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1930: ENTRE A MEMORIA E A HISTORIA Noé Freire Sandes* Resumo Este ensaio procurs realizar uma andlise da produeZe historiografica sobre 1930 com base na leitura de dois livros cléssicos: A Revolugiio de 1930: historiografia e historia de Boris Fausto e A verdade sobre a revolugdo de 24 de outubro de 1930 de Barbosa Lima Sobrinho. As duas narrativas elaboram distintos modelos de explicagio hist6rica, permitindo um rico didlogo entre memérig e hist6ria como formas de produgio da consciéncia histérica. Palavras-chave: Historiogratia, Revolugao de 1930, mem6ria ¢ histéria. Ao que parece, a passagem do cingiicntendrio da Revolugao de 1930 pouco mobilizou historiadores e politicos. A conjuntura era propicia a balangos, pois 0 governo do presidente Jodo Batista Figueiredo era fruto de uma articulago golpista, que deitara raizes no solo brasileiro em 1930; ¢ seu pai, o general Enclides Figueiredo, fora um dos Ifderes que se opés ao golpe que derrubou Washington Luis, assurnindo, posteriormente, a lideranga da Revolugio Constitueionalista em S30 Paulo, Entretanto, o desejo de atualizagio do passado foi limitado pela sombra onipresente do regime militar. Longe de maior empreendimento comemorativo, 0 cingtientendrio foi lembrado na Camara dos Depatados * Doutor om Histérie Social pela USP, Professor do Departamento de Histéria da Uni- versidade Foderal de Golds. enas sessdes solenes do Instituto Hist6rico ¢ Geogréfico Brasileiro. No meio académico, destaca-se o importante seminério internacional promovido pela Fundagao Getilio Vargas." A Camara dos Deputados organizou um simpésio sobre a Revolugao entre os dias 29 a 31 de outubro de 1980, reunindo especialistas em Hist6ria e participantes do movimento, com o objetivo de rememorar oacontecimento que se transformou em marco divisor de nossa histéria. Barbosa Lima Sobrinho, conferencista convidado para a efeméride, assizn encerra o seu pronunciamento: Esse € 0 depoimento que estou dando, mais uma vez acentuando a circunstancia de que nao fui revolucionatio de 1930 [...J. Mas publique a esse respeito um livro que eu considero a minha Inica obra verdacdeiramente ce jomalismo, embora cu tena me valido depois de tudo 0 que foi publicado até aquela ocasiso. Mas se hd um livro que tenha resultado da minha observagio direta dos acontccimentos, da minha presenga como repérter na Camara, acompanhando os debates politicos, conhecendo os atores que estavam representando, € exatamente esse livro sobre a Revolug3e de 1930, raz3o pela qual eu aqui estou para dar esse depoimento, fundado exatamente no livro que escrevi também em minha juventude. a contribuigao que cu quero dar, certo de que ndo adianto nada diante de tanta gente que conhece a fundo os acontecimentos daquela época, mas que representa 2 impresso de um homem sincero que quer falar aos seus amigos € 205 brasileiros para dizer aquilo que sentiu e aquilo que the pareceu exato € verdadeiro, na Revolugao de 1930. (1984, p. 157) A longa citagao se justifica por realgar o significado simbslico do livto A verdade sobre a Revolucao de outubro. Em meio aos historiadores de formacao académica, Sobrinho destaca os elementos que conferem veracidade a seu livro: a copiosa pesquisa, o conhecimento dos atores envolvidos, a obscrvagao direta dos acontecimentos. Dai a conclusto de que se tratava de uma obra verdadeiramente de jornalismo também uma obra verdadciramente de Hist6ria. Simultancamente, sta escrita comprometia-se com a observacio metédica ¢ eqiiidistante do passado, firmando um compromisso com o leitor: o de partilhar o que sentiu e lhe pareceu exato na Revolugdo de 1930, Sobriaho eselureve 0 Ingar de sua fala, que se situa entre a experiéneia da revoluc&o (embora 144 Sawoas, Nog Freire, 1930: Enire memdria e hisidria reitere 0 fato de nao ser revolucionario) e a explicagao histérica. O livro tomou-se referéncia obrigat6ria para o estudo do processo revolucionério, claborando uma sintese da experiéncia republicana num rico didlogo em queo tempo se desdobrava para tris, em busca das causas da Revolucao, e para frente, situando a sinuosa trajetéria dos revoluciondtios que ameagava, no presente, 0 idedrio liberal. Na semana comemorativa dos 50 anos da Revolugio, encon- traram-se historiadores e personalidades que participaram do movimento Batista Luzardo, revolucionério de primeira hora, rememorou o acontecimento, situando-o em um quadro geral ao qual acrescentava os mais importantes epis6dios de que participara, por exemplo, a campanha da Alianga Liberal no Nordeste. Seu festemunho tinha enderego certo: ‘Vejam bem, estou falando para essa mocidade, essa mocidade que af estd e que no conhece uma palavra sobre esse movimento (1. Para essa mocidade de hoje, parece que a hisi6ria de 30 decorreu hii dois séeulos [...]. Nas Faculdades, no gindsio ainda no se ensina como e por que se desenvolveu a Revoluego de 30, para cles € uma coisa estranha. Tenho protestado. (1984, p. 159) (O protesto de Luzarcio revelava o deseja de meméria que envolvia os homens que viveram a revolugdo e que encontraram no evento comemorativo © momento singular de atualizagiio do passado. Nessa semana, promoveu-se um encontro inusitado: zo testemunho de Luzardo somaram-se as reminiscéncias do ex-presidente W. Luis. Chamado a dar 0 seu depoimento, o neto de Washington Luis preferiu ler as cartas {inéditas) de seu avé ao general Nestor Sezefredo Passos, contestando © julgamento que Artur Bemardes fizera atribuindo ao orgulho do ex- presidente 0 motivo de sua queda. W. Luis Pereira Neto quis, naquele momento, dar voz ao proprio avo. Recusou-se a qualquer depoimento, sob 0 argumento de que néo vivera a Revolugdo. Mas registrou, com rapidez, sua opinido: “Parece ser inconveniente apontar a Revolugao de 1930 como um acontecimento, como um evento; ela é na verdade um proceso, cujo inicio pode ser datado de bem antes ¢ cujo final, talvez, ainda nao venhamos condigdes de datar” (1984, p. 44). O tempo da Revolugio se dilatava, revelando o ressentimento do passado (0 desejo de dar voz ao presidente deposto) € a incerteza que dominava as expectativas em tomo do presente ¢ do futuro. Histéria Revista, 8 (1/2) : 141-158, jan /dez, 2003 145 Ao lado dos depoenies, os historiadores profissionais apressavam- seem claborar um diagndstico da revolucio. José Hondrio Rodrigues proferiu a conferéncia inaugural, realgando © papel submisso do povo perante as clites dominantes ¢ o carter autoritéria do regime politico que sucedeu ao fendmeno revolucionario (1984, p. 39). Enfim, a semana comemorativa abriu intimeras possibilidades para a leitura do passado, ainda que sob um clima velado de censura ao debate politico contem- pordineo Nessa perspectiva, reforgava-se a presenga do tempo revolu- ciondrio: a Revolugtio de 1930 representou a passagem para a formagiio do Brasil modemo, concluséo prévia assentada tanto nos testemunhos dos que viveram o movimento, quanto nas teses académicas. Mas essa concordéncia entre memorialistas ¢ historindores deriva de uma subor- dinagiio da meméria ao campo da hist6ria, Ha uma clara hierarquia na rememoragao proposta pelo evento comemorativo, razdo pela qual a conferéncia inaugural foi apresentada por um historiador, enquanto os memorialistas fixavam-se no debate de pontos esparsos, como, por exemplo, 0 papel de Joao Pessoa no movimento. ‘A exigéncia feita pelo embaixador Baptista Luzardo de que a revolugao fosse apresentada aos jovens, também se fez presente no discurso de Barbosa Lima Sobrinho, quando ele escrevia com o objetivo de dimensionar 0 que sentin e 0 que Ihe parecen verdadeiro em 1930. Mas a histéria carrega um abstrato modelo de representagao do pasado que impede a tradugio da experiéneia vivida. Mais do que a tradugdo do vivido opera-se uma verso do acontecimento que, com algum esforco, vai se assentando como meméria histérica, portadora da verdade ‘A meméria histérica organiza um tempo epidérmico, cuja sistematizagio requer aprendizagem: o saber escolar, de forma gradativa, ordenao tempo por meio dos acontecimentos gue, repetidos a exaustio, sfo intemalizados. Assim mesmo, hd resisténcia’ fixagiio dessa meméria ‘que aparece na forma de embates e disputas acerca do que deve ser Iembrado e ensinado: Constata-se que a resisténcia dirigida & meméria vencedora busca reordenar as representagGes sobre o passado ou nogociar o seu lugar na sistematizagio do conhecimento histérico, assegurando a sua incluso na memdria coletiva institucional. Nessa perspectiva, a memsria vencedora guarda alguma plasticidade na montagem de um quadro de referéncia sobre o passado, demarcando 146 Savors, Noé Freire, 1930: Enire meméria ¢ histérla territérios, culturas e identidades. No entanto, hd limites para essa nego- ciagdo: novos sujeitos ou problemas so agregados a uma grande narra- tiva centrada na formagao nacional, perdendo, portanto, seu impeto deses- tabilizador. As disputas em torno da meméria sao indfcios de um desejo de ordenzedo diante da fragmentagao tipica do mundo modemo. Pierre Nora (1997) relaciona o incontido desejo de meméria das sociedades contemporaneas ao alargamento da distancia entre a fixidez do passado ea aceleracdo do presente, sob o influxo da modernizagao Longe dos embates travados no ambiente universitério, perpe- tuam-se os suportes da meméria nacional, uma vez que as narrativas hist6ricas acabam capturadas pelas teias de um tempo definido pelo Estado Nagio, j4 que os historiadores, ainda que selecionando objetos arredios 20 tempo homogéneo (classes sociais, género, cultura), nao escapam, completamente, do tempo referencial instituido por meio da alusio aos acontecimentos chaves, fundadores da meméria histérica. O debate sobre a formagiio da meméria nacional € 0 lugar attibuido & RevolueZo de 1930 quer ultrapassar a simples demincia do seu uso ideolégico, operagéio demasiadamente simples, para articular uma outra leitura que, ao revelar o lugar do acontecimento, reponha a politica como matéria viva tanto da hist6ria quanto da meméria. Histéria e historiografia: em torno da revolueao de 1930 A historiografia francesa da primeira geragéo dos Annales legou como heranga intelectual a rejeigdo ao tempo breve c & hist6ria narrativa, A histéria politica vista como tradicional c biogréfica foi banid a um plano secundétio. Essa perspectiva, om que a influéncia francesa fez-se presente desde a fundagao da USP, na década de 1930, formou mais de uma geragao de historiadores no Brasil. Os primeiros frutos dessa produgao intelectual situam-se entre os anos de 1950 ¢ 1960. Os intelee: tuais, perplexos com os desdobramentos do golpe militar em 1964, passaram a estudar, com maior densidade, a histéria politica do pais com o claro objetivo de indicaro sentido das mudangas que entdo se operavam. ‘Assim, foi possfvel romper com certa leitura marxista que apresentava © pais cindido entre forgas politicas nacionais e imperialistas. Os historiadores langaram-se ao debate sobre a Revolugdo Brasileira e debrugaram-se sobre o movimento de outubro de 1930. Luciano Martins Historia Revista, 8 (1/2) : 14-15% Jan.idez. 2003 147 (1983) considera que se formou sobre 1930 uma tradigdo indisputada, embora reconhega a tendéncia de se transferir para a Revolugio fen6- menos que se associam a conjunturas diversas, cujo nexo com o movimento s6 encontra justificativa simb6li A revolugiio tornou-se tema consagrado e motivou vasta produ- Ho académica, debates ¢ revisdes, Interessa-me neste texto registrar a formagio de um “olhar sociolégico” responsdvel por uma escola interpretative que se fez hegeménica no meio intelectual, Em um balango historiografico sobre a Revolugio de 1930, Vavy Pacheco Borges (1998) demonstra nos discursos revolucionérios (coma os de Oswaldo Aranha) atendéncia de mitificagdo do movimento. Sea Revolugdo ganhaa forma de um ente, segue-se uma iniciativa pioneira destinada a encontrar os sujeitos da Revolugio. Amparado pela perspectiva sociol6gica, inicia-se o debate sobre 0 tenentismo, tema que seré abordado com grande énfase nos estudos sobre a revolugao. Entre 1930 ¢ 1964, os militares tomaram- se sujeitos privilogiados para a investigagto da vida politica brasileira, ¢, por essa via, os estudos sobre a revolugao foram buscar nos movimentos das classes sociais ou de suas fragdes as balizes para a compreensio da historia, Nessa dirego, formou-se uma tradigao intelectual que, premida pelos rumos da vida politica brasileira no pds-64, fez, do Estado seu tema dileto, Francisco Weffort, Boris Fausto, Octavio lanni, Luis Werneck Vianna, Femando Henrique Cardoso, entre outros, organizaram uma densa reflexao sobre o papel do Estado, que, naqucla conjuntura, assumira uma certa independéncia, ocupando o lugar (diante do suposto vazio) de sujeito histérico Na esieira da erftica a essa perspectiva, iniciada pelo artigo seminal de Marilena Chau‘ (1978), foram publicados imimeros trabalhos fundados na valorizagio da classe operdria e na orftica &s categorias de “vazio de poder” e “estado de compromisso”. 0 trabalho de Vesentini (1997) ocupa-se da discusso sobre a naturalizacdo do fato hist6rico, desnudando proceso de transubstanciagiio do fato em marco, que impSe 1930 como modelo de revolugao no imaginario politico brasileiro. Sua contribuigao inspirou uma linhagem historiogréfica voltada para o estudo da meméria politica como forma de escrita da hist6ria. Eno interior do debate sobre meméria e histéria que encontro © ponto de partida para o trabalho proposto, Ao comparar dois livros sobre a Revolugio de 1930, o de Boris Fausto e 0 de Barbosa Lima Sobrinho, 148, Sanpes, Nog Freire, 1930: Entre memsria e histSria surpreendi-me com o meu desconhecimento acerca do processo revolu- cionério. Ao leitor desavisado, restaria a impressaio de que os autores niio analisavam o mesmo movimento, apresentando-se, nas obras citadas, projetos narrativos diversos. Fausto (1972) seleciona abordagens historio- grificas que colocam em xeque a relagZo do movimento com as classes sociais c organiza um modelo interpretativo em que o Estado se coloca como mediador dos interesses em conflito. Segundo ele, nao ¢ possivel reconhecer a Revolugio de 1930 como uma revolugdo burguesa, nem tampouco ¢ Ifcito superestimar a forga politica das camadas médias ou da classe operdria. A Revolugiio é pensada como resultado de uma crise de hegemonia que deu ao Estado uma autonomia politica em relagao 208 confflitos de classe. A perspectiva analitica de Fausto esté centrada na critica as visdes dualistas que insistiam em enxergar no processo revoluciondrio 0 momento de luta entre as facgdes da burguesia e as oligarquias feudais, Para comprovar o caréter de simplificagdo dessa tese, Fausto segue o seguinte itinerdrio: 1) demonstra a distancia entre 08 agentes revolucionarios ¢ a burguesia paulista; 2) explora o sentido das reivindicagdes dos tenentes que se aproximavam vagamente do idedrio politico reformista das classes médias consubstanciado na formago da Alianga Liberal, cujo liberalismo nfo sigaificou o afastamento dos interes- ses dos cafeicultores paulistas. Anarrativa de Fausto persegue atores coletivos: classes, fragées, de classe e militares em luta pelo controle do Estado. © acontecimento propriamente dito (Revolugao de 1930) foi analisado com rapidez no tiltimo capitulo intitulado “A derrubada das oligarquias”, que, na verdade, pouco trata do golpe politico,” Ao contrario, o quadro tragado revela o sentido de permanéncia das estruturas sociais (relagdes de produgao), que s6 podem ser compreendidas quando avaliadas no quaéro da expan- sfio curopéia. Em seguida, trata o autor da economia cafeeira dos conilitos regionais decorentes da supremacia paulista que se mani- festaram claramente na década de 1920, Em apenas um parégrafo, autor reconhece a importancia da trama dos acontecimentos que levaram a derrubada do presidente Washington Lufs, destacando 0 empenho excessivo do presidente cm apoiar a candidatura de hiilio Prestes ¢ 05 conflitos regionais decorrentes da criagio da Alianga Liberal. Em vez de aprofundar essa linha de argumentagao, o autor prefere destacar a presenga de movimentos semelhantes na América Latina (Argentina), Histérie Revista, 8 (1/2) | 141-158, janJdez, 2003 149 apesar de reconhecer dificuldades na comparago. No final do capitulo, ressurge 0 argumento relativo a indeterminagao do movimento e & consegiiente formagio de um Estado de compromisso.* ‘Areflexio de Barbosa Lima Sobrinho percorre diregao contréria: a revolugdo é analisada como movimento popular que empolgou a populacao ¢ alcancou notavel grau de radicalismo em algumas regides do pais. Sobrinho estuda detalhadamente a formagio do ambiente revoluciondrio, descreve os personagens ¢ a trama revolucionéria a partir de sua propria vivéncia, Deriva da leitura dessas duas narrativas o intuito de contrapor © filtro historiografico de Fausto ao calor dos acontecimentos descritos por Sobrinho. O tiltimo faz uma histéria do tempo presente, capta acontecimentos nos quais est envolvido sem abrir mao de certa objetividade no trato com as verses acerca do processo revolucionério. Reflete sobre o vivido, sobre a meméria da revolugao, requisita a verdade © certo esté de que a atingiu, pois afirma que seu trabalho foi lido e reconhecido como verdadeiro pelos homens que viveram a revolugao* Como intérprete do tempo-presente, Sobrinho aproxima meméria e historia, conquistando uma posigao de eqiidistancia reconhecida, segundo co autor, pelas principais liderangas que participaramdo movimento. Aceito como verdade, o livro ganhou imensa forga interpretativa, influenciando distintas leituras da Revolucio. No prefacio a [* cdigao do seu livro (1933), Sobrinho afirma-se sabedor de que a historia deve ser escrita pela posteridade, indicando os riscos da reconstituigao histériea que hem pode ser eivada de partidaris- mos. O intréito tem por objetivo requisitar um compromisso com a verdade: © avtor reuniu a documentagdo que encontrou nos livros publicados, nos jornais da Epoca, nos discursos parlamentares, nos depoimentos ouvidos de uns ¢ de outros. Aproveitou informagdes confidenciais, cujas origens ficaram necessariamente no siléncio. Nao desprezou também a sua impressZo pessoal, pois que acompantou de perto os sucessos € conhece, também de perto, quase todos os seus atores [...] que ao menos se faga 20 livro a justiga de reconhecer que ele levou, tio longe quanto possfvel, 0 esforgo de verificagdo, ¢ 0 desejo de relatar a verdade. (1983,p. XV) 150 Sanpes, No€ Freire, 1930: Entre meméria ¢ histéria Alleitura de Sobrinho € um esforgo de sintese da hist6ria republi- cana que, tomando como ponto de partida o fim do governo de Artur Bernardes, apresenta um quadro do governo de Washington Luis em que emergem as contradigées regionais em Minas e no Rio Grande do Sul. Em um capitulo intitulado “A passagem do Rubicon” registra 0 momento em que general Flores da Cunha é designado por Vargas para levar ao presidente Washington Luis uma carta em que 0 politico gaticho anuncia sua condigtio de candidato, A descrigdo da surpresa do presidente induz a uma interpretacao que permeard a reflexiio sobre a revolugao feita pelos que foram depostos: a traigao. Polo ar de seu assombro, observei que estava sob um homem gue houvesse cafto das nuvens de seu sonho, no chao duro da realidade. Murmurava prostrado pelo abalo que lhe produzira 0 conhecimento da carta: = Nao pode ser... Nao pode ser. Vinham-lhe & mente os termos categ6ricos da correspondéneia anterior ¢ recente: = Ainda hé pouco recebi correspondéncia do Dr. Gettilio, correspondéncia tranqilizadora. (1983, p. 51) ‘A Revolugao sera considerada obra de uma dupla traigio politica: 2 formago da Alianga Liberal entre Minas Gerais ¢ Rio Grande do Sul € 0 golpe militar tramado no interior das forgas armadas. A posse de Idlio Prestes jé era tratada com certa naturalidade quando a morte de Jodo Pessoa deu novo dnimo as forgas oposicionistas. O peso do assassinato do lider paraibano assumiu centro da narrativa, avultando ‘a importiincia hist6rica do pequeno Estado da Paraiba.” A transformacao de Joo Pessoa em simbolo da Revolugao é uma das mais ricas passagens do imagindrio da Revolugdo, bem como a cena da deposigao de ‘Washington Luis: Informado dessa nova resolugao, o St. Washington Luts con- formava-se indiferente ao destino que Ihe dessem. Nao pedia ¢ niio desejava garantias senfo para os ministros e amigos que 0 acompanhavam. Abragou entio um por um dos que se achavam no paldcio da Guanabara_[..] Ao passar 0 carzo entre os portdes do Guanabara, a populac2o tentou uma zssuada. Mas o general ‘Tasso Fragoso, levantando meio corpo, comandou, enérgico: Histiria Revista, 8 (1/2) : 141-158, jan./dez. 2003 151 —Respeito! Em siléncio, sem uma palma, sem um assobio, o carro avangou entre os espectadores daquela cena histérica. A noite vinha descendo sobre o eclipse da autoridade constitucional, que desaparecia, entretanto com a majestace que Ihe souberam dar a altivez ea bravura de seu ditimo presidente. (1983, p. 163) A narrativa usa recursos draméticos para fixar 0 cendrio da resistncia: a despedida, o embate coma multidao e a garantia do respeito a autoridade deposta por meio da ordem do general (“Respeito!”). A bravura do presidente é comparada & imagem de um eclipse. O leitor acompanha a cena ¢ partilha do sentimento de melancolia que se abateu sobre os homens que assistiram ao epflogo da velha Reptiblica Esse quadro de consideragées, em que a afetividade e os sentimentos esto presentes no jogo politico, é apagado das consideragdes de uma outra vertente historiografiea, a que se atém ao balanco das mudangas estruturais impostas & configuragZo das classes e do Estado ro. Peter Burke (1992) abre a possibilidade de que a escrita da histéria nao necessite optar entre o campo narrativo € 0 estrutural porque, mesmo que se pretenda estrutural, esse tipo de escrita da historia ndo deixa de abrigar um projeto narrativo, uma ver. que narrar significa, sobretudo, ordenar os eventos de modo a constituir a produgiio de sentido (Laas, 1989). Em virtude disso, é legitima a busca de didilogo entre 0 acomtecimento ¢ 2s estruturas, pois no processo de incorporagtio dos acontecimentos, seguindo as pistas de Burke, a cultura é reordenada. Nesse sentido, o acontecimento enseja a produgdo de um corpo (forma © contetido) de interpretagdes sociais modeladoras de uma nova cultura politica A partir da década de 1960, € poss{vel constatar subordinagio do acontecimenta ao peso das estruturas no que se refere & anéilise da revolugdo de 1930, Em meio a uma imensidao de testemunhos que valorizavam cada faceta do movimento, 0 que se estabelecea como ‘“meméria histériea” foi a andlise estrutural, que explicaria 0 sucesso editorial do trabalho de Fausto e sua adogdo como referencial (modelo) para os estudas sobre a Revolugio realizados no interior da universidade. Vavy Pacheco ressaltou a novidade no titulo de seu livro ao delimitar um ‘campo novo de anilise: histéria ¢ historiografia. O que surpreende é que 152 Saxvas, Nof Freire, 1930: Eure membrta e hist6rta © campo de estudo proposto carecia de bases de sustentagdo, pois ainda era diminuta 2 pesquisa hist6rica sobre 1930. Acrescente-se a auséncia de clareza acerca da relagdo entre hist6ria ¢ historiografia, E certo que Fausto explicita 0 seu lugar de escrita ¢ insere o seu desejo de critica as visdes dualistas como resposta ds quesies do presente, Mas creio que € necessdrio esclarecer 0 processo de construgéo de uma matriz historiogréfica em torno do movimento de 1930 € os critérios que nortearam a incluso ou exclusio das obras sclecionadas para explicitar © movimento analitico no qual a critica histética voltou-se sobre sua propria produgio.§ Na verdade, boa parte dos escritos sobre a Revolugio esta vineulada a desejo de meméria, alimentado pelos homens que participaram do movimento. Portanto, meméria e pensamento histérico partilham da drdua tarefa de interpretagdo do passado. Essa partilha sugere a presenga da meméria na perspectiva tragada por Halbwachs. No que diz respeito & memséria dos militares, os depoimentos tragam um quadro de pervepgdes em que o agrupamento organiza a meméria da revolugdo, utilizando-se dos argumentos de que a corporacio rompera com a constitucionalidade ou, diversamente, de que 0 exército assumira © papel de representante das camadas médias e populares.” A relagdo entre meméria ¢ histéria no trabalho de produgao de sentido indica os limites de uma hist6ria da produg&o do conhecimento histérico, 0 que obriga @ incluir 0 memorialismo como parte integrante da reflexdo historiogréfice. Uma saida facil seria indicar que a meméria constitui-se em fonte para reflexdo do historiador, © que subtrai dela a capacidade de produgiio de sentido. Assim, essa incluso nada teria de problematica, dada a posigdo de subalternidade a que foi submetida. Partilho de convicgao distinta, a de que a meméria organiza uma outra percep¢ao do zcontecimento, o que permite vislumbrar a multiplicidade do tempo hist6rico e até mesmo sugerir a especificidade da reflexo do memorialista na composigao de uma consciéncia hist6rica (RuseN, 2001). A memséria inscreve o seu lugar de produgao, explicitando a dimensao subjetiva da escrita. A natrativa assume a forma de testemunho: alguém, ao escrever, tansfigura o vivido em drama existencial néo do individuo, mas da persona, sob 2 qual se concentra a densidade dos papéis sociais espera- dos. A cena da deposig&o do presidente Washington Luis, tantas vezes rememorada, conferiu alguma honorabilidade aos que foram depostos Histéria Revista, 8 (1/2) = 141-158, jan/dez. 2003 153 assegurou a possibilidade de atualizagdo do passado, restituindo a0 ex- presidente um papel relevante na recomposigio da meméria nacional ao final da Segunda Grande Guerra. Essa verso ganhou lugar de destaque, inclusive nos livros didaticos,? mas, aos poucos, foi desaparecendo dos novos manuais escolares sequiosos de maior proximicade como presente. © que nfo desapareceu dos manuais foi a centralidade de Vargas no teatro politico; ao contratio, essa permanéneia favoreceu a formagao de um mito. Em sua leitura historiogrética, Fausto explicita o desejo de romper com as interpretagdes dualistas sobre a Revolugao, O rompimento com © dualismo era uma empreitada de envergadura politica essencial & compreensio do presente, Para sua execugao, exigia-se a refutagao da andlise tedrica por meio de uma refinada leitura da historiografia, que revelasse o posicionamento dos atores coletivos no movimento que depos Washington Lufs. Nessa perspectiva, Fausto abandonou a tradigo memorialistica que, apesar de incorporada A bibliografia indicada, nao foi problematizada, Essa opgdo fez com que 0 autor se afastasse da Icitura do acontecimenta, cuja multiplicidade de sentido, muitas vezes, escapa & compreensio do historiador. Feita tal opyao pelo afastamento da cena da revolugio, o que se apresenta no livro de Boris Fausto é uma leitura historiogréfica pouco afeita ao registro da meméria, Cabe ressaltar que boa parte da reflexiio sobre a revolugiio afasta- se da objetividade metodolégica pretendida por certa escrita da historia; tampouco se nota, entre as décadas de 1960 ¢ 70, 2 maciga presenga de obras de historiadores sobre a Revolucao de 1930, Nas décadas poste- riores & revolugao, a escrita da histéria recente do Brasil fora realizada, principalmente, por jomalistas e memorialistas. Os historiadores aprovei- taram-se da meméria c dos testemunhos na montagem de suas narrativas, cujo objetivo era mais o de ordenar a complexe teia de acontecimentos do que o estabelecer hipéteses a serem confrontadas com a documen- tagao. Esse tipo de abordagem pode ser detectada nas obras de Hélio Silva, de Edgar Carone e nas primeiras sinteses da historia republicana produzidas por autores como José Maria Belo e Cruz Costa. ‘A perspectiva historiogrdfica proposta por Boris Fausto inaugura um momento distinto na reflexao sobre a Revolugio de 1930. Essa proposigo buscava explicitar a subjetividade presente na produgtio do conhecimento hist6rico e articular uma leitura do processo revolucionatio 154 Sanpus, Nog Freire, 1930: Eure meméria ¢ histérla por meio de um filtro capaz de retirar o excesso (as impurezas) da densa nuvern que encobria a Revolugao de 1930. ‘Uma rdpida avaliagdo da bibliografia utilizada em A Revolugaio de 1930: historiografia ¢ histéria (1972) € indicativa do percurso analitico do autor, que se utiliza, sobretudo, de obras produzidas nas décadas de 1950 ¢ 60, notadamente vinculadas & produyao de sinteses histéricas ou propriamente académicas. A presenga de um considerdvel volume de memérins e depoimentos indicados na bibliografia nao representa um peso maior na argumentagio do autor, cujo interesse acerca dos miltiplos acontecimentos que envolveram a revolugio 6 menor. Nao obstante, merece relevo a presenga de Juarez Tévora no debate sobre as classes médias. Destaca-se também a centralidade da reflexio tedrica dos trabalhos de Francisco Weffort, Nicos Poulantzas, Caio Prado Jr. ¢ José Nunn, Esses autores fomeceram 0 suporte neces- sério para a reflexio acerca do dualismo brasileiro ou da especificidade do Estado brasileiro que, na fangao de érbitro, mediou a crise de hege- monia instalada no final dos anos 20. A influéncia de Gramsci, traduzido no Brasil em 1968, nao esta presente na bibliografia. O quadro abaixo apresenta a sistematizagio, por perfodo e género, da bibliografia utilizada por Boris Fausto em A Revolugao de 1930: historiografia e hisiéria: Memonias/nrocrarias | _SINTESE/ACADBAICS Died e280) 3 Década de 1940 | 3 2 | Décadas de 1950 ¢ 60 7 26 ‘Total de obras consultadas 56 | Barbosa Lima Sobrinho cita uma bibliografia (58 livros) formada quase que completamente por memorialistas, 0 que se justifica pela contemporaneidade de sua reflexéio. No intuito de discutir a politica monetdia, apoiou-se em uma bibliografia espeetfica da drea. No prefécio, © autor indica as leituras fundamentais da pesquisa, destacando os autores de leitura obrigatéria para o conhecimento da revoluedio: Virgilio de Melo Franco, Paulo Duarte, Sertério de Castro, Ademar Vidal, Rubey de Wanderley, André Garrazoni, Alvaro de Carvalho. Do confronto entre os dois trabalhos ressalta-se a quase auséncia de referéneias comuns, Hist6ria Revista, 8 (1/2) + 141-158, jan/dez, 2003 135 Fausto incorpora apenas o livro de Barbosa Lima eo de Sertério de Castro. No jd comentado preficio de Barbosa Lima, o autor revela-se critico de qualquer forma de apologia, compromete-se com a verdade, afirma sua proximidade dos que estiveram & frente do movimento, ao menos para obter informagées ¢ confidéncias, ¢ exercita certo pessimismo a0 constatar o cardter regionalista da Revolugio. Ser regionalista implicava carregar os inconfundiveis elementos de continuidade das priticas politicas anteriores. Nessa avaliagao, a Revolugao desdobrar- se-ia em uma espécie de autofagia politica sem que as aspiragGes liberais c democriticas tivessem lugar: Convenhamos, porém, que procisamos encarar corajosamente as realidades de nossa histéria politica, para evitar perigos e ameagas que os fatos vem semeando. A dissecago poderd ter a virtude de nos incompatibilizar com a subalternidade dos interesses que orientam a politica brasileira, O intuito final do livro serd, pois uma adveriéncia 8s tormentas que nos espreitam, e um apelo pata que o Brasil consiga evoluir em diregSes mais uteis ¢ sua coesto e 20 seu futuro. (1983, p. XV) Feita a contraposigdo entre meméria e histéria da Revolugdo de 1930, hé que se observar o sentido da recomposigao dos acontecimentos pelos homens que acompanharam e viveram as mudangas operadas naquela década, A memsria aproxima-se de um exerefcio de autocons- ciéneia de um grupo, enquanto os historiadores profissionais, distantes dos alhos e dos ouvidos do passado, passam a auscultar os acontecimentos cmoutra diregao, Nessa perspectiva, como lembra Vesentini, 1964 estava contido em 1930. Nesse jogo metonimico (metalepse), a narrativa historiogrifica recompds o passado em busca de um outro futuro, cujos tragos seriam revelados quando se completasse a sonhada ruptura com aheranga colonial geradora do arcaismo. Livres do passado, os brasileiros poderiam ensaiar um novo olhar sobre o Brasil modemo, como fez Boris Fausto ao concluir sua andlise acerca da Revolugio de 1930: Em poucos anos, por razGes distintas, para a velha burguesia cafecira, para a nascente “inteligentsia” da classe média encastelada no aparelho de Estado, para os tenentes revolucio- 136 Saxpes, Nog Freire, 1930: Eure meméria ¢ hist6ria ndrios convertidos em canhestros estadistas, 0 mundo brasileiro anterior 2 1930 incorporou-se definitivamente a um longinguo passado. (1978, p.426) Oeexereicio de critica da historiografia elaborado por Boris Fausto encerra um outro tipo de consciéncis histérica, que relega a experiéncia da Primeira Republica a um plano secundério, posto que essa nao mais organizaria a compreensdo do tempo presente. A emergéncia de uma nova ordem social mediada pelo fortalecimento do Estado apontava para outra racionalidade, advinda do amadurecimento da sociedade civil e da organizagao das classes populares. Em direcao distinta, Barbosa Lima Sobrinho registrava, na forma de tradicdo, a consciéncia histécica daqueles que assistiram & emergéncia dessa nova ordem, que era pereebida com certa desconfianga, pois ela nao fora capaz de concretizar as expectativas para a formagio de uma sociedade liberal ¢ democrdtica, O centralismo politico, aliado ao poder militar, barrou o impeto das transformacées Entre as duas leituras percebe-se a diversidade da elaboragdo da cons- ciéncia histérica ¢ 0 tenso didlogo entre meméria ¢ hist6ria na busca do sentido de orientac&o do tempo histérico. Abstract This essay seeks to analyse two historiographic books on 1930. The first is Barbosa Lima Sobrinho “s The iruth on the Revolution of october, 24" ‘1930 and the other is Boris Fausto’s! 930: history ard historiography. Both narratives create differents patterns of historical explication, so they keep arich Gialogue between memory and history as ways of historical conscience. Key words: Historiography, 1930Revolution, memory and history. Notas 1. OTHGB promoveu sessdes solenes nos dias 08 ¢ 15 de outubro, eujo orador principal foi o jormalista Barbosa Lima Sobrinho. O relatério das atividades culturais e administrativas do THGB do ano de 1980 esclarece a posigao do Instituto em relagdo ao cingtlentendsio: “[...] ficou subtendido que 0 Instituto Histérico e Geogréfico Brasileiro nao tem espirito de ‘comemoragio dos 50 anos do grande movimento politico, mas sim abrir Hist6ria Revista, 8 (1/2) : 141-158, jan/dee. 2003 157 suas portas para, no seu Ambito poderem falar os s6cios |...) obedecendo, contudo, ¢ um programa previamente tragado...” (PepRosa, 1980, p. 164). Na revista Veja, n, 632 de 15/10/1980, ndo encontramos coberture alguma da passagem dos 50 anos, a ndo ser o comentério de Elio Gaspari sobre a reedigaio dos livros de Virgilio A. de Melo Franco e de Mauricio de Lacerda, (O seminario internacional, promovido pela Fundagao Getilio Vargas, rounin os especialistas sobre o tema, mas evitou o debate politico sobre o presente A morte de Joio Pessoa sequer foi mencionada pelo autor. trabalho de Fausto patte da categoria de Estado de compromisso elaborada por Weffort, em O populismo na politica brasileira. Neste livro, Weffort estrutura sua andlise polftica em categorias eminentemente te6ricas, embora ressalte a importancia de tais categorias para as andlises concretas. A novidade de Fausto reside justamente na revisdo de certas proposigoes te6rieas acerca da relagiio entre Estado e Sociedade, abandonando 0 acontecimento como problema. Nesse sentido, Fausto e Sobrinho formulam duas Icituras distintas do proceso revolucionsrio. No prefficio a reediga0 da obra Revolugdo de 1930: historiografia ¢ histéria (1997), Fausto consi- derou pertinente 0 questionamento do conceito de crise de hegemonia na andlise do processo revolucionério, mas nao alterou as bases de sua interpretagao. 4, No prefécio & segunda edigo, o autor afirma que Vargas e Oswaldo Arenha reputavam sua obra como séria, embora discordassem de algumas interpretagdes (SosRINHO, 1984, p. XD. 5, Barbosa Lima Sobrinho apoiou-se, fundamentalmente, no livro Jodo Pessoa ca Revolugdo de 1930 de Ademar Vidal, publicado em 1933, No preficio’ reedigao desse livro, em 1976, afirma o autor: “Vivi os fatos ¢ nao me contive: em esperar que esfriasserm para depois descrevé-los. Aguardar que o tempo passasse? Nio, Tardar sempre gera convenigneias, ficando a narrativa sujeita a fatores novos, prevengDes com atitudes personalissimas, Tardar seré dizer a verdade? Serd adulterd-la as conveniéneias de quem deixa primeiro correr o tempo para eliminar emogdes ¢ esquecer detalhes fixos. Esclarecedores.[..] Eo que assisti eescrevi pode ser materialmente provado, Entendo assim que cumpri com o meu dever nao deixando morrer no esquecimento certos Angulos, aqueles, sem quaisquer diividas, os mais dramiticos da histéria politico-social da Nagao neste século” (WipaL, 1978, p67), 6. Ac analisaro movimento de esitica interna na historiografia francesa, Pierre Nora destaca que o debate em torno das interpretagdes da Revolugzo Francesa indica um afestamento da sua heranga como perspective identitaria 158 ‘Sanoes, Nog Freire, 1930: Entre memdria e historia (Noaa, 1993, p. 10-11). No Brasil, o debate procurava demarcar, no episédio 1930, 0 momento da ultrapassagem do Brasil feudal dominado pelo imperialismo. E contra essa perspectiva que se coloca o trabalho de Fausto ao contrapor relacZo Bstado e Sociedade & complexa unidade que as “esquerdas” articulavam em torno da relagio Estado-Nagdo como fundadora do Brasil moderno. No entanto, em sua anélise, o Estado fez-se mais presente do que a sociedade como dirigente do processo de modemizagéo, o que reforgou a tradicional imagem de uma sociedade avessa A organizagéo. 7. Entre tantos relatos militares, ressalto o do General Augusto Tasso Fragoso, gue foi chefe do Estado Maior do governo Washington Luis , posterior mente, participou como um dos articuladores do golpe de 1930. Acuado sob o julgamento de traidor, o general quer se explicar em um depoimento escrito em 1935 e publicado na Revista do Instituto Histérico © Geogrifico Brasileiro (y. 211, 1951, p.7-61). 8, Borges Hermida (1948, p. 212), autorde um manual intimeras veaes reeditado, registra a bravura (intitil) do Presidente Washington Luis diante do movi- mento revolucionario. 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