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UMA EXPERIÊNCIA DE MENTIR SOBRE O

PASSADO

CAROLINE SILVEIRA BAUER | 06.07.2017

CAROLINE SILVEIRA BAUER


Professora do curso de História da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, onde atua na graduação e na COLUNISTAS
pós-graduação. Entre TAGS ARQUIVO
2011 e 2013, trabalhou como consultora da Secretaria de Direitos COMPARTILHE FILTROS |
Humanos da Presidência da República. É autora de diversas obras
sobre a temática da ditadura civil-militar brasileira, integrando
grupos de pesquisa e investigação nacionais e internacionais.

Imagem: Caio Borges

Os docentes dos cursos de licenciatura têm sido constantemente desa ados a se


apropriarem das novas tecnologias de informação e comunicação e re etirem sobre seu
uso nos processos de ensino e aprendizagem. Em se tratando da formação de professoras
e professores de história, esse tema envolve, ainda, discussões sobre consciência
histórica e culturas de história, divulgação do conhecimento histórico, história digital, a
história no espaço público, etc. Embora não sejam temáticas inéditas nos debates
internos da área, sua interrelação com o mundo virtual e o ensino fez com que fossem
questionados alguns parâmetros éticos e epistemológicos da disciplina.

Neste semestre, estou ministrando um curso de história do Brasil contemporâneo, em


que, trabalhando com a temática da ditadura civil-militar, tenho desenvolvido muitos
desses temas em sala de aula, dialogando com as alunas e os alunos sobre questões
relativas à abilidade dos documentos e testemunhos e à verdade, aos confrontos entre
história e memória e entre versões acadêmicas e públicas da história. No contexto desses
diálogos, um aluno, há algumas semanas, compartilhou comigo um caso muito
interessante ocorrido no Estados Unidos que permite problematizar ainda mais as
relações entre a história, seu o ensino e sua aprendizagem e o mundo virtual.

O professor T. Mill Kelly, do curso de história da George Mason University, propõe aos
discentes uma forma, no mínimo inusitada, de desenvolver habilidades que lhes
permitam realizar uma rigorosa crítica às fontes e se tornarem melhores consumidores
de informação histórica. Em seu curso, intitulado “Mentindo sobre o passado” [Lying
about the past], as alunas e os alunos são encorajados a criarem fatos históricos a partir
de dados empíricos, além de forjarem e manipularem evidências e provas para
corroborarem suas versões, chegando a criar verbetes na Wikipedia, transcreverem
fontes primárias e anexarem fotogra as de papéis propositalmente envelhecidos,
realizarem entrevistas com pro ssionais, garantindo a autoridade da expertise na
corroboração dos acontecimentos, etc. O professor anunciava publicamente que as
versões construídas pelas alunas e pelos alunos eram falsas somente ao nal do
semestre, fazendo com que as pessoas divergissem a seu respeito: enquanto uns
consideravam-no um gênio e, outros, demonstravam-se extremamente desapontados.
Kelly foi taxado, ainda de “vândalo digital”.

Trata-se, em outras palavras, de um “anti-curso do mal historiador”, parafraseando o


título do livro de Carlos Aguirre Rojas, em que discentes aprendem o falseamento, a
negação e o revisionismo, justamente para não sê-los. Várias reportagens foram feitas à
época do oferecimento dos cursos, em 2008 e 2012, e a que meu aluno enviou foi a de
Yoni Appelbaum, intitulada “Como o professor que enganou a Wikipedia foi pego pelo
Reddit” [How the professor who fooled Wikipedia got caught by Reddit], publicada no
Atlantic Daily em 15 de maio de 2012.

Como a rmei anteriormente, o experimento didático do professor permite


questionamentos éticos e epistemológicos no âmbito da história, inclusive em relação a
passados traumáticos, como o próprio tema da ditadura civil-militar brasileira: o que
faz com que acreditemos em um testemunho? Como corroborar as informações
prestadas em um depoimento quando há apenas uma pessoa para narrar determinado
evento, como o caso de Inês Etienne Romeu, única sobrevivente do centro clandestino de
detenção Casa da Morte, em Petrópolis, no Rio de Janeiro? Poder-se-ia argumentar
sobre a ausência de ética e a imoralidade no falseamento ou na mentira em testemunhos
como esses, porém isso já ocorrera, inclusive em relação ao Holocausto, um dos eventos
com maior blindagem moral. Não foram poucos os que mentiram terem sido
sobreviventes de campos de concentração, como os casos de Binjamin Wilkomirski e
Enric Marco Batlle.

No entanto, gostaria de chamar a atenção para outra possibilidade de questionamento a


partir da experiência proposta pelo professor estadunidense: o quão áveis são as
informações que encontramos na internet. Apesar de ser um experimento controlado, as
falsas histórias criadas pelos discentes foram disponibilizadas online sem serem
desmentidas durante tempo su ciente para que uma pessoa desavisada utilizasse aquela
informação como fonte. Isso nos remete a total ausência de controle sobre a circulação
de informações na internet, sobre o apagamento de versões negacionistas e revisionistas
da rede, mas, principalmente, sobre a importância de seguir trabalhando com esses
temas em sala de aula das licenciaturas para que os futuros docentes lidem com as
frágeis experiências de pesquisa na internet das novas gerações.

COMPARTILHE TAGS: #acesso à informação, #direito à memória, #fake news


, #internet, #tecnologia

CAROLINE SILVEIRA BAUER


Professora do curso de História da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, onde atua na graduação e na pós-
graduação. Entre 2011 e 2013, trabalhou como consultora
da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República. É autora de diversas obras sobre a temática da
ditadura civil-militar brasileira, integrando grupos de
pesquisa e investigação nacionais e internacionais.

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