Você está na página 1de 9
Epistemologia juridica Jost Carios BuzaneLto SUMARIO 1. Introdugdo. 2. Filosofia e ciéncia, 3, Direitoe ciéncia. 4. Dogmatica juridica, 1. Introdugao “Criar é desatar angustias” G. Bachelard Convido 0 leitor para caminhar pelos labi- rintos da epistemologia. Os caminhos sdo vari- 0s, pedregosos, dificeis, mas plenos de bons ¢ prazerosos perfumes. Fica, desde logo, adverti- do que ndo se pretende esgotar esses cami- nhos — pois novos caminhos sempre surgem aocaminhar. Assim, parto da premissa de que 0 conheci- mento humano € to vital quanto o oxigénio que respiramos. Para tanto, o conhecimento ¢ uma operago vital, imanente, que tem por efei- to fazer um objeto presente ao sentido ou 4 in- teligéncia. ‘Os homens ¢ as instituigdes no podem ser apreciados pela moeda do Absoluto. Sua reali- dade é contingente. Seu passado é 0 que j4 foi € no o mais sera; seu futuro, incerto, inescru- tavel. O presente, ao contrario, se desloca con- tinuamente, tecendo a historia. E o caminhar permamente, é 0 latejar da vida, os quais alte- Tam as percepgdes do passado e as visualiza- 6es do futuro, isto 6, a verdade dos homens sobre os homens. Portanto, os parimetros da avaliagdo da histéria sio, a0 mesmo tempo, 0 resultado da propria histéria. Cada tempo produz as suas verdades e os seus critérios de julgamento da sua arte, da sua José Carlos Buzanello ¢ Mestre em Ciéncias Ju. técnica, da sua ciéncia, da sua filosofia. Apreci- UC\RJ ¢ Membro do Instituto Victus. ar 0 passado significa aplicar os padrées de 31 n® 124 out./d 1 101 verificagdes de hoje sobre o ontem. que ndo podem mais ser validos no futuro. Neste con- texto. surge uma questo muito importante: onde ancorar a objctividade do conhecimento. para niio mergulhar no puro subjetivismo? A objeti- vidadc ¢ 0 resultado do consenso. como afirma © fildsofo Popper. de verdade aceita como tal pela sociedade — em particular pelos homens de pensamento. que respondem pelo avanco da técnica. da ciéncia — que formam a opinizo publica esclarccida. Disso decorre 0 “discurso competente™ do academicismo como “valor de verdade” ¢ de poder. E. afinal. que critérios uti- lizar na avaliagdio dos homens e das suas in: tuigdes? Trata-se de algo controverso. Certa- mente invoca-se 0 principio da Icgitimagao, isto & 08 critérios reconhccidos. Icgitimados pela sociedade civil, os quais se corporificam nas suas vigéncias sociais. nos codigos de condu- tac de valores humanos inqucbrantaveis. o que sc baseia na organizagao da vida. Trata-se de buscar um modelo de verificabilidade. ciente da dificil tarefa de aferir esses valores sociais que se aproximam de um quadro ideal da nossa auto- avaliagao. A problematizagiio ¢ a abordagem dos fe- némenos constituem o ponto nevralgico da configuragdo do “Estatuto da Epistemologia” que. como processo critico da ciéncia e seus métodos. participa dos ingredientes da ciéncia ¢ da filosofia. Nesse sentido. o Professor Hil- ton Japiassu. a maior autoridade brasileira em tcoria do conhecimento. afirma: “o estatuto do discurso cpistemolégico. como duplo. é ambi- guo: discurso sistematico que encontraria. na filosofia. seus principios. e na ciéncia. seu ob- ietor", ‘O trabalho cientifico requer necessariamen- te uma discussio prévia sobre 0 objeto de es- tudo e sua definicdo, sendo. para tanto. um pro- blema da epistemologia. A epistemologia ¢ 0 fator de referéncia nas ciéncias sociais. A ques- to do objeto de estudo de uma ciéncia é. a0 mesmo tempo. algo muito dificil ¢ muito decisi- vo. pois éda definigaio deste objeto que depen- dem os conhecimentos ulteriores. Esse objeto nao ¢ dado. a priori. de mancira simples ¢ evi- dente: ao conirario. é constnuido e é problema- tizado pelo pesquisador. Trata-sc de um enten- dimento polémico, Presido a tese de que nada é dado. tudo é construido. A defini¢o do objcto de estudo é sempre o resultado de um trabalho ton. Intradugio 0 Pensamen- s. 1979, teérico endo apenas da construgiio empirica. O “real construido”, em Bachelard. ndio¢ apenas uma simples leitura do real que se imprimiria na consciéncia cientifica. A perspectiva de inter-relagées da ciéncia coma filosofia, principalmente. de avaliagdes, de progressos e projegdes do homem, expressa algumas contradigdes no “fazer ciéncia”. O eminente jurista francés Michel Minailli, sobre este problema, acha curioso. ¢ afirma: “.,, aciéncia tenha praticamente pas- sado ao lado de todo este movimento € que. contrariamente a outras disciplinas, ndo tenha reproduzido reflexiio séria so- bre as condigdes de sua propria valida- de. (...) é preciso reconhecer a extraordi- nia seguranga de uma ciéncia que nao produz. qualquer diwvida sobre o seu va- Tor. como se tudo fosse evidente”.? A auto-suficiéncia é um trago marcante da ciéncia na atualidade: ¢ preciso uma viagem de Tetorno A teoria, a transdisciplinaricdade ¢ a0 resgate da humanidade. A concepcao dominan- teé, pois, a de que a epistemologia fornece sen- tido ao empreendimento cientifico nas ciéncias humanas, porquanto cada ciéncia tem de visar no somente a uma dimenstio do homem. mas possibilitar um conhecimento integral. totalizan- te, ainda que apenas num certo plano ¢ sob uma dada perspectiva, 2. Filosofia e ciéncia A telagao entre filosofia ¢ ciéncia. quando vistas como um problema comum de investiga Gio filoséfica. abre novas formas de semintica filos6fica: jd que ambas tratam de uma certa in- dicagao filoséfica. a filosofia comeca novamen- tea apreender. coma ciéncia. a equilibrar con- trovérsias relativas as posi¢des opostas, com investigacao relativa a problemas comuns, A ciéncia conio conhecimento que busca. de qual- quer forma on medida, uma garantia da propria validade do saber. ea filosofia como problema- tizadora de juizos de valores. andam cm parale- las constantes que se chocam. se entrecruzam ese harmonizam, Mas sca filosofia ¢ 0 compro- misso que faz. do saber uma pesquisa. ela con- diciona 9 saber efetivo. que ¢ conhecimento ou ciéncia. E esse saber que nos diferencia radical- mente dos animais. Acstrutura vasta c majestosa da ciéncia esta conjugada com a tremenda variedade de seus ? MIAMI hel. Uma Introdugao Critica a0 Direito, Lisboa. Moraes Kditores. 1979. Rovista de Informagao L. métodos de observacao. experimentacao, me- tas, estatisticas ¢ construgdes tedricas ilumina- das pela anilise filosofica. Sob o impulso da ciéncia moderna, a concepgao exata da tarefa da filosofia passou por uma reorientacdo radi- cal. Numa visio hist6rica geral e breve. talvez se possa dizer que os filésofos. através dos tempos. estiveram empenhados cm trés empre- endimentos basicos: 1.°) procuravam verdades absolutas da realidade ¢ padroes absolutos de moralidade: 2.°) tentavam construir uma sinte- se. uma visio do universo e do Ingar do homem neste contexto (integragiio da ciéncia num todo inicligivel ¢ harmonioso): 3°) buscavam o sig- nificado ea validez de conceitos fundamentais, presuncées ¢ métodos de conhecimento e de avaliagéio, Em sintese. apenas um processo de interpretactio do mundo por parte dos filéso- fos, de onde Karl Marx exprimiu sua tese falmi- nante, “os pensadores niio fizeram até agora outra coisa senao interpretar 0 mundo: © fun- damental é a sua transformagdo” No juizo que a filosofia faz sobre a ciéncia, podem assumir formas que definem trés con- cepcdes fundamentais das filosofias — a metafi- sica, a positivista ¢ a critica. Para a filosofia metafisica. a filosofia ¢0 unico saber possivel e as outras ciéncias, como tais. coincidem com. cla ou so parte ou preparagiio dela; jaa filoso- fia positivista. entende que o conhecimento & proprio das ciéncias particulares ¢ a filosofia tem por tarefa coordenar ¢ unificar seus resul- tados: enquanto a filosofia critica entende que a filosofia ¢ julgamento sobre o saber. isto ¢. a avaliagdo de suas possibilidades e de seus limi- tes. em vista do seu uso humano. Segundo essa concepedo. a filosofia niio aumenta a quantida- de do proprio saber. portanto no pode ser cha- mada propriamente de conhecimento. Sua tare- fa é. antes de tudo. por a prova a validade do saber, determinando 0s limites c as possibilida- des efetivas. No desenvolvimento recente na ciéncia e na filosofia, freqiientemente ¢ usada a expres- so “revolucaio” para referir-se a revoluciio de circunstincias ¢ condigdes (econémicas, cul- turais etc.). as quais influenciam. permanente- mente. 0 pensamento cicntifico ¢ fitosdfico que. por sua vez, incorpora. supera ¢ avanga, num, processo rapido e interminavel. Ha problemas imensos relativos a circulagaoc¢ izagiio das modernas conquistas tecnolégicas. Pode-se observar a profunda revolucao em nossos esti- losde vida. por exemplo. através do uso da cner- gia nuclear. da automaciio, da biotecnologia ¢ Brasilia a. 31 mn? 124 out. das novas técnicas de plancjamento estratégi- co do Estado. Vivemos cotidianamente a cha- mada “Era das Revolugdes”. que transcende a ciéncia ea filosofia. expandindo-se para a soci- edade. reflexivamente. num gesto envolvente desde 0 mais incauto a0 mais prudente. A rela- do tragada entre ciéncia ¢ filosofia durante os Ultimos séculos tem sido de maneira bem diver- sa: as revolugdes, nas ciéncias, resultam do exa- me de novos dados ¢ da reformutacao de con- ceitos basicos (adequagao): enquanto as revo- lugées. na filosofia. resultam da necessidade de expor diferentemente os problemas filos6fi- cos, a fim de acomodar ciéncia ¢ senso comum: ow ainda: as revolugdes na ciéncia foram a nova interpretagao dos fenémenos € a nova formula- do de leis para‘ordend-los. cnquanto as revo- lugdes na filosofia foram refinamentos de pro- blemas de experiéncias comuns da ciéncia eda propria filosofia. As diferencas entre os dois sistemas ndo sfio uma simples questdo de “fa- tos". pois trazem questdes filosoficas e histori- cas. As posigdes assumidas pelos fildsofos e cientistas em qualquer periodo histérico podem ser declaradas num esquema de posigdes mu- tuamente opostas. num nexo de questdes inter- relacionadas ¢ ambiguas. Nesse ultimo século, aciéncia evidencia-se com uma superioridade sobre a filosofia. em sintese. é 0 triunfo das ciéncias ¢ a decadéncia da filosofia. A “era da ciéncia” se demonstra facilmente pelos resulta- dos praticos vivenciados pela humanidade. A historia da ciéncia parece ser cumulativa € a historia da filosofia n4o-cumulativa. isto ¢. nao estruturadora. As controvérsias reinantcs ca- racterizam-se mais por respostas diferentes as questdes sucintas (método) do que a simples oposi¢ao. Oconhecimento néo ¢ mero instrumento do raciocinio, dlgido ou inflexivel. Ao contrario: constitui-sc de doses fortes de ingredicntes emocionais. irracionais. de intuigdes. tendénci as e aspiragdes. as quais se servem dos mes- mos pressupostos logicos da epistemologia para demonstraciio das conclusées mais varia- das, Nas ciéncias. como em todo o conheci- mento. néio ha lugar para neutralidade e ausén- cin de emogiio. porque sfio construidas por ho- mens que sentem. que pensam e que tém espiri- to. Ao contrtrio de alguns autores classicos. tais como Kant. Comte ¢ Kelsen. que acredita- vam no advento de uma ciéncia livre de emo- ao. Kant denunciava as paixées como “can- Cros da razaio pura”: Comte falava sobre os trés 1994 103

Você também pode gostar