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Ambrose Bierce
Hoje, diz-se que estou vivo. Amanhã, restará aqui nesta sala
o invólucro de barro morto do que um dia fui. Se alguém porven-
tura erguer o pano e descobrir a face dessa desagradável carcaça,
irá fazê-lo por mera curiosidade mórbida. Alguns, sem dúvida, irão
mais longe e perguntarão: “Quem foi ele?” Neste relato, darei a
única resposta que sou capaz de dar: Caspar Grattan. Claro que isso
deverá ser suficiente. Tal nome serviu a minhas mínimas necessi-
dades por mais de vinte anos desta vida cuja duração desconheço.
Na verdade, fui eu mesmo que me dei este nome, mas, na falta de
outro, tinha o direito de fazê-lo. Neste mundo, todos precisam de
um nome. Isso evita confusões, mesmo que não estabeleça uma
identidade. Alguns, contudo, são conhecidos apenas por números,
que também me parecem distinções inadequadas.
Certo dia, por exemplo, eu caminhava pela rua de uma cidade
muito longe daqui, quando encontrei dois homens de uniforme, um
dos quais, vacilando e olhando para meu rosto de forma curiosa,
disse ao companheiro: “Aquele homem se parece com o 767.” Algo
naquele número soou-me familiar e terrível. Movido por um impul-
so incontrolável atravessei a rua e saí correndo, só parando quando,
completamente exausto, cheguei a uma trilha no campo.
Nunca mais esqueci aquele número e ele sempre volta à mi-
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nha mente em meio a uma algaravia de obscenidades, a explosões
de riso cruel, ao som surdo de portas de ferro se fechando. E por
isso digo que um nome, mesmo que dado por nós mesmos, ainda é
melhor do que um número. Nos registros do cemitério, em breve,
eu terei os dois. Quanta opulência!
Àquele que encontrar estes escritos, pedirei um pouco de
consideração. Não é a história de minha vida. O conhecimento para
escrevê-la me foi negado. É apenas um registro de lembranças frag-
mentadas e aparentemente secretas, algumas claras e vívidas como
contas brilhantes de um colar, outras remotas e estranhas, recober-
tas pelo véu de carmim dos sonhos, intercaladas por espaços em
branco, vazios — fogueiras de bruxas brilhando ainda, vermelhas,
em grande desolação.
Estando no limiar da eternidade, volto-me para um último
olhar sobre o caminho que trilhei. Vejo vinte anos de pegadas bem
delineadas, as impressões de pés sujos de sangue. Atravessam um
caminho de pobreza e dor, de solidão e incertezas, como o de al-
guém tropeçando ante um imenso fardo...
Remoto, inóspito, melancólico, lento.
Ah, a profecia do poeta era Eu — que admirável, o quão terri-
velmente admirável!
Voltando ao início dessa via dolorosa — esse épico do sofri-
mento, com episódios de pecado — já não vejo nada com clareza.
Tudo está envolto em névoa. Só sei que a trilha se estende apenas
por vinte anos, e contudo sou um homem velho.
Ninguém se lembra do próprio nascimento. É preciso que al-
guém nos conte sobre ele. Mas comigo foi diferente. A vida se fez
para mim quando eu já era um homem adulto, ofertando-me todas
as minhas faculdades e poderes. De uma existência prévia nada sei,
havendo em tudo vagas sugestões de que tanto pode ser memó-
ria quanto sonho. Sei apenas que minha primeira consciência foi a
de maturidade, em corpo e em espírito — consciência esta que foi
aceita sem surpresa ou conjecturas. Simplesmente dei por mim ca-
minhando numa floresta, maltrapilho, descalço, horrivelmente can-
sado e faminto. Vendo uma casa de fazenda, aproximei-me e pedi
comida, que me foi dada por alguém que perguntou meu nome. Eu
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não o sabia, embora soubesse que todos têm nome. Sem saber o
que fazer, retirei-me e, como a noite caía, deitei-me na floresta e
adormeci.
No dia seguinte cheguei a uma cidade grande, cujo nome
omitirei. Tampouco relatarei os outros acontecimentos desta vida
que agora está por acabar-se. Uma vida errante, sempre e em toda
parte assombrada pela sensação arrasadora de um crime provoca-
do por um erro e de um terror provocado por um crime. Vejamos se
consigo reduzir tudo a esta narrativa.
Parece que um dia vivi perto de uma grande cidade, onde fui
um próspero fazendeiro, casado com uma mulher que amava, mas
na qual não confiava. Tínhamos, às vezes me parece, um filho, um
jovem brilhante e promissor. Ele é quase sempre uma lembrança
vaga, nunca bem delineada, quase todo o tempo fora do quadro.
Numa noite infeliz, decidi testar a fidelidade de minha mulher
de uma maneira vulgar, um lugar-comum, conhecido de todos que
estão acostumados à literatura de fatos e ficção. Fui para a cidade e
disse a ela que só voltaria no dia seguinte de tarde. Mas voltei à noi-
te, antes do amanhecer, e fui para os fundos da casa com a intenção
de entrar por uma porta que eu mesmo preparara de forma a que
parecesse estar trancada sem o estar. Quando me aproximava, ouvi
o ruído leve de uma porta abrindo-se e fechando-se, e em seguida
vi um homem esgueirar-se e desaparecer na escuridão. Cheio de
ódio no coração, corri atrás dele, mas ele esvaneceu-se sem que eu
pudesse saber quem era. Hoje não consigo sequer ter certeza de
que era de fato um ser humano.
Louco de raiva e ciúme, cego, bestial, movido pelas paixões
mais baixas de um homem insultado, entrei na casa e disparei es-
cada acima para o quarto de minha mulher. Estava fechado, mas
como eu também adulterara aquela tranca, entrei com facilidade e,
apesar da escuridão total, logo cheguei à cabeceira dela. Apalpan-
do a cama com as mãos, vi que, embora em desalinho, estava vazia.
“Ela está lá embaixo”, pensei, “e, apavorada com minha che-
gada, escapou de mim pelo corredor escuro.”
Disposto a segui-la, virei-me para sair do quarto, mas acabei
saindo na direção errada — ou na direção certa! E meu pé esbarrou
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nela, agachada num canto da parede. No mesmo instante, minhas
mãos apertavam sua garganta, de onde saiu um grito abafado, e
meus joelhos prensavam-lhe o corpo, que se debatia. E ali, no es-
curo, sem uma palavra de acusação, eu a matei, estrangulando-a!
Aqui termina o sonho. Relatei-o no tempo passado, mas o
presente teria sido mais apropriado, porque sempre e sempre essa
tragédia sombria é reencenada em minha mente. Sempre e sem-
pre, eu traço o plano, sofro com a confirmação, corrijo o erro. E
então tudo é vazio. E depois é a chuva batendo contra as vidraças
sombrias, ou a neve caindo sobre minhas poucas roupas, as rodas
chocando-se contra as pedras das ruas esquálidas onde jaz minha
vida, na pobreza e na miséria. Se em algum momento há sol, não
consigo lembrar-me. E se há pássaros, não os ouço cantar.
Mas há um outro sonho, outra visão da noite. Estou por en-
tre as sombras de uma estrada iluminada pela luz do luar. Tenho a
consciência de uma outra presença, mas não sei ao certo quem é.
Na sombra de uma imensa casa, vejo o brilho de uma veste branca.
Em seguida a figura de uma mulher, que surge à minha frente na
estrada. É minha esposa, que matei! Vejo a morte em seu rosto. Há
marcas em sua garganta. Os olhos estão fixos nos meus com infinita
gravidade, mas não há reprovação, nem ódio ou ameaça, nem nada
tão medonho quanto o simples reconhecimento. Diante dessa hor-
rível aparição, eu fujo, aterrorizado — um terror que sinto até hoje,
ao escrever estas linhas. Já não posso encontrar as palavras certas.
Vejam! Elas...
Agora estou calmo, mas na verdade nada mais tenho a dizer.
O incidente acaba onde começou — na escuridão e na incerteza.
Sim, recuperei meu autocontrole, sou novamente “senhor de
meu espírito”. Mas isso não é uma trégua. É apenas outro estágio,
outra fase de minha expiação. Minha pena, constante em quantida-
de, é mutável em qualidade. E uma de suas variantes é quando me
sinto tranquilo. Afinal de contas, é uma condenação perpétua. “In-
ferno em vida” — é uma pena tola. O réu é quem escolhe a duração
de sua pena. A minha se encerra hoje.
A todos vocês, desejo a paz que nunca tive.
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Depoimento da finada Júlia Hetman,
através do médium Bayrolles
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