Você está na página 1de 3
A (im)pertinéncia da velha dicotomia: direita x esquerda SINGER, André. Esquerda e direita no eleitorado brasileiro: a identificagao ideolégica nas disputas presidenciais de 1989 e 1994. Sao Paulo: Ed. da Universidade de Sao Paulo, 2000. Em seu livro recentemente publicado, Es- querda e direita no eleitorado brasileiro, o cientis- ta politico e jornalista André Singer aposta na for- ¢a da ideologia como elemento estratégico das disputas democrdticas. Nao deixa de ser uma ati- tude de coragem intelectual, sobretudo quando se sabe do prestigio académico e jornalistico desfru- tado pelas freqiientes e reiteradas proclamacées da morte das ideologias que, de tempos em tem- pos, assaltam as publicagdes cientificas e as colu- nas culturais da grande imprensa. Apesar do ca- rater polémico do assunto, o autor adota um estilo marcado pela sobriedade e constréi de forma me- t6dica uma sélida linha de argumentacao em fa- vor de sua tese. Nos anos 50 e inicio dos 60, a Escola de Michi- gan havia proclamado o fim da ideologiano campo das, disputas eleitorais. Os tedricos de Michigan faziam es- treita correlacao entre voto ideolégico e voto estrutura- do (0 voto cognitivamente articulado), concluindo pelo carater afetivo e psicolégico do voto do eleitor de mas- sa, distanciado de preocupagées programiticas ou ideo- légicas. Apoiados em modernas técnicas de pesquisa de ‘campo, os tedricos da Escola de Michigan pareciam dar um golpe mortal na teoria sociolégica tradicional, em particular aquela que se expressava na versio clissica de Seymour M. Lipset, segundo a qual o voto seria de- terminado por condicionantes de classe. Mesmo a identificacao partidaria, reconhe- cida pelos tedricos de Michigan, no caso america- no, como importante elemento estruturador do voto, era explicada por influéncias familiares so- fridas pelo individuo em seus anos de formacd Estavam descartadas, assim, determinantes da tuacao de classe ou da ideologia, que sé afetavam uma minoria pouco significativa do eleitorado. José Antonio Spinelli - UFRN De acordo com Singer, a aceitacao dos pos- tulados de Michigan conduz. ao irracionalismo, uma vez que a identidade partiddria seria despro- vida de contetido, sujeita, portanto, a manipula- co emocional. Isso teria levado alguns autores a procurar fundamentos mais sélidos para a demo- cracia. Apesar disso, as criticas da corrente da Es- cola de Michigan (psicossociologia), haviam de- monstrado o cardter desestruturado (em seus as- pectos cognitivos) do pensamento do eleitor de massa. Estudos posteriores, realizados a partir dos anos 60, propiciaram a reelaboragio do conceito de ideologia, de modo a incorporar a nogao de foco ideolégico fraco, ou imagem ideoldgica (Sartori), chegando-se & concepsao de “sentimento ideolé- gico”, que nao requer forte estruturagdo cogniti- va, ou sofisticacao conceptual por parte do eleitor, mas assinala a adeso do mesmo ao continuo es- querda-direita ou liberal-conservador, funcionan- do como sensor que economiza informacio (dis- pensando o eleitor comum de fazer intrincada andlise de programas partiddrios) e Ihe subminis- tra orientacao para definir seu voto. Singer incorpora a idéia de Sartori, segundoa qual as nogées de esquerda e direita so “caixas vazi- as”, de contetido “recarregavel”, o que lhe permite tam- bém aceitara sugestdo (de Ronald Inglehart) de uma relativa desconexao entre ideologia e pertinéncia de clas- se, Dessa forma, embora o autor nao levante a questo, poder-se-ia dizer que os novos movimentos sociais, com sua problematica “expressiva”, distinta da “objeti- vidade” da luta de classes, podem ser incorpora- dos a dindmica do conflito ideolégico, compreen- dido em sua versio “fraca”. Cronos, Natal-RN, v.1, n.2, p. 156-158, jul./dez. 2000 Singer chama atengao para o fato de que pesquisas realizadas nos Estados Unidos e Euro- pa, e também no Brasil, embora em menor escala, demonstraram que 0 eleitor comum é realmente capaz de definir sua prépria posigdo ideolégica e identificar a situacdio dos partidos no espectro es- querda-direita, passando por varias gradacées. Essa capacidade do eleitor comum demonstraria que a divisao ideolégica prépria ao campo da poli- tica democratica foi internalizada em larga medi- da pelo mesmo, que a traduziu em seus préprios termos, na forma de um “sentimento ideolégico” conectado a sua visio de mundo. ‘A autolocalizacao do eleitor no espectro es- querda-direita nao significa que ele tena visdo cog- nitivamente estruturada dessa divisao ideolégica, nem que saiba verbalizar coerentemente tal com- preensao; no entanto, ela seria o mais importante instrumento a sua disposigdo para definir as suas opsies eleitorais. Neste sentido Singer observa que enquantoa literatura internacional tem revalorizado a ideologia, os estudiosos brasileiros tém caminhado na direcio oposta, sofrendo profunda influéncia da Escola de Michigan, que “enfatiza a desestruturagao cognitiva do eleitorado” (p. 39). Nos tiltimos anos, porém, alguns surveys e pesqui- sas em nosso pais, tém abordado esse importante as- pecto, embora ele realce a novidade de sua prépria abor- dagem, que trabalha explicitamente essa varivel. Utilizando os resultados de surveys realizados em 1989 e 1993 pelo consércio CEDEC/USP/DataFo- Ihae cruzando-os com os resultados das eleigGes de 1989 € 1994, o autor dedica-se a questionar alguns mitos que compéem o senso comum acerca do comportamento do eleitor médio brasileiro. Um desses mitos diz respeito ao caréter volatil donosso comportamento eleitoral; apoiado em dados das cleigdes presidenciais de 1989 e 1994, e das eleicoes estaduais paulistas de 1990, Singer procura demonstrar ‘que o eleitor tem mantido a coeréncia ideolégica em suas opcées, apesar da instabilidade do quadro partic A analise das eleigbes de 1994 é particular- mente interessante, pois segundo muitos intérpre- tes, tanto no meio académico como jornalistico, naquelas eleigdes a economia teria suplantado a ideologia, a qual parecia ter sido muito forte nas 187 eleigoes de 1989, em que um candidato de esquer- da (Lula) e outro de direita (Collor) se defronta- ram abertamente. Ao contrario disso, nas eleigies de 1994, o sucesso recente do plano econémico do ministro da fazenda teria relegado as posicées ide- oldgicas a um plano secundario. O autor defende uma tese interessante: no foi o desempenho do Plano Real considerado iso- ladamente, o principal indutor do voto; quer di- zer, nao foi a estabilidade financeira o principal dado que possibilitou o éxito eleitoral de F H. Car- doso, mas, sobretudo, a expectativa de reformas sociais, de redistribuicio de renda, que o eleitor projetava, vendo em FHC mais condigées para re- alizé-las que em Lula. Argumentando de forma engenhosa, 0 au- tor procura demonstrar que o principal efeito do Plano Real foi criar uma expectativa de estabilida- de futura, algo que Francisco de Oliveira expres- sou com a idéia de “mudanca social regressiva”. Nesse sentido, diria Singer, o voto em 1994 foi pros- pectivo. Que relagdo tem isso com a ideologia? E que, segundo ele, o voto prospectivo implica numa avaliagao ideolégica por parte do eleitor. Em suma, © voto prospectivo (aquele que é dado tendo em vista expectativas futuras) no apaga, pelo con- trario, acentua o alinhamento (sobretudo ideolé- gico) do eleitor. Continuando em sua andlise e utilizando dados da pesquisa Tipologia do Voto Paulista, 0 autor afirma que se indicadores tradicionais como renda e escolaridade nao foram bons preditores do voto em 1994, a identidade partidéria ea iden- tificagdo ideolégica tiveram influéncia determinan- te, a0 lado da satisfaco com o plano econdmico. A propésito da identidade partidaria, ele faz. a im- portante ressalva de que os eleitores que tém op- do partidéria clara so um subconjunto dos elei- tores com identificagao ideoldgica. A partir dai faz uma importante pergunta: a satisfaco com o real independeu da ideologia na determinacao do voto? Examinando os dados, ele conclui que os dois fatores - satisfagdo com plano econémico e identificagao ideolégica - atu- aram de forma relativamente independente. No entanto, o alcance da satisfacao com o Real na Cronos, Natal-RN, v.1, n.2, p. 156-158, jul./dez. 2000 158 determinagao do voto estava relacionado A auto- localizaco do eleitor na escala do espectro ideo- logico; assim, enquanto para os eleitores de esquer- da a satisfagéo com o plano foi suplantada pela identificagao ideolégica, para os eleitores do cen- tro ideologia e economia se equilibraram, e para os eleitores de direita a influéncia do Plano foi mais determinante. Nessa medida pode-se concluir que importantes fatores conjunturais - na eleigio de 1994, o Plano Real - podem decidir uma elei¢ao. No entanto, duas ressalvas importantes devem ser eitas: 1) esses fatores nao apa- gamalinhamentos prévios, que continuam a ser predito- res importantes do voto; 2) a prdpria forma como esses fatores atuam combina-se com aqueles ali- nhamentos prévios, sendo sobredeterminados por eles. Um outro aspecto instigante que 0 autor desenvolve é o que diz respeito ao tema da igual- dade, que a literatura consagrou como divisor de Aguas entre esquerda e direita. Aqui mesmo no Brasil, Ant6nio Flavio Pierucci conduziu uma sé- rie de estudos entre eleitores de Janio e Maluf na cidade de Sao Paulo que confirmam a centralida- de do tema para explicar a clivagem ideolégica do eleitorado. Singer contesta tal centralidade, levan- tando dois argumentos: 1) a nossa desigualdade social é tao grande que produz, na consciéncia social, uma repulsa generalizada; 2) o eleitor bra- sileiro pobre vota em geral com a direita. Se o igualitarismo nao é divisor de Aguas entre esquerda e direita no Brasil, a forma de ser igualitario é distinta: enquanto o eleitor brasilei ro de direita reivindica a mao visivel do Estado para promover mudangas sociais que combatam a desigualdade social, o nosso eleitor de esquer- da desconfia da tutela do Estado e aposta na mo- bilizagéio social e na capacidade de transforma- co dos movimentos sociais organizados. E surpreendente que o eleitorado de direi- ta manifeste tal apreco pelas virtudes do Estado em resolver os problemas sociais, 0 que talvez explique porque os partidos mais tradicionais da direita (PFL e PPB) tém mais dificuldades em apoi- ar as medidas liberalizantes do governo, enquanto © PSDB, um partido de centro (o eleitorado de centro é mais liberal), tem mais desenvoltura em adotar medidas antiestatistas e promover 0 des- monte dos direitos sociais. O eleitor que vota na direita quer mudan- gas através do Estado, para preservar a ordem, acentuando a autoridade estatal e apoiando seu direito de reprimir os movimentos sociais; o el tor de esquerda contesta a autoridade do Estado, preferindo correr o risco da instabilidade. Segundo o autor, a clivagem ideolégica & mais forte justamente quando se trata da impo- sigio dos aparatos repressivos da sociedade poli- tica - é aqui que a direita mais afasta-se da es- querda. A direita, em geral, apoia a autoridade do Estado € 0 exereicio dessa autoridade sobre as instituigdes sociais. No que diz respeito 4 democracia hé tam- bém uma forte clivagem entre esquerda e direi- ta: a esquerda e o centro sao mais democraticos que a direita, embora os dois extremos sejam menos democraticos que 0 centro. Segundo o autor, o sistema de crengas do ptiblico de direita enfatiza a idéia do Estado forte para realizar as mudancas igualitdrias almejadas. Certamente, as questées levantadas pelo estudo de André Singer podem suscitar uma in- tensa polémica e requerem pesquisas mais am- plas para o seu aprofundamento. Nao ha dtivida, porém, que tais questées esto a cobrar de nos- sos cientistas politicos e sociais mais estudo e re- flexdo do que Ihe tem sido tradicionalmente con- sagrado. Cronos, Natal-RN, v.1, n.2, p. 156-158, jul./dez. 2000

Você também pode gostar