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Soberania e Modernizacao no : Pensamento Bras de Pol ica Externa no Segundo Reinado e na Primeira Republica* Luiz Feldman** “Esti claro: porto de mare capital do pats, o Rio possui ‘um internacionalismo ingénito.” (Mario de Andrade, 1942 (2002)) Este artigo examina o pensamento de politica externa dos gestores do Estado brasileiro no Segundo Reinado e na Primeira Reptiblica. Especificamente, seu objetivo é investigar as categorias mobilizadas * Artigo recebido em margo de 2008 e aprovado para publicagio em novembro de 2009. Verses an- terinnrs deste trahalhe foram apmesentadas na ¥ Simpisin de Relagfios Internacionais dy Programa San Tiago Dantas (2007) e na Conferéncia Intemacional Conjunta International Studies Association © Associagdo Brasileira de Relacdes Intemmacionais (2009). Nessas e em outras ocasides, as reco- mendagdes de Bruno Sim@es, Carlos Aurélio Pimenta de Faria, Clodoaldo Bueno, Dawisson Lopes, Jens Bartelson, Jodo Pontes Nogueira, Joao Vargas, Maria Regina Soares de Lima, Paulo Esteves & ‘de um pareceristaandnimo de Contexto Internacional foram fundamentais para aretificagaio de de- ficiéncias do argumento, ndlo thes cabendo, todavia, responsabilidade por erros e omissdes remanes- ccentes. Matte versidade Catélica do Rio de Janeiro (IRUPUC-Rio). E-mail: Ifeldman@ superig.com.br. ia Uni Relaydes Intecnacivucia polu Instituto de Relayies Intecnacionais da Pon CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol.31, n?3, setembro/dezembro 2009, p. 535-592. 535 pelos responsaveis pela aciio diplomatica na enunciacio do posicio- namento do Brasil perante grandes poténcias e em conferéncias multilaterais. Os termos das relagées bilaterais com as poténcias sao estudados no Ambito de negociagdes do Império com os Estados Unidos da América (EUA) (1850-1866), sobre tratados comerciais e a abertura do rio Amazonas A navegagio estrangeira, e com a Gra-Bretanha (1845-1850), sobre a aboligdo do trafico de escravos africanos e os direitos civis e criminais de stiditos britanicos no Bra- sil. Os termos das relagGes multilaterais sao estudados no ambito da participacao da Republica na III Conferéncia Internacional Ameri- cana (1906) e na II Conferéncia da Paz (1907), ambas voltadas a normatizagao de priticas e costumes internacionais. A hipétese de trabalho é de que as antiteses particular/universal e ci- vilizacdo/barbarie silo empregadas na enunciagdo das posicgdes brasi- leiras nessas relagées bilaterais e multilaterais, configurando a com- preensio da realidade internacional havida pelos formuladores da politica externa, bem como suas propostas de cursos de a¢io. En- quanto a antilese particular/universal direciona a reflexio a uma prospec¢dio dos limites da pritica soberana diante das exigéncias do stema de Estados, a antitese civilizaciio/barbarie paralelamente in- corpora a essa reflexdio um imperativo de modernizagao.' Soberania s ¢ modernizagao tornam-se, assim, cixos tematicos na concepgiio das relagGes bilaterais e multilaterais do Estado brasileiro. da lei- Ocxame du pensamento de politica externa ser feitu a par tura de fontes primérias. Para o Império, o foco estara em pareceres emitidos pela Segao dos Negécios Estrangeiros do Conselho de Esta- doe, secundariamente, em atas de suas reunides, em discursos de al- guns membros do governo perante 0 Parlamento e em documentos veiculados pelo Ministério das Negécios Estrangeiros (MNE). Para a Reptiblica, 0 foco estar na correspondéncia telegrafica entre os membros do Ministério das Relagdes Exteriores (MRE) e as delega- oes brasileiras as conferéncias internacionais, bem como em discur- 536 CONTEXTO INTERNACIONAL ~ vol. 31, n®3, setembro/dezembro 2009 Soberania ¢ Modernizaséo no Drasi Pensamento de Politica Externa. sos dos representantes brasileiros durante ou ap6s essas conferénci- as. O método de leitura sera andlise da enunciagao realizada nesses documentos (FOUCAULT, 2005; WHITE, 2001), atentando-se para as estratégias figurativas antitéticas por meio das quais 0 posiciona- mento do Brasil emerge como objeto de discurso nos escritos dos es- tadistas imperiais e republicanos. Uma vez que a enunciacao deve ser compreendida a partir do locus em que é realizada, a andlise da politica externa do Impérioe da Repiblica ser antecedida por breves consideracdes sobre seus lugares institucionais: 0 Conselho de Esta- doe o MRE. Cumpre ainda esclarecer que este trabalho nao pretende reconstruir as cadeias de acontecimentos dos casos estudados, seniio para escla- recimentos secundarios. Direcionando sua mirada para regularida- des discursivas, o trabalho nao pretenderia exaurir sequer as narrati- vas histéricas dos casos a cuja andlise se prope. De fato, o rendimen- to esperado no estudo dos casos aqui elencados é a compreensiio do modo de apropriagao de categorias do internacional moderno pelo pensamento politico brasileiro (especificamente por estadistas impe- riais e republicanos), deslindando assim algumas linhas de forga da politica externa em momentos de sua articulagao. Conselho de Estado Durante v Segundo Reinady, as discussGes subre politica externa 180 se restringiam a uma instituicdo em particular. O papel do Parlamen- to, por exemplo, é conhecido (CERVO, 1981). Contudo, a posigodo Conselho de Estado dir-se-ia singular: contrastava com a diminuta burocracia do MNE e com a incapacidade do Parlamento de contro- lar efetivamente os compromissos externas firmados pelo governo, sendo favorecido pela propensio do imperador D. Pedro II a convo- c4-lo ea deliberar conforme as suas consultas (REZEK, 1978, 1979). Outra vantagem do Conselho estariano fato de que, por serem confi- 537

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