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PUBLICACGES DA ACADEMIA BRAZILEIRA IE — HISTORIA HANS STADEN VIAGEM AO BRASIL VERSLO DO TEXTO LE MARPURGO, DE 1557, FOR. ALBERTO LOFGREN Revista e anotada FOR THEODORO SAMPAIO aD MMOR- TAL TA TEM 130 OFFICIHA INDUSTRIAL GRAPHICA RUA DA MISERICORDLA, 74 R10 DB JANEIRO AD IMMOR- TEM. HANS 8TADEN VIAGEM AO BRASIL BIBLIOTECA DE CULTURA NACIONAL (Publicagdes da Academia Brazileira) CLASSICOS BRAZILETROS T — Lirerarvra Publicadas: 1 — Prozororta, de Bento Teixeira, 1923. 2 — Prmemas Lerras (Cantos de Anchicta, O Diatoao, de Joie de Lery, Trovas indijenas), 1923. 3 — Mvaca vo Parwasso. — A Inia pe Maré — de Ma- nuel Botelho de Oliveira, 1929. 4 — Onras, de Gregorio de Mattos: I — Sacra, 1929. IL — Lirica, 1923, Ill — Grecioza, 1930. IV — Satirica, 2 vols., 1930. A pwdlicar-se: 5 — Diatoco pas Granpezas po Brazit. 6 — Onnas, de Euzebio de Mattas. 7 — Opras, de Antonio de Si, 8 — O Peresrino pa America, de Nuno Marques Pereira, 2 vols. 9 — A Semana, de Machado de Assis (2* série). 10 — Ihscurses Pouiricos-morars, de Feliciano Joaquim de Sonza Nunes. ll — Eserrros, de Arthur de Oliveira. 12 — Cronicas © Versos, de Adelino Fontoura, TT — Hisrorta Publioadas: 1 — Trarapo pa Terra po Braz. — Historta pa Provi- cr Sawra Cruz — de Pero de Magalhies Gandavyo, 1924. 2— Haws Stapen — Viasem ao Brazm (revista e anotada por Theodoro Sampaio), 1930. A publicar-se: 3 — Pruetros Documentos (Cartas de Pero Vaz de Cami- nha, Mestre Joao, Americo Vespucio, ete.) . PURLICACOES DA ACADEM(A BRAZILEIRA Ll — HISTORIA HANS 5TADEN VERSAO DO TEXTO DE MARPURGO, DE 1557, POR ALBERTO LOFGREN Revista ¢ anolada PO? THEODORO SAMPAIO .c. 1 B4614 1930 OPFICINA INDUSTAIAL @RAPHICA 2UA DA MISERICORDIA, 74 KLO DB JANEIRO NOTA PRELIMINAR © livro de Hans Staten é wa dos classicos de nossa iteratura historica, Cumpria delle ter uma versio fiel ¢ completa, dotada de apperella critica. Nenkuma das tres edigées nossas — Araripe, Lifgren, Lobato — merece taes eneomios, Creio que a nossa, a presonte, é digna deste elagio. Com effeito, traduaido da texto da edigaa de Marpurge por americanista capaz, Alberta Léfgren, “trazida correcedo vernacula por Theadora Sampaio, a compeioncia deste sabio em assumptos nacionaes enri- quecen a texto com infinidade de notag interessantes ¢ indispensaveis. As gravuras nes vim da recente edigao feesimilar de Pronkforte, Temos assim um Hans Staden digno delie ¢ do seu assumpto @ que honra, partanta, as publicagdes da Academia Brasileira. © retrate com que se abre esta edigiio foi achado em 1664 © publicada por Winckelmann, sendo reproduside nessa edigao fac-similar de Frankforte. Se ndo certeza, tem probabilidades de verdadeira, pois é da tempo a te- chnica da gravura em madeira e foi achado em Cassel entre os desenhos originaes do livra. Alias, tambem nao ha certeza sobre a vida do aw- tor, desconhecidas as datas de sew naseimenta ¢ morte. 7 HANS 8TADEN Sabe-se apenas que era filho de um burguez de Hom- berg, ¢ que mais torde vivew em Wolfhagen, como elle mesmo declara, © methor, porém, sua abra, subsiste, e é um da- cumento réelevante da historta da Brasil, PREFACIO DO TRADUCTOR PRESENTE traduceio do interessante Livro de Hans Staden é a segunda em lingua portugueza. A primeira appareceu em 1892, na Revista do Instituto Historico ¢ Geographice Brasi- leire, volume 55, parte 1", e tem por antor o dr. Alencar Araripe, que adopton a orthographia phonetiea. O original de que esta se serviu foi da edic&o franceza da eolleceio Ternanx Compans, que, provavelmente, por sua vez, féra traduzida da versdo latina. Com- parando as duas, vé-se que a traduccRo é@ fidelissima, mas como nao foi o trabalho feito A vista do original allemao, mao é de es- tranhar que se afaste bastante deste, principalmente no estilo que, de todo, foi despresado com sacrificio daquelle cunho caraeteristico, eom qué lembra a sua época. Mas, além destas, ha varias outras traduecedes ¢ muitas edi- goes, tanto do original como das versdes; segundo o que conhece- mos sio ellas: 1*. © original primitivo, publicado em 1557 na cidade de Marburg, em Hessen, na Allemanha [1]. f1] “A obra appareeeu pri mente em 1556 em Frankfort sobre 0 Mena, “durch Weygeodt Han’. Nao ba data no liveo, mas o prefacio é de 1556 e éde suppor que sendo ja Frankfort grande centro bibliographieo, ¢ on- tras edigies fnturas tendo sahido dali, tambem o fisse esta. Como oa pro- vas foram revlatas pelo Dr. Dryander de Marpurgo (o livro tem illusteagtes em mideira quo mal pediam ter sido preparadaa ali}, & de crer que nig ge antisfazendo elle com as gravuraa que, fines como eram, Pouca idfa devam dag aventuras do sou herot, precurnsac fazer outta edigio em Marpurgo mes: mo, € com gravurog mais verdadeiras, 52 bem que nauito toseas, E assim o fez, em 1557," (J, C, Rodrigues, Bibliotheca Bragiliense, Rio, 1907, p. 590). — A. P. HANS STADEN 2°. Segunda edigio, impressa no mesmo anno, mas na e¢i- dade de lrancfort sobre o Meno. 3°. Traduecio flamenga, publieada em Antuerpia, em 1558. 4". Nova edicio allema, publieada em Franefort sobre o Meno, em 1067, ma terceira parte de um livro intitulado: Dieses Welthuch van Newen erfundene Landschaften durch Leb. Francke. ™, Outra edi¢io, ainda em 1567, ma mesma cidade, publica- da na colleeeio das viagens de De Bry. O*. A tradnegdo em latim, em 1567, da colleegio toda de De Bry. i*, Nova edigho latina publicada em 1560 (2). &*. Em 1630 ainda uma terceira. §*. Uma quarts edicio allemf do original, in folio, torna a apparecer em 1593. 10°, Nova traduceao flamenga, publicada em 1630, com o titulo de: Hang Staden van Homburys Beschryringhe van America. 11". Reimpressa em 1646, 12". Quinta edicio allemi, publicada em Franefort sobre o Meno, em 1631. 13". Mais uma sexta edicio, quarto, publicada em Olden- burg no aunoe de 1664. 14. Em 1686 houve outra edigto hollandeza, em quarto, ¢ il- Instrada com xilographiss, publicada em Amsterdam. 14". Mais uma em 1706, numa colleegio de viagens, publicada na cidade de Leyden por Pieter Vanden Aa. 16*. Em 1714 seguiu-se a quinta edigio hollandeza, publicada em Amsterdam, em parte. Esta edigzo é mencionada por Bouche de Richurderie na “Biblothéque Universelle de Voyages”. Tomo V, pag. 503, Paris, 1806. [2] Liifgres 1007, 4 © 08 numeros 5, 6 ¢ 7 da bibliographia do Sr. (J. ©. Rodrigues, Bibliotheca Brosiliense, Rio, --tnatinie dize 0 mera phantasi 1806 apparceca a primeira versio hollandesa (nia mencionada por Brunet ou Greessy) ¢ foi reproduzida (sem o prefacin) em 1627 e 1634 (Am- fterdam...) wenluma dellas sendo aceusida pelo Sr, Ligfren™ (J. CO. Ro= drigues, op. cit. p. HM1), — A, P. 16 VIAGEM AO BRASIL 1i*. Uma traduceio franeeza foi publicada na colleegio de wiagens de Ternaux Compans; Vol. TI, Paris, 1839, em oitavo. 1k*. A sexta edigio hollandeza, in folio, foi publicada em Ley- den em 1727, como nova edieio de Pieter Vanden Aa. 10", A ultima edigio allema que appareceu em Stuttgart em 1859, na “Bibliothek des Liberischen Vereins”, em Stuttgart. Vo- lume XLVI, 20". Em 1874 @ sociedade ingleza The Haklwyt publieou, em volume separado, wma traduccio magistral, feita pelo sr. Albert Tootal, com amnotacses do entao consul inglez em Santos, Sir Ri- ¢hard F, Burton, Esta traduccao foi feita sobre a segunda edigio allema de 1557 e @ até hoje a melhor, 21". Traduegao brasileira na Revista do Institute Mistorico ¢ Geogrephico Brasileira, pelo dr, Alencar Araripe. Tendo o illustrado dr. Eduardo Prado adquirido em Paris um exemplar, original da primeira edigao de Marburg, de 1557, come- ¢imos a comparar este original com a traducgio portugueza e che- gamos 4 conclusio de que talvez houvesse vantagem em dar mma nova edigio deste livre tio interessante para a nossa historia, De- libcramos entéo cingir-nos estrietamente ao methodo ¢ linguagem do autor, conservande integralmente a orthographia dos nomes pro- prios dos logares, coisas e pessoas ¢, quanto possivel, 0 proprio es- tile simples e narrativo, com todas as suas imperfeigdes, ¢ quer-nos parecer que no nosso modesto trabalho nao haja a menor omissaic. Por absoluta falta de tempo ¢, por julgar mais competente, pe- dimos ao nosso distinecto amigo e consocio dr. Theodora Sampaio que s¢ enecarregasse das annotagoes e esclarecimentos relatives aos nomes e posig0es relatados pelo autor. Na traduceaio ingleza, o sr. Burton fez muitas annotacies ¢ deu varias explicagdes, porém, nado sendo todas sempre acertadas, nao as copiamos, julgando necessaria uma revisio completa de todas ellas. As palavras “pela segunda vez diligentemente augmentada ¢ melhorada”, que se acham no titulo, podiam fazer suppor que se tratasse aqui de uma segunda edigio ¢ nao da primeira ou origi- 11 HANS STADEN nal, mas estas palavras devem ser entendidas como “por duas vezes augmentada e melhorada” porque, o prefaciador dr. Dryander tinha, certamente, auxiliado ao autor por ser este pouco versado na arte de eserever ¢ compor. Aceresce que esta edigéo é impressa em Marburg na casa de André Colben, o que por si s6 prova eviden- temente ser a primeira edigio comhecida, visto a segunda edigao ter sido feita em Francfort sobre 0 Meno, ainda que no mesmo anno. Tendo o dr, Dryander revista o manuseripto para ser apresentado ao prineipe em 1556, é muito provavel que, para a impressio, qne 6 teve logar em 1557, o revisse pela segunda vez e nesta oceasifo talvez augmentasse alguma coisa, como diz o titulo. As gravuras sao reprodueGes photographicas, em tamanho igual, das estampas do original. Ignora-se, porém, si os desenhos sio do proprio autor ou de outrem por elle guiado, o que alida é mais provavel, Janeiro de 1900. Awgerro Lirarex, F. L. 8. NOTA — A nota bibliographica de Léfgren, com as modifiengdes cita- das por J, C. Redrigues, devemos necrescentar: I — Hans Just Wynkelmann: Ber Ameritenischen Neuer Welt Beschreib- ung — Oldenborg, 1644, (Tratase de uma curiosa deveripgio da America, e nella se inelue o texto da relagio de Staden, com ag gravuras dn.1* edigio). II — Reimpressiio, na Zeitschrift dex Doutechen Wissenschaftlichen Fe- reins, de Buenos-Aires, do texto da 3* ediglo do Frankfort sobre o Meno, de 1567, pelo Dr. R. Lehmann-Nitscho, Buenos-Aires, 1921, TIT — Hans Staden — edigio da série “Brasil Antigo, da Companhia Editora Nasional, texto ordonade literarinmente por Monteiro Lobato, Bio Paulo, 1925; 2" ed, 1926; 3" ed. 1927. A edigio de M. Lobuto eontém 9é- mente a 1* parte da obra de H. Staden. IV — Edigdo faesimilar da de Marpurg, de 1557, pelo Dr. Richard N. Wegner, Frankfurt 0. M., 1987. — A. FP. 12 DESCRIPCAO VERDADEIRA DE UM PAIZ DE SELVAGENS NUS, FEROZES E CANNIBAES, SITUADO NO NOVO MUNDO AMERICA, DESCONHECIDO NA TERRA DE HESSEN ANTES E DEPOIS DO NASCIMEN- TO DE CHRISTO, ATE QUE, HA DOIS AN- NOS, HANS STADEN DE HOMBERG, EM HESSEN, POR SUA PROPRIA EXPERIENCIA, 0 CONHECEU E AGORA A DA A LUZ PELA SEGUNDA VEZ, DILIGENTEMENTE AUGMENTADA E MELHORADA. Dedicada a sta serenissima alieza Principe H. Philipsen, Landt- graf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Ziegenhain ¢ Nid- da, seu Gracioso Senkor, Com um prefacio de Dr. Jah, Dryandri, denominade Eychman, Lente Cathedratico de Medicina em Marpurg. O conteido deste livrinko segue depois dos prefacios. impresso em Marpurg no anno de M.D.LVII, 13 Ao serenissimo ¢ nobilissima Principe ¢ Senkor, Senhor Phi- lipsen, Landigraf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Zie- genkain ¢ Nidda, etc., men graciaso Principe ¢ Senhor, G RACA & paz em Christo Jesus nosso redemptor, Gracioso Prin- cipe ¢ Senhor. Diz o Santo Rei Propheta, David, no psal- mo cento e sete: “Os que se fazem ao mar em navios, traficando em grandes aguas, “Esses véem as obras de Jehovah e suas maravilhas no pro- fundo. “A um aceno, Elle, faz soprar termentoso vento, que lhe ergue as ondas. “Sobem aos céos, descem aos abysmos: suas almas se aniqui- Jam de angustia. “Tropecam e titubeam como bebedos: ¢ toda a sua sabedoria se Ihes foi. “Clamam, porém, por Jehovah em suas afflicgdes; e Elle os tira dos apertos. “Faz cessar as tormentas, ¢ se aquietam as ondas. “Entio se alegram, porque tranquillizados, e Elle os conduz ao desejado porte, “Louvem, pois, o Senhor pela sua bondade e¢ pelas suas mara- vilhas, para com os fithos dos homens. “Eo exaltem no seio do povo, ¢ no conselho dos ancidos o glo- rifiquem.” Assim, agradeco ao Todo Poderoso, Creador do céo, da terra e do mar, ao seu filho Jesus Christo e ao Espirito Santo, pela grande graga e clemencia de que fui alvo durante a minha estada entre os 15 HANS STADEN selvagens da terra do Prasilien [Brasil], chamados Tuppin Imba (1) e@ que comem carne de gente, onde estive prisionciro nove mezes e corri muitos periges, dos quaes a Santa Trindade inesperada ¢ milagrosamente me salvou, para que eu, depois de longa, triste e perigosa vida, tornasse a vér a minha muito querida patria, no prineipade de Vossa Graciosa Alteza, apés muitos anmos. Modes- tamente « com brevidade tenho narrado essa minha viagem & na- vegagdo para que Vossa Graciosa Alteza a queira ouvir, lida por outrem, de que modo eu, com auxilio de Deus, atravessei terras e mares ¢ como Deus milagrosamente se mostrou para commigo nos perigos. E para que Vossa Graciosa Alteza nao duvide de mim, como si eu estivesse a contar coisas mentirosas, queria offerecer a ‘Vossa Graciosa Alteza, em minha propria pesséa, uma garantia para este livro. A Deus sémente seja, em tudo, a Gloria. Recom- mendo-me humildemente 4 Vossa Graciosa Alteza. Datum Wolffhagen a vinte de Junho — Anno Domini. Mil quinhentos cineoenta ¢ seis. De V. A. subdito Hans Steden, de Homberg, em Hessen, agora cidadao em Wolffhagen. (1) Teppin Zmba 6 mais uma das muitas formas com que se nos depara © nome tupi do gentio brasilico, dominador na costa ao tempo da conquista. Entre os portuguezes dessa epoca esereviase Tupinambd, nome que se vul- garizou. Entre og eseriptores francezes comtemporaneos Mem-se, porém, To- pinombour, Tapinam}ds, Toupinambes, @ até Towoupinambaoult eseroveu Joo de Lery, graphia que, apetar de extranha, foi considerada por Ferdinand De- uis como a mais proximn da verdade. De tio grande diversidade de forma resulta n tio econtrovertida interpretagio do vecabulo que a ninguem aatis- fox. Tuppin ou Tupin quer dizer tio, irmio do pai; imba ou imbé = abd, homem, gente, geragio. Tambem Tu-upi, significa o pat primeiro, o proge- nitor, Tu-upt-abd, a geragio do progenitor. X 16 Ao nobilissimo Senhor H, Philipsen, conde de Nassau e Sar- priick, etc., mew graciosa Senhor, deseja D. Dryander muita feli- cidade, com o offerecimento de seus prestimos, H Ans STADEN, que acaba de publicar este livro e historia, pediu- me de rever, corrigir e, onde fosse necessario, melhorar o seu trabalho. A este pedido accedi, por muitos motives. Primeiro, por- que conhego o pae do Autor, ha mais de cincoenta annos (pois que nascemos no mesmo estado de Wetter, onde fomos edueados), como um homem que, tanto na terra natal, como em Homberg, é tido por franco, devoto e brave, e que estudou as béas artes, e (como diz o rifaio) porque a magi nfo cae longe da arvore, é de esperar que Hans Staden, como filho deste bom homem, deva ter herdado as virtudes ¢ a devogie do pac. Além disso, acceito o trabalho de rever este livro com tanto mais gosto e amor, quanto me interesso muito pelas noticias con- cernentes 4s mathematieas, como 4 Cosmographia, isto é, a deseri- pode e medigaio dos paizes, cidades e caminhos, taes como neste li- vro se deparam, mérmente quando vejo os suecessos narrados com franqueza e verdade, ¢ nao posso duvidar que este Hans Staden conte ¢ esereva com exactidio e verdade a sua narrativa e viagem, nao por tel-as colhido de outrem, mas de experiencia propria, sem falsidade, e que elle dabi nio quer tirar gloria nem fama para si, mas sim, unicamente, a gloria de Deus, com louvor e gratidzo por beneficios recebidos ¢ pela sna libertagio. O seu principal objective é tornar conhecida sua historia a todos, para que se possa ver com que favor ¢ como, contra toda a expectativa, Deus, o Senhor, sal- vou de tantos perigos a Hans Staden, quando elle o implorou, ti- rando-o do poder dos ferozes selvagens (onde durante move mezes, 17 HANS STADEN todos os dias ¢ horas, estava esperando ser impiedosamente truci- dado e devorado), para lhe permittir, a elle, tornar 4 sua querida patria, Hessen. Por essa ineffavyel clemencia divina e pelos beneficios rece- bidos, queria elle agradecer a Deus no limite de suas forgas, e em louvor de Deus communicar a todos o que lhe acontecou. Nesta grata tarefa, a ordem dos acontecimentos o levou a descrever toda a viagem com suas peripecias, durante os dois annos que esteve au- sente da patria. E como faz elle esta deseripgao sem palavras pomposas e flo- ridas, sem exaggerages, tenho plena confianga ma sua authentici- dade e verdade, até porque nenhum beneficio pdéde elle colher em mentir, em vez de contar a verdade. Além disso, fixou-se elle agora com os seus paes mesta terra e nao é dado a vagabundagem, como os mentirosos e ciganos, que s2 mudam de um paiz para outro, pelo que é facil esperar que alguem de volta daquellas ilhas [*] 0 possa acusar de mentiroso. Sou dé opinifio e considero para mim valiosa prova de ver- dade o fazer elle esta descripgio de um modo tao simples e indicar a época, o paiz ¢ o logar, em que Heliodorus, o filho do sabio e mui- to fameso Eoban de Hessen, o qual aqui foi tido por morto, es- teve com Hans Staden naquelle paiz ¢ vin como elle foi miseravel- mente preso e levado pelos selvagens. Esse Heliodorus, digo, péde, mais cedo ou mais tarde, voltar (como se espera que aconteca) ¢ entao envergonhal-o e denuncial-o, como um homem sem valor, caso sua historia seja falsa, on inventada. Para entao resalvar e defender a veracidade de Hams Sta- den, quero agora apontar os motives pelos quaes esta ¢ similhantes historias logram, em geral, pouco eredito e confianca. Em primeiro logar, viajantes houve que, com mentiras e nar- rativas de coisas falsas e inventadas fizeram com que homens ho- nestos ¢ veridicos, de volta de terras estranhas, niio sejam acredi- tados e, entio se diz geralmente: “quem quer mentir, que minta de [*] eja-sc adiante a nota 2. 18 VIAGEM AO BEASIL longe e de terras longinquas” porque nimguem vai 14 para verifi- car, ¢ antes de se dar a esse trabalho mais facil é acreditar. Nada, comtudo, se ganha em desacreditar a verdade por amor de mentiras. H tambem para motar que certas coisas contadas ¢ tidas pelo vulgo como impossiveis, para homens de entendimento niio o slo; e tomadas por veridicas, quando investigadas, mostram sel-o evidentemente. Isto péde-se observar em um ou dois exem- plos, tirades da astronomia. Nés, que vivemos aqui na Allemanha ou perto della, sabemos de longa experiencia a duragio do inverno e do vero e das outras duas estagies, a primavera e o outono. Tam- bem conhecemos a duragio do maior dia de verio e do menor dia do inverno, bem como a das noites. Si alguem entio disser que ha logares na terra onde o sol nao se poe durante meio anno, ¢ que ali o dia maior é de 6 mezes, isto é, meio anno, € que ao contrario a noite maior é de 6 mezes ou meio anno, assim como ha logares. no mundo onde as quatro estagdes sio duplas, o certo é que dois in- vernoes ¢ dois verdes li existem. EH tambem certo que o sol e outras estrellas, por pequenas que nos parécam, ¢ mesmo a menor dellas no firmamento, sio maiores que toda a terra e sdo innumeraveis. Quando entiio o vulgo ouve estas coisas, desconfia, nfo acre- dita e acha tudo impossivel. Entretanto, os astronomos o demons- traram de modo que os entendidos nas sciencias nao duvidam disto. Por isso nfo se deve concluir que assim nio seja, apezar de que o vulgo Ihe nao dé eredito, ¢ eomo nao estaria mal a seiencia astronomieca, si nfo pudesse demonstrar este corpera e determinar, por ealenlos, os eclipses, isto é, o escurecimento do sol e da lua, com indicar o dia e a hora em que elles se devem dar. Com seeulos de anteeedencia podem ser predites e a experiencia demonstra ser werdade. “Sim, dizem elles, quem esteve no céo para ver e medir isso?” Resposta: porque a experiencia diaria nestas eoisas com- bina com as demonstrationibus. B, pois, necessario eonsideral-as verdadeiras, como é verdadeiro sommar 3 e 2 sio 5. E de certas razées ¢ demonstragies da sciencia acontece que se péde medir e ealeular a distancia celeste até a Ima e dahi para todos os plane- tas e finalmente até o firmamento estrellado. Até o tamanho e den- i3 HANS STADEN sidade do sol, da lua e outros corpos celestes ¢ da sciencia do eéo ou astronomia, de combinacio com a geometria, esleulam-se a gran- deza, a redondeza, a largura e o comprimento da terra, coisas estas todas desconhecidas do vulgo ¢ por elle no acreditadas. Esta igno- rancia por parte do vulgo ainda é perdoavel por nao estudar elle a philosophia; mas que pesséas importantes e quasi sabias duvidem destas coisas tio verdadeiras, é vergonhoso e até perigoso, porque o vulgo tem confianga nellas e persiste no sen erro dizendo: si as- sim fosse, este ou aquelle eseriptor nio teria refutado. Ergo, ete. Que S. Agostinho e Lactancio Firmiano, dois santos sabios, nao simente em theologia, como tambem em outras boas artes ver- sados, duvidaram ¢ nao quizeram admittir que pudesse haver an- tipodas, isto é, que honvesse habitantes no outro lado da terra, que andem com seus pés voltados contra és e, portanto, a eabega e o corpo pendentes para o céo, isto sem cair, parece singular, apezar de que muitos outros sabios o admittam contra a opiniiio dos san- tos e grandes sabios, acima mencionados, que o negaram e¢ 0 tive- ram por inventado. Deve, porém, ser verdade que aquelles que habitam ex diametro per centrum terrae sio antipodas e vera pro- pasitio é que “Onme versus coelum vergens, ubiewmque locorum, sursum est.” EB nao é necessario ir até o novo Mundo a procurar os. antipedas, pois elles existem tambem aqui no hemispherio superior da terra. Pois si compararmos e confrontarmos o ultimo paiz do Oeeidente, como é¢ a Espanba no Finisterra, com o Oriente, onde esta a India, estas gentes extremas e habitamtes terrestres sic tam- bem quasi uma especie de antipodas. Pretendem alguns santos theologos com isso provar que se tornou verdade a supplica da mie dos filhos de Zebedeu, quando rogou a Christo, Senhor Nosso, que seus filhos fieassem, um ao lado direito e outro ao esquerdo delle. E isso de facto acontecen, pois. que 8, Tiago sepultou-se em Compostella, niio longe de Finisterra, geralmente denominado Finstern Stern (*) [Estrella eseura], onde é venerado, ¢ o outro apostolo na India, ou onde o sol levanta. Que, (*) Quer dizer estrellas eacuras, por uma especie de trocadilho, 34 pos- sivel nu lingua allemi, (O tradwetor), 20 VIAGEM AO BEASIL pois, os antipodas existiam ha muito sem serem notados, e que ao tempo de S. Agostinho, quande o novo mundo da America, na parte inferior do globo, ainda se nado descobrira, no deixaram de existir, G um facto. Alguns theologos, especialmente Nicolau Lyra (reputado, todavia, excellente homem), affirmam ser a parte fir- me do globo terraquco numa metade apenas fora d’agua, na qual fiuetiia e onde habitamos, a omtra parte occulta-se pelo mar e pela aguz, de modo que nella ninguem pode existir, Tudo isso, porém, é contrario 4 sciencia da Cosmographia, pois que hoje esta verifi- cado pelas muitas viagens maritimas dos portuguezes e dos espa- uhées que a terra é habitada por toda a parte. A propria zona tor- rida tambem o €, 0 que nossos antepassados e escriptores jamais ad- mittiram., A nossa experiencia de cada dia mostra-nos que 0 as- suear, as perolas e productos outros para ci vem daquelles paizes, ‘O paradoxo dos antipodas e a ji referida medigio do céo, mencio- nei-os aqui tao sémente a reforgarem 0 meu argumento, e podia ain- da me referir a muitas outras coisas mais, si nio temesse aborre. eer-Vos com o meu longo prefacio, Muites outros argumentos similhantes, porém, podem-se ler no livro do digno e sabio Magister Casparus Goldtworm, diligente su- perintendente e prégador de V. Alteza, em Weilburgk, livro em seis partes, tratando de muitos milagres, maravilhas e paradoxos dos tempos antigos e modernos, ¢ que sem demora se deve dar a im- primir. Para este livro ¢ muitos outros que deserevem ftaes coisas, como, p. ex., o sen Libri Galeotti, De rebus vulgo incredibilibus, ete., chamo a attengio do benevolo leitor desejoso de conhecer mais estas coisas. Com tudo isso se prova que nao @ necessariamente uma men- tira, o affirmar-se eoisa estranha e descommunal para o volgo como nesta historia se vera, na qual toda a gente da tha (2) anda nia e nao tem por alimento animaes domestieos, mem possue coisas para sua subsistencia das que nés usamos, ¢omo vestimentas, camas, cavallos, (2) Por case tempo, rinda se niio tinha identificnds o inteiro continen- te da America, Os noroa deseobrimentos, isolados, ou deafneados, considera- vam-se Wigs. O Brasil de Hans Staden 4 ainda uma isa. 21 HANS STADEN porees ou vaccas; mem vinho, cerveja, etc., ¢ tem que se arran- jar e viver a seu modo. Quero, porém, para fimalizar com este prefacio, mostrar em poueas palavras o que induzin a Hans Staden a imprimir as suas duas navegacdes e a viagem por terra. Certo, muitos hio de inter- pretar isso em seu desabono, como si quizesse elle ganhar gloria ou notoriedade. En, porém, penso de outra forma e acredito seria- mente que sua intencio & muito diversa, como se percebe em va- rios logares desta historia. Passou elle por tanta miseria e soffren tantes revézes, nos quaes a vida téo a miudo The esteve ameacada, que chegou a perder a esperanca de se livrar ou de jamais voltar ao lar paterno. Deus, porém, em quem sempre confiava ¢ invoca- va, nio simente o livrou das maos de seus inimigos, como tambem, por amor das suas fervorosas oragies, quiz mostrar 4 aquella gente impia que o verdadeiro ¢ legitimo Deus, justo e poderoso, ainda existia. Sabe-se perfeitamente que a oracio do erente niio deve marcar a Deus limite, medida ou tempo; aprouve, porém, a Elle, por intermedio de Hans Staden, 0 demonstrar os seus milagres a estes impios selvagens. E isto nao sei como contestar. Sabe-se tambem como as contrariedades, as tristezas, desgragas e doengas fazem geralmente com que as pessoas se dirijam a Deus e que, na adversidade, nelle acreditam mais do que antes, ou como alguns, segundo o costume catholico, fazem votos a este on Aquelle Santo de fazer romaria ou penitencia, para que elle os livre nos apures, cumprinds rigorosamente essas promessas, a nao serem aquelles que pretendem defraudar o Santo, como nos refere Eras- mus Roterodamus, nos Colloguits sobre o naufragio de um navio de nome 8. Christavam, enja imagem de dez covadoa de alto, como um grande Poliphemo, se acha num templo em Paris, navio em que vi- nha alguem que fizera a promessa a este Santo de offerecer-lhe uma véla de cera do tamanho do proprio Santo, si este o tirasse das suas aperturas. Im companheiro, que estava ao lado nesta oc- easifo, conhecendo-Jhe a pobreza, o reprehendeu por tal promessa; pois ainda que vendesse tudo quanto possuia mo mundo, nao seria eapaz de adquirir a cera de que havia de precisar para tamanha vela. 0 outro, porém, respondeu em voz baixa, que o Santo nfo ou- 22 VIAGEM AO BEASIL visse: “Quando o Santo me tiver salvo destes perigos, dar-lhe-ei uma vela de sebo, do valor de um vintem!” E a historia do ecavalleiro, que esiava arriscado a naufragio, é tambem outra: Esse eavalleiro, quando viu qué o navio ia se per- der, fez voto a S. Nicolau de que, si elle o salvasse, lhe sacrificarin o seu cavallo ou o seu pagem, © criado, porém, advertiu de que niio © fizesse, porque, em que havia de montar depois! O cavalleiro res- pondeu ao eriado, baixinho, para que o Santo nao o ouvisse: “Cala a boca, porque si o Santo me salvar, nfo lhe darei nem a canda do eavallo”. E assim pensava cada um dos dois enganar o Santo e esquecer o bemeficio. Para que, pois, Hans Staden nifio seja taxado assim de esque- eer a Deus que o salvou, assenton elle de o louvar e glorificar com © imprimir esta narrativa e, com espirito christio, divulgar a graga e obra reeebidas, sempre que tiver oceasido, E si esta nao fosse a sua intengio (aliis honesta e juste) podia elle poupar-se a esse tra- balho e economizar a despesa, no pequena que a impressio e_as gravnras lhe eustaram. Como esta historia foi pelo autor humildemente dedieada ao Serenissimo e de elevadissime nascimento, Principe e Senhor, Phi- lipsen, Landtgraf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Diets, Zie- genhain e Nidda, seu Principe ¢ gracioso Senhor, « em mome de sna Alteza o fez publico, e tendo elle sido, muito antes disto, exa- mainado e interrogado por Vossa Alteza em minha presenga e na de muitas outras pessias sobre a sua viagem e prisio, que eu j& por diversas vezes tinha contado 4 Vossa Alteza ¢ a outros senhores, e eomo eu, ha muito, tinha visto e observado o grande amor que Vossa Alteza manifestou por estas e outras sciencias astronomicas e cos- mographicas, desejava humildemente escrever este prefacio ou in- troduceio para Vossa Alteza, e lhe pedir de aceeitar este mimo, até que possa eu publicar eoisa de maior importancia em nome de Vos- sa Alteza. Reeommendo-me submissamente 4 Vossa Alteza. Datum Marpurgk, Dia de 8. Thomé, anno MDLVI. 22 Primeira Parte CONTECDO DO LIVRO 1 — Dunas viagens de mar, effectuadas por Hans Staden, em oito annos ¢ meio. A primeira viagem foi de Portugal, e a segunda da Espanha ao Novo Mundo — America. 2 — Como elle, no paiz dos selvagens denominades Toppini- kin (subditos d’el-rei de Portugal), foi empregado como artilhei- ro contra os inimigos. Finalmente, feito prisioneiro pelos inimigos e levado por elles, permaneceen dez mezes ¢ meio em constante perigo de ser morto ¢ devorado por elles. 38 — Como Deus livron misericordiosa ¢ maravilhosamente a este prisioneiro, no anno j4 mencionado, e como elle tornou 4 sua querida patria. Tudo para honra e gloria da misericordia de Deus, dado 4 im- pressiio.. 25 ihoy. SSTIWTEDONIADSS YANITD at HONE) SANTOR “UNA LIMIHE Guntpal usu utagad PMs 48 WOLUEG Dlzgsbuumageg sue 23) (peudo:quq ayce /uagpang) saurnlag 42] pj aquny sul quaaualjsig asuoaug, tH agaiar Oo / usaf) J enduad na ¢| Bates ard lagaped pjiapiuye ui thay , 7 antes of fenB yung uapuaiad ig I Ag qu yg eS 1b Roc eth eh lt CAPITULO T Do que vale 4 cidade o guarda, E ao navio possunte nos mares, Si Deus 9 elles nio proteger? E Hans Stapen, de Homberg, em Hessen, resolvi, caso Deus quizesse, visitar a India. Com esta intenefio, sai de Bre- men para Hollanda e achei em Campen [Campon] mavios que ten- cionavam tomar carga de sal, em Portugal. Embarquei-me em um delles e, no dia 29 de abril de 1547, chegémos & cidade de Sao Tu- val [Setubal] depois de uma travessia de quatro semanas. Dahi fui 4 Lissebona [Lisbéa], que dista cinco milhas de Sio Tuval. Em Lissebona alojei-me em uma hospedaria, cujo dono era al- lemio e se chamava Leuhr, o Moco, onde fiquei algum tempo. Contei-lhe que tinha saido da minha patria e Ihe perguntei quando esperava que houvesse expedicio para a India. Disse-me que eu tinha demorado demais e que os navios d'El-rei, que na- vegavam para a India, j4 tinham sahido. Pedi-lhe entéo que me auxiliasse no intente de encontrar outro navio, visto que perdéra estes, tanto mais que elle sabia a lingua, e que eu estava prompto a servil-o por minha vez. Levou-me para um navio, como artilheiro. O eapitéo desta nau chamava-se Pintiado [Penteado] e s¢ destinava ao Prasil, para trafiear e tinha ordens de atacar os navios que commerciavam com os mouros braneos da Barbaria. Tambem si achasse nayios fran- cezes em trafico com os selvagens do Prasil, devia aprisional-os, 27 HANS STADEN bem como transportar alguns criminosos (3) sujeitos a degredo, para povoarem as novas terras. © nosso navio estava bem apparelhado de tudo que & neces- sario para guerra no mar. Hramos tres allemfes, um chamado Hans von Bruehhausen, o outro Heinrich Brant, de Bremen, ¢ eu. (8) Era costume, mess Spoce, levarem-se criminosos em dagredo para aa terras recem-descobertas, afim de aprenderem a lingua dos naturaea @ s¢- rem uteis depois ao commercio « & mavegagho. 28 VIAGEM AO BEASIL CAPITULO II Deseripgio da minha primeira viagem de Lissebona para féra de Portugal aimos de Lissebona com mais um navio pequeno, que tambem pertencia ao nosso capitao, e aportamos primeiro a uma ilha, denominada [ha de Madera, que pertence a El-rei de Portugal, e onde moram portuguezes. & grande productora de vinho e de assucar. Ali mesmo, numa cidade chamada Fontschal [Funchal], embarca- mos mantimentos. Depois disso, deixamos a ilha em demanda da Barbaria, para uma cidade chamada Cape de Gel (4), que pertence a um rei mouro, braneo, 2 quem chamam Shiriffi [Sherife]. Esta cidade pertencia, outr’ora, a El-Rei de Portugal; mas foi retomada pelo Shiriffi. Nella pensavamos encontrar os mencionados navies que negociam com os infiéis. Chegimos e achéimos, perto de terra, muitos pesea- dores castelhanos, que nog informaram de que alguns navios esta- vam para chegar, e ao afastarmo-nos, sain do porto um navio bem earregado. Perseguimol-o, aleancando-o; porém a tripolagao esca- pou nos botes. Divisamos ent&o em terra um bote vasio que bem podia nos servir para abordar o navio aprisionado, e fomos buseal-o, Os mouros brancos chegaram entio a eavallo, a protegerem 0 bareo; mas nio podiam aproximar-se por causa dos nossos canhies. Tomémos conta do navio ¢ partimoes com a nossa preza, que con- sistia em assucar, amendoas, tamaras, couros de cabra e gomma arabica, que levimos até a Ilha de Madera, e manddémos o mosso navio menor a Lissebona, a informar a El-Rei e reeeber instruc- goes a respeito da preza, pois que havia negociantes yalencianos ¢ eastelhanos entre os proprictarios. (4) Bo Gabo de Gels na costa de Marrocos, onde esti a cidade © praga de Arzilla, cerca de trinta milhas distants de Tanger, ¢ qua esteve em poder dos Portuguezes até que D. Joio IIE » abandonou. 29 HANS 8TADEN El-Rei nos respondeu que deixassemos a preza na Ilha e con- tinuasemos a viagem, emquanto Sua Majestade deliberava sobre Oo caso. «Assim o fizemos, e navegaimos de nove, até o Cape de Gel, a ver si encontravamos mais prezas. Porém foi em vio; fomos im- pedidos pelo vento, que, proximo da costa, nos era sempre contra- rio. A noite, vespera de Todos os Santos, uma tempestade mos le- vou da Barbaria para o lado do Prasil. Quando estavamos a 400 milhas da Barbaria grande, um cardume de peixes cereou o navio; apanhamos muitos com o anzol. Alguns, grandes, eram dos que os marinheiros chamavam Aibakores. Outros, Bonitas, evam menores, ¢ 30 VIAGEM AO BRABIL ainda a outros chamavam Duredos (5). Tambem havia muitos do tamanho do harenque, que tinham azas nos dois lados, como os morcegos, ¢ eram muito perseguides pelos grandes. Quando perce- biam isso, saiam da agua em grandes cardumes e yoayam, cerca de duas bracas acima da agua; muitos caiam perto e outros longe a perder de vista; depois, caiam outra vez ma agua. Nés os acha- vamos frequentemente, de manha cedo, dentro do bareo, caidos du- rante a noite, quando voavam, E sio denominados na lingua por- tuguezn — pisee bolader (6). Sao os douredos, nome de varias especies de peixes acanthopte- TYgi08- (8) Boo peive toador, como facilmente se deprehende da narrativa. $1 HANS STADEN Dahi chegamos até 4 linha equinoxial onde reinava imtenso ealor, porque, ao meio dis, o sol estava exactamente a pino sobre as nossas cabegas. Durante algum tempo, de dia, nfo soprava vento algum; mas de noite, se desencadeavam, muitas vezes, fortes tro- voadas, acompanhados de chuva e vento, que passavam rapido. En- tretanto tinhamos de velar constamtemente, para que mos nao sur- prehendessem, quando navegavamos a panno. Mas, quando de nove soprou o vento, que se tornou temporal, durante alguns dias, ¢ contrario a nés, julgimos-nos ameagados de fome, si continuasse. Oramos a Deus, pedindo bom vento. Acon- teceu entio, uma noite, por occasiaio de forte tempestade, que nos péz em grande perigo, apparecerem muitas luzes azues no navio, como nunca mais tenho visto. Onde as vagas batiam no costado, la estavam tambem as luzes. Os portuguezes diziam que essas luzes eram um signal de bom tempo que Deus nos mandava, para nos consolar no perigo., Agradeciamos entéo a Deus, depois que des- appareciam, Chamam-se Santelmo, ou Corpus Santon, estas luzes. Quando o dia raiou, 0 tempo se tornon bom, soprande vento favoravel, de modo que vimos claramente que taes luzes sao mila- gres de Deus. Continnimos a viagem através do oceano, com bom vento, A 28 de janeiro [1548] houvemos vista de terra, vizinha de um cabo chamade Sanct Augustin. A cito milhas dahi, chegémos a um porto, denominado Prannenbucke (7). Contavam-se oitenta e quatro dias que tinhamos estado no mar sem ter avistado a terra. Ali os por- tnuguezes tinham estabelecido uma colonia, chamada Marin (8). 0 governador desta colonia chamava-se Arto Kostio (9), a quem en- tregdmos 05 eriminosos; e ali descarregimos algumas mercadorias, que 14 fiearam, Termindmos 08 nossos negocios neste porto, com intuito de proseguir viagem, a tomar cargas. (7) © nome actual Pernambuco, de procedencia do tupi Paranom-buca, que aos ouvidos do narrador soon Pranenbueke, (Vide @ Tupi na Geographia Nacional, de Theodoro Sampaio) . (5) A colonia ahi fundada pelos Portuguotes era a villa de Olinda, a que o gentio comegon a chamar mairy, que quer dizer cidade ou povougio, camo @ coustruiam os curopeos. Dahi a curruptela Mary ou Marim, como Staden aol-a transmitte. (9) Boo nome eatropindo do primeiro donatario da Capitania de Par: 32 VIAGEM AQ BEASIL CAPITULO TIT Como os selvagens do logar Prannenbucke se revoltaram e quizeram destruir a colonia dos portuguezes Ree que os selvagens do logar se tinham revoltado con- tra os portuguezes, o que dantes nunca fizeram; mas agora o faziam por se sentirem escravizados, Por isso, 0 governador nos pediu, pelo amor de Deus, que oceupassemos o logar denominado Garast (10), a cineo milhas de distancia do porto de Marin, onde estavamos ancorados, ¢ de que os selvagens se queriam apoderar. Os habitantes da colonia de Marin nio podiam ir em auxilio delles, porque réeeiavam que os selvagens os viessem atacar. Fomos, pois, em auxilio da gente de Garasi, com quarenta ho- mens do nosso navio e para 14 nos dirigimos numa embareagio pe- quena. A colonia fica num brago do mar, que avanga duas leguas pela terra a dentro. Haveria ali uns noventa ehristfos para a de- fesa. Com elles se achavam mais uns trinta mouros e escravos bra- sileiros (11) pertemcentes aoa moradores. Os selvagens, que nos si- tiavam (12), orgavam por oito mil. Tinhamos ao redor da praca apenas uma estacada de ma- deira (13). nambnce. Staden, ignorande o portuguez, teria eacripto Arto Koelio, por Duarte Coelho. Os copistas fireram o resto, (10) 8 Igarased (igara-assf), cana grande, bareo, em vex de Iguaraa- ni, como erroncamente hoje se cacreve. (11) Bram africans ¢ indios cscravon. (22) Eram os Coctés, moradores das mattaa, inimigos doa Potyguaras, allindos dos Portuguezes. (13) Adoptaram os Portuguezes no Brasil o mesmo procesao de defeza usado pelo gentio nas suas aldeias, construindo estacadaa ou casparas em tor- no dos povoados mais expostos 4 injuria dee selvagens. 33 HANS 8STADEN CAPITULO IV De come eram suas fortificagées e como elles combatiam contra nds ac redor do logar onde estavamos sitiados havia uma matta, na qual tinham construido dois reductos de troncos gros- sos, onde se recolhiam d noite; ¢ quando nés os atacavamos, para li se refugiavam, Ao pé destes reductos abriam buracos no chio, onde se mettiam durante o dia e donde saiam para nos guerrilhar. Quan- do atiravamos sobre elles, caiam todos por terra pensando assim evitar o tiro, Tinkam-nos sitiado tio bem, que néo podiamos sair nem entrar, Aproximavam-se do povoado; atiravam flechas para o ar, visando na quéda nos aleangar; atiravam tambem flechas com algodio seguro com ¢céra a que deitavam fogo com o fim de ineen- diar os tectos das casas ¢ combinavam j4 de antemao o modo de nos devorar guando nos houvessem colhido. Restava-nos ainda algum mantimento, mas este logo se sca- bou. Neste paiz 6 uso trazer diariamente, ou de dois em dois dias, raizes freseas de mandioca para fazer farinha ou bolos; mas os nosses nao podiam se aproximar do logar em que se encontravam essa raizes. Como pereebessemos que nos havia de faltar mantimento, sai- mos em dois bareos por um logar chamado Tamaraka (14) a bus- eal-o. Os selvagens, porém, tinham atravessade grandes troneos de arvores no rio e se postaram muitos delles nas duas margens, eom © intuito de impedir a nossa viagem. Forgdmos, porém, a tran- queira ¢ ao meio dia, mais ou menos, estavamos de volta sfios ¢ salvos. Os selvagens nada nos puderam fazer nas embareagoes; ar- rumaram, porém, porgio de lenha entre a margem e oa bareos, a que deitaram fogo, a vér si os incendiavam, & queimavam uma ¢s- (14) 4 itha de Ttamaracé, que o gentio da terra chamava Ipanesu Ita- maracd, como Staden escreve no desenho junto, e se traduz — dha grande de dtamaracd, da Capitania de Pera Lopes de Souza, Na ilha estava a villa de Nossa Senhora da Conceigio, cabega da Capitania, situada ma parte meri- dional ¢ cerca de mein legua acima da for do rio Igaraasi. 4 VIAGEM AO BRASIL pecie de pimenta, que 14 cresee, com o fim de nos fazerem abandonar as embarcagées por causa da fumaga. Mas nao foram bem suc- cedidos e, emquanto isto, cresceu a maré e nés voltimos. Fomos a Tamaraké, onde os habitantes nos forneceram os mantimentos. Com estes voltimos, outra vez, para o logar sitiado. No mes- mo ponto em que d’antes haviam posto obstaculos tinham og sel- vagens de novo derribado arvores, como anteriormente; mas acima do nivel d’agua e, na margem, tinham cortado duas arvores de modo a ficarem ainda em pé. Nas ramagens amarraram-lhes uns. liames chamados sippo (15) que erescem como Iupulo, porém mais (15) EB o vocabulo cipd, do tupl qipé, que vale dizer — corda-vara —, 35 HANS STADEN grosses, As extremidades ficavam amarradas nas estacadas e, pu- xando por ellas, era seu intento fazer tombar as arvores caindo sobre as nossas embarcagdes. Avangimos para li; forgimos a pas- sagem, eaindo a primeira das arvores para o lado da estacada e a outra ma agua, um pouco para triz do nosso barco. E antes que comecassemos a forgar as tranqueiras, chamamos por nossos com- panheiros da povoagio para virem em nosso auxilio. Quando co- megimos a chamar, em voz alta, gritaram os selvagens tambem, para que os nossos companheiros nos nao ouvissem, visto que mio nos podiam ver por causa de uma pequena matta interposta; mas tio perto estavamos que nos teriam decerto ouvido, si os selvagens mio gritassem. Levémos as provisdes 4 povoagio, e como os selvagens viram que nada podiam fazer, pediram a paz e se retiraram. © eerco du- rava havia quasi um mez e varios dos selvagens morreram ; nenhum, porém, dos christios. Uma vez pacificados os selvagens voltimos ao navie grande em Mearim, ¢ ahi tomf4mos agua e tambem farinha de mandioca para servir de mantimento, e 0 governador da colonia de Mearim nos agradecen. CAPITULO V De como saimos de Prannenbucke para uma terra chamada Buttugaris; encontramos um navio frances e nos batemos com elle [foes quarenta milhas para diante, até um porte chama- do Buttugaris (16), onde pretendiamos earregar 0 uavio com péu-prasil e receber provisies em permuta com os selvagens. Ao chegarmos, ahi encontramos um navio de Franca, que car- isto 6 galho ou ramo em forma do cords, Os selvagens sabiam tirar partido dos om nig sues construccies ¢ mo fabrico de utensia domesticos. 16) Deve ser Potiguares, eomo diziam os Portuguezea, derivado de Poti-guara, papa camaries, appelido de uma magio dos tupis do Nordeste, 36 VIAGEM AO BRASIL veg -prasil, Atacamol-o para o aprisionar, mas eortaram- nos o mastro grande com um tire, ¢ s¢ eseaparam; alguns dos nog- sos morreram e outros ficaram feridos. a op Hepois disto, queriamos tornar para Portugal, visto que nao consegiiamos vento faveravel para entrar no porto, onde pensa- vamos obter mantimentos, O vento era-nos contrario, ¢ assim fomo- Outros untores cscrevem Pefiguorss, exsa em que o Vo- Petw-quera, entio significa mascador de fumo, porque gem deste nome, segundo A. Kuivet, walmente entre oa li bids cos dentes uma folka de fur Amado pelo mir rader — porto dos Buttugaris, nicas para o norte de Igaragt, deve ser 9 da Par: HANS STADEN nos embéra, com tio poneas provisies que tivemos de padecer muita fome; alguns comiam couro de eabritos, que tinhamos a berdo. Distribuiam-se a cada um de nés, por dia, um copinho de agua eum pouco de farinka de raiz brasileira [mandioca]. Esti- vemos assim 108 dias no mar, e no dia 12 de agosto aleangamos umas ilhas chamadas Lose Sores [Los Agores] que pertencem a ELRei de Portugal; ahi langamos ancora, descangémos e pescdmos, Ali mesmo vimes um navio ao mar, ao qual nos dirigimos para ver que navio era, Manifestou ser navio de piratas, que se puzeram em defesa; mas nés fieémos victorioses ¢ lhes tomamos 6 navio., Esca- param nos esealeres para as ilhas. O navio tinha muito vinho e pao, com que nos regalaémos, Depois encontramos umas cinco velas que pertenciam a El-Rei de Portugal e tinham de aguardar nas ilhas a vinda de outro navio das Indias para comboial-o até Por- tugal. Ahi fieimos e ajudimos a levar o navio das Indias, que veiu para uma ilha chamada Tercera [Tereeira], onde fic&mos. Nesta ilba, tinham-se reanido muitos navios, todes vindes do novo mundo; uns iam para a Espanha, outros para Portugal. Saimos da ilha Tercera em companhia de quasi cem navios, e chegimos 4 Lis- sebona [Lisboa], a 5 de outubro, mais ou menos, do anno 1548; tinhamos gasto dezeseis mezes em viagem. Depois, deseancei algum tempo em Lissebona e fiquei com von- tade de ir com os espanhées para as novas terras que elles possuem. Sai por isso de Lissebona, em navio inglez, para uma cidade cha- mada porto Senta Maria (17), na Castilia [Castella]. Ali que- riam carregar o navio de vinho; dahi fui para uma cidade denomi- nada Civilia (18), onde encontrei tres navios que se estavam ap- parelhando para irem a um paiz chamado Rie de Platte, situado na America. Esse paiz, a aurifera terra chamada de Piraw (19) que, ha pouces annos, foi descoberta, ec o Prasil sio tudo uma e mesma terra firme. Para conquistar aquelle territorio, mandaram, ha annos, na- (17) © porto @ cidade de Santa Masia em Espunkn, frontetrs a Cadix, pouco acima di: foz do Guadalete, (18) A eidade de Sevilla na Andis (19) 0 Port, deaceberte em 1524 e conquistudo por Pizarro. psia. 38 VIAGEM AO BRASIL vios dos quaes um valtava pedindo mais ausilio e contou eomo era rico em oure, O eommandante dos tres navios ehamava-se Don Die- go de Senabria e devia ser o governador, por parte d'El-Rei, da- quelle paiz. Fui a bordo de um desses navios que estavam muito bem equipados. Saimos de Civilia para Sanct Lweas (20), por onde a gente de Civilia sae para o mar, e¢ ahi fiedmos esperando bom venta, CAPITULO VI Narragéo da minha segunda viagem de Civilia, em Espanha, para a America N oanno de 1549, no quarto dia depois da Paschoa, fizemo-nos de vela de S. Lucas com vento contrario, pelo que apor- times a Lissebona. Quando o vento melhorou fomos até 4s ilhas Cannarias ¢ deitamos ancora numa ilha chamada Pallama [Palma], onde embareémos algum vinho pera a viagem. Os pilotos dos na- vios resolveram, caso desgarrassem no mar, encontrarem-se em qualquer terra que fosse, no gréo 28 ao sul da linha equinocial . De Pallama, fomes até Cape-Virde [Cabo Verde], isto ¢ a ponta verde, situada na terra dos mouros pretos. Ahi quasi nau- fragamos; mas continudmos a nossa derrota; o vento porém era-nos contrario e levou-nos algumas vezes até a terra de Gene [Guiné], onde tambem habitam mouros pretos. Depois, chegimos a uma ilha denominada 5. Thomé, que pertence a El-Rei de Portugal. & uma ilha rica em assucar, mas muito insalubre. Ahi habitam os portu- guezes com muitos mouros pretos, que lhes pertencem. Tomdmos agua fresca na ilha e continudmos a viagem; perdemos ahi de vista dois dos nosses navies que, por causa de uma tempestade, se afas- taram, de modo que ficimos sés. Os ventos eram-nos contrarios, porque naquelles mares tem elles a particularidade de soprarem do (20) © porto de San Guear de Barrameda, na for do Guadalquevir. 39 HANS STADEN sul, quando o sol esti ao norte da linha equinoeial, e quando o sol esta ao sul desta linha vém elles do norte, e costumam entao perma- necer na mesma direcgio durante cinco mezes, e por isso nao pu- démos seguir o nosso rumo durante quatro mezes. Quando, porém, entrou o mez de setembro, comegou o vento a ser do norte, e entao eontinnamos a nossa viagem de sul-sudoeste para a America. 40 VIAGEM AO BRASIL CAPITULO VII De como chegamos 4 latitude de 28 graos na terra da America e nao pudemos reconhecer o porto para onde iamos, e uma grande tempestade se desencadeou em terra U wu dia, que era o 18 de novembro, o pilote tomou a altura do sol, que era de 28 grios, pelo que procurfmos terra a Oéste, No dia 24 do mesmo mez vimos terra. Tinhamos estado 6 mezes no mar; algumas vezes em grande perigo. Aproximando-nos de terra, néo reconhecemos o porto nem os signaes que o primeiro of- ficial nos tinha deseripio, Tambem nao podiamos nos arriscar a en- trar num porto deseonheeido, pelo que cruzimos em frente 4 terra, Comegou a ventar muito, de tal modo que temiamos ser atirados contra os rochedos, pelo que amarrimos alguns barris vasios, nos quaes puzemos polvera, bem jungidos, e nelles amarramos as nossas armas, de forma que, si naufragassemos e alguns escapassem, teriam com que se defender em terra, porque as ondas levariam os barris para a praia. Continuémos entéo a cruzar, mas debalde, porque o vento atirou-nes contra os rochedos ¢ pareéis com 4 bragas de agua, e i vista dos immensos vagalhées houvemos de apréar para terra, na persnasdo de que todos iamos perecer. Quiz Deus, porém, que ao chegarmos mais perto dos escolhos se nos deparasse porte, no qual entrimos. Ahi avistamos pequeno bareo que fugiu de nés e se eseonden por detréz de uma itha, onde nfo o podiamos ver, nem saber que bareo era; porém no o seguimos. Deitémos aqni ancora, agradecendo a Dens que nos salvou; deseancimos e enxugimos a nossa roupa. Eram mais ou menos duas horas da tarde, quando deit&mos ancora. De tarde, veiu uma grande embareagao com selvagens, que queriam falar comnoseo. Nenhum de nés, porém, entendia a lin- gua delles. Démos-lhes algumas faeas ¢ anzées, com que voltaram. Na mesma noite, veiu mais uma embarcagio cheia, na qual esta- vam dois portnguezes. Estes nos perguntaram de onde vinhamos. Respondemos que vinhames de Espanha. A isto replicaram que de- 41 HANS STADEN yiamos ter um bom piloto, que pudesse nos levar ao porto, porque, apezar de elles bem o conhecerem, com uma tempestade destas nao poderiam ter entrada. Contimos-lhes entio tudo e como o vento é as ondas quasi nos fizeram naufragar; e quando nos julgavamos perdides, ganhamos imesperadamente o porto. Foi, pois, Deus que nos guiou milagrosamente e nos salvou do naufragio; e nem sabia- mos onde estavamos. Ao ouvirem isso, admiraram-se muito e agradeceram a Deus ¢ nos disseram que o porto onde estavamos era Supraway (21), ¢ que (21) Hoje Superaguy, numa lingua de terra 4 parte do norte da barra do Poranagué. 42 VIAGEM AO BRASIL estavamos a 18 leguas de uma ilha, chamada 8. Vineente (22), que pertencia a El-Rei de Portugal, ¢ li moravam elles e aquelles ou- tros que tinhamos visto no barco pequeno a fugirem por pensarem que eramos francezes. Perguntimos tambem a que distancia ficava a ilha de Santa Catharina, para onde queriamos ir. Responderam que podia ser umas trinta milhas para o sul e que 14 havia uma tribu de selva- gens chamados Caries [Carijés] © que tivessemos cantela com elles. Os selvagens do porto onde estavamos, chamavam-se Tuppin Ikins [Tupiniquins] © eram seus amigos, de modo que néo corriamos pe- rigo. Perguntémos mais em que latitude estava o lugar, ¢ responde- Tam-nos que estava a 28 gréos, o que era verdade. Tambem nos en- sinaram como haviamos de conhecer o paiz. CAPITULO VIIL De como saimos outra vez do porto a procurar o logar para onde queriamos ir Ov o vento de es-suéste cessou, melhorou o tempo com o vento de nordéste. Levantimos entaio ferro ¢ rumaimos para a terra ja mencionada. Viajamos dois dias, 4 procura do porte, mas nio pudémos reeonhecel-o. Pereebemos, porém, pela terra que j4 tinhamos passado o porto, uma vez que, encoberto o sol, nao podiamos fazer observagdes, nem voltar com vento contrario. Mas Deus é salvador nas neeessidades, Ao fazermos a nossa oragae vespertina, implorando a proteccio de Dens, acontecen que muvens grossas se formassem ao sul para onde tinhamos avangado. Antes de terminada a reza, 0 Nordéste acalmou, de modo a niio ser (22) A ilha de 8. Vicente fica, verdade, mais distante de que nol-o diz o narrador, si as suas leguas forem das de vinte ao grio. Destas contam- ee 48 entre os dois pontos. 43 HANS STADEN mais perceptivel, e o vento sul, apezar de nao ser a época do anno em que elle reina, comegou a soprar, aecompanhado de tantos trovées e re- lampagos, que fiekmos amedrontados. O mar tornou-se tempestuo- so, porque 9 vento sul, de encontro ao do norte, levantava as ondas, e tio eseuro estava que se nio podia enxergar. Os grandes relam- pagos e os trovies atemorizavam a tripolagio, de modo que ja nin- guem sabia o que fazer, para colher as velas. Esperavamos todos perecer aquella noite. Deus, porém, fez com que o tempo mudasse ‘¢ melhorasse; e voltimes para o logar de onde tinkamos partido naquelle dia, proeurando de novo o porto, mas sem o conseguirmos, por causa das muitas ilhas proximas da terra firme. Como chegassemos ao gréo 28, disse o eapitiio ao pilote qne en- trasse por detriz de uma ilha e deitasse ancora, afim de ver em que terra estavamos, Entrémos, ento, entre duas terras, onde havia um porto exeellente, deixamos a ancora ir ao fundo e deli- beramos tomar o bete para melhor explorar o porto. CAPITULO IX De como alguns dos nossos sairam no bote para reconhecer © porto e acharam um crucifixo sobre uma rocha F or no dia de Santa Catharina, no anno de 1549, que deitimos ancora, ¢, no mesmo dia, alguns dos nossos, bem municia- dos, sairam no bote para explorar a bahia. Comec4mos a pensar que fosse um rio, que se chama Rio de S. Francisco, situado tam- bem na mesma provincia, pois que, quanto mais entravamos, mais cumprido parecia. Olthavamos de vez em quando, a ver se deseobriamos alguma fomaga, porém nada vimos. Finalmente, parecen-nos ver mas ca- banas e para li nos dirigimos. Eram jé velhas, sem pessoa alguma dentro, pelo que continudmos até de tarde. Entaéo vimos uma ilha pequena na frente, para a qual nos dirigimos, a passar a noite, jul- 44 VIAGEM AO BRASIL gando haver ali um abrigo. Chegdmos 4 ilha, jf noite; nito podia- mos, porém, arrisear-nos a irmos 4 terra, pelo que algans dos nos- sos foram rodeal-a a ver si por ali havia gente; mas no descobri- ram ninguem. Fizemos entao fogo ¢ cortamos uma palmeira, para comer o palmito, e ficimos ali durante a noite. De manha cedo, avangimos pela terra a dentro. Nossa opiniao era que havia ali gente, porque as cabanas eram disto um indicio. Adiantando-nos, vimes ao longe, sobre uma rocha, um madeiro, que mos pareceu uma eruz ¢ nfo comprehendiamos quem a teria posto ali. Chegémos a ella e achimos uma grande eruz de madeira, apoiada com pedras ¢ com um pedaco de fundo de barril amarrado e, neste fundo, gra- vadas umas letras que nio podiamos lér, nem adivinhar qual o na- vio que teria erigido esta cruz; ¢ mio sabiamos si este era o porto onde deviamos nos reanir. Continndmos entéo rio acima ¢ levamos © fundo do barril, Durante a viagem, um dos nossos examinou de nove a inscripgao ¢ comegou a comprehendel-a. Estava ali gravado em lingua espanhola: 81 VEHN POR VENTURA, ECKY LA ARMADA DE Sc Masester, 1EN UHN TIRE AY aVERAN RECADO (se viene por ventura aqui la armada de sn magestad, tiren un tiro y haran re- eado). Isto quer diver: Si por acase aqui vierem navios de sua ma- jestade, dém um tiro e¢ terao resposta. Voltimes entio sem demora para a eruz e disparimos um tiro de pega, eontinuando depois, rio acima, a nossa viagem. Poueo depois, vimos cinco candas com selvagens, que vieram sobre nés, pelo que apromptiimos as nossas armas. Chegando mais perto, vimos um homem vestido e barbado que vinha 4 préa de uma dias candes e nos parecia christio. Gritamos-lhe para fazer alto a3 ‘outras canéas ¢ vir com uma sé a conversar comnosco. Quando se nos aproximou, perguntimos-lhe em que terra estavamos; ao que nos responden que estavamos no porto de Schirmirein (23), assim (23) Jurumirim, noma dado pelo Carijés, habitantes da ilha de Santa Catharina, 4 boca do norte do canal que separa esta ilha do continente. No tupi, — jurd-mirim, we traduz boca pequena, barra, © navio de Senabria avia- tou primeiro e entrou a barra do sul do eansi entre o continente 6 a ilha, onda aneorou. Navegou no canal como ge féra um rio, caja corrente sublra em um ‘bote, © j4 proximo da barra do norte & que se encontrou, mo porto de Jurumi- vim ‘dos Carijés, com o eurcpen que Ihe aeudira ao signal. 45 HANS STADEN denominado pelos selvagens, e para melhor o entendermos, acere- scentou ¢hamar-se Santa Catharina, nome dado pelos descobridores. Alegrou-nos muito isto, porque este era o porto que procura- vamos, sem ¢conhecer que jf nelle estavamos, eoincidindo ser isso no mesmo dia de Santa Catharina. Véde, pois, como Deus soecorre aquelle que no perigo o implora com fervor. Entao nes perguntou elle de onde vinhamos, ao que respon- demos que pertenciamos 4 armada do Rei da Espanha, em eaminho para o Rio de la Platta, e que havia mais navios em viagem, que esperavamos, com Deus, ehegassem logo para nos unirmos a elles. 46 VIAGEM AO BRASIL A isto respondeu elle que estimava muito e agradecia a Deus, por- que havia tres annos que tinha sahido da provincia do Rio de la Platta, da cidade chamada la Soncion (24), pertencente aos espa- nhées, por ter sido mandado 4 costa, cidade distamte 300 milhas do logar onde estavamos, para fazer com os Cariis, que eram ami- gos dos espanhées, plantassem raizes que se chamam mandioca e supprissem as naus que disso precisassem. Kram essas as ordens do eapitio que levara as ultimas novas & Espamba e se chamava Sa- Jaser (25) e que agora voltava com outras naus. Acompanhados entio dos selvagens até 4s cabanas onde elle morava, ali fomos bem tratados . CAPITULO X Como me mandaram 4 nossa nau grande numa canéa cheia de selvagens EDIU entio © nosso capitio ao homem, que achdmos entre os selvagens, que mandasse vir uma canéa, com gente que le- vasse um de nés 4 nau, para que esta tambem pudesse vir. Ordenou-me que seguisse com os selvagens até 4 nau, ausentes della como estavamos ji tres noites, sem que a gente de bordo sou- besse que fim tinhamos levado. Quando chegnei 4 distancia de um tiro da nau, fez-se 14 om grande alarido, pondo-se em guarda a maruja ¢ nao econsentindo que mais perto chegassemos com a canda. Gritaram-me, indagande do que havia acontecido, onde fiearam os outros e como & que vinha ea sézinho naquella ecanéda cheia de selvagens. Calei-me; mio res- (24) A cidade de Assumpgiio, no Paraguay, entiio accessivel pelos por- tos de Santu Catharina, desde a primeira viagem de D. Alvaro Nufiex Ca- beza de Vaea, governador daquella terra. (25) Jogo de Salazar, um dos eompanheitos de D. Pedro de Mendoza, na fundagio da cidade du Buenos-Aires em 1534. 47 HANS BTADEN pondi, porque o Capitie me ordendra que fingisse estar triste e observasse o que se fazia a bordo. Como Ihes nfo respondi, diziam 14 entre si: “Aqui ha eoisa; os outros, de certo, estio mortos e estes agora vem com aquelle sé, para armar-nos uma cilada e tomar o navio”. Queriam entao atirar contra nos, porém chamaram-me ainda uma vez. Comecei entdo a me rir e Ihes disse que ficassem tranquillos, pois que lhes trazia boas movas, e com isso permiltiram que me aproximasse. Contei entdo o que se tinha passado, 0 que muito os alegrou, ¢ os selva- gens voltaram sézinhos. Seguimos logo com a nan até perto das eabanas, onde fundedmos, & espera das outras naus, que se tinham deagarrado por effeito da tempestade. A aldeia onde moravam os selvageus chamava-se Acuttia (26) eo homem que ld achimos chamava-se Jofio Fernandez Biscainho, da cidade de Bilbao. Os selvagens eram Carios [Carijés] e trou- xeram-nos muita eaga e peixe, dando-lhes nés anzdes em troca. CAPITULO XI Como chegou a outra nau da nossa companha, que se tinha desgarrado e onde vinha o primeiro piloto G~ cerea de tres semanas de espera, chegou-nos a nau em que vinha o primeiro piloto; mas a terceira nau era perdida de todo e mada mais soubemos della. Apparelhamos, entio, para sair e fizemos provisio para 6 mezes, pois havia ainda cerea de 300 leguas de viagem por mar. Quando tudo estava prestes, aconteceu-nos perder a nau grande no porto, o que impediu a nossa partida. (26) 2 do tupi Aguti, on dcoti, que hoje se diz Cutia, nome do conhe- sido reedor (Dasyprosta). O nome aguti cu a-cuti, no tupi, quer dizer — aguelle que come de pé, de refarencia ao habito do animal deate nome de tomar a abngato com as pattas dianteiras, o que Ibe dé, quando come, a attitude erecta. 48 VIAGEM AO BRASIL Ficimos ahi dois annos no meio de grandes perigos e soffrendo fome. Tinhamos que comer lagartos, ratos do campo e outros ani- mues exquisitos, que logravamos colher, assim como mariscos que vivem nas pedras e muitos bichos extravagantes. Os selvagens que nos davam mantimentos, 56 o fizeram emquanto recebiam presen- tes de nossa parte; fugiram depois para outros logares e como néo podiamos fiar-nos nelles, dissuadimo-nos de ahi eontinuar com pe- rigo de perecer. Deliberimos, pois, que a maior parte dos nossos devia ir por terra para a provincia de Sumplien (27), dahi distante cerca de 300 milhas. Os outros iriam no navio que restava. O capitio con- ‘servava alguns de nés, que iriam por agua eom elle. Os que iam por terra levavam mantimentos e alguns selvagens. Muitos delles, é certo, morreram de fome no sertio; mas os outros chegaram ao seu destino como depois soubemos; entretanto, para o resto dos nos- ‘sos homens 0 navio era pequeno demais para navegar no mar. CAPITULO XII ‘Como deliberamos ir a 8. Vincente, que era dos portuguezes, a arranjar com elles um navio para fretar, e terminar assim a nossa viagem; porém, naufragamos e ngjo sabiamos a que distancia estavamos de 8. Vincente O: portuguezes tém perto da terra firme uma ilha denominada 5. Vincente (Urbioneme [28], ma lingua dos selvagens). Esta ilha se acha a cerca de 70 milhas do logar onde estavamos. Era nossa intengio irmos até 14, a vermos si possivel era havermos (27) A provincin do Paraguay, cuja capital, Assumpeiio, era entio o mais prospero estabelecimento dos Espanhées mo Rio da Prats, depois do mallogre de Mendoza em Buenos-Aires. © caminho por terra. para Assumpgio continuon praticado desde a viagem que por elle fizera D, Alvaro Nufiez Ca- beza de Vaca em 1541. (28) Urbioneme, si proeedente do tupi, como o diz Staden, deve ser amui provavelmente Urpidneme que outros eserevem Morpion. 49 HANS STADEN dos portuguezes um barco de frete ¢ seguirmos até o Rio de la Plat- ta, pois que o que tinhamos era pequeno demais para nés todos. A este fim, alguns dos nossos partiram com o capitdo Salasar para a ilha de 8. Vincente; mas nenhum de nés tinha 14 estado, excepto um de nome Ramon que se obrigou a mostrar a ilha. Saimos, pois, do forte de Inbiassape (29) que se acha no gréu 28, ao sul do Equinoxio, ¢ chegamos cerca de dois dias depois da (29) E vocabulo tupi que signifies porto, logar na extremidade sul do eanal de Santa Catharina, onde ancorou a nan de Senabria. O forte do Jm- Biassape (mbeagd-pe) deve ter sido algume estacada para a defen dag pa- Ihogas em que, por dois annos, abi se abrigou a tripulagio. 50 WAGER A AQ BHAGL ta nossa partida a wma ilha chamada Alkatrases (30), mais ou menos a 40 milhas do logar de onde saimos. Ali o vento se tornou con- trario ¢ nos obrigou a ancorar. Na ilha havia muitos passaros ma- vitimos chamados lkutrases, que so faeeis de apanhar. Era tem- po da incubagio. Desembareimos, para procurar agua potavel ¢ encontrimos cabanas velhas ¢ cacos de panellas dos selvagens, que li tinham morado. Tambem achimos wmas pequenas fontes na ro- cha. Ali matimos muitos daquelles passaros e Ihes levamos 08 ovos para bordo, onde os cozinhimos. Acabada a refeigio, assaltou-nos grande tempestade do sul que nos fez receiar largassem as aneoras e fosse a man arremessada sobre os rochedos. Isto ja pela tarde, e pensavamos ainda aleangar o porto chamado Canines (31). Mas anoitecen antes de chegarmos, e néo pudémos entrar. Afastdmo- nos entio de terra com grande perigo, pensando a cada instante que aa vagas despedagassem o navio, pois que perto da terra slo ellas muito maiores do que ao longe no alto mar. Durante a noite tinhamos-nos afastado tanto, que de manha j4 néo enxergimos mais a terra. Simente muito depois, appareceu ella 4 vista, mas a tempestade era tamanha, que pensimos nao re- sistir. Entao aquelle dos nossos que j4 aqui tinha estado julgou re- econhecer S. Vincente, e aprodmos para li. Uma grande neblina, porém, nos nao deixou reeconhecer bem a terra e tivemos de alijar tudo que era pesado para aliviar o navio, Estavamos com muito medo, ainda assim avangimos com o intuito de encontrar o porto, onde moram portuguezes, mas nos engandmos. Quando emfim a nevoa se dissipon um pouco, deixando ver terra, disse Ramon que se lembrava de estar o porto ali & nossa (30) A ilha dos sleatrazes, a actoal, flea fronteira quasi 4 ilha de Sao Vieente, O autor, perim, refere-se aqui a outra ilha muito mais oo sul, dia- tante cerea de 40 milhos do porto donde partirs a nou, que fieavn a 25* lati- tude sul, e S. Vicente ihe ficava a 70. Guardada a devida proporgio para as milhes allomfs, eaaa ilha dog Alentrazes pode ser algum doa ilhéoa na altura ‘du barra de Paranagud. (31) Eo porto de Cananéa em §. Paulo, bastamte conhecido desde og primeiros tempos do descobrimento. Staden escreve Caninee, 0 que combina quasi com Canené da graphia de frei Vicente do Salvador na sua Historia do Brasil de 1627, 0 que faz suppor que essa nome era de primitiva procedencia indigenn, isto & Canines, Canand, equivalente a Canindé, nome de uma cope- tie de arara, 51 HANS STADEN frente e bastava dobrar o promontorio para o aleangarmos por de- traz, Seguimos entio; mas quando chegdémos sé vimos a morte, por- que nio era ali o porto, o que nos obrigou a embicar para a terra e naufragar. As ondas batiam medonhamente contra a terra, ¢ ro- gémos a Deus que nos salvasse a alma, fazendo o que os marinheiros costumam quando estio em perigo de naufragio. Ao chegarmos ao ponto onde as vagas arrebentavam, suspen- diam-nos ellas tio alto como si estivessemos sobre uma muralha. Logo ao primeiro baque em terra a nau se despedacou. Alguns sal- tavam no mar e nadavam para a costa, outros ali chegavam agar- rados aos destrocos do navio. Assim Deus nos ajudon a chegar vivos em terra, continuando o vento e a chuva, que quasi nos enrege- lavam. CAPITULO XTIT Como viemos a saber em que paiz de selvagens tinhamos naufragado Gre 4 terra, demos gragas a Deus que nos concedeu de aleancar vivos a costa, ainda que inquietos por niio saber- mos em que logar estavamos, visto que o Ramon niio conhecia aquella paragem, nem sabia si estavamos longe ou perto de §. Vincente, ou si ali havia selvagens que nos pudessem fazer mal. Um dos com- panheiros, de nome Claudio, que era franecez, comegou a correr pela praia para se aquecer, quando de repente reparon mumas casas que ficavam por detriz do matto e que se pareciam com casas de chris- tios. Dirigiu-se entao para 14 e den com um logar onde morayam portuguezes ¢ se chamava Itenge-Ehm (32), cerea de duas milhas (82) ® a barra de Itanknem, grapbado 0 nome como sonra aos ouvidos dc narrator — Itenge-Kim, — na. costa ao Sudoeste de §. Vicente, onde ja, nesse tempo, havia um nucleo de colonos portuguezes. O nome indigena pro- vede de ifd nisen, que significa — bacla de pedro, — muito conforme com o aspecto da localidade que 4 deveras ume bacia rodeada de pedras, daa quace. na inaia alta esti o igreja de N.* S.* da Conceicho. 52 VIAGEM AQ BRASIL distante de 8. Vincente. Contou-lhes entio o nosso naufragio ¢ 0 muito frio que soffriamos sem termos para onde ir. Quando isso ouviram viéram correndo ao nosso encontro ¢ nos levaram para suas easas, dando-nos roupas. Ahi permanecemos alguns dias, até ga- nharmos forgas. Deste logar, fomos por terra até 8, Vineente, onde og portu- guezes nos receberam bem e nos déram alimento por algum tempo. Uma vez verifieada a perda das nossas naus, mandou o Capitio um navio portuguez & busea dos outros companheiros nossos que ti- oham ficado em Byassape (33), 0 que se realizon. CAPITULO XIV Como esta situado S. Vincente S* Vexcente é uma ilha muito proxima da terra firme e onde ha dois logares, um denominado em portuguez 8. Vincente é na lingua dos selvagens — Orbioneme (34). O outro, que dista eerea de 2 leguas, chama-se Yiwawasupe (85), além de algumas casas na ilha que se chamam Jngenio (36), nas quaes se faz assu- ear. Os portuguezes, que ahi moram, tém por amiga uma nago brasiliea de nome Tuppin ikin (37), eujas terras se estendem pelo (33) o mesmo porto de Jm%iassmpe, donde saira a nau de Senabria para 8, Vicente. A graphin do autor & meito incerta nos nomes barbaros. Byesape aqui, Inbiassape no capitulo antecedonte. No tupl, como vimos, mbea- cé-pe, de que muis commumente se fee — peagd-pe, ‘e significa literalmente, no porta ou ao porto, (34) Orbidneme ou Urbidneme, como no Cap. XII. (35) Ywowosupe parece correspouder ao vocabulo tupi Iguaguassupe, isto & igud-guatei-pe, que vale dizer — no lagemar grande, querendo referir- ae provavelmente ao canal ou brago grande onde se crguen depois a eidade do Santos. (36) Ingenio por Engenho, fabrien de assucar de propriedade do do- natario que depois a atrendou a Jorge Erasmo Seheter, e se chamou, por isto, — fezenda de trate — de 8, Jorge dos Erasmos. (37) 0 gentio Tupiniquim dominava, com effeite, nessa epoca, o lites ral paulieta na mdr parte de sua extensio, partindo #0 norte com os Tupinam- bdg do Rio de Jancito, « a0 sul com os Corijés. Desconhecida era a extensio do sev dominio no sertio; 9 autor, porén, avalin isso um oltenta leguas apro- ximadamente, Nesse ambito se comprehendiam os Guayanazes, quer os do eampo, quer oa do matto, os quoca se ligavam por vezes aos Tupiniquins por 58 HANS BTADEN sertéo a dentro, cerca de 80 leguas ¢ ao longo do mar umas 40 Ie- guas, Esta nacdo tem inimigos para ambos os lados, para o Sule para o Norte. Seus inimiges para o lado do Sul chamam-se Carios (Carijés] e os do lado do Norte Tuppin-Inba. Apelidam-nos Toa- waijar (38) 08 seus eontrarios, o que quer dizer imtmigo. Soffrem- Ihes os portuguezes muitos damnos e ainda hoje delles se arreceiam. logos consanguineos, como nol-o tramsmitte Anchieta, Os Guayanazes nio oram, porém, tupia. (38) Towatjar, a significar — centrarie, ou fmimigo, se cacreverii no tupi Toboiguara, que vale diser — sronteiro, opposto, ou literalmente — in- dividua em face. Tawaijar, tomado eomo Tabayar ou Tabayara, quer dizer — atnhor de aldeiaa, aldeides, moradores de aideias. 54 VIAGEM AO BRASIL CAPITULO XV Como se chama o logar donde Ihes vem a maior perseguigio e como est4 situado A cinco milhas de S. Vineente ha um logar denominado Brt- Kioka (39), onde os inimigos selvagens primeiro chegam, para dahi seguirem por entre uma ilha chamada Santo Maro (40) e a terra firme. Para impedir este caminho aos indios, havia uns irmiios ma- melueos, oriundos de pae portugues e mae brasileira, todos chris- taos e tio versados na lingua dos ebristios, como na dos selvagens. © mais velho chamava-se Johan de Praga [do&o de Braga], o se- gundo Diego de Praga [Diogo de Braga], 0 terceiro Domingo de Praga [Domingos de Braga], o quarto Francisco de Praga [Fran- ciseo de Braga], o quinto Andréa de Praga [André de Braga] e o pae chamava-se Diego de Praga [Diogo de Braga]. Cerca de dois annos antes da minha vinda, os ¢inco irmiios ti- nham decidido, com alguns indios amigos, edificar ali uma case forte para deter os contrarios, o que j& tinham executado. A elles se ajuntaram mais alguns portuguezes, sens aggrega- dos, porque era a terra boa. Os inimigos Tuppin-Inbas, logo que isso descobriram se prepararam na sua terra, d’ali distante cerca de 25 milhas, e vieram uma noite com 70 candas e, como de seu ¢os- tume, ataearam de madrugada, Os mamelucos ¢ os portuguezes eorreram para uma essa, que tinham feito de piu a pique e ahi se (89) Brickioka & corruptella do nome tupi Piraty-oca, donde prorede o actual — Bertioga, nome do canal que separa a ilha de Santo Amaro do com- tinente. O autor teria escripto Briticka e o copista Brikioka, o que deu azo a interpretagées diversas. O canal & um excellente abrigo dos cardumes de tni- nhas (pirofy) © o indio quiz significar isso com o nome de Piretyooa que vale dizer — paredetro dag tainhas. © vocabulo tupi piraty evoluiu na dieedo por- tuguera para paraty, donde depois vieram party, barty, berty ow berti que 6 eomo ora se yé na composicho do nome Bertioga. (40) Santo Amaro 4 6 nome dado pelos Portuguezes 4 ilha, vizinha de B. Vicente, a que o gentio chamava Guaybe ou Guaimbé, ¢ que foi o nome da capitania doada a Pero Lopes de Souza na zona do Sul. 55 HANS STADEN defenderam. Os outros selvagens fugiram para suas casas e resis- tiram quanto pndéram. Assim morreram muitos inimigos, Mas por fim venceram estes e incendiaram o sitio de Brikioka; eaptu- raram todos os selvagens, mas aos christfios, que eram uns cito mais ou menos, ¢ a0$ mamelucos nada puderam fazer porque Deus quiz salval-os. Aos outros selvagens, porém, que tinham capturado, es- quartejaram-n'os e repartiram-n’os entre si, depois do que volta- Tam para sua terra. CAPITULO XVI Como os portuguezes reedificaram Brikioka e depois fizeram uma casa forte na ilha Santo Maro epois disto pensaram as autoridades e o povo que era bom nio abandonar este logar, mas que cumpria fortifical-o, pois que deste ponte tedo o paiz podia ser defendido. E assim o fizeram. Quando os inimigos perceberam que o logar lhes offerecia grande difficuldade de ataque, vieram de noite, mas por agua, @ aprisionaram a quantos encontraram em 8. Vincente. Os que mo- ravam mais longe pensavam nao ecorrer perigo, visto existir uma easa forte na vizinhanga, pelo que soffreram muito. Por causa disso, deliberaram os moradores edificar outra easa so pé da agua, e bem de fronte de Brikioka, e ahi collocar canhoes e gente para impedir os selvagens. Assim tinham comecado um forte ma iba; mas nado o tinham aeabado, 4 falta de artilheiro por- tuguez que se arriseasse a morar ali, Fui ver o logar., Quando os moradores souberam que eu era allemaio e que entendia de artilharia, pediram-me para ficar no forte ¢ ajudal-os a vigiar o inimigo. Promettiam dar-me compa- nheiros ¢ um bom soldo. Diziam tambem que si eu o fizesse, seria estimado pelo Rei, porque este costumava ver com bons olhos 56 VIAGEM AO BRASIL aquelles que, em terras assim mnovas, contribuiam com seu auxilio e seus conselhos. Contraetei com elles para servir 4 mezes na casa, depois do que um official devia vir por parte do Rei, trazendo navios, ¢ edi- ficar ali um forte de pedra, para maior seguranga; o que foi feito. A maior parte do tempo estive no forte com mais tres ¢ tinha al- gumas pceas commigo, mas estava sempre em perigo dos selvagens, porque a easa ndo estava bem segura. Era necessario estar alérta Para que os selvagens néo nos surprehendessem durante a noite, Oo que varias vezes tentaram; porém, Deus sempre nos ajudou, e sempre os pereebemos. Depois de alguns mezes, chegon um official por parte do Rei, pois que lhe tinham eseripto quio grande era o atrevimento dos gel- vagens ¢ o mal que os mesmos lhe faziam. Tambem tinham escri- pto quio bella era esta terra e nfo ser prudente abandonal-a. Para entéo melhorar essas condi¢des, ven o governador Tome de Susse [Thomé de Souza] para vér o paiz e o logar que queriam forti- fiear. Contaram-lhe tambem 08 servigos que eu tinha prestado; e que eu tinha ficado na casa forte onde alids nenhum portuguez queria permanceer, por estar muito mal defendida. Isso a agradou muito ¢ elle disse que ia falar ao Rei a meu res- peito, si Deus The permittisse voltar para Portugal, com o que eu havia de aproveitar. Acabou, porém, o tempo de meu servico, que era de quatro mezes, e pedi licenca. O governador, com todo o povo, pedin-me que ficasse por mais algum tempo. Respondi que sim e que ficava. ainda por dois annos; ¢ quando acabasse este tempo, tinham de dei- xar-me voltar no primeiro navio para Portugal, onde o Rei havia de recompensar os meus servicos. Para este fim, deu-me o gover- nador, por parte do Rei, as minhas privilegia [patentes], como 4 de costume dar-se aos artilheiros reaes, que as pedem. Fizeram a casa de pedras, puzeram dentro alguns canhies e ordenaram-me que zelasse bem da casa e¢ das armas, 57 HANS STADEN CAPITULO XVIL Como e por que motive tinhamos de observar os inimigos mais numa época do anno do que em outra Ra necessario estar mais alerta em duas épocas do anno do que no resto, quando os inimigos tratavam especialmente de invadir com forgas o paiz. E estas duas époeas cram: primeiro, no mez de novembro, quando umas fructas de nome Abbatt (41) amadureeiam, e das quaes preparavam uma bebida chamada Kaa wy (42). Além desta, ha tambem uma raiz denominada mandioka, que misturam com o abbati, quando maduro, para fazer a sua be- bida. Quando voltam de wma guerra, querem ter os abbatis para fabricarem essa bebida, que é para quando comem os inimigos, si tiverem capturado algum, e durante o anno inteiro esperam com impaciencia o tempo doa abbatis. Tambem em agosto deviamos esperalos, porque neste tempo viio 4 caga de uma especie de peixe, que entio stem do mar para agua doce, onde desovam. Estes peixes chamam elles em sua lin- gua Bratii (43) [parati] ¢ os espanhdes lhes dao o nome de Lysses, Neste tempo costumam sair para o combate, com o fim de ter tam- bem mais abundancia de comida. Os tacs peixes, elles apanham com pequenas redes ou matam-n’os com flechas, e levam-n'os frites com- sigo, em grande quantidade; tambem fazem delles uma farinha, a que chamam Pira-Kui (44). (41) Abbati ou avaty 6 0 milho na lingua do gentio tupi. (42) Kaa wy, 6 0 mesmo cauim, bebidi preparada com o milho masti- gado¢ fermentado. ) Fratti 6 9 mesmo poraty do gentio, que em portuguex se chama = toinka, (44) Pird-kud 6 0 vocabulo tup! — pird-ow!, que se traduz — farinha de peize, porque fabricada com o peixe secco e moquendo. 58 WLlAGE AM AU Bh AGL Ty CAPITULO XVIII Como fui aprisionado pelos selvagens ¢ como isso aconteceu I mila commigo um selvagem de uma tribu denominada Cariés, que era meu eseravo, Elle eagava para mim e com elle fui As vezes ua matto. HANS STADEN Aconteceu, porém, uma vez que um espanhé! da Ilha 8. Vin- eente veiu me visitar na ilha de Santo Maro, que fica a cerea de 5 milhas, ¢ mais um allemao de nome Heliodorus Hessus, filho de Eobanus, fallecido. Este morava na ilha de $. Vineente, num in- genio (45) onde se fabricava assucar. Este ingenio pertencia a um genovez que se chamava Josepe Ornio (46) [Giuseppe Adorno] & o Heliodorus era caixeiro e gerente do negociante, dono do inge- nio (ingénia sio casas onde se fabrica assucar). Jé conhecia este Heliodorus, porque quando naufraguei com os espanhdes, estava elle com a gente que encontrimos em 5. Vincente ¢ ficou desde entio meu amigo. Veio elle para ver-me, pois tinha sabido talvez que eu estava doente. No dia anterior tinha en mandado o meu escravo para o matto a procurar caga, ¢ queria ir buseal-a no dia seguinte para ter al- guma coisa que comer, pois naquelle paiz nio ha muita coisa mais, além do que ha no matte. Quando eu ia indo pelo matto, ouvi dos dois lades do caminho uma grande gritaria, como costumam fazer os selvagens, e avan- gando para o meu lado, Reconheci entio que me tinham cereado e apontavam as flechas sobre mim ¢ atiravam, Exelamei: Valha-me Deus! Mal tinha pronunciado estas palavras quando me estende- Tam por terra, atirande sobre mim e picando-me com as langas. Mas nao me feriram mais (gracas a Deus) do que em uma perna, despindo-me completamente. Um tirou-me a gravata, outro o cha- péu, o terceiro a ecamisa, ete., ¢ comecavam a disputar a minha pos- se, dizendo um que tinha sido o primeiro a chegar a mim, ¢ o outro, que me tinha aprisionado. Emquanto isto se dava, bateram-me og outros com os arcos. Finalmente, dois levantaram-me, ni como es- tava, pegando-me um em um brago ¢ o outro, no outro, com muitos atriz de mim e assim correram commigo pelo matto até o mar, onde tinham suas canéas. Chegando ao mar vi, 4 distancia de um tiro de pedra, uma ou duas candas suas, que tinham tirado para terra, (45) Leia-se engendo, fabriea de asaucar no Bragil. (46) Bo nome estropeado do gonover Giusseppe Doria, de que entre o8 portuguezes se fex — José Adorno, homem emprehendedor ¢ tronco de fami- dia notavel noa primeiros tempos da eolonia. 60 VIAGEM AO BRASIL por baixo de uma moita e com uma porgéo delles em roda, Quando me avistaram, trazido pelos outros, correram ao nosso encontra, enfeitados com plumas, como era costume, mordendo os bracos, fa- zendo-me com isso comprehender que me queriam devorar. Diante de mim, ia um rei com o bast&io que serve para matar os prisionei- ros, Fez um diseurso e contou como me tinham eapturado e feito seu eseravo o peret (47) (assim chamam aos portuguezes), queren- do vingar em mim a morte de seus amigos. E ao levarem-me ate as canéas, alguns me davam bofetadas. Apressaram-se entéo em arrastar as candas para a agua, de medo que em Brikioka jA esti- yessem alarmados, como de facto estavam. Antes, porém, de arrastarem as canéas para a agua, maniata- Tram-meé &, como niio eram todos do mesmo logar, cada aldeia ficou zangada por voltar sem nada e disputavam com aquelles que me detinham. Uns diziam que tinham estado tio perto de mim como os outros, e queriam tambem ter sua parte, propondo matar-me immediatamente. Eu orava ¢ esperava o golpe; porém, o rei, que me queria pos- suir, disse que desejava levar-me vivo para casa, para que as mu- Theres me vissem e se divertissem a minha custa, depois do que matar-me-ia e Kawewi pepicke (48), isto 6, queriam fabricar a sua bebida, reunir-se para uma festa ¢ me devorar conjunctamente. Assim meé deixaram ¢ m¢ amarraram quatro cordas ao pescogo, fa- zendo-me entrar numa canda emquanto ainda estavam em terra. As pontas das cordas amarraram ma canéa, que arrastaram para @ agua para voltar para a aldeia. (47) Perot, ou antes Perd, & como o gentio chamava ao portuguez, ¢ so frances chamava mofr. Perd querem alguns que seja uma corrupg3o do nome Pedro; querem outros, porém, que seja o meamo vovabulo tupi — pire — que vale dizer — rowpa de coure, porque os portuguezes se encouravam para as auas luctas no sertio. (48) Kawewi pepicke & phrase tupi, o mesmo que cauim pipig, que quer dizer — cauim ferve. O barbaro quiz dizer que mataria o prisioneiro com so- lennidade « o cauim havia de ferver. 61 HANS STADEN CAPITULO XIX Como queriam volar e os nosses chegaram para me reclamar, e como vollaram para elles e combateram Be pé da ilha, na qual fui aprisionado, ha uma outra ilha pe- quena, onde se aninham uns passaros maritimes de nome Twera (49), que tem pennas vermelhas. Perguntaram-me os indios £1 68 sens inimigos Tuppin Ikins tinham estado IA este anno, para apanharem os passaros e os filhotes. Disse-Thes que sim, mas qui- zeram yer elles mesmos, pois estimam muito as pennas daquelles pasgaros, porque todos os seus enfeites sio geralmente de pennas. A particularidade deste passaro é que suas primeiras pennas sio pardacentas, ficando pretas quando comegam a voar, tornando-se depois encarnadas, como tinta vermelha. Féram entio para a ilha, pensando encontrar ahi os passaros. Quando tinham chegado a cerca de dez tiros de espingarda do logar onde tinham deixado as eandas, voltaram-se e avistaram um bando de Tuppin Ikin e al- guns portuguezes entre elles, porque um escrave que me tinha acom- panhado, quando fui agarrado, escapara e dera alarma quando me prenderam. Pensavam vir livrar-me e gritaram para os que me capturaram que viessem combater, si tinham coragem. Voltaram entéo com a eanda para os que estavam em terra e estes atiraram eom sarahefanas (50) e fleehas, ¢ os da canéa responderam; desa- taram as minhas mos, mas as cordas do men pescoco continuavam fortemente atadas. (49) Twara 6 o veesbulo tupi ward ou guard, como o gentio chamava a ave de pennas rogudos, a Ibig rubra. (50) Por engano, Lifgren traduriu “Rore” por “sarabatana”, arma de arremesso de eetta hervada, por um tubo, no qual se sssoprava, desconhecida dos Indios da costa, Espingarda & 0 que &, que estes selvagens possuiam por troca com os Framcezes. Uma gravura de Staden, a de pagina 55, iste mos- tra elaramente. Esta advertemcia que nos fe, o ar. Professor Roquette-Pinto, @ que scceitamos, confirma-se pela mota que o Prof. Wegner pos, nesta altura do texto facsimilar de Frankforte: “Tore” — espingsrda em cuja pease, ao que parece, estavam oa Tupis da costa, em differentes casos igoladog, A sara- batana nie era usada pelos Tupis da costa do Brasil,” — A. P, 62 VIAGEM AQ BRASIL O rei (51), que estava commigo na eanda, tinha uma espin- garda ¢ um pouco de polvora, que um francez lhe dera em tréea de péu prasil. Ordenou-me que atirasse sobre os que estavam em terra. Depois de terem combatido um pouco, fiecaram com medo de que os outros tivessem canéas para os perseguir, pelo que fugiram. Tres delles tinham sido feridos, Passaram a cerea de um tiro de faleonete (52) de Brikioka, onde eu costumava estar, e quando pas- simos de fronte fizeram-me ficar em pé, para que meus compa- nheiros me vissem. Do forte dispararam dois grandes tiros, porém nos nio aleangaram. Emquanto isso, sairam algumas candas de Brikioka para nos aleangar, mas os selvagens fugiram de pressa, e vendo o3 amigos que nada podiam fazer, voltaram. CAPITULO XX © que se passou na viagem para a terra delles G» havia mais ou menos sete milhas de caminho de Brikioka 4 terra delles, seriam, conforme a posigio do sol, cerca de 4 horas da tarde deste mesmo dia qnando me capturaram . Féram 4 uma ilha ¢ puxaram as candas para terra, pretenden- do ficar ahi esta noite e me tiraram da canda. Uma vez em terra, nada podia enxergar porque me tinham ferido na cara, nem podia andar por eausa da ferida na perna, pelo que figuei deitado sobre a areia. Cerearam-me, com ameagas de me devorar. Estando nesta grande afflicgio, pensava no que nunca tinha (1) O marrador chama reé ao principal da tribu que o aprisionon. En- tre os tupia, esse principal erg o morubichaba on tuchaua. (2) Por esta phrase se v8 que o narrador féra, com effeite, eapturado ém um ponte da iha de Santo Amaro, para o lado de dentro dos canaes ¢ la- gamares, sendo entio conduzido peles indios através da barra de Bertioga, passando em frente do forte e ao aleance de um tiro de faleonete 63 HANS STADEN eogitade neste valle de lagrimas, onde vivemos. Com os olhos ba- nhados em pranto, comecei a cantar do fundo do meu coragéo o psalmo; “A ti implore meu Deus, no meu pezar, ete.” Os selva- gens diziem entao: “Véde como elle chora, ouvi como se lamenta’. Parecia-lhes, no entanto, que nao era prudente ficarem na ilha durante a noite, e se embarcaram de novo, para ir a terra firme, onde estavam umas cabanas que antes tinham levantado. Quando cheg4mos, era alta noite. Accenderam entao fogueiras e conduzi- ram-me para ld. Ahi tive de dormir numa réde, que na lingue delles se chamava Znmi e 6 a cama delles, que amarram a dois p4éus acima do chiio, ou, quando esto no matto, a duas arvores, As cordas que eu ftinha no pescogo, almarraram-n’as por cima numa 64 VIAGEM AO BRASIL arvore ¢ se deitaram em roda de mim, cagoando commigo e me cha- mando Schere inbau ende (53): “Tu é& meu bicho amarrado.” Antes de raiar 6 dia sairam de novo, remaram todo o dia e quando o sol deseambou no horizonte faltavam-lhes ainda duas mi- lhas para chegar ao logar onde queriam pousar, Levantou-se entiio, grande nuvem negra por detréz de nés, tao medonha, que os obri- (53) Schere inbow ende & phrase fupi alterade ¢@ que eorresponde 2 — he remimbab ndé, cuja traducgio ao pé da lettra é — mew dicho de criagSo #4 —, isto para signifiear ao prisioneire que elle dali em dinnte era bicho de etingiio ¢ thes pertencia. 65 HANS STADEN gou a remar com toda a pressa para alcangar a terra, por causa do vente e dos buledes. Quando viram qué j4 nio podiam escapar, disseram-me: Ne mungilta dec, Tuppan do Quabe, amanasu y an dee Imme Rannt me sisse (54), o que quer dizer: “Pede a teu Deus, que a grande chuva e vento niio nos facam mal.” Calei-me, fiz a minha oragio a Deus, eomo pediram, e disse: “O tu, Deus Omnipotente, que tens © poder na terra e no cén; tu que do comeco auxiliaste aquelles que imploram ¢ teu nome e que os eseutaste, mostra a tua clemencia a estes pagdos, para que eu saiba que tu ainda ests commigo e para que os selvagens, que te nio conhecem, possam vér que tu, meu Deus, ouviste a minha oragio.” Estava deitado na canda ¢ amarrade, de modo que nao podia ver o tempo, mas elles voltavam-se continuamente para iraz e co- mecavam a dizer: “0 qua moo amanassu™ (55), 0 que quer dizer: ' “A grande tempestade fica para triz.” Ergui-me entio um pou- eo, olhei para traz e vi que a grande nuvem se dissipava. Agradeci entaéo a Dens. Chegando em terra, fizeram commigo como d’antes; amarra- ram-mé a uma arvore ¢ deitaram-se ao redor de mim, dizendo que estavamos agora perto da terra delles, onde chegariamos no dia seguinte 4 tarde, o que muito pouco me alegrou. CAPITULO XXI Como me trataram de dia, quando me levaram 4s suas casas o mesmo dia, a julgar pelo sol, devia ser pela Ave-Maria, mais on menos, quando chegémos 4s suas casas; havia j& tres dias que estavamos viajando, E até o logar onde me levaram, (54) A phrase tupi 6 a seguinte: “Ne monghetd adé Tupan quaabe ama- nage yandé cima rana mocecy", cuja tradnucgie 6: “Pede a few Dews que aquella tempestade nao nos face mal”. (55) Corrigindo a phrase tupi, diga-se: “‘Oquare md amancpd", que quer dizer — a tempestade recolhe-se. VIAGEM AO BRASIL contavam-se trinta milhas de Brickiokhe (56), onde eu tinha sido aprisionado, Ao chegarmos perto das suas moradas, vimos que era uma aldeia com sete casas e se chamava Uwattibi (57), Entramos numa praia que vai abeirando o mar e ali perto estavam as suas mulhe- res numa plantagéo de raizes, a que chamam mandioca. Na mes- ma plantagdo havia muitas mulheres, que arrancavam destas raizes, e fui obrigado entao a gritar-Ihes na sua lingua; “A Junesche been ermi vromme (58), isto 6: “Eu, vossa comida, cheguei”. Dima vez em terra, correram todos das easas (que eatavam si- tuadas num morro), mogos e velhos, para me verem. Os homens iam com flechas ¢ arcos para as suas casas ¢ me recommendaram 4s mulheres qne me levassem comsigo, indo algumas adiante, ou- tras atriz de mim. Cantavam e dangavam unisonos og cantos que costumam, como canta sua gente quando esté para devorar alguem. Assim me levaram até a Yaeara (59), deante de suas casas, isto 6, A sua fortificagao, feita de grossas ¢ compridas achas de madeira, como uma cerca ao redor de um jardim. Isto serve contra os ini- migos. Quando entrei, correram as mulheres ao meu encontro e me deram bofetadas, arrancando a minha barba e falando em sua lin- gua: “Sche innamme pepite a e* (60), 0 que quer dizer: “Vingo em tio golpe que matou o meu amigo, o qual foi morto por aquelles entre os quaes tu estiveste.” Conduziram-me, depois, para dentro de casa, onde fui obri- gado a me deitar uma innit. Voltaram as mulheres e continua- ram a me bater e maltratar, ameagando de me devorar. (56) A graphin do nome Bertioga & varia nesta narragio. Brickioka, Brikioka, ete. (47) Uwattibi, ou melhor Dbatyhe, de que por corrupgio se fez Dha- tuba. (53) A phrase tupi restaurads 4: “Ay ichebe end remiurama”, que se ‘tradus — cheguet eu, vwosso regalo — ou, em outros termos: “nqui estou para rosea comida". (39) Ywora deve eer graphia erronea do tupi Fwird eu ybird, que si- gnifica — madeira, iranqueira, pous, — material com que o gentio coustruia @ eaigora, ou estueada om torno das suas aldeiss. (40) A phrase tupi deve eaereverse — che anama pipike af —e se tradaz: “meus parentos vingo em ti", que 6 como se dissessem ao prisioneiro — “agora me pagaris os meus’. 67 HANS STADEN Emquanto isto, ficavam os homens reunides em uma cabana @ bebiam 0 seu Kawi, tendo comsige og seus deuses, que se chamam Tammerka (61), em cuja honra cantavam, por terem prophetizado que me haviam de prender. fal canto onvi durante uma meia hora e nio appareceu um sé homem; sémente mulheres e eriangas estavam commigo. CAPITULO XXII Como os meus dois amos vieram a mim e me disseram que me tinham dado a um amigo que me devia guardar e matar quando me quizessem comer N« conhecia eu ainda seus costumes, tio bem como depois, e pensava agora que se preparavam para me matar. Logo de- pois vieram os dois que me eapturaram, um de nome Teppipo Wasw e seu irmao Alkindar Miri (62), ¢ me contaram como me tinham dado ao irmio de seu pae, Ipperu Wasu (63), por amizade. Este me devia conservar e matar quando me quizessem comer, ¢ assim ganhar um nome 4 minha custa. Como este mesmo Ipperu Wasu tinha capturado um eseravo, havia um anno, @ por amizade delle fizera presente a Alkindar Miri, este o matou e ganhou com isso um nome. Alkindar Miri tinha en- tio promettido a Ipperu Wasu de fazer presente a elle do primeiro que captnrasse. Este era eu. (61) Tammerka, ou antes, — tfamaracd — que quer dizer — sino ow chocalha de ferro, O narrador decerto confunde o maracd com itamaracd. Este nao era objecto de culto do gemtio, e sim aquelle, que erm tido como sugrado @ por isso o enfeitavam ¢ 9 guardavam em sitio reservado. (62) Jeppipo Wasu, Alkindar Miri, sio nomea um tanto alterados. Jep- pipo Wasu pode ser uma leve alteragio de Ye-pipo-uagt, traduzindo-se “es guicho grande", Alkindor Miri parees uma alteracko de dracundd Mirim, pa- pee pau Prine. ft eru Waesu & o mesmo do tupi, i - wane wl pind guassé pi, e significa — 68 VIAGEM AO BRASID Os dois que me capturaram disseram-me mais: “Agora, a3 mu- Iheres te levardo para féra, Aprasse” (64). N&o comprehendi entio esta palavra, que quer dizer dengor. Puxaram-me para féra, pelas cordas que ainda tinha ao peseogo, até a praga. Viéram todas as mu- Theres que havia nas sete cabanas ¢ me levaram, e os homens se foram embéra. Umas pegaram-me nos bragos, outras nas eordas que tinha ao peseogo, de forma que quasi nfo podia respirar. Assim me leva- ram; eu nao sabia o que queriam fazer de mim e me lembrava do (64) dprarse 6 alteragio do voeabulo tapi — Aperaeé — ov, simples: mente, poracé que quer dizer — ‘“reubifio para folguedo ou para ar”. 69 HANS STADEN soffrimento do nosso redemptor Jesus Christe, quando era maltra- tado innocentemente pelos infames judeus. Por isso, eonsolei-me ¢ mé tormei paciente. Conduziram-me até a cabana do rei, que se cha- mava Uratinge Wasu (65), que quer dizer na minha lingua “o gran- de passaro branco”. Deante da cabana do rei, havia um monte de terra fresea, e ali me assentaram, emquanto algumas mulheres me seguravam, Pensei entéo que queriam matar-me e procurava com os olhos o Jwera Pemme (66), instrumento com que matam gente, e perguntei si j4 me queriam matar. Ndo me responderam, mas veiu uma mulher que tinha um pedago de crystal em uma coisa que pa- recia um pau areado, ecortou-me com este crystal as pestanas dos olhos ¢ queria cortar-me tambem a barba. Mas isto nio quix suppor- tar e disse que me matassem com barba ¢ tudo. Disseram entao que me nao queriam matar ainda ¢ me deixaram a barba. Porém, alguns dias depois, m'a cortaram com uma tesoura que os franeezes lhes tinham dado. CAPITULO XXIII Comoe dangaram commigo deante das cabanas nas quaes guardam seus idolos “Tammerka” Erois conduziram-me de logar onde me cortaram as pestanas para as cabanas, onde guardavam os seus Tammerka, ou ido- los. Formaram um cireulo ao redor de mim, ficando eu no centro, com duas mulheres; amarraram-me numa perna umas coisas que cho- calhavam e na nueca collocaram-me uma outra coisa, feita de pennas de passaros, que excedia a cabeca ¢ que se chama na lingua delles (85) Uratinge Wosu & alteragio de Ciratinga ida que tambem s¢ ¢a- areve Guirofinga guogd ¢ ee traduz — a Gorca (66) Iwera Pemme 6 do tupi — ibiré-pema — que quor dizer — Pau aplainade, ou elava achatadn em forma de remo ou de capada. E o nome de um instrumento de guerra, 2 que o gentio chamava tambem tangapema ou, melhor, tocapema, para dizer — o tagape chato. TO VIAGEM AO BRASIL Arasoya (67), Depois comegaram as mulheres a cantar e, confor- me um som dado, tinha eu de bater no chée com o pé. em que esta- vam atados os chocalhos, para chocalhar em acompanhamento do canto. A perna ferida me doia tanto, que eu mal podia conservar- me de pé, pois a ferida ainda niio estava curada. (67) drasoya 6 0 vocabulo tupi — arageyd, on aregoyaba, especie de turbante feito de pennas multicéres. Era, em verdude, o chapéo do selvagem em oceasides solennes 71 HANS &STADEN CAPITULO XXIV Como depois da danca me entregaram a Ipperu Was, que me devia matar A cabapa a danga, fui entregue a Ipperu Wasu. Ali estava mni- to bem guardado, Tinha ainda algum tempo para viver. Trouxeram todos os idolos que havia nas cabanas e collocaram ao redor de mim, dizendo que elles tinham prophetizado a eaptura de um portuguez. Disse eu ent&o: “Estas coisas nfo tém poder, nem podem falar, e é falap que eu seja portuguez. Sou amigo ¢ parente dos franeezes e a terra de onde eu sou, chama-se Allemanha”. Res- ponderam-me que isso devia ser mentira, porque si eu fosse amigo dos franeezes, nada tinha que fazer entre os portuguezes; pois ga- biam bem que os framcezes eram {40 inimigos dos portuguezes, como elles mesmos. Os franeezes vinham todos os annos com embarcagies e lhes traziam facas, machados, espelhos, pentes e tesouras; e elles thes davam em troca pin-prasil, algodio e ontras mereadorias, como enfeites de pennas ¢ pimenta. Por isso, eram elles seus amigos; 08 portuguezes, assim nonea fizeram. Tinham vindo os portuguezes ha mitites annos a esta terra, ¢ tinham, no logar onde ainda moravam, eontrahido amizade com os seus inimigos. Depois, tinham-se diri- gido, elles tambem, aos portuguezes para negociar, ¢ de boa fé fo- ram 408 seus navies ¢ entraram nelles, tal como faziam ainda hoje eom os francezes; mas quando os portuguezes viram que havia bom numero mos navios, 03 atacaram, amarraram e entregaram aos seus inimigos, que os materam e devoraram, Alguns tinham sido tam- bem mortos a tires @ muitos soffreram outras erueldades mais. Di- ziam que os portuguezes tinham assim praticado, porque vieram guerreal-os, com seus inimigos. 72 VIAGEM AQ BEASIL CAPITULO XXV Como os que me capturaram estavam zangados ¢ se queixavam de que os portuguezes mataram a tiro seu pae, que elles queriam vingar em mim E piztaM mais que og portuguezes tinham atirado no brago do pae dos dois irmios que me capturaram, do que veiu elle a fallecer; e esta morte do pae queriam vingar em mim. Eu repliquei que no deyiam vingar-se em mim, porque eu néo era portuguez ¢ tinha yindo, havia poueo, com os castelhanos; que eu tinha naufra- gado ¢ por isso tinha l4 fieado. Entre os indios havia um mogo que tinha sido escravo dos por- tuguezes. Os selvagens, que moravam com os portuguezes, tinham ido guerrear os Tuoppin-Inba e tomado uma aldeia inteira. Os ve- thos foram comidos ¢ os mogos foram trocados por mercadorias com os portuguezes. Este moco era um dos que tinham sido vendidos e ficara perto de Brickioka com o seu senhor, que se chamava Anto- nio Agndin, um gallego. A este mesmo eseravo tinham eapturado, ums tres mezes antes da minha captura. Como era da mesma raga que elles, nio 9 mataram. Elle me conbecia. Perguntaram-lhe quem eu era. Elle entéo disse que era verdade; que um bareo tinha naufragado ¢ os homens que nelle ha- via chamavam-se castelhanos 6 eram amigos dos portuguezes. Com elles estava eu, e nada mais sabia elle de mim. Quvindo agora como tambem antes que havia francezes entre elles ¢ que costumavam vir embareados, insisti no que tinha dito e continuei: “que eu era amigo e parente dos francezes, que nao me matassem, até que os francezes Viessem @ me reconhecessem”. Guar- daram-me entZo muito bem, porque havia ali alguns franeezes que os navies tinham deixade para carregar pimenta. a3 HANS STADEN CAPITULO XXVI Como um francez, que os navios deixaram entre os selvagens, chegou para me yer e thes recommendou que me devorassem, porque eu era portuguez H Avia um frances a quatro milhas de distancia do logar das ca- banas, onde eu estava. Logo que soube da noticia, yeiu para uma das cabanas em frente daquella em que eu estava. Vieram en- tio os selvagens me chamar: “Est& aqui um france, queremos ver agora si és francez on ni”. Isto me alegrou, e disse commigo: “Bile é christio, elle falar4 para o bem”. Conduziram-me ni 4 sua presenca. Era mogo e os selvagens 0 chamavam Karwattuware (68). Felow-me em francez, mas eu nie podia entendel-o hem, Os selvagens estavam presentes € escutavam. Como eu lhe néo podia responder, disse elle aos selvagens, na lingua delles: “Matem-no © devorem-no, o seelerado é portugues legitimo, vosso € meu inimigo”, Comprehendi perfeitamente e pedi, por amor de Deus, que Ihes dissesse que me nao devorassem. Mas elle me disse: “Querem-te devorar". Lembrei-me entio de Jeremias, cap. 17, onde diz: “Maldito seja o homem que nos outros homens confia”. E com isso, sai dali com grande pezar no coragio. Nos hombros tinha um pedaco de panno de linho, que me tinham dado (onde o teriam ad- quirido?), tirei-o (o sol me tinha queimade muito) e o arremesse) aos pés do francez, dizendo a mim mesmo: “Si tenho de morrer, para que entéo cuidar em proveite des outros da minha carnet” ‘Con- duziram-me entdo outra vez 4 cabana, onde me guardaram. Deitei- me na rede ¢ Deus sabe quanto me considerava desgracado. Come- cei a me lamentar, cantando o psalmo: (68) Karwattuware 6 alterngio do tupi — kerauatawara (karawatd ward) que quer dizer — comeder de gravatds, isto 4, apreciador dos fructos desta bromelincos. 74 VIAGEM AQ BRASIL Roguem ao Espirito Santo (*) Que nos dé a verdadcira fé, Que nos guarde até ao fim, Quando sairmoa desta triste vida. Kyrioleya. Disseram, entao: “E legitimo portuguez, agora se lamenta e tem medo da morte”. © referido francez ficou dois dias nas cabanas ¢ no terceiro foi- se embora. Entao determinaram que se fizessem os preparativos para me matarem no primeiro dia, depois de tudo arranjado. Guar- daram-me muito bem ¢ escarneceram de mim, tanto os mogos como os velhos, CAPITULO XXVIL Como eu sentia fortes dores de dentes CONTECED que, emquanto eu estava reduzido a esta miseria (e eomo se costuma dizer — uma desgraga nunca vem 86) — um dente comecou a doer-me tanto, que quasi desanimei de todo, O meu senhor veiu a mim ¢ me perguntou porque comia tao pouco. Respondi que me doia um dente. Voltou entéo com um instrumento de madeira e me quiz extrahir o dente. Disse-lhe que nao me doia mais, mas elle queria extrahil-o por forga. Porém, oppuz-me tanto que elle me deixou; mas disse que si eu nig quizesse comer ¢ engor- dar, matar-me-iam antes do tempo. Deus sabe quantas vezes eu pedi de coraedo, que, si fosse de sua vontade, me deixasse morrer sém que os selvagens o soubessem, para que elles nao satisfizessem o seu de- sejo em mim. ay Sanctum precemur Spiritom ‘Vera beara nos fide Tt nos in hac In fine nempe vitae Hic quando ecommigramus Doloribus soluti a3 Kyrie Bleison. 15 HANS STADEN CAPITULO XEVUI Como me levaram ao seu rei supremo, chamado Konyan-bébe. eo que ali fizeram commigo A dias depois, levaram-me para uma outra aldeia que elles chamam Arirab (69), para um rei, de nome Konyan- Bébe (70}, que era o principal rei de todos. Ali se haviam reunido mais alguns em uma grande festa, a modo delles, ¢ queriam me ver, pelo que me mandaram busear naquelle dia. Chegando perto das cabanas, ouvi um grande rumor de can- to e de trombetas, ¢ deante das cabanas havia umas quinze cabe- cas espetadas; eram de gente sua inimiga, chamada Markayas (71), e que tinha sido devorada. Quando me levaram para 14, disseram- me que as cabegas eram de seus inimigos e que estes se chamam Markayas. Fiquei com medo e pensei: “Assim fario commigo tam- bem!” Ao entrarmos nas cabanas, um dos meus guardas avangou @ gritow com voz forte, para que todos o ouvissem: “Agut trage o escrave, 0 portuguez,” pensando qué era coisa muito béa ter o imi- migo em seu poder. E falou muitas coisas mais, como é de costume, eonduzindo-me até onde estava o rei sentado, bebendo com os ou- tros, e estando jA embriagados pela bebida que fazem, chamada Ke- wewy. Fitaram-me deseonfiados ¢ perguntaram: “Vieste como nos- so inimigot” Respondi: “Vim, mas nfo sou vosso inimigo.” De- ram-me entio a beber. Ja tinha ouvido falar muito do rei Konyan- Bébe, que devia ser um grande homem, um grande tyrano, para comer carne humana. Fui direito a um delles, que en pensava ser elle, e lhe falei tal como me vieram as palavras, na sua lingua, ¢ (09) Arirab, graphin errada de Anroba on drird, rome da aldeia de Cunbambebe, para og Indes de Angra dos Reis. No Estado do Bio de Janeiro, ha o rio 4riré e tambem uma gerra com este mesmo mome por aquelles lades. (70) Eonyan-Bebe 4 0 mesmo Cunhambebe, chefe tamoso dos Tamoyos, inimigo dos Portuguezes. (71) Markaya deve ser — Maracayd — nome de uma tribo inimiga dos Tamoyos, vocabulo tupi com que se designa — ¢ gato do matte. 76

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