-
conquistaram boa parte da historiografia e ção do texto, o seu caráter pragmático, as vados. Devido à pouca elegân-
da antropologia. A atitude de observador cia fônica de termos científicos
suas funções referenciais e apelativas vão em alemão, é difícil escrever
participante que Euclides reveste, a sua perder uma parte de sua importância, de um texto acadêmico ou instru-
mental num estilo sensorial e ex-
encenação presentificadora dos eventos, modo que o clássico euclidiano hoje em pressivo.
apesar do seu gesto por vezes professoral e dia, principalmente fora do Brasil, é mais 55 Cunha, 1985, pp. 177-8.
autoritário, todos esses traços supostamen- literário do que era no Brasil de 1902. Se os 56 Ver Zilly, 1998, pp. 13-37.
As numerosas metáforas pro-
te datados de Os Sertões podem ser lidos eventos narrados e o seu arcabouço teórico venientes das artes plásticas e
como prenúncios da nova historiografia, passam cada vez mais ao segundo plano, cênicas são elementos do lei-
tor e do tradutor implícito, inci-
de um Ginzburg, Duby, Le Roy Ladurie, cabe ao tradutor, dentro da mencionada tando o leitor e o tradutor a
uma leitura e reconstituição
uma escrita histórica menos categorial e tríade discursiva, realçar a vertente literá- visualizadora. Vários editores
analítica, antes cênica, encenatória, ria, sem negligenciar as outras. Para o lei- e tradutores de Os Sertões, jus-
tamente para realçar o caráter
empática, dando voz aos perdedores da tor estrangeiro de hoje em dia importa cênico do livro e também para
tornar os longos capítulos mais
história, aproximando-se daquilo que o menos se certos detalhes do relato corres- transparentes através de sub-
divisões, introduziram
antropólogo Clifford Geertz chama de “des- pondem aos fatos, mais relevantes são o intertítulos, tomados ou do pró-
crição densa” (57). estilo e o modo de narração, a exempla- prio texto euclidiano, ou dos
sumários que precedem cada
Ao passo que a historiografia oficial na ridade dos temas, as atitudes morais e filo- uma das oito partes do livro;
ver Galvão, 1985, p. 23. Os
Europa de cem anos atrás considerava pou- sóficas do narrador, vistas diante dos últi- intertítulos, importante instru-
co profissional o estudo de eventos recém- mos cem anos de civilização ameaçada por mento para direcionar a aten-
ção do leitor, podem aumen-
ocorridos, parecendo Euclides, sob esse ela mesma que transcorreram desde a pu- tar o suspense, o que tentei por
exemplo no cap. II da sétima
aspecto, adepto aparentemente ingênuo, blicação de Os Sertões. parte do livro, “Nova Fase da
Luta”, em trecho intitulado por
alguns editores de “Rebate
Falso” (Cunha, 1966, vol. II,
p. 442) e que eu intitulei na
tradução alemã como “Alarm”,
de modo que só no final da-
quela página fica claro que se
trata de um rebate falso.
BIBLIOGRAFIA 57 Rüsen, 1997. Diferentemente
de autores pós-modernos,
Euclides, como escritor científi-
ANDRADE, Olímpio de Souza. História e Interpretação de “Os Sertões”. São Paulo, Edart, 1960. co do século XIX, mantém o
ARROJO, Rosemary. Oficina de Tradução: a Teoria na Prática. São Paulo, Ática, 1986. conceito da História una e,
teoricamente, cognoscível. Sua
ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth e TIFFIN, Helen (orgs.). The Empire Writes Back: Theory and Practice in Post- empatia com os sertanejos e
Colonial Literature (New Accents). London, Routledge & Kegan Paul, 1990. com parte dos soldados não
constitui um princípio da
ASSIS, Joaquim Machado de. “Notícia da Atual Literatura Brasileira: Instinto de Nacionalidade”, in J. M. A., Obra narativa toda, e apesar da
multiplicidade de impressões,
Completa, organizada por Afrânio Coutinho. 3 vols. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, vol. III, pp. 801-9. perspectivas e vozes ele só
BARCK, Karlheinz. “A Tarefa de Traduzir A Tarefa do Tradutor no Rio de Janeiro”, in Walter Benjamin, A Tarefa do periodicamente abandona a
hegemônica visão racional do
Tradutor. Tradução de Dirce Riedel et alii, revisão de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro, Uerj/Instituto de Letras, narrador erudito que procura
1994, pp. 33-40. pairar acima das contingênci-
as da realidade, para entendê-
BENJAMIN, Walter. “Die Aufgabe des Übersetzers”, in Schriften, hrsg. v. Th. W. Adorno und Gretel Adorno unter la e explicá-la.

REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000 103


Mitwirkung von Friedrich Podszus, Band I. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1955, p. 40-54.
________. A Tarefa do Tradutor. Tradução de Dirce Riedel et alii. Rio de Janeiro, Uerj/Instituto de Letras, 1994.
BERMAN, Antoine. L’Épreuve de l’Étranger: Culture e Traduction dans l’Allemange Romantique. Herder, Goethe,
Schlegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Paris, Gallimard, 1984.
________. “La Traduction et la Lettre, ou: L’Auberge du Lointain”, in G. Granel, A. Jaulin, G. Mailhos, H.
Meschonnic, Les Tours de Babel: Essais sur la traduction. Mauvezin, Trans-Europ-Repress, 1985, pp. 33-150.
________. Pour une Critique des Traductions: John Donne. Paris, Gallimard, 1995.
________. “Commentaire de la Tâche du traducteur de Walter Benjamin”, in Césure: Revue de la Convention
Psychanalytique. Paris, no 11, 1996, pp. 11-7.
BORGES, Jorge Luis. “Pierre Menard, Autor del Quijote”, in Obras Completas 1923-1972. Buenos Aires, Emecé, 1974,
pp. 444-50 [também publicado em: J. L. B., Ficciones, Madrid, El libro de Bolsillo/Alianza, 1971, pp. 47-59].
CAMPOS, Haroldo. “Da Tradução como Criação e como Crítica”, in Metalinguagem & Outras Metas: Ensaios de Teoria
e Crítica Literária. São Paulo,Perspectiva, 1992, pp. 31-48.
________. “Da Tradução à Transficcionalidade”, in 34 Letras, no 3. Rio de Janeiro, 1989, pp. 82-101.
________. “A Língua Pura na Teoria da Tradução de Walter Benjamin”, in Revista USP, São Paulo, no 33, USP,
março-maio/1994, pp. 160-70.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo, Brasiliense, 1985 [1a edição:
Os Sertões (Campanha de Canudos), Rio de Janeiro, Laemmert, 1902].
________. Os Sertões: Campanha de Canudos. Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo, Ática, 1998.
________. Obra Completa. Org. por Afrânio Coutinho. 2 vols. Rio de Janeiro, Aguilar, 1966.
________. Los Sertones. Tradução de Benjamín de Garay. 2 vols. Buenos Aires, Mercatali, 1938.
________. Los Sertones: la Tragedia del Hombre Derrotado por el Medio. Buenos Aires, Claridad, 1942.
________. Los Sertones. Tradução de Estela dos Santos. Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1980.
________. Rebellion in the Backlands (Os Sertões). Tradução de Samuel Putnam. Chicago, The University of
Chicago Press, 1944.
________. Les Terres de Canudos: Os Sertões. Tradução de Sereth Neu. Rio de Janeiro, Caravela, 1947 [Título na
capa: Les Terres de Canudos: Grand roman historique traduit du portugais par Sereth Neu].
________. Hautes Terres: La Guerre de Canudos. Tradução de Jorge Coli e Antoine Seel. Paris, Metaillé, 1993.
________. Krieg im Sertão. Tradução de Berthold Zilly. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1994.
DUDEN: Das große Wörterbuch der deutschen Sprache, 8 vols., Mannheim; Leipzig; Wien. Zürich, Dudenverlag,
1993-1995.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma Introdução. Tradução de Waltensir Dutra. São Paulo, Martins Fontes, 1997.
GALVÃO, Walnice Nogueira e GALOTTI, Oswaldo. Correspondência de Euclides da Cunha (ativa). São Paulo, Edusp, 1997.
GALVÃO, Walnice Nogueira. “Introdução”, in Euclides da Cunha, Os Sertões. Edição crítica de Walnice Nogueira
Galvão. São Paulo, Brasiliense, 1985.
GARCIA, Marcia Japor de Oliveira e FÜRSTENAU, Vera Maria. O Acervo de Euclydes da Cunha na Biblioteca Nacional.
Campinas, Editora da Unicamp; Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1995.
GERZYMISCH-ARBOGAST, Heidrun. Übersetzungswissenschaftliches Propädeutikum. Tübingen; Basel, Francke, 1994.
HÖNIG, Hans G. Konstruktives Übersetzen. Tübingen, Stauffenburg, 1997.
HIRSCH, Alfred (org.). Übersetzung und Dekonstruktion. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1997.
ISER, Wolfgang. Der Implizite Leser: Kommunikationsformen des Romans von Bunyan bis Beckett. München. Fink, 1994.
________. O Fictício e o Imaginário: Perspectivas de uma Antropologia Literária. Tradução de Johannes
Kretschmer, Rio de Janeiro, UERJ, 1996.
________. O Ato da Leitura: uma Teoria do Efeito Estético. Tradução de Johannes Kretschmer. vol. 1. São Paulo,
Editora 34, 1996.
IYER, Pico. “The Empire Writes Back: Am Beginn einer neuen Weltliteratur?”. Tradução de Reinhard Kaiser, in Neue
Rundschau. Frankfurt am Main, Fischer, 1996, ano 107, caderno 1, pp. 9-19.
JAKOBSON, Roman. “Aspectos Lingüísticos da Tradução”, in Lingüística e Comunicação. Tradução de Isidoro Blikstein.
São Paulo, Cultrix, 1969, pp. 63-72.
________. “Lingüística e Poética”, in Lingüística e Comunicação. Tradução de Isidoro Blikstein. São Paulo,
Cultrix, 1969, pp. 118-62.
LEPENIES, Wolf. As Três Culturas. Tradução de Maria Clara Cescato. São Paulo, Edusp, 1996.
MOSCA, Lineide do Lago Salvador. “A Preservação dos Aspectos Expressivos na Atividade Tradutória: uma Aplicação a

104 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000


Os Sertões, de Euclides da Cunha”, in Pandaemonium Germanicum: Revista de Estudos Germânicos, no 1. São Paulo,
USP/DLM/Humanitas, 1997, pp. 187-98.
MILTON, John. “A Tradução de Samuel Putnam de Os Sertões – Rebellion in the Backlands, de Euclides da Cunha”, in
Pandaemonium Germanicum: Revista de Estudos Germânicos, no 1.São Paulo, USP/DLM/Humanitas, 1997, pp. 181-5.
________. O Poder da Tradução. São Paulo, Ars Poética, 1993.
Neue Rundschau, ano 107, caderno 1, “Der postkoloniale Blick: Eine neue Weltliteratur?”, Frankfurt am Main,
Fischer, 1996.
PAES, José Paulo. Tradução: A Ponte Necessária. São Paulo, Ática, 1990.
RIEDEL, Dirce Côrtes e VIEGAS, Ana Cláudia Coutinho (orgs.). Os Sertões de Euclides da Cunha e a Imprensa da Época.
Rio de Janeiro, UERJ, Dep. de Extensão, 1996 (Cadernos do Centro de Estudos Virgínia Côrtes de Lacerda, vol. 1, n. 1).
RÜSEN, Jörn. “História entre a Modernidade e a Pós-modernidade”, in História: Questões e Debates. Curitiba, UFPr,
1997, v. 14, n. 26/27, jul./dez. 1997, pp. 80-101.
SCHLEIERMACHER, Friedrich. “Ueber die verschiedenen Methoden des Uebersezens”, in Hans Joachim Störig (org.),
Das Problem des Übersetzens. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1973, pp. 38-70.
SCHWARTZ, Adriano. “Instinto de Universalidade”, in Folha de S. Paulo, 28/3/1999, Caderno Mais, p. 6.
SÁ-CARNEIRO, Mário. A Confissão de Lúcio. Lisboa, Ática, 1995.
STÖRIG, Hans Joachim. “Einleitung”, in Hans Joachim Störig (org.), Das Problem des Übersetzens. Darmstadt,
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1973, pp. VII-XXXIII.
VILLAÇA, Alcides. “Machado de Assis, Tradutor de si Mesmo”, in Novos Estudos, no 51. São Paulo, Cebrap, 1998, pp. 3-14.
WUTHENOW,Ralph-Rainer. Das fremde Kunstwerk: Aspekte der literarischen Übersetzung. Göttingen, Vandenhoeck &
Ruprecht, 1969.
ZILLY, Berthold. “Um Depoimento Brasileiro para a História Universal: Traduzibililade e Atualidade de Euclides da
Cunha”, in Estudos: Sociedade e Agricultura, no 9. Rio de Janeiro, UFRJ/CPDA, 1997, pp. 5-15 (versão ligeiramente
ampliada do artigo com título idêntico na revista Humboldt, no 72, Bonn, Inter Nationes, 1996, pp. 8-16).
________. “A Guerra como Painel e Espetáculo: A História Encenada em Os Sertões”, in História, Ciências, Saúde:
Manguinhos, suplemento, vol. V, julho de 1998, pp. 13-37.

REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 85-105, março/maio 2000 105

Você também pode gostar