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O teatro de revista como instância educativa na constituição de uma cultura

narrativa em São João del-Rei (1870-1920).


Carolina Mafra de Sá (FaE/UFMG)1

No primeiro semestre de 2011 iniciei o doutorado na linha de pesquisa História


da Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação (FaE/UFMG). Passado
um ano, em que cursei disciplinas e reescrevi o projeto, iniciei a coleta de dados,
atividade a que me dedico atualmente. Investigo o teatro de revista encenado em São
João del-Rei/MG, entre 1870 e 1920, como uma instância educativa em que se
constituíram culturas narrativas a partir de diversas linguagens.
Na segunda metade do século XIX, os homens de letras do Rio de Janeiro e de
Minas Gerais apostavam no teatro como agente civilizador, capaz de educar os povos.
Para tanto, foram criadas leis que regulavam as apresentações teatrais e o Conservatório
Dramático Brasileiro2, órgão responsável por garantir que somente o bom teatro, ou
seja, peças civilizadoras subissem aos palcos 3. Nessa época, os espetáculos apresentados
no Brasil eram fortemente influenciados pela arte dramática européia. Textos teatrais de
autores franceses, portugueses e ingleses foram encenados, impressos e vendidos.
Na segunda metade do século XIX até as primeiras décadas do XX, os literatos
do Rio acreditavam que não havia uma dramaturgia nacional, portanto, se preocupavam
em formar o teatro nacional inspirado na arte dramática que se fazia nas nações
consideradas mais civilizadas. O que explica a grande presença da dramaturgia européia
no Brasil. A crença, pelos homens de letras, na inexistência de um teatro nacional
contrastava com uma produção crescente, por autores e companhias locais, de peças
populares4. Operetas, farsas, revistas, burletas, mágicas e pantomimas enchiam os

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Esta pesquisa é realiza na Linha de História da Educação do Programa de Pós-Graduação em
Educação: conhecimento e inclusão social, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Minas Gerais, com o financiamento da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior.
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O Conservatório Dramático Brasileiro foi criado em 1843 e manteve suas atividades até 1864. Foi
reativado em 1871 e definitivamente dissolvido em 1897.
3
Para mais informações sobre o teatro idealizado pelos literatos da Corte e de Ouro Preto, ver Sá (2009).
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Existem muitas discussões nas ciências sociais sobre o conceito de cultura popular, que não podemos
ignorar, no entanto, inicialmente para essa pesquisa o termo “teatro popular” tem origem nas fontes. Na
segunda metade do século XIX, alguns gêneros teatrais eram denominados “populares”. São eles: o circo-
teatro, o teatro de revista, as burletas, as farsas, o teatro ligeiro. Portanto, nossa primeira ambição é
compreender o quê se definiu no período como “teatro popular”. Na medida em que essa definição tomar
centralidade na pesquisa, considerarei o modelo teórico que melhor ajudar a explicar os dados, buscando
operar, segundo Certeau (1982), de maneira crítica e, se for o caso, indicar possibilidades para construir

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teatros do país. Tal contraste foi possível, pois, para parte dos literatos as peças
populares eram consideradas de mau gosto, ou seja, em nada parecidas com o teatro
civilizador do ocidente. Essa produção estaria, portanto, segundo esses homens,
impedindo que a dramaturgia nacional prosperasse.
É interessante notar que o gênero teatral de revista, foco desta pesquisa,
apresentado à revelia do teatro idealizado pela elite intelectual brasileira, também estava
muito em voga na Europa. Segundo Fernando Antonio Mencarelli (1999, p.28), “as
revistas de ano e suas imediatas variações eram, no mesmo período, um fenômeno de
escala muito maior, estando presente nas principais capitais da Europa e da América.”
Antônio Guerra (membro de um grupo de teatro amador de São João del-Rei que nos
legou o principal acervo – mantido pela UFSJ – que viabiliza esta pesquisa) em seu
livro Pequena história do teatro, circo, música e variedades em São João del-Rei 1717
a 1967, afirmou que a primeira peça de teatro de revista escrita e encenada na cidade –
A mudança da capital – teria sido inspirada na peça espanhola La gran via.
Cláudia Braga (2003) analisou o teatro brasileiro que efetivamente existiu na
Primeira República e as exigências que a elite nacional fazia a esta produção,
negligenciada, por muito tempo, pela história do teatro. A autora concluiu que tal
produção teatral tinha como inspiração os modelos europeus, mas constituiu estruturas
próprias. Segundo Braga a dramaturgia desse período também sofreu o progressivo
abrasileiramento que nossa sociedade vivenciou, especialmente após o início da Grande
Guerra. Tal dramaturgia teria sido fruto de uma realidade palpável e “antropofágica – na
acepção de ‘digestão e devolução’ cultural em outros moldes, proposta pelo
modernismo –, sendo, sobretudo, eminentemente brasileira” (BRAGA, 2003, p.101).
As características do teatro de revista nos permitem perceber que à medida que
peças desse gênero foram produzidas e encenadas no Brasil, eram inventadas maneiras
próprias de contar, ao mesmo tempo em que tais formas narrativas foram aprendidas e
ensinadas pelos autores, atores, demais membros das companhias e espectadores.
Segundo Cláudio José Guilarduci (2009, p.9) o teatro de revista transpunha a realidade
para o espaço cênico. As pessoas viam suas vidas projetadas na cena, o que possibilitava
“não somente lazer e diversão, mas também uma reflexão sobre a vida daqueles que
participam como espectadores do espetáculo”. Diante disto, podemos afirmar que o

novos modelos.

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teatro de revista de alguma maneira, a contragosto dos homens de letras, também
educava seus espectadores. As características do gênero revista remetem a uma relação
de aprendizagem, pois, na interação entre palco e platéia eram construídos sentidos para
a realidade.
Interessa-me, portanto, não apenas os sentidos que eram construídos, mas
principalmente os modos de contar, ou seja, as linguagens utilizadas nesses espetáculos
e a maneira como eram utilizadas para construir tais sentidos. As revistas são peças que
a partir da composição nos palcos, de gestos, sons, músicas, imagens, falas e escritos
ganhavam sentidos e se constituíam como arte dramática. Ou seja, os textos escritos,
nesses casos, eram apenas roteiros que, em conjunto com as outras linguagens, davam
sentido à obra teatral no momento fugidio da encenação. Busco compreender como os
sujeitos envolvidos com o teatro, daquele tempo e lugar, se relacionavam com o escrito
e com as diversas linguagens, com o objetivo de contar-se.
Compartilho do pressuposto de autores como Brian Street (1984), Harvey Graff
(1987) e Roger Chartier (2002) de que a análise da cultura oral e da escrita, como
elementos estanques, não explica as complexas relações existentes entre as diferentes
formas de linguagem, as características e os modos de pensamento presentes em
culturas diversas. Acredito que para analisar algumas sociedades, como a brasileira – em
que a escolarização e a difusão da imprensa foram tardias – é preciso descentrar a
escrita da problemática e entendê-la como uma tecnologia que é incorporada e recriada,
na medida em que atende às demandas sociais, culturais e econômicas daquele grupo de
pessoas. É, portanto, com foco em uma dessas demandas da sociedade – a necessidade
de contar-se – que pretendo compreender como diversas linguagens são utilizadas e
incorporadas, especialmente a oralidade e o escrito.
Ainda que o gênero revista estivesse presente em diversas cidades do mundo,
criando uma realidade cultural semelhante, pergunto-me: que modos de narrar foram
concebidos, em São João del-Rei, ao se encenar espetáculos a partir de linguagens
diversas, numa sociedade em que a relação com o escrito e com a oralidade ocorria de
maneira singular? Qual o lugar do escrito e da oralidade para a construção de sentidos
nessas encenações? Qual a importância do corpo, dos gestos e dos sons? Para tanto
utilizo a noção de cultura narrativa que se refere às ações e significados produzidos por
determinado grupo de indivíduos em relação aos seus modos de contar.

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Apóio-me na definição de Clifford Geertz (1989) que parte da noção de Max
Weber, de que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo
teceu e define “a cultura como sendo essas teias e a sua análise” (1989, p.15). Tomo
como ambição, o que para o autor é papel da ciência: interpretar esses emaranhados de
significações a partir de uma descrição densa das ações dos sujeitos investigados.
Além disso, considero a noção de Roland Barthes (1966, p.1) de que a narrativa
é algo que se dá por meio da linguagem articulada, de imagens, gestos e/ou por uma
mistura de todos esses elementos. Dessa forma, existiriam inúmeras narrativas no
mundo, elas estão presentes em todos os tempos e sociedades.
O principal acervo utilizado nessa investigação, mantido pela UFSJ, é composto
por textos teatrais impressos, manuscritos e datilografados, com vestígios da montagem
cênica, além de críticas teatrais e anúncios recortados de jornais do período. Analisarei
os jornais publicados na cidade, além de algumas publicações sobre o teatro.
Documentos oficiais do Arquivo Municipal de São João del-Rei e do Arquivo Público
Mineiro serão utilizados com o objetivo de cruzar os dados obtidos no principal acervo
escolhido para esta pesquisa.
Até o momento realizei um levantamento de 34 autobiografias, memórias e
textos literários na Biblioteca da Academia de Letras de São João dei-Rei. Nesse
material busco localizar relatos sobre impressões a respeito do teatro e/ou sobre algum
espetáculo em particular. Inicialmente buscava autores são-joanenses, mas não os
encontrei. Foram localizados autores de cidades da região do Campo das Vertentes e da
Zona da Mata mineira, que passaram por São João del-Rei em algum momento da vida.
Nos documentos do acervo de Antonio Guerra é possível perceber que textos teatrais e
companhias amadoras e profissionais circularam entre algumas cidades dessas regiões,
como Barbacena, Juiz de Fora e Cataguases. Acredito que será necessário ampliar o
recorte geográfico para essas duas regiões de Minas Gerais.
Encontrei, também, livros, com dados significativos para a pesquisa, de autores
de diferentes regiões do Brasil e da Europa. Estes poderão servir para comparar tais
realidades com a realidade investigada, a fim de verificar a existência de semelhanças e
diferenças entre os modos de contar. Finalizo essa breve apresentação destacando que
este é um trabalho em andamento e que os rumos da investigação podem se transformar
ao longo dos próximos dois anos e meio que restam para finalizá-la.

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Referência Bibliográfica:

BARTHES, Roland. Introduction à l’analyse structural du récit. In: L’analyse


structurale Du récit. Coleção Communications (École pratique des Hautes Études –
Centre d’études des communications de masse), 8. Éditions Du Seuil. 1966.
BRAGA, Cláudia. Em busca da brasilidade: teatro brasileiro na primeira república. São
Paulo: Perspectiva, 2003. 122p. (Estudos; 194)

CERTEAU, Michel de. A escrita da historia. Rio de Janeiro: Forense-Universitaria,


1982. 345p.

CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. São Paulo: Editora da Unesp, 2002.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC - Livros Técnicos
e Científicos, c1989. 323p

GRAFF, Harvey J. The legacies of literacy: continuities and contradictions in western


cultures and society. Bloomington: Indiana University Press,1987.

GUERRA, Antonio. Pequena historia de teatro, circo, musica e variedades em São


João del-Rei, 1717 a 1967. [São João del-Rei?]: [s.n.], 1968

GUILARDUCI, Cláudio José. A cidade de São João del-Rei nas entrelinhas dos
manuscritos do teatro de revista na Belle Époque: um testemunho da história cultural
são-joanense. 2009. 269 f. Tese (Doutorado em Teatro). Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

MENCARELLI, Fernando Antonio. Cena aberta: a absolvição de um bilontra e o teatro


de revista de Arthur Azevedo. Campinas: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em
História Social da Cultura, 1999.

SÁ, Carolina Mafra de. A Função dos Espetáculos Teatrais no Rio de Janeiro e na
Província de Minas Gerais. (Fins do Século XVIII aos Meados do Século XIX). 2005.
65 f. Monografia de conclusão do curso de Pedagogia. (História da Educação).
Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005.

SÁ, Carolina Mafra de. Teatro idealizado, teatro possível: uma estratégia educativa em
Ouro Preto (1850-1860). 2009. 244 f. Dissertação. (Mestrado em Educação). Faculdade
de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.

STREET, Brian V. Literacy and theory practice. Cambridge: Cambridge University


Press, 1984.

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