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DOZE ANOS COM HITLER

Christa Schroeder

Título original: 12 Ans Auprés d'Hitler - La Secrétaire Privée d'Hitler Témoigne

Tradução: Rejane Janowitzer

Rio de Janeiro - Objetiva, 2007

Gênero: biografia

Numeração: ausente (207 pp)

Digitalizado e revisto por Virgínia Vendramini

Março de 2018

Orelhas

Schroeder era uma jovem alemã vinda do interior que, como outros 7 milhões de pessoas,
compunha a massa de desempregados do país em 1930. Após desembarcar em Munique à
procura de emprego, seguiu para a sede do Partido Nacional Socialista; ouvira dizer que
precisavam de secretárias para o setor administrativo.

Por ser especialista em estenografia, superou 87 concorrentes em busca da mesma vaga. E, a


partir de 1933, seria a secretária pessoal de Adolf Hitler. Christa Schroeder passou 12 anos
acompanhando o Führer, disponível para ele dia e noite: na chancelaria, em viagens e,
finalmente, no bunker de Berlim, de onde sairia apenas poucos dias antes do fim da guerra.

Christa foi presa em 28 de maio de 1945 pelo Exército norteamericano. "Ela era nazista?" A
resposta, repetida nas diversas vezes em que foi interrogada ou entrevistada, era sempre a
mesma: ela aceitaria um cargo equivalente no Partido Comunista, sem que isso a tornasse
uma simpatizante do marxismo.

A sentença de "moderadamente nazista" evitou que ela tivesse de comparecer ao tribunal de


Nuremberg. Enquanto era mantida prisioneira no campo de Augsbourg, um agente francês
chamado Alfred Zoller a abordou, cumprindo ordens do Exército norte-americano. Ao longo
de várias semanas, ele pediu que ela lhe contasse sua vida junto de Hitler. Esse testemunho
ficou perdido por anos, até ser descoberto graças à tenacidade de pesquisadores alemães e
americanos.

Se a história da ascensão do nazismo e de sua política expansionista já é conhecida, a vida


privada do arquiteto político da Segunda Guerra Mundial é finalmente esmiuçada neste
documento único e excepcional sobre a intimidade do Führer.

Ele reservava para a noite os ditados importantes. Seu ajudante-de-ordens vinha me avisar
quando ele decidia ficar no escritório: "O Chefe vai ditar esta noite, esteja pronta!'

Quando eu entrava na sua sala de trabalho, o encontrava caminhando nervosamente de um


lado para o outro. De tempos em tempos, Hitler parava diante de um retrato de Bismarck e o
olhava como se rezasse. Dava a impressão de implorar ao Chanceler de Ferro que o
inspirasse com sua experiência nas questões de Estado. Com um movimento de sonâmbulo,
ia de um móvel para o outro para retificar a localização das miniaturas que os cobriam.
Depois começava a percorrer a sala com um passo apressado e parava subitamente, como se
tivesse sido atingido por uma paralisia. Ele nunca olhava para mim. Finalmente, começava a
ditar."

Christa Schroeder

DOZE ANOS COM HITLER

Testemunho inédito da secretária do Führer

Tradução

Rejane Janowitzer

(c) Editions Page Après Page, 2004

Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA OBJETIVA LTDA.

Rua Cosme Velho, 103 Rio de Janeiro - RJ - CEP: 22241-090


Tel.: (21) 2199-7824

Fax: (21) 2199-7825

www.objetiva.com.br

Título original: 12 Ans Auprés d'Hitler - La Secrétaire Privée d'Hitler Témoigne

Capa

Marcelo Pereira - Tecnopop

Foto de capa cedida por Biblioteca Estadual da Bavária, Munique

Revisão

Fátima Fadel

Raquel Grillo

Onézio Paiva

Editoração eletrônica

Abreu's System Ltda.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S412d

Schroeder, Christa

Doze anos com Hitler, 1933-1945: testemunho inédito da secretária do Führer / Christa
Schroeder; Tradução: Rejane Janowitzer. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2007.
07-2098

ISBN 978-85-7302-869-0 - la secrétaire privée d'Hitler

207p. : il. Tradução de: 12 ans auprés d'Hitler -

témoigne

1. Schroeder, Christa. 2. Hitler, Adolf. 3. Chefes de Estado - Alemanha - Biografia. 4. Nazistas -


Alemanha. 5. Alemanha - Política de governo, 1933-1945. I. Título.

CDD: 920.9940086 CDU: 929:94(43)

A aventura extraordinária de uma secretária

Por Raphaël Delpard

Que aventura extraordinária viveu Christa Schroeder! Ela fazia parte dos sete milhões de
desempregados existentes na Alemanha em 1930. Desembarcada em Munique para procurar
trabalho, foi à sede do Partido Nacional Socialista; ouvira dizer que estavam procurando
secretárias. Considerada uma espécie de superdotada em estenografia, muito superior às 87
moças que disputavam o mesmo emprego. Sua contratação para o staff administrativo do
partido de Hitler suscitará depois da Segunda Guerra Mundial a mesma pergunta feita pelos
jornalistas, que terminará irritando-a: "Ela era nazista?" Ela responderá invariavelmente que
teria podido da mesma maneira aceitar um cargo equivalente no Partido Comunista e nem por
isso teria se transformado numa simpatizante do marxismo.

Em 30 de janeiro de 1933, Adolf Hitler se torna chanceler. Christa Schroeder deixa o número
50 da Schellingstrasse, a sede do partido, e parte em 4 de março de 1933 para Berlim. Ela é a
colaboradora de Wilhelm Bruckner, ajudante-de-ordens do chanceler. Hitler rompe
drasticamente com ele e, na ocasião, repara na moça. Suas excepcionais qualidades
profissionais e sua capacidade de estenógrafa militam a seu favor, e ele a contrata para seu
serviço exclusivo. Durante 12 anos, Christa Schroeder viverá dia e noite no rastro do Führer,
indo a todas as viagens oficiais, pertencendo ao "FHQ": Quartel-general do Führer. Ela o
acompanhará até no bunker. No momento da queda do Terceiro Reich, o próprio Hitler,
alguns dias antes de se suicidar, dará a ela a ordem de sair e de se entregar.

Christa Schroeder foi presa em 28 de maio de 1945 pelo exército americano e ficou na prisão
até 12 de maio de 1948. Julgada medianamente nazista por um tribunal de desnazificação, a
sentença lhe evitou o comparecimento diante do tribunal de Nuremberg.

Enquanto esteve internada no campo de Augsbourg, um agente franco-americano chamado


Alfred Zoller aproximou-se dela. Durante semanas, fez com que acreditasse que ele se
chamava Bernhard. Estava encarregado de interrogá-la a pedido do VII Exército americano. A
relação foi difícil no começo, mas o franco-americano terminou se fazendo apreciar. Christa
falou a respeito dele: "Ele devia ter uns 45 anos e falava um excelente alemão com sotaque
alsaciano."

Sobre suas relações, Schroeder dirá de tudo. Chegará a acusar o agente de informações de lhe
roubar as jóias, que ele nunca devolveria.

No começo, Zoller, sob o nome de Bernhard, pede que ela lhe conte sua vida junto de Hitler.
"O capitão Bernhard - Zoller - me fazia perguntas do tipo como eu havia sido contratada, a
maneira como Hitler me ditava as cartas, os discursos. Ele queria saber por que o Führer não
fumava, não bebia. O modo de vida dele, que opinião ele tinha de seus colaboradores mais
próximos, suas relações com a sobrinha Geli Raubal, queria saber tudo sobre sua relação com
Eva Braun. Ele vinha todos os dias. Uma manhã, ele me pediu para escrever tudo o que eu
tinha lhe relatado."

Christa Schroeder, depois de libertada, encontrou trabalho em uma empresa que vendia
metais leves em Gmünd, entre 1948 e 1958. Em 1º de setembro de 1959 voltou para
Munique e empregou-se em uma empresa de construção onde ficou até 1967. Sua saúde
fraca obrigou-a a se aposentar com a idade de 59 anos. Morreu em Munique no dia 28 de
junho de 1984.

Alguns meses antes de sua morte, respondendo a um jornalista, ela confessou que sua vida
pessoal fora um desastre. Hitler se opôs a seu casamento com um diplomata iugoslavo por
quem estava apaixonada e, depois da Segunda Guerra Mundial, não conseguiu encontrar o
descanso a que considerava ter direito, por ser constantemente assediada por pesquisadores,
historiadores e jornalistas.

Esta vida destroçada é a dimensão trágica da mulher arrastada, não por vontade própria, no
turbilhão da História, cujo testemunho nos faz chegar muito perto do homem que sessenta
anos depois de sua morte continua a inspirar aversão e, inacreditavelmente, a fascinar.

O texto de Christa Schroeder ficou desaparecido durante anos. Foi reencontrado há pouco
tempo graças à tenacidade de pesquisadores alemães e americanos.

Trata-se de um documento único e excepcional, que nos mergulha no coração da vida íntima
de Adolf Hitler. Claro, na verdade, ficamos sabendo pouca coisa sobre as grandes manobras
guerreiras, sobre a exterminação dos judeus e dos ciganos, mas passamos a conhecer um
pouco mais o autodidata que tocou fogo na Europa. Pois, se conhecemos a historiografia do
advento do nazismo e da política expansionista que se seguiu, o arquiteto político da Segunda
Guerra Mundial nos é constantemente ocultado nos pedaços de noticiários filmados, nos
quais ele nos é mostrado vociferando diante do mundo civilizado.

Quem foi Adolf Hitler? Tudo e mais um pouco já foi dito e escrito. Christa Schroeder declara:
"Não havia somente um Hitler, mas diversos reunidos em uma mesma pessoa. Ele era uma
mistura de mentira e verdade, de ingenuidade e violência, de simplicidade e luxo, de
amabilidade e brutalidade, de misticismo e realismo, de gosto pronunciado pelas artes e pela
barbárie."

Sempre segundo o testemunho de sua antiga secretária, o Führer era também dotado de um
magnetismo estranho e enfeitiçante, possuía um sexto sentido primitivo, uma intuição de
adivinho, que freqüentemente foram determinantes. Farejava os perigos que o ameaçavam,
sabia captar as reações secretas das multidões, fascinava seus interlocutores de uma maneira
inexplicável.

Nas páginas que se seguem, entramos em contato com um Hitler vivendo na exaltação
permanente de novos projetos, assombrado com as vitórias conseguidas. Nós nos damos
conta, lendo as notas de Christa Schroeder, de que em alguns aspectos a vida deste homem,
longe das massas, por trás da cortina tecida em torno dele pela propaganda e por seu
prestígio, não é diferente da de um burguês. E de que um bárbaro pode adotar as atitudes de
um cava-lheiro qualquer.
O testemunho de Christa Schroeder é, pois, a demonstração da impossibilidade de encerrar
esta personalidade histórica e humana em uma só fórmula. A diversidade de suas
manifestações, de suas atitudes, de seus reflexos e reações é tamanha que uma análise dos
traços fundamentais de sua personalidade se faz necessária.

Doze anos junto de Hitler

O documento apresentado aqui nos permite portanto vê-lo agindo e vivendo no mais íntimo
de sua personalidade, no primeiro círculo de seu poder e de seus familiares.

Raphaël Delpard escreveu obras sobre o martírio dos judeus durante a Segunda Guerra
Mundial, e sobre a história da Argélia durante a presença francesa. Advertência

O texto que se segue é o testemunho da Sra. Christa Schroeder, secretária particular do


chanceler Adolf Hitler durante 12 anos, recolhido no campo de Augsbourg em 1947 pelo
capitão Alfred Zoller, sob a responsabilidade do VII Exército americano.

Nenhuma modificação foi acrescentada, trata-se da retranscrição do original.

***

Primeiro capítulo

As melhores idéias me vêm à noite.

HITLER

Hitler tinha horror a encontrar na sua entourage gente que não estava habituado a ver. É a
razão pela qual duas de suas secretárias particulares, uma de minhas colegas e eu, terem
permanecido trabalhando para ele, respectivamente, 15 e 12 anos. Apesar dos
desentendimentos e atritos que eventualmente ocorreram, ele fez tudo para ficar conosco até
o fim.
Hitler era possuído pelo demônio da desconfiança. Jamais contratava seu pessoal particular só
com uma simples recomendação. Só passava a confiar nele depois de observá-lo longamente
e o ter posto à prova, armando-lhe verdadeiras armadilhas.

No que me diz respeito, devo confessar que fiquei surpresa com a facilidade com que ele me
colocou a seu serviço. Nada no meu passado justificava especialmente tamanha confiança.
Meu pai, que tinha sido funcionário do estado em Hanover, sempre manifestara idéias
violentamente democráticas. Ele morreu em 1926, quando eu tinha 17 anos. Já tinha perdido
minha mãe um ano antes. Sozinha no mundo e sem fortuna, me tornei empregada de
escritório e fiz cursos de estenodatilografia.

No início de 1930, deixei um posto de secretária em Munique e me candidatei a uma vaga de


datilógrafa aberta na direção do Partido. Depois de me classificar em primeiro lugar entre 87
concorrentes no concurso nacional de estenografia, fui designada para o cargo de secretária
do capitão Pfeffer, que comandava naquela época a organização das SA. Em 1931, quando
Rõhm sucedeu a ele, fui destacada para a seção econômica do movimento nacional-socialista.

Eu sempre me interessei muito pelas belas-artes e pela etnografia. Fazia regularmente os


cursos noturnos organizados pela Escola Normal de Munique e pouco a pouco formei uma
biblioteca pessoal. Talvez seja esta a explicação para minha aproximação com Hitler no plano
intelectual e humano.

Mas é preciso acrescentar que sou dotada de um senso crítico muito desenvolvido. Em todas
as situações, sempre senti necessidade de ir ao fundo dos problemas, só me sentindo
confiante depois de muita ponderação.

Nessas condições, compreende-se que os 12 anos vividos ao lado de Hitler tenham sido
semeados de surpresas e desilusões amargas.

Em 1933, o acaso quis que um dia a secretária pessoal de Hitler estivesse ausente e ele tivesse
uma carta urgente para ditar. Mandaram que eu me pusesse à sua disposição. Ao entrar no
escritório, fiquei impressionada com uns olhos de um azul intenso que me escrutavam
profundamente, mas com benevolência. O sotaque austríaco, a simplicidade e a cordialidade
encorajadora com que ele me recebeu me surpreenderam agradavelmente. Ele me disse
algumas palavras de boasvindas e entrou, sem mais tardar, no assunto em pauta:
- Eu tenho o hábito de ditar diretamente para a máquina. Se você pular uma palavra não tem
nenhuma importância. Trata-se apenas de um rascunho.

Eu respondi que estava habituada a esse tipo de trabalho, e fui me sentar diante da máquina
de escrever. Assim que terminei, ele me agradeceu calorosamente e me entregou uma caixa
de bombons. Depois disso, cada vez que eu cruzava com ele, ele me saudava atenciosamente.

No final do mesmo ano, pedi minha transferência para Berlim, por causa de aborrecimentos
que tive com a organização SS, depois de uma denúncia anônima. Concordaram com meu
pedido e me tornei secretária de Brückner, o ajudante-de-ordens de Hitler. Este último me
chamava às vezes, quando tinha longos ditados para fazer. Um dia, a secretária dele ficou
doente e me puseram no seu serviço exclusivo. Desde então, estive diariamente no rastro de
Hitler, salvo nos fins de semana, quando ele ainda ia regularmente para Munique.

Nessa época, Hitler tinha um programa de trabalho regular. Às 11 horas da manhã, ele
atravessava minha sala de trabalho e empregava o final da manhã recebendo seus
colaboradores. As 14 horas, ele passava novamente, parando para passar os olhos nos
presentes que admiradores, todos os dias, mandavam entregar: livros, quadros, tapeçarias e
outros trabalhos manuais. Durante esses curtos instantes, ele ditava rapidamente algumas
notas de serviço ou assinava correspondência urgente. À tarde, as conferências eram
retomadas e prosseguiam até tarde da noite.

Ele reservava para a noite os ditados importantes. Seu ajudante-de-ordens vinha me avisar
quando ele decidia ficar no escritório: "O Chefe vai ditar esta noite, esteja pronta!"

Esta frase desencadeava no escritório um verdadeiro estado de alerta. Eu não ousava me


ausentar. Porém, bem depressa percebi que para aquele trabalho noturno Hitler não era um
modelo de exatidão. Freqüentemente, eu esperava oito ou dez noites seguidas sem que ele
fizesse uma única aparição. Isso acontecia sobretudo quando estava preparando um discurso
para o Reichstag ou para o Congresso do Partido. Para minha grande consternação, tive que
me acostumar com a idéia de que ele tinha o hábito de só ditar esses discursos no último
momento, na antevéspera do dia de pronunciá-los.

Quando a data da manifestação já tinha sido publicada pelos jornais e eu fazia a observação
de que estava na hora de pensar no ditado, respondiam-me evasivamente: "O Chefe ainda
está esperando o relatório de uma embaixada" ou "ele quer seguir tal desenvolvimento
diplomático cuja solução pode ser determinante para seu discurso".

É evidente que, nessas condições, o trabalho era feito em um clima de precipitação e tensão.
Quando o momento solene finalmente chegava, Hitler nos pedia (para os grandes ditados, ele
precisava de duas secretárias) para descansarmos à tarde, a fim de que estivéssemos em
forma. Ele passava esses últimos momentos refletindo e fazendo algumas notas em um
pedaço de papel. Nessas horas de meditação ninguém tinha o direito de perturbá-lo.

Assim que ele formulava as grandes linhas do seu discurso, uma campainha imperiosa me
chamava. Quando eu entrava na sua sala de trabalho, eu o encontrava caminhando
nervosamente de um lado para o outro. De tempos em tempos, ele parava diante de um
retrato de Bismarck e olhava com olhos sonhadores, como se rezasse. Dava a impressão de
implorar ao Chanceler de Ferro que o inspirasse com sua experiência nas questões de Estado.
Com um movimento de sonâmbulo, ia de um móvel para o outro para retificar a localização
das miniaturas que os cobriam. Depois começava a percorrer a peça com um passo apressado
para parar subitamente, como se tivesse sido atingido por uma paralisia. Ele nunca olhava
para mim. Finalmente, começava a ditar.

No começo o fluxo e a voz eram normais, mas, à medida que seus pensamentos se
desenvolviam, a cadência se precipitava. As frases se seguiam sem interrupção, cadenciadas
pelos passos cada vez mais rápidos com que dava voltas na sala. Rapidamente o fluxo se
tornava abrupto e a voz se amplificava. Hitler ditava seu discurso com a mesma empolgação
apaixonada com que iria pronunciá-lo, no dia seguinte, diante de seu auditório.

Hitler vivia literalmente seu discurso. Quando queria dar livre curso à sua emoção, parava de
andar e seus olhos fixavam no teto um ponto irreal, de onde ele parecia esperar uma graça
especial. Quando falava do bolchevismo, sua voz se elevava furiosa e violentos afluxos de
sangue ruborizavam seu rosto. Então ele declamava com uma tal violência que sua voz era
ouvida em todas as salas em volta, e todas as vezes o pessoal que esperava ao lado me
perguntava por que o Chefe ficara de tanto mau humor.

Uma vez terminado o ditado, Hitler recuperava a calma e chegava até a encontrar algumas
palavras gentis para suas secretárias. Algumas horas depois, ele começava as correções. Mas
novamente era preciso lembrar-lhe que o trabalho não estava terminado. Freqüentemente,
ele dava um último retoque somente pouco tempo antes da hora fixada para o discurso. Ele
passava os últimos momentos relendo e corrigindo. Quando estava com disposição, adorava
polir a dialética, procurando expressões sempre mais sutis e fórmulas mais impressionantes.
Estava persuadido de que era difícil ler suas correções. A cada vez ele me perguntava: "Veja
bem, minha jovem, se você consegue decifrar esta anotação." Quando eu lia para ele sem
dificuldade suas retificações, ele me olhava nos olhos com seu estranho olhar lançado por
cima dos óculos e confessava com uma resignação quase fingida: "Constato que você lê com
mais facilidade minha letra do que eu mesmo." Aliás, ao longo dos anos, sua visão vinha
piorando sensivelmente. Como ele queria a qualquer preço evitar aparecer de óculos em
público, mandara instalar máquinas de escrever dotadas de caracteres de 12 mm de altura,
que lhe permitiam ler seu texto sem dificuldade.

Quando o discurso estava pronto, Hitler dava a impressão de ter se livrado de uma grande
preocupação. Tinha por hábito convidar então suas secretárias à mesa. Durante a refeição,
jamais deixava de anunciar que estava satisfeito com sua redação e de predizer que ele ia
obter um grande sucesso. Invariavelmente, também elogiava as capacidades profissionais de
suas secretárias: "Elas são tão rápidas nas suas máquinas, que chegam a escrever mais
depressa do que eu consigo ditar. São verdadeiras rainhas da datilografia etc., etc.

Hitler me contava freqüentemente as dificuldades que tivera para encontrar moças que não
perdessem, ao chegar perto dele, o controle dos nervos. "Quando eu via que, logo nas
minhas primeiras palavras, o sangue lhes subia à cabeça, só me restava dispensá-las e tentar
outra."

De minha parte, confesso que não era uma sinecura trabalhar para ele. Mesmo quando ditava
normalmente, sua pronúncia não era muito precisa. O barulho de seus passos, o da máquina e
o eco de sua voz no escritório de dimensões exageradas tornavam uma parte de suas frases
absolutamente incompreensível. Eu precisava de uma concentração absoluta de minha
atenção e um treinamento intuitivo considerável para adivinhar os finais de frases e para
preencher as lacunas. Quando Hitler se encontrava mais particularmente nervoso, sua
agitação febril se comunicava a seus colaboradores. Nesses momentos de crise, todas as
minhas forças eram distendidas ao extremo.

Hitler se dava conta perfeitamente de que aquele ritmo nos esgotava; mas ele não queria
contratar outras secretárias, dizendo que não agüentava caras novas em torno dele.

Por conta disso, minha liberdade pessoal era praticamente nula. Eu ficava à disposição dele dia
e noite, e não tinha o direito de me ausentar do QG sem que tivesse certeza de poder me
alcançar por telefone, por telégrafo ou até por alto-falante.
O princípio de Hitler de manter secreta uma decisão até o momento de sua execução exercia
uma pressão tirânica sobre toda a sua entourage. Os deslocamentos e viagens eram sempre
anunciados com muita antecedência, mas ele se reservava o direito de só tornar pública a hora
da partida no último minuto. Durante esses dias de espera estéril, nós ficávamos tensas ao
extremo. Quando, ao longo de uma conversa, fazia-se alusão ao domínio que ele exercia sobre
a liberdade de seu pessoal, ele fingia espanto, afirmando deixar a todo mundo a faculdade de
dispor do tempo livre como bem entendesse. Mas, na verdade, jamais tolerava que alguém
tivesse uma vida privada independente.

Assim, durante nossas longas estadas no Berghof, ele tinha o hábito de reunir todas as noites
seu círculo inteiro diante da lareira do grande hall. Como colegiais, éramos regularmente
privados de "saída". É verdade que aquelas noitadas ao pé do fogo não eram desprovidas de
charme quando havia visitantes. Mas, com freqüência, eram as mesmas pessoas que, dia após
dia, se encontravam lá. Era de verdade necessário um poderoso controle dos nervos para
assistir àquelas reuniões intermináveis, diante do cenário imutável de toras queimando
dentro da grande lareira. Quando alguém tinha a coragem de não comparecer a uma daquelas
sessões, Hitler notava e manifestava seu descontentamento.

Em 1938, uma nova secretária foi contratada, por causa dos mal-estares constantes sofridos
por minha colega. A recém-chegada não era apenas notável por suas capacidades de trabalho,
mas igualmente por sua beleza.

A partir de então, duas secretárias acompanharam Hitler em todos os seus deslocamentos.


Como ele dormia muito mal, a despeito dos soníferos, adotou o hábito de organizar chás que
duravam até uma hora muito avançada da noite e nos quais tomavam parte suas secretárias
ao lado de seu ajudante-de-ordens, seu médico e Bormann.

Foi assim que passei boa parte de minha existência nessa vida especial do Führer. Durante os
deslocamentos, Hitler exigia que as cortinas de seu vagão-sala ficassem fechadas mesmo em
pleno verão. Ele só queria iluminação elétrica pois o sol o irritava. Mas havia outra razão, no
mínimo surpreendente. Ele apreciava de tal maneira o make-up da nova secretária de que
falei anteriormente, que fazia questão de acentuá-lo ainda mais com uma iluminação artificial.
Hitler então fazia a ela cumprimentos inesgotáveis, que obrigavam os outros homens de sua
entourage a imitá-lo. Bormann, que era um tanto descomedido, fazia-o com uma falta de jeito
que divertia todos nós.

A conversa gravitava invariavelmente em torno de seus deslocamentos de carro. Só as razões


de comodidade o haviam incitado a renunciar à estrada. Hitler apreciava aquelas corridas
desenfreadas através da Alemanha, não apenas porque adorava a velocidade, mas também
porque elas lhe davam a oportunidade de entrar em contato com a população. Fervoroso
automobilista, havia concebido diversos aperfeiçoamentos que foram adotados com sucesso
pela firma Mercedes.

Entretanto, havia dias em que uma alegria exuberante reinava a bordo do trem especial,
quando Hitler se divertia com a sua série de jogos de salão. Nós contávamos, por exemplo, o
número de homens de barba que tínhamos encontrado durante o dia. Um presente
recompensava aquele que tivesse visto o maior número. Outros jogos do mesmo tipo
deixavam Hitler de excelente humor. Nesses momentos de descontração, ele começava a
imitar seus antigos colegas nos gestos e nas maneiras de falar. Era excelente nesse tipo de
exercício e fazia chacota com políticos estrangeiros de quem observara a mímica e os trejeitos
durante as conferências internacionais. Ele imitava perfeitamente, por exemplo, o riso
estridente de Victor-Emmanuel e nos demonstrava de um modo engraçado como, por causa
de suas pernas curtas demais, a cintura do rei da Itália era sempre a mesma, estivesse ele
sentado ou em pé.

Nesse período antes da guerra, Hitler apreciava ainda o bom humor e o gracejo. "Uma
brincadeira, dita no momento certo, já produziu milagres nas mais difíceis situações", ele
gostava de dizer. "Eu tive essa experiência não somente durante a guerra de 1914-1918 como
também durante o período de luta que precedeu nossa tomada de poder."

Contudo, ele mudou completamente quando os primeiros reveses se abateram sobre a


Alemanha. Tornou-se mais fechado e não deixou ninguém mais se aproximar. O seu círculo
íntimo, que ele tinha o costume de reunir todas as noites, encolhia a cada dia e, finalmente, as
secretárias foram as únicas a ter permissão para compartilhar seus devaneios de solitário. Até
1942, ele precisava de um certo aparato e de cômodos imensos para preparar uma ação
diplomática importante ou uma operação de grande estilo. O Berghof se prestava
admiravelmente a essas meditações:

"Foi na calma majestosa das montanhas que eu tomei minhas melhores decisões", afirmava.
"Lá no alto, tenho a impressão de planar acima da miséria terrestre, acima das provações sem
iguais que atingem meu povo, de nossas balbúrdias e dificuldades. A vista ilimitada sobre a
planície de Salzburg me permite escapar dos problemas terra a terra e fazer eclodir
concepções geniais que abalam o mundo. Nesses momentos, eu me sinto mais ligado aos
mortais, mas minhas idéias ultrapassam os limites humanos para se traduzir em atos de
repercussões infinitas."
A partir de 1943, Hitler não sentiu mais essa necessidade de um cenário grandioso para
inspirar sua fantasia mórbida de planos novos. Sua vida se tornou cada vez mais hermética.
Como um réptil que teme a luz do dia, ele passou a se enfurnar no bunker de peças nuas e
frias.

Foi assim que ele concebeu a operação da ofensiva das Ardennes, no decorrer de uma longa
doença, em setembro de 1944. Durante três semanas, ele permaneceu deitado no bunker de
seu P. C. chamado "Wolfsschanze", na Prússia oriental. Na atmosfera pesada e úmida daquela
peça, sem janela e sem luz natural, de paredes de cimento recobertas com cal, sua imaginação
trabalhava longe do mundo das realidades. A iluminação elétrica nunca se apagava. Sozinho, o
desligamento automático do aparelho de oxigênio que renovava o ar viciado cadenciava o
curso de seus pensamentos. O eco dos acontecimentos do lado de fora não chegava até ele.
As informações que lhe chegavam eram filtradas por seus adjuntos. Naquela atmosfera, sua
fantasia se desenvolvia como uma planta venenosa em estufa quente. Ele não admitia
nenhuma réplica, nenhum conselho. Sobre as paredes nuas onde nada atraía o olhar, sua
imaginação projetava, em visões estereotipadas, o mundo tal como ele havia estruturado, na
sua convicção de ainda ganhar a guerra com a última batalha: aquela ruína humana que não
vivia mais a não ser graças às injeções aplicadas por seu médico, Morell, concebia, numa
atmosfera de túmulo, os planos da nova ofensiva, sem se preocupar com os sacrifícios
humanos que ela ia custar a seu povo já exangue...

Quando Hitler determinava um movimento estratégico, aguardava impacientemente o


momento julgado oportuno para dar a ordem de passar à ação. Contudo, sua intuição
desempenhava um papel determinante para fixar a data do dia "D". Apenas os
meteorologistas ainda tinham direito à palavra. Então ele os consultava, dia após dia. O
especialista que anunciara para dezembro de 1944 um período de nevoeiro, facilitando as
concentrações de tropas antes do desencadeamento da ofensiva, recebeu de sua mão um
relógio de ouro como agradecimento por suas felizes previsões.

"O segredo do sucesso reside na obstinação", ele tinha o costume de repetir.

A vida inteira de Hitler não foi senão esforços e lutas. Por muito tempo vencedor das mais
temíveis adversidades, para ele era difícil imaginar que um dia sua estrela conheceria um fim
tão lamentável.

Sua infância sem alegria, sua adolescência penosa em Viena, a guerra mundial, depois os 13
anos de combates que lhe permitiram conhecer finalmente a embriaguez do poder, todas as
provações superadas umas depois das outras são a manifestação de um temperamento de
lutador obstinado e implacável. Hitler era um combativo nato. Ele era, ademais, dotado de
todas as qualidades necessárias a tal estado de espírito. Dispunha antes de tudo de uma
vontade inquebrantável, de uma vontade quase sobre-humana, uma vontade que
freqüentemente adquiria uma forma empedernida (Sturheit) que não conhece medida
quando se trata de varrer os obstáculos.

Em Hitler, a vontade era fruto de uma longa herança. Todos os seus ascendentes tinham
vivido, há séculos, na parte dos Alpes vizinha da fronteira germano-austríaca, povoada de
habitantes em condições de vida primitivas, e atormentados pela única idéia de arrancar seu
magro sustento de um solo ingrato. Etnólogos constataram que, na região particular chamada
"Waldviertel", onde nasceu o pai de Hitler, a obstinação era a característica das pessoas.
Lutando há séculos com os elementos, o solo e a natureza, os camponeses desses vales
alpestres só ganhavam a vida às custas de esforços constantes. De geração em geração,
transferiram-se caracteres marcados por um poder de vontade e uma obstinação pouco
comuns.

Hitler herdou do pai a vontade intransigente, que se fortificou ainda mais durante a infância
no contato com aquelas populações laboriosas e duras.

A força de vontade animou Hitler quando, autodidata obcecado, adquiriu uma instrução
pouco aprofundada, mas muito extensa, durante seus anos de adolescência em Viena. É
verdade que ele era dotado dos dons intelectuais indispensáveis a qualquer sucesso.

A vontade, que fez de Hitler um dominador, se manifestava também pela irradiação de um


poder de sugestão ao qual poucas pessoas foram capazes de se subtrair.

Quando Hitler falava, quer fosse com um único interlocutor ou diante de uma multidão, o dom
se manifestava com a mesma intensidade. Ele fascinava literalmente, e impunha sua vontade.

Muitas vezes me perguntei se havia ali um fenômeno de hipnotismo puro ou somente a


manifestação de influências todas externas. Hitler, é verdade, sabia atrair a simpatia de seus
interlocutores com suas maneiras de uma simplicidade inata e cordialidade rara. Em suas
veias corria sangue vienense que, refinado ainda mais por disposições artísticas, dava-lhe um
charme indiscutível. É preciso acrescentar que, mesmo em suas exposições mais extensas, ele
sabia concentrar suas idéias em fórmulas densas e concisas, declamadas num tom de
convicção tamanho que era fácil para ele impressionar favoravelmente seus interlocutores.
Contudo, essas manifestações exteriores de sua personalidade não bastam para explicar o
domínio de Hitler sobre certas pessoas. Ele desprendia esse fluido magnético que nos
aproxima das pessoas ou, ao contrário, nos afasta delas. Nele, essa irradiação magnética não
brilhava especialmente por causa da intensidade, embora ela superasse de longe a do homem
comum, mas por sua extensão. A gama de suas ondas magnéticas era muito extensa e agia de
uma maneira surpreendente em reuniões públicas e diante de uma multidão numerosa.

Seu extraordinário poder sugestivo explica que homens que vinham vê-lo desesperados, iam
embora cheios de confiança. Ele agia sobre os antigos companheiros de luta com uma
intensidade toda especial. Eu me lembro, por exemplo, que em março de 1945 o Gauleiter*
Forster, de Dantzig, veio a Berlim pedir uma audiência a Hitler.

*1. Chefe de distrito na Alemanha hitlerista. (N.T.)

Eu o vi chegar à minha sala totalmente arrasado pelos acontecimentos. Ele me confiou que,
contra os 1.100 tanques russos concentrados diante da cidade, tinha a opor apenas quatro
tanques "Tiger" que não dispunham sequer da gasolina necessária. Forster estava
absolutamente decidido a não poupar palavras e expor a Hitler toda a sinistra realidade dos
fatos.

Consciente da situação, insisti com Forster para que relatasse os fatos com toda a objetividade
e que induzisse o Führer a tomar uma decisão. Forster me respondeu: "Não tenha medo! Não
hesitarei em lhe contar tudo, mesmo correndo o risco de ser posto para fora."

Qual não foi minha surpresa quando ele tornou a passar pela minha sala depois da conversa
com Hitler. Parecia transfigurado. "O Führer me prometeu para Dantzig novas divisões!"

Diante de meu sorriso cético, ele declarou: "É, verdade que eu não sei onde poderia consegui-
las! Mas, a partir do momento em que me declarou que salvaria Dantzig, não podem restar
dúvidas.

Eu estava verdadeiramente decepcionada com aquelas palavras de Forster. O homem que eu


vira pouco tempo antes, diante da minha mesa, proclamar de maneira agressiva que ia dizer o
que pensava a Hitler, tinha voltado convencido por palavras ocas. Foi o poder sugestivo de
Hitler que, indiscutivelmente, tinha agido sobre ele.
Eu poderia citar inúmeros exemplos em que pessoas de peso e de valor se deixaram
literalmente iludir por Hitler. Quando mais tarde reconheciam que tinham sido enganadas
grosseiramente, o medo de se verem acusadas de fraqueza as fazia da mesma maneira
executar as recomendações recebidas.

Hitler era consciente de seu poder. Através de um treinamento intenso, conseguia aumentar
ainda mais suas capacidades. Melhor ainda, adotando uma atitude simples e natural, ele sabia
que agia com mais força sobre o interlocutor que se tornava confiante.

Um dia, ele se queixou do cansaço que o invadira depois de um congresso do Partido, em


Nuremberg. Durante um desfile de muitas horas, ficara sob um sol de chumbo com o braço
levantado para a saudação, tentando, como ele me explicava, captar um a um todos os rostos
que passavam diante dele: "Cada um deve ter a impressão de que eu o distingo
pessoalmente, e isso me cansa enormemente."

Eu soube mais tarde que um grande número de homens se vangloriava de ter sido notado por
Hitler na massa compacta das colunas.

Conhecemos, aliás, o entusiasmo que sua presença e seus discursos desencadeavam nas
massas. As multidões estrondosas que se formavam durante todos os seus deslocamentos se
tornaram, conseqüentemente, uma verdadeira obsessão. Conquanto para Hitler tenham
constituído durante muito tempo uma necessidade, as massas histéricas se tornaram, mais
tarde, quase insuportáveis. As pessoas se cristalizavam literalmente diante do hotel onde
estávamos hospedados e contra o qual os movimentos da multidão vinham se quebrar, como
a ressaca de um mar revolto. Aquelas ondas humanas repetiam interminavelmente o desejo
de ver seu "Führer" aparecer na janela. Muitas vezes eram verdadeiros coros falados a
implorar aquela graça. Essas manifestações, repetidas de manhã à noite, botavam os nervos à
prova.

Eu me perguntava como Hitler podia suportá-las! Mas compreendi que elas agiam sobre ele
como um tônico indispensável quando, uma manhã, seu destacamento de guarda mandou a
multidão se afastar e ele se enfureceu por não receber os aplausos habituais na saída do hotel.

Quando Hitler percorria as estradas da Alemanha de carro, seu destacamento tinha que ficar
atento para impedir acidentes com pessoas. Havia casos de mulheres que, ao reconhecê-lo,
ficavam paralisadas no lugar e eram atropeladas pelos carros da comitiva. Freqüentemente era
preciso afastar a multidão que impedia o movimento dos carros. Oficiais SS então ficavam de
pé nos estribos para impedir os fanáticos de tomarem o carro de assalto.

Nas estações de trem, os mesmos espetáculos se repetiam. Pessoas foram esmagadas por
terem atravessado as vias férreas e se precipitado sobre o trem especial do Führer. Quando,
debruçado na janela, ele apertava a mão dos que o assediavam, o médico que o acompanhava
sempre temia que o braço lhe fosse arrancado. Também nesse momento, os SS lutavam
literalmente para refrear aquele entusiasmo delirante.

Como aquelas manifestações custavam a Hitler um tempo considerável e atrasavam com


freqüência sua programação, seus deslocamentos foram, mais tarde, mantidos secretos. O
medo de atentados justificava igualmente essa medida de segurança.

Hitler não era duro e voluntarioso apenas com os outros, ele o era no mesmo grau consigo
mesmo. No período que precedeu a guerra, ele sabia admiravelmente dominar seus
sentimentos. Sua vontade dominadora era exercida sobre si mesmo assim como sobre os que
o cercavam. Não admitia a fadiga e submetia seu cérebro a um trabalho constante. Esquecia-
se que a leitura interminável não cansava apenas sua visão, mas que a insônia voluntária e
constante era obtida em detrimento das capacidades intelectuais. Estava possuído pela
convicção de que apenas a vontade bastava para conseguir tudo. Não surpreende que o
tremor que afetava sua mão direita o fizesse sofrer tremendamente em seu orgulho. A
constatação de que ele não era o dono de uma parte de si mesmo deixava-o furioso. Quando,
surpreso, visitantes olhavam fixamente para aquela mão, Hitler, com um movimento
instintivo, cobria-a com a outra mão. Apesar de todos os seus esforços, nunca conseguiu
dominar o tremor.

Mas, embora tenha perdido pouco a pouco o controle das reações nervosas, permaneceu até
o fim dono de seus sentimentos. Quando, durante uma conversa privada, entregavam-lhe um
bilhete que o informava de uma catástrofe, Hitler mantinha o sangue-frio. Apenas o
movimento dos maxilares denunciava sua emoção e ele continuava a conversa com a mesma
calma. Eu me lembro, por exemplo, da destruição da barragem do Edertal pela RAF, que
provocou a inundação de grande parte do vale industrial do Ruhr. Ao ler a mensagem, o rosto
de Hitler tornara-se de pedra, mais isto foi tudo. Ninguém conseguiria perceber que um golpe
assim tão duro tivesse acabado de atingi-lo. Só depois de várias horas, ou mesmo às vezes
vários dias, ele voltava ao acontecimento em questão, e era então que dava livre curso à sua
raiva impotente.
Hitler sabia igualmente guardar segredos com um domínio impressionante. Estava convencido
de que cada um dos seus colaboradores só devia conhecer estritamente as coisas que eram
necessárias à execução de suas funções. Ele jamais nos comunicava suas intenções secretas
nem nos punha a par dos planos que elaborava. Jamais fazia a menor alusão diante de nós às
operações que preparava.

O começo da campanha do Oeste foi um exemplo claro disso. Em 10 de maio de 1940, ele
informou sua entourage de que ia se deslocar naquela mesma noite.

Nem uma palavra foi dita sobre o objetivo e as intenções da viagem. Quando lhe perguntaram
qual seria a duração do deslocamento, ele respondeu evasivamente que poderia ser de 15
dias, talvez um mês, ou até, se fosse o caso, de um ano.

Todos os que deviam acompanhá-lo foram conduzidos de carro na direção de Staaken, e nós
estávamos convencidos de que iríamos levantar vôo desse campo de aviação. Mas, para nossa
surpresa, Staaken ficou para trás e nos juntamos a Hitler no seu trem especial que partiu para
o norte da Alemanha. Os comentários prosseguiram. A quem lhe perguntava timidamente se
estaríamos indo para a Noruega, ele confirmava esta hipótese perguntando, "se não tínhamos
esquecido nossas roupas de banho". O trem continuou na mesma direção até Ulsen, onde, em
plena noite, tomou subitamente a direção do Oeste. Em vez de desembarcar na Noruega, nós
nos vimos no dia seguinte de manhã, ao nascer do dia, em Münster-Eifel, onde alcançamos o
PC de guerra do Führer.

Sei que a própria Eva Braun não estava a par de nenhum desses planos. No verão de 1941,
quando ele decidiu a campanha do Leste, pediu desculpas a ela por ter de ir para Berlim por
alguns dias, mas assegurou que voltaria imediatamente. Na realidade, foi se instalar em seu PC
na Prússia oriental, de onde dirigiu os primeiros assaltos contra a Rússia.

***

Capítulo II

Talvez não exista um só assunto no qual um homem possa pensar sem que outro já o tenha
feito antes.
HITLER

Pronunciando esta fórmula, o próprio Hitler reconhecia que não era um espírito criador. Todo
o seu saber não era senão fruto de esforços de memória acumulados ao longo dos anos.
Parecida com uma esponja mergulhada na água, sua memória, absolutamente prodigiosa,
aspirava na leitura e nas conversas tudo que podia ter para ele alguma utilidade.

Desde bem jovem, a sede de leitura de Hitler tinha sido ilimitada. Ele me contou que havia
lido, ao longo de sua difícil adolescência em Viena, os quinhentos volumes que compunham
uma das bibliotecas municipais. Essa paixão por percorrer e assimilar obras que tratavam dos
assuntos mais diversos lhe permitiu estender seus conhecimentos a quase todos os domínios
da literatura e da ciência. A cada vez ele me impressionava ao fazer a descrição geográfica de
uma região, ou ao expor com uma precisão surpreendente a história das belas-artes, ou ao
dissertar sobre assuntos técnicos de alta especialização.

Todos os que lutaram ao seu lado no começo de sua carreira de tribuno se surpreendiam com
a extensão de seu saber. Já naquele momento, sabia se impor ao seu círculo usando as
facilidades extraordinárias que sua memória lhe conferia. Tal fato contribuiu enormemente
para que ele ganhasse o devotamento total dos homens rudes que compunham sua primeira
equipe de adeptos. Com uma habilidade surpreendente, fazia-lhes exposições inflamadas
sobre a história da Áustria, verdadeiros cursos sobre as intrigas da Casa de Habsburgo e
descrições pungentes da Alemanha agonizante. Da mesma maneira, podia falar
interminavelmente sobre a construção de igrejas, de conventos e de castelos com um luxo de
detalhes absolutamente assombroso.

Mesmo durante os anos seguintes de sua prisão em Landsberg, continuou a estudar com
grande afinco todos os monumentos históricos erguidos nos diversos países da Europa.
Gabava-se muitas vezes de conhecê-los melhor nos detalhes arquitetônicos do que bom
número de especialistas do país onde se encontravam.

Os oficiais de seu EM e os comandantes das grandes unidades da Wehrmacht admitiam


igualmente que seus conhecimentos sobre a articulação de toda Wehrmacht, até em suas
pequenas unidades, ultrapassavam qualquer imaginação e que sua ciência de armamentos e
de equipamentos militares era simplesmente fenomenal. Um dia, seu especialista da Marinha
teve com ele uma discussão bastante acirrada sobre um detalhe técnico relacionado às
turbinas a vapor instaladas a bordo dos cruzadores modernos. A intransigência com a qual
Hitler contrapôs sua argumentação o enervava a tal ponto que ele perdeu o sangue-frio e lhe
lançou com uma expressão desdenhosa:
"Como pode o senhor pretender uma coisa dessas, uma vez que não é nem um pouco versado
nos problemas de ordem puramente técnica?" Hitler não reagiu brutalmente como teria feito
em outras ocasiões, mas convidou o especialista para se sentar e lhe fez uma exposição sobre
a questão com uma riqueza de detalhes que teria surpreendido até os professores da Escola
naval.

Nas intermináveis discussões diárias durante as quais ele discutia a situação com seus
conselheiros da Wehrmacht, não parava de surpreender todo mundo. Estava a par dos
acontecimentos que se desenrolavam sobre as imensas extensões do front, do passado
histórico de qualquer unidade importante, dos efetivos alocados em cada operação e dos
deslocamentos contínuos das tropas durante a guerra de movimento. Não somente estava
familiarizado com a composição de cada grupo de exércitos até a escala da divisão, como não
lhe escapavam até mesmo as pequenas unidades especializadas, tais como batalhões pesados
de caçadores de tanques.

O prefeito de Munique, com quem apreciava combinar planos de reconstrução e


embelezamento da cidade, me relatava freqüentemente sua surpresa ao ver Hitler se lembrar
dos detalhes mais insignificantes discutidos entre eles havia meses. Acontecia-lhe ouvir Hitler
dizer com um tom de reprovação: "Eu não lhe falei, há seis meses, que tal detalhe não era do
meu gosto?", e reproduzir, quase palavra por palavra, toda a troca de idéias que ocorrera
sobre aquele ponto específico.

Essa memória não apresentava nenhuma lacuna. Não apenas se estendia a nomes, à literatura
e às cifras, como também tinha uma facilidade prodigiosa para se lembrar de rostos. Situava
com infalibilidade no tempo e no espaço as circunstâncias nas quais havia encontrado seus
interlocutores. Lembrava-se de todas as pessoas que havia conhecido ao longo de sua vida
movimentada e com freqüência recordava detalhes pessoais absolutamente inacreditáveis.
Podia descrever em detalhes o desenrolar e a atmosfera de todas as reuniões de propaganda
em que havia tomado a palavra. Os colegas de juventude que havia conhecido em Viena, seus
companheiros de guerra, seus acólitos na luta pelo poder e a coorte tumultuosa de todos os
que o haviam acompanhado até o triunfo estavam incrustados na sua memória com todas as
características correspondentes.

Quando Hitler estava de bom humor, apreciava nos fazer descrições fiéis das grandes
recepções que tinham acontecido na Chancelaria nos anos anteriores. Sua memória visual lhe
permitia descrever os trajes vestidos por artistas ou convidados importantes que tinham
tomado parte e ele nos reproduzia as simples amabilidades bem como as conversas sérias que
tinha trocado com um ou outro dos convidados.
Era o mesmo com as impressões que tivera na apresentação de peças de teatro ou de filmes.
Ele nos fazia reviver com uma riqueza de detalhes inimaginável as peças a que assistira
quando era rapaz. Ele nos citava os nomes dos atores e se lembrava do que haviam dito os
críticos!

Como um cérebro de homem podia acumular tantas coisas e fatos!

É, pois, indiscutível, que Hitler era dotado de nascença de uma memória pouco comum; mas
seu segredo residia no fato de, dia após dia, ele a desenvolver e a agilizar. Ele nos explicava
que, ao ler, esforçava-se para captar as grandes associações do tema e penetrar nelas. Eu já
disse que ele tinha a mania, durante os chás noturnos ou na hora das conversas informais
junto do fogo, de nos contar o que tinha guardado de uma leitura, a fim de ancorá-lo no seu
cérebro. Essa ginástica mental tornara-se uma necessidade para ele. Hitler estava convencido
de que a maior parte dos leitores era gente ignorante que não sabia tirar nenhum partido
desse exercício. Embora fosse um tanto confuso no seu trabalho e detestasse percorrer e
anotar dossiês, Hitler dispunha de uma memória com gavetas de onde sabia tirar o melhor
proveito.

Contudo, por conta de seu desejo constante de ultrapassar os interlocutores e de surpreendê-


los através da extensão de seu saber, tratava de não informar as fontes de seus
conhecimentos. Sabia admiravelmente fazer com que os que o escutavam presumissem que
suas exposições eram fruto de suas reflexões e de seu senso crítico. Podia citar páginas
inteiras dando a impressão de que aquela literatura era de sua lavra e que representava a base
de seu pensamento pessoal. Quase todos com quem conversei sobre este ponto estavam
convencidos de que Hitler era um pensador profundo, dotado de um espírito analítico
singularmente perspicaz e refinado.

Um dia, eu quis ter certeza. Hitler nos havia surpreendido com uma verdadeira dissertação
filosófica sobre um de seus temas favoritos. Para minha surpresa, constatei que a sua tirada
inteira não era senão a reprodução de uma página de Schopenhauer que eu lera bem
recentemente. Reuni toda a minha coragem e chamei sua atenção sobre essa coincidência
curiosa. Hitler, um tanto surpreso, me fulminou com seu olhar impenetrável, e depois, com
um tom doutrinal e protetor, me respondeu: "Não se esqueça, minha filha, que o saber de um
homem tem quase sempre suas origens em outro. Cada homem contribui para o conjunto das
ciências apenas com uma parte ínfima."
Dessa mesma maneira convincente, Hitler falava de homens ilustres, países estrangeiros,
cidades, construções, representações teatrais etc., sem jamais tê-los conhecido ou visto. A
maneira peremptória e segura com que se expressava e a dialética límpida e clara com que
formulava seu pensamento persuadiam seus ouvintes de que ele efetivamente havia visto ou
vivido aquilo de que falava. Podia-se acreditar que tinha pensado ou experimentado tudo o
que relatava em suas longas narrativas com uma riqueza surpreendente de precisões. Mas,
também nesse caso, bem depressa descobri seu estratagema. Um dia, ele nos fez uma crítica
severa de uma representação teatral à qual eu sabia que ele não tinha assistido. Manifestei-
lhe o meu espanto de vê-lo condenar de maneira tão intransigente diretores e atores, sem
que tivesse assistido à peça. Ele teve um sobressalto, como se tivesse sido mordido por uma
tarântula, e me respondeu: "Você tem razão, mas... a srta. Braun estava lá e me relatou suas
impressões.

Esse dom prodigioso foi, contudo, diminuindo com o tempo. Fui levada a constatar que, nos
últimos anos da guerra, sua memória, para seu grande desespero, não lhe permitia mais
fingir-se pensador e técnico genial. Nesse domínio, como em muitos outros, ele tinha voltado
ao padrão normal. O enfraquecimento daquela faculdade o fez perder o traço mais
característico de seu prestígio.

Contudo, não se deve acreditar que Hitler se interessasse com a mesma paixão por todos os
campos do espírito. A arte, a técnica e a História eram seus temas favoritos, mas sua
formação apresentava bom número de lacunas consideráveis. Por exemplo, ele tinha apenas
vagas noções sobre Direito e questões legislativas. As finanças públicas o irritavam e ele não
tinha nenhuma compreensão dos problemas administrativos. Maravilhoso organizador
durante o tempo suficiente para a estruturação de seu partido, Hitler soltou inteiramente a
rédea no pescoço de seus "Gauleiters" e altos funcionários para que organizassem sozinhos as
grandes administrações do país. Excessos imperdoáveis podem ter sido cometidos,
simplesmente porque Hitler não se interessava por tais problemas.

Essa inércia e essa repugnância explicam em parte a ascendência que o Reichsleiter Bormann
acabou tendo sobre ele. Organizador obcecado e verdadeiro hércules do papelório, Bormann
mastigava para Hitler seu trabalho e o livrava de todas as questões aborrecidas. Em
contrapartida, tornou-se pouco a pouco o chefe oculto da Alemanha, deixando o Führer à
parte dos acontecimentos que devastavam o moral da nação.

Hitler achava que ele era o único de seus colaboradores que sabia colocar em fórmulas
inteligentes e claras suas concepções e suas idéias. Freqüentemente, quando ousávamos
adverti-lo de que a opinião pública considerava os métodos administrativos de Bormann de
um rigor desumano, ele nos respondia no tom que não admitia nenhuma réplica com o qual
tinha o hábito de resolver as questões espinhosas e desgastantes, com estas palavras: "Eu sei
que Bormann é violento. Mas tudo o que lhe confio ele executa com uma pontualidade
notável; tudo o que ele executa é marcado com o selo do bom senso."

Hitler sabia que Bormann exigia de seus subordinados um devotamento completo e um


rendimento máximo.

Quando as queixas dos empregados chegavam a ele, mandava-os embora com a explicação de
que o próprio Bormann trabalhava como um animal de carga: "É graças à sua dureza e aos
seus métodos intransigentes que ele consegue executar o programa formidável de que eu o
encarreguei."

Em outra ocasião, ele nos elogiou Bormann exclamando: "Seus relatórios são caprichados e
detalhados de um jeito que só tenho que acrescentar minha assinatura. Com Bormann,
liquido uma pilha de relatórios em dez minutos, enquanto com outros preciso de horas para
tomar as mesmas decisões. Quando digo a ele durante uma conversa: me lembre daqui a seis
meses desta ou daquela questão, fico certo de que não vai se esquecer da data fixada. Ele é o
contrário do irmão, que esquece tudo."

Albert Bormann, o irmão em questão, fazia parte do secretariado de Hitler e era odiado pelo
irmão Martin por ele ter se casado com uma mulher que não o agradava.

Foi depois da partida de Hess para a Inglaterra que começou a ascensão vertiginosa de
Bormann. Na mesma noite em que a famosa fuga de Hess foi conhecida, ele deu uma grande
recepção em sua villa de Obersalzberg, como se festejasse um feliz acontecimento. Depois,
graças a competentes intrigas, conseguiu afastar Wilhelm Bruckner do cargo influente que
ocupara junto do Führer desde os tempos heróicos da luta pelo poder. A partir de então,
Bormann se sentiu com os caminhos abertos e começou a desenvolver uma atividade febril.
Ocupou sistematicamente todos os postos importantes do EM de Hitler com homens de sua
escolha. Com uma desenvoltura maquiavélica, soube se infiltrar em todos os serviços, e raros
foram os colaboradores diretos do Führer que não estavam mais ou menos presos na rede de
corrupção e denúncia de que Bormann tecera todas as tramas. Bormann tornara-se a
Eminência parda, o homem que Hitler não podia mais dispensar. Foi graças a ele que o séqüito
de Bruckner foi preso por Schaub, homem sem classe e sem caráter. O papel nefasto deste
último consistia em fazer chegar aos ouvidos complacentes do Führer frases sabiamente
dosadas pelo intrigante Bormann.
Durante os últimos anos de guerra, o Reichsleiter reinou sobre o QG como um potentado
indiscutível. Quase todo o pessoal tinha sido substituído por indivíduos a seu soldo, que ele
tirara de suas rotinas para alçá-los a postos invejados. Inútil dizer que esses aproveitadores
eram todos absolutamente devotados ao seu benfeitor, e se apressavam em lhe transmitir as
mínimas fofocas.

Uma vez mestre do lugar e não tendo mais nada a temer da entourage de Hitler, Bormann se
apressou a afastar qualquer perigo que pudesse ameaçá-lo de fora. Ergueu pouco a pouco em
volta de Hitler uma verdadeira muralha chinesa, que não se podia transpor a não ser com a
condição de inspirar total confiança e não sem antes lhe revelar o objetivo da visita. Bormann
tinha assim o controle absoluto de todas as engrenagens do Reich.

A título de exemplo, lembrarei que em março de 1945 os Gauleiter Hofer e Forster, de


Marches do Leste, foram até Berlim para fazer um relatório a Hitler, sem ter falado antes com
Bormann. Tão logo os informantes deste último o puseram a par da iniciativa, ele interrompeu
sua estadia em Obersalzberg e se precipitou para Berlim a fim de neutralizar a intenção dos
dois Gauleiter, assustados com a invasão próxima de seus territórios pelos exércitos russos.
Bormann passoulhes um violento sermão por terem desobedecido a suas instruções e os
aconselhou a voltar para seu Gau respectivo e fazer os preparativos de defesa em vez de vir
intrigar em Berlim.

Bormann não tinha nenhum amigo; o único que conheci foi Hermann Fegelein, o cunhado da
srta. Braun. Um companheirismo sólido parecia ligar estes dois homens, o que não impediu
Bormann de mandar passar pelas armas o seu melhor amigo por ter tentado deixar Berlim
secretamente alguns dias antes da queda da cidade.

Bormann era incontestavelmente o gênio mau de Hitler. Sua sede de poder era insaciável. Não
somente tinha conseguido colocar seu chefe num completo isolamento físico e espiritual, e
encher toda a sua entourage de homens sob suas ordens, como também sabia
admiravelmente misturar as cartas cada vez que uma ocasião se apresentava para se
valorizar.

Eu poderia citar inúmeros exemplos nos quais Bormann transformou em uma questão de
Estado incidentes sem importância. Escolho entre mil.

Um dia, o DNB publicou uma notícia dizendo que um fazendeiro fora condenado a dois meses
de prisão por ter retido um litro de leite por dia para seu consumo pessoal. O fotógrafo
Hoffmann, diante de quem o fato foi relatado e que era também proprietário de uma fazenda,
deixou escapar esta observação: "Nestas condições, eu mereceria anos de prisão, pois trago
da minha propriedade cinco litros de leite cada vez que vou la."

Esta confissão imprudente foi fielmente relatada por seus agentes a Bormann, o qual apanhou
na mesma hora sua mais bela caneta para escrever textualmente ao delinqüente: "O Führer
me encarregou de dizer a você que, segundo o regulamento em vigor, você só tem direito a
meio litro de leite."

Cada vez que um antigo companheiro de Hitler mencionava casualmente ter reparado que um
ou outro membro influente do partido transgredia os regulamentos existentes, Bormann
explorava imediatamente o fato enviando uma carta ao interessado que invariavelmente
começava com estas palavras: "Segundo as declarações de Senhor fulano, anomalias foram
constatadas em sua administração..."

Um último exemplo caracteriza os procedimentos usados para afastar de Hitler todos de quem
ele temia a franqueza da palavra ou da crítica. Um dia, o fotógrafo Hoffmann recebeu uma
comunicação telefônica de Bormann, informando-o de que seu serviço de informações
suspeitava que ele fosse portador de bacilos paratíficos e que ele devia doravante se abster de
ver o Führer. Hoffmann, assustado com aquela comunicação, submeteu-se durante seis meses
a uma observação médica pelos maiores especialistas de Viena; o resultado foi negativo. Em
março de 1945, voltou a Berlim para se justificar da calúnia de que tinha sido vítima. Estava
fazendo sua refeição na Chancelaria, quando Bormann, chegando à mesa, lançou-lhe
furiosamente: "Então você voltou! Era melhor ter ficado lá onde estava. Em vez de ficar
fazendo negócios com seus quadros, era melhor inventar raios que fizessem cair do céu os
aviões inimigos."

Meia hora depois, Hitler passou pela mesma sala. Com um gesto cansado, fez sinal aos
convidados para não se incomodarem. Mesmo assim Hoffmann se levantou para se apresentar
ao Führer. Este recebeu-o muito friamente e perguntou com uma ponta de ameaça se ele
estava de fato curado agora. Os protestos veementes de Hoffmann e a apresentação do
atestado médico, afirmando que ele nunca tinha estado infectado de paratifo, não chegaram
a convencer Hitler. Ele passou a evitar se encontrar com "seu fotógrafo da corte" e não quis
saber de ouvir os argumentos com que esse último se justificava.

Fiquei sabendo mais tarde que Bormann insinuara que era possível que Hoffmann tivesse
enviado o filho, que tinha o mesmo nome que ele, a Viena e que o certificado tivesse sido
dado para ele. Hitler foi suficientemente crédulo para levar a sério aquela perfídia.
E a sinistra comédia que devastava o moral da nação continuava.

***

Capítulo III

Falando muitas vezes sobre um mesmo assunto é que se chega a captar suas grandes linhas.

HITLER

Durante os últimos anos, Hitler levava uma vida cada vez mais irregular. Enquanto, para o
comum dos mortais, as refeições são distribuídas ao longo do dia numa ordem imutável, Hitler
orientava sua vida exclusivamente segundo as famosas "conferências", durante as quais
discutia a situação com seus colaboradores.

A duração dessas sessões era essencialmente elástica, variando de uma a quatro horas, e
além. As refeições, por conta disso, também atrasavam.

Ele tinha o hábito de tomar o café da manhã por volta de 11h30. A hora do almoço se situava
entre 14 e 17 horas, e o jantar entre 20h e meia-noite.

Depois que acabava de jantar, fazia uma hora de repouso para, em seguida, convocar a
segunda "Lagebesprechung", que ia muitas vezes até a madrugada.

Quando terminava de liquidar suas preocupações estratégicas, Hitler tomava o chá por volta
de 4 ou 5 horas da manhã. Nos últimos anos, somente as secretárias e algumas vezes o doutor
Morell ou seu ajudante Schaub lhe faziam companhia. Em 1944, às 8 horas da manhã, às vezes
eu ainda estava sentada na frente de Hitler escutando-o falar, fingindo prestar atenção.
Hitler podia falar, falar interminavelmente. Era sempre ele que dava o impulso necessário à
conversação que, com freqüência, degenerava em monólogo sem fim, no qual ele expunha
suas visões e os temas mais diversos.

Nessas conversas entrecortadas, os assuntos mais imprevistos eram abordados. Hitler, é


verdade, discursava alegremente e com entusiasmo sobre todos os temas. Ainda hoje eu me
pergunto por que ele sacrificava daquele jeito seu repouso da noite para ficar expondo suas
teorias diante de um público que, o mais das vezes, teria preferido o sono àquelas falações
monocórdias.

Quando uma questão o preocupava, ele gostava de discuti-la sem parar. Ele nos dizia que, ao
expor um problema, as palavras lhe abriam a cada vez horizontes novos e lhe faziam
compreender as coordenadas que haviam lhe escapado de início.

"A palavra", ele nos dizia, "lança pontes na direção de horizontes desconhecidos. A língua
alemã sobretudo, com suas sutilezas e precisões, permite sondar regiões novas para o
espírito. É a razão pela qual a Alemanha foi a terra de eclosão de pensadores e poetas".

É impossível para mim contar tudo que Hitler me expôs ao longo daqueles chás noturnos,
durante uma dezena de anos; confesso que muitas vezes o cansaço foi mais forte do que
minha atenção e que eu apenas opinava com um movimento da cabeça, com o pensamento
completamente ausente.

Durante aquelas conversas noturnas, Hitler gostava de lembrar episódios da infância.


Principalmente quando estava preocupado, sua juventude emergia facilmente do emaranhado
de pensamentos que o agitava.

"Nunca gostei de meu pai", tinha o hábito de dizer, "mas tinha um grande medo dele. Ele era
muito irascível e me batia por um nada. Quando me corrigia, minha mãe tremia por mim. Um
dia, eu tinha lido num romance de aventura que era prova de coragem não mostrar a própria
dor. Tomei então a resolução de não gritar quando meu pai me batesse. Poucos dias depois,
tive a oportunidade de botar minha coragem à prova. Minha mãe, amedrontada, saíra da
frente da porta. Quanto a mim, contei em silêncio as pauladas que me feriam o traseiro.
Quando lhe anunciei triunfante que tinha recebido trinta e duas, ela acreditou que eu tinha
perdido a razão. Coisa curiosa, a partir daquele dia não precisei mais repetir minha
experiência; meu pai não tocou mais em mim.
Mais tarde, contava Hitler, depois de entrar em contato com as duras realidades da vida,
sentira o maior respeito pelo pai que, órfão, criado no campo, conseguira seguir a carreira de
funcionário subalterno das alfândegas. Graças a seu espírito de economia e de trabalho, tinha
sido até capaz de adquirir uma pequena fazenda.

Hitler gostava de falar das qualidades de dona de casa de sua mãe, graças às quais a
propriedade da família aumentou pouco a pouco.

Por outro lado, ele tinha o hábito de tratar suas irmãs de "bobocas". Tinha raiva delas, por
exemplo, por causa da pouca compreensão que demonstravam por seu esporte favorito, que
consistia em atirar com carabina nos ratos que povoavam o cemitério da pequena comuna.
Ele nos confessava que, na ocasião das bodas de sua irmã Angele, aconselhara o pretendente,
que lhe era muito simpático, a fazer o que bem entendesse e não se incomodar com uma
imbecil daquelas.

Na escola, Hitler era o chefe de um bando sempre pronto a pregar peças. Como criança, já era
obstinado e impertinente. Um dia, um professor, por distração, chamou-o pelo nome de
Hitter, e ele não se levantou de seu banco. O professor olhou-o fixamente nos olhos e, uma
vez mais, pronunciou: "Hitter." O futuro Führer continuou sem se mexer. Quando finalmente
o mestre perdeu a paciência, Hitler, sempre sentado, respondeu-lhe tranqüilamente: "Eu não
me chamo Hitter, e sim Hitler".

No curso de instrução religiosa, ele usava estratagemas diabólicos para vexar o bravo cura do
interior. Tentava provar a seus condiscípulos que a religião não era para ser levada a sério.
Um dia, pretendeu com toda a seriedade, diante da turma inteira, que Deus não havia criado
o homem, mas que ele lera em um livro que o homem descendia do macaco. No dia seguinte,
trouxe como prova um volume de Darwin, para grande consternação do professor de religião.
Sua mãe foi convocada pelo diretor da escola, que a ameaçou de represálias caso ela não
impedisse o filho de se entupir de leituras tão descabidas.

Desde muito jovem, Hitler se interessara pelas meninas. Ele nos contou que, à noite, em Linz,
quando via uma garota que lhe interessava, ia direto para junto dela. Quando a menina estava
na companhia da mãe, ele perguntava a esta última se tinha permissão para acompanhá-las
até a porta de casa, ajudando-as, se fosse o caso, a carregar os pacotes. Durante os ofícios, da
mesma maneira, procurava chamar a atenção das meninas fazendo trejeitos. Escovava, por
exemplo, bigodes inexistentes com a bengala do pai. Essas palhaçadas provocavam um frouxo
de riso nas meninas, e Hitler ficava contente com seu breve sucesso.
Gostava também de nos contar seus primeiros ensaios de fumante. Conseguira fumar um
charuto até a metade: após o quê, sentira-se horrivelmente mal e correra para casa. Para a
mãe ele contou que tivera uma indigestão de cerejas. O médico, chamado às pressas, fez o
inventário de seus bolsos e encontrou o resto do charuto.

"Mais tarde", acrescentou Hitler, "comprei um longo cachimbo de porcelana. Fumava


desbragadamente, mesmo deitado. Uma vez me aconteceu adormecer e, ao despertar, a
cama estava em chamas. Então tomei a resolução de nunca mais fumar e permaneci fiel ao
meu voto".

Um incidente parecido sucedeu quando, ainda bem jovem, Hitler começou a beber
aguardente. Sempre tive a impressão de que era penoso para ele explicar a razão pela qual
manifestava tamanho desgosto pelo álcool. O fato de ele cercar de mistério essa explicação só
fazia atiçar minha curiosidade. Finalmente, minha insistência suplantou sua reserva e ele me
contou a seguinte história:

"Após fazer nosso exame, no final do curso, meus colegas e eu regamos o acontecimento com
um número respeitável de litros, em um albergue do campo. Eu passei mal e tive que, diversas
vezes, me precipitar para o pátio. No dia seguinte de manhã, procurei sem sucesso o
certificado que meu pai me pedia. Como minhas procuras permaneceram vãs, decidi pedir
uma cópia a meu diretor de escola. Foi então que ele me fez passar a maior vergonha de
minha juventude ao me entregar um diploma todo manchado; um camponês o tinha
recolhido em cima de um monte de estrume e o havia enviado à escola. Fiquei tão
envergonhado que, pelo resto da vida, nunca mais engoli uma gota de álcool."

Durante aquelas conversas noturnas, Hitler abrangia quase todos os domínios do pensamento
humano. Contudo, eu sentia confusamente que alguma coisa lhe faltava. Ainda hoje, eu não
saberia definir muito claramente. A toda aquela verborragia faltava, na minha opinião, uma
nota humana, a grandeza de alma de um homem culto. A biblioteca de Hitler era desprovida
de autores clássicos e de todas as obras impregnadas de humanismo e de espiritualismo.

Na minha frente, ele lamentava sobretudo não ter tempo para ler a bela literatura, a que trata
dos problemas do espírito, e estar condenado a ler apenas obras técnicas. Esse lado negativo
de sua formação explica os múltiplos reveses que ele experimentou no plano psicológico.

A Arte tinha um lugar muito importante em suas dissertações. Ele considerava a Grécia antiga
e Roma como o berço da cultura, onde as concepções do cosmos, da ciência e do intelecto
encontraram suas primeiras expressões. Ele me falava freqüentemente de sua satisfação por
ter podido admirar, na ocasião de suas viagens a Roma e Florença, as imortais obras-primas
que até então só conhecera sob a forma de reproduções.

Hitler desprezava a pintura moderna. Considerava-a excessivamente marcada pelas tendências


expressionistas e impressionistas. Essa "arte degenerada" - a expressão foi forjada por ele -
era, em sua opinião, obra de judeus que fizeram uma publicidade barulhenta em torno dessa
rabiscação insensata a fim de vender muito caro, enquanto eles mesmos tinham o cuidado de
só incorporar a suas coleções os "velhos mestres".

Poucos pintores alemães de nossa época obtinham aprovação diante de sua crítica mordaz.
Contudo, ele comprava freqüentemente telas que não lhe agradavam, com o objetivo de
encorajar os artistas.

"Os pintores de nossos dias", ele dizia, "jamais terão a minúcia e a paciência no detalhe como
tiveram os das grandes épocas da Arte."

De fato, só existiam duas para ele: a Antiguidade e o Romantismo. Ele reprovava a Idade
Média e o Renascimento porque achava-os excessivamente corrompidos de cristianismo.

Hitler fazia qualquer coisa para se tornar comprador de obras antigas. Eu o vi feliz como uma
criança no dia em que, com a intermediação de Mussolini, conseguiu adquirir o célebre
Discóbolo de Myron. Entretanto, eu não saberia dizer se aquele entusiasmo transbordante era
somente ditado pela exultação artística ou se estava misturado à vaidosa satisfação de
possuir tal obra-prima.

Hitler gostava de trazer de volta à luz velhos mestres caídos no esquecimento. Quando um
antiquário conseguiu comprar para ele a famosa Peste em Florença de Hans Makart, seu
entusiasmo se aproximou do êxtase. Ele se plantava diante da tela imensa, mergulhado em
uma contemplação admirativa que me era absolutamente incompreensível. O tema macabro,
a cor verde-amarelada dos cadáveres, principalmente, exerciam sobre mim uma verdadeira
repulsa. Mas eu não ousava demonstrar-lhe minha repugnância, por medo de estragar sua
alegria.

Sua aversão pelos "modernos" era tamanha que ele mandara organizar, na ocasião da
inauguração da Kunsthalle em Munique, em 1937, uma exposição paralela de obras ditas
"degeneradas". Esta última deveria servir de espantalho aos que, por esnobismo,
pretendessem se aproximar da nova arte.

Antes da inauguração do museu de arte de Munique, os especialistas, imbuídos das idéias


particulares do Führer, retiveram 1.450 quadros que julgavam ser os mais ortodoxos dentre os
20 mil envios feitos de todas as partes da Alemanha. Mal sabiam eles! Na véspera da abertura,
Hitler percorreu a exposição com passo de ginástica e eliminou ainda quinhentos quadros que
julgava indignos de serem exibidos. Um simples peteleco de sua parte bastava para fazer
desaparecer obras-primas autênticas. Eu estava admirada com o grande número de "nus" que
seu ostracismo respeitara, e falei a ele, muito tempo depois, da minha surpresa. Ele me
respondeu que o fizera pelos soldados; que as belas academias eram naturalmente apreciadas
pelos combatentes. Retornando da lama do front, eles tinham uma necessidade física de se
distrair na admiração de uma beleza escultural.

O Führer estava constantemente interessado em novas aquisições. Não se preocupava com


suas procedências. O fato de saber que tinham sido arrancadas de coleções ditas
"requisitórias" não o afetava.

O último ministério dos C.T.T.* tivera a idéia de imprimir selos de sobretaxa, nas épocas de
comemoração de eventos nacionais.

*2. Ministério dos Correios, Telégrafos e Telefones. (N.T.)

O produto dessas vendas era destinado a um fundo especial, do qual Hitler retirava dinheiro
livremente para comprar obras de arte. Sua grande idéia era dotar as pequenas cidades de
província de museus regionais.

"Nas grandes cidades", dizia ele, "existe uma quantidade de museus lotados de quadros que
mesmo um amador de arte tem dificuldade de examinar de perto na sua massa heteróclita. Eu
preconizo repartir essas pinturas entre museus regionais, inspirando-se no passado das
localidades, na particularidade da paisagem circunvizinha ou nas características raciais dos
habitantes. A cidade natal de cada artista deveria ser dotada de um pequeno museu,
abrigando um certo número de suas criações".

Hitler queria igualmente reunir outras coleções, armas históricas, por exemplo, que estavam
adormecidas no esquecimento ou se encontravam na possessão de particulares. Assim, seria
possível fazer desses museus locais uma atração para as pequenas cidades, permitindo aos
interessados estudar obras de arte sem fazer longos e custosos deslocamentos.

Mas era em Linz, considerada por ele sua cidade natal, que queria erguer o museu mais
opulento da Alemanha. Os quadros não deveriam mais ficar pendurados nas paredes, num
empilhamento confuso, mas cada obra devia ser valorizada num enquadramento apropriado.
Cada mestre devia dispor de uma sala especial, mobiliada e decorada no estilo da época à
qual tinha pertencido. Assim, todas as grandes correntes artísticas da História floresceriam em
suas atmosferas próprias.

Mas Hitler não tinha sido apenas mordido pela paixão de colecionador. Adolescente, sua
grande ambição tinha sido entrar para a Academia de Belas-Artes de Viena. A prova de
desenho que ele havia feito tinha sido satisfatória, mas não foi admitido porque sua formação
escolar não era suficiente para seguir os cursos. Cada vez que Hitler relatava essa decepção
dolorosa, ele se tornava sombrio e agressivo. Formulava necessariamente suas críticas
habituais contra a injustiça da sorte que faz com que jovens permaneçam estagnados na
obscuridade por terem saído de famílias pobres.

Restam dessa época e do período da guerra 1914-1918 aquarelas nas quais Hitler, não sem
talento, reproduziu monumentos e construções públicos com um cuidado quase fotográfico do
detalhe.

Pintar e desenhar iam ser sempre o hobby de sua vida. Mesmo ao longo de sua existência
trepidante de chefe de Estado, ele encontrava tempo para exercer esse talento. Na sua mesa,
tinha sempre à mão uma pilha de folhas grossas de papel, de que se servia nos momentos de
descontração para nelas reproduzir o que sua inspiração do momento ditasse. Sentia muito
orgulho desses croquis e osguardava ciumentamente. Quando queria me agradar ou me
recompensar, depois de uma jornada extenuante de trabalho, ele me oferecia um, nunca sem
chamar a minha atenção para o valor de seu gesto.

Hitler tinha uma verdadeira paixão pela arquitetura. Havia lido inúmeras obras e conhecia as
características das diferentes épocas até nos menores detalhes. Compreendia pouco o estilo
romano mas, por outro lado, rejeitava o estilo gótico por achá-lo excessivamente impregnado
de mística cristã. Admirava principalmente o estilo barroco, cujas obrasprimas mais puras
tinham sido construídas em Dresden e em Wurzburg. Inútil destacar seu entusiasmo pelo
novo estilo alemão, de que ele foi de certa maneira o inspirador. Foi o arquiteto Troost que
estabeleceu, segundo suas indicações, os cânones dessa arquitetura fortemente impregnada
de classicismo grego. Hitler tinha em relação a ele um reconhecimento profundo por suas
realizações. Nos seus aniversários mandava colocar sobre seu túmulo imensos buquês de
flores.

Seus conhecimentos sobre essa matéria eram verdadeiramente assombrosos. Ele se lembrava
das dimensões e dos planos de todas as construções importantes do mundo. Do ponto de
vista do urbanismo, Paris e Budapeste estavam acima, em sua opinião, de todas as outras
capitais. Durante a guerra, ele me confiou mais de uma vez que a sua maior felicidade teria
sido tirar o uniforme e se consagrar unicamente às questões da arte.

Hitler elaborara um programa titânico para a reconstrução das cidades e dos monumentos
destruídos durante a guerra. Vangloriava-se de ter dado ordem para que cada monumento
histórico fosse fotografado em cores, por dentro e por fora, para que, uma vez chegada a paz,
ele pudesse ser exatamente reproduzido. Queria que os testemunhos da vida cultural dos
séculos passados renascessem de suas ruínas em toda a sua venerável beleza. Hitler estava
convencido de que as fotografias em cores permitiriam aos arquitetos ter sucesso nessas
realizações. Em conferência com seus arquitetos, seu entusiasmo pelas próprias idéias se
tornava comunicativo. Acontecia-lhe então de pegar um pedaço de papel e fazer nele alguns
traços de esboços aos quais não faltava grandeza. Eu vi que arquitetos e empresários de valor
ficavam literalmente chocados com seu saber e suas concepções inéditas. Mesmo em tempos
de guerra, ele encontrava tempo para discutir arquitetura e arte.

Os novos planos para o pós-guerra de Berlim e de Hamburgo eram simplesmente colossais.


Todas as vezes que, durante seus enunciados, Hitler repetia estas palavras: "Farei de Berlim a
cidade mais bonita do mundo", ele se erguia numa atitude de orgulho indomável. Sua voz era
de bronze e seus gestos varriam qualquer contradição.

Nos períodos mais difíceis, a idéia da reconstrução da Alemanha o animava com um vigor
insuspeitado. Quando voltava de conferências esgotantes, extenuado, olhos fundos de fadiga,
ele recuperava sua vitalidade com uma rapidez espantosa se algum especialista lhe propusesse
o exame de novos planos ou modelos.

Em março de 1945, ainda vi Hitler permanecer interminavelmente diante de uma maquete de


madeira da cidade de Linz, tal como tinha projetado transformá-la. Nesses momentos, Hitler
esquecia a guerra; não sentia o cansaço e nos explicava durante horas todos os detalhes das
modificações que havia concebido para sua cidade natal.
A música, o teatro e o filme o interessavam em um grau menor. Sua preferência ia para
Richard Wagner, que considerava como o gênio regenerador da mística alemã. A linguagem
musical do mestre de Bayreuth ressoava em seus ouvidos como uma poesia divina. Tinha
assistido até 140 vezes a algumas de suas apresentações. Foram os Nibelungen e o Crepúsculo
dos Deuses que deixaram sobre ele a impressão mais profunda. Ele ajudava Bayreuth
financeiramente e tinha o projeto de facilitar para a população alemã a ida aos festivais como
a uma peregrinação nacional. O Front Alemão do Trabalho organizava viagens coletivas para
operários e empregados. Hitler e seu círculo tinham se imposto o dever de expandir o
entusiasmo pela obra wagneriana em todas as camadas sociais. Depois de Wagner havia
somente Beethoven e Bruckner, mas passagens de Hugo Wolff e Richard Strauss também
tinham lugar no seu exclusivismo.

Hitler achava que tinha um senso musical muito desenvolvido. Quando assobiava uma ária
diante de Eva Braun e ela observava que o assobio estava fora do tom, ele adotava um ar
doutrinal para responder: "Não sou eu que estou enganado; é o compositor que cometeu um
erro."

Numa determinada época, ele chegou a ficar literalmente entusiasmado pelas operetas: O
Morcego e A Viúva Alegre. Eu me lembro de um tempo em que, noite após noite, ele
mandava tocar os discos, diante do fogo da grande lareira. Mesmo no escritório, às vezes
abandonava o trabalho para assobiar essas árias diante da janela, com as mãos nos bolsos, o
olhar perdido no infinito do céu. Ele foi um admirador sincero dos atores em voga e das
dançarinas famosas. Gratificava-os com presentes de valor. Durante a guerra, gostava de lhes
enviar pacotes de café e de víveres, e recebia com prazer suas cartas de agradecimento.

Durante as hostilidades, renunciara a receber anualmente os grandes artistas durante alguma


brilhante soirée. Via apenas o presidente da Associação dos Artistas Alemães, o diretor von
Ahrendt. Ele vinha nos ver freqüentemente no QG de Hitler e se incorporava aos então
famosos chás. Hitler queria saber das novidades de cada um dos artistas que conhecia. Cada
vez que Ahrendt ia embora, Hitler lhe apertava a mão com emoção e repetia com uma voz
resignada: "Felizmente você vem de tempos em tempos me fazer companhia na minha
solidão; você é para mim o traço de união vivo com um mundo de sonhos ao qual não tenho
mais acesso."

***

Capítulo IV
Não posso me permitir ficar doente.

HITLER

Estas palavras caracterizam Hitler melhor do que longas exposições. Como todos os homens
que acreditaram ter sido chamados a cumprir uma missão histórica, Hitler estava ansioso por
não dispor do tempo necessário para a realização de sua obra. Razão pela qual, sob seu
impulso pessoal, todos os grandes projetos foram concebidos e executados com uma
precipitação e uma pressa bem pouco conformes ao espírito metódico alemão. O plano de
quatro anos, o rearmamento, a condução de diversas campanhas, todas essas concepções e
operações foram tocadas com tamanha rapidez, tamanha desordem que o estrangeiro não
compreendia mais nada. A própria população alemã, que tinha o hábito do trabalho refletido
e ordenado, estava perplexa com a cadência febril e enervante com a qual acontecimentos e
trabalhos se chocavam, sob a direção incansável de Hitler em pessoa. Quantas vezes eu ouvi
esta exclamação da parte de dirigentes da indústria e da política alemã: "A Alemanha se
tornou uma verdadeira casa de loucos. Transforma-se e reforma-se com uma tal pressa que a
ordem fica prejudicada. Aqui, tudo está de cabeça para baixo. Tomara que o resultado não
leve à catástrofe!"

Hitler, que exigia de seus subordinados o máximo rendimento, era duro consigo mesmo e se
dedicava às suas tarefas até o esgotamento. Por esta razão, a questão da sua saúde e a
incrível história de seus médicos pessoais adquiriram tamanha importância. Podemos nos
perguntar se a ideologia demencial deste homem, se suas reações descontroladas e surgidas
sob a influência de um impulso irracional devem ser consideradas como conseqüências de seu
estado de saúde frágil, reforçado ainda mais pela atmosfera de estufa quente na qual ele se
comprazia; ou se, ao contrário, sua natureza degenerada tinha necessidade dessa atmosfera
fictícia para fazer eclodir seus pensamentos e concepções extravagantes.

É verdade que, por volta do fim da vida, Hitler não era mais do que uma ruína física e mental.
O desmoronamento de suas forças físicas e a degenerescência de seu espírito se efetuaram
paralelamente.

Nos primeiros anos que se seguiram à tomada do poder, ele ainda não tinha necessidade de
especialista para doenças internas. O único responsável por seu estado de saúde era o Dr.
Karl Brandt, que Hitler considerava um amigo. Com o passar dos anos, Brandt apelou para dois
outros cirurgiões de grande reputação, o doutor von Hasselbach e o professor Werner Haase,
que partilhavam então o temível encargo de velar por seu bem-estar físico. Desde sempre,
Hitler sofria de males de estômago e de intestinos. Porém, pouco a pouco, sua doença
adquiriu tamanho desenvolvimento que ele teve que se submeter a uma dieta extremamente
rigorosa. Vegetariano desde 1931, esta medida reduzia ainda consideravelmente o número de
pratos que sua cozinheira estava autorizada a preparar.

Sob os conselhos de seu fotógrafo Hoffmann, o Dr. Morell lhe foi apresentado. Desde o
primeiro exame, o médico diagnosticou uma doença da parede interior dos intestinos. Morell
dedicou-se a reconstituir a flora intestinal de Hitler. Durante um ano e meio, Hitler tomou
regularmente uma especialidade de Morell denominada "Mutoflore". Não sei se este produto
levou a uma cura dos intestinos, mas o fato é que um eczema na perna de que Hitler sofria há
muito tempo sarou muito rapidamente. Este resultado inesperado valeu ao Dr Morell uma
grande confiança da parte do Führer. Sempre apressado para realizar o máximo na sua jornada
de trabalho, os sintomas de um simples resfriado provocavam nele uma depressão ansiosa. Ele
tinha horror a ficar na cama. Isto explica o grande sucesso dos métodos de Morell, que
conseguia freqüentemente deter uma doença em seu estágio inicial com injeções especiais.

As intrigas que eram armadas em torno do doente e as lutas travadas pelos encarregados de
tratá-lo põem em relevo o aspecto problemático da entourage escolhida por Hitler.
Professores e acadêmicos manifestavam um desprezo mal disfarçado por Morell, cuja
personalidade nada tinha de protocolar. Ele foi constantemente o alvo de críticas acerbas por
conta de seu senso um tanto agudo de negócios, sua eterna preocupação em não ser
esquecido nas distribuições de condecorações, suas posturas de oriental insuficientemente
polido, a limpeza duvidosa de seus instrumentos, e sobretudo por causa dos medicamentos
misteriosos e muitas vezes considerados nocivos que ele administrava ao Führer.

Hitler, contudo, não se deixava influenciar por esses ataques: "Esses idiotas (ele se referia a
Brandt, von Hasselba- ch etc.) não foram capazes de me aliviar ou de me achar um especialista
de verdade em doenças internas. Eles só sabem tratar Morell de charlatão. Mas Morell me
curou. Meu eczema desapareceu, e posso novamente comer direito. Esquecem que eu não
tenho tempo de curar uma gripe na cama. Desde 1920, nunca tirei um dia de verdadeiro
descanso. Estou a par de tudo, sei tudo que se passa. Quando descanso nas minhas caras
montanhas, o trabalho continua em Berlim segundo minhas diretivas, como se eu estivesse
presente. Não tenho tempo para ficar doente. É o que estes senhores deveriam compreender
de uma vez por todas."

Mas esse trabalho sem descanso e as preocupações provocadas pelos reveses da guerra
tinham minado a saúde de Hitler. A partir do inverno de 1941-1942, Morell velou-o dia e
noite. Dava-lhe injeções intravenosas e intramusculares a cada três dias. No final, essas
misteriosas injeções passaram a ser administradas quase todos os dias. Morell me explicara
que o soro em questão continha suco de uva, vitaminas A, B, C e E, assim como hormônios.
Nos últimos anos, quando Hitler entrava em um furor violento, seus transes eram seguidos de
dolorosos espasmos de estômago. Nesses momentos, Morell acorria à sua chamada para
aplicar um remédio cujo segredo só ele conhecia, mas que tinha o dom de devolver ao
paciente a calma tranqüilizadora. Esse remédio era considerado por Hitler absolutamente
milagroso.

A decadência de Hitler acentuou-se rapidamente a partir do começo do ano de 1944. Sua


perna direita e sua mão esquerda eram sacudidas por um tremor nervoso permanente. De
fato, a perna estava ligeiramente paralisada, pois ele a arrastava um pouco. Seu criado de
quarto apressava-se a colocá-la sobre uma almofada cada vez que Hitler se estendia. Eu
percebia então no olhar de Hitler uma furiosa vontade de proibi-lo, mas imagino que o alívio
era tão grande que ele preferia aquela mortificação de seu orgulho à dor lancinante.

Após o atentado de 20 de julho de 1944, o Dr. Gising, que tratava do ouvido de Hitler,
descobriu um dia sobre sua mesa cápsulas "Antigas". Ele lhe perguntou quantas tomava.
Hitler respondeu: "Até 17 por dia." O Dr. Gising ficou alarmado com a idéia de que o Dr. Morell
deixava Hitler consumir tal quantidade. Os demais médicos foram alertados e, após um
verdadeiro conselho de guerra, decidiram prevenir oficialmente o Führer do efeito desastroso
que aquelas cápsulas causavam em seu organismo. Achavam que o tremor da mão e da perna,
assim como o enfraquecimento crescente da vista, eram provenientes em grande parte
daquele medicamento. Entretanto, o Reichsleiter Bormann mandou analisar as cápsulas em
questão e obteve um certificado atestando que elas eram absolutamente inofensivas e que
era possível para um homem tomar aquela quantidade. Bormann não teve nenhuma
dificuldade em convencer Hitler da boa-fé de Morell, e o incidente resultou na dispensa
imediata dos doutores Brandt e von Hasselbach.

Nem por isso se deve deduzir que Hitler tinha uma confiança absoluta em Morell. Bem ao
contrário. Sua desconfiança dele crescia dia a dia. Cada medicamento proposto por Morell era
cuidadosamente estudado por Hitler. Ele lia com a maior atenção a indicação e a análise do
remédio. Se, por infelicidade, a forma do recipiente da droga mudasse minimamente, Hitler
pedia explicações. Também nesse caso sua memória o ajudava. Tinha, pois, facilidade em
reter tudo o que se referia a cada medicamento. Havia adotado o hábito de ter com Morell
grandes discussões a respeito dos efeitos curativos dos remédios propostos. Tentava
sistematicamente surpreender um erro na segurança de Morell. Como a memória do médico
tinha se enfraquecido, era difícil para ele sustentar aqueles interrogatórios indiretos e
responder com toda a precisão requerida às perguntas argutas que lhe eram feitas. Cada vez
que se enganava a respeito do menor detalhe, Hitler reclamava, e sua desconfiança ficava mais
intensa.

Hitler sofria horrivelmente com aquela obsessão contínua na qual vivia; ele me confessou que
tinha tentado sem sucesso se desfazer dela.
É difícil, com efeito, encontrar na história outros exemplos de homens de Estado que tenham
vivido numa tal psicose de desconfiança e temor. Essa quase loucura de perseguição
certamente não era apropriada para dar a Hitler a clareza de espírito e de julgamento que lhe
teria permitido evitar os erros fatais cometidos, com uma obstinação cega, durante os
últimos anos de seu governo.

Seu temor de ser vítima de uma doença contagiosa era pelo menos tão forte quanto sua
obsessão com um atentado possível. Quando um de seus colaboradores sofria de um leve
resfriado, era-lhe estritamente proibido se aproximar dele. Hitler justificava essas medidas
com a afirmação constantemente repetida: "Eu não tenho tempo nem direito de ficar
doente." Quando, apesar dessas instruções severas, alguém doente se arriscava a chegar
perto dele, ele tomava imediatamente medidas preventivas contra uma contaminação
possível. Nesse caso, chegava até a regar seu chá com umas gotas de álcool. Seus médicos me
contaram muitas vezes que doente difícil ele era. Sua necessidade de saber tudo e tudo
compreender exigia horas de explicação para a menor das intervenções. Todas as vezes
consultava um grosso dicionário médico. Quando os efeitos curativos de uma medicação lhe
pareciam duvidosos, ele se recusava violentamente a tomá-la. As explicações mais científicas
e as mais sensatas não tinham nenhum efeito sobre ele. Essas controvérsias terminavam
invariavelmente com uma explosão de raiva do Führer, mas que não tinha contudo a violência
histérica das que ele tinha com seus generais.

Hitler sentia verdadeira repulsa em se despir diante de alguém. Até novembro de 1944, ele
recusara, sob os mais diversos pretextos, o conselho do Dr. Morell de se submeter ao raio X.
Quando, nessa época, o médico se permitiu lembrar-lhe que ele havia prometido se deixar
radiografar, Hitler perdeu todo o controle e os fragmentos metálicos de suavoz reboaram até
na ante-sala onde eu me encontrava. Hitler não variava de repertório nessas crises de
indignação diante de seus médicos. "Que história é essa de me darem ordens? Sou eu que
comando aqui e ninguém mais! Aliás, parece que há algum tempo vocês vêm se esquecendo
disso com muita facilidade. Se insistirem em recomeçar, eu os demito imediatamente. Sou
suficientemente crescido para saber o que devo fazer pela minha saúde." Um dia, Morell
ousou lhe perguntar a verdadeira razão pela qual ele recusava este ou aquele tratamento.
Hitler lhe respondeu friamente: "Porque eu não quero; apenas isso." Morell, com um zelo
incansável, continuava a lhe propor outros medicamentos. Um dia, desesperado por uma nova
recusa de Hitler, exclamou: "Mas, meu Führer, eu não assumi a responsabilidade de cuidar da
sua saúde? E se lhe acontecer alguma coisa?" Hitler fulminou-o com seu olhar misterioso no
qual vacilava uma chama maldosa. Insistindo em cada palavra, destacando cada sílaba com
um deleite cruel, soltou-lhe esta frase: "Morell, se me acontecer alguma coisa, a sua vida
também não vai valer nada", e, com um gesto nervoso, pareceu esmagar um punhado de ar.

Não surpreende que o estado de saúde de Hitler e suas relações com seus médicos tenham
tido as mais dramáticas repercussões sobre todo o seu círculo. Não posso citar exemplos
precisos, mas é certo que mais de uma decisão, mais de uma entrevista com um diplomata
estrangeiro foram influenciadas pela disposição física na qual Hitler se encontrava.

A questão da saúde do Führer se tornara um verdadeiro problema nacional. Eu sei que


Himmler, o manipulador dos cordões misteriosos de todos os acontecimentos do Terceiro
Reich, queria também se assegurar desse controle. Com isso, Morell estava constantemente
às voltas com manobras secretas da parte dele. Quando o professor Brandt e o Dr. von
Hasselbach perderam a confiança de Hitler, um jovem médico SS, o Dr. Sturmfeger, tomou o
lugar deles. Graças a ele, nada mais escapava ao chefe da Milícia Negra. "O olho" de Himmler
tinha principalmente como missão vigiar as condutas de Morell. Este deu-se conta e viveu a
partir desse momento em um terror permanente. Quando, no começo do ano de 1944,
Himmler o convocou de repente ao seu QG, Morell, antes de empreender esse deslocamento,
me confiou o temor que o atormentava. Mas qual não foi sua grande surpresa quando
constatou que Himmler não lhe pediu para prestar contas de seus tratamentos especiais.
Muito gentilmente, pediu-lhe o favor de influenciar seu paciente para que aceitasse os
cuidados de seu massagista pessoal que gozava de grande reputação profissional. Morell
recusou-se a dar seguimento a esse pedido porque sabia desde logo que Hitler não aceitaria
se deixar massagear pelo recém-chegado. Não era apenas por desconfiança instintiva, mas
sobretudo por causa de sua repulsa a se mostrar sem roupas. Somente nos últimos meses,
Hitler recorreu aos cuidados do massagista. O intrigante Himmler finalmente alcançara os seus
desígnios.

Morell se dava conta perfeitamente de que era apenas um peão no jogo infernal de Himmler.
Sua inquietação mortal oscilava constantemente entre o comportamento cada vez mais
desagradável do doente cuidado por ele e a vigilância implacável sob a qual o mantinha o
chefe da polícia do Terceiro Reich.

Hitler estava obcecado pela idéia de chegar até uma idade bastante avançada. Nas suas
conversas, voltava com freqüência a este problema. Estava persuadido de que a ciência
chegaria um dia a estender o limite fatídico da vida humana. Experiências de laboratório
tinham apresentado resultados encorajadores. Morell havia dito a Hitler que os elefantes
viviam muito porque comiam uma determinada erva que crescia na Índia. Estou convencida
de que Hitler teria enviado uma expedição à Índia para fazer pesquisas, se as circunstâncias
tivessem permitido.

Graças à sua alimentação exclusivamente vegetariana e à renúncia ao tabaco e ao álcool,


Hitler contava ganhar alguns anos sobre sua velhice para terminar a obra de sua missão
terrestre.
Por outro lado, ele não se dava conta de que a vida fictícia e absurda que levava de fato devia
inevitavelmente conduzi-lo à decadência física prematura. Esse lado anormal de sua
existência, o trabalho noturno insano que não lhe permitia senão curtos momentos de sono,
graças à absorção de soníferos cada vez mais numerosos, fizeram dele uma ruína humana
numa idade em que os homens normais estão no ponto culminante de sua força.

É preciso acrescentar que Hitler não praticava nenhum esporte. Os cavalos o assustavam,
tinha horror à neve, o sol lhe fazia mal. Tinha também um grande medo da água. Jamais
aceitara participar de uma partida de canoagem. Não creio que soubesse nadar. Ele me disse
um dia: "Os movimentos que o homem faz no cumprimento de seu trabalho diário dão a ele
exercício suficiente para manter seu corpo em forma." Mas isto não o impedia de ter uma
grande admiração pelos atletas alemães.

Hitler arruinava constantemente sua saúde. Ela se deteriorou sensivelmente a partir de 1942.
O tremor nervoso de sua mão o incomodava cada vez mais. Suas crises furiosas eram
imediatamente seguidas de abatimentos nervosos e de cólicas de estômago que o sacudiam
de dor. Nesses momentos de crise, Morell estava sempre presente com sua seringa para aliviar
o sofrimento dele. No final de 1944, ele teve icterícia depois de uma altercação tempestuosa
com Goering. Mais uma vez, Morell e sua seringa agiram para acalmar e revigorar aquele
trapo entupido de medicamentos.

***

Capítulo V

Jamais beijaria uma mulher que tivesse o hábito de fumar.

HITLER

Hitler vivia literalmente em Esparta. Só comia pratos vegetarianos e não bebia nem café, nem
chá preto, nem álcool. Estava de tal maneira convencido do poder nocivo da carne, do álcool e
da nicotina que, durante as conversas, voltava constantemente ao assunto e procurava nos
fazer compartilhar de sua aversão. O consumo de carne, afirmava ele, cria a necessidade de
álcool. A absorção de álcool incita a fumar, e é assim que um vício leva a outro, precipitando
toda uma população em misérias assustadoras. A nicotina, em sua opinião, chega a ser mais
temível do que o álcool. Ele a considerava um veneno terrível cujas conseqüências funestas
não aparecem senão depois de anos.

O hábito de fumar torna o espírito obtuso e encolhe as artérias. O enfraquecimento geral da


constituição é fato corrente em todos os grandes fumantes. Um dia, ele gracejou: "No fundo,
uma excelente maneira de se livrar de seus inimigos é oferecer-lhes cigarros."

Quando alguém ousava contradizê-lo sobre esses pontos, Hitler se enfurecia. O infeliz perdia
imediatamente toda estima a seus olhos. Quantas vezes ele me disse com ar sério: "Se eu
descobrir um dia que Eva fuma, imediatamente termino com nosso relacionamento."

Hitler alimentava a idéia de proibir legalmente o tabaco e cigarros, depois da guerra. Estava
convencido de que, dessa maneira, faria um grande favor a seu povo.

A noção de dinheiro e a de propriedade constituíam para ele conceitos vagos para os quais
não tinha nenhum senso de realidade. Sua única necessidade de luxo se concentrava em
grandes cômodos decorados por sua conta com Gobelins verdadeiros, velhos quadros, bibelôs
de valor e flores.

Consigo mesmo, era de uma displicência e de uma negligência inauditas. Seu guarda-roupa era
pouco numeroso e desprovido de qualquer sofisticação; a moda não existia para ele. Que os
sapatos não lhe apertassem os pés e os ternos não lhe atrapalhassem os movimentos era só o
que exigia. Como ele tinha o hábito, ao falar, de sublinhar suas frases com gestos amplos e
violentos, as mangas de seus paletós eram cortadas muito largas. Tinha horror das sessões de
provas com os alfaiates. Para evitá-las o mais possível, sempre mandava fazer três ou quatro
ternos de uma vez, sendo todos cortados da mesma maneira e freqüentemente no mesmo
tecido. Não tinha nenhuma preocupação com suas gravatas. Quando reparava em uma que lhe
agradava, comprava imediatamente meia dúzia delas, com o mesmo desenho.

Durante a guerra, usava com o uniforme uma gravata pronta que ele fixava com um gesto
automático; assim, evitava perder um tempo precioso fazendo o nó. Na época da tomada do
poder era visto sempre envolto num trench coat de cor amarelada e, na cabeça, com um
chapéu de veludo cinza, enquanto que, nos últimos anos, quando estava em Obersalzberg,
usava um casacão sem forma, de um cinza sujo, e cobria a cabeça com um boné cinza provido
de uma viseira preta de dimensões exageradas. Essa viseira escondia quase toda a parte
superior do seu rosto e era motivo constante do espanto de seus convidados. Mas ele não se
importava com todas as críticas amistosas que lhe faziam, argumentando que aquela viseira
protegia seus olhos do sol de que tinha horror. Cada vez que sua entourage ou convidados
muito próximos lhe sugeriam se vestir com um pouco mais de cuidado, Hitler fazia cara feia e
mostrava ostensivamente seu descontentamento. Somente as roupas nas quais ele se sentia à
vontade contavam para ele. Detestava se paramentar para cerimônias oficiais. Não podia
compreender por que era preciso envergar aquela carapaça rígida para receber diplomatas
estrangeiros. Até mesmo o smoking não tinha graça diante de seu senso prático. Terminou
entregando os pontos, mandando fazer um smoking com duas fileiras de botões que foi logo
imitado por um grande número de pessoas do seu círculo.

Jamais usava jóias, nem relógio de pulso. Até o final, só tinha seu grande relógio de bolso de
ouro que, sem corrente, repousava num bolso do seu paletó. Esse relógio praticamente
nunca funcionava. Esquecia-se regularmente de dar corda, de modo que perguntava
freqüentemente as horas aos empregados ou aos convidados. Fazia-o sempre com bom
humor e irônico consigo mesmo: "Mais uma vez meu regulador parou."

É verdade que um relógio não tinha, a seus olhos, o mesmo papel que para o comum dos
mortais. Era seu criado de quarto que o substituía. Era ele que o acordava de manhã e que
lhe lembrava durante o dia as audiências essenciais.

Hitler dormia sempre por trás de uma porta trancada e fechada a chave. O criado de quarto
batia na hora convencionada (geralmente por volta das 11 horas da manhã), gritando: "Bom-
dia, meu Führer! Está na hora de se levantar." Ao mesmo tempo, depositava os jornais e os
relatórios da manhã diante da porta. Hitler ia pegá-los para percorrê-los rapidamente. Seu
criado jamais o viu trocar de roupa ou de robe.

Por volta do meio-dia, Hitler soava para pedir o café-damanhã que, nos primeiros anos,
compunha-se ainda de um copo de leite e um pouco de pão sem sal. Mais tarde, passou a
comer apenas uma maçã ralada e, no final, uma espécie de compota preparada segundo a
fórmula de um médico suíço. Ela era composta de leite, flocos de aveia, maçãs raladas, noz,
limão e um certo número de outros produtos. Enquanto absorvia esse café-da-manhã, seu
ajudante-de-ordens lhe trazia mensagens urgentes e lhe fazia um resumo dos acontecimentos
da noite. Em seguida, ele estabelecia o programa do dia. Quando estava hospedado no
Berghof, tinha o hábito de reunir seus colaboradores no grande hall para o relatório da
manhã. Experimentava uma espécie de necessidade física de ficar naquela grande peça de
dimensões gigantescas. Caminhava de um lado para o outro, enquanto discutia com seus
interlocutores. De tempos em tempos, seu olhar pousava sobre os cimos nevados dos Alpes,
cuja vista panorâmica estava enquadrada dentro de uma imensa janela que tinha as
dimensões de uma vitrine de loja.
Durante essas conferências, Hitler esquecia muitas vezes a hora de almoçar. Os convidados
ficavam aguardando pacientemente em um imenso terraço ou em seus quartos. Quando
finalmente ele chegava, saudava primeiro Eva Braun, depois cada um dos convidados,
desculpando-se pelo atraso. Nos primeiros anos, só fazia beija-mãos às mulheres casadas,
mas, depois, adotou o hábito de fazê-lo também às moças. Hitler saudava em seguida os
convidados homens e se entretinha bastante com eles até o momento em que o maitre vinha
anunciar: "Meu Führer, o senhor está servido. Conduza a senhora ou a senhorita fulana à
mesa."

Hitler então saía à procura da sua vizinha de mesa, apresentava-lhe o braço e a conduzia à sala
de refeição. Era seguido por Eva Braun no braço do seu vizinho de mesa e dos outros casais.

Na mesa, Hitler ocupava sempre o lugar do meio, diante das janelas. À sua esquerda estava
sentada invariavelmente Eva Braun. A duração da refeição era função do programa previsto
para a tarde. A atmosfera que reinava à mesa nunca era a mesma; de acordo com os
acontecimentos do dia, apresentava altos e baixos. O humor no qual se encontrava Hitler
refletia-se em todos os fatos e gestos. Nada de surpreendente, portanto, que aquelas
refeições fossem um dia banhadas em uma indiferença gelada e, no dia seguinte, de uma
animação quase exuberante. Tudo dependia do humor do momento do dono da casa.

Muito frugal, Hitler gostava principalmente de pratos únicos, e tinha um fraco marcado pelos
feijões. Em seguida, vinham as ervilhas e lentilhas. Não havia diferença entre a refeição que
lhe era servida e a dos convidados, com uma única distinção, contudo, o fato da sua nunca ter
entrado em contato com carne ou gordura. Recusava-se até a beber um caldo de carne. Tinha
literalmente horror a carne. Estava persuadido de que seu consumo afastava o homem da vida
natural. Quando discutíamos sobre este ponto, ele nos citava como exemplo os cavalos e os
elefantes, animais dotados de uma grande força, ao passo que os cachorros, essencialmente
carnívoros, perdem logo o fôlego com o esforço. Para desviar seus convivas do consumo de
carne, ele gostava de discorrer à mesa a respeito de como a carne representava uma matéria
morta e podre. Se uma dama lhe lançava um olhar suplicando para que cessasse aquelas
descrições surrealistas, isso só fazia incitá-lo a exagerar ainda mais. No fato de as conversas
sobre a origem da carne cortarem o apetite, ele via a confirmação de seus princípios. Contudo,
diante de convidados estrangeiros, jamais exercia esse proselitismo bizarro.

Quando elogiava, por outro lado, seu regime vegetariano, lançava-se em descrições eufóricas
da maneira como os elementos eram produzidos. Ele nos descrevia o cultivador semeando
seu campo com gestos largos e majestosos. Depois o trigo adquiria raiz; ele crescia e se
tornava um mar de verdura que dourava pouco a pouco ao sol. Esses quadros bucólicos
pleiteavam, a seus olhos, o retorno à terra e aos produtos naturais que ela prodigalizava para a
alimentação do homem. Mas essas tiradas poéticas terminavam sempre no seu tema
favorito: o desgosto que o consumo de carne deveria inspirar em qualquer homem. Ele tinha
uma maneira de descrever o trabalho sanguinolento nos abatedouros, o abate dos animais e
o corte em quartos que provocava náuseas nos seus convivas cheios de apetite. Então, para se
redimir, terminava declarando não ter tido de forma alguma a intenção de forçar quem quer
que fosse a se alimentar como ele, dado que isso podia ter como conseqüência ninguém mais
aceitar seus convites.

Depois do almoço, Hitler reunia habitualmente seus convidados numa conferência. Em


seguida, o grupo fazia um passeio a pé até a pequena casa de verão, situada a cerca de meia
hora de caminhada do Berghof. Hitler precedia todo mundo com o convidado de honra. Os
outros seguiam a uma distância suficiente para que a conversa deles não pudesse ser ouvida.
Todo o grupo se encontrava sobre o pequeno platô do pavilhão e admirava o majestoso
panorama dos Alpes. Depois tomava-se o chá.

Quando a conversa esmorecia, Hitler se esforçava para animá-la desenvolvendo suas teorias
nebulosas sobre o racismo ou evocando o tempo feliz de sua luta pelo poder. Mas acontecia-
lhe com freqüência se ver acometido por um cansaço súbito depois de tomar o chocolate, sua
tília e o pedaço de torta de maçã. Viam-no de repente se encolher no fundo da poltrona e
colocar a mão diante dos olhos. Ele simplesmente adormecia.

Eva Braun então começava a conversar intensamente,

pois ela sabia por experiência que um silêncio respeitoso teria perturbado o sono de seu
mestre. Quando era a hora de partir, ela acordava Hitler com um gesto discreto. O retorno ao
Berghof era feito sempre de carro.

Hitler raramente ia ao famoso "Teehaus", situado a 2.000 metros de altitude, no cume de um


rochedo abrupto que se projeta sobre todo Berchtesgaden. A idéia e a realização desse ninho
de águia foram obra de Bormann. A construção da estrada e a perfuração do túnel que
conduzia a essa curiosa construção tinham custado somas absurdas. Um exército inteiro de
trabalhadores tinha sido mobilizado. Hitler estava muito orgulhoso de seu ninho de águia, mas
a subida de elevador lhe dava batimentos de coração. Ele só ia lá quando vinham homens de
Estado estrangeiros, ofuscados todas as vezes pela vista feérica das escarpas rochosas
surgindo das nuvens.
Eu já disse que Hitler era um trabalhador noturno. Assim que caía a noite, toda a sua
personalidade adotava um caráter mais aberto e mais animado. Também os jantares no
Berghof adquiriam um clima completamente diferente dos almoços.

Hitler gostava das mulheres que se enfeitavam com flores naturais. As vezes apanhava as
flores que decoravam a mesa e as atirava, com um ar sedutor, a convidadas. Quando as
mulheres a quem ele manifestara desse modo seu interesse prendiam as flores no cabelo ou
no decote, Hitler sempre lhes dirigia um cumprimento galante. Quando uma mulher chegava
à mesa enfeitada com flores cuja cor não lhe agradava, ele escolhia rapidamente outras em
um vaso e lhe estendia com a observação de que elas combinariam melhor com a brancura de
sua tez ou com a cor do vestido. Raramente falava de moda. Sabia, contudo, com um gosto
cativante, detalhar um conjunto e cumprimentar aquela que o vestia. Por outro lado,
manifestava abertamente sua aversão por certas novidades, como os sapatos com sola de
cortiça.

Mas estou persuadida de que tudo aquilo era apenas cálculo. Ouvi Hitler muitas vezes
expressar sua admiração a Eva Braun pelo "novo" vestido que ela usava, e ela lhe responder
com vivacidade que já o havia usado mais de uma vez.

Depois do jantar, os convidados se reuniam em um pequeno salão. Essa peça era


particularmente apreciada pelas mulheres por ser aquecida por uma enorme estufa de
ladrilhos.

É preciso que eu explique que Hitler, que detestava o sol, tinha comprado o Berghof por ele se
achar sobre o flanco norte de Obersalzberg. A casa ficava então quase o dia inteiro na
sombra, e as paredes grossas impediam o calor do sol de entrar. Era fresca em pleno verão e,
em tempos de chuva, reinava ali uma temperatura glacial. Hitler amava aquele frio, mas seus
convidados se sentiam muito desconfortáveis e se precipitavam assim que possível para o
banco que ficava em volta da estufa de faiança.

Num canto do cômodo, havia uma coleção inteira de dicionários. Quando, durante uma
conversa, as opiniões dos convidados diferiam sobre detalhes tais como a largura de um rio
ou a população de uma cidade etc., podia-se recorrer a eles para solucionar a questão. Hitler,
com a exatidão minuciosa que gostava de mostrar em todas as coisas, consultava duas
edições para ter certeza do seu ponto. Era nesse pequeno salão que ele conversava
privadamente com um ou outro convidado. Assim que terminava, pedia que todo o mundo o
seguisse até o grande hall para se instalar diante da célebre lareira. Para grande desgosto dos
friorentos, eu entre eles, a lareira nem sempre estava acesa, pois só Hitler decidia.
Ali, Eva Braun ficava à direita do Führer, que designava a pessoa a quem ele reservava a honra
de se sentar à sua esquerda. Hitler tomava quase sempre a palavra. Quando, no decorrer do
dia, ele tinha recebido um diplomata estrangeiro, ele nos comunicava suas impressões e dava
em seguida grandes explicações sobre o país em questão. Mas, enquanto falava, Hitler
observava tudo, pois era de uma curiosidade doentia.

Quando um grupo de convidados cochichava num canto ou alguém começava a rir de repente,
ele queria na mesma hora saber as razões. No período antes da guerra, usávamos
freqüentemente esse estratagema para lhe comunicar coisas de que, de outra maneira, teria
sido impossível lhe falar. Quando Hitler exigia saber o que se estava tramando, nós lhe
contávamos novidades que oficialmente não teria sido recomendável mencionar.

Essas sessões diante da lareira terminavam por volta de três horas da manhã. Eva Braun se
retirava sempre antes dele.

Os domingos não traziam nenhuma novidade ao programa de todos os dias. Ele detestava as
festas da Páscoa, do Natal etc. Depois da morte de Geli Raubal, sua sobrinha, o Natal se
tornara para ele um verdadeiro martírio. Ele admitia que um pinheiro fosse plantado num
canto do hall, mas proibia cantar cânticos. Nos últimos anos, chegou a proibir acender velas
na árvore. Não conheço nada de mais triste e mais deprimente do que uma festa de Natal
passada junto de Hitler.

O ano-novo, por outro lado, era festejado segundo a tradição. As refeições eram suntuosas e
se bebia champanhe.

Na batida da meia-noite, Hitler molhava os lábios em um copo de espumante enquanto


brindava, com seus convivas, o novo ano. Ele fazia todas as vezes uma careta de espanto
como se tivesse engolido veneno. Era-lhe incompreensível que pessoas pudessem apreciar
aquela "água avinagrada". Somente uma vez eu o vi beber com satisfação um copo de vinho
velho que recebera para o Natal de 1944. Quando quiseram lhe servir outro copo, ele recusou
prontamente. No dia seguinte, ele tentou mais uma vez, mas sua aversão pelo álcool falou
mais alto.

Na noite de São Silvestre, Hitler ia com seus convidados para o terraço de sua mansão para
saudar os habitantes de Berchtesgaden que davam salvas de morteiro. Em seguida, assinava
o menu de cada um dos seus convidados e mandava fazer uma foto do grupo.
Seus aniversários não tinham nenhuma comemoração especial. Quando seu círculo próximo
lhe apresentava os cumprimentos, ele brindava necessariamente conosco, fazendo todas as
vezes uma careta de desagrado diante do champanhe. À tarde, reunia todas as crianças de
Obersalzberg e as enchia de chocolates e doces.

Sua única distração era receber o presidente do Clube dos Prestidigitadores de Munique.
Hitler seguia suas exibições e truques com grande interesse e não poupava cumprimentos.
Contudo, nunca o ouvi dando uma gargalhada. Quando uma apresentação era divertida e ele
mesmo compartilhava da alegria geral, emitia no máximo um pequeno esgar agudo; o mesmo
que ele fazia, lendo qualquer livro, quando se regozijava com as desventuras sucedidas com
um menino malvado. Hitler não sabia manifestar sua alegria com um riso franco. Duas vezes
apenas eu o vi sair do sério:

Primeiro foi na primavera do ano de 1939. Os acontecimentos recentes haviam feito os nervos
da entourage de Hitler passarem por uma dura prova. Havia duas horas que o Führer
conferenciava com Hacha, o presidente da República tcheca. Nós todos sabíamos que o
assunto era grave, que a paz ou a guerra podiam depender daquela conversa. Na nossa sala,
minha colega mais velha e eu mesma seguíamos ansiosamente a ronda interminável das horas.

De repente, a porta se abriu empurrada por dois gigantes SS. Hitler se precipitou para nós,
com a expressão do rosto transfigurada. "Minhas queridas", gritou, "depressa, um beijo em
cada uma das minhas bochechas. Depressa!" Embasbacadas com aquela extravagância,
obedecemos. Logo em seguida, Hitler exclamou: "Minhas queridas! Tenho uma boa notícia
para lhes anunciar. Hacha acaba de assinar. É o maior triunfo da minha vida! Vou entrar para a
História como o maior dos alemães."

A segunda vez foi no Eifel, em junho de 1940, no momento em que anunciaram a Hitler que a
França tinha solicitado um armistício.

Ele foi literalmente sacudido por uma exuberância frenética. O mestre do Grande Reich
esboçou os passos de uma verdadeira dança de são Guido sob as sombras seculares, diante de
seus generais espantadíssimos.

***
Capítulo VI

As mulheres mais bonitas são, por direito, dos combatentes.

HITLER

Por que Hitler não se casou? Pergunta que às vezes fizemos a ele... Suas respostas nunca
deixavam transparecer as razões profundas de seu voto de celibato, voto que ele só rompeu
na véspera do suicídio.

Limitava-se a explicar com frases secas que o casamento teria provocado um desperdício de
suas forças intelectuais. Acrescentava ainda que um homem de Estado não podia se sacrificar
inteiramente pela felicidade de seu povo a não ser com a condição de lhe fazer o dom
completo de sua pessoa e de perseguir com rigor exclusivo o objetivo proposto. Ele citava
exemplos de homens de Estado cujas preocupações, suscitadas por questões de família,
tinham feito com que se esquecessem das obrigações com seus povos. "Os temperamentos
melhor forjados", dizia, "desabaram por causa disso, e nós vimos homens ferozmente
decididos a vencer na via que traçaram para si caírem na indecisão e na inação". Concluía
declarando que a importância de sua missão o proibia de correr tal risco.

Isso era dito de forma tão séria e com um tom tão peremptório que Hitler conseguia satisfazer
nossa curiosidade e convencer os mais céticos, mas a questão continuava lá. Mas os
verdadeiros motivos pelos quais ele só tinha se casado algumas horas antes de partir para o
nada, constituíam um dos lados mais tragicamente cruéis de sua vida.

Ele tinha amado Geli Raubal, a filha de sua irmã por aliança, Angela, com uma tal paixão que
lhe foi impossível sonhar em se casar com outra mulher após a morte trágica da sobrinha.
Muitas vezes ele me confessou que ela realizara o ideal mais absoluto que ele jamais fizera da
mulher e que era com ela que teria se casado um dia, se as circunstâncias trágicas não a
tivessem levado.

Geli tinha 16 ou 17 anos quando o tio mandou buscá-la em Veneza. Era uma moça morena, de
alta estatura, de olhos cor de avelã e voz melodiosa. Hitler a tratava no começo como uma
menina grande; fazia com que tivesse aulas de canto e vigiava ciumentamente as relações que
ela podia ter com outras pessoas.
Em 1927, quando ela ficou noiva secretamente de Emil Maurice, seu motorista, Hitler, num
acesso de furor, obrigou o homem a romper a união programada, ao mesmo tempo
ameaçando-o de dispensa imediata caso ele não lhe obedecesse imediatamente. Com a
obstinação brutal que lhe era própria, Hitler fez tudo para separar os dois jovens. Ameaçou
não apenas expulsar Geli de Munique, como retirou efetivamente a ajuda financeira que tinha
o hábito de conceder à mãe dela a aos outros membros de sua família. No verão de 1928, sua
chantagem triunfou e ele conseguiu separar definitivamente Geli de seu motorista. Pouco
tempo depois, a moça conheceu um artista-pintor de Linz e seu charme o seduziu a tal ponto
que ele lhe propôs casamento imediatamente. Hitler foi informado por sua polícia pessoal e
usou dos mesmos métodos para forçar sua irmã a se opor àquela união.

Nenhuma dúvida a respeito dos motivos que o levavam a tais manobras! Ele sentia pela
sobrinha mais do que um simples sentimento de amizade condescendente e protetora. Era
vítima de um violento sentimento de ciúme, inspirado por uma paixão amorosa que ele não
ousava ainda revelar.

Tive a oportunidade de ver a carta na qual o jovem suspirante, desesperado, usava seus
últimos argumentos para fazer com que Geli o seguisse. Eu a copiei para Hitler. Estou, pois,
em condições de reproduzir suas passagens mais características:

"Agora, seu tio, consciente da influência que exerce sobre a sua mãe, explora a fraqueza dela
com um cinismo sem limites. Infelizmente, não estaremos em condições de responder a essa
chantagem a não ser quando você tiver alcançado a maioridade. Ele acumula literalmente
obstáculos diante de nossa felicidade comum. Sabe, entretanto, que fomos feitos um para o
outro. O ano de separação que sua mãe nos impõe antes de dar a permissão para nossa união
só fará aumentar o apego que sentimos reciprocamente. Minha honestidade admite
dificilmente manobras tão indignas.

"Contudo, não posso explicar a atitude de seu tio a não ser pelos motivos essencialmente
egoístas que o ligam a você. Ele quer simplesmente que você não possa, um dia, pertencer a
outro que não seja ele."

Em outro trecho, o jovem pintor declara: "Seu tio continua a não ver em você senão uma
criança sem experiência, e não consegue compreender que tenha se tornado uma adulta que
quer edificar sua felicidade com os próprios meios. Seu tio tem uma natureza violenta. No seu
partido, todo mundo se apaga diante dele com uma avidez de escravo. Não compreendo que
sua inteligência aguçada não tenha se dado conta de que sua obstinação e suas curiosas
teorias sobre o casamento necessariamente se chocarão contra nosso amor e nossa vontade.
Ele espera conseguir durante este ano triunfar sobre nós; mas quão pouco ele conhece de sua
alma ardente..."

Nessa época, Hitler tinha tomado a decisão de se casar com Geli tão logo ele tivesse realizado
seus objetivos políticos. Em 1930, alugou um andar inteiro de uma casa situada no número 16
da Prinz-Regenten-Platz, onde Geli foi também se instalar. Esses anos de coabitação com Geli
foram, no dizer de Hitler, um período de grande felicidade.

Quando, mais tarde, nos contava essas lembranças, ele se transfigurava. No menor detalhe,
descrevia-nos como os dois, juntos, passavam tardes embriagadoras de alegria. Faziam na
companhia um do outro todas as compras, juntos iam ao teatro e assistiam regularmente aos
concertos. Com uma ponta de amargura, ele nos citava os pequenos defeitos de Geli:
"Quando eu a acompanhava aos salões de moda, ela mandava desembalar todos os chapéus
que se encontravam nas prateleiras e ordenava que lhe trouxessem os que estavam expostos
na vitrine. Quando todos os chapéus da loja tinham desfilado na sua cabeça, ela constatava
que não achara nada que fosse do seu agrado e declarava isso à vendedora com tamanha
desenvoltura que eu ficava incomodado. Quando eu cochichava a Geli que ela não podia
deixar a loja sem comprar nada, depois de ter posto tudo de cabeça para baixo, ela me
lançava um de seus sorrisos desarmantes e deixava cair da ponta dos lábios: "Mas, tio Adolf,
essas pessoas não estão aqui para isso?''

Hitler cuidava de Geli com um ciúme permanentemente aceso. Cada vez que ele partia em
viagem de propaganda, ela devia lhe prestar um juramento solene de não aproveitar de sua
ausência para renovar certos círculos de amizade.

A única situação em que ele não lhe impunha sua presença vigilante era quando ela ia à casa
da mãe. Isso durou até setembro de 1931. Nessa época, Hitler encontrou na loja de Heinrich
Hoffmann uma pequena vendedora chamada Eva Braun que se encantou por ele e meteu na
cabeça que ia conquistá-lo. Hitler teve com ela um pequeno flerte sem conseqüências.

No dia 17 de setembro de 1931, Hitler chamou Geli por telefone de Berchtesgaden, onde ela
estava descansando. No dia seguinte, ocorreu uma cena violenta entre os dois por ele ter
decido de repente ir para Nuremberg. Geli reclamou com o tio o fato de ele tê-la feito vir até
ali para nada, e ficou furiosa por ele a proibir de partir para Viena durante sua ausência a fim
de ter a voz examinada por um professor de canto. No dia seguinte de manhã, ao se
separarem, estavam frios um com o outro. O mau humor de Geli transformou-se em
desespero quando, no mesmo dia, revistando o sobretudo do tio, descobriu uma declaração
de amor escrita pela mão de Eva Braun. Nessa mesma noite, ela se suicidou com um tiro de
revólver dentro da boca.

Hitler foi chamado com urgência em Nuremberg. Sentiu de tal maneira o suicídio da sobrinha,
que esteve a ponto de dar fim à própria vida. Hess teve grande dificuldade de lhe arrancar a
pistola. Durante vários dias não comeu nenhum alimento e não fez outra coisa senão
percorrer o quarto de um lado para o outro, perguntando-se que razões teriam levado sua
sobrinha àquele gesto fatal.

Quando recuperou o hábito de comer, não podia mais engolir carne. Foi a partir dessa data
que ele se tornou um vegetariano absoluto.

Durante longos meses, Hitler se recusou a ver amigos e viveu com a lembrança de Geli. O
quarto dela permaneceu exatamente como era no momento de sua morte. Mandava botar
flores todos os dias e continuou a fazê-lo, nos anos seguintes, nos aniversários. Até a
declaração de guerra, trazia sempre a chave consigo. Mesmo o quarto que Geli ocupava no
Berghof estava sempre fechado. Quando, mais tarde, ele reformou essa residência para torná-
la mais espaçosa, a ala onde se encontrava o quarto da moça foi deixada intacta. Suas roupas,
seus objetos de toalete, tudo que havia lhe pertencido continuaram ali. Hitler recusou-se a
devolver à mãe de Geli alguns objetos e algumas cartas que ela lhe pedia como lembrança.
Toda a correspondência de Geli foi guardada pelo tio com um cuidado ciumento e, em abril de
1945, ele deu ordem ao seu ajudante Schaub para destruí-la caso ficasse evidente que não
haveria mais possibilidade de Hitler deixar Berlim. Ele tinha mandado pintar quadros, a partir
de fotos de Geli, que enfeitavam todos os seus apartamentos, em Munique, em Berlim e no
Berghof.

Seis meses depois da morte da moça, os amigos do Führer conseguiram finalmente arrancá-lo
da solidão na qual o drama o mergulhara. Heinrich Hoffmann levou-o uma noite ao cinema e
conseguiu colocar Eva Braun, como por acaso, sentada do seu lado.

E assim recomeçou entre Hitler e Eva Braun um flerte que, ao longo dos anos, se transformou
em ligação sólida. Hitler me confessou um dia que nunca chegara a sentir um grande amor
por Eva, mas que tinha simplesmente se habituado a ela. Uma vez, ele me declarou: "Eva é
bem simpática, mas, na minha vida, só Geli pode me inspirar uma verdadeira paixão. Jamais
teria vontade de me casar com Eva. A única mulher a quem eu poderia ter me ligado na vida
teria sido Geli."
No começo do ano de 1945, durante uma conversa em que alguém fez alusão às três
mulheres que, por causa dele, tinham tentado se suicidar, ou seja, Geli, Eva e Miss Mitford,
Hitler repetiu a respeito de Geli: "Ela foi a única mulher que soube ganhar meu coração e com
quem eu teria me casado. Sua morte foi uma provação terrível para mim. Mas, tendo em
vista os acontecimentos passados, começo a crer que foi melhor assim, pois eu nunca teria
podido dar a ela a felicidade que ela merecia."

Uma noite, em um café de Munique, Hitler reparou em uma moça que tinha uma estranha
semelhança com Geli. Mandou chamá-la à sua mesa para conhecê-la. Durante anos, ele a fez
seguir cursos de teatro apesar da pouca disposição que ela manifestava pelo palco.
Entretanto, a protegida levava uma vida muito desregrada. Quando Hitler ficou sabendo,
deixou completamente de vê-la e de subvencioná-la.

Nos primeiros anos de sua ligação com Hitler, Eva Braun nada mais era do que uma mocinha
apagada e insegura. A discrição com que ela sabia cercar seus encontros com Hitler causaram
nele uma impressão das mais favoráveis.

Ela jamais assistia a uma recepção oficial, e Hitler jamais a mencionava diante de convidados.
Nessa época, ela ainda não vivia no Berghof, onde a Sra. Raubal, mãe da falecida Geli, tinha se
instalado como um cão de guarda intratável.

Um simples quarto lhe era reservado no "Platerhof" que ficava nas proximidades. De tempos
em tempos, Eva vinha se encontrar com Hitler no "Berghof" por algumas horas.

A Sra. Raubal censurava severamente seu meio-irmão por aquela ligação. Ela manifestava um
profundo desdém pela moça e, furiosa por não conseguir separá-la de Hitler, tratava-a como
intrusa. Com freqüência, propunha a Hitler escolher como mulher uma atriz do gênero da Sra.
Sonnemann, que se tornara a mulher de Goering. Um dia, ela soltou diante dele a seguinte
reflexão: "Eu o invejo, Sr. Reichsmarschall, por duas coisas. Primeiro por ter como esposa a
Sra. Sonnemann e, depois, por dispor dos serviços de um criado tão perfeito quanto Robert.
Pena que meu irmão não tenha feito como o senhor." Goering respondeu com um sorriso
satisfeito: "A rigor, eu lhe cederia Robert, mas quanto a Emmy Sonnemann, jamais!"

Apesar de sua aparência de mocinha loura e frágil, Eva Braun tinha suficiente energia e
vontade. Curvando-se inteiramente às fantasias de seu mestre, conseguia pouco a pouco
reforçar sua posição.
Foi na ocasião do Congresso do Partido de 1936 que ela conquistou a amizade oficial de seu
amante. A Sra. Raubal a havia severamente repreendido por não ter permanecido
suficientemente afastada por ocasião das manifestações de Nuremberg. Fez queixa ao meio-
irmão mas, para sua surpresa, este tomou as dores de sua amiga. É verdade que Eva tentara
se suicidar em conseqüência das críticas acrimoniosas que tinha escutado, vindas da Sra.
Raubal. Esse gesto de desespero tinha impressionado Hitler de tal maneira que ele dispensou
na hora a meia-irmã e instalou Eva definitivamente no Berghof.

Foi a partir desse momento que ela entrou oficialmente na vida do Führer do Terceiro Reich.
Hitler ofereceu-lhe uma pequena villa em Munique, assim como um automóvel. Ele a cobriu
literalmente de jóias e vestidos caros, e lhe assegurou uma renda que lhe permitia satisfazer
todos os seus caprichos.

Eva Braun soube se adaptar aos costumes da alta sociedade. Ela pôs na cabeça que se tornaria
uma dama e se esforçou para copiar as atitudes da Sra. Goebbels, que adotara como modelo.
Contudo, apesar de todos os seus esforços e suas despesas, não conseguiu que suas origens
fossem esquecidas. Continuava uma moça como milhares de outras, para quem o único
interesse residia numa roupa extravagante e que se enchia de terror diante da idéia de que
seu peso pudesse aumentar em alguns gramas. Eva, por esta razão, comia com muita
irregularidade e tomava pílulas purgativas depois das refeições. Por causa desse hábito que ela
se impunha, sofria do estômago. Quando tinha crises de digestão, Hitler ficava literalmente
apavorado. Adotava então atitudes de colegial apaixonado. Acariciava-lhe interminavelmente
as mãos e os braços chamando-a de sua pequena "Patscherl".

Eva era de uma beleza muito instável. Seus olhos, cor de avelã e com cílios muito longos,
podiam fascinar. Mas ela perdia todo o encanto quando sua expressão fisionômica denotava
decepção. Dois vincos pesados então caíam das comissuras de seus lábios e a faziam parecer
terrivelmente envelhecida. Ela era irritável ao extremo, pois a falsa situação na qual se debatia
a enchia de inquietação. Vivia assustada com as intrigas astuciosas com que certas mulheres
do círculo do Führer a cercavam. Nesses momentos, sentia um pavoroso sentimento de
inferioridade; como era ávida para conhecer todas as fofocas, sentia-se perdida cada vez que
lhe mencionavam que seu amante se insinuara para qualquer uma de suas convidadas.

Eva tinha um temperamento difícil. Não sabendo se dominar, dado seu caráter impulsivo,
tinha explosões de raiva ou de entusiasmo, manifestava sem disfarce sua antipatia ou sua
simpatia pelas pessoas que estavam próximas dela. Era egoísta, salvo para os membros de sua
família ou suas amigas íntimas. Mas a instabilidade de seu temperamento a fazia mudar
freqüentemente as pessoas do seu círculo. O desapontamento que sentia pelo fato de Hitler só
se mostrar raramente em público com ela a mortificava. Ela enlouquecia com a possibilidade
de estar condenada a ficar esperando no quarto durante noites inteiras, enquanto ele vivia
cercado por uma platéia de mulheres bonitas da qual surgiam ofertas embriagadoras como
um perfume de incenso.

Ela só aparecia ao lado de Hitler quando ele recebia pequenos grupos. Eu constatava que,
nessas ocasiões, ela tentava brilhar por todos os meios. Teimava também em impor seu ponto
de vista em todas as coisas. No Berghof, era considerada pelos convidados como a dona da
casa. Em cada refeição, Hitler alterava a convidada de honra, mas, na mesa, Eva ficava
invariavelmente sentada à sua esquerda. No momento de deixar a mesa, Hitler sempre
beijava a sua mão primeiro e, somente em seguida, a de sua vizinha da direita.

Durante as refeições, Eva Braun participava muito pouco da conversa, pelo menos durante os
primeiros anos. Mais tarde, depois que adquiriu mais segurança, passou a tomar parte,
segundo seu humor do momento. Eu a via se irritar toda vez que Hitler continuava a discorrer
sobre um de seus temas favoritos em vez de deixar a mesa, uma vez terminada a refeição. Ela
manifestava ostensivamente sua impaciência. Durante os anos de guerra, segura da
ascendência que passara a ter sobre Hitler, ousou até a lhe lançar olhares reprovadores ou
perguntar as horas em voz alta. Hitler interrompia rapidamente seus monólogos e se
levantava da mesa se desculpando por sua verbosidade.

Hitler tinha se acostumado com o temperamento efervescente de sua amiga, mas não lhe
cedia em absoluto em todas as coisas. Ela estava submetida a instruções muito severas. Não
tinha o direito, por exemplo, de tomar banhos de sol porque seu amo não gostava de peles
morenas, e era só às escondidas que ela assistia às tardes dançantes, pois Hitler tinha horror
à dança. Excelente esportista, Eva praticava natação, ski e ginástica. Adorava os animais e vivia
cercada por um cão pastor, um bassê e dois fox-terriers. Em abril de 1945, Hitler acrescentou
a essa coleção um cocker. Eva também domesticara com muita paciência dois melros que
ficavam em liberdade no seu apartamento.

Mas a maior parte do seu tempo era dedicada às toaletes. Nesse domínio específico ela era de
uma aplicação pouco comum. Mandara fazer um catálogo onde estavam reproduzidos e
numerados todos os seus vestidos com uma amostra do tecido correspondente. Tinha assim
uma visão de conjunto rápida de seu guarda-roupa. O senso de classificação com o qual Eva
velava por todos os negócios que lhe diziam respeito era absolutamente notável. Hitler
apreciava essa qualidade. Dizia que ela era perfeitamente organizada e que nunca tivera que
lhe criticar a menor negligência.

Eva freqüentava assiduamente teatros e cinemas. Hitler sempre pedia sua opinião sobre as
peças que tinha visto. Mas com freqüência ele era induzido ao erro porque Eva não julgava as
representações de acordo com seu valor real, mas segundo a maneira mais ou menos
lisonjeira como ela tinha sido recebida pelos artistas. Jamais a vi lendo um livro um pouco
sério. Deleitava-se somente com romances policiais ou de literatura moderna. Essa leitura
correspondia de resto ao nível de sua formação intelectual.

No começo de 1938, Miss Mitford conseguira se encontrar com Hitler com mais freqüência do
que de costume. Eva Braun ficou aterrada. Ela encenou uma segunda tentativa de suicídio que
trouxe seu amante arrependido de volta para ela. A partir de então, sua posição ficou
definitivamente assentada. Hitler ficara apavorado com o pensamento de que ela poderia
tentar outra vez e que um dia explodisse um escândalo público. O fato é que, a partir desse
momento, eu tive a impressão de que Eva tinha sido definitivamente promovida. Ela afirmava
cada vez mais sua personalidade em sociedade, passando a ser cercada de uma consideração
mais respeitosa.

Todos os anos ela tinha autorização para partir de férias para a Itália levando amigas. Tinha
também, de tempos em tempos, o direito de fazer uma aparição em Berlim. Lá, contudo,
ficava menos em evidência do que no Berghof. Hitler não a proibia de passear em Berlim, de
fazer suas compras, ir ao cabeleireiro e à costureira; autorizava-a até a assistir à temporada
teatral, mas, em todas as ocasiões, ela mantinha o anonimato.

O casamento de sua irmã Gretel com Hermann Fegelein, representante pessoal de Himmler
junto ao Führer, marcou um novo progresso na sua libertação. Na sociedade, desde então,
passou a ser apresentada como a cunhada de Fegelein, razão pela qual tinha pelo cunhado
uma verdadeira afeição. Mas não conseguiu ainda assim lhe salvar a cabeça, quando Hitler
mandou executá-lo durante os últimos dias de Berlim.

No começo de 1945, ela me dizia: "Não acha que me tornei muito mais livre? Antes, eu não
sabia que atitude tomar durante as recepções oficiais, mas agora eu sou alguém: sou a
cunhada do Gruppenführer Fegelein. Ele me apresenta a uma multidão de gente que não
conheço, eu também estou a par de um monte de coisas de que não tinha a menor ideia."

As duas estadias de Eva em Berlim no começo de 1945 a tinham decepcionado muito. Hitler
que, há um ano, seguia um regime vegetariano ainda mais rigoroso, exigia que ela o
compartilhasse com ele. Ela se queixava: "Todos os dias nós brigamos por causa disso. De uma
vez por todas, não suporto engolir as misturas horríveis com que ele se deleita. Acho também
que toda a atmosfera mudou aqui. Eu estava tão contente de vir encontrá-lo em Berlim, mas
começo a lamentar. Adolf só conversa comigo sobre sua comida ou sobre seus cachorros.
Aquela cadela horrorosa Blondy (o pastor alemão preferido de Hitler) me irrita. Às vezes, eu
lhe dou pontapés debaixo da mesa e então Adolf fica todo ansioso diante das reações
assustadas do animal. É a minha maneira de me vingar.

Pode-se dizer que, do ponto de vista político, Eva era de uma ignorância e de uma indiferença
absolutas. Quando notava nas fisionomias consternadas dos colaboradores de Hitler e de
suas secretárias que alguma coisa de anormal acabara de acontecer, ela nos atormentava para
conhecer a razão.

Queixava-se com freqüência de que ninguém a punha a par dos acontecimentos. Quando lhe
explicavam uma notícia desagradável, ela sempre exclamava com um ar cândido: "Mas, meus
queridos, eu ignorava absolutamente tudo sobre esses horrores."

Freqüentemente, no dia seguinte de algumas recepções, ela me confessava: "Fegelein me


apresentou a homens que me fizeram relatos tão curiosos que não acreditei nos meus
ouvidos. Eu me senti como se tivesse sido transportada para outro mundo." Mas acrescentava
imediatamente: "No fundo, não é melhor que eu não saiba o que se passa em outros lugares?
Pois, afinal, não posso mudar nada." Ela retirava assim sua responsabilidade com uma
indiferença de menina. Depois de tais palavras, ficava sempre de bom humor. Ela nos
encorajava então a beber e a aproveitar a vida e, supremo desafio à ordem estabelecida,
ousava até fumar um cigarro. Mas, depois desse gesto de revolta, apressava-se a gargarejar
cuidadosamente antes de voltar para junto de seu desconfiado amante.

Aliás, Eva se dava conta do que a aguardava no dia em que a Alemanha afundasse. Sabia que
não lhe restaria nenhuma chance de sobreviver ao desastre. Em abril de 1945, ela me confiou:
"Se nós perdermos esta guerra, e eu começo a crer que isto vai acontecer apesar do otimismo
de Adolf, sei o que me aguarda, mas já tomei o meu partido." Toda a insistência de Hitler em
enviá-la a Berchtesgaden antes que a capital fosse completamente tomada fracassou diante
de sua feroz determinação de permanecer perto dele, "de ficar perto dele para o fim". Na sua
última carta à irmã, Gretel Fegelein, de 23 de abril de 1945, que eu levei, ela escreveu
literalmente: "A cada dia e a cada hora nós esperamos o fim. Mas não cogitamos de cair vivos
entre as mãos inimigas."

Contrariamente ao Führer, Eva Braun era muito supersticiosa. Toda sua lingerie era bordada
com um monograma no qual suas iniciais formavam um trevo de quatro folhas estilizado. Eva
reconhecia assim a sorte inaudita que a havia favorecido por ter sido escolhida dentre tantas
outras pelo homem todo-poderoso do Reich. Após uma longa ligação, aquela sorte havia lhe
permitido entrar para a História: ela se casou com o homem de sua vida, na véspera de seu
fim comum. Aquele casamento fúnebre, no umbral do nada, constituiu o coroamento e a
apoteose de sua vida de pequena cortesã sem brilho.

***

Capítulo VII

Em política, é preciso ter o apoio das mulheres; então os homens as seguirão sozinhos.

HITLER

Com as mulheres, Hitler era sempre de uma amabilidade e de uma cordialidade perfeitamente
naturais. Suas maneiras galantes, impregnadas de um estilo "velha Áustria", exerciam sobre
elas uma atração incontestável. Ele tratava seu pessoal feminino com muita consideração e
sem nenhum preconceito. Pedia-lhe, decerto, muita dedicação e o sacrifício quase total de sua
liberdade, mas, por outro lado, sabia reconhecer o trabalho no seu justo valor, retribuía-o
generosamente e, em caso de doença, testemunhava-lhe total solicitude. Conosco, suas
secretárias, ele era sempre de uma polidez rara, levantando-se a cada vez para nos saudar e
cedendo a vez com a mesma presteza com que o fazia quando se encontrava numa sociedade
mundana. Quando nos hospedávamos com ele no Berghof, ele nos conduzia à mesa, quando
chegava nossa vez, como fazia com suas convidadas importantes.

Durante seus numerosos deslocamentos através da Alemanha, habituara-se de tal maneira à


presença de suas secretárias que, mesmo em Berlim, tinha o costume de nos convidar
regularmente para os chás das 5 horas. Nos momentos de descanso, vinha conversar conosco
na pequena peça que nos era reservada em seu apartamento, na Chancelaria do Reich. Era
um verdadeiro quarto de uso múltiplo, ali preparávamos nossa correspondência, fazíamos as
refeições juntas, guardávamos nossas meias e... aguardávamos. Era mobiliado da maneira mais
excêntrica possível. Havia um canapé, um pequeno armário pintado de branco, uma mesa de
trabalho, algumas cadeiras e uma imensa mesa octogonal que atrapalhava todo mundo. Mas
Hitler se sentia ali muito à vontade. Vinha se refugiar cada vez que queria trocar idéias e fazer
um instante de repouso.

O Führer era muito sensível à beleza feminina, mas, em seu entusiasmo, concedia de boa
vontade ao encanto exterior qualidades de caráter que nem sempre eram justificadas. Via na
beleza de algumas mulheres o sinal de um talento muitas vezes imaginário. Quando lhe
chamavam a atenção para as falhas delas, tal crítica não tinha nenhum efeito sobre sua
obstinação em atribuir às belas mulheres de sua entourage uma inteligência e uma cultura
completamente imaginárias. Assim, havia casos em que jovens mulheres, de físico atraente,
faziam às suas custas cursos de formação artística que duravam anos, mas sem nenhum
resultado.

Hitler era um mau psicólogo em relação às mulheres porque, artista consumado ele mesmo,
distinguia dificilmente a maquiagem do natural. Todas as pessoas que chegavam perto dele,
mulheres sobretudo, procuravam se mostrar em seus melhores dias, e Hitler tomava
freqüentemente a sua avidez e seus comportamentos hipócritas por moeda soante. Ele tinha
uma predileção acentuada por uma das secretárias. É verdade que ela estava sempre com um
humor radiante, dava razão a ele em todas as coisas e sabia admiravelmente adular sua
vaidade. Na presença dela, Hitler se divertia e sua conversa adotava traços espirituais.

Hitler não tinha nenhuma noção das coisas do espírito e do coração. Ele não compreendia, por
exemplo, que, no casamento, os dois cônjuges devessem apresentar afinidades de
temperamento e de sentimentos. Para ele, julgava-se um casal ideal unicamente pelas
aparências físicas. Era da opinião que um casamento com uma mulher bonita e sadia deveria
ser automaticamente feliz. Como todas as uniões que ele havia arranjado inspiraram-se
unicamente nessas considerações, resultou que seus prognósticos de felicidade foram
freqüentemente desmentidos pelos fatos. Um dia, chamei sua atenção para o número
crescente de divórcios que estavam ocorrendo nas fileiras dos homens do primeiro escalão do
Partido, sob o pretexto falacioso de que as esposas não tinham sabido evoluir para se adaptar
à nova situação social dos maridos. Eu lhe expliquei que a população criticava severamente
aquela verdadeira epidemia de divórcios e que o prestígio das eminências do Partido sofria
com isso.

Hitler retorquiu com veemência: "Na minha opinião, as mulheres mais bonitas cabem por
direito aos melhores soldados." O que prova que ele julgava a humanidade e particularmente
o problema dos sexos unicamente sob o ângulo material...

Eu disse anteriormente que ele mesmo não tinha se casado porque uma família, com todas as
responsabilidades que ela traz, teria lhe suscitado muitos empecilhos para sua carreira e suas
lutas. Ele me confessou também que seu casamento lhe teria feito perder junto a suas
eleitoras grande parte da simpatia e do prestígio de que se orgulhava: "Pelo fato de eu não ter
me tornado o homem de uma só mulher minha influência sobre a população feminina do
Reich só fez crescer. Jamais poderia me permitir perder popularidade junto à mulher alemã,
pois ela representa um elemento muito importante nas campanhas eleitorais."
Dizendo isso, Hitler se revelou, mais uma vez, calculista sem pejo e um homem pronto a tudo
sacrificar pela realização de seu objetivo.

É verdade que muitas mulheres caíram de amores perdidamente por ele. Outras eram
obcecadas pela idéia de ter um filho do qual ele fosse o pai. Um dia, uma moça conseguiu
penetrar em seu apartamento de Munique. Quando ela se viu na presença dele, arrancou o
corpete com um grande gesto de perturbação apaixonada.

A partir desse dia, Hitler não recebia mais sozinho mulheres desconhecidas a quem ele
concedera uma entrevista, por temer que esses tête-à-tête o comprometessem em algum
caso escandaloso. Hitler era obcecado pelo temor de que alguma mulher pudesse espalhar
rumores desagradáveis sobre sua reputação de homem correto. É, de resto, essa obsessão
que explica a discrição de que ele soube cercar seus amores. Diante de nós, guardava sobre
seus relacionamentos um silêncio absoluto. Da mesma maneira, ele se mostrava muito
prudente na escolha de suas convidadas, mesmo para as recepções oficiais. Quando ficava
sabendo, por exemplo, que uma atriz explorava, com o objetivo de conseguir vantagens
pessoais, a honra que ele lhe havia concedido ao convidá-la para uma noitada, ele denunciava
publicamente o procedimento e fazia com que o nome da imprudente fosse colocado numa
lista negra: ela nunca mais reapareceria em uma de suas recepções.

Durante muitos anos, tive a oportunidade de observar os hábitos e as reações de Hitler tão
objetivamente quanto possível. Com toda a sinceridade, creio poder desmentir as imputações
segundo as quais ele teria tido uma vida sexual anormal. Com sua alimentação exclusivamente
vegetariana, sua recusa a tomar qualquer estimulante alcoólico, seu trabalho cerebral intenso,
estimo que teria sido difícil para ele entregar-se a abusos. Estou persuadida de que, nesse
domínio, ele era perfeitamente normal. Com freqüência, ao contrário, eu tinha a impressão
que ele se violentava para não se deixar provocar pelos encantos de uma ou outra artista com
quem tinha o hábito de se encontrar.

Durante 12 anos, ele foi profundamente ligado a Eva Braun. Eu já disse que ele ficara
favoravelmente impressionado, no começo da ligação deles, com a discrição absoluta de que
ela soube cercá-lo, pois a constituição bastante delicada da moça e seus cabelos louros não
correspondiam nem um pouco ao seu ideal físico. Ele preferia o tipo das mulheres da
Alemanha do sul, morenas, robustas, de cor natural.

Hitler reconhecia, durante suas conversas, que as mulheres tinham desempenhado um papel
importante na sua carreira política. Também, nas campanhas eleitorais, ele louvava
sistematicamente os gostos e os instintos das eleitoras. Desde o começo, as mulheres tinham
sido admiradoras entusiastas de seu ardoroso proselitismo. Sei que durante seu
encarceramento em Landsberg, ele recebeu inumeráveis pacotes e cartas de desconhecidas.
Todas as vezes que tinha se visto, durante sua carreira movimentada, diante de dificuldades
insuperáveis, mulheres o tinham ajudado a sair da situação difícil. Gostava de nos citar o
exemplo seguinte: "Um dia eu tinha aceitado, em nome do Partido, uma duplicata de 40 mil
marcos. Para meu desespero, as entradas de dinheiro com que eu havia contado não tinham
acontecido. O caixa estava assustadoramente vazio. O prazo se aproximava. Eu continuava
sem saber como honrar minha assinatura. Já cogitava de me suicidar para não sobreviver
àquela vergonha. Quatro dias antes da data fatídica, contei meu desespero à Sra. Bruckmann
(viúva de um célebre fabricante de pianos) que, imediatamente, começou a fazer campanha
para mim. No dia seguinte, o Sr. Kirrdorf, presidente da União Carbonífera, me pediu para
passar na casa dele. Atendendo a seu pedido, expus-lhe minuciosamente meu programa, cuja
oportunidade o afetou de modo positivo: eu tinha feito sem dificuldade um adepto
importante do movimento nacional-socialista, e, ainda por cima, ele me pedira para aceitar a
soma em questão que permitiu, assim, liquidar a dívida no tempo correto."

Hitler achava que o Terceiro Reich tinha produzido quatro mulheres superiores. Primeiro a Sra.
Scholtze-Klinck, a organizadora talentosa do movimento nazista feminino. Depois a Sra.
Wagner, que havia conseguido recriar em Bayreuth a atmosfera mística das obras do
compositor genial. Depois vinha a Sra. Troost, em cuja casa ele admirava a segurança artística
com a qual ela continuara a obra de seu falecido marido. Quando Hitler instalou seu
apartamento em Munique, foi conduzido pela Sra. Bruckmann aos ateliês do arquiteto
Troost, que havia criado um novo estilo de mobiliário. Hitler ficou entusiasmado com sua
elegância e simplicidade. Troost lhe submeteu na ocasião os planos que estabelecera para a
reconstrução do Palácio de Cristal de Munique (galeria de pintura) e que não tinham sido
aceitos pelo júri. Hitler empolgou-se com esses projetos e mandou executá-los durante a
construção da "Casa da Arte Alemã", em Munique. Foi Troost igualmente o arquiteto da "Casa
Marrom" em Munique e de uma parte da Chancelaria do Reich em Berlim. Troost foi nomeado
professor, e este título honorífico foi transferido a sua mulher depois de seu falecimento. A
Sra. Troost, então, exerceu uma influência preponderante sobre os gostos artísticos de Hitler.
Conseguiu fazê-lo compartilhar sua concepção pessoal de harmonia de cores. Ela foi, sozinha,
encarregada da decoração das residências de Hitler em Berlim, Munique e no Berghof. Apenas
seu apartamento privado de Munique mantinha a marca antiga do tempo em que Hitler
passara seus anos mais felizes na companhia da sobrinha Geli Raubal.

A quarta mulher pela qual Hitler sentia uma admiração especial era Leni Riefenstahl; ele via
nela uma atriz notável, produtora de filmes de um talento seguro. A imprensa mundial
acompanhava com grande interesse as relações que poderiam estar por trás do entusiasmo do
Führer pela jovem cineasta. É certo que Eva detestava Leni com toda a sua feminilidade. Mas,
como o que conta mesmo são os resultados, ela não triunfou finalmente sobre a
"Pompadour" ao selar sua união com o celibatário irascível do Reich, em um himeneu
marcado com o selo da morte?
***

Capítulo VIII

O homem tem a tendência natural a se mostrar ingrato.

HITLER

É preciso reconhecer que Hitler que, na vida cotidiana, em questões de detalhe, podia ser de
uma avarice espantosa, sabia sempre se mostrar reconhecido em relação aos que lhe haviam
prestado algum serviço. Ele era nessas ocasiões de uma generosidade notável. A explicação
para essa generosidade não estava na única preocupação de adquirir uma reputação fácil de
homem pródigo e reconhecido, mas o gesto de dar e de recompensar era para ele um prazer e
uma satisfação reais.

Nos anos seguintes à tomada do poder, ele ainda tinha o hábito de escolher pessoalmente
todos os presentes que tinha a intenção de oferecer. Mais de uma vez o vi refletir
intensamente para adivinhar o que poderia dar prazer a alguém. Ele me repetia como um
leimotiv: "Eu sei o quanto a ingratidão faz mal, e é tão fácil se mostrar reconhecido."

Essa pressa com a qual Hitler recompensava o menor serviço pessoal e mesmo o zelo com o
qual as pessoas respondiam a seus desejos tornou-se para os beneficiários uma verdadeira
fonte de lucro. Uma espécie de exagero existia entre alguns de seus colaboradores para lhe
oferecer pequenos presentes, nas ocasiões mais diversas. Muito freqüentemente, esses
gestos não eram inspirados senão num frio cálculo de vê-los devolvidos em cêntuplo. O hábito
de conseguir presentes dessa maneira recebeu uma consagração oficial no Terceiro Reich.

Goering sabia explorar admiravelmente esse estado de coisas. A obsessão com a qual ele
cavava presidências de honra nas associações e nas uniões mais inacreditáveis, indo da
presidência das Ourivesarias até o posto de monteiro-mor do Reich, não se explica apenas por
sua vaidade desmesurada, mas igualmente pelos presentes régios que lhe traziam esses
postos. Hitler estava longe de ter os gostos de luxo que tolerava em Goering. Ele ficava
inteiramente feliz e satisfeito quando podia descansar em seu apartamento de Munique onde
se acumulou, até o final da guerra, um mobiliário de bricabraque comprado no decorrer dos
anos de combate pelo poder. Tinha o hábito de dizer: "Em Munique, eu me sinto
verdadeiramente em casa. Todos os lugares para onde meu olhar se volta, a menor das peças
de mobiliário, o menor dos quadros, até a roupa de cama, evocam em mim lembranças de
luta, privações, mas também de felicidade. Todo o mobiliário foi comprado por mim pouco a
pouco com minhas economias, freqüentemente usados. Minha sobrinha Geli me
acompanhava na época, mas essa não é a menor das razões para meu coração ter
permanecido lá."

Hitler adorava crianças. Nos primeiros anos de poder, tinha sempre os bolsos cheios de
chocolate que ele distribuía, radiante, à multidão de crianças que acorria para ver o "Senhor
Hitler". Não posso dizer em que medida essas distribuições de doces eram inspiradas em uma
propaganda barata.

Estou persuadida de que ela respondia em parte à afetuosa amizade que ele dedicava à
juventude. Como em tudo que Hitler fazia, é preciso reconhecer as duas tendências. O bom e
o mau, o verdadeiro e o falso, o ideal e o materialismo se casavam nele de modo tão intenso,
que era verdadeiramente difícil separar a virtude do vício. Só os iniciados percebiam o jogo
diabólico com o qual ele sabia salvar a face nas circunstâncias mais comprometedoras, de
tanto que a ciência da comédia era utilizada.

Hitler era péssimo psicólogo. Assim como em relação às aparências externas de uma mulher -
um porte elegante e belos vestidos -, um ar duro e determinado nos homens, uma postura de
soldado, sempre o impressionavam. Mas, até mesmo em relação às crianças seus julgamentos
freqüentemente falhavam.

Gostaria de ilustrar as curiosas desventuras de Hitler com a história da pequena Berneudi,


uma garotinha de cinco anos, de olhos azuis imensos e uma cabeleira loura abundante, em
quem ele reparara um dia num ajuntamento de crianças que tinham vindo saudá-lo no
Berghof. Ele se afeiçoou de tal maneira por aquela menina que passou a encorajá-la a vir vê-
lo sempre que ela podia. Durante três anos, a mãe tratou de aparecer bastante, apresentando
a criança a Hitler nas ocasiões mais diversas. Hitler tratava sempre a menina com uma
gentileza paternal e se deixou fotografar muitas vezes ao lado dela. Um dia, uma carta
anônima veio terminar brutalmente com aqueles alegres encontros. Ela denunciava a mãe da
garota como sendo meio-judia. Hitler, sinceramente aborrecido, mandou informá-la de que
não tentasse mais se aproximar dele e mandou destruir todas as fotos que o mostravam
brincando com a pequena Berneudi. Este incidente o tocou bastante; lembrava-o
brutalmente, mais uma vez, da solidão na qual ele vivia, uma solidão que lhe pesava
assustadoramente porque violava sentimentos naturais, profundamente ancorados nele.
Durante os anos de conquista do poder, Hitler sentia prazer em acender as velas de um
pinheiro de Natal. A doçura das alegrias familiares eram para ele uma espécie de necessidade
física. Contudo, jamais concretizaria através do casamento seu apego às crianças. A verdadeira
felicidade do lar lhe era desconhecida. A mulher, com exceção de algumas aventuras e de sua
ligação com Eva Braun, ele não conhecia a não ser como esposa de outros homens. Quanto às
crianças - as dos outros -, ele só chegava perto delas no entusiasmo ingênuo das multidões
infantis. Hitler era um reprimido de afeição, de alegria familiar, de tudo que cria felicidade na
célula natural e simples da sociedade, e sofria com isso. Essa alma insatisfeita, que não se
permitia entregar-se à felicidade natural e simples, estava constantemente à procura de seu
equilíbrio. No seu isolamento, criava para si um mundo de sonho que desdenhava todos os
sentimentos nobres da humanidade. Essa inquietação permanente e essa instabilidade
sentimental transformaram-se rapidamente em indiferença e depois em amoralidade. Perto
do fim, Hitler nada mais era do que um monstro de crueldade e despotismo.

A idéia de família e de afeição filial lhe sendo absolutamente estranha, não surpreende que
tenha enviado friamente milhões de jovens à morte, pela única satisfação de sacrificá-los pela
missão de que se acreditava investido. A morte de um ser humano o deixava absolutamente
insensível. Não via a humanidade senão sob a forma de um longo encadeamento de homens
do qual ele mesmo era o elo inicial. A seus olhos, as crianças não eram outra coisa além do
fator que permite antecipar um espaço vital mais ou menos aumentado. Rejeitando qualquer
conceito filosófico do além, achava normal que as cinzas dos corpos incinerados nos campos
de concentração servissem para adubar as hortas onde se abasteciam as hordas de SS.

Contudo, Hitler nem sempre conseguia dominar seus impulsos naturais. Havia momentos em
que ele, ansiosamente, procurava se agarrar a qualquer coisa que pudesse lhe oferecer a paz
interior sem a qual nennum nomem consegue ser feliz.

Durante nossas intermináveis conversas ao pé do fogo, freqüentemente o assunto era


lembranças da infância. Quando ele as evocava, eu sentia vibrar nele a corda da felicidade, da
felicidade integral que ele conhecera no seu humilde lar, cercado da afeição materna. Era
nessa evocação da juventude que ele se refugiava nos seus momentos de isolamento.

Outro período feliz de sua vida correspondia aos anos de luta que precederam sua ascensão
ao poder. Nessa época, ele não tinha tempo para refletir. Com uma tenacidade sem igual,
perseguia seu objetivo supremo. Estava completamente absorvido pela missão. Não
experimentava ainda a necessidade de procurar um equilíbrio psíquico. Mas, nesses anos de
provação, tinha do lado companheiros devotados, verdadeiros amigos, e não carneiros de
Panurge,* aproveitadores sempre à espreita de uma conjuntura feliz.
*3. Personagem de Pantagruel, romance de François Rabelais; industrioso, cínico, capaz de
tudo. (N.T.)

Nessa época, sua equipe, aspirando de corpo e alma ao mesmo ideal, compartilhava todas as
agruras, reveses e alegrias.

Disso decorre a fidelidade extraordinária que Hitler manteve por muito tempo aos seus
primeiros companheiros. Nesses homens, rudes em sua maior parte, mas temperados na dura
escola da atividade política subversiva, ele encontrava um refúgio moral. Alguns deles tinham
se embriagado com os sucessos extraordinários que conheceram; outros não tinham sabido se
adaptar à evolução ou suportar as pesadas responsabilidades de que estavam incumbidos.
Outros, ainda, o tinham traído e se tornado seus adversários. Mas sempre impressionava a
constatação de que esses homens que o haviam cercado eram de um nível abaixo da média.

O que não impedia que Weber, Graff e até Maurice o tratassem de "você". Hamann e
Hoffmann o chamavam simplesmente de "Senhor Hitler". No seu estado de inquietação
neuropática e instabilidade mental, esses homens surgiam como uma bóia na qual ele podia
se segurar nos momentos de abatimento. A fidelidade e a camaradagem de seus primeiros
companheiros eram para ele um tônico vigoroso. É a razão da brandura com a qual Hitler
julgava as gravíssimas exações cometidas por seus protegidos.

Citarei apenas o exemplo de Streicher, que Hitler teve que exonerar quando ficou sabendo
que ele tinha mandado fazer para sua amiga um cofre de ouro maciço com os anéis que
haviam sido coletados para reabastecer a tesouraria de guerra da Alemanha. Hitler ficara
aflito com a medida que tinha tomado. Anos depois, pensou em passar a esponja e reabilitar
o Gauleiter da Francônia.

O mesmo se passou com Schaub. Schaub se tornou o ajudante-de-ordens de Hitler graças a


Bormann, quando este conseguiu que Bruckner caísse em desgraça.

Schaub era um membro fundador do Partido Nazista. Hitler nos contava muitas vezes que no
início de sua fase de agitador, ele tinha ficado impressionado com um homem que assistia
fielmente a todas as suas reuniões e que seguia todos os desfiles mancando ligeiramente.
Desses primeiros contatos iria eclodir uma amizade sincera, sobretudo quando Schaub
compartilhou a prisão de Landsberg junto com Hitler. Depois de libertado, fez dele seu
factótum. Schaub não era apenas encarregado de resolver as questões estritamente pessoais
do Führer, desde logo se tornou seu confidente para as questões de Estado mais secretas.
Schaub tinha dentre suas atribuições manter Hitler a par dos programas de cinema e de
teatro, de arranjar suas visitas privadas, classificar seus documentos privados, guardar no
cofre-forte os originais de todos os acordos internacionais e os memorandos importantes
redigidos por Hitler e de executar para ele as tarefas mais confidenciais.

Pode-se dizer que Schaub gozava aos olhos do chefe de uma confiança ilimitada. De
temperamento instável, porém intrigante ao máximo, infelizmente tirava proveito de sua
situação privilegiada para concretizar baixas intrigas e satisfazer rancores pessoais. Sabendo
que Hitler apreciava a "pequena crônica escandalosa" de seu EM, atribuía-se o dever de lhe
relatar todos os pequenos incidentes nos quais pessoas de sua entourage estivessem
implicadas. Hitler os escutava com um ouvido interessado e adotava muitas vezes, contra seus
colaboradores, medidas disciplinares absolutamente desproporcionais aos pecadilhos
amorosos de que estes últimos tinham se tornado culpados.

Por essas razões, Schaub era unanimemente detestado; mas ninguém ousava enfrentá-lo
publicamente por causa de sua influência perniciosa sobre o Führer. Este último não ignorava
que o pecado favorito de Schaub era o álcool. Mas, se admitia, por exemplo, que ele tomasse
como namorada uma habituée das calçadas de Berlim, perdoava-lhe dificilmente sua
intemperança. Contudo, resignou-se pela força das circunstâncias. Quando lhe contavam que
seu ajudante-de-ordens provocara escândalo num estado de total embriaguez durante certas
recepções, Hitler apenas abanava o ar com os braços de uma maneira desesperada e
respondia invariavelmente: "Eu conheço os defeitos dele; é triste. Mas o que vocês querem,
eu só tenho ele; não tenho ninguém para substituí-lo."

As altercações de Hitler com Ley são dignas do Grande Guinhol*.

*4. Guignol: marionete sem fios, animada pelos dedos do operador. (N.T.)

Aos olhos de Hitler, o chefe da "Frente alemã do trabalho" era um organizador de gênio e um
grande idealista, de idéias fantásticas. Hitler falava sempre com admiração de sua obra social,
realizada a favor da classe operária.

Ele sabia, de resto, que Ley estava longe de ser um santo. Mesmo quando, nos últimos anos, a
conduta de Ley se tornou cada vez mais escandalosa e os artigos que ele mandava publicar na
imprensa se tornaram irritantes até aos olhos dos dirigentes do Partido, Hitler não se deixou
influenciar e argumentou que uma determinada camada da população tinha necessidade da
literatura de Ley.
No tempo em que a Sra. Ley ainda vivia, Hitler era seu convidado assíduo. Ele achava a Sra.
Ley de uma notável beleza e considerava-a o anjo bom de seu marido, persuadido de que ela
havia quase conseguido fazê-lo perder o hábito de beber e de fumar excessivamente. Contudo
era do conhecimento de todo mundo que os dois vícios, levados ao paroxismo, continuavam a
exercer suas devastações em Ley. Até hoje não consigo compreender como Hitler pode ter
acreditado que aquele ébrio inveterado pudesse ter mudado seus hábitos deploráveis sob a
feliz influência da mulher.

Hitler apreciava o meio artístico que ele encontrava em casa dos Ley, o que era perfeitamente
normal dado que a Sra. Ley era descendente de uma muito antiga família de artistas. O
suicídio da jovem afetou Hitler profundamente. Tanto sua ruptura com o casal Goebbels como
a morte da Sra. Ley privaram-no do prazer de participar de tempos em tempos de uma
atmosfera diferente das noitadas ao pé do fogo.

Ley era ridiculamente apaixonado pela mulher. Na presença dela, dava a impressão de um
pavão fazendo permanentemente o leque diante de sua bela. Num dia, no Berghof, em que
me conduzia à mesa, ele me disse gaguejando de emoção ao mostrar a mulher que o precedia
no braço de Hitler: "Ela não é magnífica, não é um esplendor?" Mal pude reprimir uma
explosão de riso diante do absurdo de tal vaidade.

Eu conto esse episódio para mostrar a que ponto Ley era ligado à mulher, como ele
manifestava sua paixão por ela, e para explicar como sua atitude depois da morte dela se
tornou para todos, Hitler inclusive, um motivo de consternação. O Führer ficou escandalizado
quando tomou conhecimento de que Ley tinha se ligado a uma dançarina estoniana de 19
anos cujo grande mérito era lhe lembrar a falecida. O Dr. Morell tinha sido encarregado de
fazer circular entre nós fotografias da bailarina nas quais se constatava efetivamente uma
semelhança surpreendente. Sob a insistência de Ley, sua maquiagem e suas roupas eram de
tal maneira idênticas ao make-up da Sra. Ley, que acreditávamos estar sendo vítimas de uma
alucinação. Devo acrescentar, contudo, que a jovem estoniana ultrapassava de longe a Sra.
Ley em inteligência e habilidade. Ley pensara ganhar a indulgência de Hitler destacando a
semelhança de sua jovem protegida com a falecida esposa. Esperava obter assim autorização
para se casar com ela. Mas sua manobra foi desmontada. Hitler considerava esse culto,
consistindo em fazer reviver a defunta sob os traços de outra mulher, um insulto à memória da
morta. Ele me declarou que, naquelas condições, não poria mais os pés na casa dos Ley.

Em resumo, creio que Hitler contava apenas com um único grande amigo exercendo sobre ele
uma verdadeira influência: o poeta Eckart.
Pode-se perguntar como Hitler, depois da guerra de 1914-1918, pôde penetrar em meios que,
normalmente, deveriam estar fechados para o caporal agitador da Grande Guerra. Muitas
pessoas ignoram que, em 1920, ele havia sido apresentado ao poeta Eckart. O acaso fez com
que o poeta assistisse a uma reunião de quadros do jovem partido NSDAP. Hitler, com seu
ardor costumeiro, descrevera a situação caótica na qual a Alemanha se debatia. Ele
conclamava a população a realizar um esforço de reerguimento inspirando-se na nova
doutrina nacional-socialista. O magnetismo que exibia, seus argumentos lapidares e sua
eloqüência apaixonada impressionaram profundamente o velho poeta patriota. Eckart ficou
literalmente empolgado, e declarou sem rodeios a Hitler que o considerava o homem de
quem o mundo inteiro ia falar. Na mesma hora, pôs-se em campanha para ganhar para a
causa as simpatias dos salões de Munique. Apresentou-o a industriais, altos funcionários,
artistas, dando provas de um proselitismo infatigável para reunir os nacionalistas bávaros ao
movimento nacional-socialista. Eckart lutava de pé firme contra os preconceitos de certos
meios que não admitiam que um ex-caporal sem situação e sem referências pudesse estar na
cabeça de um movimento cujo objetivo era fazer a unidade espiritual da Alemanha. Ele não
recuava diante de nenhum sacrifício para reduzir as hesitações dos meios financeiros e
econômicos diante do "desconhecido de ontem" que posava de libertador do país. O poeta se
tornou uma verdadeira fonte de renda para o jovem Partido. Infatigavelmente, ele organizava
coletas, permitindo à tímida propaganda do começo se transformar em verdadeiras
campanhas organizadas.

Mas essa ajuda material era pouca coisa comparada à influência direta que Eckart exercia
sobre seu discípulo. Mais velho do que ele vinte anos, Hitler o reconhecia como benfeitor e
amigo mais sincero. Seu vasto saber, humor vivo e inteligência penetrante o impressionavam
a ponto de Hitler,

por mais suscetível que fosse, se considerar um discípulo. Os dois se tornaram verdadeiros
amigos. A influência de Eckart foi, sem contestação, determinante sobre o caráter e a
formação de Hitler. Ela lhe evitou no princípio muitos inconvenientes e dolorosas hesitações.

Quando Eckart produziu a representação de uma peça de Henrik Ibsen, precisou ir muitas
vezes a Berlim. Hitler acompanhou o poeta todas as vezes e teve assim a oportunidade de se
insinuar nos meios da alta burguesia de Berlim, ainda mais refratária a suas idéias do que a de
Munique. Hitler, graças ao amigo, passou a tomar contato com escritores conhecidos,
economistas de valor e artistas de renome.

A morte de Eckart foi para Hitler um golpe muito duro. Em toda a sua vida, nunca mais teve a
oportunidade de encontrar um amigo com quem vivesse em tal harmonia de pensamentos e
sentimentos. Cada vez que ele me falava do poeta, seus olhos se embaçavam. Depois da
tomada do poder, Hitler repetiu muitas vezes que lamentava ainda mais a morte prematura
do grande escritor por não ter lhe dado tempo de retribuir o bem com que fora prodigalizado.

Contudo, mesmo que eu tenha dito no começo deste capítulo que Hitler dava provas de uma
absoluta fidelidade em relação a seus primeiros companheiros de luta, esse complexo de
reconhecimento se evaporou durante os últimos anos de sua existência, influenciado pelos
acontecimentos. Conheci inúmeros homens, sobretudo generais, aos quais ele havia
manifestado sinais de amizade durante longos anos que, de uma hora para outra, caíram no
esquecimento. Um grande número de seus primeiros amigos atraiu sua ira sem que
explicações plausíveis tivessem sido dadas para essa mudança de atitude. Gostaria de citar
especialmente o exemplo do doutor Brandt que, desde 1933, acompanhava Hitler em todos
os seus deslocamentos.

É interessante explicar de que maneira esse jovem doutor caiu nas boas graças do Führer, uma
vez que ele revelou, nesse caso específico, toda a ingratidão e raiva de que era capaz quando
alguém perdia sua confiança.

Durante o encarceramento de Hitler e de seus primeiros fiéis em Landsberg, enquanto estes


últimos passavam o tempo com correspondências banais, Hitler escrevia a bíblia nacional-
socialista Mein Kampf

Seu primeiro motorista, Emil Maurice, redigiu uma carta de admiração para Anni Rehborn,
que era na época campeã mundial de natação. Uma troca de correspondência regular seguiu-
se. Quando Hitler deixou a prisão, a atleta lhe foi apresentada um dia por seu motorista. Hitler
e a srta. Rehborn iniciaram uma amizade. Um dia, ela lhe apresentou o noivo, um jovem
médico assistente de Bochum. Era o doutor Karl

Brandt.

Nessa época, Hitler ainda tinha o costume de percorrer os campos alemães de carro, de
capota aberta. Durante um desses deslocamentos, ele teve um acidente no qual seu ajudante-
de-ordens, Bruckner, ficou gravemente ferido. O acaso quis que o Dr. Brandt e a srta. Rehborn
fizessem parte do séqüito. A habilidade com a qual o Dr. Brandt procedeu aos primeiros
socorros no ferido com meios improvisados chamou sobre ele a atenção benevolente de
Hitler. Nomeou-o ali mesmo seu médico pessoal. Brandt aceitou o posto na hora e continuou
seus estudos na Universidade de Berlim, de onde saiu como cirurgião de grande renome.
Contudo, o acordo entre o Führer do Terceiro Reich e seu médico foi perturbado quando o
Dr. Morell surgiu em cena e foi nomeado médico de cabeceira de Hitler.

Brandt rejeitava os métodos de cura de Morell e o tratava quase publicamente de charlatão.


Fazia brincadeiras com a vaidade e a sede de lucro do "medicastro" de Hitler. Houve não
apenas altercações tempestuosas entre Brandt e Morell, como também cenas violentas entre
Hitler e Brandt, porque Morell se apressava a relatar a seu patrão todas as observações
desairosas de que era objeto. Hitler dependia inteiramente do tratamento que Morell
conseguira lhe impor e escutava com ouvidos muito complacentes suas intrigas. Para
suspender as intrigas de que corria o risco de ser a vítima, deu aos dois rivais o título de
professor.

Durante a guerra, Hitler recorreu cada vez menos aos cuidados de Brandt, que passou a se
ocupar exclusivamente do abastecimento sanitário das tropas no front do Leste. Nomeado
comissário geral da saúde pública e da higiene de todo o Reich, foi com este título que
procedeu às pesquisas e experiências que foram tão violentamente criticadas em Nuremberg.

Contudo, nessa época, Brandt ainda estava em suficientes bons termos com Hitler. Com
freqüência, este o convocava para conversas tête-à-tête, o que só podia atiçar a desconfiança
e a raiva de Bormann. As intrigas mais sórdidas foram forjadas para separar Hitler de Brandt.
Mas este último era, infelizmente, de um temperamento muito rígido para não cair nas
emboscadas pérfidas e acerbas de que estava cercado.

Brandt meteu na cabeça que Hitler tinha que ser prevenido contra os tratamentos de Morell.
Convocou um dia os colaboradores mais próximos do Führer e lhes explicou que não se podia
mais deixar a saúde abalada de Hitler nas mãos de um charlatão. O próprio Hitler, em
setembro de 1944, lhe fizera uma cena violenta quando Brandt o aconselhou a recorrer, para
se tratar, a sumidades conhecidas da Academia. Quando Brandt demonstrou que algumas
cápsulas que Morell o mandava tomar continham um veneno violento, Hitler se virou
completamente contra ele e mandou demiti-lo.

A simpatia que Hitler sempre manifestara por Brandt se transformou num ódio tão cego, que
ele ficou convencido de que era Brandt que tinha a intenção de envenená-lo. Para ele, a
rivalidade entre os dois médicos era a prova de que Brandt fazia parte de um bando de
conspiradores decididos a eliminá-lo. Seu ódio só fez aumentar nos últimos meses da guerra.
Em março de 1945, ficou sabendo que Brandt enviara a mulher para o Oeste da Alemanha, em
uma região que estava às vésperas de ser ocupada pelos Aliados. Hitler interpretou esse
gesto como um ato de alta traição e mandou condenar Brandt à morte. A chegada das tropas
americanas salvou o médico do poste de execução. Mas não passou de um adiamento. A
corte de Nuremberg, ao condenar Brandt à forca, deu a Hitler uma satisfação póstuma...

***

Capítulo IX

Da dignidade ao ridículo não há mais do que um passo.

HITLER

Do que foi relatado anteriormente, depreende-se que Hitler dispunha de dois meios para ter
sucesso, desenvolvidos em um grau quase genial: sua vontade e sua memória. É
extremamente curioso constatar, contudo, que sua dureza e sua obstinação ferozes se
casavam com outro traço de seu temperamento que era formado de flexibilidade e astúcia.

Hitler, se foi um monstro de vontade, um gênio mnemo-técnico, foi da mesma forma, eu me


atreveria a dizer, sobretudo, um mestre da comédia e da hipocrisia; de uma hipocrisia que, de
tão natural, ele mesmo se deixava enganar; e ao mesmo tempo tão calculada que inspirava
todos os seus gestos e os seus atos.

Hitler estava imbuído do axioma que figura no topo desta página. Durante nossas conversas,
ele o citava com muita frequência e me explicava que o tinha adotado como princípio, para
jamais perder o prestígio diante de seus interlocutores ou aos olhos de sua entourage. Muitas
vezes, ele o parafraseava citando o antigo provérbio popular que afirma que "para o próprio
criado de quarto não existe grande homem".

Com uma arte consumada, com um cuidado ciumento para não manchar o brilho de sua
auréola, Hitler sabia em todas as circunstâncias compor para si uma máscara. Esse medo do
passo em falso era, nele, literalmente doentio; isso explica a duplicidade que Hitler exibiu em
numerosas circunstâncias.
Mais adiante, insistirei nas dificuldades que Morell, seu médico pessoal, sentiu para fazê-lo
aceitar a idéia de ser massageado ou radiografado. Hitler era obcecado pelo constrangimento
de se despir diante de um estranho, por temor de que esse estranho pudesse tirar vantagem,
em detrimento de sua reputação. Mais ainda, seu criado de quarto jamais teve o direito de
entrar no seu quarto antes que ele estivesse vestido dos pés à cabeça. Essa preocupação com
o "o que os outros vão dizer" se manifestava até nos menores detalhes. Hitler, por exemplo,
não usava mais, depois da tomada do poder, os famosos culotes curtos em moda na Baviera.
Lamentava não poder mais ficar à vontade, mas, dizia, para usar aqueles culotes curtos, era
preciso ter joelhos queimados de sol, o que não era meu caso. Simplesmente, assustava-se
com o pensamento de parecer ridículo naquela roupa estranha, na qualidade de chefe de
Estado.

Por princípio, evitava também se corresponder com uma ou outra de suas relações femininas.
Um dia, uma declaração de amor de Streicher caiu entre mãos indiscretas. Os termos da
missiva eram de tal modo inflamados que o Gauleiter da Francônia se tornou motivo de
chacota pública: por essas e outras Hitler considerava que era proibido aos grandes homens
escrever cartas de amor. Ele, evidentemente, tinha relações epistolares com sua amiga Eva
Braun. Mas eu sei que suas cartas eram sempre escritas em termos breves e jamais continham
efusões sentimentais. Eram entregues à sua destinatária de mão para mão por Bormann,
Schaub ou Fegelein, e jamais postas no correio.

Hitler dedicava uma atenção particular à organização de suas recepções. Tinha pavor à idéia
de que erros pudessem ser cometidos por seu pessoal diante dos convidados, erros que
velariam o brilho de seu prestígio. Eu o ouvi ameaçar Kallenberg, seu mordomo, com as piores
sanções caso falhas ocorressem durante uma festa. Tinha o hábito de reunir o pessoal antes
de cada recepção para lembrar toda a importância de seu papel. Antes da chegada dos
convidados, sempre ia em pessoa dar uma olhada na mesa, para se certificar de que nada
tinha sido omitido. Em 1939, quando Ribbentrop voltou de Moscou, interrogou longamente o
ajudante-de-ordens que o tinha acompanhado. Quando este lhe relatou que Stalin, antes de
chamar seus convidados para a mesa, inspecionava-a longamente para se assegurar de que
nada estava faltando, tive a imprudência de fazer esta observação: "Stalin parece ter uma
preocupação igual à sua quanto à apresentação impecável", recebi de volta esta apóstrofe
irritada: "Meus serviçais e minha casa são sempre perfeitos!"

Eu poderia citar inumeráveis exemplos nos quais se manifestava a obsessão de Hitler de evitar
qualquer atentado a seu prestígio. O episódio que se segue é tão característico que não posso
me impedir de reproduzi-lo.
Antes da tomada do poder, alguém lhe dera de presente um scotch-terrier ao qual ele se
afeiçoara. As maneiras carinhosas da cadelinha o divertiam visivelmente. "Burly", era seu
nome, tinha todos os direitos; esparramava-se nas poltronas e mordia os dossiês mais
secretos. Hitler brincava com ela como uma criança. Mas cuidava de só se entregar a essa
distração protegido de qualquer olhar estranho. Mesmo diante de mim, despedia o animal
com brutalidade quando ele se aproximava, para chamá-lo com as palavras mais doces assim
que eu deixava a sala. Tinha proibido Hoffmann, seu fotógrafo, de publicar uma fotografia que
o mostrava brincando com "Burly", explicando gravemente que um homem da sua posição
não podia se mostrar em público senão com um cão pastor do lado.

Hitler cuidava escrupulosamente de suas aparências exteriores, mas também tinha o mesmo
cuidado com sua reputação, que queria manter intocada a qualquer preço. Em nenhum caso
teria comprometido seu bom renome para resolver diferenças ou arbitrar rivalidades. Seu
senso de responsabilidade era muito elástico. Com uma argúcia que beirava o cinismo,
conseguia se omitir nas situações mais comprometedoras.

Eu o vi agir assim, com uma ausência total de escrúpulos. Ele que sabia de tudo, que estava a
par de tudo, permanecia freqüentemente na sombra para não se diminuir em contato com
problemas espinhosos. Sabia admiravelmente utilizar bodes expiatórios. Recorria aos
pretextos mais capciosos para ocultar as razões profundas de seus atos e para afastar de si
qualquer compromisso no qual corresse o risco de máculas.

Quando queria se livrar de alguém, raramente confessava seus verdadeiros motivos, mas
usava sempre pretextos que induziam todo mundo ao erro. Vou citar apenas o exemplo do
general von Blomberg, vítima do mais vergonhoso dos estratagemas, após o qual teve que
abandonar seu posto de chefe da Wehrmacht. Quando ele comunicou a Hitler a intenção de
se casar com a secretária, Hitler encontrou o pretexto sonhado para expulsá-lo da posição na
qual ele contrariava seus planos de organização do Reich. O Führer deu permissão para o
casamento e desempenhou o papel de testemunha na companhia de Goering. Qual não foi a
surpresa de von Blomberg quando lhe apresentaram um relatório da Gestapo onde
constavam detalhes sobre o passado duvidoso de sua jovem mulher, para lhe ordenar que
deixasse o exército. Hitler previra tudo, até a aceitação do divórcio por von Blomberg, o que
teria desfeito seus planos. A carta onde a demissão era exigida estipulava que, nesse caso, ele
não poderia retomar sua antiga posição a não ser depois de uma permanência de um ano no
estrangeiro.

Alguns meses depois desse acontecimento, a Wehrmacht, sob as ordens diretas de Hitler,
avançou sobre a Áustria. Estou persuadida de que esse caso foi montado com todas as peças
para permitir a Hitler executar seu plano de invasão da Áustria, plano contra o qual von
Blomberg ousara se posicionar.
Em outro caso de casamento desigual que dizia respeito ao comandante de navio Albrecht,
seu conselheiro naval, o almirante que comandava a frota alemã fizera reservas quanto ao
casamento desse oficial com uma moça da pequena burguesia. Hitler, contra a opinião de seu
grande almirante, deu sua aprovação. Isto prova bem que Hitler, se não tinha uma idéia por
trás da cabeça, teria podido também ter usado sua autoridade no caso do marechal Blomberg.

Durante as conversas ao pé do fogo, aquele incidente era frequentemente mencionado.


Hitler, contudo, sempre retirava sua responsabilidade e colocava a partida forçada de von
Blomberg na conta da intransigência da casta de oficiais do Estado-maior geral da Wehrmacht.
É bastante curioso que depois do atentado frustrado de 20 de julho de 1944, Hitler tenha
levantado outra vez o caso Blomberg. Furioso, declarou os oficiais do Estado-maior geral
responsáveis por todos os reveses sofridos pelo exército e invocou como prova de sua
duplicidade criminosa o fato de que deveriam ter chamado atenção para o casamento desigual
de von Blomberg antes da cerimônia de casamento e não quando já era tarde demais.

Hitler tinha a mania de "arranjar" casamentos. Conheço casos de pessoas que se tornaram
antipáticas para ele por não terem se casado com a mulher que ele lhes aconselhou. Citarei o
exemplo do seu ajudante-de-ordens Bruckner, que não atendeu ao desejo manifestado por
Hitler de vê-lo se casar com uma jovem por quem ele sempre nutrira grande simpatia.
Bruckner recusou os conselhos do chefe, manifestando rebeldia a ponto de se casar com a
filha de uma mulher que, parece, tinha sido responsável pelo primeiro divórcio da Sra.
Goebbels. Para marcar sua simpatia por esta última, Hitler se opôs ao casamento de Bruckner
com a moça inteiramente inocente das atribulações amorosas da Sra. Goebbels. Mas Bruckner
mostrou ter uma vontade imperturbável. Supunha que, com a ajuda do tempo, o mau humor
que Hitler manifestara na ocasião se acalmaria. Mas ele não contava com o temperamento
rancoroso do Führer. A partir desse momento, todas as iniciativas que ele tomava passaram a
ser criticadas pelo chefe. Sua vida se tornou impossível e, finalmente, teve que pedir demissão.

Nos anos que se seguiram, Hitler nunca quis admitir que Bruckner tivesse caído em desgraça
por ter ousado agir pela própria cabeça, mas seu rancor continuou a se manifestar durante as
conversas. O nome da mulher de Bruckner jamais foi mencionado, embora continuasse a
cobrir de elogios aquela por quem ele não se interessara.

Citarei ainda o caso de um rapaz da entourage de Hitler que manifestara a intenção de se


casar com a irmã de Eva Braun. Hitler julgava esse projeto muito favoravelmente e lhe
predizia um futuro brilhante. Entretanto, a união não ocorreu por razões absolutamente
pessoais. Hitler mostrou todo o rancor de que era capaz. Ele não sabia o que era perdoar; ao
contrário, seu descontentamento só fazia aumentar e ele nutria contra os que não tinham se
dobrado às suas ordens e às suas alterações de humor uma raiva que iria desforrar mais cedo
ou mais tarde. Foi assim que o rapaz teve que suportar, tempos depois, as conseqüências de
sua manifestação de independência. Um dia, no decorrer de uma conferência com seus
generais, uma mosca irritou Hitler. Ele ordenou ao jovem oficial em questão abatê-la, mas
este último fingiu não ter ouvido a ordem ridícula. Hitler enfureceu-se e lhe lançou com
desdém: "Você não passa de um incapaz! Enquanto um secretário dos meus escritórios seria
capaz de utilizar com sucesso o primeiro submarino de bolso, você, como comandante SS, não
é sequer capaz de abater uma mosca." (A história do submarino de bolso é estritamente
histórica.) O jovem oficial teve que deixar imediatamente a sala de conferência e foi mandado
para uma unidade combatente no front do Leste.

Eu poderia relembrar inúmeros exemplos para ilustrar esse rancor diabólico que, poucas
vezes, se manifestou tão abertamente quanto no caso precedente. A desgraça do embaixador
Hewel também merece ser contada.

Ele cometera o erro de não convidar a srta. Braun para seu casamento. Esse mau passo
provocou em Hitler um ódio frio que não se mostrava abertamente, mas que encubava sob a
brasa, aguardando o momento propício para explodir. Para ele, Hewel tinha deixado de
existir! Essa atitude era bastante surpreendente, dado que ele tinha sido um dos primeiros
companheiros de luta de Hitler e havia compartilhado com ele a prisão de Landsberg. Depois
de sua libertação, tinha sido expatriado para a Índia por dez anos. No seu retorno em 1937,
fora escolhido para ser o oficial de ligação entre Hitler e Ribbentrop. Hewel tinha posição de
embaixador, embora nunca tivesse estado na diplomacia ativa. Essa promoção incomum e os
favores especiais de que Hitler o cobria mostram suficientemente a estima que tinha por ele.
Freqüentemente repreendia Hewel por ele ainda não ter encontrado, naquela idade, uma
mulher do seu gosto. Quando finalmente se casou, o erro protocolar o fez perder
definitivamente a amizade de Hitler. Hewel havia ferido a suscetibilidade irascível da
companheira titular do Führer: a falta era imperdoável!

Desde então, tudo que Hewel fazia era malfeito. Seus relatórios, cuja clareza lógica
anteriormente entusiasmara Hitler, se tornaram um "amontoado" de frases sem lógica. Hitler
não ousava ainda dispensá-lo, mas intrigava para fazê-lo perder todo prestígio aos olhos de
seu círculo. Durante os chás noturnos, insinuava que seu colaborador não passava de um
caçador de dotes. Nunca chegaria a confessar a verdadeira razão pela qual Hewel perdera sua
estima. Era hipócrita demais para desvelar assim a suscetibilidade mesquinha e a estreiteza
de seu caráter.

Quando atritos e rivalidades se manifestavam entre os dirigentes do Partido, Hitler jamais


tomava posição por um ou por outro. Confinava-se numa atitude de neutralidade benevolente
em relação aos antagonistas, ao mesmo tempo vigiando de perto o desenvolvimento das
intrigas. Muitas vezes eu tinha a impressão de que as rivalidades de influência entre Hess e
Goering, entre Goering e Himmler, entre Goebbels e Goering, entre Goebbels e Ribbentrop
etc, tinham o dom de diverti-lo. Mas assim que constatava que as questões de Estado sofriam
com essas rivalidades, dava livre curso ao seu descontentamento, fustigando com termos
violentos a atitude dos lugares-tenentes. Uma vez eu lhe perguntei por que não arbitrava
aquelas lutas logo no começo, para esmagá-las dentro do ovo. Ele me respondeu
evasivamente: "Que esses senhores se entendam entre si. Tenho mais o que fazer do que me
meter nas histórias deles. Domino tudo isso bem do alto."

A verdade é que ele não fazia senão atiçar as rivalidades com sua atitude, com o objetivo
inconfessado de impedir a formação de um front unido de seus lugares-tenentes que poderia
se insurgir contra seu despotismo.

Era curioso constatar como Hitler sabia fugir da responsabilidade quando as pessoas
conseguiam chegar até ele a fim de apelar para sua clemência. Ele era então o primeiro a
reconhecer a dureza das leis. Na presença das vítimas, Hitler se comportava raramente como
ditador intransigente. Simplesmente, não tinha a coragem de tomar a defesa de uma
legislação que ele mesmo havia promulgado. Prometia regularmente intervir e, em muitos
casos, fez efetivamente com que se reparassem certos erros de justiça ou abusos.

Esses gestos explicam o porquê da lenda de que Hitler não estaria a par das exações de seu
regime ter se espalhado pela população alemã.

Ele mesmo se encarregava de acabar com ela. No dia em que observei durante uma conversa
que, com muita frequência, pessoas atacadas sem razão exclamavam, desesperadas: "Se o
Führer tivesse conhecimento dessas injustiças, ele não toleraria", Hitler me encarou com um
olhar gelado e deixou cair estas palavras: "São bobagens. Eu sei de tudo."

Era a prova de que todas as suas intervenções e todas as derrogações com que ele mandava
beneficiar certas pessoas não eram inspiradas em um sentimento de clemência, apenas
camuflavam sua dureza natural.

Hitler literalmente complicava a própria existência com sua falta de franqueza. Voú citar
apenas o exemplo de uma ajudante de cozinha que Morell contratara em 1943 para a
preparação das refeições vegetarianas que tinham se tornado o alimento exclusivo do Führer.
Durante seis meses, Hitler não esgotava os elogios à arte culinária da nova recrutada.
Chegava a convidá-la vez por outra para tomar chá conosco.
Um dia, a Gestapo apurou que a árvore genealógica da interessada não era conforme ao
código do perfeito ariano. Mandar preparar a refeição de Hitler por uma "um quarto judia"
era impensável! Mas Hitler não ousava dispensá-la brutalmente. Como de costume, começou
por inventar uma história pavorosa. Declarou que sofria do estômago e que quase não estava
tocando mais na comida preparada pela cozinheira. A cordon bleu estava em desespero e não
tinha explicação para aquela falta repentina de apetite. Hitler calava-se. Esperou até o fim de
fevereiro de 1944 para botar um ponto final na história. Ao partir para uma estadia
prolongada em Berchtesgaden, dispensou a cozinheira pelo mesmo tempo. Mas continuava
não ousando confessar as razões de sua estranha atitude. Foi Bormann que, por carta,
solicitou à cozinheira que se considerasse despedida do serviço pessoal de Hitler por causa de
seus antecedentes raciais. Mas a questão estava longe de estar resolvida! A cozinheira
conseguiu rever Hitler e se queixou de ter sido vítima de uma maquinação infame. Hitler se
viu muito incomodado e prometeu esclarecer o caso. Na mesma noite, fazendo eco aos
argumentos de sua empregada, admitiu diante de nós que não estava provado que a avó de
sua ex-cozinheira fosse judia, mas que seu nome, de origem turca, tinha provavelmente
induzido seus serviços de informação em erro. Mas nem por isso esses mesmos serviços se
deixaram abalar, e a pobre mulher foi definitivamente banida das caçarolas onde eram cozidas
as refeições tristemente vegetarianas do maior hipócrita da Alemanha.

Gostaria de terminar este capítulo relatando as atribulações que Hitler teve com a família de
seu ministro da Propaganda Goebbels.

Do ponto de vista de inteligência fanática, Goebbles era sem contestação superior a todos os
que compunham o círculo de Hitler. Este o estimava por seu justo valor tanto como
propagandista de gênio quanto como companheiro de luta da primeira hora. Ele o designava
muitas vezes pelo nome de conquistador de Berlim. Hitler apreciava a companhia de seu
ministro de pé aleijado. Cada vez que sua face maquiavélica aparecia, eu sentia que Hitler
experimentava uma alegria sincera. Suas conversas eram sempre animadas e pontuadas de
tiradas de espírito. À mesa, a inteligência brilhante e a dialética acerba de Goebbels
esmagavam literalmente todos os convidados. Ele tinha o hábito de escolher uma "cabeça de
turco,* que então cobria de caçoadas cínicas.

*4. Espécie de dinamômetro sobre o qual as pessoas se exercitavam nas feiras batendo na
parte que representava uma cabeça com turbante; por metáfora, ser o alvo das chacotas.
(N.T.)

Possuía no mais alto grau o dom de ridicularizar uma pessoa imitando seus trejeitos e gestos
ou relatando casos sobre ela, falados com uma verve e uma vibração surpreendentes de
realismo. Goebbels era um contendor de gênio, um adversário temível, usando os meios mais
maliciosos.

Hitler freqüentou muito a casa de Goebbels até 1939. Tinha uma grande simpatia pela Sra.
Goebbels que, apesar de sua natural exuberância, podia ser muito reservada e distante. Seu
espírito e sua elegância inata exerciam sobre todos os que se aproximavam dela um charme
indiscutível. Hitler adorava os seis filhos de Goebbels, que eram extremamente bem-
educados e de uma inteligência precoce. Ao falar deles, vi seus olhos se embaçarem. Hitler
aceitava também os convites de Goebbels porque assim teria a ocasião de encontrar artistas,
em cuja companhia sempre se comprazia.

Note-se que Goebbels tinha o raro privilégio de poder fazer com Hitler brincadeiras políticas.
Ele apreciava mais o aspecto mordaz de seu espírito do que a história propriamente dita.
Muitas vezes ouvi Hitler tratar Goebbels de durchtriebener Hund, schlauer Fuchs, etc. (cão
matreiro, raposa sabida), palavras com as quais pagava um tributo à inteligência e à astúcia de
seu ministro da Propaganda.

Goebbels, que estava longe de praticar o ascetismo, também não era materialista. Somente a
inteligência e o espírito tinham aos seus olhos valor de verdade. Era pretensioso e cheio de si,
mas, ao contrário de Goering, que ele detestava cordialmente, era ponderado. No exercício de
suas funções de ministro da Propaganda, ele dominava todo mundo graças a um certo
número de truques admiravelmente executados, mas cujo emprego muito repetido diminuía
pouco a pouco a eficácia. Contudo Goebbels era um lutador obcecado que sabia agir
pessoalmente.

Em 1940, as relações privadas entre Goebbels e Hitler se esfriaram sensivelmente. O ministro


da Propaganda tornara-se impossível devido às inumeráveis ligações que tinham se tornado
de notoriedade pública. Suas relações com Lida Baarowa, a atriz de cinema, fizeram tamanho
escândalo que a Sra. Goebbels decidiu se divorciar. Hitler, por razões de política interna e
externa, opôs-se a essa ruptura. O destino das crianças também o preocupava. Goebbels e sua
mulher foram convocados a Berchtesgaden para fins de reconciliação, e eles prometeram a
Hitler retomar a vida em comum. Uma fotografia de toda a família Goebbels foi tirada nessa
ocasião e distribuída nos jornais para dar um fim aos rumores desagradáveis que circulavam
na população alemã.

Hitler ficou singularmente decepcionado com a atitude intransigente adotada pela Sra.
Goebbels durante as conversações de reconciliação. Criticava-a por ter dramatizado o fato e
sobretudo por haver difundido cenas e discussões que não diziam respeito de forma alguma
ao grande público. Estava ainda mais decepcionado com a obstinação da Sra. Goebbels pelo
fato de ela mesma ter começado nessa época um relacionamento com o secretário de Estado
Hanke. Hitler jamais perdoou a Sra. Goebbels por sua conduta desenvolta. Passou a tratá-la a
partir desse momento de uma maneira tão impessoal e distante que ela não ficava mais até o
fim das recepções em que eles tinham a oportunidade de se encontrar.

Creio, contudo, que Eva Braun era em grande parte responsável por esse rigor. Eva sofria de
um penoso complexo de inferioridade na presença da Sra. Goebbels, que a esmagava com seu
espírito e seu charme. Suas observações maldosas dirigidas contra a Sra. Goebbels haviam
manifestamente influenciado Hitler.

Tempos depois, ele me confiou que lamentava sinceramente não poder mais ir à casa dos
Goebbels. A agradável sociedade que ele tinha o hábito de encontrar lá lhe fazia falta; mas o
escândalo tinha sido levado longe demais para que pudesse retroceder. O próprio Goebbels
passara a fazer visitas raras ao QG. Mas, com o aumento dos raids aéreos sobre Berlim,
durante os quais Goebbels demonstrou um devotamento notável na organização da defesa
antiaérea e dos socorros aos sinistrados, Hitler finalmente passou a esponja sobre o passado
e apelou novamente para Goebbels.

Perto do fim da guerra, as relações entre Hitler e a Sra. Goebbels tinham se tornado de novo
normais. Ele lhe perdoara tão bem os desvios de conduta e o escândalo provocado, que
convidou toda a família para vir se refugiar no seu bunker pessoal. O suicídio de Goebbels,
para o qual ele arrastou a mulher e os seis filhos, foi o coroamento lógico de uma vida
inteiramente sacrificada a um ideal, cuja propaganda teve como armas preferidas calúnias e
mentiras.

***

Capítulo X

O chefe de um exército deve viver com a mesma simplicidade que os homens que ele
comanda.

HITLER
Hitler gostava de se cercar de obras de arte. Sustentava que esse cenário tinha um poder
calmante sobre seus nervos expostos. Quando se hospedava no "Berghof", eu o via com
freqüência, no grande hall luxuosamente decorado, parar durante longos momentos para uma
contemplação profunda dos quadros. Com os olhos fixados sobre a pintura, ele avançava e
recuava alguns passos, ou se deslocava lateralmente, a fim de captar a finura de um detalhe
ou abarcá-la com o olhar sob um novo ângulo. Com a mão acima do arco das sobrancelhas
para melhor concentrar seu olhar, convidava os que estavam perto dele para compartilhar seu
entusiasmo.

Com freqüência mandava descer para o grande hall pinturas de um ou outro cômodo do
primeiro andar. Ele mesmo também mudava os quadros de lugar para lhe dar uma iluminação
diferente. Ocupava-se assim durante horas: era seu passatempo predileto.

Apreciava a convívio social, mas à maneira de um conferencista. Depois do seu trabalho de


escritório, tinha necessidade de relaxar. No começo, vez por outra, ainda assistia a uma
representação teatral e em seguida ia a algum restaurante onde passava algumas horas no
meio de artistas. As conversas que então mantinha vez por outra constituíam para ele um
excelente tônico.

Às vezes, fazia visitas aos amigos. Freqüentava seguidamente a família Goebbels e os Ley, em
cujas casas encontrava artistas conhecidos.

Hitler tinha horror à sociedade burguesa. Recusava regularmente os convites que vinham de
oficiais superiores do exército bem como de famílias da nobreza. Achava esses meios
excessivamente rígidos e convencionais para sua natureza dinâmica. E ademais, temia a
curiosidade desses círculos onde se sentia observado como uma peça de museu.

Entretanto, quando se sentia à vontade em um grupo, conseguia ser um conversador muito


sofisticado e desenvolto.

Essa vida mudou completamente a partir do primeiro dia da guerra. Tudo era de uma
simplicidade austera dentro do QG de onde ele dirigia as operações. Seu adágio era: "É
preciso que os combatentes saibam que seu chefe compartilha as mesmas privações que eles."

No começo da campanha da Polônia, Hitler dirigia as operações de um trem especial


estacionado nas imediações de Gogolin. Todas as manhãs, partia de carro até a linha do front,
em inspeção. Voltava no final do dia, empoeirado e sujo. A cada vez, antes de partir, ele me
ditava apelos e ordens do dia dirigidos aos combatentes. No momento do cerco de Varsóvia,
lançou à população apelos convidando-a a deixar a cidade. Foi somente no final da campanha
que se instalou no cassino de Zoppot.

É difícil imaginar um homem tão ativo quanto Hitler no início da guerra. Ocupava-se das
operações em seus menores detalhes. Controlava tiranicamente para que, em seu QG, as
restrições alimentares fossem aplicadas à letra. Mas foi apenas fogo de palha. Logo depois,
sua vigilância relaxou progressivamente. Não tinha mais o tempo necessário para garantir
inspeções pessoais nas cozinhas e nas cantinas dos oficiais. Para a campanha do Oeste, ele se
recusou a se instalar em um luxuoso castelo perto de Bad Nauheim, que havia sido montado
com este objetivo. Estabeleceu-se com seus colaboradores em um QG previsto para os
estados-maiores subalternos, formado de pequenas casas penduradas na beira de escarpas,
muito primitivamente instaladas. No momento do lançamento da campanha da França, ele
chegou a se contentar com um PC regimental no Eifel, reduzido a um quarto de dormir bem
pequeno e uma mesa para ele, uma cozinha e alguns locais para seus ajudantes-de-ordens e
seu pessoal. Diante do bunker construiu-se às pressas um barracão de madeira branca para
servir de sala de refeições. O mobiliário era todo de madeira branca, os bancos, as cadeiras e
as poltronas, de ratã. Era ali que Hitler fazia as refeições, cercado de seus colaboradores.
Chamou esse QG de "ninho de rocha". Todas as pessoas do seu séquito que não podiam ficar
alojadas no abrigo, moravam no vilarejo mais próximo.

Vou me lembrar sempre da manhã de 11 de maio de 1940, quando chegamos ao famoso


"ninho de rocha". Hitler reuniu seu pequeno Estado-maior e colaboradores em torno dele. Do
alto do bunker, ele nos anunciou com uma voz firme e declamatória que, naquela mesma
manhã, a campanha da França acabara de ser lançada. Em toda a nossa volta, os bancos
brumosos enchiam os vales do Eifel. Os primeiros pássaros levantavam vôo de árvores que
destilavam umidade. De longe, o ribombo dos canhões nos chegava através de um ruído
amortecido. Uma nova página da História começava.

Para nossa grande surpresa, Hitler estava muito satisfeito com aquela instalação rudimentar.
Ficava ao ar livre o mais possível. Eu o via caminhando diante do bunker, mergulhado em suas
reflexões.

Como as vitórias se sucediam em um ritmo acelerado, Hitler estava sempre de bom humor.
Mais de uma vez, durante os anos seguintes, quando os reveses sensacionais da Wehrmacht
eram anunciados, ele evocou com amargura o famoso "ninho de rocha", quando a situação
era totalmente diferente.
Hitler deixou o Eifel para seguir o avanço de nossas tropas e se instalou em Bruly-le-Pêche,
pequeno burgo situado a 100 quilômetros de Bruxelas. Hitler ocupava uma barraca de
madeira, enquanto seu Estado-maior se acantonava no presbitério e na escola. A nave da
pequena igreja, cujas paredes tinham sido recentemente tratadas com cal e cujo coro tinha
sido dissimulado por uma grande cortina, servia de sala de refeição e sala de projeção de
cinema. Ao lado da barraca foi construído às pressas um pequeno abrigo antiaéreo. Ele nunca
ia lá, mas seguia com interesse o vôo das esquadrilhas inimigas que passavam acima de nós.
Uma vez, bombas incendiárias caíram sobre as casas onde estavam acantonados seu
destacamento de guarda e a Gestapo, que faziam parte do séquito. Mas todo mundo
continuou a ficar do lado de fora durante o sobrevôo dos aviões aliados. Hitler batizara esse
QG com o nome de "Wolfsschlucht" (ravina dos lobos).

Foi lá que lhe anunciaram a capitulação da França. Hitler, na sua alegria exuberante, deu
grandes tapas nas coxas e esboçou um passo de dança. O marechal Keitel fez em seguida um
discurso e convidou toda a entourage para beber à saúde do maior conquistador de todos os
tempos.

Hitler queria muito rever na França o acampamento onde havia passado grande parte da
guerra de 1914-1918. Depois foi para Paris onde visitou os Invalides, a Opéra etc. Na volta,
contou-nos orgulhosamente que se localizara mais facilmente dentro do dédalo dos
corredores da Opéra do que seus guias. Tinha estudado a construção da Opéra no tempo de
sua adolescência em Viena, e todos os detalhes arquitetônicos ficaram gravados na sua
memória.

Nós só permanecemos pouco tempo no nosso terceiro QG de guerra, chamado "Tallenberg",


na Floresta Negra. Lá só havia alguns pequenos bunkers úmidos nos quais era quase
impossível viver.

Para a campanha da Iugoslávia, Hitler não deixou seu trem especial. Nele, pôde elaborar com
toda a tranqüilidade os planos da campanha da Rússia. Quando o ataque fulminante contra o
colosso russo foi lançado, ele se encontrava na extremidade da Prússia Oriental, a 14
quilômetros de uma triste cidade de província chamada Rastenburg. Essa instalação recebeu o
nome de "Wolfsschanze". Quando lhe perguntei por que o nome "Wolf" voltava com tanta
freqüência na designação de seus QG, ele me explicou que, na clandestinidade, antes do
putsch abortado de Munique, ele adotara o nome de Wolf (lobo).

O entusiasmo reinava entre todos nós, mas Hitler continuava surpreendentemente sério.
Quando seu ajudante-de-ordens - que acreditava conhecer a Rússia depois de uma curta
estadia no país - afirmou com segurança que aquela campanha seria tão breve quanto as
outras e que aquele imenso país explodiria como uma bolha de sabão, Hitler replicou
pensativamente que preferia comparar a Rússia com o famoso navio fantasma da ópera
wagneriana bem conhecida. Em seguida acrescentou: "No início de cada campanha, empurra-
se um imenso portal que dá acesso a uma peça mergulhada no escuro. Nunca se sabe o que se
esconde por trás."

Contudo, depois dos primeiros sucessos obtidos pelas tropas alemãs, ele se tornou mais
otimista. Eu me lembro que em agosto de 1941, enquanto tomávamos chá no cassino, Hitler
olhou fixamente para um imenso cartaz na parede. Seus olhos tinham aquele brilho
misterioso do adivinho em transe, que lhe era habitual em tais circunstâncias. Com sua voz
áspera de baixo, pronunciou este oráculo: "Dentro de algumas semanas estaremos em
Moscou. Não há dúvida quanto a isto. Vou arrasar essa cidade maldita e mandar construir no
local um lago artificial que alimentará centrais elétricas. O nome de Moscou deve desaparecer
para sempre."

Nós sentimos frio nas costas. Quando, surpreso com os rigores de um inverno assustador, os
exércitos alemães ficaram paralisados nas extensões geladas da Rússia Branca, Hitler teve
algumas vezes alterações de humor, mas manteve sua confiança numa vitória próxima. "Resta
apenas um ligeiro véu a perfurar. É preciso um pouco de paciência. A resistência russa não
poderá durar."

Contudo, nossa estadia monótona na "Wolfsschanze" se prolongava. No decorrer do verão de


1942, Hitler estabeleceu-se provisoriamente em um QG chamado "Werwolf" na vizinhança de
Winitza. Lá, pelo menos, vivíamos em casas construídas em troncos de árvores. O retorno aos
bunkers da "Wolfsschanze" em outubro do mesmo ano foi ainda mais penoso.

A medida que prosseguia a campanha da Rússia, com seus altos e baixos, a "Wolfsschanze" se
completava. Pouco a pouco, foi construído um cinema, um pavilhão de chá, uma villa muito
confortável para Goering. Este último só fazia curtas aparições, duas vezes por mês. Hitler
justificava a construção daquela villa suntuosa admitindo com filosofia que havia pessoas que,
para conduzir uma guerra, sentiam necessidade de se cercar de um luxo confortável.

A partir de então, a vida se tornou mais agradável. Um grande café foi construído, onde a
entourage de Hitler organizava noitadas. Mas, enquanto todos nós nos sentíamos felizes por
não dormir mais no bunker, Hitler se recusava obstinadamente a deixar o seu. Apesar de
explicarmos a ele que aquela vida de cupim era anti-higiênica, ele argumentava que não podia
dormir dentro das barracas por elas serem verdadeiras caixas de ressonância e, assim, passou
os dois últimos anos da guerra enterrado em seu abrigo, de onde só surgia para respirar
algumas baforadas de ar fresco. Enquanto todos nós éramos vítimas de distúrbios de
circulação e dores de cabeça quando dormíamos no ar confinado dos bunkers, ele parecia se
sentir muito à vontade naquela atmosfera artificial.

O mobiliário das peças que ocupava era de uma simplicidade rudimentar. Em tempos de paz,
Hitler tinha o hábito de gastar somas consideráveis para ornar seus apartamentos com flores;
agora, não queria saber sequer dos buquês de flores-do-campo com que enfeitávamos nossas
mesas. "Exijo essencialmente", declarava, "que esse QG nada tenha do luxo e do conforto de
que o combatente é privado. Muitas vezes constatei que, quando meus oficiais e meus
soldados chegam aqui para serem condecorados com minhas mãos, a simplicidade que me
cerca os impressiona favoravelmente".

A catástrofe de Stalingrado mergulhou Hitler num desespero profundo. Estava obcecado pela
capitulação de Paulus. Bormann, para lhe distrair as idéias, deu-lhe de presente um novo cão
pastor. Porém, Hitler evitava cada vez mais a sociedade. Tornara-se francamente misógino.
Sequer fazia mais as refeições com seu Estado-maior na cantina dos oficiais, porque o general
Jodl o havia horrivelmente ofendido ao ousar contradizê-lo publicamente à mesa. A partir de
então, enterrou-se completamente em seu bunker, fazendo sozinho as refeições em tête-à-
tête com o pastor alemão. Sua grande distração consistia em alimentar o animal, enquanto
ele, entre as quatro paredes de cimento, engolia tristemente pratos vegetarianos.

A crise de depressão durou vários meses. Mas, finalmente, a solidão monacal pesou-lhe.
Começou por convidar um ou outro dos oficiais do grande EM, vindos como ligação de
Berlim, para compartilhar com ele sua modesta ração. Contudo, os convidados não
conseguiam conversar senão questões de serviço, o que o desagradava. Mudou de idéia mais
uma vez e passou a fazer as refeições na presença de uma de minhas colegas e na minha. Era-
nos estritamente proibido falar de serviço ou mesmo fazer alusão à guerra. Enquanto a
milhares de quilômetros dali a Wehrmacht estava sendo sangrada até a morte sob os assaltos
furiosos dos exércitos russos, Hitler dissertava interminavelmente sobre arte e literatura.

De manhã, Hitler fazia um passeio com Blondy, sua cadela pastor. Mandara construir uma pista
repleta de obstáculos que ele a fazia saltar. Era o único prazer e a única distração que se
permitia. Jamais assistia às sessões cinematográficas, salvo à projeção das atualidades, a fim
de tomar conhecimento do trabalho da censura.

Antes da retirada de Stalingrado, Hitler ainda organizava, de tempos em tempos, soirées


musicais. Sentia um imenso prazer em escutar durante horas, imóvel numa poltrona, sinfonias
de Beethoven, óperas de Wagner ou Lieder de Hugo Wolf. Depois passou a ter horror dessas
audições. Passávamos então todas as noites com ele, a escutá-lo falar. Mas, assim como os
discos que tinha o hábito de ouvir não eram senão uma eterna repetição das mesmas obras,
seus temas de conversa também não variavam. Mais do que nunca, gostava de nos contar
histórias de sua juventude, de nos descrever sua adolescência penosa em Viena e de evocar o
período que precedera a tomada do poder. Mesmo os temas mais amplos, tais como o
problema das origens do homem, o micro e o macrocosmo, tinham sido de tal maneira
repisados por ele, que nós os sabíamos de cor. Já estávamos cansadas daquelas ladainhas! Os
acontecimentos do mundo e as notícias do front eram sistematicamente afastados. Era
preciso não evocar a guerra.

Quando chegávamos a falar de nossa vida na "Wolfsschanze", a conversa rolava


invariavelmente sobre as brincadeiras ou as desobediências de Blondy, sua cadela, ou ainda
sobre as proezas de um gato que eu tinha introduzido no acampamento, violando o
regulamento. Hitler detestava os gatos porque eles caçavam os passarinhos. Pouco a pouco,
contudo, ele se acostumou com o bicho.

Hitler era literalmente possuído pelo ciúme e pela inveja. Quando constatava que Peter, o
gato, e Blondy manifestavam a outra pessoa que não ele sinais de simpatia, ficava furioso.
Quando sua cachorra se aproximava, confiante, de alguém, ele imediatamente suspeitava da
pessoa em questão, achando que ela a aliciara com um pedaço de carne, coisa estritamente
proibida. Mas a vaidade rapidamente sobrepujava tudo. Terminava sempre declarando que
era perda de tempo tentar ganhar a simpatia de Blondy, pois ela só conhecia o seu único
dono.

No final de 1944, a situação na "Wolfsschanze" se tornava cada vez mais inquietante.


Diariamente, as esquadrilhas inimigas nos sobrevoavam. Hitler não parava de predizer um
ataque de surpresa para alertar os imprudentes que nunca se abrigavam. Por outro lado, ele
se obstinava em permanecer naquela posição avançada, embora fosse pressionado de todos
os lados para voltar para Berlim. Invariavelmente, ele respondia: "É, meu dever ficar aqui. Isto
tranqüiliza a população, e meus soldados jamais admitirão que o front recuou até a
proximidade do QG do seu Führer. Isto vai incitá-los a lutar com um ardor acrescido."

Durante sua longa doença, Hitler ocupou outro bunker. Aproveitou-se para reforçar o
primeiro aumentando a espessura do teto para cinco metros de cimento. Os operários
trabalharam lá até a véspera da evacuação do QG, sob a pressão russa. No próprio dia da
partida, todas as instalações foram destruídas. Em Berlim, a mesma coisa se reproduziu:
quando as tropas russas estavam às portas da cidade, o famoso bunker da Chancelaria ainda
estava sendo reforçado.
Da metade de dezembro de 1944 até o final de janeiro de 1945, Hitler descansou no seu
primeiro QG, o "Adlehorst", perto de Bad Nauheim. Chegando a Berlim, instalou seu quarto de
dormir no bunker da Chancelaria por causa dos ataques aéreos contínuos aos quais a capital
estava submetida. As conferências com seus colaboradores se passavam no grande hall da
Chancelaria e ele fazia as refeições conosco na pequena sala do canto. Mas, como
conferências e refeições eram constantemente interrompidas por alertas, Hitler decidiu um
dia não mais deixar seu abrigo. Ocupou uma peça muito estreita onde só havia lugar para uma
pequena mesa de trabalho, um canapé pouco cômodo, uma mesa e quatro poltronas. Esse
quarto era frio e desagradável. A esquerda havia um banheiro e, à direita, o quarto de dormir,
igualmente reduzido às dimensões de uma célula de prisão.

O escritório era completamente tomado por um quadro de Frederico, o Grande. Tínhamos


sempre a impressão de que o velho "Fritz" nos julgava severamente com seu olhar imenso. A
estreiteza da peça - era sempre preciso afastar as cadeiras para deixar alguém passar - e sua
decoração paralisavam literalmente meus reflexos e meus pensamentos.

Hitler, quando nos recebia ali depois da conferência da noite, por volta das seis horas da
manhã, estava longe de trazer uma baforada de ar fresco para aquela atmosfera de tumba. Ele
estava deitado sobre o pequeno canapé, completamente esgotado pelas intermináveis
discussões que tivera com seus conselheiros militares. Sua decadência física e intelectual
progredia dia a dia, apesar de seus esforços desesperados para combatê-la. Mas, quando
entrávamos na pequena peça, ele ainda encontrava forças para se levantar e nos acolher.
Ficava então diante de nós, com o braço e a mão trêmulos, depois se deixava cair novamente
sobre o canapé, enquanto o criado de quarto colocava seus pés sobre uma grossa almofada.
No seu olhar apático, eu lia apenas um desejo, o de poder por fim saciar-se de cacau e doces.
Sua gula por doces tornara-se doentia. Enquanto que antes não comia mais do que três
pedaços, agora precisava de um prato cheio até a borda. Eu não compreendia como ele, que
continuava a pregar uma vida de asceta, podia se entupir assim com tanto prazer de balas e
doces. Ele nos explicava que comia menos no jantar a fim de poder comer mais doces.
Enquanto estava se dedicando à sua satisfação preferida, não falava. Gulosamente, engolia os
doces como se tivesse medo que alguém pudesse levá-los. Como desculpa, ele nos dizia que
nunca pudera compreender que um homem não amasse doces.

Aquela gula inacreditável, na hora em que Berlim se transformava em braseiro, me assustava.


Na presença daquela ruína humana que se entupia de doces, eu tinha a impressão de viver um
pesadelo. O próprio aspecto de Hitler tornara-se lamentável. Sua pele sem viço, os olhos
turvos, os lábios finos ligeiramente azulados me inspiravam simultaneamente desgosto e
piedade.
Mais ainda: Hitler, o inimigo jurado do álcool, nos encorajava agora a beber. É verdade que sua
entourage, sem esperar sua concordância, se dedicava ao álcool com frenesi, para esquecer a
existência anormal que levávamos dentro daquela caverna de concreto.

Aqueles chás matinais duravam duas horas. Hitler ia então com seu passo arrastado até a
casinha de Blondy, que ele se punha a acariciar longamente. Em março, ela tivera cria. Hitler
escolhera um dos filhotes para ele mesmo cuidar, sem nenhuma ajuda. Aquele cachorrinho,
ele então o segurava sobre os joelhos e o acariciava, chamando-o constantemente pelo nome
de "Wolfi" com uma voz infinitamente doce. Depois levava o cãozinho novo para a mãe e
finalmente se despedia de nós. Eram oito horas da manhã. Ele só tinha pouco tempo para
dormir. Regularmente, por volta das 11 horas, a sirene de alarme ressoava. Hitler não ficava
deitado durante os raids aéreos sobre Berlim. Ficava ansioso com a idéia de que uma bomba
alcançasse o bunker pelo lado, arrancando um pedaço da parede lateral. Como toda a
construção estava cercada de uma camada de água, ele temia um afogamento geral dentro
do abrigo.

Depois, assim que os bombardeiros inimigos se aproximavam, ele se levantava, vestia-se e


tinha até o cuidado de se barbear. Nunca ficava sozinho no seu apartamento, mas vinha se
juntar a nós no pequeno vestíbulo.

Hitler gostava de se demorar no jantar que, habitualmente, ocorria entre 9 e 10 horas da


noite. Durante toda a refeição, nosso aparelho de rádio reproduzia o monótono apelo da
emissão especial da polícia.

Durante um raid, Hitler permanecia inteiramente concentrado nas notícias dadas pelo rádio
sobre o desenrolar do ataque. Nós ficávamos do seu lado, sem nos mexer e espreitando as
explosões de que os bairros da Chancelaria nunca eram dispensados. O dia seguinte do ataque
de 3 de fevereiro de 1945, por exemplo, 58 bombas explosivas caíram na nossa vizinhança.
Cada vez que um daqueles projéteis se estraçalhava nas proximidades do bunker, este se
movia com toda a sua massa. Tínhamos a impressão que ele se balançava lateralmente sobre
a camada de água. Quando, devido ao estremecimento da construção, a luz elétrica vacilava, a
voz de Hitler se elevava como de dentro de um sonho: "Desta vez, a bomba poderia ter nos
tocado."

Seu rosto então ficava lívido, seus traços retesados, e seu olhar errava cheio de inquietação de
um para outro de nós. Manifestamente, Hitler tinha medo.
Após os ataques, ele pedia os relatórios sobre os estragos causados. Lia-os em silêncio, sem
jamais fazer comentários. Depois se retirava para o quarto de dormir, para ler um memorando
ou descansar um pouco, a fim de estar pronto para a conferência da noite.

Esta última reunião começava sempre depois da meianoite e durava freqüentemente até a
madrugada. Depois era o chá habitual, as carícias nos cães, um pouco de sono até o alerta
que durava sempre até o almoço. Hitler convocava em seguida a conferência da tarde, e as
mesmas obsessivas repetições recomeçavam.

Nossa vida, ritmada pelos ataques aéreos, as conferências e as refeições, em contato com o
potentado descaído, transcorria em uma monotonia alucinante, longe da realidade na qual a
Alemanha se dissolvia.

***

Capítulo XI

A tragédia desta guerra reside no fato de três homens de gênio se combaterem.

HITLER

Uma das maiores fraquezas de Hitler era sua ignorância quase total do comportamento e da
psicologia dos países estrangeiros. Praticamente nunca tinha saído das fronteiras da
Alemanha e tinha idéias profundamente errôneas sobre o estrangeiro. Todo o seu saber no
campo da geografia, da economia e da história tinha sido retirado da literatura ou buscado
nos relatórios dos embaixadores. Mas como, ao longo dos anos, vivia cada vez mais
entrincheirado do mundo real e as informações de seus observadores no estrangeiro lhe
chegavam só após uma filtragem muito rigorosa por parte de seus conselheiros, tinha uma
imagem cada vez mais falsa do que se passava fora da Alemanha. É preciso acrescentar que
seus representantes diplomáticos no estrangeiro brilhavam mais por seu espírito de
submissão às teorias nacional-socialistas do que por suas capacidades profissionais. Não
surpreende que seus relatórios fossem freqüentemente tão cheios de erros que suas
previsões estavam antecipadamente condenadas ao fracasso.
Em nenhum dos ministérios se cometeram tantos erros quanto no de Relações Exteriores. As
idéias mais insensatas eram ali acolhidas com satisfação, sempre que se referiam ao famoso
projeto da Eur-Asia. Aliás, em nenhum outro lugar a alma dos povos foi pisoteada com uma tal
inconsciência. Mas Hitler aprovava. O campo da revisão geográfica do mundo, no
nivelamento dos países e das raças ditas "inferiores", ensejava seus sonhos mais audaciosos e
mais quiméricos. Suas previsões divinatórias neles se desenvolviam com uma exuberância de
flora tropical.

Ribbentrop - o ministro representante de vinhos - estava entre as pessoas sobre as quais


Hitler apreciava fazer galhofas. Contudo, era preciso não levar muito a sério as críticas que
formulava a respeito dele, pois, toda vez que alguém se permitia atacar Ribbentrop, ele
tomava o partido deste último. Hitler levava a inconsciência até o ponto de considerar
Ribbentrop o maior ministro das Relações Exteriores da Alemanha desde Bismarck.

Rindo, ele me contou um dia como tinha tentado apresentar Ribbentrop a Hindenburg em
1932, na época em que estava negociando com este último sua tomada do poder. O senil
Feldmarschall, com sua voz grossa de baixo, recusara-se a encontrá-lo, respondendo
imperturbavelmente: "Não me amole com esse comerciante de champanhe."

Ribbentrop era o mais burocrático de todos os ministros de Terceiro Reich. Hitler, contudo,
não levava em consideração os memorandos intermináveis que ele lhe submetia.
Freqüentemente, eu o via jogá-los sobre a escrivaninha com um movimento de irritação,
declarando que não tinha a mínima intenção de se meter nas intrigas entre os diferentes
ministérios. O de Relações Exteriores e o de Propaganda sempre estiveram envolvidos numa
luta implacável. A questão de saber qual dos dois tinha o direito de controle sobre a imprensa
nunca foi resolvida definitivamente por Hitler.

Mas não é surpreendente que Hitler tenha se deixado inspirar integralmente por ele em todas
as questões relativas à Inglaterra. Ele o considerava com toda a sinceridade o melhor
especialista em questões inglesas. Era Ribbentrop que atiçava constantemente a raiva do
Führer contra Albion. Eu não exagero tornando-o o único responsável pela recusa de Hitler em
aceitar uma última tentativa de negociação com o embaixador britânico em Berlim sobre a
sorte do corredor de Dantzig, na véspera da invasão da Polônia por nossas tropas.

Foi sob sua influência igualmente que Hitler, perto do final da guerra, foi dominado por uma
aversão doentia por tudo que era inglês.
Contudo, em 1940 ainda, quando a Itália assinou com a Alemanha o famoso pacto de aço,
Hitler me fez a seguinte observação: "Teria preferido assinar uma aliança com os ingleses. Eles
são, do ponto de vista racial, muito mais próximos do povo alemão do que os latinos."

Reflexões como essas não foram mais reproduzidas durante a evolução das hostilidades.
Muitas vezes eu ouvi ecos diretos de conversas entre Hitler e o embaixador Hewel, o qual
possuía uma longa experiência da psicologia inglesa. Este último tentava persuadir Hitler da
política desastrosa que Ribbentrop praticava em relação ao Reino Unido. A atitude
intransigente e ao mesmo tempo desenvolta com a qual o ministro das Relações Exteriores
ferira o sentimento nacional inglês fizera dele um homem absolutamente inadequado para o
posto que ocupava. Mas Hitler permanecia surdo a todos esses apelos à razão e respondia
invariavelmente: "Meu caro, são coisas que você não pode compreender."

Várias vezes, Hewel me confiou que considerava Ribbentrop um homem nefasto, envelhecido
antes da idade e cheio, por razões pessoais, de um ódio cego por tudo que dizia respeito à
Inglaterra. Hewel estava persuadido de que a Sra. Ribbentrop, que tinha o hábito de se meter
em tudo que não lhe dizia respeito, desempenhava um papel importante nos bastidores da
política externa do Reich e que ela podia ser considerada como o gênio mau do marido. É
preciso não esquecer que ele era de origem modesta e que sua mulher era mais rica do que
ele e, além do mais, ultrapassava claramente o marido do ponto de vista das qualidades
intelectuais. Ribbentrop, com muita oportunidade, habituara-se à vida faustosa. Ao longo dos
anos, sua arrogância e seu gosto pelo luxo se tornaram insuportáveis.

Assim como Hitler, ele acreditava na infalibilidade de seus julgamentos. Mas, no fundo, tinha
muito poucas idéias pessoais e sua iniciativa se reduzia a executar as instruções do Führer,
cercando-as ao mesmo tempo de um aparato grandiloqüente.

Hitler pretendia, mas eu era incapaz de verificar, ser capaz de seguir uma conversação em
inglês e em francês, com a condição que não lhe falassem depressa demais. Ele também me
explicava: "Jamais me esforço para falar em uma língua estrangeira porque o tempo que meus
intérpretes levam para traduzir perguntas e respostas me é precioso demais em uma
negociação diplomática. Esse tempo morto me permite refletir e encontrar para minhas
respostas fórmulas concisas e que impressionem.

Desde 1925, Hitler começara a escrever no maior segredo uma obra sobre a política externa.
Ninguém teve conhecimento do monte de folhas que ele cobriu com sua pequena letra miúda
e quase ilegível. Muito raramente, e somente quando estava preocupadíssimo, fazia alusão à
obra na qual trabalhava. Em 1939, pouco depois da declaração de guerra, ele afirmou diante
de mim e de Hess, em um acesso de megalomania: "Agora toda a minha obra foi abaixo. Meu
livro foi escrito para nada."

Creio que somente Hess estava a par das idéias pessoais que Hitler desenvolvera no
manuscrito, e que é preciso buscar nele a explicação para sua escapada para a Inglaterra.

No final de 1944, Hitler me comunicou sua intenção de fazer um longo ditado. Pediu-me para
estar pronta para os dias seguintes. Mas nunca botou seu projeto em execução. Estou
persuadida de que ele tinha a intenção de me ditar seu testamento político.

Antes da guerra, ele tinha me declarado, e eu creio que essa idéia correspondia sinceramente
às sua visões, que uma aliança com a Inglaterra representava para ele a solução ideal do
problema da dominação do globo. A frota inglesa e o exército de terra alemão eram
considerados por ele fatores de poder suficientes para reconstruir o mundo sobre bases novas.

Hitler era um grande admirador da política colonial da Inglaterra. Eu sei que em 1926 ele se
expressou assim diante de seus mais próximos colaboradores: "Desejo que a coroa do
Império britânico não perca nenhuma de suas pérolas; isto representaria uma catástrofe para
a humanidade."

Quando, nos anos que precederam a guerra, a opinião pública alemã manifestou sua simpatia
pelo movimento de independência da Índia, ele declarou: "Proíbo meus homens de se
deixarem seduzir por esse entusiasmo geral por Gandhi. A liberdade não se conquista com
artes de tecelão, mas com canhões."

Por outro lado, Hitler demonstrava pelo Japão uma admiração sem reserva. Os chefes do EM
geral da Wehrmacht, sempre se opondo a uma política de reaproximação com aquele país,
não viam a salvação da Alemanha senão numa aliança estreita com a Rússia. Mas Hitler não se
deixava influenciar. Foi uma das razões de seu desacordo com Blomberg. Este teve que
desaparecer porque, entre outras divergências, tinha se oposto sistematicamente à idéia
favorita de Hitler de uma aliança com o Japão.

Hitler se dava conta perfeitamente da enormidade que sua política pró-japonesa representava
do ponto de vista racial. Ele me declarou um dia: "Criticam-me por pactuar com os japoneses.
O que querem dizer com isso? Certo, são seres diferentes de nós; têm a pele amarela e os
olhos apertados, mas, detalhe importante, eles lutam contra os americanos. É a única razão
pela qual nos são úteis e eu os considero simpáticos." Ia até mais longe na sua reserva mental
diante do problema japonês. Na ocasião da tomada de Singapura pelas tropas do Mikado,
Ribbentrop quis festejar o acontecimento com manifestações importantes da imprensa e da
rádio alemãs. Quando submeteu seu projeto a Hitler, este não concordou e lhe disse: "Não sei,
meu caro Ribbentrop, se seus planos são judiciosos. Diante da História, é preciso pensar em
séculos, e, cedo ou tarde, a grande disputa entre a raça branca e a raça amarela virá."

Nos seus discursos públicos, seus julgamentos sobre os homens de Estado estrangeiros em
guerra com ele traduziam apenas ódio e desdém. É preciso não esquecer que tais apreciações
eram sobretudo destinadas à propaganda interior da Alemanha. Hitler falava de uma maneira
muito mais realista dos chefes de Estado estrangeiros quando discutia problemas
internacionais em um círculo restrito. Eis qual era, em grandes linhas, sua opinião verdadeira,
tal como pude deduzir de numerosas conversas.

Roosevelt. Hitler jamais dissimulou a aversão que sentia pelo presidente dos Estados Unidos.
Tratava-o de charlatão público e afirmava que ele havia lançado seu país na guerra com o
único objetivo de camuflar aos olhos do mundo o fracasso de sua política interna. Mas, no seu
foro íntimo, percebia em Roosevelt um homem de Estado de estofo superior ao seu. Através
da própria violência dos epítetos que ele empregava a respeito de Roosevelt, transpirava um
sentimento de inveja e impotência raivosa. Hitler era um mestre na arte de conduzir as
massas, mas sentia confusamente que, nesse campo, não podia se comparar com o "jogador
de xadrez" Roosevelt. No seu subconsciente, admirava os movimentos políticos
admiravelmente executados por este último e que tinham terminado por fazer com que os
Estados Unidos aceitassem a idéia de guerra. É aí que é preciso procurar a verdadeira razão da
irascibilidade que Hitler manifestava cada vez que o nome de Roosevelt era mencionado.

Stalin. Hitler nunca procurou esconder a estima e até mesmo a admiração que sentia pelo
chefe da URSS. Era o único dos homens de Estado estrangeiros que gostaria de ter conhecido
de perto. Cada vez que um de seus enviados voltava de uma viagem à Rússia, ele gostava de
ouvir suas impressões nos menores detalhes e, com muita freqüência, não podia se impedir
de exclamar com um movimento de entusiasmo: "Esse Stalin é um imbecil, mas, francamente,
é preciso reconhecer que é um tipo extraordinário." (ein Biest, aber ein ganzer Kerl.)

A maneira como Stalin se comportava em público o interessava no mais alto grau. Pedia que
lhe descrevessem minuciosamente a organização das recepções no Kremlin. Eu tinha a
impressão de que Hitler não parava de fazer paralelos entre Stalin e ele. Durante o curto
período que durou o pacto de não-ataque com a Rússia, Hitler procurou em vão um terreno
de aproximação pessoal com Stalin.
Churchill. Hitler manifestava em relação ao premier inglês um desprezo completo. Fazia-o não
apenas em seus discursos públicos, mas até mesmo em suas conversas com familiares. Não
concedia a Churchill o menor prejulgamento favorável. Era uma condenação total e sem
apelo. Quando falavam dele, sequer fingia pagar o tributo de admiração à coragem com a qual
este último continuava uma luta quase sem esperança, colocando na balança todo o peso de
sua personalidade. O desprezo com o qual cobria Churchill voltava a toda hora nas conversas
ao pé do fogo. Fato curioso, contudo, Hitler não o manifestava em meio a uma explosão de
cólera, como fazia todas as vezes em relação a Roosevelt. Levando em conta o insondável
complexo de Hitler, talvez devamos interpretar essa atitude como um reconhecimento
inconfessado dos méritos daquele que o enfrentou, sozinho, depois da campanha da França.

A admiração sincera que Hitler sempre sentira pela política colonial inglesa parou de se
manifestar durante os últimos anos. Durante a guerra, Hitler considerava Churchill apenas um
instrumento sem vontade entre as mãos de Roosevelt e Stalin e o coveiro do Império britânico.

É igualmente interessante observar o comportamento real de Hitler vis-à-vis os chefes de


Estado que eram seus aliados ou simpatizantes.

Mussolini. Quase até o fim, Hitler manifestou por Mussolini uma amizade profunda e sincera.
Sentia-se ligado ao Duce por intermédio da identidade dos caminhos percorridos. Constatava
com desgosto, contudo, que Mussolini não gozava de uma liberdade de ação tão absoluta
quanto a sua, uma vez que se encontrava numa situação de dependência em relação à Casa
Real da Itália. Nunca deixou de lamentar este fato. Depois de sua visita oficial a Roma, em
1937, ele me contou que tinha ficado chocado ao ver a condescendência altiva com que o
Duce era tratado pelo rei Vitor Emmanuel. Ele me confessou que tivera que se controlar para
não suspender a viagem, à guisa de protesto contra as humilhações constantes de que
Mussolini tinha sido objeto. Durante um desfile militar em Roma, assentos tinham sido
dispostos para os membros da família real e para ele mesmo, enquanto Mussolini estava de
pé, atrás deles, durante toda a manifestação! "Isto me revoltou a tal ponto que por pouco não
fiz um escândalo oficial. Foi unicamente por estima pelo Duce que não dei livre curso ao meu
descontentamento diante de tamanha falta de tato e respeito."

Depois da traição e do desmoronamento da Itália, a calorosa simpatia de Hitler pelo Duce mal
chegou a se encobrir. Creio que ela apenas misturou-se a um sentimento de compaixão e
piedade. Tratava Mussolini como se ele fosse o irmão caçula que podia se redimir de um
pecado de juventude seguindo à letra as instruções do mais velho. Hitler recusava-se
obstinadamente a acompanhar Mussolini nos seus esforços para convencê-lo de que os
acontecimentos internacionais ditavam uma reviravolta na política diante de certo número de
problemas.
A grande decepção de Hitler só se manifestou depois da liberação do Duce por Skorzeny. O
"diário" de Mussolini, que havia sido encontrado nessa ocasião e do qual Hitler tomou
pessoalmente conhecimento, esclarecia o caráter do fundador do fascismo sob uma luz nova
para ele. Durante suas conversas, Hitler nos deu certos detalhes, destacando as fraquezas e a
duplicidade variável do "leão da península". Resumia sua dolorosa surpresa com estas
palavras, pronunciadas com abatimento: "Confesso que estava enganado. Mussolini afinal não
passava de um espírito medíocre. Tenho agora a prova irrefutável."

Antonescu. Hitler não manifestava somente uma profunda simpatia por Antonescu na sua
qualidade de aliado, mas também no plano humano. Cada vez que falava dele, fazia-o com
termos de grande cordialidade. Na ocasião das visitas de Antonescu à Alemanha, cuidava com
um cuidado especial da segurança do presidente do Conselho Romeno. Uma vez confessou-
me que os argumentos desenvolvidos por Antonescu durante discussões sobre a condução da
guerra eram todos marcados pelo bom senso. Constatava igualmente com satisfação que
Antonescu nunca vinha a uma conferência sem ter em mãos uma volumosa documentação e
que seus relatórios eram sempre redigidos no mais puro estilo de Estado-maior. Hitler
admirava sobretudo o caráter judicioso e incorruptível de Antonescu, as qualidades
violentamente destoantes dos métodos e usos caros a seus compatriotas. A única crítica que
ele lhe fazia era sua falta de pulso na condução das questões internas de seu país.

O exército romeno era, a seus olhos, um mundo de corrupção e traição. Essa constatação
inspirava-lhe temores quanto à segurança de Antonescu. Mas este jamais levava a sério as
advertências com que o Führer o prodigalizava.

Franco. Cada vez que Hitler me falava de Franco, eu tinha a impressão de que ele sentia uma
profunda decepção diante da ingratidão que o "Caudillo" manifestara em relação a ele. Esse
ressentimento se tornou particularmente intenso depois da entrevista de Hendaye. Hitler
tinha ido até lá com a firme convicção de que Franco subscreveria o plano de campanha para
a tomada de Gibraltar. Hitler confessava que o caráter indeciso e sinuoso de Franco causara à
Alemanha e a seus aliados graves prejuízos: "Franco", ele tinha o hábito de repetir, "verá que
sua atitude vai provocar sua própria queda".

À medida que a posição de neutralidade da Espanha se afirmava, a decepção de Hitler se


transformava em desprezo. No final, para marcar bem seu desdém, ele evitava
sistematicamente mencionar Franco em suas conversas ao pé do fogo. Para ele, o Caudillo
praticamente não existia mais.
***

Capítulo XII

O melhor dos seus aliados durante a guerra foi o próprio Hitler!

GOERING, durante seu interrogatório em maio de 1945.

Esta exclamação do antigo Reichsmarschall, nos primeiros dias de sua prisão, descreve a
tensão que sempre existiu entre Hitler e os chefes da Wehrmacht. Os desacordos contínuos e
trágicos começaram a nascer quando, pouco depois da tomada do poder, a Wehrmacht
constatou que o Estado nacional-socialista tinha feito suas raízes na massa proletária da
população em vez de buscar sua substância na classe dos intelectuais.

Em 1934, na ocasião do congresso do Partido, Hitler admitia esse fato sem rodeios declarando
aos generais reunidos:

"Os senhores me criticam porque, no Partido, ainda resta mais de uma coisa a ser organizada.
Eu admito! Os senhores têm razão! Mas estão se esquecendo que as classes abastadas da
população me faltaram completamente durante o período de luta pelo poder. Sou, pois,
obrigado agora a trabalhar de mãos dadas com meios que nada têm em comum com os
senhores. Contudo, estejam persuadidos de que estou tratando ativamente da reorganização
do Partido.

Mas, assim como a instrução de um corpo de oficiais para a nova Wehrmacht demanda anos,
precisarei de dezenas de anos para formar os novos chefes para minha organização política."

É preciso acrescentar que Hitler dispensou "intelectuais" durante seu período de luta com
muita facilidade. Muitas vezes chegou até a recusar rudemente suas ofertas de colaboração
por querer perseguir seu objetivo, que era erigir o edifício do Partido tendo como única base a
classe dos trabalhadores.
Nos anos que se seguiram a essa declaração, ninguém se deu conta da reorganização do
Partido, tal como Hitler havia prometido. A força e o poder dos "Gauleiters" e de outros
funcionários públicos importantes não fez senão crescer. Os primeiros inscritos no movimento
hitlerista gozavam de um prestígio muitas vezes incompreensível. Enquanto oficiais, velhos
funcionários públicos ou gente mais culta perdiam suas posições por veleidades de
independência, os "antigos" do Partido permaneciam solidamente pendurados na
manjedoura do regime, mesmo que cometessem faltas muito graves.

Esta situação provocava nos oficiais de certa idade um desapontamento penoso. Bem
depressa, esse ressentimento levou-os a se afastarem cada vez mais de Hitler. Ele não tinha
desculpas. Não podia mais sequer invocar que o Partido ainda sofria das doenças de adaptação
que atingem todo movimento revolucionário. Por sua vez, Hitler se afastava cada vez mais de
seu grande Estado-maior que, no começo, gozava de toda a sua confiança. Não há nenhuma
dúvida de que essa modificação de atitude se devia em parte a intrigas de poderosos do
Partido, temerosos da rivalidade do exército, por eles qualificado de camarilha reacionária.
Estas insinuações encontravam um terreno favorável na desconfiança inata de Hitler.

Os pontos de fricção eram numerosos. Os generais da Wehrmacht, sobretudo os antigos,


instantaneamente se ergueram contra sua pressa em alterar a organização do exército para
adaptá-lo às novas necessidades da política. Hitler qualificava de covardia e falta de decisão
esses conselhos de prudência. Os marechais von Blomberg e von Fritsch foram as primeiras
vítimas.

Até a declaração de guerra, Hitler dera toda liberdade aos generais nas questões de instrução
das tropas. Mas nem por isso deixava de se interessar pela evolução das diferentes armas. Só
citarei um pequeno exemplo que vivenciei pessoalmente.

Em 1936, estávamos sentados em volta dele no terraço de um café de Munique. Um vendedor


de jornais nos ofereceu revistas. Na primeira página de uma delas, estavam reproduzidos
duzentos pára-quedistas russos caindo do céu, soltando-se coletivamente. Caímos na
gargalhada pensando que se tratava de um enorme blefe, pois aqueles homens constituíam
alvos para um magnífico tiro ao pombo. Só Hitler permaneceu sério. Pediu para lhe trazerem
uma tesoura, recortou a foto e, sem dar uma palavra, botou-a no bolso. Sei que dois dias mais
tarde mandou chamar Goering e lhe submeteu um esboço de regulamento para a formação do
primeiro regimento alemão de pára-quedistas.

Depois dos primeiros sucessos que Hitler registrou na Polônia e em seguida na Noruega, sua
fé na própria infalibilidade só fez aumentar. Tornou-se de uma suscetibilidade inacreditável
quando alguém ousava ter uma opinião diferente da sua, reagindo brutalmente contra esse
"insulto ao seu gênio .

Contudo, no decorrer do inverno de 1939-1940, quando quis desencadear a ofensiva geral


contra a França, chocou-se uma vez mais com a opinião contrária dos chefes da Wehrmacht.
Explicaram-lhe que as dificuldades do terreno no Eifel e nas Ardennes excluíam praticamente
uma campanha de inverno e que, por outro lado, o grosso das tropas alemães não estava
ainda suficientemente instruído para fazer uma campanha. Hitler qualificou mais uma vez
essas reservas de covardia e fez um discurso sensacional em seguida a este incidente
(novembro de 1939).

Goering conhecia seu chefe melhor do que os outros. Nunca se chocava de frente com ele.
Também era da opinião de que aquela campanha de inverno seria desastrosa. Hábil como
era, evitou dar a conhecer sua opinião. Esperou tranqüilamente a antevéspera da data fixada
para o ataque geral para declarar a Hitler que a Luftwaffe não estava em condições de tomar
parte nas operações por causa das condições atmosféricas muito ruins. Repetiu esse joguinho
por três vezes. Finalmente, a ofensiva foi adiada.

Hitler, entretanto, tinha sido marcado com o dedo da sorte. Tinha sido ele que decidira a
ofensiva através das Ardennes para fazer saltar o ferrolho em torno do qual giravam os
exércitos franceses do Norte e do Leste. Contra tudo que se esperava, os acontecimentos lhe
deram razão. Este sucesso o embriagou definitivamente. A partir desta data, ele mesmo
passou a dirigir as operações e não aceitou mais nenhuma contradição às suas ucasses.

Ao mesmo tempo, sua desconfiança em relação à maior parte dos chefes da Wehrmacht só
fez crescer: chegou à obsessão. Uma noite, ouvi de sua boca as seguintes palavras: "O grande
Estado-maior do exército alemão é a última das lojas maçônicas que infelizmente eu me
esqueci de dissolver."

Mas estava furioso com a idéia de que não podia dispensar a competência desses mesmos
oficiais. E então ele se obstinava, tanto quanto fosse possível, em minimizar seus méritos. Os
louros dos generais o faziam se roer de inveja. Quando, um dia, um célebre escritor militar
ousou pretender na imprensa que o Führer tinha a sorte de estar cercado de um Estado-maior
tão competente, esta declaração foi interpretada como um insulto e toda atividade literária foi
proibida ao imprudente.
A Hitler não apenas faltava confiança vis-à-vis seu Estado-maior, como também sua
desconfiança o levava a intervenções até nos escalões inferiores. Retirava praticamente toda
iniciativa dos comandantes das grandes unidades. Quando submetia a seus colaboradores
planos de operação, ele não se contentava em esboçar as grandes linhas, mas elaborava a
execução até o detalhe. Seus planos só tinham que ser transmitidos, sob forma de ordens, aos
diferentes grupos de exércitos. É inútil destacar que essa ingerência contínua em todas as
fases das operações levou Hitler a uma estafa intelectual catastrófica. Os desastres que se
seguiram aos primeiros sucessos da campanha do Leste revelaram igualmente o quanto esse
método era funesto para a Wehrmacht.

Nas relações com os chefes de seus exércitos e na maneira implacável com que ele os cassava
e punia é que seu caráter desnaturado manifestava-se com mais desenvoltura. Não há
exemplo na História de uma "valsa" de marechais como aquela!

É preciso reconhecer que, para certos problemas estratégicos, Hitler tinha a surpreendente
faculdade de ver longe e correto. Muitas vezes encontrava soluções felizes para dificuldades
consideradas praticamente insuperáveis, e tudo isso simplesmente deixando falar seu bom
senso. Esse dom excepcional de reduzir os problemas mais complexos à sua mais simples
expressão não podia lhe ser contestado. Graças à sua memória fenomenal, adquirira uma
bagagem respeitável de conhecimentos militares. Com um ardor particular, lera todos os
estudos sobre a guerra motorizada que tinham sido publicados no mundo. Considerava-se
com justa razão o pai espiritual dos "blindados", no âmbito dos amplos movimentos
estratégicos.

Entretanto, a experiência da condução prática das operações lhe faltava por completo. Sua
teimosia em intervir constantemente na execução dos planos concebidos por ele conduziu a
Wehrmacht à catástrofe. O exemplo de Stalingrado mostra bastante as conseqüências nefastas
de sua obstinação. Cada vez que lhe sugeriam dar uma ordem de recuo ao VI Exército,
respondia orgulhosamente:

"Eu conheço o VI Exército e seu valoroso chefe. A fortaleza de Stalingrado resistirá graças ao
socorro que vou lhe enviar.

A ordem de resistir a qualquer preço foi lançada ao VI Exército, embora ele se sustentasse
apenas em algumas ruínas da cidade antes de ser engolido pelas estepes nevadas, sob os
ataques implacáveis das tropas russas.
O marechal Paulus enviara um apelo dramático no qual explicava que o abastecimento pelo ar
de seu exército cercado era impossível, e que todas as tentativas de aproximação feitas por
outros exércitos alemães tinham sido rechaçadas. Mas Hitler se agarrava à sua decisão. Não
queria admitir que a sorte tivesse se virado contra ele e que ele ia conhecer a derrota após
uma era de sucessos contínuos.

Essa obstinação brutal se manifestava em toda as suas ordens do dia enviadas às tropas. Sabe-
se com que crueldade implacável ele ameaçou, em 1944, mandar fuzilar qualquer soldado
que evacuasse uma posição sob a pressão do inimigo: "Cada cidade, cada vilarejo, deverá ser
defendido como uma fortaleza, até o último cartucho. Nem um pedaço de terra deve ser
abandonado ao inimigo."

Essa ordem teve conseqüências funestas sobre o moral das tropas, durante a invasão da
Europa pelos Aliados. Perto do final, Hitler precisava de um responsável por cada derrota e
por qualquer recuo. À medida que os reveses se abatiam sobre ele, a "consumição" dos
comandantes das grandes unidades se tornava assustadora. Calculou-se que em fevereiro de
1945, um comandante de exército podia dificilmente manter sua chefia durante mais de um
mês.

Essas medidas foram desastrosas para a estabilidade da condução da guerra. A tropa não
compreendia mais; sua confiança nos chefes sofria, conseqüentemente. Cada vez que Hitler
dispensava um de seus marechais, fazia-o com uma violenta crise de raiva. Seu descontrole
histérico impressionava de tal maneira estes últimos que eles mal podiam encontrar os
argumentos necessários para se justificar. Aqueles homens que mal acabavam de se livrar dos
alucinantes sofrimentos do front da Rússia, aqueles homens que tinham se habituado a
enfrentar a morte nas planícies geladas, estavam literalmente apavorados com a violência de
seu "Führer".

Porém, muitas vezes, Hitler não se contentava apenas em substituir seus generais e
marechais. Eu me lembro do caso do marechal Heim, um velho soldado que tinha provado sua
coragem em todos os campos de batalha.

No outono de 1942, o exército romeno sustentava o setor do Don. Como um violento ataque
russo estava sendo esperado, um corpo blindado, sob as ordens do general Heim, foi posto
em posição de sustentação na retaguarda das tropas romenas. Compunha-se de uma divisão
blindada romena que nunca estivera engajada e de uma divisão de Panzer alemães, já
terrivelmente maltratada do ponto de vista de efetivos e de material. O avanço russo se fez
com uma tal celeridade que provocou a debandada das tropas romenas, e o general Heim se
viu subitamente na presença de tanques russos superiores em número aos seus. Ele não podia,
portanto, executar o contra-ataque previsto e também precisou bater em retirada.

Hitler mandou convocar o general Heim ao seu QG para ouvir dele as causas de sua decisão.
Mas esse interrogatório jamais chegou a acontecer. Hitler contentou-se em enviar a todos os
generais da Wehrmacht uma circular na qual ele os informava de que Heim havia sido
dispensado por "conduta criminosa em relação às tropas que lhe tinham sido confiadas". Na
mesma circular, estava mencionado que o exsoldado tinha sido levado a um tribunal militar.

A instrução desse caso jamais ocorreu. Heim foi simplesmente encarcerado na prisão de
Moabit e, posteriormente, transferido para uma fortaleza onde permaneceu detido até o final
das hostilidades.

Depois do atentado de 20 de julho de 1944, a hostilidade de Hitler em relação a seu Estado-


maior ainda aumentou. Não lhe causava nenhum espanto o fato de que os autores que tinham
tentado dar um fim aos seus dias tivessem sido recrutados naquele meio. Hitler via no fato a
prova de que sua desconfiança era plenamente justificada. Eu me lembro do dia em que seu
pastor alemão lhe desobedeceu e ele zangou: "Olhe bem nos meus olhos, Blondy! Você seria
tão traidora quanto os generais do meu Estado-maior?"

Hitler via no fortalecimento constante das unidades SS um trunfo político na sua luta contra o
Grande EstadoMaior. Ele encorajava constantemente Himmler a escolher os melhores recrutas
para formar as novas divisões SS. Também neste caso, erros fenomenais foram cometidos. A
idéia de Himmler e de Hitler, de que a pureza racial e a formação política constituíam
elementos mais importantes para os combatentes do que um treinamento e uma instrução
sólidos, era simplesmente revoltante. Mas, quando Hitler chegou a confiar ao chefe das SS
todo o exército complementar e as divisões de "Volksgrenadiere", alçando-o ao comando de
um grupo de exércitos, não havia mais dúvida de que ele rompera definitivamente com a
tradição e os princípios militares que tinham feito a grandeza da Alemanha.

Mas, mesmo nas fileiras de SS, defecções inesperadas deviam se produzir. O tipo
representativo do condutor de homens nas unidades combatentes SS foi sem contestação
Sepp Dietrich que, de aprendiz de açougueiro, içou-se ao grau de general comandante de
exército.

Sepp Dietrich. Hitler apreciava em Sepp Dietrich seu tipo de lansquenet' cobrindo uma alma
ardente e orgulhosa sob uma aparência brusca e por vezes desajeitada. Gostava da
simplicidade de apresentação e de espírito que Sepp Dietrich mantivera, apesar de sua
ascensão fulminante nas fileiras dos milicianos negros. O Führer não ignorava que estes
últimos o cercavam de estima e veneravam sinceramente aquele que chamavam de forma
familiar de "o nosso Velho". Durante todo o tempo, houve desentendimentos entre Sepp
Dietrich e Himmler. Hitler explicava essa tensão pelo choque de dois temperamentos
fundamentalmente opostos. A seus olhos, o tenebroso chefe das SS não podia conviver bem
com o temperamento rígido e leal do comandante da "Leibstandarte" cujo único ideal era
servir como soldado.

Porém, no final da guerra, intrigas maquiavélicas abalaram a confiança ilimitada com que
Hitler agraciara Sepp Dietrich durante mais de vinte anos. Creio que Fegelein, o cunhado de
Eva Braun, contribuiu consideravelmente para semear a suspeita no coração de Hitler em
relação a Sepp Dietrich.

Depois dos reveses sofridos pelo V Exército blindado SS sob seu comando, em especial a
derrota retumbante ocorrida na Austria, no caminho do exército de invasão russo, Hitler

* Soldado alemão que servia na França como mercenário nos séculos XV e XVI. (N.T.)

163 Capítulo XII

perdeu toda a confiança no seu protegido. Em seu furor dos últimos dias, chegou a proibir o
uso da braçadeira especial nas unidades SS de que era composto aquele exército. Pouco
depois, num momento de depressão melancólica, Hitler deixou escapar na minha frente esta
condenação sem apelação de Sepp Dietrich: "Agora, até mesmo um de meus generais SS
passou-se para as fileiras dos traidores."

Perto do fim, Hitler tinha apenas uma única idéia: ganhar tempo. Durante as conferências com
seus colaboradores, só falava de assuntos que achava interessantes e raramente deixava os
outros tomarem a palavra. Perdera completamente o senso da realidade. Vivia dentro de um
mundo nebuloso, perseguindo sonhos e quimeras. Continuava acreditando na vitória com a
obstinação do doente que procura se convencer que vai se curar repetindo incansavelmente
esta afirmação.

Porém, Hitler mantinha o dom especial que usava para manter seu domínio sobre os
hesitantes. Afirmava sua fé na vitória final com tamanha segurança que aqueles que
chegavam até ele continuavam acreditando no milagre. Falava constantemente de armas
novas que iam expulsar os invasores do continente. Prometia que depois daquela guerra
terrível, a Alemanha seria reconstruída mais bonita do que antes.

Creio que estava efetivamente persuadido que armas de efeitos assustadores iam sair a
tempo dos laboratórios e das fábricas alemãs, para determinar a sorte da guerra. Ele nos
comunicava suas visões de horror. É verdade que ele previra aquele fim horrível de longa
data. Eu me lembro que, já em 1943, ele pronunciara estas palavras proféticas: "Que Deus me
perdoe os 15 últimos dias desta guerra, pois eles serão pavorosos!"

Mas, à espera daqueles meios do apocalipse, ele precisava ganhar tempo. O que consistia,
para Hitler, em declarar guerra total e lançar tropas sedentárias mal equipadas contra os
tanques inimigos.

Para frear o avanço dos invasores, mandou organizar um "maquis", sem se dar conta de que
uma guerra deguerrilha era dificilmente adaptável às condições geográficas da Alemanha. A
atividade insignificante do "Werwolf", de resto, provou-o. Eu ouvi da boca de testemunhas
cuja boa-fé não tenho razão para suspeitar, que Hitler acalentava a idéia de executar um
certo número de prisioneiros aliados. Esta medida teria provocado represálias e, no
pensamento de Hitler, teria dado um fim às deserções cada vez mais numerosas nas fileiras da
Wehrmacht.

Hitler justificava essas medidas tirânicas repetindo incansavelmente este provérbio: "Um
morto não pode mais se defender."

Por tanto tempo quanto existiu uma aparência de esperança, Hitler se defendeu. Ele resistia,
enviando ao massacre a flor da juventude alemã. Resistia, sem pensar que arrastava na sua
queda um povo inteiro ao qual prometera uma era de felicidade de mil anos.

***

Capítulo XIII

Tudo que resta depois da vida de um homem, são suas obras e a lembrança que ele deixou.
HITLER

Conheço uma foto na qual se vê Hitler e Eva Braun derramando chumbo dentro de um
recipiente de água fria. É uma antiga prática da Alemanha do Sul que consiste, na noite do
réveillon, em deixar cair o metal em fusão dentro da água. Ao se resfriar, ele endurece em
formas bizarras. Os operadores interpretam então essas formas segundo velhas convenções,
para adivinhar o que o ano novo vai lhes trazer. Essa foto inédita não deve servir de
argumento para pretender que Hitler era supersticioso; ela mostra sobretudo a maneira
familiar como o Führer do Terceiro Reich vivia com sua entourage mais próxima.

Hitler também tinha o hábito de jogar "cara ou coroa" quando não queria parecer impor sua
vontade a pessoas com quem tinha que lidar, ou quando ele mesmo estava indeciso sobre
uma questão secundária.

Esses gestos, que podem surpreender, não provam absolutamente que ele tinha uma natureza
de jogador. Quando, por exemplo, no período antes da guerra, Hitler e alguns habitués de seu
círculo combinavam fazer um passeio de carro ou uma excursão na montanha, e as
preferências estavam divididas, ele tinha o hábito de pegar uma moeda e jogá-la no ar; o lado
que ela caísse decidiria então o que ia ser feito. Era sempre a águia da moeda que era
interpretada como representando o "afirmativo". E essas decisões na sorte não eram mais
discutidas por ninguém.

Durante a guerra, não vi mais Hitler agir assim, nem mesmo nas decisões sem importância.

Rumores correram de que o Führer se deixava aconselhar por astrólogos quando era véspera
de ações importantes. Confesso que durante nossas conversas, ele nunca mencionou tais
práticas, e jamais notei o menor indício. Ele rejeitava sempre com veemência a idéia de que a
sorte dos homens dependia do astro ou da constelação sob a qual eles tinham nascido, e
desmentia essa tese demonstrando que pessoas nascidas no mesmo dia, no mesmo lugar e na
mesma hora nem por isso tinham destinos idênticos. Ele via a prova mais evidente no caso de
gêmeos. É verdade que no começo de sua atividade de agitador público, quando ainda estava
muito longe do poder, tinha ficado fortemente impressionado com as previsões que uma
cartomante de Munique lhe tinha feito. Parece que o futuro que ela lhe predissera tinha se
realizado ponto por ponto. Mas Hitler não falava dessa coincidência senão com ironia, e a
considerava uma brincadeira. Muitas vezes eu o ouvi dizendo que era preciso proibir esses
charlatães profissionais de praticar suas mistificações. Rejeitava da mesma maneira a idéia de
que certos dias da semana, certos números podiam ter uma influência sobre nossas ações e
gestos. Hitler, para tomar uma decisão importante, tinha o hábito de sopesar cuidadosamente
todo o alcance e calcular com cuidado todos os fatores que ela englobava. Para determinar o
momento em

que essa decisão devia se traduzir em ato, deixava-se guiar unicamente por sua intuição. Eu
estimo que Hitler - que tive a ocasião de examinar de perto durante longos anos era um
espírito frio e calculista na proporção de 80 e o resto, nele, era apenas intuição.

Assim como emanava de Hitler um poder magnético que agia sobre seus interlocutores, da
mesma maneira seu subconsciente recebia os impulsos de seu espírito intuitivo. Com muita
freqüência, quando, contra a opinião de todo mundo, ele antevira uma coisa e que, para o
espanto de todos, o inacreditável se produzira, dizia rindo: "Vejam vocês, mais uma vez eu
tive um bom faro!"

Esses pressentimentos, essas advertências interiores, desempenharam um papel muito


particular nos atentados que foram dirigidos contra ele. Para melhor esclarecer seu alcance, é
interessante voltar às principais tentativas de assassinato de que ele pode ter sido vítima.

Antes do atentado do dia 9 de novembro de 1939, no "Bürgerbrãukeller", em Munique, Hitler


nunca tinha considerado a possibilidade de tal eventualidade. Mas, a partir desta data, essa
evocação passou a ser assunto freqüente nas conversas. No total, Hitler me enumerou sete
tentativas de assassinato dirigidas contra sua pessoa.

Neste número estava incluída a intenção que Roehm tivera de se livrar dele. O organizador
das SA, no dizer de Hitler, fora um anarquista que, a qualquer preço e não importa qual meio,
queria tomar o poder. Roehm, uma natureza de lansquenet, não teria de forma alguma se
inspirado no ideal nazista e na idéia de criar uma ordem nova, sendo seu objetivo único o de
se tornar o comandante da Wehrmacht. Roehm tinha a intenção de afastar brutalmente do
comando não apenas o marechal von Blomberg e alguns outros generais, como não teria
hesitado, se a ocasião se apresentasse, em visar a própria pessoa de Hitler.

Blomberg tinha sido informado por seu serviço de informações das intenções de Roehm e
tinha prevenido Hitler de que Wehrmacht se revoltaria diante de tal modificação no
comando. A tensão entre o exército e o Partido tornara-se extrema. A Alemanha estava
ameaçada de guerra civil.

Quando Hitler teve as provas indiscutíveis dos preparativos criminosos de seu adjunto, agiu
com uma celeridade brutal para afastar o perigo. Ele me confiou que obteve provas de que
Roehm tinha também conspirado com o estrangeiro, e que o general von Schleicher tinha sido
apenas um instrumento dócil nas mãos dele: "Foi graças à minha ação rápida e implacável
que evitei uma desgraça muito maior do que o desaparecimento de um punhado de homens
que qualquer Suprema Corte da Alemanha teria tido o dever de condenar como traidores da
pátria."

Freqüentemente, Hitler observava de bom humor que sua estrela nem sempre tinha sido tão
favorável quanto no caso de Roehm, no qual ele fora prevenido a tempo da ação organizada
contra ele.

Ele nos contou que, antes da tomada do poder, um homem tinha tentado abatê-lo usando um
revólver, no hall do Kaiserhof, enquanto ele tomava chá. Uma outra vez, os sanduíches que
tinham sido preparados para ele nesse mesmo hotel para uma viagem tinham sido
envenenados. Ele nos disse textualmente: "Felizmente eu estava sem fome nesse dia. Passei
os sanduíches para o meu motorista Schreck, que sentiu na mesma hora dores violentas e
todos os sintomas de envenenamento. Só foi salvo graças a uma intervenção enérgica. Com
meu estômago delicado, aqueles pãezinhos, passados no cianureto, certamente teriam me
feito ir desta para a melhor. O bravo Schreck, que tinha uma constituição particularmente
robusta, teve a felicidade de se safar."

Outra vez, durante uma reunião pública, Hitler notara que um homem sentado na frente dele,
na tribuna, se encontrava num estado de extrema agitação. Seu comportamento pareceu de
tal maneira bizarro que Hitler pressentiu um perigo e mandou que revistassem o indivíduo
imediatamente. E descobriu-se que ele era portador de uma bomba cuja explosão teria feito
desmoronar a sala toda.

Durante o inverno de 1941-1942, outro agressor foi descoberto por Hitler por causa de sua
atitude estranha. Era um suíço em quem Hitler vinha reparando cada vez que descia do
Berghof para Berchtesgaden. Tomado de suspeitas, precipitou-se para ele para interrogá-lo. O
homem, intimidado com aquela ação imprevista, balbuciou algumas desculpas e pretendeu
querer entregar a Hitler uma carta pessoal. Hitler lhe arrancou das mãos o envelope e
constatou que ele continha somente uma folha em branco. O homem confessou então que o
espreitava há semanas com a intenção de abatê-lo a tiros de pistola.

Cada vez que o Führer nos relatava esses atentados de que quase fora vítima, reconhecia ter
sido privilegiado por uma sorte insólita. Mas destacava também que seu faro extraordinário o
tinha ajudado muito para afastar aqueles perigos mortais. Os inspetores da Kripo, que o
acompanhavam em seus deslocamentos, eram cobertos de sarcasmos por Hitler toda vez que
sua própria intuição lhe evitava a morte. É inútil dizer que os guarda-costas tratados dessa
maneira renunciavam por sua própria vontade ao privilégio com que tinham sido honrados, e
retornavam às fileiras.

No atentado dentro do Bürgerbrãukeller de Munique, os conspiradores tinham preparado seu


golpe com uma habilidade diabólica. A bomba fora colocada de tal maneira que Hitler teria
sido inevitavelmente esmagado sob o teto, pois este desabou no local preciso em que se
encontrava Hitler alguns instantes antes. Mais uma vez, sua intuição divinatória o havia salvo.
Embora ele tivesse o hábito, nos anos precedentes, de apertar a mão individualmente de cada
um de seus antigos companheiros de luta, Hitler não fez este gesto de camaradagem na noite
do atentado. Ele me explicou mais tarde: "De repente, senti em mim uma necessidade de
voltar para Berlim naquela mesma noite. No fundo, não havia para isso nenhuma razão
peremptória, dado que nada de importante me aguardava na capital; mas eu escutei aquela
voz interior me dizendo para fugir. Se eu tivesse, como de hábito, saudado meus
companheiros da primeira hora, como 'eu tinha a intenção de fazer no começo, meus inimigos
teriam indiscutivelmente conseguido me eliminar. A explosão aconteceu 15 minutos depois da
minha partida."

Eu estava com Hitler dentro do trem que nos levava para Berlim na noite em questão. Ele
estava espirituoso e muito animado, como de costume depois de uma reunião bem-sucedida.
Entre nós se encontrava também Goebbels, alegrando a conversa com seu espírito cáustico.
Nessa época, o círculo de Hitler estava ainda autorizado a consumir álcool, de maneira que
todo o trem especial estava banhado numa atmosfera de satisfação comunicativa. O trem
parou em Nuremberg por alguns segundos para permitir saber as notícias e emitir algumas
mensagens urgentes. Era Goebbels o encarregado desta tarefa. Quando ele voltou para o
vagão-sala de Hitler, comunicou-lhe o que se passara em Munique depois de sua partida.
Hitler, incrédulo, de início não captou, mas finalmente levou a informação a sério diante da
expressão desfeita do pequeno Goebbels. Quando não teve mais dúvida a respeito da
autenticidade da notícia, o rosto de Hitler adotou uma máscara voluntária e dura. No seu
olhar dançava uma chama mística que eu conhecia dos momentos de grandes decisões. Com
uma voz cortante e rouca de emoção, ele exclamou: 'Agora eu estou inteiramente
tranqüilizado; o fato de ter deixado Bürgerbrau mais cedo que de costume é a confirmação
de que a Providência quer que meu destino se cumpra.

Estávamos todos pregados em nossas cadeiras devido à emoção. Aquelas palavras agiram
sobre nós como a apoteose de um drama de aventuras alucinantes.

Mas Hitler recuperou rapidamente sua concentração e passou à ação. Mandou buscar notícias
dos feridos e encarregou Schaub, seu adjunto pessoal, de cuidar das vítimas. Depois Hitler
emitiu hipóteses sobre as origens possíveis dos conspiradores. Schaub, que já havia bebido
muito, atraiu a fúria de Hitler com uma observação inconveniente que fez durante uma
discussão. Hitler botou-o literalmente na rua. É inútil acrescentar que até Berlim, a atmosfera
dentro do vagão permaneceu bastante tumultuada.

Depois desse atentado, as medidas de segurança foram reforçadas, mas ainda não chegavam
ao ponto de se proceder à revista das pastas das pessoas que entravam no QG. Como todo
oficial que vinha para "trazer relatório" carregava uma pasta, foi fácil para o conde
Staufenberg introduzir uma bomba na sala de conferência, naquela memorável manhã de 20
de julho de 1944. Staufenberg colocara-a contra o pé da mesa, bem perto de Hitler. Deixou
em seguida a sala sob o pretexto de que ia telefonar. Nesse momento, a explosão aconteceu.
Diversas pessoas que cercavam Hitler morreram. Ele mesmo sofreu uma violenta comoção.
Teve os dois tímpanos perfurados e ficou com algumas equimoses pela violência do choque
com o qual foi projetado contra a mesa.

Nessa época, ele me convidava sozinha para compartilhar suas refeições. Tendo em vista o
drama que acabara de se desenrolar, eu estava persuadida de que o almoço não ia acontecer.
Mas, contra toda expectativa, fui convocada para as três horas da tarde. Com o coração
ansioso, fui até ele esperando o pior. Quando entrei no seu quarto despojado do bunker, que
mais parecia uma célula monacal do que uma sala de refeição do homem mais poderoso da
Alemanha, ele se levantou com dificuldade de sua poltrona e me deu a mão com um sorriso
forçado. Eu percebia que seus olhos me escrutavam para ler nos meus traços a impressão que
ele me causava. Confesso, para minha surpresa, que seu rosto parecia fresco e calmo sob a luz
ofuscante das lâmpadas elétricas. Ele me contou como havia sido ferido: seu braço direito
tinha sido esmagado contra a mesa e alguma coisa pesada lhe caíra sobre os rins sem que ele
pudesse saber o quê. Estava ainda muito surpreso com a rapidez com que o drama tinha se
desenrolado e assegurava rindo que um atentado a bomba constituía uma maneira fácil de
passar da vida à morte.

Ele me descreveu em seguida o susto de Morell, seu médico pessoal, que ele tivera que
chamar à razão para que lhe desse os primeiros socorros. Eu estava surpresa de ver que os
cabelos de Hitler, normalmente malcuidados e caindo em mechas sobre a testa, estavam bem
penteados. Perguntei-lhe se ele já tivera tempo de chamar seu barbeiro. Ele me explicou, me
tomando a mão: "Veja, toque no meu cabelo; eles estão ligeiramente queimados e é por isso
que estão tão bem arrumados."

Depois, com muita desenvoltura, Hitler me explicou a maneira como o atentado acontecera.
Primeiro acreditara que uma bomba tinha sido atirada de fora, pela janela: "Tenho uma sorte
inacreditável", ele me disse. "Foi o pesado pé da mesa contra o qual a pasta foi colocada que
aparou os estilhaços que eram destinados a mim. O estenógrafo, sentado do meu lado, que
fazia o registro da sessão, teve as duas pernas arrancadas. De fato, eu tive uma sorte
extraordinária! Se a explosão tivesse ocorrido na grande sala do bunker e não na construção
de madeira, tenho certeza de que todos os assistentes teriam sido mortos. Fato curioso, já há
algum tempo eu vinha pressentindo que um acontecimento extraordinário ia se produzir; eu
sentia que um perigo pairava acima de mim e já tinha dado a ordem de reforçar a vigilância,
está lembrada?"

Com efeito, no dia 19 de julho, Hitler me parecera muito inquieto e nervoso. Como eu lhe
perguntei por que estava tão preocupado, ele me respondeu: "Espero que nada vá me
acontecer." Em seguida, após um longo silêncio: "Seria o cumulo se alguma coisa desagradável
acontecesse agora. Não posso me permitir cair doente, pois não há ninguém aqui para me
substituir na situação difícil que a Alemanha atravessa."

Hitler me pediu para ir ver a sala de reunião onde a explosão tinha ocorrido e me fez trazer o
que restava de seu uniforme depois do atentado. As calças estavam completamente rasgadas;
só o cinto tinha ficado inteiro. Nas costas de sua japona, um grande pedaço de tecido tinha
sido arrancado. Hitler considerava aquele uniforme um troféu e mandou que o enviassem ao
Berghof à srta. Braun com a ordem de que fosse guardado cuidadosamente.

Ele ainda me descreveu a maneira como seus empregados tinham reagido depois da explosão.
Linge, o mordomo, espumava literalmente de raiva, enquanto o criado de quarto, Harndt,
soluçava de pavor.

A visita do Duce estava prevista para a tarde do dia 20 de julho. Eu estava convencida, quando
fiz a proposta, que Hitler ia adiar a recepção para mais tarde, mas, para minha surpresa, ele
me respondeu com presteza: "Claro que não, nem penso em me esconder! É preciso que eu o
veja. Esteja certa de que a propaganda estrangeira ficaria satisfeitíssima de poder espalhar as
mentiras mais infames."

Imediatamente depois do almoço, Hitler convidou o Duce para vir ao seu escritório. Depois de
uma curta entrevista, ele o conduziu até a construção onde a explosão ocorrera e lhe explicou
o acontecimento em detalhes.

Entretanto, o autor do atentado tinha sido descoberto. O telefonista de serviço na central


notara que o conde Staufenberg tinha ido até a sala de reunião com uma pasta e que tinha
saído imediatamente depois da chegada de Hitler, com as mãos vazias. Foi possível esclarecer
também que ele não tinha telefonado e que, logo depois da explosão, disparara para o campo
de aviação, onde um avião o esperava.
Quando a hora do chá nos reuniu nos aposentos de Hitler, a notícia da prisão do conde
chegou. Hitler primeiro ficou furioso com a idéia de que Staufenberg pudesse ter chegado a
Berlim; mas, assim que lhe disseram que era graças a esta circunstância que todos os
membros do complô tinham sido presos, ele exclamou alegremente: "Não tenho mais nada a
temer. A evolução que esse acontecimento está tendo deve ser considerada como a garantia
de que a partir deste momento a Alemanha está salva. Enfim, estão em meu poder estes
porcos que, há anos, sabotam minha obra. Há meses venho chamando a atenção de
Schmundt (seu primeiro ajudante-de-ordens e chefe do serviço central de pessoal da
Wehrmacht) sobre minhas suspeitas; mas ele, com sua pose de Parcifal, não acreditava em
nada. Agora eu tenho a prova de que todo o Estado-maior geral está contaminado. Vocês
verão que vai ficar provado que Kronprinz foi o instigador de todo este caso."

No dia seguinte, Hitler mandou arrancar o assoalho de seu escritório e do seu quarto de
dormir para verificar se havia uma bomba escondida. A partir de então, todo oficial que
entrasse no seu QG com uma pasta era submetido a uma revista séria.

Era estritamente proibido depositar uma pasta nos locais onde ele se encontrava. A partir
daquele momento, também, todos os alimentos destinados à cozinha de Hitler passaram a ser
cuidadosamente examinados em um laboratório SS. Na sua raiva impotente, mandou destruir
igualmente todos os presentes que lhe chegavam sob a forma de víveres, tais como caviar
(que ele amava), pralinés, frutas, doces etc. Hitler, doravante, tornou-se presa de uma
verdadeira psicose de perseguição. Para se assegurar do devotamento completo de sua
cozinheira, ele a cobria de gentilezas, chegando até a convidá-la para nossos chás das cinco
horas.

Porém, o bom humor de Hitler e a feliz condição física em que se encontrava depois do
atentado não deviam durar. A partir do dia seguinte, começou a se queixar de dores nos
ouvidos e nas costas. Graças a uma grande força de vontade, conseguiu manter seu programa
diário até 18 de setembro. Foi então que ele desabou. Foi sacudido por uma crise
particularmente aguda de cólicas de estômago e teve que ficar de cama. Ao mesmo tempo,
uma icterícia se declarou, e com isso ele teve que guardar o leito durante três semanas.

Em março de 1945, correu o rumor de que um novo atentado estava em preparação. As


medidas de segurança foram ainda mais reforçadas. A partir das 8 horas da noite era proibido
entrar no parque que cercava o bunker da Chancelaria. As sentinelas, dotadas de cães policiais,
receberam ordem de fazer fogo sobre qualquer pessoa suspeita. As portas e janelas das casas,
nas quais acantonava seu destacamento de guarda e que ficavam em volta do parque do lado
da Hermann-Goering-Strasse, foram condenadas. Restava apenas um único portal de acesso,
muito estreitamente vigiado. Os visitantes eram acompanhados por SS quando entravam no
QG, e inspeções freqüentes e imprevistas asseguravam que nenhum indesejado transpusesse
indevidamente o umbral.

O atentado de 9 de novembro de 1939, do qual Hitler escapara por milagre, já o havia


definitivamente convencido de sua "missão". Esta idéia se espalhara em quase todas as
camadas da população alemã. Adquirira tamanhas proporções que, mais tarde, a confiança em
Hitler subsistiu, mesmo diante de seus fracassos mais retumbantes.

A fé no Führer estivera prestes a se evaporar durante a retirada desastrosa da Wehrmacht na


Rússia. Mas o atentado de 20 de julho de 1944 agiu sobre o povo como um estimulante; a
propaganda de Goebbels soube explorar esse estranho acontecimento com uma competência
extraordinária. O próprio Hitler se sentiu então transformado. Proclamava-se abertamente o
Redentor da Alemanha.

Porém, eu não creio que a massa da população tenha conservado por ele a veneração de
antes. A população, no seu desespero, agarrava-se a ele, na verdade, como um afogado à
bóia de salvamento.

Hitler rejeitava todos os conceitos filosóficos que não se apoiavam sobre o materialismo
integral. Proclamava que o papel do homem terminava com sua morte e se permitia os mais
corriqueiros jogos de palavras quando falava da sobrevivência em um Além melhor. Muitas
vezes me perguntei por quem, nessas condições, ele podia se sentir chamado a cumprir uma
missão sobre a terra. Da mesma maneira, nunca compreendi por que ele normalmente
terminava seus grandes discursos com uma invocação ao Todo-Poderoso. Estou convencida
de que, se ele agia assim, era unicamente para angariar as simpatias da população cristã do
Reich. Mais uma vez ele encenava uma comédia pavorosa.

Cada vez que a conversa tratava da vida espiritual, ele se pronunciava em termos cínicos
contra o cristianismo, cujos dogmas combatia com uma violência ignóbil. Sua convicção se
resumia nesta frase que ele repetia freqüentemente: "O cristianismo retardou o mundo dois
mil anos no seu desenvolvimento natural. A humanidade foi escandalosamente explorada e
privada de seus direitos mais absolutos. A fé num melhor Além afastou o homem das
realidades terrestres e dos deveres que ele contrata com a humanidade desde seu
nascimento."
Contudo, ele professava uma verdadeira admiração pelas irmãs religiosas que trabalhavam
como enfermeiras em hospitais. Elogiava-as constantemente, dizendo: "Pelo fato de serem
liberadas de todos os interesses materiais, elas podem se dedicar com um devotamento total
aos cuidados dos doentes. Não há melhores enfermeiras do que as irmãs dos hospitais."

A história da Virgem Maria, tal como é apresentada pela Igreja, era para Hitler um assunto
favorito de gracejo. Seu espírito cáustico apreciava fazer um paralelo entre a fé e a razão.
Devo dizer que suas demonstrações cínicas não deixavam de impressionar os mais crentes.
Hitler não se surpreendia com a tenacidade com a qual as pessoas de idade ainda estavam
ligadas à fé de seus ancestrais. "Mas a juventude", exclamava com orgulho, "felizmente está
longe dessas bobagens". Criticava sobretudo na Igreja sua atitude estática, oposta a qualquer
evolução revolucionária: "A Igreja romana não compreendeu o que Lutero (que ele
considerava um de seus precursores) pretendia realizar com sua reforma." "Reformar", ele nos
explicava freqüentemente, "quer dizer renovar constantemente, encontrar formas novas de
vida e não se retardar em caminhos batidos. A Igreja Católica omitiu-se ao não se dar conta
da evolução normal da humanidade e não assegurar a esta última condições de vida
melhores".

Na Igreja Protestante ele criticava não ter explorado a maravilhosa iniciativa de Lutero e ter
recaído em uma inércia preguiçosa. "A guerra das Igrejas", afirmava, "provocou uma cisão que
teve conseqüências funestas para a humanidade. Se a Igreja Católica não tivesse abusado de
sua influência ingerindo-se constantemente nas questões de Estado, não haveria oposição
para que fosse tolerada em suas práticas religiosas".

Hitler se dava conta perfeitamente de que os homens simples, que vivem mergulhados no seu
trabalho de todos os dias, aspiram instintivamente a uma forma de sobrenatural que os eleve
acima do terra-a-terra de suas existências. Esta necessidade inata foi admiravelmente
explorada pela Igreja Católica. Ela soube atrair os homens pelo caráter místico de seu culto, a
maravilhosa arquitetura de suas catedrais, a elevação de sua música sacra e os ritos
majestosos que se desenvolvem na embriagadora atmosfera do incenso.

Hitler era um admirador do gênio de organização da cristandade, que conseguiu construir


igrejas de todos os estilos até nos menores vilarejos e dotá-las muitas vezes de tesouros
consideráveis.

Achava contudo que a Igreja Protestante dava uma impressão de pobreza na sua simplicidade
natural. Durante a recepção de ano-novo na Chancelaria, a majestosa aparição do núncio
Pacelli, que esmagava literalmente os representantes da Igreja Protestante com sua
personalidade extraordinária, servia-lhe freqüentemente de comparação entre as duas
tendências.

"A mística da Igreja Católica", dizia Hitler, "convém admiravelmente à natureza dos alemães
do sul, ao passo que o protestantismo, com seus templos de linhas severas, se adapta à forma
do cristianismo nórdico". A Igreja Católica, segundo ele, dava provas de uma competência
notável na escolha de seus servidores. Os padres nos vilarejos são quase todos de origem
camponesa, o que cria entre eles e a população um elo poderoso e natural.

Sempre que Hitler vinha falar do celibato imposto aos padres católicos, zombava desse
sacrifício suplementar. Afirmava, por outro lado, que só um pai de família, que conhece as
dificuldades e os encargos que uma família impõe, pode verdadeiramente ser juiz dos deveres
e dos direitos que ela comporta. Não se dava conta de que pensando assim entrava em
contradição consigo mesmo, dado que tinha o hábito de proclamar que o casamento
constituía para ele um obstáculo sério na realização dos deveres que o ligavam a seu povo.

Hitler era suficientemente habilidoso para compreender que não podia suprimir com
brutalidade a sustentação moral que a fé representava. O programa do Partido estipulava
uma liberdade religiosa absoluta para os membros. Muitos dos pertencentes ao Partido não
tinham deixado a Igreja e permaneciam fiéis a suas crenças. Hitler sabia que muitos alemães
tinham feito o gesto teatral de abandonar sua confissão, mas guardavam dentro de si uma fé
intacta que lhes assegurava um sustento espiritual nas duras provações da guerra. Sabe-se que
Bormann tinha realizado uma campanha cínica contra a cruz, símbolo do cristianismo, nas
escolas e nos lares da Alemanha do sul, sobretudo. Desencadeou assim uma verdadeira
revolta pela liberdade de culto. Sob as instâncias de Hitler, teve que retroceder. Seu fanatismo,
aliado a um desconhecimento total dos imponderáveis da alma humana, não compreendeu
como aquela campanha anti-religiosa era odiosa numa época de tantas vicissitudes morais.
Hitler era muito mais clarividente; sabia que, nesse domínio, não se podia arrancar alguma
coisa do homem sem substituíla por outro ideal. Não sabia ainda o que ofereceria a seu povo
em troca do pensamento cristão, mas estava persuadido de que, cedo ou tarde, encontraria a
inspiração de uma fórmula feliz. Diante de nós, ao pé do fogo, dava livre curso à sua
imaginação:

"Mais tarde, quando imensas cidades operárias surgiram da terra, será necessário prever
palácios onde batismos e casamentos poderão ser celebrados com a mesma pompa que a da
Igreja. A Casa do Partido, na menor das aglomerações, deverá comportar um hall
luxuosamente decorado, reproduzindo a atmosfera misteriosa das igrejas." Hitler tinha como
certo que as mulheres desejam que seus casamentos sejam celebrados com uma cerimônia
solene. Reconhecia que os casamentos civis, tais como eram praticados na sala poeirenta de
uma prefeitura, não bastavam para dar a este ato toda a dignidade que ele merecia. Na sua
opinião, os casamentos deveriam ser celebrados coletivamente, para conferir uma atmosfera
ainda mais impressionante à cerimônia. Ele nos descrevia em detalhes como imaginava o
desenrolar dessas manifestações, durante as quais dezenas de casais se uniriam pelo resto da
vida num cenário grandioso imerso na harmonia de uma importante orquestra sinfônica.
Admitia que ainda tinha muito o que aprender sobre os ritos da Igreja quanto a cenários para
suas manifestações nazistas. Tinha inveja da imensa influencia que a Igreja Católica exercia
sobre as multidões com suas cerimônias faustosas. Ele declarou um dia textualmente:
"Devemos fazer com que os Congressos de Nuremberg sejam organizados com o mesmo
brilho de uma festa da Igreja Católica."

Hitler permaneceu até o final membro desta última. Pagava regularmente seu imposto do
culto. Contudo, decidira abandoná-la a partir da vitória.

Esse ato teria, aos olhos do mundo, o valor de um símbolo. Para a Alemanha, ele marcaria o
fim de uma página de história. Uma era nova ia se abrir para o Terceiro Reich.

***

Capítulo XIV

Não tenho inimigos; se descubro que tenho, eu os suprimo.

HIMMLER

Esta sentença que o Reichsführer SS Himmler pronunciou em um dia de bom humor não se
aplica somente a ele, mas a toda política nacional-socialista. O mundo civilizado ficou
consternado com as revelações atrozes dos campos de concentração. E contudo, ainda hoje
em dia, há alemães de boa-fé que se perguntam: como tais atrocidades podem ter sido
possíveis? Outros ainda estão convencidos de que esses procedimentos bárbaros foram
cometidos sem a concordância e fora do conhecimento de Hitler.

Posso afirmar com certeza que Hitler era exatamente instruído por Himmler sobre tudo o que
se passava dentro dos campos de morte lenta. Todas aquelas atrocidades eram por ele
consideradas como repressões necessárias à estabilidade e ao desenvolvimento de seu regime.
Mas, neste domínio como em tantos outros, ele protegia cuidadosamente sua boa reputação.
Julgava inadmissível que seu nome pudesse ser misturado a fatos e gestos indignos da
humanidade que se desenrolavam naqueles locais. Foi com relação a esta questão que
indiscutivelmente desempenhou seu papel mais hipócrita e que explorou a boa-fé de um
grande número de partidários, com um cinismo estarrecedor.

Note-se que todas as conversas entre Hitler e Himmler ocorriam em tête-à-tête, por trás de
portas cuidadosamente fechadas. Somente Bormann estava autorizado a assistir a elas vez
por outra.

Quando, durante conferências, relatavam-se a Hitler os rumores que circulavam sobre as


execuções em massa e as crueldades perpetradas nos campos de concentração, ele evitava
responder e passava imediatamente a outro assunto. Só raramente o ouvi dar respostas
evasivas. Ele jamais teria admitido diante de testemunhas a dureza desumana de suas leis de
repressão.

Um dia, generais foram a Himmler fazer uma advertência a respeito das crueldades cometidas
na Polônia. Para minha surpresa, ele se recusou a acatá-la, assegurando com veemência que
não fazia senão executar as ordens do Führer. Mas acrescentou imediatamente:

"A pessoa do Führer não deve de forma alguma ser manchada com esses fatos; sou eu,
Himmler, que assumo publicamente toda a responsabilidade."

É evidente, de resto, que nenhum membro do Partido, nenhum potentado SS, por mais
influente que fosse, teria ousado tomar tais medidas sem ter sido antecipadamente
autorizado por Hitler.

Este último sabia perfeitamente que os métodos da Gestapo pesavam duramente sobre o
povo e que só eles lhe permitiam sufocar no nascedouro todas as veleidades de
independência. Não apenas ele aprovava as ações desumanas cometidas por seus homens de
confiança, como também tinha sido indiscutivelmente o inspirador. Ele era aliás de uma
insensibilidade total diante do cortejo de dores e provações que a guerra engendrava. As
misérias e as destruições que assolavam seu próprio povo o deixavam frio. Não foram poucas
as vezes que ele nos disse com um muxoxo cínico: "Devido a catástrofes da natureza, milhões
de seres humanos morrem, e nem por isso pára a vida cotidiana. Nenhuma das provações da
guerra e perdas de vidas humanas contam, à luz dos acontecimentos históricos." Em outro
dia, como chamavam sua atenção para as perdas enormes que a Wehrmacht sofrera em
número de jovens oficiais, Hitler respondeu sem hesitação: "Mas esses jovens não estão aqui
para isso?"

A brutalidade cega com que Hitler tratava seus oficiais superiores era igualmente significativa.
É preciso não esquecer que todas as condenações à morte foram assinadas por ele
pessoalmente.

Pode-se imaginar o quanto de ódio essas medidas disciplinares podiam suscitar no comando
da Wehrmacht. Eu me lembro da reação violenta provocada pela condenação à morte do
general que abandonou a cidade de Feodosia ao inimigo, sem ter recebido ordem. Os
defensores de Cherbourg e de Koenigsberg foram igualmente para o paredão de execução por
terem cedido diante de um inimigo superior. Todas essas sentenças foram pronunciadas sem
inquérito sério a respeito do grau de culpa dos interessados. Foram todas executadas a mando
do próprio Hitler.

Por conta de sua determinação de lutar "até meio-dia e cinco", como ele tinha o costume de
dizer, constituiu tribunais sumários, dotados de um pelotão de execução. Esses organismos se
deslocavam atrás das tropas engajadas. Pronunciavam e punham em execução sentenças de
morte contra oficiais e homens de tropa cujo único crime tinha sido duvidar da vitória alemã.
Cito também o decreto que tornava responsável toda uma família por crime de traição
cometido por um de seus membros. Sob o pretexto de desestimular os derrotistas, instaurou-
se na Alemanha um assustador regime arbitrário. Mulheres, velhos, crianças foram presos,
desapossados de seus bens e encarcerados. Esse método constituía um verdadeiro crime
contra o povo alemão. Hitler não conhecia nenhum limite quando se tratava de eliminar
pessoas suspeitas ou politicamente comprometidas. O método que utilizou para se livrar de
todos os que tomaram parte no complô de 20 de julho demonstra um tal sadismo que ficamos
confusos diante de tamanha bestialidade. O fato de pendurar em ganchos, como os animais de
açougue, generais cujo passado tinha sido irrepreensível até aquele dia, e o fato sobretudo de
mandar filmar essas cenas para projetá-las diante dos estados-maiores a título de exemplo,
provam uma tal crueldade, uma tal barbárie que só a inconsciência de um tirano pode
conceber.

Na condução da guerra, Hitler só sonhava com destruições. Nos seus discursos de propaganda
voltavam continuamente expressões como: apagar cidades, reduzir o inimigo a nada etc.
Durante o discurso que ele nos fez na Wolfsschanze, no dia do desencadeamento da
campanha do Oeste, Hitler arremedou a atitude de Frederico, o Grande, antes da batalha de
Leuthen. Terminou com um grande gesto teatral exclamando: "A aurora da última guerra entre
a Alemanha e a França acaba de nascer, pois eu destruirei completamente nosso inimigo
hereditário. Entrevejo seu aniquilamento total."
Mas os sentimentos reais de um homem se manifestam melhor ainda nos pequenos fatos da
vida cotidiana do que nas grandes ocasiões. Citarei um incidente de que fui vítima, incidente
fútil mas que é bem apropriado para revelar o cruel rancor de que Hitler era capaz.

186

Doze anos junto de Hitler

Uma noite, durante o chá habitual, Hitler havia repisado para nós mais uma vez seu tema
favorito: o caráter nocivo do álcool e da nicotina. Em especial, havia feito violentas críticas à
intendência do exército que, tendo em vista a atribuição de rações de cigarros, havia
transformado em "fumantes" quase todos os combatentes. Eu lhe expliquei que era o tédio
das longas vigílias nas trincheiras ou as estadas prolongadas dentro dos abrigos antiaéreos que
incitavam todo mundo a fumar mais. Esta reflexão já me valera um de seus olhares
reprovadores de que Hitler tinha o segredo. Mas ele continuava a nos explicar, citando
exemplos, que o abuso desses dois venenos tornava o espírito obtuso e lento. Tomada por
uma furiosa vontade de contradizê-lo, eu lhe respondi que o professor H., que se entregava de
corpo e alma a esses pretensos vícios, continuava sendo o homem mais ágil e sutil de todo os
QG.

Hitler não me respondeu, mas eu senti que tinha ultrapassado o limite permitido. Nos dias
seguintes, os famosos chás foram suprimidos e, nas palavras indispensáveis que trocávamos,
Hitler foi de uma polidez glacial. Minha observação o havia terrivelmente ferido em seu amor-
próprio. Uma de minhas amigas lhe perguntou, pouco tempo depois, por que as seções de
chá não tinham acontecido mais. Hitler, com um tom irritado, respondeu que um "um velho"
não podia pretender que nós lhe sacrificássemos todas as noites. Eu me dei conta de que
minha reflexão pouco amável tinha simplesmente ferido sua vaidade.

Este incidente foi para mim a causa de aborrecimentos contínuos durante muitos meses.
Decidi por fim lhe pedir desculpas, mas Hitler afastou-as friamente observando ironicamente
que não via razão para elas. Considerei então o incidente encerrado, mas estava enganada.
Praticamente, eu tinha deixado de existir para ele. Fora do escritório, ele me evitava
sistematicamente. Não me restava senão adotar a mesma atitude.

Durante os deslocamentos, eu me recolhia à noite bem cedo, para evitar o constrangimento


dos tête-à-tête, tão desagradáveis para um quanto para outro. Mas, uma noite, ele enviou seu
ajudante-de-ordens para me intimar a me juntar ao pequeno grupo de familiares que se
formava regularmente em torno dele. Interpretei o gesto como um indício de reconciliação,
mas Hitler manteve em relação a mim sua intransigente frieza. Essa atitude intolerável durou
ainda um mês. A tortura moral que ele me infligia revelou assim toda crueldade de que era
capaz, à menor contrariedade. Sua suscetibilidade irascível jamais perdoava a menor afronta.

Perto do fim, suas famosas explosões de raiva tornaram-se cada vez mais freqüentes e
violentas. Nos seus momentos de crise, ele socava a mesa ou as paredes com os punhos
fechados, com os traços da fisionomia contraídos numa máscara de ódio. E então cobria o
culpado, fosse ele general ou simples oficial, de epítetos grosseiros, colhidos no vocabulário
de gente da rua. Parecia que estávamos ouvindo um oficial subalterno discutindo com um
jovem recruta. Seus acessos de fúria terminavam habitualmente com estas frases:
"Desapareçam da minha vista e considerem-se dispensados. Vocês tem sorte por eu não
mandar fuzilá-los agora mesmo."

Depois Hitler rapidamente se continha. Então apertava os lábios cruéis, cuja finura ele
escondia sob o pequeno bigode, e ditava a um de seus colaboradores a punição com que
pretendia castigar o culpado. Sistematicamente, procurava partilhar a raiva que nutria contra
os elementos que lhe eram hostis entre todos os seus próximos. Mesmo os homens de
Estado estrangeiros não estavam livres de seu proselitismo enraivecido. Sempre fiquei
impressionada com os argumentos que desenvolvia quando Mussolini ou Horty tentavam fazer
com que ele adotasse uma atitude mais conciliadora em relação aos judeus. Hitler, nesses
momentos, abandonava todas as fórmulas protocolares e descrevia, diante de seus
partidários, o perigo judeu sob as cores mais macabras. Suas longas explicações terminavam
sempre com a conclusão de que era preciso a qualquer preço eliminar os judeus. Jamais
empregava a fórmula mais concisa, embora pronunciasse sempre a palavra "eliminar" com um
desprezo tão intenso que ninguém poderia ter dúvida quanto ao seu alcance verdadeiro.
Ficava sempre de excelente humor quando tinha a oportunidade de nos contar que visitantes
estrangeiros tinham lhe relatado medidas raciais tomadas em seus países. No dia em que
Antonescu lhe anunciou o "desaparecimento" dos judeus da Bessarábia, sua estima foi aos
píncaros. Por outro lado, vi Hitler permanecer impassível diante da argumentação calorosa de
Horty, tentando fazê-lo compreender que, no final das contas, não dava para simplesmente
botar os judeus na rua ou matá-los.

Mesmo durante conversações diplomáticas, Hitler permitia-se fazer observações violentas


contra seus inimigos políticos. Nunca deixava de incitar seus visitantes a tratar os adversários
da mesma maneira que ele fazia nos campos de concentração. Sequer hesitava em falar de
deportação e medidas repressivas ao fazer alusão às famílias reinantes da Itália, da Romênia e
da Iugoslávia. Sabia que esses meios lhe eram hostis: estavam, pois, naturalmente expostos à
sua vindita perversa.
***

Capítulo XV

Não tenho sucessor.

HITLER

No dia 16 de fevereiro de 1945 eu estava esperando Hitler na salinha da Chancelaria do Reich,


para almoçar sozinha com ele. Tudo estava pronto à espera do chefe. As cortinas da sala de
refeições que ficava na ala direita do palácio Radziville estavam totalmente puxadas, para
impedir o Führer do Terceiro Reich de ver em que estado de destruição se encontrava a outra
parte do palácio.

Do lado de fora, um claro sol invernal brincava sobre as ruínas e os escombros, mas a peça
estava iluminada. O mordomo vinha de tempos em tempos dar uma olhada na mesa que
estava posta com muito gosto e sobre a qual, em montinhos bem-arrumados, acumulavam-se,
ao lado do prato de Hitler, as pílulas que ele tomava antes e depois das refeições. O pequeno
copo de vinho "Pepsin", que ele bebia durante o almoço, também estava lá.

Só por volta de três horas o mordomo veio até mim para cochichar no meu ouvido que "o
chefe" estava chegando. Imediatamente depois dele, Hitler entrou na sala onde eu me
encontrava e se aproximou, com o rosto contrafeito. Seu olhar estava ausente quando, como
de hábito, beijou minha mão. Estava num estado de excitação extrema e deu livre curso ao
seu descontentamento assim que se sentou na mesa.

"Eu me aborreci por causa de Albrecht (um de seus assessores). Eva tem razão de dizer que
não o suporta. Sou obrigado a cuidar de tudo. Enganam-me de todos os lados. Eu dei a ordem
de fechar com barras de ferro a saída que vai do meu bunker para a Voss-Strasse. Perguntei a
Albrecht se esse trabalho tinha sido executado segundo minhas instruções e ele me
respondeu afirmativamente. Neste momento, acabo de constatar que simplesmente
derramaram cimento, o que é absolutamente ineficaz.
"Decididamente, não posso confiar em quem quer que seja, e não passo de um pobre homem,
traído por todo mundo. Isto me deixa doente. Se eu não tivesse meu fiel Morell do lado, não
poderia levar minha obra até o fim. E dizer que os doutores Brandt e Hasselbach, esses dois
idiotas, queriam que eu me desfizesse dele, sem se perguntarem o que aconteceria comigo
sem seus cuidados. Se me acontecer alguma coisa, a Alemanha vai ficar sem Führer, pois eu
não tenho sucessor. O primeiro que eu previra perdeu a razão (Hess). O segundo perdeu todas
as simpatias da população (Goering). O terceiro perdeu a confiança do Partido (Himmler)."

Hitler lançara essa tirada num tom de irritação extrema. Quando, para conhecer sua opinião
profunda, eu lhe perguntei com prudência: "Mas, meu Führer, o povo fala muito de Himmler
como tendo sido designado para suceder-lhe", ele exclamou com violência: "Não vejo o que
você quer dizer. Himmler e um homem sem nenhuma cultura artística."

Eu repliquei que, no momento, a questão das belas-artes não tinha nenhuma importância e
que Himmler sempre tinha a possibilidade, se fosse o caso, de recorrer a conselheiros de arte.

Com essas palavras, Hitler me lançou um olhar furioso e perdeu todo o controle: "Não fale
tanta bobagem! O que deu em você? Como se fosse fácil cercar-se de homens de valor. Não
seria a você que eu pediria conselho, se tivesse a possibilidade de fazê-lo."

Fiquei aturdida com aquela violência de palavras e não falei mais nada. Hitler continuou a
lançar frases num monólogo interminável, depois foi se acalmando pouco a pouco. Quando
seu furor terminou e ele notou meu silêncio reprovador, bateu afetuosamente nas minhas
costas.

"Reconheço que não se deve falar de política à mesa. Peço desculpa por ter desencadeado
uma discussão tão desarrazoada."

Ao deixar a mesa, ele meditou alguns instantes, de pé perto de mim. Toda a sua atitude era a
de um homem que se resigna a ver sua obra prestes a desmoronar.

"Muito bem, continue a procurar quem poderia ser meu sucessor. De minha parte, não paro
de pensar neste problema, e não consigo resolvê-lo."
Foi durante esse incidente relatado aqui que, pela primeira vez, eu escutara Hitler falar do
chefe das SS com tamanho desprezo. Talvez se devesse ao desastre recente do front do
Vistula que Himmler, promovido in extremis a comandante de um grupo de exércitos,
prometera sustentar a qualquer preço. Aliás, raramente se falava dele durante nossas
conversas ao pé do fogo.

Quando Hitler falava de Himmler, elogiava a maneira notável como o chefe das SS cuidava de
seus homens e de suas famílias. Também gostava de proclamar a confiança absoluta que
depositava nele.

Mas, na minha opinião, ele se enganava redondamente sobre este último ponto. Eu observara
os métodos empregados por Himmler para superlotar a entourage de Hitler com homens que
lhe fossem inteiramente fiéis. Fegelein, o Dr. Stumpfeger e muitos outros tinham conseguido,
graças a essas manobras, ocupar posições importantes junto do Führer. Eu tinha certeza de
que Himmler só estava aguardando o momento em que o poder lhe cairia entre as mãos
como uma fruta madura.

Um dia em que Hitler, uma vez mais, expressou sua confiança ilimitada no chefe da milícia
negra, eu o olhei com um sorriso cético. O Führer não deixou de notar e, olhando para mim
fixamente com seus olhos enfeitiçantes, disse com uma voz quase ameaçadora: "Duvida,
talvez?"

Consegui sustentar o olhar que sugestionara tanta gente e não respondi; mas tive claramente
a impressão de que o próprio Hitler não tinha tanta certeza a respeito do jogo do seu chefe
de polícia. O incidente estava encerrado.

Himmler não brilhava em sociedade; é a razão pela qual raramente era convidado em petit
comité ao Berghof. Lembro-me de tê-lo visto durante os chás que se seguiam a conferências
importantes. Na minha presença, Hitler e ele nunca falaram a não ser de coisas sem
importância.

Himmler tinha dois méritos paralelos: primeiro suas visitas ao front. Ele retornava todas as
vezes com um entusiasmo transbordante pela bravura e dedicação de seus "rapazes". Em
seguida, as questões agrícolas. Tinha estudado engenharia agrônoma e era apaixonado por
coisas da terra. Em um certo número de institutos de pesquisa, encorajava o estudo da
criação e da botânica. Em um deles, o Dr. Fahrenkamp produzia um veneno preparado a partir
de lírio e digitalis que tinha, parece, a propriedade de tornar consumível a carne em estado de
putrefação. Himmler tinha muito orgulho dessa descoberta e lhe predizia um sucesso
mundial.

Hitler discutia raramente com ele o problema racial. Nesses casos, Himmler criticava sempre
os comportamentos pouco arianos de um certo número de artistas alemães. Não
compreendia que um regime, instalado sob o signo do racismo nórdico, aceitasse que o físico
de certos atores de cinema fosse a negação pura do ideal ariano. Nunca falaram na minha
frente sobre campos de concentração.

A presença de Himmler sempre pesou com muita força sobre a sociedade. Ele criava em torno
de si uma atmosfera indefinível de temor e mal-estar. Mas, ao lado do Führer, Himmler,
apesar de seu poder oculto, dava apenas uma impressão de pequeno-burguês sem brilho.

Depois da retirada do Vistula, suas visitas ao QG se tornaram mais raras e a consideração de


que tinha sido alvo junto a Hitler definitivamente ficou arruinada. Em compensação, Hitler
manteve até o fim uma predileção por Goering, apesar das terríveis dissensões que a
condução da guerra suscitou entre os dois. Hitler gostava de falar de Goering. Considerava-o
um companheiro fiel e devotado, e olhava com benevolência sua necessidade insaciável de
luxo, sua paixão pelos uniformes enfeitados, as jóias e as condecorações, afirmando que essa
fraqueza não chegava a fazer esquecer que Goering tinha sido um combatente extraordinário
durante a Grande Guerra e no período de conquista do poder. Em compensação, Hitler lhe
perdoava dificilmente os fracassos sofridos pela Luftwaffe a partir de 1940. Atribuía-os ao fato
de que Goering não era um técnico e era traído por seus colaboradores, como ele próprio era.
Hitler achava que o responsável pelos desastres da Luftwaffe era a teimosia que fazia Udet
perder dois anos preparando um novo tipo de avião. Para culminar, este último se revelara um
"fracassado" completo.

Hitler compreendera que Jeschonneck, o sucessor de Udet, fora incapaz de lançar uma nova
produção suficientemente rápido para alcançar o avanço da tecnologia aliada. Nos últimos
anos, Hitler não via a salvação da Alemanha senão nos aviões a turbina e a reação: "Uma vez
que vamos produzi-los em grande série, farei parar as invasões aéreas do inimigo", repetia
incansavelmente.

Mas ficava furioso quando era advertido de que nossos aviões de interceptação não tinham
repelido o inimigo, quando formidáveis esquadrilhas aéreas vinham pulverizar cidades inteiras
do alto de um céu azul e luminoso. Todas as vezes que alguém procurava colocar a culpa da
inércia de nossos aviões de caça nas más condições atmosféricas, ele respondia raivosamente
que os senhores construtores tinham apenas que prever modelos menos sensíveis às
influências atmosféricas.

Hitler, ao ler sobre as perdas humanas enormes que os ataques aéreos impunham à
população civil, tinha acessos violentos de raiva por não terem sido seguidas suas ordens de
construir mais "Hochbunker" (abrigos superestrutura): "Há anos venho preconizando este tipo
de construção que já foi testada. "Mas", sempre acrescentava pálido de fúria e socan- do a
mesa com o punho, ninguém me escuta. Esses senhores sempre acham que são mais
espertos".

Hitler também criticava a Luftwaffe pela importância exagerada que ela se atribuía. Na sua
opinião, os EM brotavam como champignons. Queixava-se dos pilotos de caça por se
deixarem carregar em triunfo pelos colegas de solo, após cada vitória: "Esses pilotos", dizia
com desdém, "só pensam em serem filmados para aparecer nos jornais, enquanto seus
colegas dos aviões de transporte fazem um trabalho duro e ingrato, permanecendo na
sombra". Mas Goering chegava sempre para defender seus pilotos de caça, destacando as
proezas excepcionais que eles realizavam contra um inimigo numericamente superior.

No outono de 1944, quando correu o rumor de que Goering estava ostensivamente se


desinteressando da guerra aérea e perdendo tempo com futilidades na sua residência
preferida de Karinhall, Hitler me disse: "Claro que eu preferia que ele não tivesse se casado
com esta mulher. Ele é completamente louco por ela e deixou de fazer seu trabalho com a
garra necessária.

Contudo, apesar das altercações violentas que os opunham, Hitler perdoava Goering; em
relação a ele, Hitler era todo clemência. Um dia, Goering mandara requisitar um quadro que
o antiquário Haberstock tinha adquirido para Hitler em Paris. Haberstock, assustado com as
conseqüências que esse gesto podia provocar, veio me pedir para que eu falasse ao Führer. Eu
o fiz com todas as precauções que o caso exigia. Contudo, não pude evitar uma explosão de
raiva diante da falta de tato com que Goering tinha agido. Hitler fulminou: "Como ele ousou
passar por cima de minhas ordens? Eu lhe garanto que ele vai receber uma reprimenda assim
que o vir." Mas as coisas ficaram do mesmo jeito, e Goering ficou com o quadro.

Eu já disse que Hitler, perto do final da guerra, deixou de considerá-lo como seu sucessor
eventual. Praticamente não o levava mais a sério nem lhe fazia mais críticas tão acerbas. Mas,
apesar de toda a perda de prestígio de que Goering sofria a seus olhos, mantinha a simpatia
por seu antigo colega de combate. Quando, no final das reuniões do EM, a aproximação de
aviões inimigos era anunciada, Hitler sempre mandava telefonar para Karinhall para se
informar se o Reichsmarschall tinha chegado bem.

Todos esses fatos confirmam minha convicção de que não foi Hitler que, no dia 20 de abril de
1945, decretou a prisão e a execução de Goering. O famoso telegrama só podia ser obra de
Bormann, alma danada de Hitler nos últimos anos da guerra.

***

Capítulo XVI

Não penso em deixar Berlim; prefiro me matar.

HITLER em março de 1945

Não sinto a menor hesitação em afirmar que Hitler e sua companheira Eva morreram de
forma voluntária. Esse gesto fatídico não era apenas o ponto final, consagrando o
desmoronamento da obra de Hitler, mas correspondia também às suas convicções e teorias
que ele professara durante os três últimos anos a respeito das responsabilidades do homem
diante de seu destino.

Antes da guerra, ele tinha o hábito de afirmar que todo indivíduo devia suportar as
conseqüências de seus atos. Aos seus olhos, nem as piores provações podiam justificar um
abandono da luta cotidiana. Hitler deplorava sinceramente as pessoas a quem o desespero
levava a deixar a vida. Era da opinião que um simples conselho ou um pequeno
encorajamento nos momentos críticos bastavam para fazer um desesperado recuperar a
confiança.

Hitler modificou por completo esta opinião nos últimos anos da guerra, principalmente depois
do atentado de 20 de julho de 1944. É curioso constatar como sua mentalidade se
transformou depois da leitura assídua das obras do filósofo Schopenhauer. Pouco a pouco,
aderiu à teoria de que a vida não era digna de ser vivida quando não reservava nada mais
senão desilusões e misérias. Durante as noites no QG da Prússia Oriental, Hitler me descrevia
freqüentemente o estado de alma no qual se encontram os homens que, diante do abandono
de suas forças, sentem-se morrer lentamente: "Quando um homem nada mais é do que uma
ruína física, não adianta continuar vivendo. Então não se pode mais evocar a covardia ou a
deserção diante do dever."

Com freqüência comentava comigo a impressão penosa que sentia cada vez que se
encontrava na presença de um homem em declínio. Contudo, não sei se ele se dava conta
inteiramente do quanto ele mesmo, apesar dos esforços prodigiosos de vontade, tinha caído
num estado de decrepitude física.

Durante sua doença, em setembro de 1944, eu o visitei várias vezes no quarto que ocupava
em seu pequeno bunker onde jamais penetrava um raio de sol. Constatei que Hitler estava no
limite de suas forças. Com uma voz apagada, descrevia as dores pavorosas que lhe causavam
suas crises de estômago: "Se estes espasmos continuarem se repetindo, minha vida não terá
mais sentido", me disse então. "Nesse caso, não hesitarei em dar fim a ela."

Estas palavras eram pronunciadas num tom de tamanho desespero impotente que não pude
me impedir de ter pena dele. Eu estava petrificada de emoção, à vista daquele corpo
esgotado, torturado por sofrimentos atrozes. O aspecto do local acentuava também a penosa
impressão que eu experimentava diante do dono todo-poderoso da Alemanha; o estreito leito
de campanha, as paredes frias e lisas de cimento, tudo respirava a miséria de uma célula de
prisão. E até mesmo o homem, de traços convulsos, deitado diante de mim na sua roupa de
dormir branca debruada de azul. Ele já parecia estar respirando o ar sufocante da tumba. De
tempos em tempos, ainda procurava manter as aparências mostrando um sorrisinho artificial.
Eu não tinha mais diante de mim o "Führer" da Grande Alemanha, mas um pobre-diabo.

Hitler nunca mais se restabeleceu completamente dessa crise. Mais tarde, em Berlim, quando
se encontrava, durante os chás da noite, estendido sobre o canapé e completamente
esgotado pelos esforços do dia, ele me confiava às vezes que a humanidade era muito má
para que a vida ainda valesse a pena ser vivida. A duplicidade humana o havia decepcionado
a um ponto que ele havia perdido a fé na vida.

"Os animais são mais fiéis do que os homens", ele repetia. De tempos em tempos, seu olhar se
elevava para o retrato de Frederico, o Grande, que enfeitava a parede acima de sua mesa de
trabalho, e repetia as palavras bem conhecidas deste último: "Depois de estudar os homens,
eu amo os cachorros."

Em janeiro de 1945, no retorno de Bad Nauheim para Berlim, Hitler começou a enfraquecer a
olhos vistos. Vivia num estado quase permanente de excitação. Seus monólogos durante as
seções de chá não eram mais do que uma repetição monótona das mesmas histórias. Seu
repertório restringia-se cada vez mais. E, assim, ele nos dizia quase dia após dia: "Blondy, este
bicho nojento, ainda veio me acordar esta manhã. Ela se aproximou da minha cama com
manifestações de amizade, mas, assim que perguntei se sentia necessidade de sair, ela
rapidamente se retirou para o canto. Que animal inteligente!" Ou ainda: "Olhe a minha mão
como está melhorando; ela não treme mais; eu quase não tremo mais."

Acontecia então de Hitler saudar alguém sem se dar conta de que já o tinha feito alguns
instantes antes. A perda de memória se tornava manifesta. Os assuntos que ele ainda gostava
de discutir eram cada vez mais bobos e pouco interessantes. Não dissertava mais sobre as
questões raciais, os problemas econômicos e políticos, não fazia mais desfilar diante de nossa
imaginação a história da Antiguidade, como adorava fazer, nos explicando à sua maneira o
desmoronamento do Império Romano. Ele, que se interessara ardentemente por todos os
problemas biológicos, pela botânica e a zoologia, a evolução social da humanidade (estava
convencido de que esta última seria substituída um dia por um estado térmita), nos últimos
meses falava apenas de criação de cachorros, de abastecimento, assim como da idiotice e da
maldade dos homens. Tornara-se absolutamente bizarro nos seus julgamentos a respeito de
sua entourage. Pessoas que tinham gozado de sua estima especial durante longos anos
perdiam subitamente a seus olhos, e sem motivo, toda consideração.

À mesa, insistia cada vez mais em conversas que tiravam o apetite. Se durante o dia tivesse
encontrado uma mulher cujo batom era muito berrante para seu gosto, não hesitava em
explicar durante a refeição que os batons vermelhos eram fabricados com as águas do esgoto
de Paris.

Às vezes também nos expunha toda uma teoria sobre seu próprio sangue. Com um prazer
sádico, ele nos contava que tinha que recorrer regularmente a sanguessugas para reduzir a
pressão arterial. No dia em que eu o informei do quanto aqueles animais nojentos me
desagradavam, ele me respondeu espantadíssimo: "Mas são umas criaturinhas boas que
fazem um bem enorme", e aproveitou para nos confiar que, agora, Morell simplesmente lhe
retirava sangue. Ele achava esse procedimento mais confortável e mais limpo.

Quando estava de mau humor e nos via comer carne ou mesmo apenas melhorar os legumes
cozidos na água com um pouco de caldo de carne, gostava de nos abordar para fazer menção
às retiradas de sangue que Morell lhe fazia: "Eu tenho a intenção de mandar preparar para
vocês uma salsicha com o meu sangue que sobra. Por que não? Já que vocês gostam tanto de
carne."
Quando ele nos fez esta observação pela primeira vez, nós ficamos absolutamente
consternadas. Não hesitamos em lhe mostrar quanto desprazer ele podia nos inspirar à mesa.

Mas não fez diferença, pois, em vez de mudar de tema, ele insistiu em nos fazer uma preleção
para nos provar que o sangue era uma coisa muito apetitosa. Constatei também com pavor
que, pouco a pouco, Hitler perdia toda a reserva escrupulosa que sempre manifestara na
presença de seu pessoal feminino. Durante os 12 anos que passei do lado dele, ele nunca se
permitiu fazer o menor comentário desagradável, dizer a menor inconveniência, nenhum
impropério. Durante os últimos meses em Berlim, ele perdeu inteiramente o sentido de
pudor. Um dia, uma colega de quem ele sempre apreciara as roupas extravagantes chegou
uma manhã ao bunker da Chancelaria durante um alerta com luvas de mosqueteiro e um
imenso chapéu da abas levantadas, o conjunto todo cor de borra de vinho. Hitler plantou-se
diante dela e lhe sugeriu com admiração que sua beleza nada sofreria se ela usasse
exclusivamente o chapéu e as luvas. Rindo, ele a convidou para se apresentar doravante no
bunker vestida assim. Essa brincadeira de mau gosto foi repetida diversas vezes.

As injeções intramusculares que Morell lhe aplicava regularmente tinham sobre Hitler um
efeito estimulante visível. Toda vez que sentia os efeitos positivos da seringa de Morell, ele
tinha um comportamento mais solto e sua conversa se tornava mais livre. Numa das vezes em
que estava deitado diante de nós no canapé para tomar o chá da madrugada, começou a se
espreguiçar com todo o corpo, esticando os braços e fazendo um grunhido indistinto. Depois
nos olhou com um olhar estranho e nos explicou que, com aqueles simples gestos, um homem
se entendia com sua companheira. Nós estávamos geladas de assombro.

Depois deste incidente, perguntei ao Dr. Morell o que estava se passando exatamente com
Hitler. Perguntei se por acaso ele estaria lhe administrando afrodisíacos. Morell me
respondeu: "Sim, estou dando a ele agora novos hormônios para revigorar suas forças."

Mas a decadência de Hitler adquirira tamanhas proporções nos últimos dias, que eu não podia
me impedir de me perguntar se não se tratava simplesmente de um desequilíbrio mental. Os
rumores mais contraditórios vinham circulando a este respeito. As pessoas que achavam que
Hitler perdera progressivamente a razão, sobretudo depois do atentado malogrado de 20 de
julho de 1944, eram cada vez mais numerosas. Falava-se veladamente. A menor indiscrição
teria valido a morte imediata ao imprudente que blasfemasse sobre o ídolo do Terceiro Reich.
Mas esta idéia me obcecava. Todas as vezes que, com o maior dos cuidados, eu falava da
questão com Dr. Morell ou os generais de seu círculo, eu é que era tratada de louca.
Concordavam em dizer que Hitler vivia cada vez mais à margem das realidades deste mundo,
mas que seguia o desenrolar dos acontecimentos com lucidez. Dava-se conta perfeitamente da
corrida para o abismo na qual seu Reich se lançava, mas sua obstinação sem limite e sua fé na
missão o impediam de tirar as conclusões que se impunham. Nutria ainda a esperança
insensata de conseguir reverter a situação e arrancar a vitória no finish. Diante do povo
alemão, ele anunciava que essa mudança seria feita no plano político.

Em seu último informe aos "Gauleiter", em 26 de fevereiro de 1945, ele comunicou sua
convicção inabalável na diplomacia alemã, que conseguiria dissociar o front unido dos
Aliados. Poucos dias depois, durante uma conferência com seus especialistas militares, ele os
fez entrever "novidades" graças ao emprego das famosas armas secretas. Repetia
incansavelmente: "Paciência, nós precisamos ganhar tempo."

É o que explica sua intenção de transformar os Alpes bávaros numa poderosa fortaleza
natural. Mas, quando tomei conhecimento de que ele lançara os meninos da HJ de Berlim
contra os blindados russos cujo círculo de ferro apertava o cerco à cidade, não consegui mais
me desfazer da idéia de que tais gestos só podiam ser obra de um irresponsável mental.
Horrores como esses não poderiam emanar de um homem dispondo de todas as suas
faculdades.

Seria o caso de estabelecer, contudo, até que ponto a demência de Hitler avançara. Só um
psiquiatra experimentado, acompanhando-o de perto, teria podido determinar esse limite.
Conversei com homens que tiveram a oportunidade de estar próximos dele durante
conferências antes da queda da capital. Esses generais ou altos funcionários, apesar da
provação terrível do momento, mantiveram uma lucidez completa. Cada vez que saíam da
sala de reunião, vinham literalmente arrasados e me confiavam com palavras veladas a
impressão de que Hitler certamente perdera há muito tempo o controle de suas reações. Essas
confissões confirmavam minhas próprias convicções.

A partir desse momento, passei a sentir frio na espinha cada vez que ele me surpreendia com
suas esquisitices. A idéia de que o povo alemão estivesse totalmente à mercê de suas
divagações me arrasava. Foi para mim uma verdadeira obsessão conhecer exatamente os
limites de sua decadência psíquica. Eu não podia mais confiar minhas preocupações ao círculo
de Hitler. Teria sido partir para o suicídio.

O acaso quis que eu encontrasse um dia, privadamente, um antigo presidente do Tribunal de


Estado que eu conhecera quando ele colaborava estreitamente com o Reichsleiter Bormann na
área legislativa. Com muito tato levantei diante dele a questão de saber se era possível que
Hitler não estivesse mais de posse de todas as suas faculdades mentais. A resposta me
fulminou literalmente. Aquele homem sério, jurista eminente e objetivo, cujas capacidades de
psicanálise unanimemente reconhecidas não tinham sido nem um pouco contaminadas, me
respondeu com esta frase que encerrava a questão de uma vez por todas: "Sim, Hitler está
acometido de demência."

Tive outra confirmação quando me hospedei no Berghof pela última vez, em abril de 1945. Eu
encontrara no meio dos pertences do Dr. Karl Brandt uma notícia de imprensa onde se
anunciava que o desaparecimento de um célebre psiquiatra da Universidade de Koenigsberg
preocupava a opinião pública alemã. Esse especialista, cujo nome me escapa, fora
secretamente enviado ao QG de Hitler para examiná-lo. Tinha concluído que se impunha uma
estada prolongada em um sanatório especial. O médico foi imediatamente convocado por
Himmler e depois desapareceu misteriosamente.

Outra confirmação me foi dada por Goering em pessoa. Alguns dias antes de sua partida de
Berlim, ele pediu a Bormann para lhe remeter os relatórios das conferências dos últimos
meses. Goering justificou seu pedido pelo temor de que fossem tornados públicos mais tarde
e que, assim, o povo alemão ficasse sabendo que tinha sido conduzido por um louco durante
os dois últimos anos. Goering acrescentou que os insultos inacreditáveis de que havia sido
objeto por parte de Hitler só podiam ser explicados desse modo.

Infelizmente, não posso julgar em que medida se pode dar fé a essa declaração de Goering.
Teria ele querido destruir os relatórios com o objetivo de apagar todos os traços de sua
culpa? Ou a questão era somente esconder a decadência de Hitler? Tenho a impressão de que
todos os dois motivos foram válidos ao mesmo tempo.

No final do dia 20 de abril de 1945, Hitler me chamou ao seu escritório com uma de minhas
colegas. Saudou-nos com a pressa habitual e nos declarou em seguida tristemente:

"A situação evoluiu nos 15 últimos dias de tal maneira que sou obrigado a espalhar mais meu
Estado-maior. Preparem seus pertences imediatamente. O carro parte dentro de uma hora
para o sul. Vocês receberão outras instruções do Reichsleiter Bormann."

Minha colega e eu então perguntamos se podíamos ficar perto dele, em Berlim. Ele recusou
nossa oferta sob o pretexto de que tinha a intenção de organizar na Baviera um movimento de
resistência ao qual se juntaria em seguida: "Eu ainda preciso de vocês duas", disse. "Quero ter
certeza de que estão em segurança. Se os acontecimentos piorarem, as duas outras
secretárias deixarão Berlim também. Se uma ou outra de suas jovens colegas tiver que morrer
nessa tentativa, foi o destino que decidiu." Depois se despediu com estas palavras: "Nós nos
veremos em breve; vou encontrá-las o mais rápido possível."
Hitler pronunciou estas palavras de um fôlego só. Estava diante de nós, com as costas
curvadas, balançando os braços, os cabelos inteiramente brancos. Tentava em vão esconder o
tremor da mão. Seus olhos sem luz e sem força fixavam um ponto imaginário. Só um
sorrisinho cansado ainda iluminava seus traços encovados. Era o sorriso desiludido de um
homem inteiramente destruído, que tinha perdido toda a esperança.

Pouco tempo depois, ele ainda me chamou ao telefone duas vezes. Na primeira ligação, ele
me disse: "Minhas filhas, a situação mudou. O círculo em torno de Berlim se fechou. O carro
não vai mais passar. Vocês vão deixar Berlim amanhã de manhã de avião."

Logo em seguida, sua voz alquebrada me cochichou: "O avião parte por volta de duas horas,
no final do alerta. É preciso que vocês consigam decolar."

Depois sua voz mudou para um gorgolejar incompreensível. Pedi que repetisse o final, mas ele
não respondeu. Ele não tinha desligado o aparelho; eu não escutava nada além de uma tosse
abafada que batia nos meus ouvidos como o longínquo murmúrio do nada.

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