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LUGAR COMUM NS, 9p, 0.0 HO refigio do tempo no tempo do instantaneo Mauricio Lissovsky "Quanto maior a perfeigio técnica, isto 6, quanto mais exatos no efeito de medigio, tanto menor seré a oportunidade para meditar sobre o que é proprio do tempo.” (Heidegger) 3 mais facil passar um camelo pelo fundo de uma agulha" (Mateus, 19:24) Novembro de 1826 em Saint-Loupe de Varrene. O tempo esta péssima © a luz outonal irremediavelmente débil. J. N. Niépce, inventor da fotografia, lamenta ter de interromper suas experiéncias com o que chamava, singelamente, "points de vue d'aprés natur Fotografar de novo, apenas em junho do anc seguinte, com 0 insubstituivel concurso do sol de verdo. Desde estes dias tia remotos até bem recentemente, os avangos na ética ¢ 0 incremento progressiva da fotossensibilidade dos suportes, nfo s6 tornaram a fotografia imune a sazon- alidade, como reduziram 0 tempo de exposigao a fragdes infinitesimais do segundo. Mergulhos repentinos que conduziram do insuportavelmente lento ao demorado; deste ao breve € ao brevissimo; e, afinal, ao imperceptivel. Ha um mergulho, em particular, decisivo para a experiéncia da fotografia. E aquele que transforma o tempo de exposigao em uma duragdo inapreensivel, um valor abstrato numa escala temporal estritamente quantitativa. A menos que acredite- mos na falacia espacializante de um presente pontual - infinitamente pequeno - 0 presente nao dura menos que a nossa acuidade perceptiva, isto é, nossa capaci- dade de distinguir dois eventos nio-sincronos como tendo ocorrido um depois do outro. Abaixo deste limiar, nada fica. Tudo pisca. Com a sua transposigao, nas tiltimas décadas do século XIX, jé € pos- sivel falar de uma fotografia instant&nea. Ao contrério do que usualmente se supe, 0 instantaneo nao diz respeito 4 segmentagdo do movimento, mas & desaparigo do durante no interior do ato fotografico. Entre 1878 e 1912 - da 20 10 REFUGIO DO TEMPO NO TEMPO DO INSTANTANED cronofotografia ao fotodinamismo - 0 que ainda se coloca para inimeros fotégrafos é a busca de solugdes de compromisso. Tratava-se de construir imagens de conciliagao entre a duragio ¢ a instantaneidade, de reintroduzir 0 tempo ali onde a técnica o havia banido. Foi somente entre os fot6grafos do século XX, com a naturalizag4o do instanténeo fotografico, que o tempo voltou a insistir desde onde agora se ocult: m seu tiltimo refagio. Ao dis- cutir a obra de quatro fotégrafos deste século, este texto pretende referir as imagens que produzem 4s suas distintas atitudes face a um tempo que nao mais dura nelas, mas que as conforma segundo 0s modos como apresenta sua auséncia. Este aspecto da temporalidade da imagem fotografica foi raramente percebido. Boa parte dos criticos ¢ historiadores da fotografia do nosso século permaneceu devedora da oposi¢do oitocentista entre artes temporais e artes espaciais. O que ordinariamente ressaltava-se era a mudez da imagem diante de um mundo cujo significado tltimo repousava na historia, e que apenas podia ser apreendido por esquemas de representagiio analogamente tempo- rais, isto 6, apenas pela narrag’io. Mesmo para Benjamin ou Barthes, cujas andlises da fotografia enfatizaram 0 tema do tempo, é ainda nos marcos de uma instantaneidade pontual que enfrentaram o problema. Mas, se nas primeiras décadas de pratica fotogréfica, no entanto, ser fotografado era entregar-se A duragao, a instantaneidade - e o correspondente extlio do tempo - sera comemorada por fotégrafos e modelos como um ato de liber- tagdo. O esttidio do retratista em fins do século XIX reflete este desapareci- mento da duragéo, colocando a disposigao de ambos um arsenal de elementos (pegas de mobilidrio e decoragdo, fundos pintados etc.), que devem ser arranjados segundo um acordo prévio. O tempo que se dispende entre eles, agora, € o de uma negociagao em torno da imagem. Nao é mais 0 intervalo por onde uma experiéncia se infiltra, mas o transcurso necessdrio & confor- magao de um contrato. No espirito da época, a fotografia que nao € retrato busca formas de conciliagao do instantaneo com a temporalidade perdida. Os trabalhos de Eadweard Muybridge, desde 1878, e de Etienne-Jules Marey, voltam-se para a decomposigao ¢ andlise do movimento pela multiplicagdo e seriac&o de Mauricio Lissovsky m 91 | sequéncias de instantaneos!. Apoiados neste "devaneio zenoniano do movi- mento" - a expressdo € de Merleau-Ponty -, os fotégrafos divertiram-se ds cus- tas dos enganos grosseiros nas cenas de ago da pintura classica”, As imagens de Marey e Muybridge serviram ainda de inspiragao para os futuristas, tanto pintores como fot6grafos. Em substituigdo a segmentagao do movimento - que para eles sinalizava para uma outra nova e absurda imobili- dade - concentravam-se nas transformagées espaciais suscitadas pelo movente. Em suas imagens fotodinamicas, realizadas entre 1910 e 1912, os irmaos Bragaglia, procuravam usar 0 "fluxo visual para sugerir a emogdo experimentada pelos movimentos continuos, indivisiveis". © fotodinamismo pretendia "tegis- trar o real irrealisticamente... observar 0 meio em todos os seus volumes, perturbado e convulsionado pela revolugdo que os corpos em movimento oca- sionam"*. Na perspectiva dos futuristas italianos, obcecados pelas trajetérias e suas velocidades, o tempo era restitufdo 4 imagem na forma de uma de afeccio do espago. A anilise de Arlindo Machado sobre os “cronotopos fotograficos", isto é, as anamorfoses produzidas pelas registro na pelfcula de um objeto veloz, também reduz o problema da temporalidade da fotografia ao de uma "represen- tag&o do tempo na imagem". No sentido proposto por Machado, a temporaliza- cdo da imagem dé-se sempre por meio de uma inscrig&o do tempo no espaco, cujo resultado € a "distorgao da figura"’, ‘Em uma cronofotografia de Etienne-Jules Marey, publicada em 1886, as posigdes sucessivas do saltador foram registradas em intervalos regulares de 1/10 de segundo; 0 tempo de exposigdo em cada uma delas foi de 1/720. Ambos os tempos requeridos para a realizagio desta, imagem esto muito além dos limiares sens6rio-motores humanos e s6 foram possiveis gracas A construcdo do "fuzil fotogréfico", em 1882, que podia tirar 12 fotografias por segundo. J4no final da década de 1870, Eadweard Muybridge tinha sido capaz de fotografar & velocidade de seis mil avos de segundo. ? MERLEAU-PONTY, Maurice. "O Olho ¢ 0 Espirito". I sadores). Sao Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 107. * Citado em PHILLIPS, C. Op. cit., p. 69. Apesar do apoio inicial de Marinetti, 0 fotodinamismo seré publicamente excomungado do movimento futurista em 1913. + Amais célebre das "anamorfoses cronot6picas", conforme a denominagio de Arlindo Machado, € uma fotografia de Jacques-Henri Lartigue, tirada no Grande Prémio Automobilfstico da Franga, também em 1912. A imagem foi obtida gragas ao uso de um obturador de "cortina", cuja fenda "varre" a superficie sensivel, expondo, sucessivamente, regides contiguas do nega- tivo. O fotogréfo, por sua vez, acompanha com a cimera o movimento do carro. * MACHADO, Arlindo. "Anamorfoses Cronot6picas ou a quarta dimensao da imagem". In: PARENTE, André (org,). magem-Mdquina. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p. 102. : Textos Selecionados (Os Pen-

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