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REVI STA DE

JORNALISMO edeiçdãiçoãCAoILAL
EPSEPCEIsário
ESPM JOURNALISM ESe aniver
EDIÇÃO BRASILEIRA DA
COLUMBIA
d
REVIEW
Imprensa livre, Democracia forte

EXTRA! EXTRA!
O JORNALISMO
PÓS-INDUSTRIAL
Um estudo em 60 páginas preparado pela
Columbia University diz como a imprensa pode
prosperar para além do mercado em crise
C.W. ANDERSON, EMILY BELL E CLAY SHIRKY

O MEU JORNAL DA TARDE


Uma crônica de lembranças muito pessoais sobre
o mítico diário paulistano HUMBERTO WERNECK

COMPROMISSO DE RISCO
A violência obriga repórteres brasileiros
a se refugiar no exterior MILTON BELLINTANI

JORNAIS ERRAM AO SE AFASTAR DO GOOGLE


A briga da mídia impressa com o buscador
de notícias é mau negócio LEÃO SERVA

JORNALISMO DE PREVENÇÃO
A cobertura que pode ajudar a
MARCELO SOARES
evitar tragédias
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À PENA FRIA
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R O ardil preparado por Truman Capote para
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C fisgar Marlon Brando DOUGLAS McCOLLAM

ESPM AB R MA I JUN 2013


ISSN 2238-2305

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N° 5 ANO 2 R$ 16,00
ABRIL | MAIO | JUNHO 2013

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Capote em retrato dos anos 1950 Pág. 90

8 CARTAS 30 ESPECIAL
JORNALISMO PÓS-INDUSTRIAL
9 ROUBOU A CENA Relatório preparado porC.W.
Anderson, Emily Bell e Clay
10 TUDO EM DIA Shirky, da Columbia University,
IMPRENSA LOCAL FORTE investiga as fronteiras D
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Carlos Eduardo Lins da Silva da imprensa no século 21 T
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ressalta o valor de jornais de C
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cidades pequenas quando ocorrem 32 INTRODUÇÃO O


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ali fatos de interesse mundial A transformação do jornalismo T


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norte-americano é inevitável S
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14 DIRETO DE COLUMBIA E
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DILEMAS DA PROFISSÃO 41 PARTE 1: JORNALISTAS E


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David Klatell explica por que Se há profissionais de imprensa, O


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as tecnologias digitais alteram é porque o mundo precisa saber V


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a tomada de decisões éticas o que aconteceu, e os motivos Memorial a repórter mexicano morto
Pág. 102
nas redações 55 PARTE 2: INSTITUIÇÕES
16 IDEIAS + CRÍTICAS A dificuldade de viabilizar
JORNALISMO PREVENTIVO as mudanças necessárias 102AULAS DE SOBREVIVÊNCIA
Marcelo Soares, da Folha, mostra em instituições jornalísticas Judith Matloff, da CJR, expõe o
como boas coberturas podem drama de jornalistas mexicanos que
70 PARTE 3: ECOSSISTEMA
ajudar a evitar tragédias em vez pedem apoio a colegas da Colômbia
A capacidade de produzir, copiar para resistir aos cartéis de drogas
de apenas noticiá-las e discutir conteúdo digital faz
22 MEMÓRIA desmoronar antigas verdades 106 ENQUANTO ISSO, NO BRASIL...
O MEU JORNAL DA TARDE sobre a imprensa e a mídia O jornalista Milton Bellintani
Humberto Werneck relata sua traz à tona a realidade de
81 CONCLUSÃO:
experiência no mítico diário repórteres obrigados a sair do
MOVIMENTOS TECTÔNICOS
paulistano durante os dias de país para escapar dos bandidos
A sobrevivência da profissão que os ameaçam de morte
glória da publicação que já não depende do reconhecimento
circula mais de que estamos em meio a uma 112 INOVAÇÃO COM
revolução e do compromisso PRAZO DE VALIDADE
com as mudanças Michael Schudson e Katherine Fink, da
CJR, apresentam um blog de notícias
90 À PENA FRIA
que teve de deixar de ser visionário
Douglas McCollam, da CJR,
descortina a astúcia de para crescer e ganhar legitimidade
Truman Capote para conseguir 114 PARA LER E PARA VER
a entrevista que srcinou Comentário sobre a série House of
o perfil de Marlon Brando Cards e os lançamentos A Poeira dos
Outros e O Silêncio contra Muamar
98 POR QUE OS JORNAIS ERRAM AO
Kadafi na coluna de Tito Montenegro
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BRIGAR COM O GOOGLE NEWS
Leão Serva, professor da
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118 CREDENCIAL
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ESPM, argumenta que a Jorge Tarquini, ex-diretor de
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resistência da mídia impressa redação de Quatro Rodas, enumera
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R no Brasil ao buscador de notícias as boas lições que podem ser tiradas
Tragédia na região serrana do RioPág. 16 é um mau negócio dos primeiros anos da revista
Conra os lançamentos do
Instituto Cultural ESPM Imprensa livre, Democracia forte

presidente J.Roberto Whitaker Penteado

vice-presidentes Alexandre Gracioso, Elisabeth Dau Corrêa,


Emmanuel Publio Dias e Hiran Castello Branco
diretoria Flávia Flamínio (diretora-geral daespm Rio de Janeiro),
Richard Lucht (diretor-geral daespm Sul),
Luiz Fernando Garcia (diretor da Graduação daespm São Paulo)
e Licínio Motta (diretor da Pós-Graduação daespm São Paulo)

conselho editorial J. Roberto Whitaker Penteado (presidente),


Eugênio Bucci (secretário), Carlos Eduardo Lins da Silva, Caio Túlio Costa, Carlos Alberto
Messeder, Janine Lucht, Judith Brito, Maria Elisabete Antonioli e Ricardo Gandour
redação da revista de jornalismo espm
diretor de redaçãoEugênio Bucci
editor Carlos Eduardo Lins daSilva
editora-associada Ana Paula Cardoso
diretora de arte Eliane Stephan
assistente de arte Marcelo Salvador
editora-assistente Anna Gabriela Araujo
A Propaganda no Brasil. coordenadora editorial Lúcia Maria de Souza
Evolução histórica tradução Ada Félix, Faoze Chibli e Lizandra M. Almeida
de 1808 a 1979 . revisão Mauro de Barros
Roberto Simões
206 páginas publisher Jorge Tarquini
A Revista de Jornalismo espm é uma publicação trimestral da ESPM,
com conteúdo exclusivo da Columbia Journalism Review

endereço Rua Doutor Álvaro Alvim 123 - Vila Mariana - São Paulo - SP - CEP 04018-010
editorial 11 - 5085-4643 e-mail rj@espm.br
comercial 11 - 5085-4679 e-mail revista@espm.br
e-mail assinaturas assinatura@espm.br | www.espm.br/CJR

diretor da columbia graduate school of journalismNicholas Lemann

presidente Victor Navasky


vice-presidente Peter Osnos

diretora de redação Cyndi Stivers


editor-executivo Mike Hoyt
editor-administrativo/revista Brent Cunningham
editor-chefe/internet Justin Peters
editor-associado/chefe de redaçãoTom O’Neill
Conferência Legislativa sobre
editores-associados Kira Goldenberg, Sang Ngo
Liberdade de Expressão
equipe de redação Liz Cox Barrett, Curtis Brainard (Ciência),
7 anos de debates.
88 páginas
Greg Marx, Michael Meyer (Agência de Notícias)
comissão de auditoria Dean Starkman (Kingsford Capital Fellow),
Ryan Chittum (Editor Adjunto), Felix Salmon, Martha Hamilton (Auditor)
editores-assistantes Sara Morrison, Hazel Sheffield
editores-associados James Boylan, Julia M. Klein, Charles Lewis, Trudy Lieberman,
Robert Love, Michael Massing, Judith Matloff, Douglas McCollam, Alissa Quart,
Cristine Russell, Michael Shapiro, Scott Sherman, Clay Shirky
publisher Dennis Giza

Rua Dr. Álvaro Alvim, 123, A Columbia Journalism Review é uma publicação da Columbia University
Graduate School of Journalism
Ed. Prof. Dr. Luiz Celso Piratininga - 2º andar
Vila Mariana, São Paulo, SP
As informações contidas nos artigos assinados e publicados nas páginas da
Revista
CEP 04018-010 de Jornalismo ESPMsão de exclusiva responsabilidade dos respectivos autores.
institutocultural@espm.br
A Revista de Jornalismo ESPM(ISSN 2238-2305) é uma publicação trimestral.
Ano 2, Número 5, Abril / Maio / Junho de 2013

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Embora se atenha ao exame do jor-
EDITORIAL nalismo apenas nos Estados Unidos,
o estudo tem óbvia relevância para
todos os países que em maior ou
menor medida adotaram ao longo do
século passado o sistema norte-ame-
ricano como modelo para si próprios,
como é o caso do Brasil.
É evidente que nenhuma sociedade
copia ou transplanta princípios e práti-
cas de outras sem modificações, muitas
vezes significativas, que alteram e dão
características próprias ao que se vai
construindo a partir das inspirações que
vêm de fora e da sua própria história.
Mesmo assim, ainda mais depois que

Sem tempo a perder a globalização se impôs de modo defini-


tivo do último quarto do século 20 em
diante, é fundamental para nações como
Revista comemora um ano com edição especial que o Brasil prestar atenção ao que ocorre
e ao que se discute nos Estados Uni-
inclui documento sobre jornalismo pós-industrial, dos em campos como o do jornalismo
para poder ter condições de entender
tema prioritário para a atividade melhor o que acontece aqui mesmo e
o que se pode fazer para evitar erros lá
cometidos e desenhar caminhos apro-
priados para aproveitar os seus acertos.
O que o Tow Center nos diz é que
as condições técnicas, materiais e de
metodologia que mantiveram a indús-
Esta é uma edição
seu primeiro especial
aniversário. de lhe
Para nossa
darrevista, que marcaelao
mais substância, tria do jornalismo atuante até o fim do
século 20 não existem mais. O jorna-
traz a íntegra de um dos mais importantes documentos de lismo se organizava em tornodas nor-
mas da proximidade do maquinário de
diagnóstico da crise em que se encontra há pelo menos 20 produção, e isso não é mais necessári
o.
anos a atividade do jornalismo no mundo. As crenças e comportamentos que
se sustentaram pela lógica industrial
não se seguram mais, e ainda não está
Trata-se de “Jornalismo Pós-Industrial: Adaptação aos claro o que os substituirá. Isso vale tanto para a produ-
Novos Tempos”, do Tow Center for Digital Journalism ção física do veículo jornalístico em qualquer forma,
da Columbia Journalism School. O centro foi estabele- quanto para a da informação em si, devido à importân-
cido pela escola em 2010 para explorar como o desen- cia crescente de bases de dados, de interação com múl-
volvimento das tecnologias está alterando o jornalismo, tiplas fontes e com o próprio público.
suas práticas e consumo, por um público que tenta ava- Não se trata apenas de discutir o“modelo de negócios” do
liar a credibilidade de informações que lhe são oferecidas jornalismo, como se diz comumente no Brasil. A questão é
em quantidades cada vez maiores e por diversas fontes. muito mais profunda, de acordo com a lógica do Tow Center.
Por meio de pesquisa e ensino de elevado nível de qua- Esse debate, que ainda é muito incipiente entre nós, não
lidade, o centro vem prestando excepcional auxílio a jor- deve ser mais adiado nas empresas, nas escolas, nas enti-
nalistas, empresas jornalísticas e consumidores de jorna- dades ligadas à imprensa, mesmo no âmbito do Estado.
lismo para que eles possam compreender melhor os desa- Nossa intenção, ao publicar este importante docu-
fios desta época e as perspectivas para o futuro. mento na íntegra, não é que ele seja usado como cânone,
O relatório da pesquisa sobre o jornalismo pós-indus- nem mesmo como mapa, já que a realidade e a conjun-
trial lançado no fim de 2012 foi uma espécie de coroa- tura brasileiras, em todos os sentidos, são muito diferen-
mento dos primeiros anos de atividade do centro. “Parte tes da americana, por mais que os dois sistemas de jor-
pesquisa, parte manifesto”, como se autodefine nas pala- nalismo tenham semelhanças.
vras que o abrem, o documento obteve enorme repercus- O que almejamos é mostrar que não se pode mais espe-
são assim que divulgado. rar, e provocar a discussão sobre estes temas aqui. ■

REVISTA DE JORNALISMO ESPM| CJR 7


CARTAS

FORMAÇÃO DE LEITORES CONTEÚDO RELEVANTE ARQUIVO VALIOSO

Recebemos duas edições da Revista Sou João Victor, estudante do Agradecemos o envio dessa valiosa
de Jornalismo ESPM( julho/agosto/ segundo ano de jornalismo do Cesumar revista, que passa a integrar o acervo da
setembro de 2012 e janeiro/fevereiro/ (Centro Universitário de Maringá), Biblioteca Central desta Universidade.
março de 2013). Diante de sua em Maringá (PR). O chefe da TV Esse tipo de publicação não só enriquece
importância, gostaria de ter acesso Cesumar, onde trabalho, me mostrou nosso acervo, como também amplia as
às demais edições da publicação. a Revista Jornalismo ESPMe eu a fontes de consulta que disponibilizamos
Atenciosamente, achei fantástica. Fiquei impressionado à comunidade acadêmica e à
Silvana Capelari Orsolin, setor de com o conteúdo. Gostaria de saber comunidade externa desta região.
Periódicos, Biblioteca Central, Fundação como faço para receber essa publicação. Reiterando os agradecimentos,
Educacional de Patos de Minas (MG) João Victor, Maringá (PR) apresentamos nossoscumprimentos.
Ivone H. Oogusuko Carvalho,
Resposta da redação – Prezado bibliotecária da Universidade Cruzeiro
MUITO BOA leitor, você pode assinar a Revista do Sul, São Paulo (SP)
de Jornalismo ESPMno link
Sou editora executiva do programa www.espm.br/espmcjr.
AutoEsporte e gostaria de dizer que RELEVÂNCIA
considero a Revista de Jornalismo
ESPM muito boa. TELEGRAMA Caros, gostaria apenas de manifestar
Ivandra Previdi, editora executiva (tardiamente, é verdade) meus
do programa AutoEsporte Agradeço a gentileza do envio de sinceros agradecimentos por receber
exemplar da Revista de Jornalismo a edição do primeiro trimestre.
ESPM. Parabéns aos organizadores O conteúdo está um primor, muito
ALGO A MAIS... e colaboradores pela iniciativa. relevante para qualquer jornalista
Contínuo êxito nas atividades. que se preze. Obrigado.
Excelente o artigo “Em busca da Antonio Salim Curiati, deputado estadual Paulo Gomes
alma perdida”, de autoria de Marcelo Partido Progressista de São Paulo
Rech, publicado na edição nº 4,
da Revista de Jornalismo ESPM. JORNALISMO DE QUALIDADE
Na era do conhecimento, o conceito é SEM DEMAGOGIA
diferenciar: segmentar para aproximar, Agradeço o envio do exemplar
emocionar para cativar, envolver para Recebi a edição de janeiro/fevereiro/ da edição de janeiro/fevereiro/
compartilhar. Na pauta, sensibilidade março da Revista de Jornalismo março da Revista de Jornalismo
para conquistar, credibilidade para ESPM. Fantástica. Editorial ácido, ESPM e felicito essa instituição
fidelizar. Na sedutora tecnologia, engajado e, acima de tudo, sem pela qualidade da publicação.
inovação para mobilizar, não demagogia. Obrigado pelo presente! Com as expressões do nosso
para protagonizar. O amadurecer André Laurent, repórter especial apreço, firmo-me. Cordialmente,
jornalístico é obrigação, não uma e apresentador do Globo Esporte – Maurício Azêdo, presidente da
questão. O fazer pensar neste TV Liberal, Belém (PA) Associação Brasileira de Imprensa (ABI) ■
instante certamente produzirá um
“algo a mais” interessante. Encontrar
a alma perdida, mais do que um SÓ ELOGIOS...
desafio, é o único caminho!
Mauro Wainstock, jornalista, editor de O pessoal aqui da sucursal do
livros, jornais e sites, Rio de Janeiro (RJ) jornal Valor Econômico, em Brasília,
é só elogios em relação à Revista
de Jornalismo ESPM. Parabéns!

Fernando Exman, repórter do


Valor Econômico, Brasília (DF)

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D ia 11 de fevereiro, segunda-feira de Carnaval, eu tive um dia de traba-


lho normal. Comode costume, antes de começar as atividades, passei os
olhos no mural doFacebook para saber das novidades. Um “post” enfá-
tico e mal-humorado de um amigo me chamou a atenção: “Parem de falar sobre
o Papa, falem sobre qualquer outra coisa, menos sobre o Papa!” “Escaneando”
o mural, vi de relance outros “posts” – mais Papa. Deve ser algo sobre os recen-
tes escândalos do Vaticano, pensei. Mas eis que uma palavra me saltou aos olhos:
“renúncia”. Imediatamente compreendi o que estava acontecendo e passei para
a home de um importante provedor de notícias. Não havia nada a respeito.oltei
V
ao FB. Notícias e comentários se somavam: não havia dúvida, o Papa havia renun-
ciado. Voltei à home do provedor de notícias e lá estava uma chamada acanhada
ao lado da nudez exuberante da foto de uma mulher, destaque de escola de samba.
Bento 16 era o primeiro papa arenunciar em 600 anos –o anterior, Gregório
12, jogou a camisa em 1415 – e, pelo menos no Brasil, um grande portal jornalís-
Da página Empty and Meaninglessveio a
tico havia sido furado por uma rede social. Claro que tudo isso se passa muitoprimeira imagem, numa citação da tela
rápido, e é impossível não constatar a agilidade com que a notícia se espalha. Logo
surrealista de Magritte. “Isso não é um
os sites de notícias brasileiros destacavam o assunto. MasFB o, então, já havia cachimbo”, faz parte de uma de suas
passado para a fase dos comentários sardônicos, e a páginaEmpty and Meanin- obras-primas, de 1926. O autor da paródia
gless publicou a primeira imagem, inspirada no artis
ta belga René Magritte, com foi irônico: “Isso não é umpapa”. Naquele
os dizeres “isso não é um papa”. Enão era mesmo. Quer dizer: tinha sido, mas dia, o Facebook furou um dos maiores
não era mais. O mundo estava sem pontífice – e era Carnaval. ■(ELIANE STEPHAN) portais jornalísticos do Brasil

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TUDO EM DIA
carlos eduardo lins da silva

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Fazer fotos como esta em tragédias em cidades pequenas, como Newtown, traz dilemas éticos para jornalistas que fazemda
parte
comunidade

Jornalismo local confirma relevância


, um dos mais
quando o megainvestidor warren buffett até que os repórteres dos grandes centros chegassem até
bem-sucedidos financistas do mundo, anunciou que estava lá. E, mesmo depois disso, eles continuaram a fazer uma
comprando dezenas de jornais de pequenas cidades dos cobertura diferenciada, às vezes complementar, às vezes
Estados Unidos, em fevereiro deste ano, muitos se surpre-antagônica, o que permite refletir de maneira mais apro-
enderam, já que é quase um lugar-comum a teoria de quefundada sobre qual pode ser o seu papel nesta sociedade
o jornalismo impresso está há muito tempo condenado à altamente digitalizada dos tempos atuais.
morte, em especial o de comunidades menores. Alberto Dines, antigo defensor da importância dos jor-
Mas nos dois meses anteriores, nos Estados Unidos nais de cidades pequenas, comentou no programaObserva-
e no Brasil, a “imprensa local”, como em geral é conhe- tório da Imprensadedicado ao episódio de Santa Maria: “A
cida, havia fornecido exemplos claros de sua importân- grande imprensa não existe solta no espaço, seus atributos
cia, em tragédias de repercussão mundial: o assassinato dependem dos atributos do espírito cidadão que circula em
de 20 crianças e seis adultos numa escola em Newtown, sistemas de alto-falantes, rádios TVs e comunitárias, jornais
em 14 de dezembro de 2012, e o incêndio em uma boate de bairro, semanários e diários regionais. Quem sofrepri- o
em Santa Maria que matou 241 pessoas em 24 de janeiro. meiro impacto é ojornalista local, sua sensibilidade e discer-
Nos dois casos, os veículos jornalísticos locais, é claro, nimento são essenciais, seu espan
to ou sua dor são decisivos”.
foram os que primeiro tiveram de fornecer informações, Vicente Paulo Bisogno, da Rádio Imembuí, de Santa Maria,

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JORNALISMO LOCAL Números fortes
dos adultos que moram sós no
O lado trágico 33% Brasil têm internet em casa,
comparados com 58% de toda
o aspecto mais dramáticodo jor- ceiro país em ataques à imprensa a população adulta do país
nalismo local é a extrema vulnera- nas Américas e ocupa a 11ª posição
bilidade que afeta seus praticantes, no índice mundial de impunidade dos homens entre 45 e 75 anos
em especial em países nos quais a contra crimes praticados contra jor- 34% que moram sós no Brasil são lei-
proteção à liberdade de imprensa nalistas em represália direta por tores de jornal durante a semana,
é menos estruturada, como o Bra- suas reportagens, segundo o Com- comparados com 19% de toda a

sil. Apesar da relativa liberdade de mitee to ProtectJournalists. A dire- população adulta do país
expressão aqui vigente para os veí- tora-geral da Unesco, Irina Bokova,
culos de repercussão nacional desde costuma citar o Brasil ao lado do
o fim do regime militar, em regiões Paquistão como as nações em que 340 milhõe s de tuítes
mais distantes dos grandes centros, os ataques a jornalistas são mais são enviados por dia no mundo
é quase corriqueira a ocorrência de graves. E as vítimas são invariavel-
violência contra os profissionais de mente de cidades pequenas, como é o número médio de amigos de
imprensa que atuam com indepen- a mais recente, o repórter Rodrigo 13 0 um usuário do Facebook
dência diante dos poderes políticos Neto de Faria, morto em março em
e econômicos locais.O Brasil é o ter- Ipatinga (MG). ■ é o posto do Brasil na lista dos
1º países com Facebook que mais
publicam posts; apenas um grupo
Não é só Buffett de 800 páginas brasileiras tem
86 mil posts por mês
warren buffett não é o único os assuntos locais de cada bairro da
bilionário que investe em jorna- cidade. Em 2012, surgiu o DNAinfo- foi a porcentagem representada
lismo local. Joe Ricketts, 71, criou o Chicago. O primeiro tem 1,5 milhão de 12% pelos veículos impressos do total
TD Ameritade, que revolucionou o visitantes únicos/mês; o caçula, 650 do faturamento de US$ 29,6 bi-
mercado de ações norte-americano mil. Ambos com crescimento expo- lhões do grupo Time Warner em
ao permitir operações online, e é dono nencial. Com redações encorpadas e 2012; em março deste ano, o gru-
de dezenas de empresas, além do bem pagas, recebem elogios de jor- po resolveu separar as publica-
time de beisebol de Chicago, o Cubs. nalistas importantes, mantêm rela- ções impressas doconglomerado
Em 2009, lançou o DNAinfo.com- ções sólidas com as comunidades que
NewYork, site jornalístico que cobrecobrem e vão bem economicamente. ■ Fontes: IBGE, Mediabistro, AllTwitter, Socialbakers, Financial Times

comparou as prioridades: “Qual era a grande pergunta das Airton Amaral, da TV Santa Maria, afirmou ao Observató-
emissoras de grande expressão da mídia nacional? Quem são rio da Imprensaque optou por não colocar noar entrevistas
os culpados? Qual era nossa grande pergunta? Quem são asde pais ou mães desesperados pela morte trágica de um filho:
vítimas? Nossa preocupação era com a informação”. “Outros veículos fizeram isso, porque há outros interesses
A revista The New Yorker, na edição de 4 março, publicou em jogo – pela audiência, pelo Ibope –, o que não é o nosso
análise de sete páginas sobre a cobertura que o semanário caso. No nosso caso há um comprometimento com a cidade”.
The Bee, de Newtown, fez do massacre na escola elementar Shannon Hicks, a repórter fotográfica do Bee, que fez a
Sandy Hook, que traumatizou a comunidade. O repórter célebre imagem da fila indiana de crianças resgatadas da
John Voket, do semanário, disse a sua colega Rachel Aviv, escola de Newtown, também resolveu não publicar inú-
da New Yorker, que a maneira de cobrir o assunto de um e meras fotos mais sensacionais que tinha, em respeito a
outra era necessariamente diversa: “Você não tem que se quem, para ela, são mais do que “personagens da notícia”.
preocupar, você vai escrever estamatéria e vai embora; nós Impossível dizer o que é certo ou errado. Como con-
vamos cobrir esta matéria para sempre”. clui Alberto Dines: “O interesse do leitor distante vai
Essa diferença de perspectiva explica decisões editoriaisnuma direção, a palpitação do vizinho vai em outra. Jun-
tomadas pelos veículos locais que em princípio podem pare-tos, compõem os caminhos da verdade. Separados fazem
cer erradas do ponto de vista das boas técnicas do jornali
smo. apenas meia verdade”. ■

REVISTA DE JORNALISMO ESPM| CJR 11


UMA FRASE

“Não há nenhum substitu to para um jornal


local que esteja fazendo um b om trabalho ”
Warren Buffett, 82, considerado o maior investidor do século 20, ao explicar
por que resolveu comprar 28 jornais de pequenas cidades em 2012

ESPAÇO GARANTIDO PALAVRA ABERTA

Os jornais pequenos que fizeram sucesso em 2012 Pelo desenvolvimento


A defesa da liberdade de expressão
Seven Days (Burlington) comportamento nas escolas da cidade. não se resume a um princípio
O sucesso fez com que seus editores fundamental dos direitos humanos
O semanário da cidade de 42 mil passassem a dar prioridade ao jorna- e da democracia como valor
habitantes no Estado basicamente lismo opinativo na pauta, com mais filosófico. Ela também tem a ver
rural de Vermont, na costa leste colunistas e mais editoriais. O redator- com o desenvolvimento econômico
dos Estados Unidos, teve em 2012 -chefe, Mitch Pugh, argumenta: “Os das sociedades que a praticam.
o maior faturamento de sua história leitores podem não concordar sem- A relação entre o nível de liberdade
de 28 anos de publicação. O sucesso pre conosco, mas como um todo eles de expressão e de progresso
se explica em parte pelo bom uso gostam de saber que há um veículo material das nações foi o tema
que faz das tecnologias digitais, com empenhado em melhorar a cidade”. central de debate promovido pelo
boas versões para aparelhos móveis Instituto Palavra Aberta em março,
de telefone e tablet, em parte pela Lawrence Journal-World com a participação do reitor da
criação de diversos títulos comple- (Lawrence) Columbia University, Lee Bollinger,
mentares ao do jornal (revista men- um dos maiores especialistas na
sal para pais e filhos, anuário gastro- O diário da cidade de 88 mil habi- defesa da Primeira Emenda à
nômico, guia para escolas e faculda- tantes iniciou em 2012, em cola- Constituição dos Estados Unidos,
des) e principalmente pela dedica- boração com diversas lojas locais, e de Nicholas Lemman, diretor do
ção editorial aos assuntos da comu- um programa de fidelidade cha- curso de pós-graduação em
nidade, que se expressa na cobertura mado Give Back (dê de volta), pelo jornalismo da mesma universidade,
e na realização de eventos de inte- qual consumidores e comerciantes entre outros. Apesar das
resse dos leitores. que se associam a ele dão parte do dificuldades metodológicas para
dinheiro utilizado em compras fide- comprovar empiricamente a relação
Sioux City Journal (Sioux City) lizadas a entidades filantrópicas. O entre liberdade de expressão
Give Back se tornou uma das mais e bem-estar material coletivo,
O diário da cidade de 82 mil habitan- bem-sucedidas campanhas lidera- que – no entanto – podem ser
tes no Estado basicamente rural de das pelo jornal em seus 122 anos de eventualmente superadas, há
Iowa ganhou circulação, publicidade publicação e reanimou os editores, evidências de sobra da relação
e influência em 2012 por ter tomado que vinham passando por uma crise positiva entre graus de
atitude editorial agressiva a partir do de confiança devido à baixa de circu- prosperidade de nações e seus
suicídio de um estudante, vítima de lação em anos anteriores. O sucesso índices de liberdade. O esforço que
bullying num colégio local. O jornal fez com que ojornal resolvesse inves- o Instituto Palavra Aberta e outras
publicou um editorial de primeira tir mais em tecnologia digital, com entidades têm feito para
página sobre o assunto e iniciou uma versões ousadas para telefones e demonstrar como essa associação
campanha que mobilizou a comuni- tablets, que têm tido boa repercus- se estabelece é digno de aplausos
dade para acabar com esse tipo de são entre os leitores. ■ e de solidariedade. ■

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man em 1970, oWashingtonPost, na A


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época já um dos mais influentes jor- B
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nais do mundo e prestes a se tornar E
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A

modelo de virtude profissional graças


à cobertura do caso Watergate a par-
tir deinstituição,
essa 1972, parecia ter consagrado
até então limitada a
alguns poucos diários menos impor-
tantes dos Estados Unidos. De fato,
a partir doPost, em especial depois
que Ben Bagdikian ocupou o cargo
no jornal, ainda na década de 1970,
diversos veículos em dezenas de pa-
íses aderiram ao bom exemplo e a
instituição do ombudsman de im-
prensa consolidou-se no final do
século passado e início do atual, ainda
mais depois que oNew York Times
a adotou em 2003, após o caso Jay- Pioneiro na adoção do posto de ombudsman, oWashington Posteliminou a função em fevereiro
son Blair (repórter que inventou
dezenas de matérias até ser descoberto). Mas a crisedo mo- e O Povo,de Fortaleza, nenhum veículo de expressão se in-
delo de sustentação do jornalismo fez com que muitos veí-teressou em criar ou manter o ombudsman, outra inequívoca
culos norte-americanos eliminassem a função de ombudsman demonstração de que a indústria nacional não tem disposição
ao longo deste século. E agora o próprioPost, em fevereiro, para praticar nenhum tipo de autorregulação minimamente
fez isso. É muito possível que, assim como há 40 anos seusignificativa.Atitude que pode lhe custar caríssimo no
médio
exemplo fez com que o ombudsman se fortalecesse mundial- ou até mesmo no curto prazo, porque a qualquer momento
mente, agora possa acelerar seu processo de extinção. Noo Estado pode lhe impor controles capazes de ameaçá-la
Brasil, não fará diferença
, porque aqui, foraFolha
a de S.Paulo gravemente e danificar a democracia como umodo. t ■

SNOW FALL

Futuro do jornalismo?
Em dezembro do ano passado, No ew York Timespublicou em seu site e ilustrações). É claro que sempre haverá espaço e público para isso,
o que muitos analistas consideram ser o protótipo do futuro do jorna-em especial no que disser respeito às notícias “quentes”. Mas matérias
lismo. Sob o título de “Snow Fall” (http://www.nytimes.com/projects/2012/
especiais vão ter de ser tratadas de modo especial nas tecnologias
snow-fall/#/?part=tunnel-creek), o jornal contou ao público a história
disponíveis e com as quais cada vez maiores parcelas da audiência
de esquiadores que ficaram isolados após terem sido atingidos por umaestarão acostumadas. Como sempre, os veículos brasileiros mostram-
avalanche de neve nas montanhas Cascade, no Estado de Washington, -se retardatários, quase letárgicos, no acompanhamento dessas ten-
com recursos de texto, fotos, vídeos, infográficos interativos, magnifi-
dências. Eles são rápidos para adotar formas de cobrar do público,
camente concebidos do ponto de vista visual. Nada a ver com o que osmas lentíssimos para oferecer a ele produtos de qualidade superior.
jornais e revistas têm feito como regra desde que se deram conta de Investir em novos processos e em recursos humanos capazes de utilizá-
que não havia como escapar dos meios digitais, ou seja, se limitar -los
a bem não é prioridade para nossos veículos jornalístic
os, que ainda
transcrever para a tela aquilo que antes colocavam no papel (palavrasparecem confiantes no desempenho financeiro que têm tido.■

carlos eduardo lins da silva é livre-docente, doutor e mestre em comunicação; foi diretor-adjunto da Folha e do Valor.

REVISTA DE JORNALISMO ESPM| CJR 13


DIRETO DE COLUMBIA
por david klatell

Ética e imprensa
As mudanças radicais trazidas pelas novas tecnologias
obrigam a repensar fundamentos do jornalismo

as pessoas costumam se surpreender cia para o mundo que passa por uma a mudar a definição de quem é jorna-
ao saber que a Escola de Jornalismo da lente que pode ser moldada por mui- lista: em todo o mundo, jornalistas inde-
Columbia University não se submete tos fatores e pessoas. Então, jornalis- pendentes ou freelances estão enfren-
a um código de ética. Nem exigimos tas podem e devem trazer todo o seu tando essas questões sem uma redação
que nossos alunos sigam algum código conhecimento, experiência e crenças cheia de colegas experientes que pode-
específico. Como alguém que frequen- para embasar seu trabalho e conside- riam ajudá-los a pensar sobre as deci-
temente ensina ética na escola, acho rar os diversos fatores relacionados. sões que tomaram. Segundo, o jorna-
que essa é uma boa política por várias Porém, o grande dilema enfrentado lismo cidadão e o conteúdo gerado pelos
razões: 1) Nenhum código de ética, nempelos jornalistas não é, em minha opi- usuários significam que muito do que
mesmo os Dez Mandamentos, pode nião, como pensar em suas obrigações o público vê e ouve foi produzido por
antecipar todas as situações e ofere- éticas, mas sim o que eles fazem em pessoas que não trabalham para uma
cer uma orientação útil – de qualquer consequênciade suas crenças que lhes empresa jornalística, e não se sentem
forma, por que não poderiam ser 11, 15 causa tanta ansiedade e desconforto. limitadas por nenhum código de con-
ou 20 mandamentos?; 2) O jornalista e E, no final, as crenças de um jorna- duta. Terceiro,é claro, é alei inevitável
a definição de “jornalista” mudaram; lista devem ser traduzidas em uma de que as pressões do deadlinesão maio-
e 3) A tecnologia alterou o tempo, o escolha simples, totalmente binária: res do que nunca, com a obrigação de
espaço e o contexto para os jornalis- será que eu revelo uma fonte, mudo publicar rapidamente; uma vez publi-
tas que enfrentam decisões difíceis. aspas, tiro aquela foto, salvo a pessoa cada, a história e todos os seus conteú-
Como digo aos meus alunos, a ética que está se afogando, presto socorro dos se tornam“fatos” mundiais, instan-
profissional com frequência pode ser ao ferido, agrego conteúdo, copio e tâneos e permanentes, e a correção ou
confundida com moralidade, filoso- colo, uso Photoshop ou não? retratação é difícil e ineficiente.
fia e “códigos de conduta” extraofi- Mesmo as fundações mais bási-
ciais, que vão desde pressões fami- Mudança de contexto cas do jornalismo ético estão sujei-
liares até religião ou o que as empre- tas ao reexame e à reinterpretação no
sas exigem de seus funcionários. Não As tecnologias digitais não criaram essas ambiente digital. Quase todo mundo
há nada de errado, é claro, com esses incertezas, e muitas existem há tanto concorda que roubar o trabalho de
outros modos de pensar sobre as res- tempo quanto o próprio jornalismo, outros é antiético. Mas como deverí-
ponsabilidades, ações e escolhas de mas o mundo digital alterou o contexto amos pensar em relação a certas for-
cada um; todos nós somos produto de para a tomada de decisão ética de váriasmas de agregação, ou aotrabalho a par-
nossa educação e temos uma aparên- maneiras importantes. Primeiro, ajudoutir de conteúdo republicado na web,

14 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


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mos materiais brutos como documentos,


vídeo e áudio – especialmente quando
os materiais srcinais podem estar dis-
poníveis ao público?
Finalmente, fico surpreso e desa-
pontado com a quantidade de jorna-
listas que não parecem dar muito valor
Costuma-se dizer que o jornalismo ao crédito adequado, à propriedade do
deveria ser transparente, e o público conteúdo srcinal ou até ao copyright:
quer saber mais e mais sobre nossas fon-eles não pedem permissão dopublisher.
tes e métodos. Mas pessoas que fazem Na alta velocidade do ambiente digi-
parte do público – especialmente nos- tal, muitos jornalistas se sentem livres
sos críticos – também querem saber – “impelidos” talvez seja uma palavra
retweetse posts em blogs – ou de fontes mais sobre nós como indivíduos: no melhor – a “tomar emprestado” ou
desconhecidas ou não identificadas? que acreditamos? Como nos compor- combinar materiais de sites e aplica-
Todos nós concordamos que a che- tamos? De que organizações fazemos tivos como se fizessem parte docrea-
cagem deveria ser o coração de qual- parte? Em quem votamos? A maioria tive commons, a licença aberta de con-
quer prática jornalística, mas como dessas informações agora está disponí- teúdo para adaptação e reprodução,
alguém verifica a informação ampla- vel em sites e bancos de dados. Deve- sem se preocupar em checar as histó-
mente reunida por meio de buscas on- ríamos, no melhor interesse da trans- rias srcinais. Não preciso lembrar os
-line, elas mesmas sujeitas a todo tipo parência, nos tornar entidades públi- leitores desta revista, que tanto podem
de pressões técnicas, incluindo a oti- cas, abertas à inspeção de todos? E se ser perpetradores como vítimas des-
mização para motores de busca (ou não fizermos isso e formos “excluí- sas práticas, que o que vai tem volta.
SEO, sigla em inglês desearch engine dos” pelos críticos? Deveríamos nos O que precisamos, acredito, é de
otimization), notificações de aplicati- importar? uma nova sensibilidade em relação ao
vos e os infames algoritmos do Google? que é jornalismo ético na era digital,
De maneira ainda mais básica, A questão da autoria baseado no realismo teimoso sobre
será que a ética da entrevista mudou como produzimos e consumimos
quando os jornalistas foram passando Em uma era em que quase qualquer jornalismo agora. Meus colegas na
de encontros cara a cara para telefo- pessoa com um laptop decente e um Columbia e eu estamos apenas come-
nemas, e-mails, mensagens instantâ- software simples pode manipular fotos,çando a ter essa conversa. ■
neas e outros formatos? O que são jus- áudio, vídeo, gráficos, manchetes, layout
tiça e equilíbrio quando tanta coleta etc., o que é justo e ético? O corte de umadavid klatellé responsável pela
de informação é feita na blogosfera ou foto tudo bem, mas mudar ailuminação área de estudos internacionais da Columbia
em websites de srcem desconhecida? ou sombrear é considerado antiético? Journalism School. Auxiliou no desenvolvimento
Quando as aspas circulam o globo, seu Quanta explicação devemos ao públicode emissoras de televisão e agências de
contexto srcinal importa? (se é que devemos alguma) quando edita- notícias em Portugal, Suécia, Suíça e China.

REVISTA DE JORNALISMO ESPM| CJR 15


IDEIAS + CRÍTICAS MARCELO SOARES

Jornalismo
de prevenção
Como a cobertura da
imprensa pode ajudar
a identificar e evitar
tragédias, muitas vezes
classificadas como
fatalidade por autoridades
e responsáveis
, uma suces-
na madrugada de 27 de janeiro
são de erros evitáveis causou um incêndio na
boate Kiss, na cidade universitária de Santa
Maria, no Rio Grande do Sul, matando, até o
momento em que este artigo é escrito, 240
jovens. Nos dias após a tragédia, os jornalistas
despachados até a cidade revelaram falhas de
fiscalização quedesperdiçaram oportunidades
de impedir o desastre. A prefeitura e o Corpo
de Bombeiros jogaram pingue-pongue com a
batata quente da responsabilidade, enquanto
a polícia avançava na produção de provas.
Nas semanas que se seguiram à tragédia
da boate, as chuvas mataram pessoas no lito-
ral paulistano e o desabamento de uma obra
de estacionamento no bairro da Liberdade,
próximo ao Centro de São Paulo, levou à
morte um auxiliar de limpeza. O padrão de
resposta é sempre o mesmo: a palavra “fata-
lidade” virá à baila, as autoridades dirão não
ter como fiscalizar tudo e as reportagens
demonstrarão sinais claros de que os pro-
blemas eram iminentes.
Cobrir desastres e seus desdobramen-
tos imediatos é o que tradicionalmente a
imprensa sabe fazer bem. Em Santa Maria,
o pelotão de repórteres despachados para

16 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


Falhas de fiscalização
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K reveladas após o
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S incêndio na boate
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Kiss, em Santa Maria,
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mostram que a tragédia
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R poderia ser evitada

REVISTA DE JORNALISMO ESPM| CJR 17


cobrir o incêndio ajudou na obtenção sobressaltos idênticos. É o que se vê quando diversas oportunidades de miti-
de documentos que comprovavam as no início de cada ano, quando as chu- gar o risco foram voluntariamente per-
falhas de fiscalização, colaborou no vas têm data marcada para pegar pre- didas. Aqui, o recorte demográfico é um
esclarecimento das causas das mortes feitos de surpresa e as autoridades atri- tanto diferente, pois a popular “gam-
e pressionou as autoridades locais por buem as mortes a São Pedro. biarra” pode se fazer presente tanto na
respostas. Em cinco dias, o casoestava Todo ano, quando as chuvas desa- obra sem alvará de um prédio de escri-
praticamente
nas comprovaresclarecido , faltandoape- sabendo
poucos elementos. barem matando
que: pessoas, o leitor ficará lamento
tórios noacústico
centro do Rio quantode
improvisado nouma
iso-
Um grau maior de dificuldade é pra- • Já havia estudos indicando o risco boate frequentada por universitários de
ticar um jornalismo preventivo, que iminente da região afetada. classe média no centro deSanta Maria.
identifique e procure evitar tragédias. • Obras emergenciais não foram feitas.
É mais comum uma espécie de jorna- • O orçamento não foi devidamente Informações públicas
lismo preventivo de emergência, que executado a tempo.
nos dias após o evento busca identifi- Foi assim em São Luiz do Paraitinga, Como usar a apuração jornalística para
car onde ocorrem falhas semelhantes cidade do Vale do Paraíba, no Estado tentar evitar que novos desastres ocor-
à que levou à catástrofe da vez. de São Paulo, conhecida pelo seu Car- ram? Afinal, sabemos que eles ocorrem
Quando as prefeituras de diversas naval, por seus prédios históricos – e e ocorrerão, mas não sabemos onde e
cidades brasileiras abriram suas portas pela violência das chuvas que a cos- quando. A resposta pode estar no bom
na segunda-feira após o incêndio da Kisstumam atingir. Em 2010, a água veio uso de informações públicas e em ban-
e as redações começaram a telefonar no dia 2 de janeiro, isolando a cidade, cos de dados disponíveis.
para as assessorias de imprensa questio-desalojando quase toda sua população Todos os órgãos federais e estaduais
nando se algo do gênero poderia ocor- e danificando prédios históricos. Qua- e, a partir deste ano, todas asprefeituras
rer em sua cidade, os recém-empossa- tro meses depois, 400 pessoas perma- são obrigados por lei a manter portais
dos prefeitos ordenaram mutirões de fis-neciam desabrigadas. A igreja da cidade de transparência revelando como gas-
calização e fechamento de casas notur- mal voltara a ter missas havia dois tam seu dinheiro. Embora nem sempre
nas irregulares. Assim, ficamos sabendo meses quando, no final do ano, a chuva esses portais de transparência sejam
que boa parte das boates da moda, em voltou a elevar o nível do rio Paraitinga. organizados de maneira a facilitar a
São Paulo e outras cidades, opera sem Em janeiro de 2012, dois anos após a compreensão por parte do cidadão,
licenças que atestem suas condições de tragédia, apenas 80% da cidade estava na maior parte dos casos a informação
segurança. Também chegaram a nosso reconstruída e novas enchentes ocor- desejada já está lá à espera do curioso.
conhecimento os entraves burocráti- reram. Um ano depois, duas semanas No Portal da Transparência do
cos para que essas inspeções ocorram. antes do incêndio na Kiss, o rio Parai- governo federal e no Orçamento
tinga voltou a transbordar. da União, é possível saber quanto o
Fatalidade, não O primeiro cuidado recomendado governo gasta com prevenção de desas-
pela ONU ao cobrir tragédias é o de não tres e quanto gasta com o rescaldo
É positivo que essa cobertura exista. É tratá-las como “desastres naturais”, no deles. A ONG Contas Abertas, espe-
uma tentativa de prevenir novos desas- caso de chuvas e terremotos, como os cializada em analisar o Orçamento,
tres. Um desastre, na definição pro- governos adoram fazer nessas horas. publicou em 4 de janeiro a informa-
posta pela Organização das Nações Uni-Ainda que o risco seja inevitável, o desas-ção de que apenas 32% dos recursos
das (ONU) no guiaDisaster Through a tre depende da ação ou omissão humana:previstos para prevenção e resposta a
Different Lens (O Desastre sob o Enfoque se famílias pobres viviam em áreas de desastres foram executados em 2012.
de Novas Lentes) , é uma combinação risco desfeitas pelas chuvas na região Abertos , os números dizem bas-
1 2

de riscos, condições de vulnerabilidade serrana do Rio de Janeiro ou na serra tante sobre o lugar da prevenção no
e insuficientes medidas ou capacidade do Mar, é porque ninguém as impediu orçamento dos governos. Dos R$ 5,7
para reduzir as consequências nega- de construir onde poderiam morrer. bilhões orçados para prevenção e res-
tivas do risco. Essas reportagens pós- De forma análoga, em desastres não posta a desastres, 2,4% se destinam à
-tragédia identificam esses elementos. ocasionados diretamente pela natureza, prevenção e preparação para desastres
Sendo de “gancho” episódico, porém,como o da Kiss e o do estacionamento da(R$ 139,8 milhões). Desses recursos pre-
o risco é aguardarmos novos sobres- Liberdade, é temerário falar em “fata- ventivos destinados no Orçamento de
saltos para tentarmos prevenir outros lidade”, palavra comum nessas horas, 2012, porém, foram executados R$ 972,7

18 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


mil, ou apenas 0,7% do total orçado para nos detalhes, porém, ajudam a ter uma Após a comoção vinda de Santa
prevenção. Além disso, o governo gas- vaga ideia. No caso da boate Kiss, entre- Maria, a prefeitura deSão Paulo publi-
tou R$ 85,1 milhões com restos a pagar vistei o professor Thomé Lovato, dire- cou na internet uma lista com nomes
do orçamento preventivo de anos ante- tor do Centro de Ciências Rurais da e endereços de locais de reunião que
riores, e ao final do ano deixou um saldo Universidade Federal de Santa Maria – tinham seus alvarás em dia 3 e outra
de R$ 327 milhões, somados todos os que concentra os cursos que mais per- com casas sem alvará, mas fiscaliza-
4
atrasados, para pagar
espanar o discurso deum
“sódia. Antes
podia de
ser no deram
lembrou alunos
que anouniversidade
incêndio da Kiss. Ele das pelos bombeiros . Todos os por-
é muito tais noticiaram a publicação das listas,
Brasil” ou “quero ver na Copa”, vale procurada por filhos de produtores e que, além de casas noturnas, também
consultar o guia da ONU para ver que técnicos rurais, cujas famílias visam dar incluem restaurantes e igrejas. Nin-
não estamos sozinhos: internacional- continuidade ao seu negócio. “Muitos guém verificou suas lacunas.
mente, menos de 0,7% da despesa total ficaram sem herdeiros”, disse. Com alguns minutos de trabalho
com desastres é destinada à redução de sobre os dados da planilha numa fer-
riscos e apenas 0,1% vai para a preven- Pautas nas lacunas ramenta gratuita e poderosa como
ção. O impacto econômico de uma tra- o Google Fusion Tables, é possível
gédia, porém, é permanente. Em 2008, Ao consultar repositórios de informa- criar uma planilha georreferenciada
o prejuízo mundial com desastres cau- ções públicas em busca de dados para e a partir dela gerar um mapa mos-
sados por riscos naturais foi estimado pautas focadas na prevenção de tragé- trando cada ponto onde há um bar
em quase US$ 200 bilhões. dias, é razoável lembrar que boas pau- com o alvará em dia em São Paulo.
Desconheço cálculo semelhante para tas podem não estar necessariamente Fazendo “zoom” sobre um quarteirão
tragédias evitáveis que não tenham o na própria informação pública, mas com alta concentração de bares na região
envolvimento de intempéries. Peque- em suas lacunas. central da cidade, foi possível verificar

Programas de prevenção e resposta a desastres, 2012


Valores em Reais. Fonte: Siafi. Elaboração: Contas Abertas.

1027: Prevenção e 1029: Resposta aos 2040: Gestão de riscos


PROGRAMA > preparação para desastres desastres e reconstrução e resposta a desastres Total
DOTAÇÃO ATUALIZADA > 139.840.000,00 337.010.127,00 5.270.791.912,00 5.747.642.039,00

DESPESAS EMPENHADAS > 137.839.264,40 336.279.558,37 3.208.792.701,06 3.682.911.523,83

DESPESAS EXECUTADAS > 972.721,65 225.999.875,22 1.278.060.629,80 1.505.033.226,67

VALORES PAGOS > 957.121,65 225.782.337,58 1.249.588.054,17 1.476.327.513,40

RP PAGOS > 84.178.925,91 292.578.666,90 0,00 376.757.592,81

TOTAL PAGO EM 2012 (ATÉ 31/12) > 85.136.047,56 518.361.004,48 1.249.588.054,17 1.853.085.106,21

TOTAL DE RP A PAGAR > 327.583.958,06 259.237.659,34 0,00 586.821.617,40

1 www.preventionweb.net/files/20108_mediabook.
RECURSOS DE CONSULTA
pdf 2 www.contasabertas.com.br/website/noticias/
Portal da Transparência dogoverno federal: www.transparencia.gov.br arquivos/1126_SG-PROG%20102710292040-PROG-
Rede de Transparência do governofederal: www.portaldatransparencia.gov.br/rede/ 2012%20ATE%2031-12-consulta%2003-01-2013ok%20
SIGA Brasil – Orçamento daUnião: www9.senado.gov.br/portal/page/portal/orcamento_senado/SigaBrasil (1).pdf 3 www3.prefeitura.sp.gov.br/sd0241_consulta_
sisacoe/PaginasPublicas/frm001Alvara.aspx
Portais de transparência do seu Estado e da sua cidade 4 www3.prefeitura.sp.gov.br/sd0241_consulta_sisacoe/
“Disaster Through aDifferent Lens”: www.preventionweb.net/files/20108_mediabook.pdf PaginasPublicas/frm003ProcessoRevalidacao.aspx

REVISTA DE JORNALISMO ESPM| CJR 19


Dez bons motivos para cobrir redução de riscos
Traduzido do guiaDisaster Through Different Lens
, da Organização das Nações Unidas (ONU)

que apenas um deles tinha o alvará em 1.Os riscos naturais vêm aumentando 6. Redução de riscos é uma
dia. Um curioso que jantava num desses e continuarão a ser notícia questão cultural
locais poucos dias após a publicação da Reportagens sobre redução de Quando houve o tsunami do oceano
lista viu um aparelho entrar em curto- riscos de desastres não dependem Índico, em 2004, matando mais de
-circuito próximo à entrada. de ter mais repórteres ou dinheiro; 250 mil pessoas na Ásia, a ilha de
Da mesma maneira, mergulhando dependem de uma disposição dife- Simelue, próxima ao epicentro do
um pouco dentro do site daprefeitura, rente, fontes de informação estabe- terremoto, perdeu apenas sete dos
é possível encontrar os dados de obras lecidas e uma boa compreensão do seus 83 mil habitantes. O guia da
aprovadas na cidade. Espalhando os
endereços pelo mapa e observando por “processo” por trás de cada desastre. ONU atribui
passado isso aoaconhecimento
de geração geração sobre
apuração própria ou com o auxílio do 2.Redução de riscos é uma como os antepassados se salvaram
leitor onde há obras não inclusas na questão política de tsunamis anteriores.
lista, é possível descobrir obras irregu-Quando o desastre chega, a população
lares. O uso dos dados para apuração, demanda ação por parte dos 7.Redução de riscos é uma
vale lembrar, não suspende a necessi- governos. O guia da ONU, editado questão de gênero
dade de apuração própria – o que ele faz em 2011, lembra que poucos dias Em regiões mais pobres, as
é apontar novas possibilidades de pauta. após a posse da presidente Dilma os mulheres tendem a ser as mais
Onde esses dados não estão pronta- desabamentos na região serrana do afetadas pelos desastres.
mente disponíveis, sempre é possível Rio de Janeiro mataram 900 pessoas,
utilizar a Lei de Acesso a Informações e a presidente exigiu a criação de um 8. Redução de riscos garante
Públicas, cuja criação foi uma bandeira sistema de alerta prévio. Como ficou a boas reportagens investigativas
da Associação Brasileira de Jornalismo implementação desse sistema? e em profundidade
Investigativo (Abraji). Em vigor desde Boas pautas podem questionar a
2012, a lei de acesso determina que os 3. Redução de riscos é uma eficiência preventiva dos governos
órgãos públicos são obrigados a for- questão econômica e alertar para desastres em poten-
necer informações não sigilosas, ou ao Os prejuízos causados pelos cial antes que eles ocorram. Muito
menos uma boa explicação para o não desastres são cada vez maiores. antes de o furacão Katrina atingir
fornecimento. A lei cria sanções para O terremoto que atingiu o Japão em Nova Orleans, nos Estados Unidos,
os funcionários públicos que se nega- 2011, diz o manual da ONU, deixou diz o guia, o jornal Times-Picayune,
rem a fornecer informações. prejuízos estimados na época em de Louisiana, fez uma série de cinco
No Brasil, não temos alguns dos US$ 300 bilhões. reportagens mostrando que, dadas
mais extremos desastres potenciali- as condições de prevenção imple-
zados por fatores naturais, como ter- 4. Redução de riscos é uma mentadas na cidade, um desastre
remotos ou tsunamis, mas dispomos questão de direitos humanos poderia ocorrer em caso de furacão.
de uma enraizada tradição da “gam- Embora o conceito de proteção aos
biarra” – uma mistura de criatividade direitos humanos seja amplamente 9. Reportagens sobre redução
e amadorismo, presente em boa parte reconhecido como um elemento de riscos não precisam ser só
das tragédias que aqui surgem. Avaliar crucial de estratégias humanitárias em sobre desastres
como a cultura da “gambiarra” coloca tempos de emergência e de situações Há boas pautas também nos
populações inteiras em risco é poten- de desastre, ainda se trabalha pouco esforços de reconstrução de áreas
cialmente um manancial de pautas. ■ com os aspectos de longo prazo afetadas por desastres e sobre
ligados à proteção e definição de uma educação para a prevenção.
marcelo soares , jornalista especializado abordagem de prevenção a desastres
em análises de dados, faz parte da equipe com base nos direitos humanos. 10. Redução de riscos
de Novas Plataformas daFolha de S.Paulo interessa a todos
e é autor do blogAfinal de Contas. Entre 5.Redução de riscos é uma O guia lembra que a cobertura da
outras funções, foi correspondente especial questão ambiental imprensa foi fundamental para
do Los Angeles Timesno Brasil. Membro Ecossistemas são barreiras naturais informar sobre os riscos da Aids e dos
do Consórcio Internacional de Jornalistas e dinâmicas que ajudam a proteger acidentes de trânsito nos Estados Uni-
Investigativos (ICIJ), foi sócio-fundador comunidades vulneráveis de alguns dos, o que ajudou na redução da mor-
e o primeiro gerente da Associação Brasileira dos impactos dasmudanças climáticas. talidade causada por essas ameaças.
de Jornalismo Investigativo (Abraji).

20 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


MEMÓRIA

O meu Jornal da Tarde


Lembranças de um dos mais belos e inovadores
diários já feitos no Brasil, contadas por quem viveu
a redação em seus melhores tempos

p o r humberto werneck

cada um dos que por lá passaram , e em 46 anos foram humor eram bem-vindos. Não foi inovação pequena – a
centenas, teve o seu Jornal da Tarde, e sobre ele poderia começar pela casa onde a nave-mãe, O Estado de S.Paulo,
debulhar um mundo de impressões e lembranças. No até então chamava gol de “ponto” e vereador de “edil”.
caso do repórter esportivo Vital Battaglia, por exem- Tente imaginar o impacto que terá causado a che-
plo, a experiência rendeu um livro, Ah! – Atestado de gada de um bando de jovens no ambiente circunsp ecto
Óbito do Jornal da Tarde. A mim, bem mais modesta- da empresa da família Mesquita, instalada ainda no
mente, coube-me um período não muito longo – maio número 28 da pequena, feia e triste rua Major Quedi-
de 1970 a setembro de 1973 –, porém riquíssimo, em nho, no Centro da cidade. A redação do JT foi montada
que vivi momentos cruciais de minha juventude e for- no mesmo quinto andar onde funcionava a do Estadão .
mação. Foi também um tempo de esplendor da lendá- Ligando uma a outra, havia um corredor largo, em dis-
ria publicação paulistana, nascida em 4 de janeiro de creto arco, que os recém-chegados (quase todos na
1966 e desaparecida, ao cabo de inglória agonia, em 31 “gloriosa faixa etária situada entre os 25 e os 30 anos”,
de outubro de 2012. haverá de se lembrar um deles, Carmo Chagas) não tar-
Não sou apenas eu que digo: tenho sob os olhos uma daram a batizar de “túnel do tempo”.
declaração de Mino Carta, seu criador e primeiro editor- De madrugada, com a redação do Estado deserta ou
-chefe, em 1986: a melhor fase se estendeu de 1969 a 1973, quase, armavam-se no corredor umas peladas com bolas
pois “é aí que o Jornal da Tarde se cristaliza”. Mino não de papel. Foi ali que o repórter Ramon Garcia, com a
puxava a brasa para suas fartas e invejáveis sardinhas, pois pelota nos pés, percebeu que alguém se aproximava por
em janeiro de 1968 havia deixado a casa para criar a Veja. trás – e aplicou artístico “chapéu” em ninguém menos
Se está correta a sua avaliação, participei da melhor que Júlio de Mesquita Filho, o Dr. Julinho. O coman-
quadra de um desses raros jornais cuja existência a mais dante máximo da S.A. O Estado de S. Paulo seguiu firme,
sucinta história dos avanços na imprensa brasileira não sem passar recibo da finta – ao contrário do filho Ruy,
poderia ignorar. DoJT se falava, e não só em São Paulo, que um dia se encaminhava para o elevador quando o
como algo revolucionário em termos de texto e design. repórter Eric Nepomuceno, sem dar pela presença do
Não se limitou a ser uma esplêndida costela do Jornal do diretor do JT, ergueu uma perna e apertou o botão com
Brasil, cujos experimentos, na década de 1950, ajudaram a o pé. “Boa f orma, rapaz”, disse apenas o Dr. Ruy.
desengravatar nossos diários. O JT levou adiante essa revo- Também no “túnel do tempo”, um chute desferido
lução, radicalizando o recurso ao espaço em branco e a um pelo subeditor de reportagem Sandro Vaia (muito mais
texto com pélvis cada vez mais solta. A palavra de ordem tarde, diretor de redação do Estado) quebrou a moldura
era o “texto leve”, porém substancioso, no qual emoção e de um retrato de Machado de Assis. Quando, em abril

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1970 A marcada ousadiado JT em capa dedicada à tensão da torcida até


a explosão no grito da conquista do tri,
na Copa do México

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 23


1971 Paquinha. No dia em que o manda-
Auge da repressão. ram embora, foi se despedir de mesa
E o JT emplaca em mesa, chorando. Persistente, não
outra capa tardou a voltar.
memorável, sobre Nosso decano era o repórter
a morte de Carlos Ewaldo Dantas Ferreira, que aos 46
Lamarca, um
dos ativistas ganharia
colher nadestaque
Bolívia ointernacional
depoimento deao
mais procurados um nazista fugitivo da Justiça, Klaus
pela ditadura Altmann-Barbie. Seu trabalho ime-
diatamente rendeu livro – a exemplo
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do que acontecera, em 1970, com uma
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reportagem do JT sobre a rodovia
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Transamazônica, cuja abertura então
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se iniciava, a cargo de dois jovens jor-
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nalistas mineiros: Fernando Morais
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J e Ricardo Gontijo.
Quase tão vivido quanto Ewaldo
de 1968, uma bomba explodiu no saguão do edifício, os era o editor de Internacional, Luiz Carlos Lisboa, homem
peritos arrolaram a moldura entre os danos causados fino e culto cuja voz mansa mal se ouvia na redação.
pelo atentado direitista. Foi também Sandro quem, numa Muitas lembranças me ficaram dele, todas excelentes,
madrugada de 1969, tendo chegado à redação do J T a incluindo um episódio burlesco de que foi personagem
notícia da morte do poeta Guilherme de Almeida, cor- secundário. Lisboa tinha em sua equipe um redator a
reu ao relógio de ponto e bateu a saída do ilustre cola- quem nos referíamos como o Judeu Errante – por sua
borador do Estado . srcem semítica e porque errava muito. O editor-chefe,
Murilo Felisberto, mandou demiti-lo. O delicado Lis-
boa o fez com tantos circunlóquios e eufemismos que
Nos anos que lá passei, o JT tinha ainda sua imagem no dia seguinte lá estava o moço a errar, como se nada
associada a juventude, talento, irreverência. Continuava houvesse acontecido. O editor precisou voltar à carga,
sendo uma sensação. Tanto que a certa altura de 1971 agora mais direto, e aí o redator veio com esta maravilha:
baixou na redação uma alentada equipe – 12 repórteres — Quer me contrariar, é tocar nesse assunto!
– da revista mensal Bondinho, também ela uma publica- É farto o repertório de frases e historinhas daquela
ção cheia de atrevimentos. “Invadiram nossa redação”, redação, não raro banhadas em maldade inteligente. Por
leu-se depois na capa da Bondinho , que imitava a cara escrito, ninguém superaria o carioca Telmo Martino,
do JT, chamando para uma reportagem que durante 24 que em sua coluna no JT, durante anos, a partir de 1972,
horas acompanhou o nosso trabalho. O título da matéria distribuiu finíssimas alfinetadas, visando sobretudo às
– que ocupou oito das 38 páginas da revista – também caricatas “turmas” a que deu nomes, quase todos auto-
arremedava o nosso estilo: “É uma bagunça, uma desor- explicativos: “poncho-e-conga”, “barba-e-bolsa”, “tem-
dem, um barulho, uma confusão danada: estão fazendo pura-e-mesura”, “scala-e-escarola”, “quibe-e-quilate”,
um jornal. O mais bem-feito da cidade”. E era mesmo. “kosher-e-kibutz”. É espantoso que Telmo , fino no trato
“A juventude que a gente respira aqui no Jornal da mas corrosivo na escrita, tenha atravessado anos de São
Tarde anima, rejuvenesce e alimenta”, escreveu no pé Paulo sem mais que um chute no traseiro desferido pelo
da reportagem o comandante da equipe da Bondinho , poeta Mário Chamie.
Woile Guimarães, veteraníssimo aos 32 anos. Na nossa Vá aqui uma historinha dele. No dia em que chegou
redação, o caçula era Paulo Moreira Leite, repórter de à redação (a esta altura, no 6º andar, de onde decola-
Esportes, mal chegado aos 18. Perderia o posto para ria em 1976 rumo à Marginal do Tietê, Telmo, tímido e
Luís Fernando Silva Pinto, mais tarde repórter da TV desambientado, aceitou convite para sentar-se ao lado
Globo, talentoso foca que forçou entrada no jornal, de Flávio Márcio, ótimo jornalista (que morreria jovem,
aos 16, grudando em Luiz Carlos Secco, repórter de em 1979), enquanto ele diagramava uma página. Pelas
automobilismo. Por alguma razão, ganhou o apelido de tantas, em seu esforço para impressionar o recém-che-

24 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


gado, Flávio declarou que “gostaria Nos anos que lá passei,
mesmo é de ser uma puta interna-
cional” – ao que o colunista retru- o JT tinha ainda sua
cou: “Uê, viaja...”.
A mordacidade de que Telmo foi imagem associada a
o suprassumo era um atributo muito

apreciado
já no línguas
que poucas
JT – e não por acaso,
havia, ali, mais juventude, talento,
venenosas que a do próprio editor- irreverência. Continuava
-chefe. Na boca de Murilo Felisberto,
o rótulo “filho da puta” podia ser sendo uma sensação
um elogio a quem destilasse artís-
tica peçonha. Certa vez, quando lhe
contaram que haviam tentado “com-
prar” um repórter, Murilo perguntou:
“Quem?” – e ao ouvir o nome, cravou:
— Vende! Vende!
Muitas histórias daquele que entre
nós chamávamos de “Rainha” voltaram à tona no que se Ele às vezes reagia como criança emburrada. Quando,
escreveu por ocasião de s ua morte, em 2007. Como esta em 1992, publiquei O Desatino da Rapaziada (Compa-
declaração, num fechamento em que tudo dava errado: nhia das Letras), que tem uma passagem sobre os come-
— Hoje, se tudo correr bem, eu me fodo! ços do JT , soube que o Murilo ficara chateado. Só fal-
Ainda posso ver sua figura miúda e seca, as costas um tou fazer beicinho:
pouco curvas, os cabelos precocemente brancos alvo- — Eu apareço duas vezes, e o Mitre, cinco!
roçados numa carapinha, óculos de aros ovais doura- Fernando Mitre, amigo e discípulo, o substituíra
dos empoleirados no nariz adunco, sardas pintalgando quando deixou o comando da redação do JT , em 1978.
a pele muito clara – tão clara que inspirou uns versos Era um dos jovens talentos que Murilo – mineiro de
quando uma febre de haicais gozativos assolou a reda- Lavras que se fez profissionalmente em outras praças –
ção: “O pinto da Rainha / é branco / c omo farinha”. No foi buscar em Belo Horizonte, no segundo semestre de
dia em que fui lhe entregar meu convite de casamento, 1965, para compor a equipe do jornal. Arrebanhou um
Murilo o examinou demoradamente – e quando abriu time de que fizeram parte, entre outros, Ivan Angelo,
a boca foi para fazer uma crítica tipográfica de minhas Carmo Chagas, Moisés Rabinovici, Flávio Márcio, Kleber
bodas. Eu já ia saindo quando me recomendou: de Almeida e Luciano Ornelas. O mais vivido deles, Ivan
— Não tenha filhos! É o maior problema na hora da Angelo, estava a um mês de completar 30 anos quando o
separação! jornal foi lançado. Pouco menos, aliás, que Mino Carta
Sem demérito da linguinha viperina, o maior dos e o então se cretário Murilo, ambos com 33. A mineirada
talentos de Murilo era o de designer, criador de belas, chegou com a fama de ser boa de texto, e se esforçou
ousadas, inesquecíveis páginas. Com evidente exagero, para se adaptar ao meio – com tanto empenho que um
pour épater le bourgeois , ele chegou a dizer que detes- deles mereceu gozação de um colega paulista, o futuro
tava notícia e que gostava mesmo é de “frescura”. Nunca romancista Renato Pompeu: tendo escrito a palavra “lin-
me pareceu que a política o preocupasse minimamente, guiça”, o forasteiro julgou necessário informar ao lei-
e me pergunto se o Murilo tinha em mente os tempos tor ser este “o nome que os mineiros dão à calabresa”.
de censura que vivíamos quando pôs no fundo de uma Aos poucos, muitos outros mineiros have riam de
página, em retícula, de alto a baixo, uma tesoura aberta. somar-se àquele time – e nem poderia ser diferente.
Coube a mim o pesadelo de fechar a maté ria, sobre o Quando se abria uma vaga na redação, os montanhe ses
declínio do ofício de alfaiate. Num tempo em que não vasculhavam a memória em busca de quem pudesse pre-
havia computadores que o fizessem por nós, o texto ia enchê-la – e como a maioria de seus conhecidos estava
sendo encaixado, linha por linha, nos dois ângulos da em Belo Horizonte, era lá que se ia buscar reposição.
tesoura. Ficou uma beleza – e era isso, para o Murilo, Assim vieram, por exemplo, não sei em que ordem de che-
o que mais contava. gada, Fernando Morais, Gilberto Mansur, Marco Antônio

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 25


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Equipe doJT em 1971 1 Cesar Camarinha 2 Gabriel Manzano 3 Paulo Chedid 4 Luiz Henrique Fruet 5 Victor Hugo Sperb 6 Fernando “Prosinha” Avelar
7 Moacir Bueno 8 Kleber de Almeida 9 Valéria Wally 10 Rogério Medeiros11 Guilherme “Bill” Duncan deMiranda 12 Inajar de Souza 13 Fernando Portela 14 Barbosa

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15 Antônio Carlos Fon16 Pinheiro 17 Randau Marques 18 Marcos Faerman19 Percival de Souza20 Anélio Barreto21 Sandro Vaia 22 Rolf Kuntz 23 Nicodemus Pessoa
24 Eduardo “Castor” Borgonovi25 Antônio Portela 26 Alex Solnik 27 Humberto Werneck 28 Demócrito Moura29 Uirapuru Mendes 30 José Maria Mayrink

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 27


Um copidesque entrava no tor da Geral, Fernando Portela, meu
primeiro e maior mestre nesse ofício.
começo da noite e saía em Pernambucano de Olinda, Portela
era uma das figuras centrais da vida
algum momento da madrugada. na redação, e não apenas por coman-
dar uma das editorias mais importan-

Boa parte das matérias era tes. Reinava por seu brilho de editor
e repórter, mas também pelo humor
reescrita, e a busca do melhor vitriólico, que lhe valeu o apelido
de “Satã”. Malignidade? Prefiro ver
lead podia tomar tempo suas intervenções como clarões de
inteligência envelopados em exercí-
cios de virtuosismo verbal. Pois Por-
tela, hoje autor de obra respeitável,
já era um craque do texto – catego-
ria na qual se encaixavam, por que
não?, as observações que proferia de
sua mesa, enquanto, sentado sobre
de Menezes, Marco Antônio de Rezende e, no mesmo uma perna dobrada, diagramava uma página ou cane-
ônibus da Cometa, em maio de 1968, Nirlando Beirão tava matéria de algum de nó s.
e José Márcio Penido. Também em 1968, na esteira de Pena que saísse tão pouco à rua, sendo o extraordi-
prêmios literários, veio uma revelação da ficção nacio- nário repórter que era. Reportagens suas viraram livro.
nal, Luiz Vilela, mineiro de Ituiutaba. Não esquentou Minha predileta é o diário de bordo que Portela desti-
lugar, mas recolheu inspiração para um romance cujo lou enquanto acompanhava a solene viagem marítima
título já dá conta das impressões do autor: O Inferno É em que os ossos de Pedro I vieram de Lisboa para o Bra-
Aqui Mesmo , de 1979. sil, em 1972. Quando ia mais pesada a repressão da dita-
Naquele mecanismo de mineiro-puxa-mineiro, tive dura militar, o repórter conseguiu passar nas entrelinhas
a partir de 1968 ofertas para trabalhar no jornal que a informação de que a mulher de um ministro graúdo
tanto me encantava. Quando me decidi, não havia con- tinha deixado a mesa do almoço para vomitar. A irreve-
vite – mas vim assim mesmo, em maio de 1970, para rência passou despercebida dos censores que, na época,
cair num caldeirão em que vários outros focas dispu- atuavam nas dependências do jornal.
tavam duas vagas na reportagem da editoria Geral. Se
fiquei com uma delas, não foi por competência – que,
de resto, não tinha, pois toda a minha experiência jor- “Fulano de Tal ganha um fusca por mês” – me lembro
nalística até então se limitava a dois anos passados na de volta e meia ter ouvido a cotação, a respeito de fula-
redação do Suplemento Literário do diário oficial Minas nos que nem ocupavam as mais altas prateleiras da reda-
Gerais. Já contei em crônica (“Meu Traumatismo Ucra- ção. Copidesque, jamais ganhei um fusca no JT, mas não
niano”) o desastre que foi, no SLMG , uma das primei- me lembro de apertos financeiros. Em dado momento,
ras entrevistas de minha vida, com Clarice Lispector, Murilo me apresentou à então incontornável obriga-
da qual circula na internet uma fot o em que a escritora ção da monogamia jornalística. Eu tinha convite para
fulmina com os olhos o cabisbaixo, arrasado repórter, secretariar um congresso de bancos, freelance equiva-
por causa de uma pergunta infeliz. lente ao meu salário, mas precisaria tirar c inco dias de
Significa que na redação do JT eu comecei do zero, licença; a Rainha vetou – e me deu aumento.
naqueles tempos em que ainda não se exigia diploma de Um copidesque entrava no começo da noite e saía em
jornalismo, e, se ganhei uma vaga, o devo a dois colegas. algum momento da madrugada. Boa parte das maté-
O fotógrafo José Pinto, com quem fiz minha primeira rias era reescrita, e a busca do melhor lead podia tomar
reportagem, no bairro da Casa Verde, para achar malfei- tempo. Tenho ainda na memória um lead da Valéria
tos do prefeito biônico Paulo Maluf, e que, sem me diri- Wally, copidesque da Variedades, numa pequena m até-
gir uma palavra, mas com a precisão co m que apontava ria sobre perfumes: “Milhares de flores morreram para
sua câmera, me ensinou o caminho das pedras. E o edi- que alguém se volte quando você passa. Lembre-se disso

28 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


quando for comprar um perfume – 1972

e não lamente o preço”. Cenas de horror


Valéria era uma das poucas mulhe- do incêndio do
res no JT de meu tempo, quando o Edifício Andraus,
jornalismo ainda estava longe de tor- que resultou em
nar-se o que hoje é: cada vez mais, 16 mortos e 330

um ofício feminino. A única, me dou feridos, ganharam


conta agora, a figurar na foto que abre destaque em
a matéria da Bondinho , em compa- imagens e texto
nhia de duas dúzias e meia de mar- na capa do JT
manjos (me reconheço, de bigode, no
lado direito, atrás de Eduardo Castor 2
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e ao lado de Antônio Portela). 2


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Havia outras. Uma dúzia? A bela 2


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Cláudia Batista, que aos 20 e poucos A


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anos convulsionava corações e depois L
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se converteria ao budismo, tornando- O
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-se a Monja Coen. Bia Bansen, com


seus RRR rascantes de alemãzinha. Regina Echeverr ia, foi preso e conduzido à Oban, a teratológica Operação
a alguns anos de tornar-se best-seller com sua biogra- Bandeirantes, com o risco de ser torturado.
fia de Elis Regina. A atriz Inês Knaut. Evelyn Schulke. Na foto não está Marco Antônio de Menezes, outro
Leila V.B. Gouvêa. Liane Alves. Teresa Montero. San- que se foi, inteligência prodigiosa, homossexual sem
drinha Abdalla e seus gostosos desenhos. Yole Di Capri, nenhum medo de o ser escancaradamente. Meg, como ele
mãe de futuro astro da Globo. Por breve tempo, esteve se apelidou, era um dos habitués do Picardia, restaurante
entre nós a professora Cremilda Medina, que em 1971 sofrível que frequentávamos na madrugada, antes que
Murilo contratou para “cremildar”, como dizíamos, o se abrisse, mais próximo do jornal, o Mutamba. Marco
jornal da véspera, garimpando nossos erros. Por sua pedia ao garçom Vicente que lhe trouxesse três copos
causa, e isso lhe devo, me muni de gramática e dicio- para bebericar alternadamente, trio etílico – Campari,
nário para as madrugadas de escreveção. uísque e menta – que batizei de “semáforo”. Na febre
Mesmo sendo jornal diário, punha-se esmero de de haicais de que falei, Meg teve a esperteza de criar
revista na elaboração dos textos, olhos, legendas, títu- para si o primeiro e melhor de todos: “Marco Antônio
los. Quanto a estes, ficou famoso, naquela e em outras de Menezes: / ele trabalha / às vezes”. Licença poéti ca,
redações, o título dado por Guilherme Cunha Pinto, o pois trabalhava duro, como todos nós.
falecido Jovem Gui (pois havia no jornal um xará mais Em algum momento dos anos que lá passei, aí por
velho, Guilherme Duncan de Miranda, o Bill Duncan, 1972, alguém colou numa coluna da redação uma espé-
que também já se foi), a uma notícia em 1973: “Mor- cie de panfleto em que misterioso autor verberava as
reu Picasso – se é que Picasso morre”. Não foi só no JT mazelas do jornal, a começar do fato de s er ele um ves-
que marcou época o Jovem Gui – por seu texto finís- pertino que saía na manhã seguinte. Me lembro da esto -
simo, mas também por sua beleza e pelo ar de desam- cada que fechava o arrazoado, algo assim: todos os jor-
paro que nas mulheres ateava sentimentos maternais nalistas do JT são de esquerda, mas só até comprarem
não raro incestuosos. apartamento. Olho a foto e me pergunto: será que tem
Volto à foto daquele grupo, e subitamente me impres- alguém aqui que ainda não comprou o seu? ■

siona a quantidade dos que morreram jovens. Inajar de


Souza, hoje avenida, repórter de polícia que se deleitava humberto werneck é jornalista e escritor. O colunista
em passar trote nos focas. Não sei como escapei. Meu do jornal O Estado de S.Paulo trabalhou em várias redações
amigo Antônio Carlos Braga por pouco não se deu muito depois da passagem pelo Jornal da Tarde, como Veja, IstoÉ ,
mal num dia em que o Inajar errou a mão: tendo rece- Jornal do Brasil, Elle e Playboy . Entre seus livros, estão
bido dele a incumbência de ir a um endereço, sem saber O Santo Sujo – A Vida de Jayme Ovalle (Cosac Naify, 2008)
que ali era esperado alguém muito importante da luta e O Pai dos Burros – Dicionário de Lugares-comuns e Frases
armada (Lamarca? Eduardo Leite “Bacuri”?), o Braga Feitas (Arquipélago Editorial, 2009).

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 29


ESPECIAL

JORNALISMO
PÓS-INDUSTRIAL
ADAPTAÇÃO AOS NOVOS TEMPOS
relatório de Preparado no âmbito do Tow Center for Digital
c.w . ander son
emily bell Journalism da Columbia Journalism School,
clay shirky
tradução de
o documento a seguir foi traduzido com exclusividade
ada f é l i x para a Revista de Jornalismo ESPM. Trata-se
PÁGINA 32
INTRODUÇÃO de um relatóriolançado
de pesquisa sobree dividido
o jornalismo
Transformação do pós-industrial, em 2012, em
jornalismo norte-
americano é inevitável três partes: Jornalistas, Instituições e Ecossistema.
PÁGINA 41 O documento apresenta o atual estágio do
PARTE 1
Jornalistas jornalismo, em que as condições técnicas, materiais
PÁGINA 55 e os métodos empregados na apuração e divulgação
PARTE 2
Instituições das notícias até o fim do século 20 já não se aplicam.
PÁGINA 70
Estamos em meio a uma revolução, e a adaptação
PARTE 3
Ecossistema
às novas fronteiras da profissão é a condição
PÁGINA 81 de sobrevivência nesse cenário, que prevê o uso
CONCLUSÃO
Movimentos tectônicos
intensivo de bases de dados, além da interação
com múltiplas fontes e com opúblico.
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MÉTODOS USADOS O foco do trabalho é a imprensa norte-americana,
NO RELATÓRIO
mas as lições a serem tiradas da análise servem
PÁGINA 89
AGRADECIMENTOS a todos os interessados nos rumos dessa indústria.
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ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 31


INTRODUÇÃO

Transformação do jornalismo
norte-americano é inevitável

PARTE PESQUISA E PARTE MANIFESTO, o presente dossiê trata do exercício do jornalismo e de práticas
de jornalistas nos Estados Unidos. Não é, contudo, um documento sobre o “futuro da indústria
jornalística”. Primeiro, porque boa parte desse futuro já chegou. E, segundo, porque já não há mais uma
indústria jornalística, porassim dizer.

Antigamente, havia uma. Era uma indústria que se man- Muitas das mudanças discutidas na última década
tinha em pé por coisas que em geral mantêm um setor em como parte da futura realidade do jornalismo já ocor-
pé: a similitude de métodos entre um grupo relativamen- reram; boa parte do futuro vislumbrado para o jornalis-
te pequeno e uniforme de empresas e a incapacidade de mo já se converteu em presente (é como disse o escri-
alguém de fora desse grupo de criar um produto compe- tor William Gibson lá atrás: “O futuro já chegou, só não
titivo. Essas condições não se cumprem mais. está uniformemente distribuído”). Nossa meta, em vez de
Se quisesse resumir em uma sentença a última década ficar tecendo conjecturas, é escrever sobre o que já ocor-
no ecossistema jornalístico, a frase poderia ser a seguin- reu, o que está acontecendo neste instante e que lições é
te: de uma hora para outra, todo mudo passou a ter mui- possível tirar disso tudo.
to mais liberdade. Produtores de notícias, anunciantes, As transformações em curso no ecossistema jornalísti-
novos atores e, sobretudo, a turma anteriormente conhe- co já tiveram o efeito de derrubar a qualidade da cobertu-
cida como audiência gozam hoje de liberdade inédita para ra jornalística nos Estados Unidos. Estamos convencidos
se comunicar, de forma restrita ou ampla, sem as velhas de que, antes de melhorar, a situação do jornalismo em
limitações de modelos de radiodifusão eda imprensa escri- solo norte-americano irá piorar ainda mais – e, em cer-
ta. Nos últimos 15 anos houve uma explosão de técnicas e tos lugares (sobretudo em cidades de médio e pequeno
ferramentas. E, mais ainda, de premissas e expectativas. porte, sem um jornal diário), piorar muito. Nossa espe-
Tudo isso lançou por terra a velha ordem. rança é limitar o alcance, a profundidade e a duração des-
Não há como olhar para organizações distintas como sa derrocada. Como? Sugerindo saídas para a produção
Texas Tribune, SCOTUSblog e Front Porch Forum, ou mes- de um jornalismo de utilidade pública, com a adoção de
mo plataformas comoFacebook, YouTubee Storify, e notar ferramentas, técnicas e premissas nem sequer imaginá-
qualquer coerência. Não há como olhar para novas experi- veis dez anos atrás.
ências no jornalismo sem fins lucrativos, como o trabalho Também mostramos que novas possibilidades para
de Andy Carvin na National Public Radio (NPR) duran- o jornalismo exigem novas formas de organização. Até
te a Primavera Árabe, e acreditar que o jornalismo está aqui, a tendência de veículos de comunicação tradicio-
seguro nas mãos de empresas voltadas ao lucro. E não há nais foi a de preservar tanto métodos de trabalho como
como olhar para experiências de financiamento coletivo hierarquias, mesmo com o colapso de velhos modelos de
de jornalismo pelo site de crowdfunding Kickstarter, ou negócios e a incompatibilidade de novas oportunidades
para a cobertura de manifestações de protesto via celular, com velhos padrões. Em entrevista após entrevista com
e acreditar que só profissionais e instituições da impren- representantes da imprensa tradicional focados no digital,
sa podem tornar a informação pública. constatamos a frustração causada por velhos processos.

32 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


A adaptação a um mundo no qual o povo até então cha- Em vez de tentar enumerar ou definir tudo aquilo que
mado de “audiência” já não é mero leitor e telespectador, distingue a notícia séria da futilidade, decidimos adotar
mas sim usuário e editor, vai exigir mudanças não só em a célebre prova dos nove de Lord Northcliffe: “Notícia é
táticas, mas também na concepção que o jornalismo tem algo que alguém, em algum lugar, não quer ver publica-
de si. Incorporar um punhado de técnicas novas não será do. Todo o resto é publicidade”.
suficiente para a adaptação ao novo ecossistema; para Isso não significa que o material produzido por veícu-
tirar proveito do acesso a indivíduos, multidões e máqui- los de comunicação possa ser precisamente dividido em
nas, também será preciso mudar radicalmente a estrutu- duas categorias, a de notícias sérias e a de futilidades. Às
ra organizacional
cientes de veículos
de que muitas de comunicação
das organizações de hoje (estamos vezes, o caderno
verão nes- estampas de economia
de gravatas; vaiodar
em outras, uma matéria
caderno de modasobre
tra-
sas recomendações um despautério). rá uma reportagem sobre algum negócio realizado no
Este dossiê é dirigido a diversos públicos – a veículos mundo da moda. No momento em que escrevo, o site do
de comunicação tradicionais que queiram se adaptar, a New York Daily News traz um texto sobre o novo corte de
novos atores (sejam eles jornalistas independentes, novos cabelo da cantora Miley Cyrus e um sobre a persistente e
projetos de jornalismo ou até organizações que não per- elevada taxa de desemprego em Nova York.
tenciam ao ecossistema jornalístico) – e a organizações e Mesmo cientes dessa diversidade, o hard news é o
entidades que afetam o ecossistema da notícia, sobretu- que distingue o jornalismo de outra atividade comer-
do governos e faculdades de jornalismo, além de empre- cial qualquer. Sempre haverá público para a cobertura
sas e instituições sem fins lucrativos. de esportes, de celebridades, de jardinagem, de culiná-
Partimos de cinco grandes convicções: ria – mas não haveria grande impacto para o país se toda
essa atividade fosse feita por amadores ou máquinas.
• O jornalismo é essencial. O que tem impacto, sim, é a cobertura de fatos impor-
• O bom jornalismo sempre foi subsidiado. tantes e reais capazes de mudar os rumos da sociedade.
• A internet acaba com o subsídio da publicidade. A cobertura do insistente abrigo de pedófilos no seio da
• A reestruturação se faz, portanto, obrigatória. Igreja Católica, da contabilidade fraudulenta da norte-
• Há muitas oportunidades de fazer um bom trabalho -americana Enron e do escândalo envolvendo uma ope-
de novas maneiras. ração do Departamento de Justiça norte-americano, a
Fast and Furious [operação Velozes e Furiosos, ligada ao
tráfico de armas a cartéis de drogas mexicanos ] se encai-
O jornalismo é essencial xa nessa definição.
Já que narrar fatos reais é vital, o valor do jornalismo
O jornalismo expõe a corrupção, chama a atenção para não pode ser reduzido a outras necessidades, secundá-
a injustiça, cobra políticos e empresas por promessas e rias. Embora o jornalismo desempenhe várias funções
obrigações assumidas. Informa cidadãos e consumidores, que se sobrepõem, nunca houve muita urgência em defi-
ajuda a organizar a opinião pública, explica temas com- ni-las. Na época em que o discurso público era escasso
plexos e esclarece divergências fundamentais. O jorna- (ou seja, durante toda a história até hoje), o jornalismo
lismo exerce um papel insubstituível tanto em regimes era simplesmente aquilo que jornalistas faziam; jornalis-
democráticos como em economias de mercado. tas eram simplesmente gente contratada por empresários
A atual crise de instituições norte-americanas de jor- da comunicação, que constituíam o grupo relativamente
nalismo nos convence de duas coisas. A primeira é que pequeno de indivíduos com acesso aos meios para tornar
não há como preservar ou restaurar o jornalismo no for- público esse discurso.
mato praticado ao longo dos últimos 50 anos. E a segunda Acreditamos que o papel do jornalista – como porta-
é que é mister que busquemos, de modo conjunto, novas -voz da verdade, formador de opinião e intérprete – não
saídas para o exercício de um jornalismo capaz de evitar pode ser reduzido a uma peça substituível para outro sis-
que os Estados Unidos descambem para a venalidade e a tema social; jornalistas não são meros narradores de fatos.
pura defesa de interesses pessoais. Precisamos, hoje e num futuro próximo, de um exérci-
É óbvio que nem todo jornalismo é essencial. Muito to de profissionais que se dedique em tempo integral a
do que se produz hoje não passa de entretenimento ou relatar fatos que alguém, em algum lugar, não deseja ver
diversão. Aqui, no entanto, iremos lidar apenas com o divulgados, e que não se limite apenas a tornar disponí-
lado sério do jornalismo – o que alguns chamam de “hard vel a informação (mercadoria pela qual somos hoje inun-
news”, “accountability journalism” ou o “núcleo duro da dados), mas que contextualize a informação de modo que
notícia”. Na crise atual, a notícia séria é o que importa. chegue ao público e nele repercuta.
ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 33
ESPECIAL | INTRODUÇÃO

Um crescente volume de informação obtida em primei- A maior fonte de subsídio no meio jornalístico sem-
ra mão é fornecido por cidadãos – muito do que sabemos pre foi indireta e privada, vinda de anunciantes. É como
sobre o desastre nuclear de Fukushima Daiichi, no Japão, disse o jornalista norte-am ericano Henry Luce 75 anos
e do massacre de Pearl Roundabout, no Bahrein, veio de atrás: “Se tivermos de ser subsidiados por alguém, creio
indivíduos que se encontravam na cena do ocorrido. Mas que o anunciante apresenta possibilidades extrema-
isso não significa que todo jornalista profissional vá ser mente interessantes”.
substituído, nem que possa ou deva sê-lo. Significa, isso Há, no meio jornalístico, um punhado de publicações
sim, que seu papel vai mudar, que vai se sobrepor ao do cujos leitores pagam diretamente pelo trabalho da reda-
indivíduo (ao da multidão, ao da máquina) cuja presen- ção. Mas são uma parcela ínfima do ecossistema jorna-
ça caracteriza o novo cenário jornalístico. lístico e se concentram em áreas de especialização pro-
fissional (finanças, direito, medicina), com um punhado
de casos excepcionais, como o da revista norte-america-
O bom jornalismo sempre foi subsidiado na Ms., cuja promessa é libertar o leitor da publicidade.
A maioria dos veículos de notícias não atua no mercado
A questão do subsídio à atividade jornalísticavem gerando jornalístico, mas no mercado da publicidade.
polêmica há algum tempo. Observadores do meiojornalís- O mais importante na relação entre a publicidade e o
tico como Steve Coll, David Swensen e Michael Schmidt, jornalismo é que não há relação. A ligação entre anun-
além de Michael Schudson e Len Downie, já sugeriram a ciante e meio de comunicação não é uma parceria – é
migração da imprensa norte-americana para um mode- uma operação comercial na qual o meio tem (ou tinha) a
lo de subsídio mais explícito. A sugestão provocou res- primazia. A fonte básica do subsídio publicitário é a fal-
postas acaloradas de outros analistas – Jeff Jarvis, Jack ta de opção; enquanto o anunciante tiver de contar com o
Shafer, Alan Mutter –, para quem somente veículos comer- meio de comunicação para aparecer, esse meio vai poder
ciais teriam como garantir os recursos e a liberdade que usar os fundos obtidos para bancar o jornalismo, indepen-
a imprensa norte-americana exigiria. dentemente da preferência do anunciante. A Nine West
A nosso ver, é uma falsa dicotomia. Subsídios volta não está interessada em manter aberta uma sucursal em
e meia são vistos como sinônimo de aporte direto pelo Washington. O que quer é vender sapatos. Mas, para che-
Estado, o que levantaria óbvios e sérios temores. Mas o gar a potenciais consumidores, a Nine West precisa pagar
subsídio, no sentido do apoio dado a uma atividade consi- a uma organização que se interessa, sim, com o destino
derada de interesse público, pode assumir várias formas. da tal sucursal em Washington.
Pode ser direto ou indireto, pode vir de fontes públicas ou Além da publicidade, há muitas outras formas de sub-
privadas. Doações de cidadãos são subsídio – tanto quan- sídio privado. Durante boa parte da história norte-ame-
to um concedido pelo Estado. ricana, certos empresários aceitaram publicar jornais e
O bom jornalismo sempre foi subsidiado; o mercado revistas mesmo com prejuízo. Em troca, buscavam pres-
nunca foi capaz de suprir o volume de informação que tígio ou influência. Tanto a revista The New Yorkercomo
uma democracia exige. A forma mais óbvia é o subsídio o jornal New York Post operam no vermelho. Esses veí-
público indireto: em troca do acesso gratuito ao espectro culos sobrevivem no formato atual porque seus abasta-
eletromagnético, emissoras de rádio e TV precisam (ou dos proprietários decidiram que não deveriam deixá-los
precisavam) montar uma operação jornalística de credi- totalmente expostos às forças do mercado. Na prática,
bilidade. Empresas são obrigadas a pagar pela inserção uma publicação dessas é uma entidade sem fins lucrativos.
de publicidade legal em jornais. Publicações impressas Na mesma linha, o controle de um jornal por uma famí-
recebem tarifas postais favoráveis. lia era uma proteção contra o imperativo do lucro ime-
Há desdobramentos alentadores envolvendo a cobrança diatista, em parte porque o empresário em geral se dispu-
direta do leitor pelo consumo de conteúdo digital. No caso, nha a receber alguma remuneração na forma de prestígio
o modelo usado é o da cobrança após ultrapassado certo(salário à parte, era bom ser o dono de um jornal local) e
número de artigos. Esses fundos obviamente são bem-vin-em parte porque o controle familiar significava adminis-
dos. Contudo, apenas alguns dos grandes veículos de comu-trar de olho na viabilidade a longo prazo, não na extra-
nicação que adotaram o sistema conseguiram obter 5% que ção imediata de receita, outra forma de estar no merca-
seja de adesão de usuários na versão digital, e a liberação de do mas sem se submeter a ele.
certo número de artigos praticamente garante que a maioria Embora a recente discussão do subsídio ao jornalismo
dos usuários jamais terá de pagar. Oresultado é que, embo- tenha se concentrado no aporte público, e não no privado,
ra sirva para retardar a queda no faturamento, a nova recei-o fato é que distintas modalidades de subsídio são bastante
ta não impede o declínio, e muito menos o reverte. emaranhadas. Todo ano, General Motors e Diageo gastam

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somas consideráveis em spots de 30 segundos na TV ou Embora a receita trazida pela publicidade tradicional
anúncios de página inteira por estarem legalmente obri- tenha começado a cair em 2006, a transformação do mer-
gadas a fazer publicidade da marca. A GM até que gosta- cado publicitário subjacente já estava, àquela altura, bas-
ria de vender diretamente da fábrica, como faz a Dell, e a tante avançada. A perda da receita era um indicador tar-
Diageo adoraria vender a um clicar do mouse, como faz a dio de um cenário já transformado.
grife de chocolates Ghirardelli em seu site. Só que, em seu Meios de comunicação tradicionais não vendem con-
caso, leis estaduais proíbem o uso do marketing direto. A teúdo como se fosse um produto. Seu negócio é a presta-
publicidade de carros, caminhões, cerveja e destilados é ção de serviços, com a integração vertical de conteúdo,
sustentada por um subsídio, imposto pelo governo, que reprodução e distribuição. Uma emissora de TV também
impede certas empresas de investir em outras alternativas. mantém recursos para a difusão de conteúdo via satéli-
O público norte-americano nunca pagou integralmen- te ou cabo; uma revista opera ou contrata serviços tanto
te pela cobertura jornalística feita em seu nome. A ativi- de impressão como de distribuição do material. Na inte-
dade sempre foi bancada por outras fontes, não por leito- gração vertical, o custo de capital é elevado, reduzindo
res, ouvintes ou telespectadores. Neste dossiê, não vamos a concorrência e, às vezes, criando um gargalo no qual o
explorar de onde poderia ou deveria vir esse subsídio no público poderia ser induzido a pagar.
futuro, e nem mesmo como deveria ser direcionado. Essa A internet acaba com essa integração vertical, pois todo
receita pode vir de anunciantes, patrocinadores, usuários, mundo paga pela infraestrutura – que é, então, usada
doadores, mecenas ou filantropos; a redução de custo por todos. O público segue mais do que disposto a pagar
pode se dar com parcerias, terceirização, crowdsourcing pela reprodução e pela distribuição, embora hoje pague-
ou automação. Não há uma solução universal: qualquer mos à Dell por computadores, à Canon por impresso-
saída para ter mais receita do que custo é uma boa saí- ras e à operadora Verizon pela entrega, em vez de pagar
da, seja a organização grande ou pequena, de nicho ou à Conde Nast, à Hearst ou à Tribune Co. por um pacote
generalista, voltada ou não ao lucro. O que está patente é com todos esses serviços.
que o modelo há muito adotado pela maioria dos meios Quando queremos ler algo no papel, é cada vez mais
de comunicação – uma entidade comercial que subsi- comum imprimirmos o material emuma pequena impres-
dia a redação com receita da publicidade – está em risco. sora a poucos passos de nós, quando bem entendermos,
em vez de pagar alguém situado a quilômetros de distân-
cia para imprimir algo que vai chegar com um dia de atra-
A internet acaba com o subsídio da publicidade so. Quando queremos ouvir algo ou assistir a um vídeo,
usamos cada vez mais a infraestrutura genérica da inter-
O foco deste relatório é o modo como jornalistas exer- net, e não a infraestrutura especializada (e financiada) de
cem sua função, e não práticas comerciais de instituições torres de transmissão e redes de cabo.
que abrigam esses profissionais. Há, contudo, um ponto Meios de comunicação também costumam promover
crucial de interseção de práticas comerciais e práticas uma integração horizontal, juntando num mesmo saco
jornalísticas: o apoio da publicidade, principal fonte de notícias relevantes e horóscopo, colunas sociais, recei-
subsídio do jornalismo norte-americano desde a década tas e esportes. No passado, quem sintonizava um deter-
de 1830, está desaparecendo (no caso de jornais, grande minado canal ou comprava uma publicação para ler um
parte dessa receita já evaporou; e há mais má notícia a artigo específico seguia vendo ou lendo o que mais hou-
caminho para jornais, revistas e emissoras de rádio e TV). vesse nesse pacote por pura inércia. Embora o fenôme-
Anunciantes nunca tiveram interesse no patrocínio no volta e meia fosse chamado de fidelidade, na maioria
propriamente dito de meios de comunicação; o elo entre das vezes era pura preguiça – ler outro artigo bom o bas-
receita publicitária e salário de jornalistas sempre foi uma tante no mesmo jornal era mais fácil e cômodo do que
função da capacidade do veículo de comunicação de atrair buscar uma excelente reportagem em outra publicação.
essa receita. Até deu certo noséculo 20, quando o poder de A internet acaba com a integração horizontal. Antes dela,
barganha no mercado de mídia estava nas mãos de quem reunir uma dezena de textos bons – ainda que não exce-
vendia, no caso os meios. Hoje, esse modelo já não serve. lentes – num pacote só costumava ser o suficiente para
Embora tenha começado para valer com a chegada da impedir que alguém saísse à cata dos dez melhores tex-
internet comercial na década de 1990, a ruptura foi camu- tos em uma dezena de publicações distintas. Num mundo
flada durante uma década pelo aumento da receita publi- de links e feeds, no entanto, em geral é mais fácil achar a
citária de veículos de comunicação tradicionais e pelo próxima coisa a ser lida, vista ou ouvida por indicação de
estouro da bolha pontocom, o que levou muitos veículos amigos do que pela fidelidade inabalável a uma determi-
a crerem que a ameaça da internet fora superestimada. nada publicação. Hoje, a preguiça favorece a dispersão;

ESPECIAL| REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 35


ESPECIAL | INTRODUÇÃO

em muitos sites jornalísticos de interesse geral, a catego- meses, a Amazon testou comerciais de TV – mas desistiu
ria mais comum de leitor é aquela formada por gente que da ideia para a maioria de seus produtos, pois concluiu
confere um único artigo por mês. que um anúncio desses teria menos impacto nas vendas
Como se não bastasse, a competição está mais acirra- do que gastar a mesma verba para oferecer frete grátis.
da. Como observou o jornalista Nicholas Carr em 2009, Até veículos que entendem que a receita perdida não
uma busca no Google por informações sobre o resgate pela será reposta, e que a receita trazida pelo impresso (e a
Marinha norte-americana do capitão de um cargueiro de produção) vai continuar caindo, seguem com esperan-
bandeira dos Estados Unidos sequestrado por piratas na ça de que a mudança no subsídio publicitário possa, de
Somália rendeu 11.264 fontes possíveis de matérias sobre algum modo, sera revertida.
o episódio – a maioria meramente reproduzindo um mes- O fato de que internet, mesmo sendo um meio visual-
mo conteúdo sindicalizado. A internet derruba o valor de mente flexível, tenha se adaptado mais depressa ao marke-
publicar um mesmo artigo de agências de notícias em St. ting direto do que à publicidade convencional foi uma
Louis e em San Luis Obispo. decepção para veículos de comunicação, que sempre tive-
Além das mudanças trazidas pela tecnologia, a popu- ram um ganho desproporcional com a velha publicidade.
larização de redes sociais fez surgir uma nova categoria Na última década, volta e meia se afirmou que o marke-
de anúncios que, embora vinculada à mídia, não subsidia ting direto como forma de publicidade na internet seria
a criação de conteúdo. Na década de 1990, muitos sites só uma fase – e que alguém iria reinventar a publicida-
tinham fóruns de discussão quegeravam enorme interesse de convencional no meio digital. É, basicamente, afirmar
entre internautas – mas pouca receita, já que anunciantes que anunciantes vão começar a investir cifras volumosas
temiam que o material produzido por usuários não fosse em anúncios gráficos com animação e em transmissão
seguro para sua marca. de vídeo com pouca expectativa de retorno além da cer-
O MySpace foi o primeiro grande site a transpor esse teza de que a marca terá conquistado mais visibilidade.
obstáculo. Assim como na revolução dos junk bonds na Parece pouco provável. A migração da lógica da propa-
década de 1980, o MySpace usou o argumento de que ganda convencional para a lógica do marketing direto é só
um inventário de anúncios de baixa qualidade poderia um sintoma da mudança maior promovida pela internet,
ser um bom investimento para o anunciante se agrega- que representa a vitória, em todos os lugares, da mensu-
do em volume suficiente e vendido a um valor baixo o ração. A publicidade tradicional era rentável porque nin-
bastante. O discurso feito era basicamente o seguinte: guém sabia ao certo como funcionava, de modo que tam-
“Dependendo do preço pago, os page views do MySpace pouco se sabia como otimizá-la. Produzir um comercial de
podem ter valor para sua empresa mesmo com taxas de TV era mais como rodar um pequenino filme para o cine-
clique [click-through rates] minúsculas”. ma do que conduzir um grande experimento psicológico.
Com isso, abriram-se as comportas. Quando um núme- Hoje, na internet, o anunciante espera, cada vez mais,
ro satisfatório de empresas decidiu que redes sociais eram que até a publicidade tradicional tenha resultados men-
um meio aceitável, o estoque disponível de anúncios pas- suráveis – e a aposta na publicidade mensurável derruba
sou a ser função do (ilimitado) interesse das pessoas umas as altas margens da fase áurea. A célebre dúvida do cria-
nas outras, e não da capacidade do veículo de comunica- dor do conceito da loja de departamentos, o empresário
ção de criar conteúdo ou manter a audiência. Quando a norte-americano John Wanamaker – a de não saber exa-
demanda gera oferta a um custo pouco acima de zero, o tamente qual metade da verba de publicidade era dinheiro
efeito nos preços é previsível. jogado fora –, explica por que a mensurabilidade na publi-
Os últimos 15 anos também testemunharam o surgi- cidade põe ainda mais pressão sobre a receita.
mento da publicidade como um serviço independente. A Outra fonte de esperança para o restabelecimento da
perda de anúncios classificados para concorrentes supe- receita publicitária era a especificidade maior que a inter-
riores como Craigslist, HotJobs e OkCupid já foi exausti- net permitiria. (“É possível dirigir o anúncio exclusiva-
vamente dissecada. Menos discutida é a popularização de mente a advogados tributaristas no Estado de Montana!!)
indicações de usuário para usuário em ambientes comer- Todo mundo achava que essa segmentação precisa jus-
ciais, como o da Salesforce e o da Amazon. Uma recomen- tificaria a cobrança de preços mais altos pela publicida-
dação dessas assume parte das funçõesda publicidade B2B de, pelo menos em certos sites; uma segmentação melhor
(empresa a empresa) ou B2C (empresa a consumidor), traria melhores resultados, o que faria compensar o cus-
mas sem nenhum subsídio do conteúdo (ou nem mesmo to maior.
o pagamento a qualquer ator que se assemelhe a um veí- Só que a migração para a publicidade de baixo custo
culo de comunicação). E um serviço desses dá pouco ou com resultados mensuráveis também derruba boa parte da
nenhum subsídio a meios de comunicação. Durante 15 lógica da segmentação. Vejamos um exemplosimplificado:

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atingir mil pessoas com publicidade online não segmen- redigimos este dossiê estamos no 23º trimestre consecu-
tada custa cerca de US$ 0,60. Um espaço publicitário que tivo de declínio anual das receitas. Os últimos três anos de
custe US$ 12 por mil visualizações (uma estimativa mui- queda ocorreram num período de crescimento econômi-
to discutida em 2010 para certos sites de nicho) pode até co; além do efeito cumulativo da perda de receita, a inca-
ser mais eficiente em razão da segmentação, mas para pacidade de elevá-la mesmo com a economia crescendo
fazer sentido do ponto de vista econômico a publicidade sugere que velhas empresas de comunicação sofrerão um
dirigida teria de ser 2.000% mais eficiente. Se for menos baque descomunal quando tiver início a próxima reces-
que isso, a relação custo-benefício do estoque de baixa são, o que certamente ocorrerá dentro de alguns anos.
qualidade é melhor. A receita por leitor trazida pela publicidade online nun-
Agora que redes sociais já exibem anúncios, o extremo ca chegou nem perto da tradicional – e no caso de plata-
da curva de custos que abriga esse inventário inferior é formas móveis é ainda pior. Enquanto isso, à medida que
realmente baratíssimo, o suficiente para exercer constan- vai avançando, a publicidade no meio digital vem passan-
te pressão sobre o preço superior de anúncios segmen- do totalmente ao largo de veículos de comunicação tradi-
tados. O que uma empresa quer não é chegar ao público cionais. Já fontes sonhadas de receita direta – paywalls,
com seus anúncios. O que a empresa quer é vender o que micropagamentos, aplicativos móveis, assinaturas digitais
faz. A capacidade de entender quem realmente compra – não surtiram efeito ou ficaram aquém das expectativas.
seus produtos ou serviços online significa que, hoje, mui- Dentre todas essas soluções, a assinatura digital nos
tos anunciantes podem arbitrar anúncios caros e baratos moldes praticados por jornais como Los Angeles Times,
como bem entenderem. Minneapolis Star-Tribune e The New York Timesfoi a que
Embora ainda possa haver uma fonte desconhecida de melhor se saiu. E, mesmo assim, o efeito líquido dessas
receita publicitária, para que a saúde do jornalismo banca- assinaturas não anulou as perdas no impresso. De res-
do por publicidade fosse restituída, o acesso a essa pedra to, já que a assinatura digital em geral é concebida para
filosofal teria de ser exclusivo de veículos de comunica- aumentar a circulação em papel, seu efeito a curto prazo
ção – e não de redes sociais ou sites só de publicidade. E, é aumentar ainda mais a dependência da receita oriunda do
para justificar o retorno ao custo elevado lá de trás, essa impresso, apesar da deterioração a longo prazo do papel.
fonte teria de ser muito mais eficaz do que qualquer outro A nosso ver, o arrastado colapso da receita publicitária
método de publicidade atual. E, de quebra, gerar recei- tradicional não será compensado por outras plataformas
tas imunes à pressão que a concorrência em larga escala num período de três a cinco anos. A próxima fase da exis-
exerce sobre preços. tência da grande maioria dos meios de comunicação vai
Partindo de evidências atuais, isso tudo parece impro- ser parecida com a última. Haverá uma redução obrigató-
vável. O poder de meios de comunicação sobre anuncian- ria de custo, embora de forma menos urgente (e, espera-
tes está evaporando; desde a chegada da web, houve uma mos, mais estratégica), levando em conta novas técnicas
grande migração, de meios para anunciantes, do valor líqui - de cobertura jornalística enovos modelos organizacionais.
do de cada dólar investido em publicidade. Além disso, Na década de 1980, muita tinta foi gasta no meio aca-
há mais sinais indicando uma intensificação da tendên- dêmico para discutir o “paradoxo da produtividade”: os
cia do que sua reversão. Até veículos dispostos a apostar fracos resultados produzidos por duas décadas de pesa-
todas as fichas nessa promessa de salvação deveriam tra- do investimento da iniciativa privada em tecnologia da
çar um plano B para seguir produzindo um jornalismo de informação. Um punhado de empresas, contudo, regis-
qualidade caso o subsídio da publicidade continue a cair. trou fortes ganhos de produtividade em decorrência do
investimento em TI lá atrás. Essas empresas de suces-
so não se limitaram a informatizar processos correntes.
A reestruturação é obrigatória O que fizeram foi alterar esses processos à medida que
incorporavam computadores às operações. Viraram outro
A virada basicamente negativa na sorte de meios de comu- tipo de organização. Já aquelas que simplesmente instala-
nicação tradicionais nos leva a duas conclusões: o custo ram computadores sem mexer em processos que já exis-
de produção de notícias precisa cair e essa redução de tiam não registraram nenhum avanço evidente em ren-
custo deve ser acompanhada de uma reestruturação de dimento ou eficiência.
modelos e processos organizacionais. A nosso ver, há uma dinâmica similar nos dias de hoje
Vários fatores sugerem que a receita publicitária segui- – dinâmica que resolvemos chamar de jornalismo pós-
rá caindo nos próximos anos – e pouca coisa indica que -industrial, termo srcinalmente empregado em 2001 pelo
subirá. Embora a fase mais aguda de queda da receita jornalista Doc Searls para sugerir um “jornalismo que já
tenha chegado ao fim, o fato é que no momento em que não é organizado segundo as regras da proximidade do

ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 37


ESPECIAL | INTRODUÇÃO

maquinário de produção” (lá atrás, a lógica da redação não Com a superdistribuição – a propagação de conteúdo
era administrativa, mas prática: o pessoal da redação, que por redes sociais –, um artigo importante de uma publi-
produzia o texto, tinha de estar perto das máquinas que cação minúscula pode chegar a um público enorme sem
reproduziriam esse texto, em geral instaladas no subsolo). custo adicional. Agora que muitos levam no bolso câme-
Observadores do meio jornalístico, como David Simon, ras de vídeo conectadas a redes, uma quantidade cada vez
já disseram, acertadamente, que “fazer mais com menos” maior de informação visual vem dos próprios cidadãos.
é o mantra de todo veículo que teve de demitir uma deze- Com a proliferação de novas possibilidades de apu-
na de repórteres e editores. Contudo, já que nessa equa- ração, interpretação e distribuição de informações, é
ção a parte do “com menos” é obrigatória, é preciso ten- possível ver que
organizações tirando partido
tar fazer com que a parte do “fazer mais” funcione, o que de trabalho nem sequer existiam dezde métodos
anos atrás.
significa menos tergiversação sobre cortes de pessoal e É o que faz a Narrative Science ao automatizar a pro-
mais reestruturação, a fim de tirar partido de novas for- dução de notícias extraídas de mares de dados. Ou a
mas de fazer jornalismo. ProPu blic a ao disponibilizar dados e modelos para a
O jornalismo pós-industrial parte do princípio de que reprodução de notícias, como na iniciativa Dollars for
instituições atuais irão perder receita e participação de Docs. Também há quem vasculhe dados existentes para
mercado e que, se quiserem manter ou mesmo aumen- descobrir fatos novos, como fez o caçador independen-
tar sua relevância, terão de explorar novos métodos de te de fraudes financeiras Harry Markopolos no caso do
trabalho e processos viabilizados pelas mídias digitais. investidor norte-americano Bernard Madoff, que oca-
Nessa reestruturação, todo aspecto organizacional da sionou perdas bilionárias a instituições bancárias, gru-
produção de notícias deverá ser repensado. Será preciso pos de investimentos, fundações, entre outros (uma das
ter mais abertura a parcerias, um maior aproveitamen- grandes oportunidades perdidas do jornalismo norte-
to de dados de caráter público; um maior recurso a indi- -americano na última década).
víduos, multidões e máquinas para a produção de infor- O que une gente digitalmente empreen dedora de organi-
mação em estado bruto; e até um uso maior de máquinas zações tradicionais – Anjali Mullany, ex-Daily News; John
para produzir parte do produto final. Keefe, da rádio WNYC; Gabriel Dance, da sucursal doThe
Serão mudanças sofridas, pois irão afetar tanto a roti- Guardian nos Estados Unidos – e meios que já nasceram
na diária como a autoimagem de todos os envolvidos na digitais, como WyoFile, Technically Phillye Poligraft, é o
produção e distribuição de notícias. Sem isso, no entanto, fato de organizarem suas premissas e processos em torno
a redução dos fundos disponíveis para a produção do jor- daquilo que agora é possível, como incluir interativida-
nalismo fará com que no futuro a única opção seja fazer de em gráficos, dar ao público acesso direto a bancos de
menos com menos. Não há, na crise atual, solução capaz dados, solicitar imagens e informação ao público ou dis-
de preservar o velho modelo. tribuir uma matéria por redes sociais. Não há como saber
se o Poligraft (aliás, nem se o Daily News) ainda existirá
daqui a dez anos, mas a experimentação em curso nessas
Há muitas oportunidades de fazer organizações é um exemplo do bom uso de novas ferra-
um bom trabalho de novas maneiras mentas na busca de objetivos jornalísticos.
O aspecto mais animador etransformador do atual cená-
Se concluirmos que o jornalismo é essencial, e que não há rio jornalístico é poder explorar novas formas de cola-
solução para a crise, a única maneira de garantir a sobrevi- boração, novas ferramentas de análise e fontes de dados
vência do jornalismo de que a sociedade precisa no cená- e novas maneiras de comunicar o que é de interesse do
rio atual é explorar novas possibilidades. público. A maioria de nossas recomendações ao longo
Graças a fenômenos como o movimento da transparên- do presente dossiê terá a ver com essas oportunidades.
cia e a disseminação de redes de detecção, um jornalista
hoje em dia tem acesso a muito mais informação do que
antes. Tem novas ferramentas para transmitir a informa- O que é “público”, o que é “audiência” –
ção de forma visual e interativa. Tem muito mais manei- e o caso especial do New York Times
ras de fazer seu trabalho chegar ao público – a ubiquida-
de da busca, a popularização de fontes constantemente Antes de entrarmos no relatório propriamente dito, é pre-
atualizadas (oFacebook com sua linha do tempo, oTwitter ciso um esclarecimento sobre duas palavrinhas contro-
em sua totalidade), o wiki como formato para a inserção versas, público e audiência. E, ainda, discutir o caso espe-
de novas informações. Tudo isso faz o público ter muito cial do New York Times, que a nosso ver não serve como
mais meios de obter e processar notícias. símbolo do estado geral do jornalismo norte-americano.

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Mas, primeiro, o público. O conceito de “público” como produzido e distribuído por meios. Filmes, música, jor-
grupo de pessoas para o qual se produzem notícias é o nais, livros – tudo isso tinha audiências claras.
“termo divino” do jornalismo, como diz James Carey: Um dos efeitos mais desnorteantes da internet foi
combinar modelos de meios e de comunicação num úni-
...é o termo final, o termo sem o qual nada conta; co canal. Quando alguém no Twitter compartilha uma
por ele, jornalistas justificam seus atos, defendem matéria com um grupinho de amigos, a impressão é a do
o ofício, sustentam sua tese em termos do direito velho papo informal na sala do cafezinho. Quando essa
do público à informação, de seu papel como repre- mesma pessoa divide o mesmo artigo com outras duas
sentantes do público, de sua capacidade de falar ao mil pessoas, a impressão é a de que está agindo como um
público e pelo público. meio de difusão, ainda que nos dois casos a ferramenta
e a ação tenham sido as mesmas. Além disso, cada des-
O público é o grupo cujos interesses deveriam ser ser- tinatário desses pode fazer o conteúdo circular ainda
vidos pelo ecossistema jornalístico. E é um conceito de mais. A posição privilegiada da fonte srcinal do conte-
dificílima definição. údo diminuiu drasticamente.
A ideia de “público” ocupa um lugar central no pen- Ao constatar que no mundo atual membros da audi-
samento norte-americano sobre o jornalismo desde uma ência tinham se tornado mais do que meros recipien-
célebre resposta de John Dewey a Walter Lippmann na tes da informação, o acadêmico Jay Rosen, da New York
década de 1920. Lippmann duvidava de que, numa socie- University, cunhou o termo “The People Formerly Known
dade de massas com complexas engrenagens econômi- as the Audience” – algo como “a turma antes conhecida
cas e técnicas, o indivíduo comum pudesse se tornar o por audiência” – para descrever de que maneira grupos
cidadão informado que o grosso da teoria democráti- até então passivos de consumidores tinham se converti-
ca preconizava. Em resposta, Dewey alegou a existência do em criadores, editores, juízes e veículos da informa-
de vários públicos sobrepostos que poderiam ser “ativa- ção. Neste dossiê, adotamos a visão que Rosen tem dessa
dos” com o surgimento de questões específicas. A ideia transformação; mas não usamos o termo (nem a sigla em
de meios de comunicação voltados a públicos distintos, inglês TPFKATA), que é rebuscado demais.
porém sobrepostos, até hoje é fundamental para a lógica Ao longo do dossiê iremos, portanto, falar de “audiên-
organizacional deles. cia”. Tenha em mente que, com isso, nos referimos à tur-
Desde o surgimento dessas duas visões da comunica- ma antes conhecida por audiência – gente hoje dotada de
ção de massas e da sociedade de massas, a conceitualiza- um grau inédito de poder de comunicação.
ção da esfera pública virou um elemento central da obra Por último, uma palavrinha sobre a razão para não nos
de filósofos como Jurgen Habermas, Nancy Fraser, James atermos muito à situação do New York Times. Uma bela
Carey, Michael Schudson e Yochai Benkler – o que enri- parte de tudo o que se escreveu sobre a sorte do jornalis-
queceu, e complicou, qualquer descrição de uma mídia mo norte-americano na última década girou em torno do
que sirva a um (ou ao) público. destino do jornal nova-iorquino. A nosso ver, essa aten-
Vamos adotar a estratégia do covarde: a de expor – mas ção foi contraproducente.
não solucionar – o dilema. Não temos a intenção de dar No decorrer da última geração, o New York Times dei-
uma definição mais rigorosa do que a seguinte: xou de ser um excelente jornal diário que concorria com
vários outros de igual calibre e virou uma instituição cul-
O público é o grupo de consumidores ou cidadãos tural de importância única em escala mundial (parale-
que tem interesse em forças que exercem influên- lamente, aqueles outros jornais – The Washington Post,
cia sobre sua vida e que busca alguém para monito- Chicago Tribune , Los Angeles Times , Miami Herald –
rar tais forças e mantê-lo informado, para que pos- encolhiam tanto em termos de cobertura como de ambi-
sa agir com base nessa informação. ção). Com isso, o New York Times ficou numa categoria só
dele. Logo, qualquer frase que comece com “Peguemos o
É uma definição insatisfatória, prenhe de interroga- exemplo do New York Times...” dificilmente irá explicar
ções, mas ao menos respeita a barafunda de opiniões sobre ou descrever muito o resto do setor.
aquilo que realmente constitui um “público”. A redação do New York Times é fonte de muitos expe-
O termo “audiência” é igualmente problemático. Quandorimentos interessantes – na visualização de dados, em
o mundo da comunicação estava claramente dividido em parcerias, na integração de blogs. Fomos falar com mui-
meios (impresso, radiodifusão) e comunicação (telégrafo, tos de nossos amigos e colegas ali dentro para tentar
telefone), o conceito de audiência era igualmente claro: aprender com essas experiências e, com base nelas, dar
significava a massa de indivíduos que recebia conteúdo sugestões a outras organizações jornalísticas. Só que,

ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 39


ESPECIAL | INTRODUÇÃO

por o jornal estar numa categoria só dele, decisões que possa seguir todas as recomendações aqui feitas, ou no
sua gestão pode tomar, e o resultado dessas escolhas, mínimo a maioria delas, pois são coisas muito diversas,
não representam nem preveem a realidade da maioria voltadas a atores de natureza muito distinta. Tampouco
dos demais veículos de comunicação, seja qual for seu acreditamos que o que sugerimos aqui seja uma direção
porte ou tempo de vida. Logo, passaremos relativamen- estratégica acabada. Vive mos nitidamente numa era na
te pouco tempo discutindo seu destino. Embora sirva de qual é mais fácil saber o que não funciona do que o que
inspiração para meios de comunicação mundo afora, o funciona, e na qual teorias e práticas daquilo que costu-
jornal é menos útil como modelo ou termômetro para mávamos chamar de indústria jornalística estão abrindo
outras instituições. espaço a uma constelação muito mais diversa de entida-
des do que qualquer coisa que tenhamos testemunha-
do no século 20.
Organização Acreditamos, sim, (ou, no mínimo, esperamos) é que
as recomendações a seguir sejam úteis para organiza-
Este dossiê foi redigido com diversos públicos em mente: ções que não só queiram evitar o pior do anacronis-
novas empresas de mídia, organizações tradicionais ten- mo entre processos tradicionais e oportunidades atu-
tando se adaptar, faculdades de jornalismo e entidades ais, mas também tirar partido das possibilidades que
que dão apoio ou forma ao ecossistema, como o Pulitzer hoje se abrem.
Prize Board e o governo norte-americano.
A esta introdução se seguem três grandes seções:
Jornalistas, Instituições e Ecossistema.
Partimos indagando o que cada jornalista pode e deve
fazer hoje, já que seu trabalho é o mais importante – e já
que a obsessão com a sobrevivência de instituições nos
últimos anos ocultou o óbvio ululante: a importância de
instituições reside no fato de que permitem o trabalho de
jornalistas, e não o contrário.
Em seguida, perguntamos o que uma instituição pode
fazer para apoiar o trabalho de jornalistas. Aqui, não usa-
mos o termo “instituição” no sentido coloquial de “meio
de comunicação tradicional”, mas sim com a significa-
ção sociológica de “um conjunto de pessoas e bens com
padrões relativamente estáveis decomportamento”. Nessa
acepção, o Huffington Post é uma instituição tanto quanto
a Harper’s. Estamos interessados tanto na institucionali-
zação de novas organizações de notícias quanto na adap-
tação de velhas instituições à nova realidade.
Por último, analisamos o ecossistema jornalístico,
que nesse caso significa todo o aspecto da produção de
notícias que não está sob controle direto de uma insti-
tuição. O ecossistema atual tem novos recursos, como
uma explosão de dados digitais e de c apacidade de pro-
cessamento. Traz, ainda, novas oportunidades, como
a capacidade de criação de parcerias e consórcios de
baixo custo. Esse ecossistema também abarca forças
que afetam organizações jornalísticas – de premissas e
apoios (ou obstáculos) criados por faculdades, empre-
sas e o poder público.
Em nossa breve conclusão, usamos várias dessas forças
atuais para traçar um cenário para o fim da presente déca-
da e descrevemos quais, a nosso ver, seriam algumas das
principais características do cenário jornalístico em2020.
Nem de longe imaginamos que alguma organização

40 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


PARTE 1

Jornalistas

NO DIA 28 DE JUNHO DE 2012, a Suprema Corte dos Estados Unidos tomou sua decisão sobre a
obrigatoriedade de contratação de plano de saúde privado por todo cidadão do país – prevista na
chamada Affordable Care Act, a lei da reforma da saúde norte-americana. Em pleno ano de elei-
ções, e diante da possibilidade de que um pilar da legislação proposta pelo presidente fosse jul-
gado inconstitucional, a decisão já não tinha impacto só para o setor de saúde. Virara também um
grande fato político.

Nos dias que antecederam a decisão, todo veículo das pressões comerciais e protocolares típicas do ofí-
importante de comunicação cobriu o caso. O veredic- cio. Em um mundo que o professor norte-americano de
to foi anunciado às 10h07 do dia 28. A CNN anunciou jornalismo Jeff Jarvis descreve com o mote “do what
que o dispositivo fora rejeitado. Já o blog SCOTUSblog you do best and link to the rest” (literalmente, “faça o
informou que a obrigatoriedade fora mantida. que é seu forte e ponha links para o resto”), o modelo
O vexame que a emissora de TV a cabo deu ao levar do SCOTUSblog traz a cobertura mais consistente da
ao ar uma informação incorreta só perdeu, em dimen- Suprema Corte – cobertura que, se honrada sua meta,
são, para a projeção conquistada naquele instante pelo também deve ser a melhor. O SCOTUSblog não vai des-
SCOTUSblog, até ali um pequeno site desconhecido cuja pachar 25 jornalistas para o Haiti caso haja um terre-
única missão era cobrir a Suprema Corte. Naquele dia, moto (nem mandar alguém ir cobrir outra audiência da
o SCOTUSblog virou a grande fonte dos últimos des- atriz Lindsay Lohan por dirigir embrigada). Não está
dobramentos sobre o caso e de análises indispensáveis substituindo a CNN – e nem precisa. O SCOTUSblog
sobre o parecer do tribunal. Mais tarde, ao esmiuçar a achou seu nicho e sabe qual é seu papel.
cobertura do blog no dia 28, a revista The Atlantic infor- Se há jornalistas, é porque o público precisa saber o
mava que às 10h22 – 15 minutos depois de anunciada a que aconteceu, e os motivos. A maneira mais eficaz e
decisão – o site registrava perto de um milhão de visi- confiável de transmitir uma notíci a é por meio de gen-
tantes (foi preciso instalar mais s ervidores para acomo- te com profundo conhecimento do assunto e capacida-
dar o salto no tráfego). de de levar a informação ao público na hora certa. No
O SCOTUSblog foi criado em 2003 por Tom Goldstein episódio acima, o SCOTUSblog cumpriu os dois requi-
e Amy Howe, marido e mulher. Nenhum dos dois era jor- sitos. Embora tenha corrigido a “barriga” em questão
nalista: eram, ambos, sócios de um escritório de advoca- de minutos (críticos, é verdade), a CNN a princ ípio dei-
cia e professores nas faculdades de direito de Harvard e xou a desejar no quesito mais básico: informar o que o
Stanford. Na manhã da decisão, Goldstein cobriu o pro- tribunal de fato decidira.
cedimento todo ao vivo; o material que foi postando no A goleada do SCOTUSblog é só um exemplo de como
blog serviu de base para a cobertura do canal público o velho território de jornalistas tradicionais está sen-
de TV C-SPAN 3. Segundo Goldstein, o episódio foi o do invadido. Um mapeamento do novo ecossistema
“Superbowl” do site – site cuja meta seria levar ao público jornalístico revela exemplos muito mais radicais do
a melhor análise da decisão no momento mais pertinente. que o desse blog (que, além dos advogados que o fun-
O SCOTUSblog é prova de que o jornalismo pode ser daram, até emprega jornalistas). Em certos casos, gen-
exercido fora de uma redação tradicional por gente livre te que nem é jornalista se mostrou capaz de exercer o

ESPECIAL| REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 41


ESPECIAL | JORNALIST AS

ofício com tanta tarimba quanto profissionais da área Science já produz textinhos com resultados financei-
– às vezes, até mais. Especialistas – seja o economis- ros de empresas para o site Forbes.com. Outro projeto, o
ta Nouriel Roubini discorrendo sobre a bolha imobili- Journatic , desperta tanto interesse como angústia com
ária, o sociólogo Zeynep Tufekci falando de conflitos sua cobertura a distância de fatos “locais”. Quando pra-
no Oriente Médio, a analista financeira Susan Webber ças em países do Oriente Médio são alvo de artilharia, a
no site Naked Capitalism – estão produzindo um con- confirmação do estrago é feita por redes de testemunhas
teúdo contextualizado melhor do que muito material munidas de celular e especialistas em assuntos milita-
criado por jornalistas tradicionais. E não é só questão res no Twitter – que garantem um testemunho em pri-
de
semum indivíduo qualquer
intermediários; no casopoder publicar
de doping sua opinião
do ciclista Lance meira mão
A lista e análise
daquilo queem
umtempo realpode
jornalista dos fatos.
fazer cresce dia-
Armstrong, o blog NY Velocity, especializado em ciclis- riamente, pois a plasticidade de tecnologias de comunica-
mo, saiu muito à frente da imprensa esportiva profis- ção muda tanto recursos de apuração de fatos como a con-
sional (que, no episódio, foi de uma credulidade absur- duta do público. Jonathan Stray, repórter da Associated
da). E sua cobertura foi muito melhor. Press e inovador da mídia, observou em um post:
Uma questão interessante sobre o acesso direto de
especialistas ao público surgiu quando a pirâmide de Cada uma das atividades que compõem o jornalis-
Ponzi erguida por Bernard Madoff foi desmascarada. O mo pode ser conduzida melhor dentro ou fora de
detalhe mais curioso do escândalo foi a Securities and uma redação, por profissionais ou amadores, por
Exchange Commission (a SEC, a comissão de valores parceiros ou especialistas. Tudo depende da mate-
mobiliários norte-americana) não ter dado ouvidos aos mática do ecossistema e, em última instância, de
alertas certeiros e detalhados da fraude disparados pelo necessidades de usuários.
investidor Harry Markopolos. No blog de investimentos
Seeking Alpha, Ray Pellecchia perguntou: “Se Markopolos Entender a reviravolta na produção de notícias e no
tivesse um blog, [ a fraude] de Madoff teria sido conti- jornalismo, e decidir qual a maneira mais eficaz de apli-
da?”. Será que a SEC teria ignorado o alerta se, em vez car o esforço humano, será crucial para todo e qualquer
de procurar a agência, Markopolos tivesse usado um jornalista. Para determinar qual o papel mais útil que o
blog para apontar publicamente a improbabilidade das jornalista pode desempenhar no novo ecossistema jor-
operações de Madoff ? Obviamente, é impossível saber. nalístico é preciso responder a duas perguntas correla-
É fácil imaginar, contudo, que uma análise pública das tas: nesse novo ecossistema, o que novos atores podem
maracutaias de Madoff teria tido mais impacto do que fazer, hoje, melhor do que jornalistas no velho mode-
teve a cobertura do assunto por profissionais da mídia. lo? E que papel o jornalista pode desempenhar melhor
Também chegamos a um pont o no qual a “multidão” do que ninguém?
lá fora está disseminando a própria informação em tem-
po real para outros in divíduos e para o mu ndo. Hoje, é
mais barato do que nunca reunir dados sobre qualquer Quando mídias sociais são melhores: amadores
mudança mensurável – e surgem algoritmos capazes de
reordenar essa informação em frações de segundo e pro- O valor jornalístico de mídias sociais ocupa um espec-
duzir relatos de acontecimentos que já passam no tes- tro que vai do indivíduo munido de uma informação
te de Turing: ou seja, nada os distingue de textos redi- importante – a testemunha em primeira mão, o “insi-
gidos por gente de carne e osso. E isso sem nenhuma der” – até a coletividade. Bradley Manning, o solda-
intervenção de um jornalista. do do braço de inteligência do Exército norte-ame-
Mas o retrato pintado pelas mudanças no ecossistema ricano acusado de vazar milhares de documentos do
do jornalismo não é só de perda. Se de um lado velhos Departamento de Estado para o site WikiLeaks , ocu-
monopólios desaparecem, há, de outro, um volume cada pava um posto de importância singular; já o registro
vez maior de trabalho jornalisticamente útil a ser feito do rastro de detritos deixado pela explosão do ônibus
pela colaboração de amadores, multidões e máquinas. espacial Columbia pela BBC exigiu vários observado-
Uma corretora de commodities, por exemplo, não pre- res independentes. Um projeto do Huffington Post em
cisa de um repórter plantado em uma lavoura de trigo 2008, o Off the Bus, ocupou um espectro similar: o rela-
para entrevistar o agricultor: satélites podem produzir to de um discurso de Barack Obama e m São Francisco,
imagens em tempo real da cultura, interpretar essa infor- quando o presidente norte-americano aludiu a gente
mação visual e, num piscar de olhos, transformar tudo que se “aferra a armas e à religião”, veio de uma úni-
em dados úteis. A empresa norte-americana Narrative ca fonte, a blogueira Mayhill Fowler; já a cobertura de

42 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


convenções de eleitores ( “caucuses”) no Estado do Iowa e idiossincrasias de complexas organizações modernas
foi feita por levas de indivíduos. é uma empreitada intelectual nada banal – e, de que-
Quando uma força de operações especiais da Marinha bra, um serviço público. Em muitos casos, os aspectos
norte-americana (os SEALs) matou Osama bin Laden, mais importantes do trabalho jornalístico individu-
quem primeiro tornou pública a notícia foi Sohaib Athar al seguem sendo o que sempre foram em sua melhor
(cujo Twitter é @reallyvirtual). Ou, nas palavras do pró- encarnação: entrevistar, observar em primeira mão,
prio, “o cara que blogou ao vivo o ataque a [bin Laden] sem analisar documentos.
sequer saber”. Sohaib Athar não é jornalista (é consul- Não obstante, muitas das estratégias que defende-
tor de TI em Abbottabad, no Paquistão, onde bin Laden mos não espelham diretamente o paradigma da repor-
foi encontrado) e talvez nem soubesse que estava fazen- tagem tradicional. A maioria dos jornalistas, e das ins-
do jornalismo. Mas, como observou Steve Myers, à épo- tituições jornalísticas, foi incapaz de tirar proveito da
ca no Poynter Institute, o rapaz “agiu como um jorna- explosão de conteúdo de potencial interesse jornalísti-
lista”. No Twitter, Athar disse ter ouvido o barulho de co trazida pela expansão da comunicação digital. O fato
um helicóptero e uma explosão. Na sequência, respon- é que a maioria dos jornalistas, na maioria dos jornais,
deu a perguntas, acrescentou informações quando jul- não passa a maior parte do tempo realizando algo que
gou que havia fatos novos, seguiu o desenrolar da tra- possa ser considerado uma apuração empiricamente
ma e contextualizou o episódio. Athar virou um recurso robusta de fatos. Assim como a hi stórica falácia da “era
para jornalistas que tentavam reconstruir a cronologia de ouro” do jornalismo, a crença no valor do trabalho
dos eventos – uma parte do sistema de verificação que srcinal de reportagem muitas vezes supera o volume
podia ser cotejada em tempo real com a versão oficial. real ao qual é produzido.
Em muitos acontecimentos de relevância jornalísti- Ainda há muito jornalista que se restringe a um rol
ca, é cada vez mais provável que a primeira descrição relativamente limitado de fontes na hora de colher infor-
dos fatos seja feita por um cidadão conectado, não por mações para matérias de grande relevância, com o oca-
um jornalista profissional. Em certas situações – desas - sional complemento de dados obtidos em comunicados
tres naturais, chacinas –, a transição já foi concluída. de imprensa e por observação direta. Essa concepção
Nesse caso, como no de tantas outras mudanças no do trabalho de reportagem centrado na fonte com auto -
jornalismo, a erosão de velhas formas de agir é acompa- ridade exclui mídias sociais, a explosão de dados digi-
nhada da expansão de novas oportunidades e de novas tais, fontes de informação geradas por algoritmos e mui-
necessidades de um trabalho jornalisticament e impor- tas das novas estratégias de coleta de informações que
tante. O jornalista não foi substituído – foi deslocado aqui destacamos.
para um ponto mais acima na cadeia editorial. Já não Devia haver mais trabalho de reportagem, e não menos,
produz observações iniciais, mas exerce uma função cuja e essa reportagem devia aprender a conviver com for-
ênfase é verificar, interpretar e dar sentido à enxurrada mas mais recentes de apuração de informações de i nte-
de texto, áudio, fotos e vídeos produzida pelo público. resse jornalístico. Reconhecemos que o colapso econô-
A “apuração dos fatos” ocupa um lugar de destaque mico de jornais representa uma ameaça bastante real
na autoimagem do jornalismo: está no cerne daquilo que para o trabalho de reportagem; a solução desse dile-
o jornalista faz – algo, que, em sua concepção, ninguém ma exigirá uma nova atenção a instituições jornalísti-
mais pode fazer; é o aspecto da ocupação que requer a cas, algo que discutiremos em mais detalhe na próxi-
habilidade mais tácita; é a função que serve de forma ma seção, sobre instituições.
mais direta o interesse público. A importância desse
trabalho de reportagem se reflete em muitas das bata-
lhas mais perenes travadas em torno do jornalismo na Quando mídias sociais são melhores: multidões
última década e meia, da briga aparentemente intermi-
nável entre “blogueiros x jornalistas” ao confli to sobre Quando um número suficiente de atores é reunido, chega-
agregação de conteúdo x cobertura própria. -se a uma multidão. E algo que essa multidão faz melhor
Por ser considerado simplista ou metodologicamen- do que jornalistas é coletar dados. Quando o Japão foi
te ingênuo, o trabalho de reportagem costuma ser mal atingido por um terremoto em março de 2011, provo-
interpretado por gente de fora do meio. Obter informa - cando um vazamento na usina nuclear de Fukushima
ções descritivas cruciais de uma testemunha na cena Daiichi, a frustração devido à falta de inform ação atua-
dos fatos, questionar de forma incisiva respostas ver- lizada sobre níveis de radiação levou muita gente muni-
bais de altas autoridades públicas, saber exatamente da de contadores Geiger a filmar e transmitir a radiação
onde achar um documento crucial ou decifrar rotinas medida por esses aparelhos pelo site UStream.

ESPECIAL| REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 43


ESPECIAL | JORNALIST AS

Plataformas para partilha de dados em tempo real, No setor de tecnologia, projetos novos como Palantir,
como a Cosm, contam com grupos militantes de empre- Kaggle e Narrative Science estão eletrizando investido-
sas, ou simplesmente cidadãos comuns, para recolher res com as possibilidades infinitas abertas pela coleta
informações de seu interesse – sobre qualidade do ar, de dados e o uso de algoritmos para organizá-los.
condições de trânsito, eficiência energética, o que seja Com uma equipe de 30 pessoas – dois terços enge-
– e compartilhá-las por meio de sensores bem baratos. nheiros, um terço editorial –, a Narrative Science “pro-
Dados em um site desses têm um alc ance, uma profun- duz narrativas completas a partir de dados numéricos
didade e uma precisão que simplesmente não podem brutos”, como diz o próprio diretor de tecnologia da
ser garantidos por um jornalista sozinho. empresa, Kris Hammond. Hammond e sua equipe de
Hoje, o cidadão também fotografa e filma fatos de cientistas da computação buscam identificar elemen-
interesse jornalístico – e, às vezes, como no projeto tos cruciais de um texto jornalístico e de que forma
Off the Bus do Huffington Post em 2008, dá verdadei- poderiam variar, seja para o resumo de uma partida de
ros furos políticos. Plataformas sociais como Facebook beisebol ou o anúncio dos resultados de uma empre-
e Twitter reconhecem que reunir e interpretar toda a sa. Em seguida, programam um código que permite
informação hoje disponível é uma tarefa que extrapo- a conversão de dados em estado bruto em palavras.
la a capacidade humana. Daí toda plataforma social e Esse conteúdo de baixo custo já está sendo vendido
todo mecanismo de busca contar com algoritmos que a empresas e veículos de comunicação tradicionais,
ajudam a analisar que conteúdo está sendo comparti- entre outros.
lhado, que temas são mais discutidos (e por quem) e A proposta da Narrative Science é automatizar a pro-
como surge e circula a informação. dução de textos padronizados como resultados finan-
A disponibilidade de recursos, como fotos tiradas pelo ceiros de empresas e resultados de competi ções espor-
cidadão comum, não elimina a necessidade do jorna- tivas. Isso reduz a necessidade de intervenção humana
lismo nem de jornalistas, mas altera sua função. O pro- em atividades repetitivas: em vez de ficar redigindo tex-
fissional deixa de ser o responsável por registrar a pri- tos elementares, essa mão de obra é liberada para coisas
meira imagem ou fazer uma observação inicial e passa mais complexas ou que exijam interpretação.
a ser aquele que solicita a informação e, em seguida, fil- E, como sempre, essa comoditização permite a par-
tra e contextualiza o que recebe. Um termo hoje mui- ticipação até de quem não pertence aos quadros tra-
to usado, “ crowdsourcing ”, implica por si só uma rela- dicionais da profissão. Se uma criança está disputan-
ção de “um com vários” para o jornalista, que lança do uma partida de beisebol pela liga infantil e o pai usa
uma pergunta a um grande grupo de pessoas ou recor- um aplicativo para iPhone chamado GameChanger para
re a esse exército de gente para achar respostas. Mas registrar os resultados, a Narrative Science vai proces-
essa multidão também pode ser uma série de indivídu- sar esses dados instantaneamente e produzir um texto
os atuando por meio de redes – multidão que pode ser com a descrição do jogo. Mais de um milhão de peque-
interrogada e utilizada para uma versão mais comple- nos textos do gênero serão gerados só este ano.
ta dos fatos ou para a descoberta de coisas que seriam Em entrevista à revista Wired, Hammond disse espe-
difíceis ou demoradas de apurar com o modelo tradi- rar que, no futuro, algo como 80% a 90% das matérias
cional de reportagem. sejam geradas por algum algoritmo. Quando pedimos
que desenvolvesse o pensamento, ele explicou que vai
haver uma expansão do tipo de “matéria” que poderá
Quando a máquina é melhor ser produzida por máquinas à medida que mais dados
de caráter local e pessoal forem sendo coletados e lan-
Se há algo que a máquina faz melhor do que o homem çados na internet. Esses 90% implicam, portanto, não
é garimpar com rapidez grandes volumes de dados. A só dados em estado mais “granular”, mas um univer-
automação de processos e conteúdo é o território mais so muito maior de matérias ou conteúdo sendo publi-
subaproveitado para derrubar o custo do jornalismo e cados, por um conjunto muito maior de repórteres, a
melhorar a produção editorial. No prazo de cinco a dez maioria amadores. Esse tipo de reportagem será viável
anos, teremos informações produzidas a baixo custo e sempre e quando houver dados disponíveis nesse for-
monitoradas em redes de aparelhos sem fio. Vão servir mato digital. E sempre e quando não houver dados nes-
para várias coisas – informar às pessoas qual o melhor se formato, como em uma audiência pública realizada
momento para usar a água para evitar a poluição dos por algum poder da União, será preciso um repórter
rios, por exemplo, ou quando atravessar a rua – e levan- para registrar os dados.
tam questões de ética, posse e uso da informação. Segundo Hammond, as máquinas que sua equipe

44 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


cria devem “pensar como um jornalista”; sua inten- Prestação de contas
ção é esmiuçar o que o jornalista faz e, em seguida,
reproduzir a atividade com a programação. “Queremos Uma pergunta que a sociedade está sempre fazen-
que a máquina se aproxime das pessoas, [ queremos ] do, e para a qual exige resposta (em geral, quando algo
humanizar a máquina e produzir lampejos humanos dá errado), é “quem é o responsável?”. Se o jornalis-
em escala gigan tesca.” mo tem um impacto, e se parte de sua função é obri gar
Repórteres e editores consideram esse cenário hor- outras instituições a prestar contas de seus atos, o pró-
ripilante. Jornalistas e programadores (ou jornalistas prio jornalismo deve ser capaz de justi ficar os seus. Os
com formação em ciência da computação) raramente três inquéritos (um deles policial) envolvendo o tabloi-
trabalham com esse processo de replicação. “Falta uma de britânico News of the World , acusado de apelar para
boa compreensão da questão, no momento ainda são grampos telefônicos, demonstram de forma bastan-
poucas as organizações jornalísticas com essa capaci- te vívida que, embora deva ter liberdade de expressão,
dade”, explicou Reg Chua, diretor de dados e inovação o jornalista também precisa responder pessoalmente
na Thomson Reuters. por seus atos.
Se a resposta à pergunta “em que situações um algo - Determinar de quem é o risco da publicação de conte-
ritmo é melhor?” for “para produzir textos a partir de údo é legalmente importante (e se tornará ainda mais),
dados estruturados”, e se o un iverso de dados estrutu- tanto no terreno da imputação de responsabilidade como
rados de natureza pessoal, local, nacional e internacio- no da defesa de direitos.
nal estiver crescendo de forma exponencial, prever a A criação de programas e algoritmos que substituem
automatização de 90% do conjunto de “matérias” não o trabalho humano de reportagem envolve uma série de
soa tão absurdo. decisões que devem ser passíveis de explicação e res-
ponsabilização para todos os afetados. Na Narrative
Science, jornalistas criam algoritmos; no Google News,
Quando o jornalista é melhor engenheiros precisam entender o que torna uma maté-
ria “melhor” para poder melhorar um algoritmo. Dados
Antes da chegada da máquina a vapor, todo produto e algoritmos são tão políticos quanto charges e textos de
têxtil era “artesanal” – no sentido de que era feito por opinião, mas raramente possuem a mesma transparência.
artesãos. Não era, no entanto, muito bem feito; o homem Novas áreas de responsabilização vão surgindo.
não fabricava têxteis porque tinha alguma habilidade Jornalistas e instituições jornalísticas terão de res-
superior, mas por falta de alternativa. A máquina a vapor ponder à seguinte pergunta: “O que vocês estão fazen-
transformou a indústria têxtil, encerrando a participa- do com meus dados?”. Talvez não importe saber quem
ção humana no grosso da produção básica de tecidos – é jornalista – exceto para a pessoa que está revelando
mas criou uma leva de novas ocupações para artesãos informações a um jornalista.
sofisticados, bem como para criadores de estampas e Na mesma linha, salvaguardas e defesas garantidas
gerentes de fábricas. a jornalistas devem ser estendidas a todo aquele que
A nosso ver, algo parecido ocorre hoje no jornalis- dissemina alguma informação de interesse público. Se
mo. A ascensão daquilo que conhecemos por “i mpren- um jornalista ou organização jornalí stica está de posse
sa” coincidiu com a industrialização da reprodução e da de seus dados, é razoável esperar que não sejam entre-
distribuição de material impresso. Quando o custo de gues à polícia.
levar uma coluna de texto a milh ares de pessoas come- Sabemos o que acontece quando informações delica-
çou a cair, organizações jornalísticas puderam canali- das, como a correspondência diplomática vazada para o
zar mais recursos para a produção diária de conteúdo. WikiLeaks , são hospedadas em uma plataforma ineren-
Agora, estamos testemunhando uma mudança correlata: temente comercial mas não inerentemente jornalística:
a automatização da coleta e da di sseminação de fatos, e o serviço pode ser suspenso. Tanto um braço da Amazon
até de análise básica. Isso obviamente mexe com ativi- que prestava serviços de internet para o WikiLeaks como
dades que empregavam jornalistas não como artesãos, o PayPal, um mecanismo de pagamentos na rede, ces-
mas como meros braços – gente que desempenhava a saram a relação com a organização. Em geral, é mais
função porque não havia máquina capaz disso. Mas tam- difícil detectar plataformas que praticam censura por
bém permite que meios de comunicação, tradicionais motivos comerciais. Rebecca MacKinnon, pesquisado-
e novos, dediquem uma parcela maior de recursos ao ra do centro de estudos norte-am ericano New America
trabalho de investigação e interpretação que nenhum Foundation e autora de Consent of the Networked, obser-
algoritmo pode fazer – só o homem. va que, na Apple, o processo de aprovação de produtos

ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 45


ESPECIAL | JORNALIST AS

para a popular loja de aplicativos é turvo e arbitrário, e seguidores?”. É fato, no entanto, que a atividade indi-
que o rechaço de certas contribuições equivale a censu- vidual do jornalista – seus recursos e sua liberdade –
ra (como na decisão, notoriamente opaca, de rejeitar o está crescendo, e já não se restringe à marca do veícu-
mapa interativo de ataques com “drones” feito pelo pro- lo e ao público deste.
gramador Joshua Begley). Com a simples decisão de usar No ecossistema da informação, o jornalista pode exer-
um produto da Apple, portanto, o jornalista toma parte cer o maior impacto no trabalho entre as massas, de
na criação de um futuro com censura para a internet. um lado, e o algoritmo, do outro – no papel de investi-
gador, tradutor, narrador. Sem explorar as possibilida-
Eficiência desjornalismo
de da multidão
seou de algoritmos,
tornam certas incapazes
insustentáveis, modalidades
de
É evidente que o jornalista pode ser muito mais efi- acompanhar o mundo de redes e dados em tempo real
ciente do que a máquina na apuração e disseminação de que chegam ao público de todas as partes – de sensores
certas informações. É entrevistando gente que o profis- instalados na lata de lixo a “ trending topics ” no Twitter .
sional tem acesso aos fat os e se “apodera” de um assun- O lugar ocupado pelo jornalismo no ecossistema tem a
to, às vezes com exclusivi dade. Ligar para o palácio do ver, portanto, com a humanização dos dados, não com
governo ou para a Secretaria de Educação, comparecer o processo de mecanização.
a reuniões e assimilar o que é dito ali, dar ideias e ques- A adaptação a esse mundo é um desafio para o jorna-
tionar – tudo isso aproxima a notícia da ideia de “dra- lista que aprendeu a trabalhar em redações cujo pro-
ma” que o teórico da comunicação James Carey julgava duto exigia, antes de tudo, exatidão e certeza, e onde
central para o conceito do jornal. Pessoais e humanas, havia unidad e e clareza em torno de um pequeno con-
essas atividades convertem o jornalismo em uma espé- junto de processos: apuração, redação, edição. A capa-
cie de performance da informação, e não mera divul- cidade de reconhecer , localizar e narrar um fato rele-
gação de fatos. vante no formato mais condizente para um púb lico
específico segue sendo necessária, mas o número de
Originalidade formatos e a variabilida de da audiência aumentaram.
E mais: técnicas do ofício que ajudarão o jornalista a
Para ter ideias, criar algoritmos, formar movimentos definir e redefinir seu papel futuro e o setor no qual
e inovar em práticas é preciso srcinali dade de raciocí- atua estão mudando.
nio. Um jornalista deve provocar mudanç as, promover
a experimentação e incitar à ação. Ainda é difícil criar
e manter máquinas capazes de entender a realidade O que um jornalista precisa saber?
com a complexidade exigida para reconhecer o que há
de importante em uma história como a de swaps de cré- Quando Laura e Chris Amico trocaram a Califórnia pela
dito ou por que é preciso investigar a situação fiscal de capital norte-americana, Washington – onde Chris foi
Mitt Romney. Essa bagagem cultural distingue repór- trabalhar como desenvolvedor no site da rádio NPR –,
teres, editores, designers e demais jornalistas de outros o casal não conhecia o lugar, não conhecia a comuni-
sistemas de coleta e disseminação de dados. dade e não sabia onde Laura, que é repórter policial,
iria achar trabalho.
Carisma “Não havia ninguém contratando”, diz Laura. O tédio
do desemprego e o interesse dos dois pelo jornalis-
Gente segue gente. Pelo mero fato de ser “humano”, mo cívico levou o casal a cogitar possíveis projetos na
portanto, o jornalista cria para si um papel mais for- área. “Pensamos muito sobre o que ‘não’ vinha sendo
te. É um trunfo que a televisão, movid a que é a perso- coberto”, diz Laura, que mantém um pequeno apare-
nalidades, há muito explora, mas sempre numa via de lho para escutar a rádio da polícia onde a maioria exi-
mão única. Já num mundo de redes, a capacidade de be um despertador.
informar, entreter e responder a feedback de forma E o que não estava sendo coberto nas páginas poli-
inteligente é uma habilidade jornalística. É como dis- ciais dos jornais locais e até do Washington Post, per-
se Paulo Berry, ex-diretor de tecnologia do Huffington ceberam, era todo homicídio ocorrido na cidade. Para
Post : “Hoje em dia, quando um jornalista é entrevista- tapar esse buraco na cobertura, o casal criou o site
do, só há uma pergunta a fazer: quantos seguidores?”. Homicide Watch D.C. “Buscamos deliberadamente fazer
Já que influência é um critério melhor do que mera algo que ninguém mais estivesse fazendo”, diz Chris.
quantidade, uma versão burilada seria “Quem são seus Com efeito, a decisão mais radical da dupla foi jogar na

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rede toda e qualquer informação apurada – aproveitar “Soft skills ” do jornalismo
“o porco inteiro”, por assim dizer. O Homicide Watch
D.C. é organizado por “objetos” – ocorrência, vítima, Mentalidade
suspeito, processo – e usa informações estruturadas
sobre local do crime, idade e raça dos envolvidos para O que Laura e Chris Amico têm além da bagagem pro-
compor um retrato detalhadíssimo desse tipo de ocor- fissional – ela como repórter de polícia, ele como progra-
rência em uma única cidade. O próprio caráter por- mador de sites – é o espírito de melhorar o jornalismo
menorizado do site ajuda no trabalho de apuração: se em vez de simplesmente repetir o que já se faz ou tentar

alguém entra naé uma


desconhecido, página e dápara
deixa umaLaura
buscainvestigar
por um nomese o resgatar
listas queoestá
ofício.
em“Precisamos mostrar
seu poder mudar umaa organização”,
jovens jorna-
alvo da pesquisa é uma vítima. Graças a isso, o site já diz Shazna Nessa, chefe de redação do braço interativo
conseguiu dar a notícia de um assassinato e descobrir da Associated Press. “Aliás , a esperança de que as coisas
a identidade da vítima antes que a polícia tivesse con- mudem em geral é depositada sobre esses jovens”, diz.
firmado a ocorrência. Para quem possui essa mentalidade, o apelo de uma
Não há “voz” autoral no site: é tudo escrito no esti- instituição é reduzido. Pouquíssimas empresas seguem
lo de agência de notícias. E, enquanto o relato de cada o exemplo de John Paton, da Digital First Media , um
homicídio é factualíssimo, comentários de parentes das chefe que incentiva a ruptura, espera mudanças e con-
vítimas ou de outros membros da comunidade recebem sidera que nada está gravado em pedra.
bastante destaque. Ao registrar e tornar visível cada Logo, gente talentosa como o casal Amico – e Leela
homicídio no Distrito de Colúmbia, onde fica a capital Kretser, da DNAinfo , Lissa Harris, da Watershed Post,
norte-americana, o site cumpre uma função jornalística Burt Herman, da Storify, Pete Cashmore, da Mashable,
bem clara e específica: com uma corrida de olhos pela e centenas de outros como eles – opta por uma trilha
página, é possível deduzir que o homicídio na região aberta por Nick Denton, Arianna Huffington e Josh
envolve, em sua maioria, homens, negros, jovens. Com Marshall e tenta fazer algo melhor com a criação de
um punhado de cliques, é possível conferir estatísticas uma nova instituição.
detalhadas que confirmam essa impressão. Ter desejo e motivação para exercer influência pes-
O Homicide Watch é um exemplo daquilo que Chris soal sobre o jornalismo, tanto no plano da notícia como
e Laura tinham certeza de que não poderiam fazer em no da instituição, requer uma combinação de consciên-
uma redação. A conversão da informação em estatísti- cia, confiança, imaginação e habilidade.
cas e um site que prioriza vítimas e ocorrências, e m vez Ainda que nem todas essas qualidades possam ser
da velha reportagem, estão em conflito com as priori- ensinadas, o fato é que não são opcionais. É importante
dades de muita redação. recrutar e formar jornalistas (nas redações ou em facul-
Embora a reportagem seja o pilar do jornalismo, o dades de jornalismo) que saibam lidar com um estado
Homicide Watch mostra que ferramentas de reporta- permanente de mudança. Em algumas dessas institui-
gem podem ser usadas das mais variadas formas. Um ções, que pela própria natureza representam estabili-
banco de dados que converte cada detalhe apurado pelo dade, será preciso considerável reajuste.
repórter em informação estruturada com o intuito de A ideia do jornalista “empreendedor” vem ganhando
produzir mais conteúdo é um bom exemplo disso. Um força e é cada vez mais estimulada tanto em cursos de
sistema de comentários que permite ao usuário desta- jornalismo como em certos veículos de comunicação.
car e filtrar observações úteis é outro exemplo. Nem Só que julgar a qualidade da inovação pelo lucro gerado
todo jornalista terá domínio de toda área de trabalho. – algo associado a essa ideia – nem sempre é útil, pois
Por reconhecer a centralidade da reportagem, nossa a busca do lucro deve ser precedida da criação de rele-
atenção aqui se concentra em recursos novos que já são vância. Seja qual for sua área de especialização, todo
exigidos para um trabalho melhor de reportagem, mas jornalista deve encarar a experimentação voltada à ino-
que ainda são escassos. vação como algo a praticar, e não simplesmente tolerar.
Não há dúvida de que a bagagem técnica que Laura e
Chris possuem (suas “ hard skills ”) são a base do suces- Redes
so do site. Laura é repórter policial, Chris é programa-
dor. A grande lição a tirar do caso, no entanto, não é só Todo jornalista tem – aliás, sempre teve – uma rede.
que esse conheciment o “concreto” tornou viável o site, Pode ser uma rede de fontes e contatos, uma rede de
mas sim que habilidades menos tangíveis (“ soft skills ”) gente com bagagem profissional parecida, uma rede
permitiram a sua utilização. constituída de uma comunidade que o segue e o ajuda.
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ESPECIAL | JORNALIST AS

À medida que cada integrante da rede vai ficando ain- do jornalista levaram a um resultado que pode ser visto
da mais conectado, um jornalista com bom trânsito por como o símbolo do accountability journalism .
essas redes pode obter mais ajuda ou ser mais eficien-
te. Edição, pauta e apuração viram atividades total ou Persona
parcialmente delegadas à rede.
Criar e manter uma rede eficaz requer tato (uma “ soft Presença, acessibilidade e responsabilização são coi-
skill ”), mas também a imposição de limites bem con- sas importantes no jornalismo. E o mesmo pode ser
cretos. Exige tempo, reflexão e processo. Exige crité- dito da habilidade narrativa. Qualquer um de nós pode
rio, até porque
nalismo uma redeLogo,
exige distância. implica proximidade
garantir ambas éedifícil.
o jor- constatar,
quer um deem cifras,
nós tambémo declínio daum
pode ler imprensa. Masno
David Carr qual-
New
No documento “The AOL Way”, uma diretriz estraté- York Times para saber que fatores são importantes na
gica do portal que vazou para o público em 2011, a tese opinião do jornalista. Aliás, queremos ler Carr porque
explícita da AOL era que jornalistas com redes maiores sua prosa é um primor. Quanto mais um jornalista nos
ou mais seguidores valiam mais. Embora boa parte do envolve com sua persona , mais queremos ouvir o que
material tenha sido considerada pura besteira, o impacto tem a dizer sobre o mundo.
de um exército grande e visível de seguidores na carrei- Antigamente, ter uma persona pública era prerroga-
ra de um jornalista é inegável. Quando o site Daily Beast tiva de colunistas festejados. Hoje, é parte do trabalho
tira um jornalista como Andrew Sullivan da revista The de todo jornalista. Todo mundo – editores e repórteres,
Atlantic, a expectativa é que seus leitores migrem tam- profissionais da arte, fotógrafos, “videomakers”, cien-
bém. A credibilidade, a confiabilidade e a tarimba de um tistas de dados, especialistas em mídias sociais – tem
jornalista já são julgadas pela composição de sua rede. um ângulo próprio e responsabilidade na narração dos
Todo indivíduo, assunto ou lugar tem o potencial de fatos. Para isso, é preciso ter critério e aplicá-lo de for-
contar com uma rede visível a seu redor. Diariamente, ma pública e reiterada. Qualquer que seja o meio de dis-
serviços como Faceboo k , YouTube , Twitter , Orkut e seminação, a informação hoje é instantaneamente com-
Weibo publicam muito mais conteúdo do que a pro- partilhada, discutida, comentada, criticada e louvada
dução somada da mídia profissional no mundo todo. – ao vivo, sem possibilidade de controle.
Logo, garimpar relacionamentos, conversas e histórias Integridade e critério são qualidades que um jorna-
será cada vez mais importante para a coleta de infor- lista arrasta consigo como parte de sua persona pública.
mações. A ferramenta de agregação Storify e o projeto Estão mais para valores do que para “ soft skills ”. Devido
irlandês de jornalismo Storyful, que vasculha a ativida- à natureza da busca e à publicação contínua, estabelecer
de em redes sociais para buscar notícias e che car fatos, um atributo desses ficou mais fácil. Mas, uma vez perdi-
são como agências de notícias sociais: garantem mais do, é difícil recuperá-lo. Plágio, desonestidade e inten-
proteção e filtro jornalístico do que as plataformas em ções ocultas são mais difíceis de esconder; já erros fac-
sua base, sempre tentando imprimir algum sentido a tuais, material requentado e falta de civilidade podem
informações dispersas e não raro confusas. abalar uma reputação de forma rápida e irreparável.
Um repórter do The Guardian, Paul Lewis, se valeu Por outro lado, um bom jornalismo em qualquer esfe-
de técnicas viabilizadas por redes para produzir uma ra pode conquistar autoridade sem apoio institucional.
série de matérias importantes, incluindo uma na qual O processo pelo qual o jornalista conquista uma boa
analisou imagens registradas por indivíduos na cena reputação – mantendo a integridade, agregando valor
de protestos durante a reunião do G20 em Londres, em à informação para determinado público, demonstrando
2009. Ian Tomlinson, um manifestante que já tinha pro- conhecimento, revelando fontes e explicando metodo-
blemas de saúde, caiu ao chão e morreu durante a mar- logias – hoje se dá em público, em tempo real. O velho
cha, mas a versão da polícia sobre o in cidente não soava modelo de proteção de fontes – na prática, um acordo
correta para Lewis, que continuou a entrevistar gente de cavalheiros – já não basta. Hoje, o jornalista que qui-
que participara do protesto para tentar determinar a ser ter acesso a fontes sigilosas deve ser capaz de prote-
ordem dos fatos. Dias após a morte de Tomlinson, um ger a informação o suficiente para impedir que as ditas
vídeo feito por um espectador com o celular foi envia- fontes sejam identificadas por ferrenhos inimigos, do
do ao The Guardian , que preconiza a “abertura” como poder público ou não.
princípio central de seu jornalismo. O vídeo mostrava, Instituições jornalísticas precisam buscar um equilí-
de modo irrefutável, que a polícia entrara em confron- brio entre necessidades de cada jornalista e mecanismos
to com Tomlinson antes de sua morte. A importância instituídos para salvaguardar a reputação institucional.
da reportagem, o impulso da testemunha e as técnicas Embora tais mecanismos não impeçam, necessariamente,

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que o profissional construa sua reputação, a necessidade Dados e estatísticas
de transmitir informações de forma segura, rigorosa e
coerente, dentro de prazos ou nos limites de um deter- Para que o jornalismo mantenha sua relevância, gen-
minado produto, pode estar em conflito com o modo te que trabalha na área terá de melhorar seu traquejo
mais eficiente de trabalhar para o jornalista. no uso de dados. À medida que indivíduos, empresas e
Veremos essa questão em mais detalhe no trecho governos vão criando e soltando dados em volumes cada
dedicado a processos. vez maiores, vemos que disponibilidade e acessibilida-
de, no caso de dados, são coisas distintas. Entender a

Bagagem concreta, ou “ hard skills ” natureza


recem, daquilo
saber que narrativas
compor conjuntos imensos de dados ofe-
e tirar conclusões que
deem sentido a informações talvez falhas ou parciais, é
Conhecimento especializado um trabalho importante. Assim como precisa de gente
com um conhecimento maior de tecnologias da comu-
Hoje em dia, o jornalista precisa, cada vez m ais, exi- nicação e ciência da informação, o jornalismo precisa
bir um conhecimento profundo de algo além do ofício converter cientistas de dados e estatísticos em compe-
jornalístico em si. Diante da maior disponibilidade e da tências centrais dentro de seu campo de atuação.
maior qualidade de conhecimentos e comentários de Há uma relação estreita e simbiótica entre redes de
especialistas, a relativa ignorância do jornalismo pro- usuários, jornalistas e dados. Todo jornalista deve ser
fissional fica ainda mais patente. Em áreas como econo- capaz de analisar dados e indicadores que acompanham
mia, ciência, relações internacionais e negócios, a com- seu trabalho e estar ciente de que toda cifra represen-
plexidade da informação e a velocidade à qual o público ta uma atividade humana. Além disso, deve ser capaz
deseja recebê-la, já explicada e contextualizada, deixa de entender feedbacks e interpretá-los de forma corre-
pouco espaço para o típico generalista. ta, para poder melhorar o alcance e o conteúdo daqui-
O custo da contratação de especialistas com profundo lo que produz.
domínio de uma determinada área significa que, cada Em 1979, a especialista em segurança Susan Landau
vez mais, a cobertura jornalística especializada virá de estabeleceu uma distinção entre segredos e mistérios. Ao
gente para quem o jornalismo é só uma atividade a mais tentar entender por que a Revolução Iraniana pegara os
– como os criadores do SCOTUSblog, com seu escritó- Estados Unidos totalmente de surpresa, Landau obser-
rio de advocacia, ou os economistas Nouriel Roubini e vou que a comunidade de inteligência estava focada em
Brad DeLong, com seu trabalho acadêmico e de consul- segredos (buscava entender aquilo que o regime do xá
toria. O conhecimento pode ser geográfico, linguístico vinha ocultando), não em mistérios (aquilo que ocorria
ou em certa disciplina ou área de estudo. com diversos grupos fiéis ao aiatolá Ruhollah Khomeini
O valor da especialização pode estar em técnicas ou que, embora públicos, não eram muito visíveis).
habilidades de comunicação e apresentação.Profissionais Em termos jornalísticos, a cobertura mais famosa
destacados – jornalistas e fotógrafos, especialistas em presente na memória dos Estados Unidos – Watergate
áudio ou vídeo, editores de mídias sociais – vão criar – foi baseada na descoberta de segredos. Alto funcioná-
público para seu trabalho graças à capacidade de iden - rio do FBI, Mark Felt abriu a boca para o repórter Bob
tificar um mercado e de se comunicar com ele. Woodward, do Washington Post – entregou informa-
Meg Pickard, diretora de interação digital do jornal ções cruciais para a cobert ura que Woodward e o cole-
britânico The Guardian , descreve o fenômeno da cria- ga Carl Bernstein faziam do governo Nixon. O peso de
ção, pelo indivíduo, de comunidades de nicho em tor- Watergate para a autoimagem da imprensa norte -ame-
no de áreas específicas do conhecimento como geração ricana tradicional segue sendo importante, ainda que
de “microfama contextualizada”. Todo jornalista pre- muitas das grandes coberturas da última década tenham
cisa saber como criar comunidades de conhecimento e girado em torno de mistérios, não de segredos. As fal-
interesses que casem com sua especialização. catruas da Enron e de Bernard Madoff, e a manipula-
A jornalista Sara Ganin – que recebeu um Pulitzer ção da Libor pelo Barclay’s, foram expostas por gente
pela reportagem sobre o abuso sexual de menores pra- de outra área; aliás, a primeira a escrever sobre as frau-
ticado por Jerry Sandusky, ex-técnico de futebol ameri - des da Enron, a repórter da Fortune Bethany McLean,
cano em uma universidade na Pensilvânia – conseguiu não foi endeusada em parte porque aplaudi-la por ter
tal proeza devido a seu traquejo jornalístico, reforça- interpretado e escarafunchado dados de caráter públi-
do em muito pelo conhecimento que tinha do universo co significaria reconhecer que pouquíssimos membros
acadêmico que estava investigando. da imprensa de negócios faziam o mesmo.
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ESPECIAL | JORNALIST AS

Ainda que o mundo em si tenha ficado mais comple- técnica – ou seja, o jornalista precisa aprender a escre-
xo, o volume de dados disponíveis sobre muitos atores ver código. É verdade que ter verdadeira fluência em
importantes – empresas, políticos, religiosos, crimino- muitas linguagens de programação exige estudo e expe-
sos – cresceu radicalmente. Um dos principais recur- riência, algo que nem todo jornali sta vai poder – e nem
sos para a compreensão de mistérios é a capacidade de deveria – adquirir. Mas todo jornalista precisa entender,
esmiuçar dados em busca de padrões que possam e star ainda que num nível elem entar, o que é um código, qual
escondidos debaixo do próprio nariz. sua função e como se comunicar com gente que enten-
de da coisa. John Keefe, chefe de uma pequena equipe
Compreensão de indicadores e públicos de WNYC,
programadores
na observana redação
que da rádio
a admissão norte-america-
a escalões cada vez
Um número surpreendente de veículos de comuni- mais baixos já exige um domínio básico de ferramen-
cação que estudamos ainda não emprega ferramentas tas e aplicativos de programação.
de monitoramento em tempo real como Chartbeat ou Um jornalista ouvido por nós, que trabalha em um
Google Analytics – ou, o que é mais comum, não garan- ambiente mais técnico do que a maioria, apontou a fal-
te o acesso de todo jornalista a esses recursos. Entender ta de programadores como um entrave importante ao
como o conteúdo jornalístico é recebido, saber o que progresso de organizações jornalísticas. “Até na redação
torna algo viral e poder confer ir o que é lido, ouvido ou com mais recursos a proporção de programadores e jor-
visto (e por quem) são coisas im portantes para o jorna- nalistas não passa de um para dez, o que é muito pouco.
lismo. E podem, embora não necessariamente, levar à E a qualidade de muitos programadores nas redações
manipulação do conteúdo para aumentar o número de é bem inferior à de profissionais que trabalham para
pageviews ou de visitantes únicos (merece considera- empresas de tecnologia como Facebook e Twitter ”, diz.
ção a decisão do site norte-americano Gawker , cujo edi- Na maioria das instituições, as altas esferas do coman-
tor, A.J. Daulerio, fez c ircular um memorando deixan- do dão importância a competências comerciais e edit o-
do clara a decisão de botar o pessoal para trabalhar, em riais, não ao domínio tecnológico. É algo que preocu-
esquema de rodízio, em uma tática de geração de trá- pa, pois vemos a crescente utilização de plataformas
fego chamada “ traffic whoring ”) Identificar com fran- independentes que poderiam fornecer um excelente
queza alvos e metas, saber distinguir dados relevantes conjunto de ferramentas para jornalistas (para muitos,
de irrelevantes e reagir retorno recebido são parte do o Twitter seria a ferramenta mais útil para o jornalis-
jornalismo sustentável – e não sua ruína. mo desde o surgimento do telefone), mas que não são
O monitoramento de tendências técnicas e de tráfego inerentemente jornalísticas. Até para o jornalista que
conduz a práticas mecânicas – coisas como otimização nunca vai escrever uma linha de código para uso diá-
de sites (testar links e títulos distintos para garantir a rio, dominar o bê-a-bá da tecnologia é tão importante
melhor posição possível para um artigo em resultados quanto entender o básico da economia.
de buscas no Google) – que não contribuem necessa-
riamente para a imagem do jornalismo. Por outro lado, Narração
facilitar o acesso de um determinado público a um con-
teúdo jornalístico sujeit o a filtros é prestar um serviço. Escrever, filmar, editar, gravar, entrevistar, diagramar
O fato de que o público chega a notícias cada vez mais e produzir seguem sendo a base do ofício jornalístico.
por meio de links compartilhados em redes sociais, e não Não falamos muito sobre esses dotes porque não espe-
por agregadores de notícias, tem implicações para repór- ramos que a capacidade elementar de saber identificar
teres e editores. A ignorância geral sobre o modo como e relatar uma história relevante vá mudar, e tudo isso
o público consumia a informação n ão era um problema segue sendo fundamental para o arsenal de um jornalis-
durante o reinado do modelo industrial. Já no mundo ta. Parte da “alfabetização” tecnológica de um jornalis-
fragmentado e solto de hoje, saber como o público con- ta significa entender como cada uma das competências
some a informação, e se o que você escreve, grava ou acima pode ser afetada por novidades no plano tecnoló-
fotografa chega a quem deveria chegar, é algo crucial. gico ou mudanças no comportamento humano. A narra-
tiva pode ser criada com novos recursos de agregação,
Programação o que implica a compreensão de fontes e a checagem
de material diverso. Um aspecto do trabalho com redes
O jornalismo tem duas grandes barreiras de lingua- e multidões é a capacidade jornalística de agregação.
gem a transpor. Uma é a da estatística e a da capacida- Embora muito jornalista vá torcer o nariz para o exem-
de de interpretar dados. A outra é a da competência plo a seguir, ao falar das fotos de “bichos decepcionados”

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que turbinam o tráfego de seu site, Jonah Peretti (do A síndrome do hamster e Flat Earth News
BuzzFeed ) martela a tese de que é preciso muita habi-
lidade para determinar o que torna um conteúdo ape- O processo do jornalismo vem sofrendo uma transfor-
tecível para que outros o compartilhem. Exercícios de mação tão radical pelas mãos de forças tecnológicas e
curadoria e agregação mais sofisticados (como o Brain econômicas que já não há algo que possa ser descri-
Pickings, de Maria Popova) podem provar o mesmo de to como “uma indústria” na qual o jornalista atuaria.
forma mais cerebral ao exibir ensaios sobre a natureza da Nos Estados Unidos, já não há um plano comum de
beleza em vez de cães que são o focinho de líderes mun- carreira, um conjunto de ferramentas e modelos de pro-
diais – embora a competência subjacente seja análoga. dução ou uma categoria de trabalhadores estável e pre-
visível. Antigamente, um emprego no Washington Post
Gestão de projetos pressupunha uma determinada trajetória profissional
– igual a um posto na General Motors. O cargo mais
Com o surgimento de modelos mais eficazes de jor- baixo de redator ou repórter de uma editoria podia ser
nalismo a partir da reconstrução do processo existen- inserido numa trajetória que refletia o produto em si.
te, algo que muitos vêm observando é que o jornalista O que um jornalista fazia n a era industrial era definido
está sendo obrigado a deixar o mundo no qual toda sua pelo produto: um redator de títulos, um repórter, um
atividade era focada nos assuntos que cob ria. Agora, há editor, um colunista. Quando o fechamento passa a ser
muito mais cois as a conside rar. Steve Buttry, que chefia constante, e quando a notícia como “unidade atômica
o programa de capacitação da Digital First Media e está do jornalismo” é questionada, o que o jornalista faz dia-
sempre falando de mudanças na redação em seu blog, riamente passa a depender mais do desenrolar dos acon-
chama isso de “capacidade de gestão de projetos”. Ele tecimentos e do público que consome essa informação.
mesmo explica: é a capacidade de “estar a par de todos Tanto em montadoras de veículos como em veículos
os aspectos do processo e de sab er juntar isso tudo para de comunicação tradicionais, há bem menos ocupações
produzir algo que funcione”. do que antes, e em geral distintas. Embora compartilhe
Uma ideia editorial já não tem a primazia que um muitas das características de atividades que sofreram
dia teve num produto estático como um jornal ou bole- uma revolução, como a fabricação de veículos, o jorna-
tim de notícias. Agora, a ideia também precisa funcio- lismo passou por uma mudança muito mais profunda em
nar à luz de um grande número de variáveis, não raro sua constituição. A General Motors ainda fabrica car-
com subsídios de terceiros, e de um jeito tecnologica- ros – que por ora ainda têm quatro rodas, um motor e
mente viável e condizente com o que o público pede. um chassi. Já aquilo que o jornalismo pode ser e o pro-
No novo formato, uma matéria já não é uma unidade, duto do trabalho de um jornalista são muito mais flui-
mas sim um fluxo de atividades. Com a cont ínua redu- dos, pela própria natureza de tecnologias da informa-
ção dos quadros nas redações, planejar a evolução de ção e distribuição.
uma cobertura, saber por que um t recho de código está No processo de migração do jornalismo de uma ati-
sendo escrito ou imaginar qual será o resultado, objeti- vidade que exigia um maquinário industrial e produ-
vo ou impacto de um conteúdo jornalístico específico zia um produto estático para outra na qual liberdade e
passa a ser importante – bem como defini r parâmetros recursos individuais crescem e respondem a necessida-
para monitorar essas metas internas. O corte de recur- des de usuários, a dúvida é saber como cada jornalista
sos nas redações, somado à intensificação da cobertura vai influenciar o próprio processo de trabalho. As prin-
de eventos já bem cobertos – como as primárias presi- cipais diferenças nesse processo são claras:
denciais nos Estados Unidos ou os Jogos Olímpicos –,
produz uma desproporção na cobertura e um desper- •
Prazos e formatos de produção de conteúdo já
dício de dinheiro em atividades redundantes. não são delimitados.
Um tema central deste dossiê é mostrar como o jorna- • Localização no mapa perde relevância na coleta
lista terá de cultivar a capacidade de colaboração – com de informações e na criação e consumo do con-
tecnologias, multidões e parceiros – para poder lidar teúdo jornalístico.
com a considerável e crescente tarefa de narrar aconte- • Transmissão de dados em tempo real e ativida-
cimentos. Esse trabalho multidisciplinar e colaborativo de em redes sociais produzem informações em
deve começar pela redação (de onde deve fluir o novo estado bruto.
conjunto de competências organizacionais). Para tan- • Feedback em tempo real influencia matérias.
to, o jornalista precisará de mais liberdade para refle- • Indivíduos ganham mais importância do que
tir sobre processos gerais do jornalismo e aprimorá-los. marca.

ESPECIAL| REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 51


ESPECIAL | JORNALIST AS

Como todos sabemos, essas tecnologias também aba- deixou a Associated Press para criar o Storify . Ory
laram velhos modelos de negócios do jornalismo. As Okolloh montou a equipe que criou o Ushahidi e, mais
condições nesse meio levaram jornalistas a sentir impo- tarde, licenciou o software de mapeamento de multi-
tência, e não mais influência sobre a própria vida pro- dões para redações; é que seu weblog, o Kenyan Pundit ,
fissional. O que Dean Starkman chama de giro inces- não funcionou bem como plataforma para denunciar
sante da “roda do hamster” (correr atrás do público ao mundo a violência étnica que vinha ocorrendo na
transitório com a rápida publicação de matérias cha- esteira das eleições de 2007 no Quênia.
mativas) e o que o jornalista britânico Nick Davies É interessante observar que em 2012, um ano de elei-
expõe no
mesmo livro Flat Earth News são descrições de um
fenômeno. ções presidenciais
nalistas que mais nos Estados
geraram Unidos, nos
audiência vários dos jor-de
veículos
Reciclar comunicados de imprensa e produzir mais comunicação mais tradicionais do país não eram das
com menos sem nenhuma mudança fundamental em redações, mas sim gente que se proje tou por rotas rela-
processos são, sabidamente, práticas inimigas do bom tivamente experimentais – e por conta própria. Nate
jornalismo. A nosso ver, no entanto, o jornalismo do Silver se dedicava à consultoria econômica e a montar
futuro dificilmente seguirá esse modelo, pois pagar modelos estatísticos para o beisebol.
jornalistas para produzir informações de baixo valor é O blog de política que criou – o FiveThirtyEight.com ,
insustentável. Se há um espaço e um modelo de negó- incorporado em 2010 ao New York Times – era toca-
cios para a produção às pressas de conteúdo redun- do como um projeto de caráter basicamente anônimo,
dante, o mais provável é que tal modelo tenha suces- nas horas livres.
so nas mãos de empresas como Demand Media ou Há paralelos com a trajetória de Ezra Klein, comen-
Journatic, que se valem de algoritmos e de mão de tarista de economia e política que criou o primeiro
obra barata, terceirizada. blog aos 19 anos e levou sua plataforma (a Ezra Klein)
Um jornalista que produza conteúdo de qualida- primeiro para o American Prospect e, depois, para o
de, independentemente de como é bancado, terá mais Washington Post . Nos dois casos, o risco da inovação e
autonomia e controle sobre o próprio trabalho. E terá, o laborioso processo de angariar público e achar uma
a seu dispor, um público maior e mais diversificado, a posição singular no mercado ficaram a cargo de indiví-
custo baixo ou zero. duos que blogavam com software gratuito – e cujo pro-
Nos últimos tempos, o melhor exemplo de um jor- jeto acabou sendo encampado por veículos de comu-
nalista que soube explorar oportunidades abertas pela nicação que, mesmo dotados de recursos maiores e de
tecnologia fora dos processos da redação talvez seja o uma bela reputação, não tinham conseguido incubar
de Andy Carvin, da emissora norte-american a de rádio esse tipo de talento.
NPR. Instalado em Washington, Carvin tuitou a rit- A próxima fase da evolução verá surtos semelhan-
mo tão frenético sobre a Primavera Árabe em 2011 que tes de genialidade e empreendedorismo individuais
virou o centro de uma rede para o público nos Estados em novas áreas – como visualização, criação de dados,
Unidos e outros jornalistas que acompanhavam os fatos. partilha, agregação. As redações já não encaram blo-
Carvin não se limitou a repetir informações obtidas por gs, Twitter ou coberturas ao vivo com o mesmo receio
outros (como um repórter gerando conteúdo se m parar e incompreensão do passado (e “passado”, aqui, signi-
a partir de material de agências); o que fez, basicamen- fica cinco anos atrás).
te, foi tornar público um processo de bastidores similar Em cinco anos mais, receber dados em te mpo real de
à intervenção de editores em uma matéria. Só que em vastas redes de sensores, criar conteúdo automatiza-
vez de permanecer restrita a editores e jornalistas da do, adquirir ou criar tecnologias que reflitam valores
NPR, e ao conteúdo produzido pela rádio, essa inter- jornalísticos, estabelecer parcerias com diversos espe-
venção foi publicada em tempo real no Twitter . Carvin cialistas e instituições e fazer experiências com agre-
acha que foi capaz de enveredar pelo novo caminho em gadores, animadores e performers renomados poderia
parte porque seu cargo oficial – diretor de estratégia ser tão corriqueiro quanto licenciar um blog.
em mídias sociais da rádio – não era visto como edito-
rial em primeiro lugar.
Embora haja muitos outros casos de gente que cha- Como vai mudar o trabalho do jornalista?
coalhou velhos processos do jornalismo, é raro que os
melhores expoentes dessa turma tenham tido liberdade É difícil saber exatamente como vai ser a redação mais
suficiente nas respectivas instituições para desenvolver enxuta, mas já dá para dizer que o trabalho do jor-
seu trabalho (como teve Andy Carvin). Burt Herman nalista típico sofrerá certas mudanças ao longo dos

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próximos anos. Mais uma vez, essa mudança terá gra- toda etapa do processo. Uma redação já não pode arcar
dações: o papel de um editor de textos na revista The com gente em altos cargos que não produza conteúdo.
New Yorker e o processo de produção ali den tro podem Todo editor devia, no mínimo, estar agregando conte-
mudar menos ao longo dos próximos anos do que o de údo e dando links para material produzido ou não pela
um gerente de comunidade ou repórter de dados no organização, fazendo uma meta-análise do processo e
site Nola.com . de fontes, dando continuidade à cobertura com o cul-
O jornalista seguirá atuando em um ambiente de alta tivo e a recomendação de fontes em público.
imersão, adaptando sua rotina de trabalho a um mundo
de conversação e informação contínuas, em tempo real
– o que pode causar tanto cansaço quanto dispersão.
A meta final desse envolvimento contínuo, no entan-
to, é a produção de jornalismo de qualidade, relevân-
cia e impacto elevados. A avaliação de metas e resul-
tados do jornalismo terá caráter rotineiro e público.
A presença de indicadores e dados, ligados tanto ao
mundo externo como à própria atividade do profissio-
nal, serão parte da realid ade cotidiana. Feeds de infor-
mações entregues em tempo real – um Twitter de dados
– terão um papel maior em decisões editoriais e em
matérias. Caberá ao jornalista definir a quem perten-
cem esses dados, determinar o que pode ser terceiriz a-
do para outras tecnologias comerciais e o que precisa
ser mantido. Programar algoritmos, também.
Jornalistas especializados – animadores, criadores
de charges interativas, redatores, “videomakers”, espe-
cialistas em análise estatística de eleições, especialistas
em interação – estarão sempre buscando entender as
mudanças tecnológicas em sua área e provando novas
ferramentas e técnicas. A evolução do meio editorial
se dará à velocidade da internet, não à velocidade de
redações digitais.
Um jornalista vai dedicar mais tempo a relações de
colaboração – relações que podem envolver tecnólo-
gos (para a c riação de sistemas melhores), especialistas
ou acadêmicos em sua área e outros jornalistas (para
a cobertura de fatos, a criação de software e a edição e
agregação do trabalho de terceiros).
Embora todo jornalista já deva estar acompanhan-
do o desdobramento de fatos e tomando parte em dis-
cussões públicas em redes sociais ou seções de com en-
tários, sua capacidade de agregar valor para usuários
com essas técnicas será, cada vez mais, parte de seu
valor como profissional.
Hoje, todo jornalista pode publicar por conta própria.
Uma óbvia consequência da automação da redação é a
diminuição do valor e da utilidade do papel de edito-
res. Visionários no alto das organizações seguirão dan-
do o tom e ditando o rumo editorial de seus veículos,
e talvez cada assunto venha a ter um editor especiali-
zado. O tempo poupado com a organização e a edição
automatizadas de textos, no entanto, reduz drastica-
mente a necessidade de editores para supervisionar

ESPECIAL| REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 53


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54 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


PARTE 2

Instituições

DUAS GRANDES PUBLICAÇÕES ESPECIALIZADAS NA COBERTURA da atividadejornalística nos Estados


Unidos são a tradicional Columbia Journalism Review (CJR), fundada em 1961, e uma revista mais
recente, aNieman Journalism Lab, instalada desde 2008 no Nieman Cent er, parte da Harvard University.
Ambas se erguem sobre a paisagem normalmen te árida de bastidores de redações e críticas à imprensa.
Ao lê-las, no entanto, fica a dúvida se o setor que cobrem realmente é o mesmo.

Ao narrar em suas páginas o triste declínio de uma leva Uma história de declínio e colapso institucional
: nos esta-
de publicações e instituições tradicionais da imprensa dos norte-americanos de Michigan, Louisiana e Alabama,
norte-americana (incluindo jornais como Philadelphia a Advance Publications está abandonando a publicação
Inquirer e San Jose Mercury News), a CJR volta e meia diária de jornais, reduzindo o número de dias da sema-
soa como um tributo a um mundo extinto. Já a Nieman na em que imprime um exemplar em papel. Em Chicago,
Journalism Lab é pródiga em notícias sobre as últimas Boston e San Francisco, organizações jornalísticas se deba-
novidades no ofício jornalístico e novas organizações de tem com questões éticas e logísticas trazidas pela cres-
mídia, muitas delas com semanas de vida (ou que ainda cente terceirização da cobertura local para “fazendas de
nem saíram do papel). Embora a Nieman Journalism Lab conteúdo” (e para as Filipinas). O respeitadoPhiladelphia
traga sua cota de fatalismo e a CJR prospecte um pouco Inquirer está no quinto dono em seis anos. Até oNew York
o futuro, o contraste é claríssimo para qualquer pessoa Times, embora revigorado pelo modelo de assinatura digi-
interessada em ficar a par dos últimos desdobramentos tal, trava uma batalha com sindicatos para tentar conge-
no meio jornalístico. lar aposentadorias, enxugar planos de saúde e aumentar
Quando se trata de instituições de imprensa, o proble- a carga horária da redação. E esses são só os destaques
ma – e razão para que a discussão em geral seja tão pola- da semana. Dois anos atrás, discutíamos o fechamento de
rizada – é que tanto a CJR quanto a Nieman Journalism jornais em Denver e Seattle. E daqui a dois anos? Como
Lab estão contando uma história real. O momento atual observamos na introdução, ainda que a idústria jornalís-
é tanto de desgraça como de ressurgimento para institui- tica se estabilize, dificilmente voltará a registrar a mes-
ções que abrigam o trabalho jornalístico. ma rentabilidade de antes de 2005.
A história que contamos a nós mesmos sobre institui- Uma história de renascimento institucional : a histó-
ções jornalísticas é, em suma, mais de uma. Aliás, são três ria do declínio não é, contudo, a única. Embora projetos
histórias, todas transcorrendo mais ou menos simultane- como Talking Points Memoe ProPublica costumem figu-
amente. Há uma história de declínio e colapso institucio- rar em tratados sobre o futuro do jornalismo como sím-
nal, uma história de renascimento institucional e, talvez a bolo do ressurgimento institucional que ocorre paralela-
mais importante para nossos propósitos, uma história de mente no setor, pelos padrões do universo digital esses
adaptação institucional. Onde termina a morte e começa sites já seriam veteranos. Pode levar anos para que um
o renascimento, qual o grau de responsabilidade de novas fato como a decisão da Suprema Corte norte-americana
instituições pelo declínio das velhas, se há
mais a ganhar ou sobre a reforma da saúde nos Estados Unidos traga maior
a perder e como fazer o pêndulo oscilar para o “ganho” são visibilidade a um site como o SCOTUSblog. O mesmo vale
argumentos que se confundem, já que não estamos assistindo para a cobertura das eleições presidenciais norte-ameri-
ao desenrolar de uma sóhistória. Estamos assistindo a três. canas por Nate Silver no blog FiveThirtyEight.com, hoje

ESPECIAL| REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 55


ESPECIAL | INSTITUIÇÕES

parte do New York Times. Um rápido exame de institui- efeito da internet sobre o ecossistema do jornalismo nor-
ções consideradas para um prêmio da Knight Foundation te-americano volta e meia seja pintado como anti-insti-
(o Knight News Challenge) em junho de 2012 revela uma tucional, destinado basicamente a reduzir ou até destruir
meia dúzia de projetos – Behavio, Signalnoi.se, Recovers. a viabilidade de instituições, a realidade é mais comple-
org, Tor Project, alguns novos, outros nem tanto – dedica- xa. Embora tenha de fato abalado muitas instituições, a
dos a levar informações de cunho jornalístico à socieda- internet também ajudou a criar várias outras. Em gran-
de. E essas são só as organizações citadas em uma roda- de medida, o futuro da indústria jornalística será decidi-
da da disputa; além delas, havia muitas outras. do não por aquilo que está sendo extinto, nem por aquilo
O atualem
expressa consenso sobre
uma série essas novas
de estudos, instituições
incluindo – opiniãoções
um relatório que está chegando,
passam mas pelo
a ser velhas modo como
e estáveis novas
e como institui-
velhas insti-
de 2011 da Federal Communications Commission (FCC) tuições se tornam novas e flexíveis.
intitulado “The Information Needs of Communities”, Neste ponto, é importante ter duas coisas em mente.
e num estudo sobre o mercado em Baltimore feito pelo A primeira é que, embora iremos frisar a relativa inflexi-
Project for Excellence in Journalism – é que nenhuma bilidade de instituições de grande porte, não queremos
delas irá substituir a cobertura jornalística hoje feita por dizer que toda instituição, seja lá de onde for, seja incapaz
veículos de comunicação tradicionais (e em declínio). de mudar. Nossa tese é outra: mudar instituições jorna-
No que tange ao volume de conteúdo produzido, não dis- lísticas não é impossível, mas é difícil – e mais difícil do
cordamos. Achamos, contudo, que o nó é mais embaixo; que um observador externo poderia logicamente esperar.
mais adiante, abordaremos alguns dos motivos para tal. Argumentos sobre a eficiência econômica da mudança, o
Uma história de adaptação institucional : o foco no declí- valor normativo da mudança e o imperativo administra-
nio e no ressurgimento também oculta uma terceira his- tvio da mudança são, em geral, corretos – mas, do ponto
tória – história que, no final, pode ser a mais importante de vista institucional, irrelevantes.
de todas. A pergunta é como um novo ator no meio jorna- A segunda coisa a lembrar é que instituições jornalís-
lístico chega ao ponto no qual se pode dizer que atingiu ticas capazes de se adaptar seriam uma das mais valiosas
estabilidade organizacional? Como passa de um precário fontes de crescimento e evolução no ecossistema jorna-
projeto a membro legítimo da comunidade jornalística? lístico de modo geral. É óbvio que, onde quer que ocor-
Como veremos a seguir, uma das marcas de uma institui- ra, a adaptação tem tremendo impacto; grandes institui-
ção é poder enfrentar idas e vindas de pessoal sem o ris- ções jornalísticas são, contudo, como um navio de guerra:
co de extinção organizacional. Como isso ocorre, e como ainda que demorem para mudar de curso, uma vez com-
uma organização jornalística emergente vira uma insti- pletada a volta são capazes de avançar com força e velo-
tuição, é uma das questões centrais diante do jornalismo cidade impressionantes. Editores e gestores de meios de
nessa transição para a era digital. comunicação devem ter em mente que muito da mudan-
É preciso indagar, ainda, como organizações jornalísticasça potencial nesse ecossistema depende de sua capacida-
tradicionais estão reformulando processos para seadaptar de de pensar de forma distinta.
ao novo cenário da informação. Um estudo sobre oNew
York Times a ser publicado em breve porNikki Usher, pro-
fessor assistente da George Washington University, pro- Afinal, o que são instituições?
vavelmente ajudará muito a esclarecer a questão, embo-
ra também devamos começar a sintetizar saídas adotadas O que, exatamente, são instituições? O economista Geoffrey
por organizações criativas para se adaptar à era digital. M. Hodgson sustenta que instituições são “a forma de
Estudiosos precisam partir de uma constatação socioló- estrutura que mais importa no plano social, por consti-
gica básica – o fato de que a maioria das instituições jor- tuírem a matéria da vida social”. Segundo Hodgson, uma
nalísticas busca assimilar a ruptura com o mínimo possí- instituição pode ser definida como “um sistema de normas
vel de mudanças em processosoperacionais e autoimagem sociais estabelecidas e dominantes que estrutura intera-
ideológica – e começar a indagar como instituições criati- ções sociais”. Na análise do sociólogo Jonathan Turner,
vas contornam essas limitações sistêmicas, autoimpostas. a coisa é um pouco mais elaborada. Segundo ele, insti-
Ao pensar em instituições jornalísticas, estamos contan- tuições são “um complexo de posições, papéis, normas e
do a nós mesmos uma série de histórias ao mesmo tempo. valores que, contido em certas estruturas sociais, organi-
Embora as histórias de declínio e renascimento formem za padrões relativamente estáveis de atividade humana”.
o grosso da discussão sobre o “futuro do jornalismo”, há Um tema complicado, sem dúvida. Mas o que importa,
uma relativa deficiência quando o assunto é entender a para nossos propósitos aqui, é entender que uma institui-
terceira história, a da adaptação institucional. Embora o ção deve ser vista como algo que, pelo menos em teoria,

56 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


pode estar situado fora de uma determinada estrutura físi- [nova redação]. A cada repetição de processo, ao analisar
ca. Instalações da empresa e até sua folha de pagamentos algo, você só sabe como funciona quando algo dá errado.”
não são o substrato da matéria institucional. Instituições O lamento geral poderia ser assim resumido: a presen-
são, antes disso, uma série de normas sociais que criam ça de processos é um obstáculo maior à mudança do que
padrões estáveis decomportamento. É óbvio que trabalhar a ausência de dinheiro. Não chega a surpreender; como
junto com outros numa redação ou ganhar para realizar observamos em nossa definição de instituições, a finali-
certo trabalho não prejudicam a formação e o fortaleci- dade de esquemas institucionais é incutir e racionalizar
mento dessas normas sociais, mas dinheiro e proximida- normas padronizadas de conduta – em outras palavras,
deTambém
física nem sempre
seria são encarar
um erro o essencial.
a instituição como mero dificultar a mudança.
Aqui e ali, essa frustração com a lentidão da mudan-
agrupamento de indivíduos racionais, cada qual tomando ça institucional se converte em um niilismo organizacio-
a decisão consciente de que aderir a esquemas institucio- nal generalizado. Por essa lógica, se arranjos institucio-
nais é a melhor maneira de maximizar o próprio interes- nais estão ruindo, e se organizações em ruína se recusam
se. Como disseram os sociólogos Walter Powell e Paulo a encarar a realidade e mudar, melhor seria destruí-las
DiMaggio, “embora sem dúvida sejam resultado da ati- de vez e começar do zero. O problema com esse raciocí-
vidade humana, instituições não são necessariamente o nio anti-institucional é que, paradoxalmente, aquilo que
produto de uma vontade consciente (...) o novo institucio- torna uma organização conservadora é justamente o que,
nalismo na teoria da organização e na sociologia traz uma em certos casos, faz com que seja tão forte na produção
rejeição do modelo do ator racional, a adoção de expli- do “núcleo duro” da notícia.
cações cognitivas e culturais e um interesse em caracte- Resta saber, portanto, que tipo de jornalismo é via-
rísticas de unidades de análise supraindividuais que não bilizado por instituições jornalísticas e se há um jeito
podem ser reduzidas a somatórios de motivos individu- de preservar suas possibilidades (“ affordances ”) positi-
ais ou a consequências diretas destes”. Em outras pala- vas e, ao mesmo tempo, abri-las à evolução e à mudan-
vras, embora entender o indivíduo seja importante para ça. Esse paradoxo institucional tem solução? À recei-
entender a instituição, há, em instituições, um resíduo ta da produção de notícias, instituições adicionam os
acumulado que impossibilita sua redução a comporta- seguintes ingredientes: influência, capital simbólico,
mentos individuais. continuidade e margem de capacidade. De modo geral,
Tudo isso nos leva a um terceiro argumento – argumen- instituições utilizam esses ingredientes para produzir
to capaz, a nosso ver, de lançar luz sobre a crise que hoje
dois tipos distintos de informação relevante para uma
assola o jornalismo. Citamos, acima, a observação de um democracia: informações genéricas sobre acontecimen-
acadêmico de que instituições organizam “padrões rela- tos públicos e informações mais especializadas destina-
tivamente estáveis de atividade humana”. A estabilida- das a exercer “impacto” sobre outras instituições sociais.
de tem suas vantagens, e discutiremos algumas delas a A confusão sobre o propósito do jornalismo, e a tendên-
seguir. Mas, como afirmaram Powell e DiMaggio, “condu- cia jornalística a mesclar deliberadamente essas duas
tas e estruturas institucionalizadas normalmente demo- categorias de produção de informação, dificulta a defi-
ram mais a mudar (...) esquemas institucionais são repro- nição da melhor forma de preservar influência, capital
duzidos porque, muitas vezes, indivíduos são incapazes simbólico, continuidade e margem em uma nova con-
de sequer conceber alternativas adequadas”. juntura tecnológica.

Por que instituições são importantes Imprensa, burocracias e cobertura setorista

Durante entrevistas com jornalistas em uma série de con- As origens do jornalismo norte-americano moderno
textos institucionais, ficamos impressionados com o con-remontam à década de 1830, quando uma crescente leva
traste entre o orgulho que exibiam pela organização na de publicações populares – a chamada “penny press” –
qual trabalhavam e o sentimento de frustração que mui- buscou padronizar e racionalizar a produção regular de
tos manifestavam ao falar do ritmo moroso da adaptação notícias. Em vez de depender da correspondência vinda
organizacional. “Não acho que falte vontade de mudar do exterior, de notícias que desembarcavam nos portos da
nessas grandes organizações”, disse um repórter. “Mas colônia pelas mãos de gente que cruzava o Atlântico, ou de
o custo e o risco são muito altos. Pode ser um desastre fatos reciclados de outros jornais em circulação, jornalis-
financeiro, é verdade, mas também pode ser um desastre tas empregados pela “penny press” cobriam áreas especí-
cultural na redação. E ninguém sabe como deve ser essa ficas: os tribunais, a delegacia, a política. E o faziam, em
ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 57
ESPECIAL | INSTITUIÇÕES

parte, porque cada instância dessas supostamente gera- desaparecendo é a cobertura setorista e a estrutura
va, em caráter regular e previsível, informações de inte- setorista de um jornal diário.
resse da crescente massa alfabetizada de consumidores
de notícias. A infância do jornalismo é, em suma, a histó- A tese de Simon é interessante, embora seja em grande
ria de uma nova instituição que buscava instituições mais medida circunstancial. É possível definir com mais pre-
estabelecidas para alimentar a “roda de hamster” do sécu- cisão exatamente o que uma instituição faz? E, uma vez
lo 19. O acadêmico Matthew Carlson, especializado em que isso tenha sido precisado, é possível descobrir uma
estudos do jornalismo, generaliza o argumento históri- maneira de preservar suas funções básicas, mesmo em

co, invocando
segundo o qualestudo anterior
a “afinidade de Mark Fishman
burocrática” (1980)
leva organiza- uma fase de transição? Eis a seguir quatro fatores que
definem o valor agregado de uma instituição jornalísti-
ções jornalísticas burocraticamente organizadas a buscar ca quando comparada com uma amostra aleatória de jor-
outras burocracias para obter informações. nalistas isolados.
Sociólogos costumam apontar as consequências nega-
tivas dessa afinidade burocrática. “Embora jornalistas Influência
não busquem intencionalmente fortalecer detentores do
poder, o jornalismo legitima instituições decontrole social Se a meta fundamental do jornalismo é levar ao públi-
ao apresentar lógicas institucionais ao público como [ se co a informação de que este necessita para se autogover-
fossem] leis da natureza”, diz Carlson. Jornalistas, por sua
nar, e se parte dessa informação é o conhecimento que
vez, costumam frisar a função de cobrança de prestação advém do monitoramento vigoroso e não raro hostil de
de contas (“accountability”) incorporada a essa vigilância uma série de instituições sociais, por que alguém revesti-
institucional; “de olho constante em burocracias”, como do de algum poder falaria com um jornalista? Por que os
alertou o repórter David Burnham em artigo de 1998 para alvos desse olhar vigilante não se comunicariam simples-
a Nieman Reports. mente uns com os outros, e com o público diretamente,
Mas por que instituições jornalísticas seriam particu- evitando qualquer contato com profissionais da impren-
larmente qualificadas para cobrir grandes burocracias sa? Em parte, por interesse próprio: autoridades públicas
e organizações governamentais e empresariais? David e outros indivíduos com algum poder sabem quefalar com
Simon explica: a imprensa é sempre uma oportunidade, por mais limi-
tada que seja, de “dar sua versão dos fatos”, ainda que o
É suficientemente difícil exigir que órgãos [do Estado] tiro saia pela culatra. Mas detentores do poder também
e lideranças políticas prestem contas de seus atos falam com a imprensa por temer as consequências de se
numa cultura que já não tem paciência nem dispo- manter calados.
sição para lidar com a dinâmica de instituições. No Instituições jornalísticas, pelo menos em sua versão
momento, temos dificuldade, como sociedade, até do século 20, tinham um punhado de características que
para reconhecer nossos problemas, que dirá para aumentavam seu poder na comparação com outras estru-
solucioná-los. Na falta de uma imprensa profissional turas de governança pública. A primeira era a tese de que
devidamente financiada – imprensa que cubra buro- sua autoridade era diretamente proporcional a seu públi-
cracias civis com constância e tenacidade –, nossas co de massa – a tese da influência. Um grande público,
chances no futuro serão menores ainda. nesse caso, era garantia de poder, já que se supunha que
leitores e a “opinião pública” eram moldados pelo jorna-
Organizações que estão surgindo na era digital, alega lismo em grande escala. É irônico que a raiz dessa equi-
Simon, não estão preparadas para cumprir essa função: valência entre audiência e poder não esteja na ascensão
da “penny press”, mas na era da chamada “party press”
A blogosfera, por sua vez, não chega a ser um fator (a imprensa partidária que a precedeu), quando era mais
nesse tipo de cobertura. A maioria daqueles que direta a correlação entre a circulação de um veículo e a
dizem que o jornalismo das novas mídias está cres- força de um partido numa determinada área. Isso posto,
cendo (explodindo até), em um surto democráti- a era da comunicação de “massa” trazia a ideia de que
co de cobertura igualitária, de todo ângulo possível, as massas respondiam à conduta do jornalismo e por ela
simplesmente nem menciona a cobertura jornalís- eram influenciadas.
tica setorista que inclui juízo qualitativo e análise. Hoje, a ideia da influência, ao menos como corolário do
Há mais informação em estado bruto, é verdade. E porte da audiência, passa por mudanças. Embora ninguém
mais opinião. E há, sim, mais sites novos com con- negue que instituições jornalísticas atuais sigam sendo
teúdo de pouca consequência (...) [mas] o que está excepcionalmente fortes em sua capacidade de mobilizar

58 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


a opinião pública e punir políticos desvirtuados, a frag- dificuldades econômicas ou foram as dificuldades econô-
mentação do público consumidor de notícias lançou por micas que levaram à queda na reputação?), o fato é que
terra a velha noção do público como massa. De novo, não tendências nessa área continuam indicando um só movi-
estamos negando que instituições tradicionais de comuni- mento: o de queda. Assim como a matemática do capital
cação tenham um grande público na internet, como ges- monetário, a matemática do capital simbólico do jornalis-
tores desses sites não cansam de repetir ao comparar o mo parece vítima de uma crise estrutural, não conjuntu-
número de visitantes únicos e pageviews dessas páginas ral. No século 21, não só jornalistas, mas chefes e execu-
ao de pequenos blogs. O que mudou não é o tamanho do tivos de redações, terão de refletir profundamente sobre
público
da propriamente
a relação dito, mas
entre instituição o modo– como
e público entre oé jornalis-
entendi- essas mudanças institucionais.
mo e a imagem que este faz do público. Mudanças nessa Continuidade
imagem do público têm profunda relação com uma segun-
da leva de transformações: o declínio do capital simbóli- Instituições jornalísticas existem tanto no tempo como
co de instituições jornalísticas tradicionais. no espaço. Pode ser útil pensar na continuidade como a
“influência acumulada distribuída ao longo do tempo”. É
Capital simbólico bem possível que este seja o mais importante dos quatro
ingredientes da “sopa” institucional, embora normalmen-
Além da diminuição de seu capital financeiro, insti- te seja o menos teorizado. Continuidade significa poder
tuições jornalísticas testemunharam também a queda decidir cobrir um certo fato, setor ou segmento da socie-
de uma segunda forma de capital: o capital reputacional. dade de forma persistente ao longo do tempo, mesmo com
Parte da autoridade histórica de instituições jornalísti- alterações no time de jornalistas. O jornal Philadelphia
cas não pode ser atribuída a indicadores de fácil quanti- Inquirer cobre o crime na cidade da Filadélfia desde que
ficação como porte do público, faturamento ou honrarias foi fundado – cobertura que não cessa quando o princi-
como um Prêmio Pulitzer. No longo decorrer da história, pal repórter da editoria de polícia se aposenta. Em tese,
o século 20 foi testemunha de uma grande transforma- ao menos, o meio é a instituição que monitora a violên-
ção em instituições jornalísticas, que passaram de veícu- cia na cidade. É essa a função básica dos “padrões está-
los panfletários e não raro escandalosos de informações veis de comportamento” citados lá atrás, quando da defi-
úteis e publicidade a sóbrios guardiões da democracia. nição de instituições – a tese de que um processo existe
É um exagero, é claro, mas não totalmente injustificado. independentemente do indivíduo.
As razões para a mudança fogem ao escopo do presen- Partindo de uma analogia feita por Leo Downie e
te ensaio, mas são de caráter tanto cultural e sociológi- Michael Schudson num estudo de 2009 intitulado “The
co como econômico; o mito de Watergate marcou mais Reconstruction of American Journalism”, podemos dizer
o culminar de uma recuperação de longo prazo da repu- que a continuidade institucional vem respaldar duas fun-
tação do que o nascer desta. No intervalo aproximado de ções exercidas pelo jornalismo: a de cão de guarda e a de
1908 a 1968, instituições jornalísticas passaram a ser o espantalho. Tanto um cão de guarda quanto um espantalho
“quarto poder”. dão certa proteção. Mas o fato de que só o cão de guarda
O capital reputacional do jornalismo foi conferido basi- é capaz de ladrar nem sempre importa. Embora o espan-
camente à profissão e ao conjunto de instituições, não a talho “não faça nada”, sua simples existência – o fato de
jornalistas de forma isolada. Isso significa que, pelo menos que o corvo sabe que está ali, de guarda – costuma bastar
em parte, o grau de capital simbólico detido por este ou para coibir a má conduta de corvos e afins. O mesmo vale
aquele jornalista decorria tanto de quem era como de onde para o jornalismo. A imprensa vigilante, reconheçamos,
trabalhava. Embora haja exceções (o caso de I.F. Stone é raramente ladra. Mas a continuidade dessa imprensa, o
particularmente destacado), o capital simbólico que um fato de que está de guarda, volta e meia basta para inibir
jornalista em particular possuía na mente do público e na a má conduta de instituições poderosas.
mente de políticos era, basicamente, produto de sua filia- Quando se discute o impacto que a redução da capaci-
ção institucional e profissional. dade institucional teria sobre instituições jornalísticas, se
Em suma, uma segunda vantagem que instituições essas instituições desapareceriam por completo ou sim-
jornalísticas conferiam a jornalistas e ao jornalismo de plesmente cobririam menos assuntos, o foco em geral é a
modo geral era uma marca extremamente forte. Embora função cão de guarda – o fato de que serão cobertos menos
seja difícil solucionar o problema do ovo e da galinha que temas do que antes e de que o cão vai ladrar menos. A nos-
atormenta a indústria jornalística neste século 21 (foi a so ver, contudo, a verdadeira função institucional em ris-
queda da reputação do jornalismo que deixou o setor em co nesse caso é a de espantalho. Ambas são interligadas, é

ESPECIAL| REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 59


ESPECIAL | INSTITUIÇÕES

claro, e a capacidade de fazer empresas e políticos anda- disponíveis em outros pontos do ecossistema. Em
rem na linha reforça a sensação de que a imprensa está outras palavras, é preciso tornar parcerias jorna-
aí, vigiando. A verdadeira questão para a indústria jorna- lísticas um ingrediente mais comum do repertório
lística, no entanto, é como convencer o público de que a institucional.
atividade segue sendo importante. A nosso ver, há uma imensa diferença entre insti-
tuições que encaram parcerias como parte genuína
Margem de seu DNA e aquelas que não o fazem. A fé genuína
em parcerias não depende, em última instância, do
Instituições jornalísticas, ou pelo menos organizações benefício que a parceria terá para a instituição, mas
que costumávamos encarar comoinstituições jornalísticas, sim da capacidade dessa parceria de agregar valor
fazem mais do que cobrir um único tema. Fazem mais do ao ecossistema como um todo.
que promover a cobertura setorista, e fazem mais do que
orquestrar investigações especiais de longo prazo, com Para concluir, instituições jornalísticas agregaram valor
pesado uso de recursos. Fazem essas três coisas. E foram público às esferas política e jornalística ao alavancar o
capazes desse feito devido à capacidade de rapidamen- trabalho de muitas pessoas, acumular capital simbóli-
te lançar mão de uma margem de capacidade. Essa mar- co, estabelecer padrões estáveis de atuação capazes de
gem institucional significa que, ao longo do tempo, orga- garantir continuidade ao longo do tempo, ser capazes de
nizações jornalísticas foram capazes de se adaptar, a um se concentrar em muitas coisas ao mesmo tempo e, de
piscar de olhos, a acontecimentos mundiais incertos, que modo geral, exercer a função de espantalho da impren-
evoluíam rapidamente. Paradoxalmente, o conservado- sa tanto quanto a de cão de guarda. Muitas dessas insti-
rismo operacional deu a essas organizações a capacida- tuições estão sob considerável risco devido a mudanças
de de mostrar bastante agilidade na cobertura de fatos, econômicas, sociais, políticas e culturais no ecossistema
justamente o que todos aqueles processos conservadores maior de mídia. E é nesse momento de crise que defici-
foram feitos para facilitar. ências dessas instituições – deficiências que, paradoxal-
Muitas das novas instituições jornalísticas – organi- mente, nascem das mesmíssimas vantagens que foram
zações especializadíssimas vivendo permanentemente de tanta utilidade em momentos de estabilidade – mos-
com o mínimo – não têm essa margem de capacidade. O tram suas garras.
site Technically Philly, por exemplo, tem uma só missão:
cobrir novidades no setor de alta tecnologia da Filadélfia.
Texas Tribune, Voice of San Diego e Smoking Gun também O dilema da mudança institucional
vão por aí; o traço comum da maioria dos novos projetos
jornalísticos é não tentar ser tudo para todos. Andrew Uma queixa recorrente entre jornalistas entrevistados
Donohue, editor do Voice of San Diego , dá a seguinte por nós – profissionais de publicações e setores bem dis-
explicação: “[Mais] do que em setores, o pessoal aqui se tintos da imprensa – é a dificuldade de alterar os rumos
especializa em narrativas específicas dentro de uma área. de organizações tradicionais de mídia às quais perten-
Não vamos cobrir algo a menos que nossa cobertura vá cem para, com isso, fazer frente aos desafios da era digi-
ser melhor do que a dos outros, ou se ninguém mais esti- tal. Zach Seward, ex-editor de interação e mídias sociais
ver cobrindo o assunto”. do Wall Street Journal e hoje editor sênior do site de eco-
Não há mal nenhum nessa especialização, é claro. nomia e negócios Quartz, da Atlantic Media, opinou que
Tampouco achamos que a descomunal duplicação de o próprio êxito dos jornais em sua atividade tradicional
esforço que hoje existe na indústria jornalística (despa- dificulta qualquer mudança:
char centenas de repórteres para cobrir o Super Bowl,
por exemplo) seja saudável ou sustentável. Queremos A ideia de alterar o curso, para uma organização que
simplesmente frisar que eliminar essa margem do arse- ainda é obrigada a colocar um produto impresso em
nal de instituições jornalísticas é algo inédito, cujas impli- circulação diariamente, ou é muito boa e eficiente em
cações ainda não estão totalmente claras. um certo processo, faz parecer que o melhor que uma
organização nessa situação tem a fazer é promover
Recomendação: formar parcerias pequenos ajustes, caso esteja atada a um processo de
produção que já existe. Já é um verdadeiro milagre
O declínio da capacidade institucional não significa que publicações de periodicidade diária sejam capa-
que organizações jornalísticas tenham de sacrificar zes de produzir o que produzem, de modo que 100%
a profundidade de seu conteúdo, já que há recursos do esforço vai para processos atuais.

60 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


Essa “presença de processos”, como chamamos o fenô- vez, em torno de tecnologias específicas), podem tanto
meno, não se manifesta apenas na hora de tomar grandes limitar organizações jornalísticas quanto capacitá-las a
decisões. É da natureza de processos institucionais serem cobrir o noticiário.
repetidos a cada dia, até mesmo a cada hora. Um proces- Matt Waite observa que o problema de organizações
so determina o que é ou não possível, não só em conver- grandes, hierárquicas, não é que desencorajem o racio-
sas entre repórteres, editores e executivos, mas na própria cínio criativo, uma distinção sutil e importante: “No tra-
infraestrutura tecnológica que torna possível o exercício balho em uma redação, [ processos são] um enorme pro-
do jornalismo. Ferramentas instituídas para administrar blema. Mas mesmo em hierarquias rígidas, trabalhando
processos também instituem as premissas usadas para com limitações, era possível ter muita criatividade. O
conceber as ditas ferramentas. único problema era conseguir o sinal verde de alguém
Vejamos o caso de sistemas de gestão de cont
eúdo (CMS, para tirar algo do papel”. Waite também observa que em
na sigla em inglês) para redações. Um sistema desses já organizações com processos altamente burilados o tes-
vem com uma ideia definida do fluxo de trabalho – de te de novos métodos pode ser politicamente difícil: “Nas
quando e como o conteúdo será criado, editado, revisado redações, a estrutura ainda é militaresca. Com isso, fica
e publicado. O resultado é que um CMS faz mais do que difícil fazer qualquer coisa sem pisar no calo de alguém”.
ajudar a organização a gerenciar o conteúdo de uma cer- A dificuldade da mudança institucional também é visí-
ta maneira. Na prática, dificulta, ou até impede, qualquer vel se formos ver como novos projetos jornalísticos, embo-
tentativa de gestão de um jeito não previsto no sistema. ra em grande parte formados por jornalistas e editores
Isso vale para tudo, é claro; todo processo existe para veteranos, lidam com mudanças em processos. Andrew
obstruir alternativas. Só que um CMS costuma chegar a Donohue lembra-se do comecinho do Voice of San Diego:
extremos, pois, em seu caso, requisitos e premissas foram “Simplesmente fazíamos o que costumávamos fazer em
programados no software e são difíceis de questionar, ou jornais, mas na internet. Fazíamos a cobertura ao longo
ignorar. É como disse Anjali Mullany, que foi editora do do dia, fechávamos às 7 e, então, subíamos o material no
site do New York Daily News e hoje é editora de mídias site. Ninguém nem pensava em atualizar constantemen-
sociais da revista Fast Company: te [o conteúdo]”.
Ouvimos uma história parecida de um alto editor do
Sistemas de CMS e de gestão de projetos são a raiz de New York Times: “Fomos informados de que, com os cor-
muitos desses problemas [com processos]. Talvez de tes, seria preciso fazer mais com menos, com menos gente,
90%. Às vezes, o fluxo de trabalho e o CMS não são mas sem trégua na cobertura. Em nenhum momento veio
sequer compatíveis, ou o CMS não casa com o fluxo alguém da área técnica com conhecimento ou autoridade
de trabalho. Ou, então, o fluxo de trabalho destrói o para dizer que adotássemos outras ferramentas ou outro
CMS. Pegue qualquer organização de grande porte, modo de usá-las. Ninguém disse, ‘vejamos o que vocês
com várias plataformas. Não é raro ver a mesma ver- precisam fazer em um dia para ver se podemos mudar os
são [de uma matéria] várias vezes. Ou vários repórte- processos’. Isso era o que mais desanimava”.
res cobrindo a mesma coisa por pura falta de comu- Numa organização menor e mais ágil como o Voice of
nicação. O CMS maravilhoso e flexível que permitirá San Diego, no entanto, era mais fácil trocar o processo
[à redação] alterar seus processos com o tempo não tradicional por algo que fizesse um pouco mais de senti-
existe. Faça o seguinte: tente achar um repórter na do na atual era tecnológica. “Tínhamos uma rotina bem
cidade de Nova York que goste do CMS queusa. É um estruturada que foi sendo abolida à medida que a reda-
sério problema. Se seu CMS o restringe, vai restrin- ção crescia e as mídias sociais foram se impondo. Agora,
gir tudo na redação. A tecnologia que a pessoa está nossa rotina é bem distinta. Ainda apuramos notícias do
usando vai mexer com aquilo que a pessoa produz. jeito tradicional, por meio de fontes e de observação, mas
temos de decidir como apresentar o fato: como um post
O dilema aqui é claro. Já observamos que uma institui- de blog, uma matéria única, uma série publicada ao lon-
ção pode ser definida como padrões e processos estáveis go de três meses, um conteúdo gerado por crowdsour-
que permitem a um conjunto de pessoas e tecnologias cing. Hoje, essas são as grandes questões.”
realizar mais do que seria possível como mero somató- O descompasso de processos costuma ser mais visível
rio de indivíduos. Esses processos institucionais dão à em esquemas de trabalho atrelados a sistemas de gestão
organização jornalística várias vantagens vis-à-vis insti- de conteúdo, pois o conservadorismo desses sistemas é
tuições políticas, sociais e empresariais que monitoram. duplo. Devido ao esforço envolvido na implantação de
Mas esses padrões estáveis, sobretudo quando atrela- um CMS, a estrutura de um sistema desses em geral refle-
dos a ciclos específicos de produção (erguidos, por sua te decisões gerenciais sobre como deveria ser o fluxo de
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ESPECIAL | INSTITUIÇÕES

trabalho na redação. Além disso, como no processo do efeito da “roda de hamster”. A nosso ver, a culpa é
Voice of San Diego relatado por Donohue, um CMS nor- da própria organização jornalística que segue pas-
malmente é atualizado aos poucos; quando produtos com sivamente aferrada a velhos processos mesmo com
um ritmo diário centrado no impresso são adaptados para a mudança das condições tecnológicas. Em outras
a internet, tudo o que tem a ver com a plataforma digital palavras, é preciso lidar com exigências tecnológi-
parece – e em geral é – mero apêndice do projeto srcinal. cas da internet para que essa “roda de hamster” seja
Para termos uma ideia do grau de inadequação de mui- evitada. A lista de soluções para administrar o digi-
tos processos de produção atuais, vale a pena ir conferir tal pode incluir o uso inteligente de links (em vez de
um CMS que
panham. Um já nasceu recente
exemplo digital eéosoprocessos
da Vox. A que o acom-
editora, que acrescentar informaçõesbotar
matérias já publicadas), sem alguém
parar e na
deequipe
reescrever
edi-
tem vários sites de nicho (incluindo SB Nation e Verge), torial para atrair tráfego (“traffic whoring”), como faz
projetou seu próprio CMS do zero. “Armamos nosso pla- a Gawker, e muitas outras mudanças em processos.
no de desenvolvimento com base nas ferramentas que as
equipes editorial e de publicidade dizem que precisam”, Recomendação: poder passar por cima do CMS
contou Trei Brundrett, diretor de produtos e tecnologia
da Vox, em uma entrevista. Embora pareça um jeito óbvio Sistemas de gestão de conteúdo volta e meia incor-
de trabalhar, isso requer habilidades raras e essenciais: poram processos já cristalizados na redação. Nesse
uma equipe editorial capaz de definir corretamente suas caso, a capacidade de subverter um sistema desses
necessidades; uma administração que incentive a cola- pode ser uma forte arma contra a tirania rotineira de
boração editorial e técnica; equipes editoriais e técnicas processos contraproducentes. Jornalistas devem se
capazes de se comunicar; e um pessoal técnico suficien- preparar, individualmente ou em grupo, para poder
temente qualificado para criar um sistema simples e está- passar por cima de toda etapa de seu CMS. Com sorte
vel o suficiente para ser utilizável. Com isso, não estamos e persistência, essas soluções alternativas podem lan-
sugerindo que toda organização jornalística deva criar çar as bases para umprocesso mais racional no futuro.
um CMS só seu – ainda que fosse possível, seria perda de Aqui, há uma analogia com a criação de sistemas
tempo e dinheiro. Queremos apenas mostrar que ferra- de informação médica. À medida que prontuários
mentas feitas para o meio impresso não combinam com médicos vão sendo digitalizados, há, como sempre,
a nova realidade da produção de notícias. um conflito entre segurança e acesso. Um sistema
Unidades do jornalismo em geral estão ligadas à lógi- suficientemente seguro para impedir todo uso inde-
ca da atualização diária – lógica que nem sempre vale vido dessa informação acabaria prevenindo também
em condições de digitalização. À medida que a noção de certos usos justificados, porém imprevistos. Já um
tempo e atualidade do usuário vai mudando, a organiza- sistema que permitisse todo uso possível seria inca-
ção precisa repensar totalmente o modo como o conteú- paz de garantir a segurança das informações.
do é organizado e disposto no fluxo de trabalho da reda- A solução, em geral, é um recurso do tipo “que-
ção. A linha de montagem da redação é quase totalmente bre o vidro” (algo análogo a romper uma proteção de
anacrônica como método de produção de conteúdo para vidro para acionar um alarme). Um médico que soli-
consumo digital, e deve ser repensada. cita arquivos que por algum motivo o sistema se recu-
sa a liberar pode passar por cima do mecanismo de
Recomendação: administrar segurança. Como? Afirmando, basicamente, que sua
requisitos tecnológicos da internet necessidade vem antes do modelo de segurança do
sistema. Isso feito, o acesso à informação é liberado.
Quando o fluxo de trabalho em condições de digi- Isso exige, contudo, que o médico seja identifica-
talização não é repensado, a organização jornalís- do pelo sistema, que dê uma justificativa para estar
tica pode acabar sofrendo todos os inconvenientes contornando o sistema e que esteja ciente de que
de processos digitais sem obter nenhum dos bene- sua decisão será auditada no prazo de 24 horas. Se
fícios. É o pior dos cenários – algo que certas vozes suas razões não forem justificadas, será disciplinado.
no meio chamam de “roda de hamster”: jornalistas O que estamos recomendando é um mecanismo
com o tempo cada vez mais contado e menos auto- equivalente a esse “quebre o vidro” para que o jorna-
nomia profissional. lista possa ignorar premissas que um CMS faz sobre
Essa “roda de hamster” é fato, mas muitos se equi- processos e controle. Se quiser ignorar uma deter-
vocam ao apontar sua causa. Não somos determi- minada etapa, por razões que pareçam justificadas e
nistas tecnológicos, não culpamos a “internet” pelo urgentes, o profissional deveria ser capaz de fazê-lo

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– desde que tenha suficiente tempo de estrada para Discutiremos na próxima seção o papel que amadores
ter interiorizado a versão local do critério jornalís- e cidadãos engajados exercem no ecossistema jornalísti-
tico, que seja identificado pelo sistema e justifique co de modo geral. Por ora, é suficiente afirmar que, a nos-
a decisão, e que esteja disposto a defender essa jus- so ver, ambos os lados de um debate hoje muito estéril
tificativa quando analisada pela chefia. estão errando o alvo. O papel do cidadão comum na pro-
Obviamente, isso abre a porta para a possibilida- dução de notícias é uma questão de caráter tanto institu-
de de erros de incumbência – erros cometidos quan- cional quanto econômico. Em linhas gerais, o fato de que
do o jornalista faz algo que não deveria ter feito. ao menos parte daqueles que produzem notícias estejam
Mas muitos
erros sistemas
de omissão, deque
erros gestão de conteúdo
impedem causam
o jornalista de trabalhando
mação de hoje
limitada graçavirou
significa que um
um mundo demundo de infor-
informação infi-
tirar partido de uma oportunidade óbvia. Ao permi- nita, em geral não processada. Isso cria um desafio geral
tir que o jornalista passe por cima dos próprios pro- para instituições jornalísticas: como criar novos proces-
cessos quando necessário, e com a devida supervi- sos e procedimentos institucionais para ir de um mundo
são, organizações jornalísticas podem impedir que no qual a informação era escassa para outro no qual há
o desejo de manter um fluxo de trabalho previsível fartura de informação.
destrua a oportunidade de que sua equipe inove e Em termos mais específicos, um dos grandes dilemas
tome iniciativa. da produção amadora é como organizar, racionalizar e
sistematizar essa produção. Não é mera coincidência
Recomendação: promover a transparência que Amanda Michel, que chefiou o projeto Off the Bus
do Huffington Post, tenha começado a vida profissional
Como contrapartida ao poder de “hackear” proces- como organizadora de campanhas eleitorais, não como
sos e de passar por cima do CMS da redação, insti- jornalista. No papel de organizadora, Michel sabia deter-
tuições jornalísticas devem tornar transparentes e minar o que amadores e voluntários podem fazer, o que
sistematizáveis por outras organizações os novos não podem fazer e como fazer com que trabalhem jun-
processos sendo empregados para produzir um jor- tos em benefício de uma instituição maior. A questão da
nalismo de qualidade. Em outras palavras, quem gestão da produção amadora pode, portanto, ser vincu-
inventa um processo que funciona deve exibi-lo para lada à questão maior de como converter novos atores no
que possa ser utilizado por outros meios de comu- ecossistema jornalístico de redes ad hoc em instituições.
nicação. Nesse sentido, o ProPublica é um exemplo É essa questão que agora abordaremos.
no setor. Embora certas organizações jornalísticas
temam que essa transparência vá “ajudar a concor-
rência”, o fato é que, durante um século, processos Informação e impacto
jornalísticos foram um livro aberto. Não há nada que (ou para que serve o jornalismo?)
impeça uma organização de seguir faturando e dan-
do furos nessa nova era, ainda que seu modus ope- Uma instituição leva vantagens importantes na hora de
randi seja transparente. cobrir notícias de interesse público. Tem a influência,
o poder simbólico, a continuidade e a folga de recursos
necessários para enfrentar em pé de igualdade outras
Por que trabalhar com jornalismo? instituições: políticos, órgãos públicos, empresas, insti-
Motivação e impacto institucional tuições de ensino, ONGs, organizações religiosas. Só que
esse mesmo “sistema de normas sociais estabelecidas e
O fato de que um número crescente de indivíduos contri- dominantes” que ajuda a garantir o poder de instituições
bua de graça para o ecossistema da informação, ou que o também serve, em sua inércia, para impedir mudanças
faça por razões outras que a obtenção de ganho financei- necessárias e obrigatórias.
ro, causa quase tanta comoção no setor de mídia como a A solução para esse paradoxo não é abolir instituições.
questão dos paywalls. O otimismo inicial sobre o poder do Tampouco é seguir cegamente fiel a instituições que, no
“jornalista cidadão” de transformar o mercado jornalís- passado, produziram o jornalismo de maior qualidade. Há
tico rapidamente cedeu lugar à atitude defensiva de pro- coisas importantes que só uma instituição pode fazer –
fissionais e à crise que se abateu sobre jornais (crise sem mas é preciso reinventar as que já estão aí e inventar novas
nenhuma relação com a produção de conteúdo por ama- instituições. Precisamos entender de que modo esquemas
dores, mas que volta e meia figura em discussões sobre o sociais desestruturados se institucionalizam, que obstá-
jornalismo cidadão). culos existem para a dita institucionalização e que lições
ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 63
ESPECIAL | INSTITUIÇÕES

e estratégias de cobertura jornalística tirar da observa- Ao analisarmos a trajetória do Talking Points Memoao
ção desse processo de institucionalização. longo do tempo, vemos o surgimento de um site não-insti-
No jornalismo do século 21, há dois dilemas centrais de tucional em 2000, seguido de um nível cada vez mais com-
institucionalização. O primeiro, óbvio e discutido a torto e plexo de estruturação organizacional, de crescimento da
a direito desde a década de 1990, é a necessidade de adap- equipe e de acúmulo de capital simbólico (o site ganhou
tação de organizações jornalísticas tradicionais à internet um Polk Award em 2008 pela cobertura da exoneração
(e a dificuldade que estão sentindo para tal). Já o segun- de procuradores nos Estados Unidos por questões políti-
do é menos discutido: novas formas de produção de notí- cas). Embora hoje seja um projeto “velho” pelos parâme-
cias (posts no Twitter editados por Andy Carvin, o jor- troscom
digitais, o TPM é um casode
útilorganizações
exatamentedigitais
por isso.naÉ
nalismo de banco de dados do MapLight, a estabilização só o exame da evolução
de veículos digitais sem fins lucrativos como Voice of San internet que iremos entender que a história do jornalis-
Diego ou Texas Tribune) precisam ser institucionalizadas, mo na era digital não é só de morte e nascimento. É tam-
pois sem as virtudes de instituições (ainda que concebi- bém de estabilização institucional.
das para a produção digital) nenhuma iniciativa dessas Igualmente importante é entender que a história do
vai conseguir sobreviver ou se tornar persistente ou for- Talking Points Memo representa a estabilização de um
te o bastante para disciplinar outros atores institucionais. híbrido de velhas e novas práticas jornalísticas, e não sim-
Um caso emblemático de organização jornalística nova plesmente a adoção de métodos tradicionais de cobertura
e pouco estruturada que atingiu certo grau de estabilida- jornalística para a era digital. O TPM foi um pioneiro no
de institucional é o do Talking Points Memo(TPM). Não que hoje é chamado de jornalismo interativo, algo que o
damos esse exemplo porque o TPM não tenha enfrenta- site define como o “uso de sugestões, informações e textos
do sua cota de dramas e desafios institucionais, mas jus- explicativos de leitores ao lado de conteúdo de produção
tamente porque passou por tudo isso. Para entender de própria para armar reportagens de fôlego”. Embora haja
que maneira o ecossistema jornalístico está mudando é menos informação sobre como o TPM incorpora tais prá-
crucial entender a dinâmica entre desafio organizacio- ticas na versão 2012 de sua estrutura organizacional, há
nal e evolução institucional. Lançado em 2000 por Josh pouca dúvida de que a solidificação da capacidade insti-
Marshall, um jornalista que na época fazia um doutora- tucional do site representa a popularização de um certo
do, o site era basicamente indistinguível do sem-fim de conjunto de práticas organizacionais.
blogs políticos individuais lançados nos primórdios da Um exemplo mais recente espocou em meados de
revolução dos blogs. 2012, quando o site Homicide Watch D.C. quase foi fecha-
Em 2002, o site tinha a arquitetura do gênero naquela do. Conforme relatado na primeira seção do dossiê, o
fase inicial, com uma foto de Marshall para dar um toque Homicide Watch é uma fusão da cobertura tradicional de
“pessoal” e uma organização em duas colunas (links numa polícia com uma infraestrutura tecnológica nova. O site
coluninha estreita à esquerda e o conteúdo principal no tem um orçamento minúsculo; seus fundadores, Laura e
meio da página). Quatro anos depois, em 2006, o visual Chris Amico, licenciam a plataforma para outras organi-
do site sugeria o despontar de uma organização bem dis- zações jornalísticas. É um exemplo ideal de reformula-
tinta. A foto de Marshall seguia ali, mas o leitor era rece- ção de processos para geração de alto valor a baixo custo.
bido por uma página muito mais estruturada. Isso posto, depois de dois anos no ar o Homicide Watch
O mais importante é que, em 2006, o TPM já emprega- corria o risco de ser fechado – por dois motivos. O pri-
va jornalistas – processo que teve início em 2005, quando meiro era que poucas organizações de mídia se interes-
Marshall solicitou contribuições de leitores para contra- savam em operar a plataforma sob licença. O Homicide
tar dois profissionais fixos; levantou US$ 100 mil direta- Watch é tão diferente do modelo tradicional da editoria
mente do público. Além disso, a coluna à direita fazia o de polícia – que decide que crime vai ou não cobrir – que
link com o TPMMuckraker, um projeto paralelo cuja meta nenhuma organização estabelecida poderia usar a plata-
é produzir mais conteúdo próprio e combativo. forma sem o efeito colateral de ter de alterar premissas
Em 2007, a transição na arquitetura do TPM fora con- e processos internos. A incompatibilidade de processos
cluída. Agora, a página parecia um típico produto jorna- tornou o licenciamento da plataforma muito mais difícil
lístico, com boxes, links e fontes de corpos distintos para do que o casal Amico imaginara.
diferenciar cada área do projeto e apor o selo editorial Apesar dessa dificuldade, e da verba curta, a dupla man-
a notícias importantes. A redação seguiu crescendo: em teve o site no ar. Foi quando surgiu o segundo problema.
2010, eram 16 funcionários; em 2012, 28. O site também Laura Amico, que cuidava da reportagem, recebeu uma
recebeu um aporte financeiro considerável em 2009 do bolsa Nieman para estudar em Harvard. Caso perdesse a
fundo capital de risco Andreessen Horowitz. fundadora, ainda que por um tempo, o Homicide Watch

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não teria nenhuma das vantagens de grandes instituições: parece ainda menos provável. O Washington Post rece-
uma forte reserva de talentos, funcionários com atribui- beu US$ 500 mil da Ford Foundation; não é difícil ima-
ções redundantes capazes de assumir o trabalho de outros ginar o que o Homicide Watch seria capaz de fazer com
e assim por diante. uma fração dessa verba.
O site só foi salvo devido a uma campanha de última
hora no Kickstarter que permitiu a contratação de uma Recomendação: repensar a distribuição de verbas
equipe em Washington para trabalhar remotamente com
Amico. Isso adia, mas não resolve, o problema: peque- Fundos “públicos” ou de fontes não comerciais

nas organizações
dígio comomuito
na arte de fazer a com pouco, mas vivem sob
Homicide Watch são um pro- (incluindo dotações de governos e fundações) devem
ser usados basicamente para ajudar na institucio-
eterna ameaça. Para sobreviver e difundir seu modelo, nalização de organizações. Paradoxalmente, é jus-
terão de conseguir fontes mais seguras de receita, uma tamente o que essas fundações e o poder público
equipe maior e mais variada e processos mais comple- parecem menos inclinados a fazer, pois seu foco é
xos para gestão desse pessoal. Precisam, em outras pala- mostrar impacto. Dada a importância e a fragilida-
vras, virar uma instituição. de de novos atores, fundações devem repensar essa
estratégia de financiamento.
Recomendação: criar “guias”
para novos projetos Em última instância, como saber se instituições jorna-
lísticas – velhas, novas ou no meio do caminho – estão
Criar uma organização jornalística nova não é tão fazendo o que deveriam fazer? Como medir oêxito de uma
difícil quanto estabilizar um empreendimento des- organização dessas? Quando o sucesso é definido basi-
ses no médio e longo prazos. Cientes disso, inicia- camente como “sucesso comercial”, a resposta é simples
tivas de sucesso (como Talking Points Memo, Texas – embora, por esse critério, a indústria jornalística nor-
Tribune, West Seattle Blog, Baristanet) deviam criar te-americana venha em queda livre há pelo menos meia
“guias” de caráter público para orientar novas orga- década. Quando o sucesso passa a ser definido em ter-
nizações jornalísticas. mos do impacto exercido no mundo, e não só do lucro, o
É preciso levar em conta que o fundador de uma cálculo muda. Hoje, há muito mais maneiras de definir
organização que atinge certo sucesso pode ter pou- esse impacto do que antigamente, embora a complexi-
co tempo ou interesse em destinar recursos para dade da questão também tenha aumentado. Para saber
explicar como chegou lá. Sua função, afinal, é pro- se instituições estão funcionando, precisamos entender
duzir jornalismo. Daí sugerirmos que essas organi- seu propósito e medir o impacto que estão tendo sobre
zações, e similares, recebam dinheiro de fundações as instituições que monitoram.
para poder promover essa “metarreflexão”. Não faz muito tempo que a questão do “impacto”
virou um tema de discussão em organizações jornalís-
Entender como novas organizações jornalísticas adqui- ticas e nos círculos que debatem o “futuro do jornalis-
rem estabilidade e como, no processo, fazem uma série de mo”. O ProPublica há muito lidera a reflexão sobre o real
práticas institucionais parecerem mais do que lógicas, é o impacto do jornalismo. Na seção “About Us”, o site decla-
elo perdido em nosso esforço para entender o novo ecos- ra que, “na melhor tradição do jornalismo norte-ameri-
sistema jornalístico. É, também, uma área nebulosa em cano de serviço público, buscamos promover mudanças
termos de financiamento. O grosso de dotações de fun- positivas. Expomos práticas ímprobas a fim de incenti-
dações é dirigido a projetos que tenham “impacto” tangí- var a reforma”. O ProPublica acrescenta que age “sem
vel, o que torna essas entidades menos inclinadas a ajudar nenhuma filiação a partidos ou ideologias, aderindo aos
organizações na missão maçante e invisível da estabili- mais rigorosos padrões de imparcialidade jornalística”.
zação institucional (coisas como montar uma folha de Para encerrar, observa que “todo material publicado [ no
pagamentos, alugar espaço comercial e contratar plano site] é distribuído de modo a maximizar seu impacto”.
de saúde para o pessoal, bem como orientar gente nova A princípio, é uma missão sem controvérsia. Por incrí-
e fortalecer normas institucionais). Agora que grandes vel que pareça, no entanto, não é encampada publicamen-
fundações norte-americanas – como a Ford Foundation te por organizações de mídia mais tradicionais, embora
– estão investindo cada vez mais em meios de comunica- o desejo de exercer “impacto” esteja na base do ideá-
ção tradicionais, como o Washington Post e Los Angeles rio jornalístico de modo geral. Instituições jornalísticas
Times, o investimento em veículos menores, que já não volta e meia sustentam que sua função é simplesmente
são novidade mas tampouco pertencem à velha guarda, “apresentar os fatos” e que questões ligadas ao efeito que
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ditos fatos terão não são de sua alçada. Instituições jor- instituições jornalísticas e achar saídas para repor o capi-
nalísticas em geral veem o consumidor de notícias como tal institucional hoje arrastado pelo tsunami digital des-
um receptáculo vazio de informação pública que, quan- te início do século 21.
do preenchido com o conhecimento adequado, passará
a exibir condutas democráticas. Recomendação: determinar e avaliar impacto
O impacto do jornalismo, em outras palavras, não vem
de quem produz a notícia, mas de quem consome a notí- Torne a avaliação do impacto, incluindo distribui-
cia – do próprio cidadão de democracias. ção de tarefas e promoções, parte da cultura orga-

to A essaàaltura, já deve estar claro que nãopara


damos mui- nizacional. Considere parcerias com organizações
valor analogia do receptáculo vazio refletir, que possam fornecer informações ou conhecimen-
nas palavras do professor de jornalismo da New York to sobre áreas nas quais se deseja exercer impacto.
University Jay Rosen, sobre “a função do jornalismo”. A
nosso ver, são as instituições jornalísticas que, em geral,
dão a maior contribuição para a promoção de resulta- Como serão as novas instituições jornalísticas
dos positivos em uma democracia. Isso posto, é essen-
cial saber exatamente como a organização jornalística Já mostramos por que instituições são vitais para garan-
exerce impacto e fazer essas empresas aceitarem que tir o bom funcionamento de um ecossistema jornalístico
sua função é exercer impacto. saudável. Também abordamos um paradoxo institucio-
Foi alentador ouvir, em meados de 2012, que a Knight- nal: o fato de que características que garantem o suces-
Mozilla Foundation iria instalar um bolsista da fundação so de uma organização em tempos de relativa estabilida-
no New York Times com a missão específica de conceber de social podem impedi-la de se adaptar a uma realidade
maneiras para uma organização jornalística medir seu organizacional em rápida transformação. Isso posto, como
impacto. “O que não temos é uma forma de medir até que seria uma instituição jornalística saudável no século 21?
ponto um conteúdo jornalístico muda o modo de pensar Que tipo de esquema institucional deveriam exigir edi-
ou agir das pessoas. Não temos um indicador de impac- tores, jornalistas, presidentes de empresas e estudiosos
to”, explicou Aron Pilhofer, editor de conteúdo interati- do futuro do jornalismo?
vo do jornal, em seu blog. Já de saída, devemos afirmar que instituições jorna-
Não é um problema novo. Critérios tradicionalmen- lísticas do futuro serão menores do que as de hoje; com
te usados por redações em geral são bem imprecisos. A base em nossos argumentos anteriores, reconhecemos
lei mudou? O vilão foi para a cadeia? Expusemos riscos? que cortes de pessoal, orçamentos menores e a necessi-
Salvamos vidas? Ou, o menos relevante de tudo, ganha- dade de “fazer mais com menos” hoje viraram a regra em
mos algum prêmio? organizações jornalísticas. Também achamos provável
Mas a equação muda no universo digital. Estamossoter- que organizações jornalísticas encontrem, em uma série
rados por dados e temos a capacidade de travar um diá- de fontes, novas formas de bancar as operações; nessa lis-
logo com leitores numa escala, e de um modo, que teriam ta entrariam algum formato de assinatura digital, publi-
sido impossíveis (ou impossivelmente caros) num mun- cidade no site, estratégias de vendas para mídias sociais
do analógico. (como as adotadas pelo site BuzzFeed), verbas de funda-
O problema hoje é saber que dados computar e quais ções e subsídios do Estado. Não é nossa intenção reco-
ignorar. É uma questão de criar modelos para teste, análi- mendar qualquer fonte dessas em detrimento de outras,
se e interpretação que possam tanto ser ampliados como embora certas formas de geração de receita contribuam
reproduzidos. para as estratégias institucionais que apresentaremos a
É questão de achar, em meio a todo o ruído, um sinal seguir, enquanto outras dificultem a transição.
claro que indique se nosso jornalismo está repercutindo Nosso argumento é que instituições jornalísticas do
ou não, se está tendo o impacto que acreditamos que deve- futuro, além de menores e “agnósticas” quanto a fon-
ria ter. Nossa meta, ao abrigar um bolsista da fundação tes de receita, devem ter três características definidoras.
Knight-Mozilla, é ajudar a eliminar esse ruído. Terão um fluxo de trabalho “hackeável”, ou contornável.
Esperamos que essa iniciativa do New York Times e Vão adotar alguma forma daquilo que chamamos de “ins-
da Knight-Mozilla Foundation abra caminho para que titucionalismo em rede”, sendo que muitas das maiores
outras organizações jornalísticas reflitam sobre aquilo que organizações jornalísticas de penetração nacional devem
fazem, e sobre a importância disso. Somente se começa- promover um jornalismo que cobre prestação de contas
rem a encarar a si mesmas como organizações de algum (accountability journalism) local em parceria com veículos
impacto sobre o mundo poderemos entender o valor de locais de imprensa. E, por último, instituições jornalísticas

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terão de repensar radicalmente o que conta como “pro- outros aparelhos, em novas matérias e até por outras
va jornalística válida”, buscar novas maneiras de avaliar organizações de comunicação.
essas novas provas e integrar tais processos de apuração Há ainda outra consequência: sistemas de gestão de
e avaliação a seus fluxos de trabalho “hackeáveis”. conteúdo de redações terão de ser projetados para per-
mitir que sejam contornados. Um corolário óbvio é que na
escolha (ou, em raros casos, na concepção) do CMS será
Fluxo de trabalho hackeável preciso indagar quem terá o direito de passar por cima
de expectativas embutidas no sistema (e de que modo).
Atualmente, processos de produção jornalística são con- Outro corolário é que processos erguidos em torno do
cebidos com dois imperativos em mente. O primeiro é a CMS terão de frisar a capacidade de certos funcionários
gestão racional da geração, transmissão, edição e produ- de fugir ao processo previsto a fim de tomar decisões atí-
ção de conteúdo para o maior número possível de plata- picas em meio a circunstâncias incomuns.
formas simultâneas. O segundo imperativo, ligado ao pri- Em outras palavras, terão de ser flexíveis e adaptá-
meiro e basicamente herança do processo de produção veis a necessidades organizacionais específicas. O foco
da imprensa escrita e falada, é que essa gestão do fluxo da gestão da produção de conteúdo jornalístico não deve
de trabalho é feita para produzir um produto único, aca- ser a criação de um produto final com um fluxo de traba-
bado, que será “consumido” uma vez e, em seguida, des- lho genérico, mas sim a criação de um conteúdo infinita-
cartado. Encarar o fluxo de trabalho dessa forma (e, mais mente iterável por meio de umCMS altamente hackeável.
ainda, administrar a produção e a difusão de conteúdos
dessa forma) só faz sentido se o modelo da criação e do
consumo de uma única vez se mantiver. A instituição em rede
No meio digital, o conteúdo jornalístico pode ser pro-
duzido, complementado, modificado e reutilizado inde- Muita tinta já foi gasta na questão da parceria entre
finidamente. Para tirar partido desse fato, o fluxo de tra- organizações do meio jornalístico. Muitos argumentos
balho terá de ser alterado para comportar essas novas já foram apresentados sobre a necessidade de institui-
possibilidades tecnológicas e culturais. Criar um fluxo de ções estarem mais abertas à colaboração com outros inte-
trabalho que reflita a produção mais flexível de conteú- grantes do ecossistema jornalístico digital. Por ora, no
do digital terá o efeito secundário de tornar rotinas rígi- entanto, o veredicto sobre projetos atuais de colaboração
das da redação mais “hackeáveis”. ainda é incerto. Várias das parcerias mais f estejadas do
O salto organizacional do hacker-jornalista não está New York Times (com a Chicago News Cooperative, com
no domínio das últimas novidades em ferramentas de o Bay Citizen , com a Local, abrigada na City University
mídias sociais nem na capacidade de trabalhar com um of New York – Cuny) tiveram um desfecho bastante
Google Fusion Table de mil colunas. Nada disso. A gran- inglório; paralelamente, muitas organizações parceiras
de sacada de jornalistas versados nos ritmos da produção do New York Times descobriram que trabalhar com uma
digital e de linguagens de programação é entender que o organização tão forte pode acabar distorcendo as prio-
“conteúdo” já não é descartado após o primeiro uso. Em ridades de suas próprias organizações. A ideia da cola-
vez disso, é infinitamente reciclado e deve ser projetado boração institucional, embora atraente no plano inte-
para uma perpétua iteração. Em entrevistas com jornalis- lectual, precisa ser repensada.
tas que exercem a profissão, ficamos impressionados ao Nossa tese é que a organização jornalística do futuro
constatar que a redação de toda organização jornalística, provavelmente não será uma instituição totalmente aber-
em maior ou menor grau, permanece presa a um fluxo de ta, cujo objetivo básico seja a colaboração, e que tampou-
trabalho básico no qual a meta final da produção jorna- co deva buscar apenas a colaboração fundada em projetos.
lística é um produto único, acabado. Instituições jorna- Recomendamos, em vez disso, uma estratégia muito pare-
lísticas repaginadas vão projetar o fluxo de trabalho em cida à adotada peloProPublica no projeto “Free the Files”.
torno de um fato novo, fundamental: a notícia não é nun- No “Free the Files”,ProPublica
o apostou nocrowdsourcing
ca um produto acabado, e não há um jornal matutino ou para reunir dados entreguesFCC à (Federal Communications
um telejornal noturno que possa sintetizar, em sua tota- Commission) sobre a veiculação de propaganda política em
lidade, o trabalho daquela jornada. emissoras de TV. Já que os mercados de mídia em ques-
Disso se infere que o conteúdo noticioso, e a produ- tão são inerentemente locais, oProPublica promoveu, na
ção desse conteúdo, usarão a iteração como ponto de prática, um ato de “accountability journalism” local, ainda
partida. O produto da atividade jornalística terá de ser que tenha coordenado a campanha em escala nacional. O
o mais reutilizável possível: em outras plataformas, em último passo de um projeto como o “Free the Files” seria

ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 67


ESPECIAL | INSTITUIÇÕES

colaborar com organizações jornalísticas locais para publi- ter o direito especial de apurar informações. Logo,
car os dados de forma jornalisticamente relevante e inte- sob o modelo do quarto poder, uma imprensa livre
ressante. Não se trata nem de uma parceria permanente, era, basicamente, sinônimo de uma imprensa forte
nem de uma colaboração em torno de um fato único. O que dotada do privilégio especial de apurar informações.
o site está fazendo é usar um institucionalismo em rede,
inteligente e dirigido, para preencher uma lacuna aberta Sob a teoria do quarto poder, ainda segundo Carey, a
com o trabalho de reportagem local de prestação de con- imprensa começou, cada vez mais, a se enxergar como
tas. Como seria de supor, essa nova colaboração é funda- representante do público na arena política. Para que esa
da na
no casochegada de novas
em questão formas
grandes de evidência
volumes jornalística, não
de dados. noção
só de representação
tinha vingasse,
de ver a imprensa comonosua
entanto, o público
legítima repre-
sentante política, mas também acreditar que essa impren-
sa representativa era capaz de entender e retratar cor-
Novas formas de prova retamente a realidade empírica básica do mundo. Se
sondagens da confiança no jornalismo servirem de algum
Na primeira parte do dossiê, falamos de novas habilida- indicador, é justo dizer que nenhuma dessas condições
des que serão exigidas do jornalista pós-industrial. Sob se sustenta em 2012.
vários aspectos, é possível resumir essas habilidades como O que Carey não considerou – oque quase ninguém con-
a capacidade de reconhecer, ou melhor, avaliar e apresentar siderou menos de uma década atrás, quando a margem de
novas formas de prova jornalística. Qual o elo entre con- lucro de jornais ainda era de 20% a 30% –foi que a impren-
versas em mídias sociais, grandes constelações de dados sa poderia se tornar incapaz de cumprir sua parte do acor-
e a geração de informação em primeira pessoa, na cena do na cobertura dos fatos. Desde a década de 1960, o gros-
dos fatos? É, basicamente, o fato de darem ao jornalista so da crítica à mídia se resumiu à tese de que a imprensa
do século 21 um sem-fim de novas fontes a serem incor- era capaz de uma cobertura jornalística muito mais forte,
poradas ao processo de produção jornalística. aprofundada e agressiva do que se dispunha a empreen-
Como dissemos lá atrás, essas mudanças no ecossis- der. Como sustentam Downie e Schudson em sua análise
tema geral da mídia vão impor ao jornalista novos desa- do accountability journalisme como reitera o relatório de
fios e a necessidade de dominar novas habilidades. Todo 2011 da FCC sobre ecossistemas de informação da socie-
indivíduo que trabalha no setor de comunicações preci- dade, o problema com a imprensa hoje é tanto de incapa-
sa, portanto, encarar com seriedade essa necessidade. Já cidade quanto de deliberada negligência. Também ana-
instituições que abrigam esses jornalistas devem montar lisamos o elo entre capacidade institucional, o problema
uma organização e um fluxo de trabalho na redação que do tempo e a cobertura setorista ao discutirmos os argu-
deem respaldo ao jornalista nessa empreitada. mentos de David Simon: em suma, muito do valor agrega-
Em outras palavras, não podemos seguir exigindo que do pelo jornalismo está na operação de rotinas diárias, o
um repórter domine novas habilidades e procedimentos sistema de vigilância setorista funciona melhor com ins-
de avaliação sem, simultaneamente, garantir a esse pro- tituições saudáveis e o declínio institucional está levando
fissional um fluxo de trabalho e uma estrutura organiza- à corrosão desse recurso jornalístico singular.
cional que indiquem que tal traquejo é valorizado e pre- Aqui, uma breve discussão sobre a lógica econômica da
miado. Esse fluxo de trabalho precisa ser flexível, e em atividade jornalística se faz inevitável, pois é nesse ponto
rede, para facilitar e melhorar o trabalho. que o consenso em torno do futuro do jornalismo desa-
parece. Segundo pelo menos dois campos distintos neste
debate, mecanismos de mercado melhores vão restituir
Conclusão: jornalismo, instituições e democracia a saúde institucional – embora a definição de “mercados
melhores” de um lado e outro seja diretamente oposta.
Num ensaio em 1995, o teórico da comunicação James Uma terceira corrente duvida que seja possível achar uma
Carey discorre com eloquência sobre a visão da impren- solução de mercado para o problema do declínio institu-
sa como um “quarto poder” – uma visão da relação entre cional do meio jornalístico.
mídia e democracia que só ganhou contornos definidos A primeira corrente de pensamento, representada por
na década de 1960, a era de Watergate: teóricos do futuro da mídia como Jeff Jarvis, acha que o
ecossistema jornalístico digital constitui, em si, um mer-
Por essa ótica, jornalistas seriam agentes do público cado mais transparente e fiel do que o mercado mono-
no monitoramento de um governo inerentemente abu- polístico do regime anterior. A tese, aqui, é que a ver-
sivo. Para poder exercer tal papel, a imprensa deveria ba para um jornalismo de interesse público virá de uma

68 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


combinação de transparência, maior disseminação pelo da imprensa como um quarto poder. A prestação pública
público e avanços na capacidade da indústria publicitária de contas deve vir, em parte, das próprias redes que hoje
de microssegmentar consumidores. Tendo como contra- embasam o ecossistema de notícias. Não estamos dizen-
ponto o monopólio do qual instituições jornalísticas mais do que essas redes existem em um vácuo institucional.
poderosas gozaram durante quase um quarto de século, Nada disso. Instituições de jornalismo estão entre os nós
esses teóricos veem a atual fase de fartura de informa- mais importantes nesse novo ambiente digital. Precisam,
ções, a capacidade de adaptar o conteúdo ao público con- contudo, coexistir de novas formas, ao lado e em conjun-
sumidor e a facilidade de compartilhamento como gran- to com mais grupos e instituições do que nunca – e não
des avanços em relação ao modelo anterior de produção só por razões econômicas, mas também democráticas.
jornalística, menos livre. Precisam se apoiar nesses novos grupos e redes de um
Em comentários ao post do blog discutido acima, David jeito novo. Estamos repetindo aqui nossa tese inicial de
Simon articula com maestria uma segunda ideia do sig- que a indústria jornalística está morta, mas que o jorna-
nificado de mercado “melhor” – uma ideia aparente- lismo segue vivo em muitos lugares.
mente partilhada por uma crescente leva de executivos No ensaio citado anteriormente, James Carey afirma que
da imprensa. “Acredito que a cobertura jornalística local a “ideia da imprensa como cão de guarda, de uma impren-
possa ser sustentada por receitas do meio digital”, diz sa independente de toda e qualquer instituição, imprensa
Simon. “Mas isso requer que o jornalismo institucional que representa o público, imprensa que expõe interesses e
valorize e proteja seus direitos autorais e que o setor como privilégios, imprensa que lança a luz ardente da transpa-
um todo projeta esse direito. Requer, ainda, um reinvesti- rência sobre toda esfera da república, imprensa que bus-
mento real nesse produto.” A essa lista Simon acrescen- ca o conhecimento especializado entre uma barafunda
ta a imposição de paywalls, que segundo ele já demons- de opiniões, imprensa que busca informar o cidadão, são
traram seu poder no New York Times. Em suma, Simon ideais e funções que nos ajudaram muito em momentos
e gente como ele defendem a ação unificada para coibir sombrios”. Mas, continua Carey, “com o século avançan-
agregadores e cobrar pelo conteúdo como uma maneira do, as deficiências do jornalismo moderno foram fican-
de o setor como um todo enfrentar as causas do declínio do cada vez mais evidentes e debilitantes”.
da imprensa. Para que organizações jornalísticas dete- As ideias de Carey sobre as vantagens e as desvanta-
nham o posto de principal fornecedor de notícias, será gens do quarto poder são tão válidas hoje como no passa-
preciso instalar barreiras na internet. do. A crise, no entanto, é ainda mais severa do que quan-
Uma terceira corrente de opinião duvida que qualquer do essas palavras foram redigidas, em 1995. O universo
solução de mercado dessas possa facilmente se mate- da comunicação mudou radicalmente. Para que a presta-
rializar. Teóricos e comentaristas dessa vertente obser- ção democrática de contas promovida pela imprensa ins-
vam quão atípica foi a confluência de instituições capi- titucional sobreviva num mundo pós-quarto poder, essa
talistas abastadas e do jornalismo de interesse público cobrança deve, em si, ser encampada pela rede.
que produziram. Sua tese é que a dinâmica do mercado
digital na verdade pune atores institucionais que bus-
cam criar conteúdo jornalístico amplo, de caráter vigi-
lante. Diferentemente de teóricos da segunda corrente,
no entanto, não acreditam que a atual dinâmica do sis-
tema jornalístico digital possa ser facilmente suplantada
– nem acham que deveria ser necessariamente suplan-
tada, ainda que possível. Certos teóricos dessa corrente
saltam daqui para a tese de que bens públicos produzi-
dos por instituições de imprensa (sobretudo a cobertura
setorista) só podem ser financiados por formas de subsí-
dio alheias ao mercado, sejam filantrópicas ou oriundas
mais diretamente do Estado.
Os três autores deste ensaio se situam nessa terceira
categoria, uma decisão que também embasa nossa tran-
sição de instituições, na presente seção, para o ecossis-
tema jornalístico que vem em seguida, na terceira parte
do documento. Precisamos, em outras palavras, deixar
de depositar toda a esperança democrática na concepção

ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 69


PARTE 3

Ecossistema

A ÚNICA RAZÃO PARA FALARMOS DE ALGO TÃO ABSTRATO quanto um ecossistema jornalísticoé como
meio de entender o que mudou. A mais recente e importante transformação foi, obviamente, a disse-
minação da internet, que conecta computadores e telefones a uma rede global, social, onipresente e
barata. Em se tratando de novos recursos, a capacidade de qualquer cidadão conectado de produzir,
copiar, modificar, compartilhar e discutir conteúdo digital é um assombro, e derruba muitas das velhas
verdades sobre a imprensa e a mídia em geral.

A atividade jornalística no século 20 foi um processo bas- profissionais e amadores se entrecruzam de modo mais dra-
tante linear. Nele, repórteres e editores colhiamosfate obser- mático, e mais imprevisível, a cada dia.
vações e transformavam tudo em notícia, que era então regis- O principal efeito da mídia digital é que não há nenhum
trada em papel ou transmitida por ondas de rádio para serefeito principal. As mudanças trazidas pela internet e pelo
consumida pelo público situado na outra ponta desses dis-celular, e por aplicativos erguidos sobre cada plataforma
tintos meios de transporte. dessas, são diversas e disseminadas o bastante para frustrar
A figura do “pipeline” é a metáfora mais simples para repre-qualquer tentativa de pensar a atual transição como uma for-
sentar esse processo, seja a distribuição de notícias organiza-ça ou um fator únicos. Para entender a situação como uma
da em torno de rotativas ou de torres de transmissão. Partemudança no ecossistema, é útil ter uma noção de onde as
da simplicidade conceitual de meios de comunicação tradi-mudanças estão aparecendo, e de como interagem.
cionais vinha da clareza garantida pela divisão quase total Eis um punhado de surpresas em nosso pedacinho do
de papéis entre profissionais e amadores. Repórteres e edi-mundo nesse século 21:
tores (ou produtores e engenheiros) trabalhavamupstre- “
am”: ou seja, como fonte da notícia. Criavam e burilavam o • Em 2002, quando o senador americano Trent Lott
produto, decidiam quando estava pronto para consumo e, louvou a campanha de segregação racial de Strom
nessa hora, o difundiam. Thurmond em 1948, um dos indivíduos que selaram
Já a audiência ficava “downstream”. Éramos recepto- a queda do líder da minoria republicana no Senado
res do produto, que víamos apenas em seu formato final, foi Ed Sebesta, historiador que vinha reunindo decla-
processado. Podíamos consumi-lo, é claro (aliás, era nossa rações racistas feitas por políticos americanos a gru-
grande função). Podíamos discuti-lo à mesa do jantar ou pos segregacionistas. Pouco depois de Lott ter dito
em meio ao cafezinho – mas não muito mais. A notíciaera que o comentário fora um raro deslize, Sebesta procu-
algo que recebíamos, não algo que usávamos. Se quisésse- rou Josh Marshall, que mantinha o blog Talking Points
mos tornar pública nossa própria opinião, precisávamos Memo (TPM), para mostrar uma lista de comentários
pedir permissão a profissionais, que tinham de ser con- similares (e igualmente racistas) que Lott fizera desde
vencidos a imprimi-la na seção de cartas ao editor ou a nos a década de 1980.
ceder um breve espaço no ar em algum programa aberto à Essa evidência impediu que Lott caracterizasse a
participação do público. declaração como mero deslize e fez com que perdes-
Esse modelo do conduto ainda é central para a imagem se a liderança da bancada republicana. Sebesta monta-
que muitas instituições no meio jornalístico fazem de si, ra o arquivo de declarações racistas por conta própria,
mas o vão entre tal modelo e a realidade atual é grande. E sem nenhum apoio institucional; no mundo dos blogs,
só faz crescer, pois os universos previamente isolados de Marshall era um amador (a empreitada ainda não virara

70 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


uma empresa); e a fonte procurou o veículo (a quase site conseguiu aproximar de forma inédita seu banco
2.500 quilômetros de distância), não o contrário. Aliás, de dados da realidade local: um usuário pode digitar o
como dito na segunda seção do presente dossiê, o TPM nome de um médico no sistema e receber um informe
virou a instituição que é hoje devido ao que Marshall individualizado
. A coleta eorganização de dados de cará-
foi capaz de fazer como amador (em outro exemplo de ter público virou, assim, uma plataforma para a cober-
estabilização institucional). tura de fatos nos planos nacional, local e individual.

• Em 2005, o sistema de transportes londrino foi alvo de Três fatores – maior acesso ao cidadão comum, como no
um atentado a bomba.Ian Blair, chefe da polícia metro- caso de Ed Sebesta; “multidões”, como no caso de inter-
politana de Londres, declarou a emissoras de rádio e nautas em Londres; e máquinas, como no caso do Dollars
TV que o problema era uma pane elétrica no metrô. for Docs – estão viabilizando esquemas de trabalho que,
Minutos depois de veiculadas as declarações de Blair, dez anos atrás, seriam tanto impensáveis como inviáveis.
cidadãos começaram a postar e a analisar imagens dos O projeto “Off the Bus” doHuffington Post, que em 2008,
destroços de um ônibus de dois andares na Tavistock durante a campanha presidencial americana, cobriu todas
Square. Em menos de duas horas, centenas de posts as convenções de eleitores (“caucuses”) no Estado do Iowa
em blogs analisavam essa evidência. Cada post desses com a ajuda de jornalistas cidadãos, terialevado a organi-
chegou a milhares e milhares de leitores e contradizia zação à bancarrota se tocado com correspondentes pró-
abertamente as declarações de Ian Blair. prios. Para monitorar despesas de membros do parlamen-
Diante disso (e ignorando o conselho de sua pró- to do Reino Unido, o jornal britânicoThe Guardianoptou
pria equipe de comunicação), Blair voltou novamen- pelo crowdsourcing – pois, se entregue à redação, a tare-
te ao ar em menos de duas horas para declarar que o fa não só teria custado muito como levado tempo demais.
episódio fora de fato um atentado, que a polícia ain- O jornalismo sempre teve meios para receber denúncias
da não tinha mais informações e que voltaria a se pro- e sempre foi ouvir o cidadão nas ruas. Membros do públi-
nunciar à medida que surgissem mais dados. Quando co sempre recortaram e passaram adiante matérias de seu
se dirigiu ao público, Blair tinha a seu favor o poder de interesse. A novidade aqui não é a possibilidade de partici-
todo meio de comunicação tradicional. Ficou patente, pação ocasional do cidadão. É, antes, a velocidade, a esca-
no entanto, que transmitir uma mensagem única por la e a força dessa participação – a possibilidade de partici-
todo canal de radiodifusão existente já não significava pação reiterada, e em vasta escala, de gente anteriormente
ter o controle da situação. relegada a um consumo basicamente invisível. A novidade
é que tornar pública sua opinião já não requer a existência
• Em 2010, em uma série de reportagens sob o título de um veículo de comunicação ou de editores profissionai s.
Dollars for Docs, o site americanoProPublica expôs o Enquanto um mecanismo de denúncias só funcionava em
fluxo de fundos que escoa da indústria farmacêutica áreas bem circunscritas, o site NY Velocity chegou ao outro
para médicos que receitam seus fármacos. Embora essa lado do mundo para conseguir uma entrevista crucial no
realidade tivesse sido coberta previamente de forma caso dedoping do ciclista Lance Armstrong. Entrevistas de
fragmentada, a investigação do
ProPublica trazia várias rua são aleatórias, pois o profissional controla o modo e o
novidades, incluindo um banco de dados montado a par- ritmo das declarações do cidadão. Já com o Flickr e weblo-
tir de informações que companhias farmacêuticas são gs, internautas britânicos puderam discutir os atentados em
obrigadas a divulgar – além da capacidade e da vonta- Londres em público, a seu bel-prazer, sem nenhum profis-
de jornalística de esmiuçar essa montanha de dados. sional à vista. ODollars for Docs pegou uma barafunda de
O Dollars for Docs não foi só uma notícia nova. Era informações e, com isso, montou um banco de dados que
um novo formato de apuração de fatos. Embora boa garantiu ao site um recurso permanente reutilizado por ele,
parte dos dados utilizados fosse de caráter público, por outras organizações e por milhões de usuários ao longo
essa informação não fora centralizada nem padroni- de mais de dois anos.
zada a ponto de se tornar útil; munido desse banco de Em outras palavras, a mudança de grau aqui é tão gran-
dados, oProPublica foi capaz de expor uma realidade de que acaba sendo uma mudança de gênero. É como disse
nacional e, ao mesmo tempo, dar ferramentas para que Steven Levy ao escrever sobre o iPod: quando melhora algo
outras organizações cobrissem o fenômeno no plano em 10%, a pessoa fez um aprimoramento; já quando faz algo
local; hoje, outras 125 publicações já lançaram repor- dez vezes melhor, está criando algo novo. Novas
ferramentas
tagens sobre o tema devido à série srcinal do site (por digitais podem acelerar padrões atuais de apuração, edição
não ter fins lucrativos, oProPublica pode atuar tanto e publicação de notícias de forma tão radical que isso tudo
no varejo como no atacado da notícia). Além disso, o passa a ser algo novo.
ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 71
ESPECIAL | ECOSSISTEMA

Vivemos hoje um choque de inclusão – choque no qual o também o modo como os demais atores afetam essas institui-
antigo público se envolve cada vez mais em todo aspe
cto da ções. A preferência do público por notícias sobre Hollywood a
notícia, como fonte capaz de expressarsua opinião publica- Washington, a presença da concorrência a um clicar do mou-
mente, sem nenhuma ajuda, como grupo capaz tanto de criar se, a atual interpretação da Primeira Emenda da Constituição
como de vasculhar dados de um jeito inviável para profis-norte-americana pela Suprema Corte do país, a proliferação
sionais, como divulgador, distribuidor e usuário de notícias.de câmeras de alta qualidade em celulares: tudo isso é parte
Esse choque de inclusão se dá de fora para dentro. Não está
do ecossistema jornalístico nessa alvorada do século 21, com
sendo promovido pelos profissionais até então no coman-efeitos do velho e do novo totalmente embaralhados.
do, mas pelo velhodapúblico.
empreendedores É fomentado,
comunicação, ainda,e por
por homens novoso tipo
mulheres O ecossistema
de históriatambém
que é ouafeta a capacidade
não coberta institucional:
é determinado por
interessados em criar sites e serviços que abracem, em vezvários fatores – pela audiência, pela vontade de anunciantes,
de ignorar, o tempo livre e o talento do público. por estruturas narrativas. Todo mundo sabe contar a história
A importância do jornalismo não vai acabar. A importân-de um atleta trapaceiro ou de uma empresa insolvente, mas
não vai acabar. O que não há estrutura narrativa óbvia para a tensão ent
cia de profissionais dedicados ao ofício re a união
está chegando ao fim é a linearidade do processo e a passi-monetária e fiscal na União Europeia, ainda que esta últi-
vidade do público. O que está chegando ao fim é um mun do ma seja de longe a mais importante. Na mesma linha, fato se
no qual a notícia era produzida só por profissionais e consu-suposições ligados a coisas como o acesso a dados, a valida-
mida só por amadores – amadores que, por conta própria,de de fontes, a natureza e os limites de parcerias aceitáveis,
eram basicamente incapazes de produzir notícias, distribuí-entre outros, afetam o que instituições creem que podem ou
-las ou interagir em massa com essa informação. não fazer, que devem ou não fazer.
Tão robusta e multifacetada é tal transformação que deví- No modelo jornalístico dopipeline, instituições estabe-
amos considerar o total abandono doermo
t “consumidor” e lecidas poderiam ser vistas como uma série de gargalos de
simplesmente tratar o consumo como uma de váriasondu-
c produção controlados e operados por empresas de comu-
tas que o cidadão hoje pode exibir. As mudanças que estãonicação que, com isso, tiravam receita tanto de anunciantes
por vir superarão as que já vimos, pois o envolvimento docomo do público. Esses gargalos eram subproduto do custo e
cidadão deixará de ser um caso especial e virará o núcleo de da dificuldade incrível de reproduzir e distribuir aforma-
in
nossa concepção de como o ecossistema jornalístico pode-ção, por rotativas ou torres de transmissão. Como observa-
ria e deveria funcionar. do na seção anterior, nesse ecossistema instituições tinham
alto grau de controle sobre a própria sorte.
Para imprimir e distribuir um jornal diário, era preciso
Ecossistemas e controle uma equipe grande e qualificada – e maior ainda para pro-
duzir e transmitir um telejornal. A concorrência era limita-
Falar de um “ecossistema jornalístico” é admitir que nenhu-da por esses custos e dificuldades, bem como pelo alcance
ma organização de imprensa, hoje ou no passado, foi senho-geográfico de caminhões de entrega e sinais de transmis-
ra absoluta do próprio destino. Relações em outras partessão. No pequeno número de organizações com meios para
do ecossistema definem o contexto de toda e qualquer orga-criar e distribuir notícias, estruturas profissionais comple-
nização; mudanças no ecossistema alteram esse contexto. tas foram erigidas.
Este ensaio começou com um foco no jornalistanos e dis- Essa institucionalização se deu primeiro em jornais e revis-
tintos métodos usados peloprofissional para apurar, proces- tas; a máquina impressora precedeu não só o rádio e o cine-
sar e interpretar informações e fatos de caráter vital para ama, mas também o motor a vapor e o telégrafo. A estrutura
vida pública. A maioria dos jornalistas exerce o ofício dentro profissional de repórteres, editores, publishers e, mais tar-
de instituições; várias coisas moldam uma instituição dessasde, ilustradores, diagramadores, checadores e todo o resto
– o porte e a composição da redação, a imagem que tem dedo aparato utilizado na produção de um jornaloram f ergui-
si mesma, fontes de receita. Essas instituições, por sua vez,dos em torno de – ou literalmente “sobre” as – gigantescas
determinam o trabalho do jornalista: que fatos o profissionalmáquinas que aplicavam a tinta ao papel. Departamentos
pode ou não cobrir, o que éconsiderado um trabalho bom ou de jornalismo de emissoras de rádio e TV seguiram o mes-
ruim, com quem pode colab mo padrão, inventando categorias e práticas profissionais
orar, que recursos tem a seu dispor.
As instituições em si estão em situação análoga, operando para subdividir e sistematizar tanto o trabalho como dis-
tintas categorias de profissionais envolvidos na produção
no âmbito da mídia que cobre notícias (e, às vezes, até na parte
que não cobre). Esse ecossistema jornalístico (doravante cha- de notícias para a radiodifusão.
mado apenas de “ecossistema”) inclui ainda outras instituiçõesFoi então que chegou a internet, cuja lógica básica – a
– concorrentes, colaboradores, fornecedores –, mas abarcareprodução digital, disponível universalmente, sem divisão

72 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


de participantes em produtores e consumidores – bate deinovação na cobertura ao vivo do furacão Irene, substituin-
frente com princípiosorganizadores da produção jornalísti- do a página principal do site do jornal por um blog em tem-
ca vigentes desde o século 17. A abundância cria mais ruptu- po real, oStorm Tracker.
ra do que a escassez; quando todo mundo de repente passa Isso feito, o jornal despachou repórteres para as ruas.
a ter muito mais liberdade, toda relação no velho modelo –Munidos de câmeras e celulares (em geral, o mesmo apa-
no qual o meio de comunicação cobrava para “operar o gar- relho), foram registrar de tudo: o processo de evacuação, a
galo” – pode ser questionada. luta de moradores para se proteger da tormenta, os efeitos
A chegada da internet não trouxe um novo ator para o do vento e da água em si. Essa cobertura ao vivo foi interca-
ecossistema jornalístico. Trouxe um novo ecossistema – lada com informações de serviços de meteorologia, de ser-
nem mais, nem menos. Com ele, o anunciante pode chegarviços de emergência e da prefeitura, tudo ocorrendo para-
ao consumidor diretamente, sem pagar nenhum pedágio –lelamente à tempestade.
algo que muito consumidor até prefere. O amador pode ser A cobertura ao vivo da catástrofe no blog do Daily News
um repórter “na acepção do termo” (“reportador”): a notí-foi um êxito e rendeu grandes elogios ao jornal. Só que por
cia do terremoto em Sichuan, na China, do pouso de emer-pouco não ocorreu. O queprecipitou o projetoStorm Tracker
gência de umavião no Rio Hudson, emNova York, e de mas- não foi uma estratégia nova para o meio digital, mas o colap-
sacres na Síria partiu, sempre, de relatos de gente na cenaso de uma velha. Já que a sede doDaily News fica em uma
dos fatos. A doutrina do “uso justo”, até então uma válvu-região de Manhattan sujeita a alagamentos, a polícia limitou
la de escape para a reutilização disciplinada de pequenosseveramente o número de trabalhadores que podiam che-
blocos de conteúdo por um pequeno grupo de meios virou, gar ao lugar no fim de semana em que o Irene passou pela
de repente, uma oportunidade para a construção de opera-ilha. A princípio, isso não impediria que se subisse conteú-
ções ineditíssimas de agregação ereblogging
“ ”. E por aí vai. do digital no site – salvo pelo fato de que o sistema de ges-
Quando a mudança é pequena ou localizada e instituiçõestão de conteúdo do jornal fora projetado para dificultar o
estabelecidas estão bem adaptadas a essas condições, não fazacesso de quem não se encontrava no prédio.
muito sentido pensar no entorno como um “ecossistema”, Como dito anteriormentepor Anjali Mullany,pioneira no
pois a simples resposta a pressões competitivas e a adapta-uso ao vivo de blogs noDaily News e responsável pela ope-
ção a mudanças pequenas e óbvias já bastam. Para institui-ração Storm Tracker, a necessidade de erguer um processo
ções jornalísticas, no entanto, as mudanças da última déca-de produção em torno do CMS é um grande obstáculo (não
da não foram nem pequenas, nem localizadas. raro invisível) a tentativas de inovação. Nesse caso especí-
Um tópico comum na discussão da reação de meios defico, oDaily News tinha pego uma ferramenta que podia ter
comunicação tradicionais a essas mudanças é a incapacida-permitido o acesso de qualquer funcionário do jornal, em
de de executivos de jornais de reconhecer os problemas quequalquer lugar do mundo, e acrescentado mecanismos de
enfrentariam. A nosso ver, esse diagnóstico é equivocado: asegurança que, na prática, faziam o recurso agir como uma
transição para a produção e a distribuição digital de infor-velha rotativa a vapor: o trabalhador tinha de estar perto da
mação alterou de forma tão drástica a relação entre meiosmáquina para operá-la – ainda que no caso a máquina fosse
de comunicação e cidadãos que “seguir como sempre” nun-um computador ligado a uma rede mundial.
ca foi uma opção – e, para a maioria da imprensa bancada A necessidade por trás do lançamento de Storm Tracker,
por publicidade, nunca houve saída que não envolvesse umaem outras palavras, não foi achar umito
je novo de levar infor-
dolorosa reestruturação. mação à população de Nova York durante uma tempestade
Um tema parecido é a imprevisibilidade e a surpresa. das grandes, mas simplesmente descobrir uma maneira de
Aqui, a explicação para a crise atual é que mudanças recen-manter o site no ar quando péssimas decisões de engenha-
tes foram tão imprevisíveis e vieram de forma tão rápida que ria colidiram com uma tragédia climática.
organizações tradicionais foram incapazes de se adaptar. É Esse foi um fator essencial no lançamentoStorm do Tracker.
outra visão equivocada: ainda no fim da década de 1980 jáHavia outro. Em entrevistas com Mullany sobre o sucesso
havia projeções plausíveis do problema que a internet cau-do projeto, a jornalista observou que por sorte o Irene che-
saria para a indústria jornalística e, apesar de muito se falargara no final de agosto e não no início de sete
mbro. É que no
da “velocidade da internet”, o ritmo dessa mudança foi gla-final de agosto o grosso da alta chefia estava de férias. Não
cial; se partirmos de 1994 (ano em que a internet comercialpodia, portanto, reverter a decisão do pessoal de escalão
se difundiu para valer), executivos tiveram 75 trimestres inferior, que entende mais de internet, de testar algo novo.
consecutivos para se adaptar. Conforme observado na segunda seção, instituições são
Relatos isolados de adaptação (ainda que triunfal) ao
atual feitas para resistir a mudanças – é suacore
“ competence”,
ecossistema deixam claro quão difícil é essa adaptação. Emno jargão de consultores de gestão. O risco, obviamente, é
o York Daily News fez uma que o sucesso excessivo nessa área possa preservar a lógica
agosto de 2011, por exemplo, New

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interna de uma instituição até o momento em que entra emhá, contudo, resposta certa para a pergunta: “Quem publica
colapso. Se para inovar à moda doStorm Tracker for preciso e quem é fonte?”. OWikiLeaksé uma fonte capaz de publi-
uma tecnologia cheia de entraves, o medo de que a redaçãocar no mundo todo. E é um meio que colabora com outros
seja varrida para o mar e uma chefia em férias, as perspecti-no repasse de informações em estado bruto.
vas de inovação ordenada em organizações tradicionais são A cobertura de eventos como #Occupy e Cablegate (bem
péssimas (um triste epílogo: durante o furacão Sandy o pré-como levantes na Tunísia, massacres na Síria, tsunamis na
dio doDaily News foi alagado e os usuários do CMS tiveram Indonésia, acidentes de trem na China e protestos no Chile)
o mesmo problema que durante o Irene; passado um ano da simplesmente não pode ser descrita ou explicada com a
primeira crise, ninguém tinha adaptado o sistema para per-velha linguagem do conduto. A melhor justificativa para pen-
mitir a ação de uma força de trabalho distribuída). sarmos no jornalismo como ecossistema é ajudar a rever o
Diante disso, a fabulação coletiva da velha imprensa no sen- papel que instituições podem exercer em dito ecossistema.
tido de restituir sotatu quo anteé, em si, nociva. Or
ganizações Imagine dividir cada novo ente do ecossistema em três
jornalísticas devem, obviamente, fazer o possível para elevar grandes categorias – indivíduos, massas e máquinas (ou seja,
sua renda, mas a receita garantida, o lucro alto e as normastanto novas fontes de dados como novas maneiras de pro-
culturais do setor no século 20 se foram, e ecossistema
o que cessá-los). Indivíduos adquiriram novos poderes porque,
produzia tais efeitos, também. Para o jornalista, e para institui-
hoje, todo mundo tem acesso a um botãozinho onde se lê
ções que o servem, a redução de custo, além de uma reestru- “publicar”; qualquer informação pode aparecer e salastrar,
turação para garantir mais impacto por hora ou dólar inves- levada nas asas de redes sociais hoje densas. As massas têm
tido, é a nova norma de organizações jornalísticas eficazespoder porque a mídia agora é social, criando um substrato
– padrão que hoje chamamosde jornalismo pós-industrial. não só para o consumo individual, mas também para a con-
versa em grupo. A norte-americana Kate Hanni soube usar
a seção de cartas de jornais para lutar pelos direitos de pas-
Ecossistema pós-industrial sageiros de companhias aéreas porque entendia, melhor do
que os próprios meios, que aquelerae um espaço de congre-
Como descrever o jornalismo pós-industrial? O ponto degação de leitores. E máquinas hoje ganharam po der porque
partida é uma premissa apresentada na segunda seção. Aa explosão de dados e métodos de análi se abre perspectivas
saber, que organizações jornalísticas já ão n possuem o con- inéditas nesse campo, como exemplificado pela análise léxi-
trole da notícia, como se supunha que possuíam, e que o grauca e de rede sociais na esteira da divulgação de telegramas
maior de defesa do interesse público por cidadãos, governos,do Departamento de Estado americano.
empresas e até redes com elos fracos é uma mudança per- Assim como não dá para confinar o WikiLeaksexclusiva-
manente, à qual organizações jornalísticas devem se adaptar. mente à categoria de fonte ou à de meio de difusão, um veí-
Um exemplo dessa mudança veio durante a retirada de culo de imprensa não tem como adotar uma postura infle-
manifestantes do movimento Occupy Wall Street de umaxível diante do novo poder do indivíduo, da disseminação
praça em Nova York em novembro de 2011.A notícia não foi de grupos absurdamente fáceisde formar ou do maior volu-
veiculada primeiro pela imprensa tradicional, mas pelos pró- me de dados brutos e do novo poder de ferramentas analí-
prios acampados, que avisaram sobre a ação da polícia porticas. Como a experiência imprevista do Daily News com a
SMS, Twittere Facebook. Participantes do protesto geraram cobertura de tragédias via blog demonstra, não são recursos
mais fotos e vídeos do episódio do que meios tradicionais,que podem ser agregados aovelho sistema para aprimorá-lo.
em parte porque a esmagadora maioria das câmeras estavaSão recursos que mudam qualquer instituição que os adote.
nas mãos de manifestantes e, em parte, porque a polícia bar- Imaginemos, agora, dividir a atividade básica de uma
rou helicópteros da imprensa do espaço aéreo sobre a praça.organização jornalística em três fases sobrepostas: apuração
Repórteres no local escondiam crachás de meios de comu-de informações sobre um fato, transformação desse mate-
nicação, pois o cidadão comum tinha mais acesso à cena dosrial em algo digno de ser publicado e posterior publicação.
fatos do que gente credenciada da imprensa. Essa divisão do processo jornalístico em apuração, produ-
Um outro caso: organizações jornalísticas que publica-ção e publicação é, naturalmente, simplista, mas sintetiza
ram documentos sigilosos obtidos via WikiLeaksem geral a lógica básica da produção na imprensa: buscar material
tratavam oWikiLeakscomo fonte, não veículo de informa- no mundo lá fora, colocar essa informação no formato que
ções. A lógica era que oWikiLeaks fornecia o material de a organização deseja (um artigo, uma série, um post) e, isso
base para seu trabalho. Isso faz sentido quando detento- feito, difundir ao mundo o material em seu novo formato.
res de informações importantes não podem difundi-las por Munidos dessas duas tríades, lançamos a pergunta: “Qual
conta própria e quando um meio de comunicação não divi-o impacto de indivíduos, massas e máquinas no trabalho de
de com outros o material obtido de uma certa fonte. Já nãoapuração, produção e difusão da informação?”

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• Um exemplo dessa fase de “apuração” dos fatos veio do violência nas ruas, de níveis de radiação e de remoção
blog de ciclismo NY Velocity, fundado em 2004 por três Ushahidipara even-
de neve das ruas. Cada aplicação do
fãs do esporte, Andy Shen, Alex Ostroy e Dan Schmalz. tos de interesse jornalístico é um exemplo da máquina
Embora o propósito básico do site fosse cobrir o ciclis- alterando a forma como dados são coletados, compila-
mo em Nova York, seus criadores foram ficando cada dos e apresentados.
vez mais perturbados com o silêncio público e conscien-
te diante da possibilidade de que Lance Armstrong, sete Cada atividade básica dessas – apurar, produzir e distribuir
vezes vencedor do Tour de France, tivesse apelado para a notícias – está sendo modificada por novas formas de parti-
eritropoietina (EPO), um hormônio que aumenta resis-
a cipação de indivíduos, grupos e máquinas. Como observado
tência do atleta. O site entrevistou Michael Ashenden, na segunda seção, o significado e o alcance dessas mudan-
o médico australiano que criara um teste para detec- ças devem frustrar o desejo de instituições de incorporar
tar a presença do hormônio; na entrevista, Ashenden aos poucos as ditas transformações. Muitas das recomen-
afirmou que, tendo testado uma amostra de sangue de dações dessa seção são, portanto, ecos das apresentadas na
Armstrong colhida na Tour de France de 1999 (que ele seção sobre instituições; quando são repetidas aqui, é com
venceu), sua opinião era que o atleta usara, sim, a subs- maior ênfase no fato de que o emprego desses novos recursos
tância. Foi uma reportagem exclusiva, no velho forma- e capacidades significa a adaptação a um novo ecossistema.
to jornalístico. A entrevista, de 13 mil palavras, serviu
para galvanizar a opinião de ciclistas que achavam não
só que Armstrong conquistara essas vitórias injustamen- A notícia como produto de importação e exportação
te, mas que o jornalismodesportivo profissional esta va
disposto a fechar os olhos para o fato. Já os fundadores Uma maneira de analisar um ecossistema é perguntar o que
do NY Velocity estavam dispostos a buscar a verdade troca de mãos entre seus participantes. Como dito ante-
de forma tenaz e pública; além de terem suas suspeitas riormente, no século 20 esse fluxo era relativamente linear
confirmadas, no final também mostraram que profissio- e previsível; fluxos de informação envoltos em considerá-
nais da imprensa simplesmente não estavam cobrindo vel complexidade em geral eram parte de contratos comer-
o fato como deviam – e que gente da área em questão, ciais altamente detalhados, como a reprodução comerciali-
com empenho e conhecimento dos fatos, podia muito zada de conteúdo de outros meios syndication (“ ”) ou o uso
bem preencher essa lacuna. de material de agências de notícias.
O valor de uma matéria daAssociated Press (AP) para
• Em outro cruzamento do método tradicional com um jornal estava refletido no interesse do público local;
novas possibilidades, vejamos como a capacidade de assinar o serviço daAP valia a pena quando o valor desse
formar grupos mudou a cobertura dos fatos. O proje- interesse ajudava o jornal a gerar mais receita publicitária
to de 2008 doHuffington Post citado lá atrás conse- do que o custo do serviço.
guiu cobrir todos oscaucuses no Iowa porque despa- Era um sistema no qual o valor gerado para as duas par-
chou um voluntário para cada lugar para um trabalho tes era definido em acordos bilaterais e calculado em ter-
de uma ou duas horas, algo que teria custado demais mos monetários – um jornal firma um acordo com aAP
com a contratação de freelancers e exigido um vaivém em troca do acesso a seu conteúdo. A título de compara-
excessivo da equipe da redação. Os voluntários do pro- ção, peguemos o modelo srcinal doHuffington Post: par-
jeto Off the Bus não redigiram o texto sobre cada “cau- te do material publicado no sitepoderia trazer trechos de
cus”; o projeto foi um híbrido de reportagem distribuí- outros artigos, agregar comentários e produzir umprodu-
da e redação centralizada; foi, de certa forma, a volta à to novo, economicamente viável.
velha separação de repórteres nas ruas e redatores em Essa forma de “uso justo” existe há décadas. O que
mudou
redações próximas do maquinário. foram as condições do ecossistema. A chefia do Huffington
Post percebeu que, no meio digital, o uso justo significava,
• Outro exemplo do cruzamento de atividades atuais na prática, que todo o material de uma agência de notícias, e
e novos recursos é a maneira como o relato de certos que a citação de trechos e comentários de con teúdo exclusi-
fatos pode ser feito por máquinas. Vários projetos que vo do Washington Postou do New York Times, tinham mui-
empregaram oUshahidi, uma ferramenta de “mapea- to mais valor para o leitor do que a contratação dos serviços
mento de crises”, passaram de “recurso para a supera- de uma AP ou Thomson Reuters.
ção de crises” para “recurso para compreensão de cri- O Huffington Post já foi muito criticado por essa atitu-
ses em tempo real”. OUshahidijá foi usado para criar de, mas isso é como atirar no mensageiro. O que o site fez
mapas em tempo real da intimidação de eleitores, da foi entender onde a legislação atual e novas tecnologias se

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cruzam. A própria AP vem testando algo novo: deixar de dia veria um jornal do interior doKentucky). A ideia de que
repassar grandes notícias a assinantes na tentativa de obterdaria para cobrar pela reprodução de conteúdoosyndication

um tráfego mais direto. Na mesma linha, a briga daAP com – é um conceito relativamente nov o na história jornalística.
Shepard Fairey,o artista que criou umapopularíssima ima- O modelo de “syndication” (ou distribuição comerciali-
gem de Barack Obama inspirado em uma oto
f daAP, repousa zada) que existia sob o regime de produção de notícias do
na tese de que aAP tinha o direito de fotografar Obama sem século 20 não está, portanto, sob pressão devido à má-con-
sua permissão, mas que Fairey não podia usar aquela ima-duta de certos atores, mas porque a configuração básica do
gem para criar algo semelhante. No caso Fairey, não haviameio jornalístico mudou drasticamente. No modelo antigo,
realidade objetiva sobre a qual fundar o caso – tudo o quea reutilização de material era contratual (freelancers, agên-
havia era um conjunto de doutrinas jurídicas. cias de notícias) ouoculta. No novo modelo (velhos modelos,
A velha ética foi descrita por Terry Heaton num post inti- na verdade), há muitas formas de reaproveitamento; algu-
tulado “Por que não confiamos na imprensa?”: mas são contratuais, mas a maioria não o é. Embora a AP seja
um caso particularmente visível, toda instituição jornalísti-
Ninguém nunca cita outros no universo da cobertura jor- ca vai ter de se posicionar ou de se reposicionar em relação
nalística a menos que obrigado a tal por uma questão de a novas externalidades no ecossistema.
direito autoral. Antes da internet, até dava para enten- O espectro da troca de valorentre indivíduos e organiza-
der, pois até onde sabíamos nossos repórteres sabiam ções é enorme ealtamente graduado. Hoje , é imperativo que
tudo o que era preciso saber sobre um fato. A tese de que a instituição tenha a capacidade de estabelecer parcerias (for-
alguém, em outro lugar, tivesse essa informação primei- mais e informais) possibilitadas pelo novo ecossistema. Para
ro era tão irrelevante que nem valia a pena mencioná-la. darmos um exemplo recente, important e por si só e por aqui-
Para nossos leitores ou telespectadores, éramosfon- a lo que revela sobre essenovo mundo, traduzir material escri-
te de todo conhecimento. Além disso, tínhamos tempo to e falado hoje é muitíssimo mais fácil e barato do que já foi.
para levantar toda informação de que precisávamos. Era Ferramentas de tradução automática são muito melhores
o mundo do produto jornalístico“acabado”. hoje do que há coisa de cinco anos, como ilustrado pelo uso
Mas agora, com a informação em tempo real, qual- do tradutor do Google por falantes de língua inglesa para
quer um pode ver claramente o papel de cada fonte na ler tweets em árabe; pelocrowdsourcingda tradução para
informação. Sabemos quem a tinha primeiro. Sabemos verter volumes incríveis de material em pouquíssimo tem-
quando algo é exclusivo. Nossa propaganda de nós mes- po (como no caso do dotSUB e da tradução das TEDTalks);
mos perdeu totalmente o sentido. e pelo surgimento de instituições dedicadas a transpor abis-
mos linguísticos e culturais como Meedan ou ChinaSmack.
No novo ecossistema jornalístico, hoje é óbvio que a ideiaHoje, toda instituição no mundo está diante de duas opções
de todo mundo produzir do zero um artigo acabado sim-estratégicas: quando, e de que idiomas, começar a traduzir
plesmente não é o normal. Somos externalidades uns dosmaterial didático ou conteúdo já produzido para apresentar
outros. Em certa medida, sempre foi assim – jornais ajuda-a nosso público e quando, e para que idiomas, traduzir nos-
vam a definir a pauta de veículos de radiodifusão no século so próprio material para tentar chegar a um novo público.
20 –, embora em geral fosse algo oculto, como Heaton con- Imaginar a notícia com o um produto linguístico de impor-
ta. A explosão de fontes e a queda do custo de acesso tor-tação e exportação, investir na importação do árabe para o
naram mais saliente o aspecto interligado do jornalismo. Oinglês, possivelmente em todos os níveis da curva de cus-
site Slashdot era nitidamente fonte de ideias de pauta para to-qualidade, poderia ser utilíssimo para qualquer reda-
o caderno de tecnologia doNew York Times; outro, oBoing ção americana que queira cobrir assuntos geopolíticos. Já o
Boing, gera tráfego para sites desconhecidos, porém inte- investimento na exportação do inglês para o espanhol, dada
ressantes, que volta e meia servem de subsídio para repor-a tendência demográfica nos Estados Unidos, poderia con-
tagens em outros lugares, e assim sucessivamente. tribuir muitíssimo para a aquisição e a retenção de público.
De certo modo, a agregação, a inspiração, a citação e até a
“cópia” deslavada de conteúdo jornalístico que ocorre no ecos- Recomendação: aprender
sistema é um retorno aeras anteriores da atividade jornalís- a trabalhar com parceiros
tica, na qual jornalecos do interioràs vezes não passavam de
um apanhado de notícias requentadas de grandes diários. A Numa foto famosa tirada nos Jogos Olímpicos de 2008,
capacidade de agregar notícias, à século 18, se devia em par- uma falange de fotógrafos se acotovela numa plataforma
te à falta de normas institucionais (reproduzir matérias era para bater o que seria, basicamente, uma foto idêntica
“ilegal”? Poucos editores deviam encarar a coisa nesses ter- do nadador Michael Phelps. A redundância retratada
mos) e em parte à tecnologia (pouca gente em Nova York um é impressionante. Algo como meio milhão de dólares

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em equipamento foi comprometido para o registro de desenvoltura básica com números. É um problema que
um mesmo momento, de um mesmo ângulo. Pior ain- chamamos de “Final Cutversus Excel”: faculdades de
da é o custo humano de dezenas de fotógrafos talen- jornalismo estão mais aparelhadas para ensinar técni-
tosos competindo por um valor incremental mínimo. cas básicas de produção de vídeo do que de explora-
Essa forma de competição, na qual cada institui- ção básica de dados.
ção tem de cobrir a mesma coisa de modo ligeiramen- Embora a ênfase em ferramentas de apresentação em
te distinto, era absurda até quando essas organizações detrimento da investigação seja um problema mais
gra-
nadavam em dinheiro. Hoje,com a perda incessante de ve em faculdades de jornalismo dos Estados Unidos, o
recursos, é também nociva. problema assola o setor inteiro (é como disse Bethany
McLean, da revistaVanity Fair: “Qualquer pessoa capaz
Instituições jornalísticas precisam aprender a atuar em de entender um balanço de empresas provavelmen-
parceria com indivíduos, organizações e até redes pou- te vai estar trabalhando no mercado financeiro, e não
co coesas tanto para ampliar seu alcance como para redu- cobrindo esse setor”).
zir custos. Há vários exemplos de sucesso: uma parceria do Os obstáculos mais sutis são culturais: para usar o
New York Times com a rádio WNYC (a SchoolBook) para trabalho sistematizado por outros é preciso superar a
melhorar a cobertura dos dois meios na área de educação; chamada síndrome do “não foi inventado aqui” e acei-
WikiLeakse Dollars for Docs, já citados; o uso sem compro- tar que será preciso um grau maior de integração com
missos de dados digitais colhidos pela Sunlight Foundation organizações externas para tirar proveito de novas fon-
ou pelo Data.gov. Buscar maneiras de usar e reconhecer o tes de dados. Há outro obstáculo cultural: embora o uso
trabalho desses parceiros sem a necessidade de classificar de dados e APIs em geral não tenha um custo, organi-
tudo por categorias como “fonte” ou “fornecedor” ajudaria zações que abrigam essa informação querem crédito
a ampliar o leque de possíveis colaborações. por ajudar a criar algo de valor. Essa necessidade bate
de frente com a tendência acima citada de não dar cré-
Recomendação: descobrir como usar dito a terceiros em público.
o trabalho sistematizado por outros Essa lógica, naturalmente, não vale só para o uso
do trabalho alheio. Organizações jornalísticas devem
Esse é um subconjunto da recomendação anterior. melhorar a própria capacidade de disponibilizar seu tra-
Vemos, hoje, o enorme crescimento de dados estrutu- balho de forma sistemática para reutilização por outras
rados (dados que já se encontram em formato altamen- organizações, seja pela partilha de dados, se
ja pela par-
te ordenado e bem descrito, como um banco
de dados) tilha de ferramentas e técnicas. Sempre haverá tensão
e o aumento correlato de APIs (interfaces de
programa- entre a lógica competitiva e a cooperativa no ecossis-
ção de aplicativos, uma forma sistemática de máquinas tema jornalístico. Na atual conjuntura, no entanto, o
dialogarem). Ao juntarmos as duas coisas, temos um custo de não empreender um esforço conjunto subiu,
aumento potencial na colaboração sem cooperação: o custo de colaborar sem muito ônus caiu considera-
quando um meio de comunicação aproveita dados ou velmente e o valor de trabalhar sozinho despencou.
interfaces disponíveis sem a necessidade de solicitar Como observado na seção 2, a presença de processos
ajuda ou permissão à instituição que abriga os dados. costuma ser um obstáculo maior à mudança do que a
É, naturalmente, algo importante, pois garante o falta de recursos. Tirar proveito do trabalho sistemati-
acesso a baixo custo e alta qualidade a um material até zado por outros e descobrir maneiras de torn ar seu tra-
então indisponível. Tal como ocorre com tantos recur- balho sistematicamente útil para outros são saídas para
sos novos no cenário atual, no entanto, dados estrutu- a produção de um trabalho de maior qualidade a um
rados e APIs não são ferramentas onvas para fazer coi- custo menor. Para isso, no entanto, a organização pre-
sas à moda antiga. São ferramentas cuja adoção altera cisa começar a tratar a redação como uma operação de
a organização que as emprega. importação e exportação, não como um chão de fábrica.
Na hora de tirar proveito do trabalho sistematizado
por outros, os obstáculos maisbvios
ó são a falta de capa-
citação técnica e visão para usá-lo. Por sorte, a situação Autodefinição como vantagem competitiva
está melhorando um pouco, já que ferramentas como
Many Eyes e Fusion Tables estão facilitando a vida de Não há solução para a presente crise. Um corolário é que a
quem não tem muito traquejo técnico e quer explorar prática do jornalismo não chegará, num futuro próximo, a
grandes bancos de dados para desvendar padrões. Até nenhuma condição de estabilidade. Não estamos vivendo uma
com esses avanços, no entanto, jornalistas carecem de transição de A para B (de Walter Cronkite para Baratunde

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Thurston, por assim dizer), mas uma transição de um para Já que a internet ofereceo potencial de variedade infini-
muitos, de um mundo no qual Cronkite era capaz de repre-ta, o argumento em favor da audiência de nicho (e da leal-
sentar um ponto focal para outro com uma cacofonia de dade de nicho) também é forte aqui. Além disso, a velha
vozes: Thurston,Rachel Maddow, Juan Cole, Andy Carvin, lógica da segmentação geográfica da cobertura local per-
Solana Larsen – para citar só alguns dos personagen
s de um mitia a veículos de comunicação contratar uma agência
elenco de milhões. de notícias ou comprar pacotes de conteúdo distribuído
Já vimos isso em microcosmos: na transição da TV abertanacionalmente sabendo que o público não veria o mes-
para a TV a caboou, num exemplo menospopular, da radio- mo conteúdo publicado ou exibido em uma cidade vizi-
difusão terrestre
emissoras para
voltadas a rádio
a uma viafaixa
ampla satélite, quandopara
do público passamos
nichosde
nha. Com
lização deaconteúdo,
chegada da
nobusca como
entanto, forma básica
o usuário típicode loca-
hoje tem
altamente específicos (Comedy Central, Food e, na rádio viaacesso a milhares de fontes para matérias sobre os pira-
satélite, não só blues, mas “Delta blues” ou “Chicago blues”).tas somalis, digamos – a vasta maioria delas derivada de
um mesmo texto de agência de notícias.
Recomendação: incluirlinks para o material-fonte Isso cria um novo imperativo para organizações jorna-
lísticas – imperativo para o qual a estratégia de “ser tudo
O link é a “affordance” tecnológica básica da internet, para todos em um raio de 50 quilômetros” já não funcio-
o recurso que a distingue de outras formas de publi- na. Há serviços úteis a serem prestados por organizações
cação. É como se dissesse ao usuário: “Se quiser saber hiperlocais (St. Louis Beacon, Broward Bulldog), outros por
mais sobre o tema aqui discutido, é possível achar mais organizações hiperglobais (New York Times, BBC), outros
material aqui”. É uma forma de respeitar o interesse do ainda por sites de nicho voltados a análises altamente espe-
usuário e sua capacidade de seguir os acontecimentos cializadas (Naked Capitalism, ScienceBlogs) e por aí vai.
por conta própria. Aqui, a escolha é entre abrangência e profundidade. A
Na prática jornalística, a forma mais básica de link é internet produz um salto imenso em diversidade num mun-
para o material-fonte. Uma matéria sobre um indicia- do dominado pela imprensa escrita e falada. Ultimamente,
mento recente deve ter um link para o texto do indi- um volume crescente de notícias vem circulando por
ciamento. Uma discussão de um artigo científico deve mídias sociais, sobretudo Twitter e Facebook; o crescen-
ter um link para o artigo. Um textinho sobre um vídeo te domínio da difusão social de notícias e comentários
engraçado deve ter um link para o vídeo (ou, melhor reduz ainda mais a capacidade de qualquer site de pro-
ainda, incorporar o vídeo ao texto). duzir um pacote exaustivo de notícias.
Não se trata de uma estratégia digital sofisticada, Há espaço para textos rápidos, redigidos às pressas,
mas sim de pura ética comunicativa. E o que espanta é sobre notícias que acabam de chegar. Há espaço para
que tantos veículos de comunicação não passem nes- análises relativamente rápidas, de extensão relativamen-
se teste básico. A culpa é de velhos obstáculos culturais te curta (o primeiro esboço da história). Há espaço para
(como na observação de Terry Heaton sobre não dar o a análise refletida e minuciosa por gente que entende da
crédito), de hábitos arraigados (antigamente, a redação coisa para um público que entende da coisa. Há espa-
tinha pouco tempo e espaço para ficar citando fontes ço para relatos impressionistas, de fôlego, sobre o mun-
de informação) e do receio comercial de encaminhar do alheio à balbúrdia do noticiário diário. E assim suces-
o leitor para outro lugar. sivamente. Não são muitas, no entanto, as organizações
Nenhum desses entraves, porém, merece muita sim- capazes de agir satisfatoriamente em várias dessas fren-
patia. O hábito de não dar crédito, embora dissemina- tes – e não há nenhuma que dê conta de tudo isso para
díssimo, é claramente antiético. A internet deixou de todos os temas que interessam seu público.
ser novidade para o público; já passou da hora de suas Qualquer veículo de comunicação sempre viveu o dile-
práticas básicas serem interiorizadas por jornalistas. ma da abrangência e da profundidade. Só que a internet
E evitar links por razões comerciais pode fazer senti- piorou as coisas: as massas são maiores, como exempli-
do para o departamento de venda de publicidade, mas ficado pela propagação da notícia da morte de Michael
devia horrorizar qualquer pessoa cujo trabalho envol- Jackson. Nichos são cada vez mais especializados (o
va a prestação de um serviço público. Lenderama cobre problemas com hipotecas, o Borderzine
Para o público, o link para o material de srcem tem a questão de jovens latinos nos Estados Unidos). A notícia
valor tão óbvio, e é tão fácil, que a organização que se que já chegava rápido pode chegar ainda mais depressa:
recusa a fazê-lo está expressando pouco mais do que antes de anunciada pela Casa Branca, a morte de Osama
desprezo pela audiência e por normas éticas da comu- bin Laden já vazara mais de uma vez no Twitter por fon-
nicação pública. tes independentes.

78 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


Recomendação: não tentar aplicar falsos a matérias redigidas por freelancers no exterior.
peso da marca a produto menos nobre Em todos esses casos, a tentação é colocar um pro-
cesso de baixo custo sob uma marca de alto valor. É
Aqui estamos, basicamente, recomendando o que óbvio que a rápida comoditização de notícias corri-
não fazer. queiras não é só inevitável como também desejável,
Na última década, duas coisas mudaram radicalmen- pois liberaria recursos para o trabalho mais comple-
te: o valor da reputação (maior) e o custo de produção xo em outras áreas. Também é óbvio que a tentação
(menor). Hoje em dia, há tantas fontes de notícias no a imprimir à notícia comoditizada a aura de sua con-
mercado
tidão, peloque qualquer
rigor e pela publicação conhecida
probidade tem pelasobre
vantagem exa- trapartida não
instituições comoditizada
augustas é considerável,
como The Washingtonaté para
Post e
o mar de concorrentes indistintas. Só que ferramentas The New Yorker.
digitais também derrubaram drasticamente o custo de O respeito básico pelo esforço jornalístico exige que
localizar e publicar informações, levando a uma profu- indivíduos a cargo do trabalho comoditizado recebam
são de veículos que publicam às toneladas. diretrizes claras sobre o que é ou não permit
ido. O res-
É tentador, para publicações com boareputação, com- peito básico pelo público exige que receba diretrizes
cla-
binar essas duas mudanças: achar um jeito de aplicar ras sobre a fonte e o processo da cobertura jornal
ística.
seu selo de alta qualidade a iniciativas novas, de baixo Um recurso do gênero “últimas notícias de toda a
custo e alto volume. Foi a lógica que levou à criação de internet” pode ser valioso, bem como pedir a gente
um recurso de agregação e comentário do Washington nas Filipinas que redija o que é, basicamente, um tex-
Post: o blogPost, que ficou famoso pela renúncia de to padrão, a partir de certo conjunto de fatos. Ambas
Elizabeth Flock depois de levar uma bronca por não ter são estratégias úteis. Mas apresentar esse conteúdo
dado crédito a parte do material que vinha agregando. como se fosse idêntico a reportagens apuradas, redi-
Vale a pena reproduzir parte da coluna do ombu- gidas e verificadas com mais afinco cria riscos tanto a
dsman doPost, Patrick B. Pexton, na esteira da renún- curto como a longo prazos – riscos que não compen-
cia de Flock: sam a efêmera oportunidade de arbitragem da união
de uma boa marca com um conteúdo barato.
Flock renunciou voluntariamente. Segundo ela, os
[dois] erros foram seus. E disse que era só questão Aqui, a mudança no ecossistema é que funções antiga-
de tempo para que cometesse um terceiro; a pres- mente exercidas por organizações jornalísticas rivais, e
são era simplesmente grande demais. sobretudo furos e últimas notícias, hoje foram encampa-
Mas a culpa foi tanto doWashingtonPostquan- das por plataformas. Qualquer veículo de comunicação
do dela. Falei com vários dos jovens a cargo de pode se organizar para dar notícias sobre esportes antes do
blogs do Post esta semana, e com alguns que dei- Deadspin, por exemplo, ou dar notícias de tecnologia antes
xaram o jornal nos últimos meses. Sua crítica era do Scobleizer. Mas nenhuma organização no momento pode
sempre a mesma. superar garantidamente oFacebook ou o Twitterem veloci-
Segundo disseram, a impressão é que estavam dade ou penetração.
sozinhos no mundo digital, sob alta pressão para Uma observação final: a tese central deste ensaio é que
emplacar coisas na internet, sem treinamento, organizações jornalísticas nos Estados Unidos já não estão
com pouca orientação, pouco apoio e pouquíssi- aptas a garantir a cobertura dos fatos sozinhas. Isso coloca
ma edição. Quase não há diretrizes para agregar instituições estabelecidas na incômoda posição de ter de
histórias, disseram. defender ou até melhorar instâncias do ecossistema atual
das quais talvez nem se beneficiem, e que podem benefi-
Flock e outros agregadores ficaram encurralados ciar suas concorrentes.
entre a lógica da notícia comoditizada de um site agre
- Se organizações jornalísticas fossem meras entidades
gador e a marca doWashington Post, o mesmo dilema comerciais, isso seria impossível: a rede varejista Best Buy
observado quando a revistaThe NewYorkercedeu uma tem pouco interesse em melhorar o ecossistema no mercado
plataforma para o conteúdo reciclado deJonah Lehrer; de eletrônicos, pois no processo acabaria ajudando as rivais
como observou Julie Bosman noNew York Times, o Amazon e Walmart. Só que organizações jornalísticas não
célebre “departamento de checagem de informações são meras entidades comerciais. São constituídas para prote-
[da revista] foi projetado para o produto impresso, não ger o pessoal da redação da maioria das questões comerciais
para o digital”. A tensão também ficou visível no escân- que um jornal enfrenta (por maisimperfeita que essa “mura-
dalo do site agregadorJournatic, que tascava créditos lha da China” possa ser na prática). Aliás, se organizações
ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 79
ESPECIAL | ECOSSISTEMA

jornalísticas não fossem fonte desse tremendo valor cívico Recomendação: reconhecer
e separadas da lógica do mercado, sua senescência comer- e premiar a colaboração
cial não seria mais relevante do que o fechamento da agên-
cia de turismo da esquina. Organizações que oferecem subsídios e recompensas
Diante disso, e da necessidade de um jornalismo pós- ajudam a balizar o modo como profissionais de jorna-
-industrial que faça uso consideravelmente melhor de cada lismo encaram a si mesmos e seus pares.
hora do tempo de um jornalista ou de cada dólar da verba Uma organização dessas devia partir oferecendo sub-
de uma instituição, instituições jornalísticas de grande e sídios ou criando critérios ou categorias de premiação
pequeno porte, comerciais e com fins lucrativos, executi- que de algum modo recompensem a colaboração – de
vas e educativas devem se comprometer com duas mudan- forma explícita, como no caso do
SchoolBook, ou implí-
ças no atual ecossistema. cita, como no caso de organizações que permitem que
seus dados sejam reutilizados por outras organizações,
Recomendação: exigir que empresas como a Dollars for Docs.
e governos soltem dados inteligíveis Na mesma linha, premiar o reaproveitamento de for-
matos de cobertura investigativa –a exposição de casos
O dinheiro mais valioso que uma organização jornalís- de corrupção como o de Bell, na Califórnia, por outras
tica pode ganhar é o dinheiro que nãoemt de gastar. No organizações, por exemplo – ajudaria a combater a atual
século 21, o dinheiro mais fácil de não gastar é o dinhei- valorização do trabalho artesanal que tende a ser irre-
ro gasto colhendo informações. Em consonância com produzível, ainda que a reportagem revele um proble-
nossa recomendação de que organizações jornalísticas ma possivelmente generalizado. Foi uma grande perda
devem dar mais prioridade a cobrir mistérios do que a para a nação norte-americana que nenhuma organi-
cobrir segredos, qualquer pessoa que lide com gover- zação tenha feito um exame sistemático de conselhos
nos ou empresas deve exigir que dados de relevância de enfermagem de outros estados após um escândalo
pública sejam liberados de modo oportuno, interpre- na Califórnia ou de fraudes financeiras e contábeis da
tável e acessível. Enron após denúncias de Bethany McLean.
Por oportuno queremos dizer que os dados devem Em entrevista aos autores do
presente dossiê, McLean
ser disponibilizados logo depois de serem criados. Há observou que, para analisar o caso Enron, foi mui-
muito menos valor em se inteirar das recomendações to importante ter cultivado fontes que suspeitavam
de um certo comitê sobre um projeto de lei quando a da empresa –seu interesse foi despertado quando um
matéria já está sendo votada. Dados interpretáveis vêm operador do mercado classificou de incompreensíveis
em formato estruturado e utilizável. É preciso dispo- os demonstrativos financeiros da empresa. Pode pare-
nibilizar os dados num formato flexível como o XML, cer uma estratégia óbvia, mas pouca gente na impren-
e não inflexível como o PDF (aliás, usar um formato sa de negócios a adotou, antes da queda da Enron ou,
como o PDF para divulgar dados costuma ser um indí- pior ainda, depois do colapso.
cio de que a organização tem algo a ocultar). Acessível Organizações que ditam normas tácitas da comuni-
significa que os dados são prontamente lançados em dade de jornalistas e editores devem dar destaque a ini-
canais públicos na internet, e não mantidos em papel ciativas que partam da base lançada por algum traba-
ou liberados somente mediante solicitação. Nos Estados lho anterior. Tal como ocorrecom subsídios e prêmios,
Unidos, a decisão da FCC deexigir que emissoras aber- essas mudanças atingirão diretamente só um punhado
tas de TV divulguem na internet dados sobre publici- de instituições, mas chegarão a muitas outras de forma
dade eleitoral veiculada em seus canais (e
m vez de dis- indireta, ao expor o tipo de trabalho que pode colher
ponibilizar o material para “inspeção” na emissora) foi tanto fundos comercialmente ilimitados quanto a admi-
um grande avanço nesse sentido. ração dos pares – ou ambos.
Todo meio de comunicação devia investir, por menor
que seja o montante, para assumir uma postura ativis-
ta nessa questão. Um acesso melhor a dados melhores
é uma das poucas coisas que constituiriam um óbvio
avanço para o ecossistema jornalístico – algo cujo prin-
cipal obstáculo não é custo, mas inércia, e em que a van-
tagem obtida pela organização jornalística ao melho-
rar a situação não configura gasto de recursos, mas
persuasão moral.

80 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


CONCLUSÃO

Movimentos tectônicos

ERA UM INFORME DO FUTURO: uma espetacular descrição, pelos olhos de um alto executivo da im-
prensa, do alvorecer do universo digital. Secretário de redação doWashington Post, Robert Kaiser
fora ao Japão em 1992 para um congresso repleto de gente visionária do mundo tecnológico. Ali foi
apresentado ao futuro da “multimídia” e a dois potenciais métodos de distribuição do produto de
meios de comunicação: microcomputadores e redes digitais.

Na volta, Kaiser redigiu um relatório de 2.700 palavras público que se seguiu louvou a clarividência do execu-
dirigido ao presidente da Post Co., Donald Graham, e à tivo e lamentou que sua impressionante prévia daquilo
diretoria do jornal. O texto partia com a alegoria (fal- que estava por vir – redigida antes da estreia pública da
sa, mas sugestiva) do sapo na panela de água quente: internet – não tivesse levado a qualquer ação.
Boa parte da discussão sobre a oportunidade perdi-
Às vezes descrito como o pai intelectual do micro- da ignorou, contudo, um segundo aspecto do relató-
computador, Alan Kay soou um alerta com uma ana- rio, aliás crucial: ainda que o Post tivesse rapidamente
logia que parecia valer para nós. Era a velha histó- colocado em prática tudo o que Kaiser sugerira, de nada
ria do sapo: se botarmos o bicho numa panela com teria servido. Embora Kaiser tenha exposto com maes-
água e formos subindo a temperatura aos poucos, tria grandes forças àquela altura mal perceptíveis, seu
o sapo não vai pular fora nem quando a água esti- informe também trazia indícios de quão difícil seria se
ver fervendo, pois seu sistema nervoso não capta adaptar a um mundo no qual a internet era algo normal.
pequenas mudanças de temperatura. Kaiser garante aos colegas executivos que, já que teria
O Post não está numa panela com água, e somos de filtrar toda essa nova informação, o público precisa-
mais inteligentes do que o típico sapo. Mas esta- ria de editores profissionais:
mos, sim, nadando num mar eletrônico no qual a
certa altura poderíamos ser devorados – ou igno- Diante da massa de informações do mundo moder-
rados, como um desnecessário anacronismo. Nossa no, suspeito que até o cidadão do século 21, já à von-
meta, obviamente, é não sair da revolução eletrô- tade com o computador, vai querer contar com a
nica como um sapo escaldado. ajuda de repórteres e editores que se disponham
a vasculhar essa massa de dados com inteligência
Na sequência, Kaiser contou o que descobrira no encon- para tentar extrair daí algum sentido. Curiosamente,
tro. Falou de um mundo no qual a distribuição e o consu- quando perguntei a uma série de pessoas no sim-
mo eletrônicos redefinem o mundo da mídia. O executivo pósio o que gostariam de poder fazer nesse futuro
não só alerta os colegas do risco de serem devorados – ou, eletrônico, muitos falaram do desejo de achar tudo
pior, ignorados –, mas também sugere que o Post lance o que já tivesse saído na imprensa sobre temas de
imediatamente dois projetos prospectivos: um para a cria- seu interesse (o CompuServe tem um recurso bem
ção imediata de um produto eletrônico de classificados e primitivo que já permite algo parecido).
outro para projetar o primeiro jornal eletrônico domundo.
Em meados de 2012, quando a íntegra do relatório de Kaiser fitou nos olhos esse recurso “bem primitivo”
Kaiser circulou entre estudiosos do jornalismo, o debate – a “busca”, que a certa altura daria srcem ao Yahoo e,

ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 81


ESPECIAL | CONCLUSÃO

depois, ao Google – e concluiu que seguiria sendo algo futuro com décadas de antecedên cia ainda achava que,
marginal, pois imaginou que a mercadoria que vendia – no caso de jornais, a revolução digit al favoreceria a tra-
critério editorial – não teria substituto. Na mesma linha, dicional virtude do crité rio editorial – e não a nova vir-
os dois projetos que sugeriu eram fundados no mesmís- tude de um usuário com mais poder – e que a matemá-
simo raciocínio que frustraria milhares de outras ten- tica do meio eletrônico giraria em torno da geração de
tativas de inovação; falando da versão eletrônica dos receitas, não da redução de custo.
classificados, Kaiser disse que o Post deveria reservar Agora, essa narrativa de “fim de era” também está
para si o direito... chegando ao fim. Hoje, o mercado de mídia no qual

...de adiar a implementação até o momento no qual vivemos é o menos


habitaremos diversificado
nos próximos anos,eomenos inclusivodizer
que significa que
possamos garantir que iremos ganhar mais dinhei- que o ecossistema que vem se formando a nosso redor
ro (ou deter um concorrente) se lançarmos o pro- vai incluir ainda mais atores e atividades do que a pai-
duto eletrônico. sagem atual.
É fácil associar esse crescimento do discurso públi-
Até alguém que tivera uma privilegiada visão do futu- co a um aumento no caos, embora o caos seja um ativo
ro não captara uma lição crucial – lição que Alan Kay que se deprecia: o que parece irremediavelmente con-
e colegas tinham claramente tentado transmitir: nin- fuso hoje será normal amanhã. A velha ordem não será
guém podia se dar ao luxo de adiar a implementação restituída, mas todos vão se acostumar à nova ordem
do futuro. O erro (grande, porém oculto) foi supor que que agora desponta.
o Post , ou qualquer outra instituição, poderia optar por Embora até aqui tenhamos nos concentrado em inda-
ficar de fora das mudanças que viriam. Esse erro cus- gar como é a produção de notícias h oje, nesta seção ire-
tou ainda mais caro porque, em sua elucubração, Kaiser mos lançar uma pergunta correlata: dadas as forças já
não admitiu a possibilidade de que a receita por usuá- em ação, como será a produção de notícias em 2020,
rio trazida por novos canais de distribuição de notíci as daqui a sete anos? A distância em relação a hoje é tão
e publicidade pudesse ser menor, e não maior. grande quanto a de hoje para 2006, quando YouTube,
Era esse o verdadeiro nó – algo impossível de perce- Twitter e Facebook ainda engatinhavam.
ber lá atrás, mas óbvio da perspectiva atual: o proble- Como de regra em qualquer exercício de futurolo-
ma enfrentado por organizações jornalísticas tradicio- gia, vamos nos equivocar, ao menos em parte. Vamos
nais nas duas décadas transcorridas desde a viagem de superestimar certas mudanças, subestimar outras e,
Kaiser não foi a conc orrência, mas uma revolução. Sua pior ainda, deixar de antever forças novas que surgi-
tese era que a nova tecnolo gia iria aumentar, em vez de rão nos próximos sete anos. Nossa meta aqui é acertar
derrubar, a receita publicitária. E que iria dar mais con- no rumo, não no destino final; acreditamos que mui-
trole ao jornal, não ao leitor. Isso condizia com tudo o tas das forças que irão esculpir o cenário jornalístico
que ocorrera até 1992, mas não e ra o que estava prestes em 2020 já são visíveis hoje, assim como redes sociais
a ocorrer agora que a internet começava a dar a todos e distribuição de vídeo por internautas eram visíveis
muito mais liberdade. sete anos atrás.
Em 2020, vai haver considerável continuidade super-
ficial com o panorama jornalístico do século 20. Ainda
Movimentos tectônicos haverá um Los Angeles Times e uma CNN. No entant o,
essa continuidade de instituições será acompanhada
Na década de 1990, gente que, como nós, ponderava a de uma reconfiguração de quase todo aspecto do mun-
relação entre a internet e organizações jornalísticas, do da mídia no qual atuam. É como disse George W.S.
equivocadamente supunha que o principal problema Trow no ensaio “Within the Context of No Context”,
diante dessas organizações era entender o futuro. Na uma estranha e maravilhosa reflexão s obre a nova pai-
verdade, tal problema era secundário. O grande pro- sagem social nos Estados Unidos:
blema era se adaptar a esse futuro.
A história do jornalismo em 2012 volta e meia ainda Todo mundo sabe, ou deveria saber, que houve um
é narrada como a história do colapso da velha ordem, “deslocamento de placas tectônicas” sob nós (...)
o fim do período no qual “notícia” era aquilo que um partidos políticos ainda têm os mesmos nomes, ain-
plantel enumerável de atores institucionalmente está- da temos uma CBS, uma NBC, um New York Times;
veis decidia publicar. Essa tese era tão arraigada que mas não somos mais a mesma nação que no passa-
até alguém que teve a oportunidade de vislumbrar o do teve isso tudo.

82 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


Trow falava do desaparecimento de qualquer núcleo (NPR, TPM) e doações em espécie – tempo, conheci-
evidente de cultura cívica no ocaso da década de 1960, mento – de uma determinada comunidade (como na
mas a figura de um movimento tectôni co também pode redação de verbetes sobre catástrofes para a Wikipedia
servir de metáfora para o panorama da mídia hoje em ou na criação de fluxos de hashtags no Twitter ).
dia. O rótulo “CBS News” ainda indica o braço jorna- A óbvia vantagem de um subsídio maior para a notícia
lístico de uma emissora de TV norte-americana, mas é sua maior disponibilidade. Uma desvantagem igual-
já não representa o padrão-ouro no jornalismo e já não mente óbvia é o risco de que a fronteira entre relações
ocupa um posto de inquestionável centralid ade no meio públicas e jornalismo se dissolva ainda mais. O crescente
jornalístico. Em parte, porque a própria CBS hoje enca- número de veículos de comunicação, com sua mixórdia
ra a notícia de forma distinta, mas sobretudo porque o de interesses e fontes de custeio, aumenta a necessida-
contexto da concorrência e do consumo no jornalismo de de autopoliciamento. Veículos independentes terão
mudou tanto que, ainda que a única meta da CBS News de aprender a identificar, rotular e rechaçar publica-
nas duas últimas décadas tivesse sido manter o posto mente o “churnalism”, a mera reprodução de comuni-
que detinha, o esforço teria sido em vão. cados de imprensa (como observou David Weinberge r,
O ecossistema jornalístico de 2020 será caracterizado transparência é a nova objetividade).
por expansão, com maior contraste entre os extremos. O tradicional papel de formadora de opinião da
Haverá mais gente consumindo mais notíci a, e de mais imprensa seguirá em declínio, e com ele a ideia do
fontes. A maioria dessas fonte s terá uma noção clara de “público” como grande massa interligada de cidadãos
seu público, dos setores específicos que cobre, de suas consumidores de notícias. A variedade em veículos de
competências básicas. Um número menor dessas fon- mídia disponíveis vai continuar crescendo, o que produ-
tes será de “interesse geral”; ainda que uma organização zirá menos uma cacofonia e mais um mundo de diver-
decida produzir um apanhado completo das notícias do sos públicos sobrepostos, de distintos portes. Visto por
dia, o leitor, o telespectador e o ouvinte vão desmembrá- esse prisma, o colapso da confiança na imprensa, que
-lo e distribuir, por suas distintas redes, aquilo que lhes vem de muito, é menos em função de uma nova postu-
interessa, e nada mais. Um crescente volume de notí- ra em relação a veículos tradicionais de comunicação
cias vai ser consumido por essas redes ad hoc , não por do que efeito colateral da contínua fragmentação do
um público fiel a uma publicação específica. mercado norte-americano de mídia (provavelmente é
Quase todo aspecto da paisagem jornalística vai com- hora de aposentar a tese de que haja um ente chama-
portar mais variedade do que hoje. Não estamos migran- do “imprensa” que goza de reputação junto a um ente
do de grandes organizações de mídia para pequenas, ou chamado “público”).
de uma cobertura lenta para a rápida. O espectro din â- A mudança no controle da distribuição também segui-
mico do jornalismo está aumentando ao longo de vários rá a toda. O velho modelo, no qual a maioria dos usuá-
eixos simultaneamente. A internet criou mais deman- rios visitava a página de um meio ou usava um aplicativo
da por formatos narrativos e por notícias factuais, por móvel atrelado a uma única organização, vai seguir per-
uma gama maior de fontes em tempo real e pela distri- dendo terreno para a superdistribuição: ou seja, usuá-
buição mais ampla de textos de fôlego. rios mandando material de seu interesse para outros. Já
Um punhado de organizações terá redações maio- vivemos num mundo em que os textos de maior circula-
res do que hoje, em geral subsidiadas por serviços de ção chegam a um público muitíssimo superior à audiên-
informação voltados a profissionais de certas áreas cia média do site de srcem do conteúdo. Para se adap-
(como nas dobradinhas Thomson–Reuters e Bloomberg– tar a essa distribuição cada vez mais desigual, a maioria
Business Week). A maioria dos veículos de comunica- das organizações terá de aprender a cooperar com usu-
ção, no entanto, terá uma redação menor (em termos ários para filtrar e passar adiante conteúdo relevante.
do total de profissionais na folha de pagamento). Ao Essa superdistribuição não vai se limitar à difusão de
mesmo tempo, haverá muito mais atores de nicho do material novo; uma das grandes surpresas do Twitter ,
que hoje, com operações menores e mais especializa- meio que prima pela brevidade e o imediatismo, é o
das ( Outer Banks Voice, Hechinger Report ). volume de demanda que revelou por textos de fôlego e
Haverá mais organizações jornalísticas sem fins lucra- vídeo. O News.me , um serviço criado há pouco, vascu-
tivos, bancadas por distintos mecanismos: dotações dire- lha feeds de usuários do Twitter para sugerir os links
tas de entidades filantrópicas e outras fontes de subsídio mais conferidos nas 24 horas anteriores; do material fil-
(como no caso da Ford Foundation bancando repórte- trado por esse serviço, um incrível volume é compos-
res do Los Angeles Times , da William Penn Foundation to de longas reportagens ou artigos de opinião (em vez
financiando a PennPraxis), aporte de fundos por usuários de estripulias de gatos).

ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 83


ESPECIAL | CONCLUSÃO

Embora a “roda de hamster” seja um efeito óbvio da Primeiro, porque o trabalho de jornalistas tem pre-
colonização da paisagem jornalística pela internet, a cedência lógica e temporal sobre o trabalho de insti-
expansão do espectro dinâmico do cenário jornalístico tuições. Segundo, porque o ato de testemunhar, des-
está ocorrendo em ambas as extremidades da distribui- cobrir ou entender o que é importante, e de transmitir
ção; a roda de hamster foi acompanhada de um cresci- essa informação de modo inteligível a públicos distin-
mento da cobertura jornalística de fôleg o e de análises. tos, é o papel sagrado; a preocupação com instituições
Na produção de notícias, haverá um emprego de mais jornalísticas só assume caráter de urgência pública por
técnicas: análise algorítmica de dados, representação prestarem apoio a indivíduos que exercem esse papel.
visual de da
poração dados, contribuição
reação doprodução
das massas, cidadão comum, incor-
automatiza- E, terceiro,
da partiu daporque
tese demuito
que adasobrevivência
discussão da última
dessas déca-
insti-
da de textos a partir de dados. Haverá mais generalis- tuições é mais importante do que a capacidade de um
tas trabalhando em temas de nicho; entrevistadores indivíduo qualquer de exercer esse papel sagrado, seja
especializados em temas específicos irão criar, editar lá como f or.
e distribuir fotos, áudio ou vídeo, como numa redação Embora esse conceito tenha sido maculado pela atual
de uma só pessoa. Em redações com equipes grandes ladainha de que hoje “você é sua própria marca”, vive-
o suficiente para permitir a colaboração entre distin- mos numa era na qual iniciativas de jornalistas solitários
tas seções, haverá muito m ais especialização. Em 2020, e pequenos grupos são ideais para a descoberta de novas
a pessoa mais tarimbada na exploração de dados, na fontes de valor – e, já que todo processo é a resposta à
representação visual de informações ou na criação de dinâmica de um grupo, quanto menor o grupo, mais fácil
experiências interativas terá um arsenal bem mais sofis- será equilibrar processo e inovação (embora mais tar-
ticado de ferramentas e experiência do que seus con- de a inovação tenha de se converter em algo repetível).
gêneres no presente. Se o leitor estiver buscando um lema ideal para um
Toda redação ficará mais especializada. Haverá jornalista, redator, analista, artista de mídia, explorador
menos intercâmbio de profissionais e funções entre de dados ou qualquer outra ocupação ou função de rele-
uma redação e outra, pois essa permuta já não será vância no momento, uma boa pedida seria “se não for
tão simples. Cada redação terá uma ideia melhor de detido, siga em frente”. É como disse um executivo da
quem são seus parceiros entre instituições e o públi- rádio norte-americ ana NPR a Andy Carvin, que criou o
co em geral, e terá uma noção só sua sobre a melhor modelo de “curador” de notícias no Twitter: “Não enten-
maneira de trabalhar com eles. Muitos dos produto- do isso que você faz, mas continue fazendo, por favor”.
res daquilo que antigamente encarávamos como notí- Neste ensaio, já demos uma descrição – na verdade,
cia não serão organizações jornalísticas em qualquer várias – de competências e valores que um jornalista
acepção comum do termo hoje em dia. O levantamento pode colocar na mesa. Esse leque de descrições existe
de ocorrências policiais virá da polícia. Dados ambien- porque o jornalismo não está passando de A para B, de
tais serão apresentados com ferramentas interativas um estado estável nos Estados Unidos do pós-guerra
do Sierra Club. Wikipedia e Twitter vão solidificar seu para um estado novo (e distinto) no presente. O que o
papel como fonte importante de informação sobre fatos jornalismo está fazendo é ir de um para muitos: de um
ocorridos no último minuto. conjunto de papéis cuja descrição e cujos padrões diá-
Como Robert Kaiser e o Washington Post acabaram rios eram uniformes o bastante para merecer um úni-
descobrindo, não há como adiar a implementação das co rótulo para uma realidade na qual o vão entre aqui-
mudanças que hoje testemunhamos. Há apenas a luta lo que faz de Nate Silver um jornalista e aquilo que faz
para se adaptar e garantir um nicho no ecossistema que de Kevin Sites um jornalista segue crescendo.
permita a criação sustentável de valor a longo prazo. Já prevendo o crescimento de modos e tempos pos-
síveis do jornalismo, nossa recomendação geral ao jor-
nalista é a seguinte:
O que jornalistas devem fazer?
Conheça a si mesmo. Saiba quais são seus fortes,
Como no cubo de Necker, é possível olhar para o meio quais as suas deficiências e como explicar isso tudo
jornalístico e ver um de dois conjuntos de relações: o aos outros. Saiba quais são suas áreas de especia-
trabalho de jornalistas no apoio a instituições ou o traba- lização, tanto em termos de conteúdo (política no
lho de instituições no apoio a jornalistas. Naturalmente , norte da África? Engenharia civil? Padrões climá-
há algo de verdade nessas duas ót icas, embora por uma ticos históricos?) como de trabalho (Você é bom
série de razões tenhamos nos concentrado na segunda. para entrevistar? Bom para apurar? É um jornalista

84 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


“Final Cut”? Um jornalista Excel? Um jornalis- do que nas de instituições que sustentam esses profis-
ta Hadoop?). sionais. Para chegar ao jornalismo que uma democra-
Saiba quando a ferramenta mais útil é um algo- cia complexa e tecnocrática exige, precisamos que cada
ritmo ou a “multidão”. Saiba quando é mais fácil profissional assuma, por si só, a parte mais difícil da
localizar por Twitter do que pelo auxílio à lista uma tarefa de decidir o que significa jornalismo de qualida-
pessoa com quem é preciso falar. Saiba quando sua de em um mundo no qual informação é o que não falta.
rede pode ajudar. Saiba quando alguém em sua rede
pode ajudar, e aprenda a buscar essa aju da (e tam-
bém a recompensar
Saiba quem oestá
quando o processo ajuda).
contribuindo para O que velhas
devem organizações
fazer no jornalísticas
novo contexto?
seu trabalho e quando não – e, se for esse o caso,
quando romper o vidro (até onde possível). Saiba Embora muitas instituições consolidadas ainda vejam
quando trabalhar sozinho, quando pedir ajuda, na perda incessante de receita o principal efeito das
quando buscar apoio fora de sua esfera costumeira. mudanças atuais, a reestruturação do jornalismo norte-
-americano é, hoje, muito mais influenciada por mode-
No fundo, isso significa alguma forma de especializa- los organizacionais do que pelo lucro (ou o prejuízo).
ção. É possível se especializar em conteúdo: cobrir uma Com um punhado de exceções, organizações jornalís-
certa área, dominar um certo assunto, entrevistar um ticas voltadas ao lucro terão de seguir cortando custos
certo tipo de gente. Também é possível se especializar até que a receita (que segue em queda) supere as des-
na técnica: adquirir a capacidade de peneirar bancos de pesas – embora cortar pura e simplesmen te vá resultar
dados, interpretar prospectos de investimento, circu- em instituições que fazem menos com menos.
lar por zonas conflagradas ou interagir com usuários – Instituições tradicion ais precisam adaptar seu braço
sendo que cada habilidade dessas poderá ser aprovei- de jornalismo, e não só o balanço, à interne t. Na hora de
tada em várias outras áreas de inquérito. É possível se fazer mais com menos, falar é sempre mais fácil do que
especializar em conteúdo e ser um generalista na par- fazer. Mas projetos como Homicide Watch e Narrative
te técnica, ou se especializar na parte técnica e ser um Science estão aí para provar que não é impossível.
generalista em conteúdo. Ou se especializar nas duas Embora tenhamos feito várias recomendações ao lon-
coisas (antigamente, a especialização em nenhuma era go do dossiê, nossa recomendação geral para institui-
aceitável; hoje, bem menos). ções da velha guarda é, basicamente, a seguinte:
Faculdades de jornalismo também terão de se adap-
tar a esses novos modelos. Hoje, o curso de jornalismo Decida que esfera da sociedade sua organização
já está mais para o de cinema do que o de direito – ou quer cobrir, e como. Abandone qualquer atividade
seja, o sucesso ou o fracasso relativo de quem tem um que não contribua para essa meta. Entre em par-
diploma de jornalismo vai comportar muito mais varia- cerias ou colaboração com organizações que per-
ção do que antigamente. Em grandes jornais e emisso- sigam a mesma meta mas tenham custo menor do
ras locais de TV, há muito menos vagas para quem e stá que o seu. Nas demais atividades, busque ou exce-
começando – vagas que serviam como meio informal de lência, ou baixo custo (se possível, ambos).
praticar e aprender. Além disso, a carreira que espera
o aluno no mercado será mais variável e vai depender Certos veículos de comunicação tradicionais simples-
mais de sua capacidade de criar uma estrutura própria do mente vão passar a gastar menos para cobrir o noticiá-
que simplesmente se adequar a um posto em uma cons- rio – sem promover nenhum outro ajuste –, o que sig-
telação conhecida de instituições abastadas e estáveis. nifica que abandonarão aos poucos a cobertura diária
O que a faculdade deve fazer é ajudar o aluno a enten- dos fatos. Ainda que alguns consigam sobreviver com
der tanto o tipo de especialização que gostaria de adqui- esse corte de custo, o interess e em preservar a saúde de
rir como o caminho a percorrer para chegar lá, missão organizações jornalísticas tradicionais sempre se deveu
que tem muito menos a ver com preparar o aluno para ao serviço público que prestam; uma organização que
instituições específicas (como na velha, e hoje nociva, elimina gorduras mas não busca assumir funções novas,
divisão entre imprensa escrita e falada) e muito mais menos onerosas, está abandonando es sa missão de ser-
com prepará-lo para formas específicas de investiga- vir o público, ao menos e m parte. E, com iss o, vai atrair
ção, independentemente de como e onde isso será feito. menos jornalistas qualificados.
Hoje, a sorte do jornalismo nos Estados Unidos está Gastar menos do que se arrecada segue sendo um
muito mais nas mãos de cada jornalista, isoladamente, problema, óbvio. Nos Estados Unidos, veículos que

ESPECIAL| REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 85


ESPECIAL | CONCLUSÃO

dependiam de publicidade – que vem em queda há enxutos com o resultado do jogo da véspe ra ou o balan-
seis anos – estão em lastim ável situação. Dada a inces- ço de uma empresa no trimestre precisam ser publica-
sante debandada de anunciantes para outras platafor- dos, mas sem ser longos nem excelentes) pode ser subs-
mas e a nefasta matemática da diminuição do público tituído por agregação, ou pela produção automatiz ada.
do produto impresso – a receita cai a ritmo mais ace- Para a maioria das organizações, qualquer coisa que exi-
lerado do que o custo da impressão –, muitas organi- ja tempo mas tenha baixo valor (e tempo, aqui, signifi-
zações da velha guarda terão de considerar novas fon- ca tudo o que envolva mais de dez minutos de trabalho
tes de receita: realização de eventos, apoio financeiro humano remunerado) deve ser automatizada, delega-
de outras instituições para cobertura de certos setores, da a parceiros ou usuários ou totalmente eliminada.
cobrança de assinaturas digitais para a minoria de leito- Qualquer redação que se dedique a mais de um for-
res mais devotos. Seguir derrubando o custo, no entan - mato de cobertura – últimas notícias e longas análises
to, ainda é a estratégia mais óbvia. – terá de entender melhor o toma-lá-dá-cá entre rapi-
Não há como sustentar o velho modelo do “tudo em dez e profundidade. Aqui, não há uma resposta certa,
um” – para levar toda (ou quase toda) notícia ou infor- ou mesmo um mescla certa: a cobert ura de setores que
mação ao usuário –, pois sem barreiras geográficas à avançam lentamente, com um punhado de atores rele-
entrada no mercado há pouquíssima vantagem em dar vantes – a indústria de mineração, o projeto de veícu-
a mesma notícia que está sendo dada no município ao los –, terá um mix distinto da de fat os em rápida evolu-
lado ou no estado seguinte. Assim como o princípio da ção, movidos pelo fator surpresa – campanhas eleitorais,
subsidiariedade nos Estados Unidos (pelo qual a ins- guerras civis.
tância federal só deveria ser responsável por aquilo que A redação também terá de entender as trocas envol-
não pode ser resolvido no âmbito de estados, municí- vidas entre a agregação e a cobertura srcinal (e otimi-
pios e instâncias inferiores), a notícia devia ser pro- zar cada atividade dessas de forma distinta), ou as tro -
duzida e distribuída por aqueles mais aptos a cobri-la. cas envolvidas entre traduzir relatos em primeira pessoa
Isso sugere a migração para especialização e colabora- e colocar jornalistas entre essas fontes e o público para
ção muitíssimo maiores. contextualizar e interpretar.
Ao ouvir esse conselho, o que muitos jornais tradi- Organizações estabelecidas também terão de aprender
cionais fizeram, na prática, foi preencher a homepa- a encarar relacionamentos e dados como novos recur-
ge com material de agências e a grande notícia ocasio- sos, e a lidar com isso. A capacidade de uma instituição
nal – um belo exemplo de adaptação à perda de receita de pedir a usuários que tomem parte da criação, ava-
em vez de adaptação à internet. Uma organização jor- liação e distribuição de notícias, de encontrar testem u-
nalística com DNA digital simplesmente não traria o nhas em primeira mão dos fatos ou gente com informa-
conteúdo comoditizado de agências; talvez daria links ção privilegiada para dar uma notícia específica, será
para notícias importantes, ou publicaria uma seleção uma das grandes fontes de diferenciação. Na mesma
de trechos de blogs conceituados ou outros agregado- linha, a capacidade de interpretar certos dados e deles
res. Sejam quais forem as decisões tomadas nesse senti- extrair valor de forma reiterada ao longo do tempo é,
do, no entanto, instituições jornalísticas que encaram a cada vez mais, algo essencial (na velha disputa da U.S.
“primeira página” como a grande preocupação organiza- News and World Report com Newsweek e Time , o irôni-
cional vão perder muitas oportunidades de reinvenção. co é que o ranking de universidades da primeira, e seu
O desperdício do jornalismo de matilha e as calorias banco de dados, em breve poderiam estar valendo mais
vazias do material de agência sem nenhum valor agre- do que as outras duas publicações juntas).
gado são duas coisas ruins para a maioria das institui- Na questão de processos, a organização terá de ser
ções no atual cenário. Organizações que abracem a mis- capaz de dizer quando um processo ajuda e quando atra-
são de deixar um certo público informado de grande palha – e saber como tornar seus processos “hackeá-
parte dos fatos provavelmente serão agregadoras, como veis”. Também terá de decidir que funcionários da casa
Huffington Post e BuzzFeed, e não veículos de comunica- ou voluntários terão autorização para ignorar ou alte-
ção tradicionais – no mín imo, porque o custo e a curva rar processos já institucionalizados a fim de explorar
de qualidade favorecem o formato do agregador, e não oportunidades imprevi stas, mas de alto valor. De todas
daquele que gasta para melhorar o material de agências as nossas recomendações, essa talvez seja a mais difí-
ou, mais acima na curva, para criar um conteúdo pró- cil de seguir para instituições tradicionais. Seja como
prio que não tem nem público fiel, nem vida útil longa. for, o sucesso ou o fracasso de muitas dessas empre-
A redação também terá de decidir que parte do tra- sas será determinado pela capacidade de abraçarem
balho comoditizar. O conteúdo fácil de gerar (textos a flexibilidade.

86 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


O que novas organizações fontes de subsídio para novos projetos terão duração
jorna lísti cas devem f azer? limitada. Devem aprender a trabalhar com amadores,
multidões, máquinas ou outros parceiros para manter
O leque de modelos e ideias inéditos sendo testados por o custo baixo e a influência alta. Para sobreviver, novos
novos projetos de jornalismo é grande, mas a maioria projetos jornalísticos terão de adotar parte da rotiniza-
dos grupos que hoje colocam essas ideias em prática ção do trabalho e da estabilização de processos das ins-
ainda não é nem robusta, nem estável. Parte da explica- tituições mais antigas que tentam desbancar. Não devem
ção é que, como em qualquer revolução, o velho entra ter medo de ser um pouco previsíveis.
em colapso
Mas muitoé antes
outra razão que o de ser substituído
modelo pelo
de negócios nasnovo.
últi- Há uma certa leviandade no discurso sobre a presen-
te ruptura. É a crença de que, na “grande roda da vida”,
mas décadas criou uma monocultura jornalística na qual velhas instituições perderão força e novas instituições
o subsídio publicitário era a principal fonte de recei- automaticamente tomarão seu lugar.
ta até para organizações que também obtinham recei- É uma possibilidade, é claro. Uma outra é que velhas
ta diretamente de seus usuários. instituições percam força mas que as novas não ocupem
Novas organizações jornalísticas terão de fazer o mes- seu lugar, por não terem estabilidade institucion al para
míssimo que organizações da velha guarda em termos servir de contrapeso a grandes organizações burocrá-
de buscar um equilíbrio entre rapidez e profundidade, ticas. De todos os cenários nefastos que se poderiam
agregação e geração própria de conteúdo, criação solo imaginar, este seria o pior: o poder e a função de velhas
e parceria. Em geral, no entanto, é mais fácil para novas organizações seguem definhando, mas novas entidades
organizações entender e administrar essas trocas, pois simplesmente são incapazes de mant er as rédeas sobre
os indivíduos que ali trabalham não precisam “desapren- o poder burocrático.
der” velhas coisas a fim de se adaptar à presente reali-
dade. Como sempre, indivíduos e organizações jovens
levam vantagem sobre os mais velhos não por saberem O fim da solidariedade
mais, mas justamente por saberem menos coisas que
deixaram de ser verdade. Sem o fardo de velhas pre- Talvez a maior mudança nos próximos sete anos vá ser
missas que já não se sustentam, perdem menos tempo o contínuo enfraquecimento da noção daquilo que cons-
e energia desaprendendo coisas antes de poder enca- titui uma notícia e, por conseguinte, daquilo que cons-
rar e reagir ao mundo atual. titui uma organização jornalística. Iniciada há mui-
Nossa recomendação geral para organizações jorna- to por Jon Stewart e a cobertura de eleições na MTV,
lísticas novas é ainda mais simples do que para jorna- essa mudança segue em curso no momento. À pergun-
listas ou organizações da velha guarda: ta “O Facebook é uma organização jornalística?”, tan-
to “sim” como “não” não são respostas satisfatórias (a
Sobrevivam. melhor resposta aqui é “Mu”, que no linguajar de pro-
gramadores significa dizer que “a pergunta, conforme
A crise visível de instituições jornalísticas é a redução foi feita, não tem resposta plausível”). Embora crucial
de suas funções tradicionais. Mas uma segunda crise, para o ecossistema jornalístico, o Facebook é estrutura-
menos discutida, é a necessidade de estabilidade institu- do de um jeito totalmente alheio a qualquer coisa que
cional, previsibilidade e margem de recursos em novos identificaríamos como organização jornalística; sua pre-
projetos jornalísticos nos Estados Unidos. sença altera o contexto da questão.
Grande parte da questão da institucionalização dessas Também haverá menos clareza sobre aquilo que cons-
novatas está ligada à gestão de receitas e despesas por titui o jornalismo propriamente dito. Instituições reite-
essas organizações, algo que foge ao escopo da discus- radamente tomam a continuidade superficial por uma
são sobre a cara do jornalismo no século 21 (reiteran- estrutura profunda ; o jornalismo não é uma categoria
do nossa posição: o grosso da discussão envolvend o o coerente nem ontologicamente robusta; é, antes, um
modelo voltado ao lucro versus o modelo sem fins lucra- fluxo constantemente negociado de enunciações públi-
tivos é inútil; qualquer saída que garanta mais receita do cas por um elenco cambiante de atores, e que calhou de
que despesas é uma boa saída). Mas parte do problema viver um período de relativa estabilidade nos Estados
tem a ver com premissas e competências organizacio- Unidos do século 20. Hoje, vemos o fim dessa estabili-
nais incorporadas desde o início a novas organizações. dade, o fim da curiosa taxonomia segundo a qual o jor-
Novas organizações devem partir da tese de que o nal St. Louis Post-Dispatch é uma organização jornalís-
controle de custo é a disciplina central e que muitas tica, embora publique tirinhas e colunas de conselhos
ESPECIAL| REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 87
ESPECIAL | CONCLUSÃO

sentimentais , mas não o Little Green Footba lls, embo-


ra Charles Johnson tenha produzido ali um resultado
melhor do que a CBS ao analisar documentos forja-
dos sobre a passagem de George W. Bush pela Guarda
Nacional norte-americana.
Antes um conjunto de ocupações, a produção de notí-
cias virou um conjunto de atividades; embora sempre vá
existir um núcleo de profissionais dedicados em tempo
integral ao ofício, haverá uma participação cada vez maior
de gente que mexe com isso apenas parte do tempo, mui-
tas vezes em caráter voluntário – gente que, em certos
casos, se concentrará menos em definir o que é ou não
notícia do que em saber se seus “amigos ou seguidores”
vão curtir o conteúdo. A sobreposição e a colaboração
crescentes entre quem se dedica integral ou parcialmen-
te à coisa, e entre indivíduos remunerados e voluntários,
será um grande desafio no que ainda resta desta década.
Neste mundo, as grandes mudanças terão ocorrido não
no papel de jornalistas dedicados integralmente ao ofício,
mas no papel do público. Nele, o consumo atomizado e a
discussão privada em pequenos grupos terá dado lugar
a uma profusão de novas formas de partilhar, comentar
e até ajudar a moldar ou produzir a notícia.
Instituições estabelecidas e novos atores, quem dedi-
ca o tempo inteiro ou só parte dele a produzir notícias,
generalistas e especialistas – estamos, todos, nos adap-
tando ao novo panorama. Aqui, o mecanismo mais impor-
tante de adaptação talvez seja reconhecer que estamos
em meio a uma revolução – a uma mudança tão grande
que a estrutura atual da sociedade não tem como contê-
-la sem ser alterada por ela.
Em uma revolução, estratégias que pordécadas surtiram
efeito podem simplesmente deixar de funcionar (como
muitas já fizeram). Estratégias que pareciam impossíveis
ou insanas há coisa de anos podem, agora, ser perfeitas
para o novo cenário. Esse período não acabou – aliás, seu
fim não está sequer à vista; o futuro próximo trará ainda
mais reviravoltas, de modo que até estratégias atualíssi-
mas, com poucos anos de vida (feeds RSS, blogs de jorna-
listas) podem se converter em recursos triviais, enquanto
outras (a capacidade de caçar mistérios em vez de segre-
dos, de levar à atenção do público vozes novas, que sur-
preendam) podem adquirir nova importância.
Mais do que qualquer estratégia ou recurso, a princi-
pal virtude nesse novo mundo será o compromisso em se
adaptar à medida que velhas certezas desmoronam e ado-
tar novidades que ainda nem entendemos plenamente. E
lembrar que a única razão para que tudo isso importe, e
não só para quem segue trabalhando no que antigamen-
te chamávamos de indústria jornalística, é que o jorna-
lismo – a exposição de fatos que alguém, em algum lugar,
não quer ver publicados – é um bem público essencial.

88 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


Métodos usados no relatório
embora o presente material esteja Em geral, no entanto, o dossiê se micos mais tradicionais. Muitas das
mais para ensaio do queestudo acadê- baseia na experiência profissional e conclusões aqui apresentadas podem
mico passível de comprovação, empre- em estudos acadêmicos anteriores de ser colocadas à prova com métodos
gamos, sim, uma série de métodos para seus autores. A meta foi combinar a teo-distintos, para distintos fins. Tendo
formular nossas análises, recomenda- ria acadêmica mais tradicional com os em vista que cada um de seus auto-
ções e conclusões. A pesquisa foi fun- últimos desdobramentos no mundo do res trabalha em alguma faculdade de
dada, basicamente, em entrevistas qua- jornalismo e da mídia digital – tarefa jornalismo na cidade de Nova York,
litativas feitas em diversas instâncias: invariavelmente complicada. Espera- e que cada um está envolvido em um
em conversas a sós, em locais de tra- mos ter cumprido talobjetivo e garan- aspecto distinto da produção acadê-
balho, por e-mail ou telefone e nas ins- tido que o relatório não soe superficial mica para sua respectiva instituição, o
talações da Columbia University Gra- para estudiosos da área e nem denso futuro da “pesquisa jornalística útil”
duate School of Journalism. Colhemos demais para profissionais do jorna- poderia parecer promissor. Em última
um volume considerável de dados em lismo que decidam encarar a leitura. instância, a validade das conclusões e
um simpósio fechado na faculdade de Em última análise, acreditamos provocações deste ensaio vai depen-
jornalismo (nos dias 17 e 18 de abril de que o relatório deva servir também der de transformações registradas no
2012), do qual participaram 21 pessoas. para incentivar novos estudos acadê- próprio jornalismo. ■

Agradecimentos
em consonância com o espíritoe
o tema aqui abordados, o presente
sugestões feitas e pela paciência na fizeram observações (ou foram formal-
edição do texto. mente entrevistados sobre a situação
ensaio foi um esforço de colaboração Somos gratos também à Carnegie presente do jornalismo e seu futuro,
que envolveu muito mais gente do que Corporation, que financiou o projeto. ou deram sua opinião sobre as pri-
os autores citados na capa. Nosso tra- Gostaríamos de agradecer à Tow Foun- meiras versões da obra). Aqui, somos
balho foi enriquecido com observa- dation pelo apoio contínuo a nosso tra- gratos a Erica Anderson, John Bor-
ções, conversas e conselhos de colegas balho na Columbia por meio do Tow thwick, Steve Buttry, David Carr, Andy
que, de um jeito ou outro, encontra- Center for Digital Journalism. Carvin, Susan Chira, Reg Chua, Jona-
ram maneiras de apoiar a empreitada. As vozes mais representadas neste than Cooper, Janine Gibson, Kristian
Somos gratos, em primeiro lugar, a ensaio são as de indivíduos que parti- Hammond, Mark Hansen, Andrew
Charles Berret, doutorando da Colum- ciparam de um simpósio em Nova York Heyward, Alex Howard, Vadim Lavru-
bia Journalism School que esteve a durante os dias 17 e 18de abril de 2012 sik, Hilary Mason, Bethany McLean,
nosso lado o tempo todo e ajudou (foram, também, os que mais tempo Javaun Moradi, Dick Tofel, Matt Waite
tanto a coordenar como a conceber cederam ao projeto). Entre os presen- e Claire Wardle. Uma série de acadê-
os diversos aspectos do trabalho. Sem tes estavam Chris Amico, Laura Amico, micos, dentro e fora de escolas tradi-
sua ajuda, o projeto teria sido inviável. Josh Benton, Will Bunch, Julian Bur- cionais de jornalismo, foi fonte vital
Também somos gratos a Nicholas gess, John Keefe, Jessica Lee, Anjali de estímulo e provocação intelectual;
Lemann, diretor da Columbia Jour- Mullany, Shazna Nessa, Jim O’Shea, agradecemos, em particular, a Rasmus
nalism School, cuja visão lançou o Maria Popova, Nadja P opovich, Anton Kleis Nielsen, do Reuters Institute for
germe para esse exame do meio jor- Root, Callie Schweitzer, Zach Seward, the Study of Journalism (University
nalístico. Sem ele, nada disso teria Daniel Victor e Christopher Wink. of Oxford), e a Michael Schudson e
saído do plano das ideias. Ainda na Não é exagero dizer que iniciamos o Robert Shapiro (Columbia University).
administração da Columbia, conta- encontro com observações bastante Um último agradecimento vai para
mos com a ajuda de Sue Radmer, Ste- vagas e saímos dali com o esboço do nossas famílias – pela paciência, pelo
phen Barbour e Anna Codrea-Rado. presente trabalho. apoio e pelas sugestões dadas aolongo
Agradecemos a Marcia Kramer pelas Ao longo do processo, vários colegas do processo. ■

ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 89


À pena fria
Quando resolveu redigir um perfil de Marlon Brando
para a revistaThe New Yorker, em 1957, o escritor Truman Capote
sabia exatamente como agarrar a sua presa

por douglas m c collam

ao descer aosaguãodohotel Miyako filme a igual escárnio. Para piorar, tinhacardigã bege e uma garrafa de vodca
naquela manhã de janeiro de 1957, o medo do que podia acontecer se Capote para o que, pelos cálculos de Brando,
produtor de teatro e diretor de cinema tivesse acesso a seu temperamental seria um jantar rapidinho seguido de
Josh Logan, veterano da Broadway e astro. Embora Brando sabidamente um papo breve (aliás, Brando pediu
de Hollywood, avistou a última pessoa fugisse da imprensa e Logan duvidasse ao secretário que ligasse dali a uma
no mundo que queria ver ali em Kyoto, que Capote pudesse romper acouraça hora para ter uma desculpa para des-
no Japão. Na recepção do hotel,equili- do ator, era melhor não arriscar. Tanto pachar Capote). Não foi bem assim.
brando-se na ponta dos pés para preen- ele como William Goetz, o produtor de Quando saiu do quarto do ator, seis
cher a papelada, estava oenfant terrible Sayonara, tinham escrito à revista para horas depois, Capote tinha a certeza de
do meio literário e jornalístico, o dimi- avisar que não iriam cooperar com a ter reunido material para redigir um
nuto escritor Truman Capote. reportagem. E mais: se aparecesse no perfil inédito do recluso astro.
Logan não ficou totalmente surpreso Japão, Capote seria barrado do set. E, O que transcorreu entre Brando e
em vê-lo. Semanas antes, tinha sido mesmo assim, ali estava Capote. Capote durante o tempo que passaram
avisado de que Capote queria escre- Como Logan mais tarde diria, sua a sós naquele quarto de hotel há muito
ver para a New Yorker sobre as fil- reação à súbita aparição do escritor é alvo de curiosidade histórica. O que
magens de Sayonara, o longa estre- foi visceral. O diretor veio por trás de Capote fez para convencer o taciturno
lado por Marlon Brando que o diretor Capote e, sem dizer palavra, o apanhou Brando a falar? O ator (como mais tarde
estava rodando no Japão para a prod u- nos braços, cruzou o saguão do hotel o próprio diria) foi feito de trouxa por
tora Warner Bros. Logan tinha feito de e o depositou na calçada em frente. Capote? Ou contribuiu de livre e espon-
tudo para gorar a empreitada. Um ano “Josh, por favor!”, protestou Capote. tânea vontade para a desconstrução da
antes, Capote publicara seu primeiro “Não vou escrever nada deruim.” própria imagem? Havia (como insi-
grande relato nas páginas da revista Logan subiu imediatamente ao nuou Capote) uma história homoe-
– sobre a insólita turnê, pela União quarto de Brando para alertar o ator: rótica entre os dois? O que é patente
Soviética, de uma companhia de teatro “Não fique a sós com o Truman. Ele é que, mais de meio século depois de
norte-americana com o musicalPorgy veio atrás de você”. A advertência ter sido publicado, “O duque em seus
and Bess. Capote passara semanas na seria ignorada. Ao lembrar-se da rea- domínios” continua servindo de parâ-
estrada com o elenco. O texto resul- ção que teve ao avistar Capote, Logan metro para perfis de celebridades. O
tante – “Ouvindo asmusas”, publicado mais tarde diria: “Tive a triste sensa- texto foi um precursor do Novo Jor-
em duas partes – foi uma crítica impie - ção de que o que aquele baixinho qui- nalismo, que desabrocharia com tudo
dosa, não raro hilariante, da trupe e dos sesse, ele conseguiria”. na década de 1960. Com uma profusão
figurões que a bancavam. O temor seria comprovado. Dois de detalhes íntimos, o tom confessio-
Logan não tinha nenhuma inten- dias depois de chegar ao Japão, Capote nal e o relato romanceado da figura
ção de expor o elenco e a equipe do bateu à porta de Brando. Levava um de Brando, o ensaio marcou uma clara

90 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


embate entre os dois, as fichas todas
teriam ido paraBrando (que, provavel-
mente, teria sido o primeiro a apostar
em si mesmo).
Nos meses que se seguiram ao encon-
tro, no entanto, foi Brando quem ficou
cada vez mais desesperado para impe-
dir que o relato de Capote fosse publi-
cado. Alternando momentos de cólera
e aflição, intimidação e súplica, Brando
tentou, em vão, enterrar o ensaio.
“Minha alma é um lugar privado”, dizia
IS
B
R
O
o ator. E Capote iria escancará-la. Com
C
/
K
C
a publicação do perfil, foi-se a mística
O
T
S
IN
de perigo que embalara os primeiros
T
A
L anos do estrelato de Brando; no lugar,
Nos anos 1940, Truman Capoteera considerado a esperança da literatura moderna entrou o retrato de um menino cres-
cido, confuso, aturdido pela própria
fama e assombrado pelo fantasma da
evolução na cobertura jornalística de Mas, apesar do suposto mar de dife- mãe alcoólatra. “Eu mato esse sujeito!”,
personalidades do meio artístico e foi renças, havia muita coisa semelhante disse Brando a Logan, quando o per-
um prenúncio da atual invasiva e pro- na vida dos dois. Ambos eram os úni- fil saiu na New Yorker. “Agora é tarde”,
funda imersão na cultura pop. cos filhos homens de mães alcoólatras retrucou Logan. “Você devia ter aca-
A curiosidade sobre o encontro des- e pais ausentes, problemáticos. Ambos bado com ele antes daquele jantar.”
ses dois ícones culturais do século 20 tinham sido despachados, ainda na O encontro de Brando eCapote ocor-
é fruto, em parte, da imensa diferença adolescência, para um colégio mili- reu num momento crucial da carreira
entre os dois. Graças a papéis como tar, experiência que tinham abomi- dos dois. Nascidos a seis meses um do
o de Stanley Kowalski, deUm Bonde nado. Nenhum fez faculdade. Ambos outro em 1924, ambos tinham 32 anos
Chamado Desejo; Terry Malloy, deSin- eram famosos, entre amigos e conhe- quando se encontraram no Japão,cada
dicato de Ladrões; e Johnny Strabler, cidos, pelo dom de manipular a vida qual já escaldado por uma década de
de O Selvagem, Brando era, em 1957, daqueles a seu redor. celebridade. Ambos tinham feito fama
a perfeita encarnação do machismo E ambos eram figuras revolucioná- aos 20 e poucos anos, no firmamento
norte-americano do pós-guerra: um rias na respectiva seara artística. “Já pulsante da Manhattan do pós-guerra.
sujeito monossilábico, um gênio dos entrevistei milhares de pessoas, e são Na mocidade, ambos ficaram conheci-
palcos com o corpanzil de um pugi- poucas as que transmitem uma ver- dos pela beleza física, pelo talento incan-
lista. Já Capote – coma vozinha infan- dadeira sensação de poder”, disse o descente e por estranhos maneirismos.
tiloide, o ar teatral e a estatura miúda escritor Lawrence Grobel, que pas- Brando chegou aNova York em 1943,
(media menos de 1,60 metro) – ocupavasara horas falando tanto com Brando meses depois de ser expulso da acade-
o extremo oposto do espectro mascu- quanto com Capote. “Com os dois, isso mia militar no Estado de Minnesota (era
lino. Como disse um escritor à época, acontecia.” Dito isso, se alguém fosse longa a lista de transgressões). A irmã já
“metia tanto medo quanto um esquilo”. apostar em quem levaria a melhor num morava no Greenwich Village: estudava

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 91


pintura com Hans Hofmann, expoente
do expressionismo abstrato. Enquanto
vivia com ela no Village, Brando come-
çou a gravitar em torno da oficinade tea-
tro tocada por Erwin Piscator e Stella
Adler, que tinham importado técnicas
de interpretação do russo Konstantin
Stanislavski. O “Método”, que faz o ator
recorrer a memórias eexperiências pró-
prias para compor o personagem, iria
transformar a arte norte-americana de
representar. Em Brando, a novidade
encontrara seu maior convertido. Não pela primeira vez com Capote ali den- lânguido). Ao discorrer sobre o talento
tardou para que Adler estivesse vis- tro, o fundador daNew Yorker, Harold do jovem em uma entrevista, Somer-
lumbrando um futuro grandioso para o Ross, levou um susto. “O que é isso?”, set Maugham disse que Capote era
ensimesmado rapazote do meio-oeste. perguntou, enquanto Capote desfilava “a esperança da literatura moderna”.
A um jovem pupilo, disse o seguinte: pelo corredor “como uma pequena Embora a princípio tenha relutado
“Espere até conhecer esse garoto (...) bailarina”, na descrição do editor. em trabalhar em Hollywood, Brando
ele é um gênio”. Embora a experiência Segundo Brendan Gill, que escrevia acabou se rendendo. Foi para a costa
de Brando no teatro tivesse se limitado há tempos para a revista, Capote era oeste norte-americana em 1949, para o
até ali a um punhado de peças no col é- “uma aparição absolutamente divina”, que encarava como uma breve ausên-
gio, em um ano o rapaz estreava na Bro-circulando airosa pelos corredores cia dos palcos (no final, nunca voltou
adway. Aos 23, tinhaconseguido o papel mofados da revista com as madeixas à Broadway). Os cinco anos seguin-
que faria dele um astro. Embora a prin- louras e, não raro, uma capa de ópera. tes solidificaram sua posição não só
cípio fosse considerado jovem – e belo de maior astro de Hollywood, mas
– demais para convencer no papel de Ambição literária também de figura revolucionária
Kowalski deUm Bonde Chamado Desejo , do cinema norte-americano. A dis-
Brando tinha o apoio do diretor, Elia Capote acabou sendo demitido da seminação da “brandolatria” conta-
Kazan, que o despachou para a casa de New Yorker, supostamente por ofen- giou toda uma geração de jovens ato-
praia de Tennessee Williams em Cape der o poeta Robert Frost, que ficou res e o “Método” fez o estilo tradicio-
Cod para um teste. Mais tarde, Brando furioso quando o rapaz saiu no meio nal de interpretação nas telas parecer
contaria que havia lido o texto por ape- de um recital seu. Mas a ambição lite- empolado e artificial. “Até ali, a coisa
nas 30 segundos quando Williams disserária do frangote seguiu inabalável. toda era muito certinha”, disse o ator
que o papel era dele. “Em seguida, me Em 1946, Capote foi aceito na colô- Anthony Quinn da atuação de Brando
emprestou dinheiro para o ônibus de nia para escritores de Yaddo, no inte- no papel deStanley Kowalski. A “ té que
volta a Nova York.” rior do Estado de Nova York. Lá, tra- chega o Brando (...). [Aquela interpre-
Na mesma época em que a estrela balhando ao lado de conterrâneos do tação] vira tudo de pernas para o ar
de Brando subia na Broadway, sul, como Carson McCullers e Kathe- (...). Todo mundo começou a se portar
Capote também iniciava sua ascen- rine Anne Porter, começou a redigir como o Brando.” Elia Kazan classificou
são, um pouco mais acima na ilha de seu romance de estreia,Outras Vozes, o trabalho do Brando emSindicato de
Manhattan. Sua família trocara a pla- Outros Lugares (há uma edição por- Ladrões como “a melhor coisa já feita
cidez de Connecticut, onde a mãe se tuguesa pela Sextante, 2010). No ano por um ator de cinema norte-ameri-
casara com o segundo marido, Joe seguinte, a revista Life deu destaque cano”. O papel rendeu a Brando o pri-
Capote, pelo Upper East Side. Truman, a Capote em uma reportagem sobre meiro Oscar de melhor ator (indicado
que mal entrara nos 18, logo virou um jovens escritores do pós-guerra (o anteriormente porUm Bonde Chamado
habitué de redutos exclusivos da noite texto também citava Gore Vidal, que Desejo , Brando perdera para Hum-
nova-iorquina, como o Stork Club e o em pouco tempo viraria um eterno phrey Bogart, o favorito do público
El Morocco. Na época, Capote tinha antagonista de Capote). Quando foi por Uma Aventura na África).
um bico de faz-tudo naNew Yorker – lançado, em 1948, o romance foiparar Um efeito da repentina ascensão
e já tinha certeza de que sua escalada na lista dos mais vendidos (em parte, de Brando à fama foi, obviamente, o
ao cume literário logo viria. Os cole- devido à foto na quarta capa, que tra- implacável assédio da imprensa, que
gas não dividiam essa premonição. Um zia Capote reclinado sugestivamente desde o início ele detestou. Brando
editor da revista lembra que, ao cruzar num divã, fitando o leitor com um olharraramente dava entrevistas. Quando

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Um efeito da repentina ascensão de Brando à fama
foi o implacável assédio da imprensa, que desde o início
ele detestou. Brando raramente dava entrevistas

dava, pouco ou nada revelava. A certa dou. Só parou quando Bogart pediu Em 1955, Capote mostrava inte-
altura, tamanha era sua revolta com o arrego, já no chão. Huston, que decla- resse em expandir sua atuação para
que julgava um interesse indevido em rou que Capote havia sido “o único uma nova área: o jornalismo. “Tive de
sua vida particular que contratou, ele homem que [vira] vestindo um terno escapar da minha própria imagina-
próprio, detetives para escavar podres de veludo”, ficou impressionado. “O ção e aprender a existir na imagina-
da Time Inc. Tinha tanta aversão a Truman era uma ferinha... Os modos ção e na vida de outras pessoas”, disse
promover os filmes que estrelava que femininos não afetavam em nada sua Capote em uma entrevista. “Estava
um produtor foi obrigado a suborná-lo força ou coragem.” obcecado demais com minhas pró-
com um conversível (um Thunderbird prias imagens internas. Essa foi a
zerinho) para que entrasse na roda-vivaJornalismo e ficção principal razão para ter me voltado
da publicidade. Em 1955, na estreia de ao jornalismo.” Mas Capote não estava
seu oitavo filme na Times Square – o Em Manhattan, Capote era presença interessado em simplesmente explo-
musical Garotos e Garotas–, uma mul- constante na alta sociedade, sobre- rar o gênero; queria transformá-lo. “O
tidão ensandecida furou o esquema de tudo no círculo de beldades como Babe que eu queria era levar ao jornalismo
segurança e estraçalhou as janelas da Paley, Gloria Guinness e Slim Keith, a técnica da ficção, que avança simul-
limusine que levava Brando. Foi precisosocialites que o adotaram como uma taneamente no plano horizontal e no
despachar um pelotão de policiais para espécie de adorno literário, bobo da vertical: horizontalmente no lado nar-
resgatar o astro, a essa altura abalado. corte e confessor (várias diriam, mais rativo e verticalmente ao penetrar o
Foi nesse ano que Brando ultrapassou tarde, ter servido de inspiração para a íntimo dos personagens.”
Jimmy Stewart, Gary Cooper e John personagem Holly Golightly, de Bone- Tendo aberto o apetite com aquele
Wayne nas bilheterias de Hollywood. quinha de Luxo(Companhia das Letras, primeiro texto sobre a turnê de Porgy
Para Capote, o meio da década de 2005). Levavam Capote a tiracolo em and Bess, em 1956, Capote saiu à cata
1950 também foi uma fase produtiva. viagens a lugares exóticos, abriam suas de outros temas de interesse jorna-
Seu segundo romance, A Harpa de mansões ao escritor e trocavam confi- lístico. Como lembrou mais tarde em
Ervas (Sextante, 2011), fora bem rece- dências com ele – intimidade da qual uma entrevista com Andy Warhol, o
bido. O escritor já fizera uma primeira muitas mais tarde se arrependeriam. escritor discutiu possibilidades com
incursão no cinema quando foi con- Uma amiga do autor, Marella Agnelli, William Shawn, editor daNew Yorker.
tratado pelo diretor John Huston para lembrou certa vez como Capoteobser- “Disse o seguinte: ‘Olha, acho que as
trabalhar no roteiro de O Diabo Riu vava as pessoas em busca de pontos pessoas cometem um grande erro
por Último . Durante as filmagens na fracos. “Quando vi, estava contando hoje em dia, pois o jornalismo pode
Itália, Capote teve um curioso (ereve- a ele coisas que nunca imaginei que ser uma das formas mais elevadas de
lador) entrevero com o astro do filme, contaria.” A certa altura, Agnelli pas- arte em um novo gênero’. O Shaw me
Humphrey Bogart – que, para matar sou a ter medo do dom de Capote de pediu um exemplo. ‘Claro. Peguemos
o tempo, gostava de chamar o pessoal conquistar a confiança dos outros. a forma mais rasteira de jornalismo
da equipe para uma queda de braço. “Achei que só uma pessoa muito estra- que pode haver: uma entrevista com
Quando viu “Caposy” (como Bogart nha ou louca poderia ter uma relação um astro de cinema. Teria algo mais
chamava Capote) por perto, Bogart íntima e de amizade com alguém e, ao baixo do que isso?’.”
desafiou o escritor. Por duas vezes, mesmo tempo, apunhalá-la”, lembrou Depois de poucos dias filmando no
Capote ganhou – e faturou US$ 50 no Agnelli, a quem Capote certa vez teria Japão, Josh Logan começou a ter um
processo. Quando Bogart partiu irado dito: “Certas pessoas usam uma espada mau pressentimento sobre a caríssima
para cima de Capote, o escritor revi- para matar. Outras usam palavras”. produção. A atriz principal, uma novata

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 93


que nunca tinha feito um longa, deixava
à mostra a inexperiência. Uma trupe
de teatro Kabuki que iria aparecer no
filme dera para trás no último minuto.
Para piorar,seu galã parecia ressabiado.
Brando tinha demorado a aceitar o papel
em Sayonara e só fechara com a produ-
ção depois que o roteiro sofrera sérias
mudanças (incluindo aí um novo final).
Seu
o peso,
ator que começara
chegara a flutuar
aos 30, tinha quando
subido; em
tese, Brando devia estar sob estrita dieta.
Carlo Fiore, amigo e secretário do ator, hora, para ter uma desculpa para ence
r- cou um gravador para reproduzir tudo
diria depois que Brando já tinha per- rar o papo. Fiore relembra a impres- o que Capote dissera dos presentes, na
dido a confiança em Logan e estava ente- são que teve ao conhecer Capote: “Ele sua voz inconfundível. O pior de tudo,
diado com o filme. “Desde o início, ele entrou no quarto com aquele andar gar-disse Capote, era que Bernstein apa-
achava queSayonara era puro turismo boso dele, embalando uma garrafa de gara sua parte da conversa. Ou seja, a
nas telas, tudo misturado com uma his- vodca nos braços. Já ouvira falar que impressão era a de que só Capote falara.
tória de amor improvável.” o Capote era pequeno, mas fiquei sur- Fiore não soube bem como interpre-
O tédio pode ter levado Brando – ape
- preso ao ver comoera minúsculo. Pare- tar a história, mas saiu do quarto de
sar da advertência de Logan – aabrir a cia um menino de tão magro. Os pés e Brando com um mau pressentimento.
porta para Capote. Mais tarde, Brando as mãos eram de umacriança. Embora Capote não tinha nenhum interesse
diria não ter ideia de que Capote estava já tivesse 30 anos ou mais, tinha o olhar em utilizar as ferramentas tradicionais
apurando uma reportagem sobre ele, franco e o semblante imaculado de um do novo ofício. Para conseguir a inti-
declaração que o jornalista conside- garoto de 12 anos de idade. Era a pri- midade que queria, evitava usar gra-
rou absurda. Logan acreditava que sua meira vez que ouvia sua voz. O tom vador ou até anotar o que ouvia. O que
tentativa de impedir o encontro pode nasal e agudo e a dicção um pouqui- fazia era setransformar emum “grava-
ter tido o efeito inverso. “Como o Mar- nho arrastada me deram a sensação dor humano”. Capote dizia ter a ver-
lon automaticamente fica do lado do de que havia um ventríloquo amador são auditiva da memória fotográfica –
menos favorecido, seja lá quem for, o falando por meio daquele boneco de e que, com a prática, atingira um alto
Truman se apresentou como o mais tamanho menor que o natural, mas de grau de precisão. “Isso é de extrema
rejeitado dos desfavorecidos”, lembrou proporções perfeitas”. importância para o tipo de reportagem
o diretor.Ainda que Brando detestasse que faço, pois é absolutamente fatal
a imprensa, de acordo com Logan, o Toque pessoal fazer uma anotação ou usar um gra-
ator chamou Capote para jantar para vador quando se entrevista alguém.”
contrariar os “chefões” que queriam Capote colocou a vodca na mesa e Na avaliação de Capote, a técnicaper-
proibir o encontro. Brando sugeriu que Brando pediu à camareira que trou- mitia que o escritor “se inserisse na
havia se disposto a falar com Capote xesse um baldinho de gelo. Fiore lembrasituação, que virasse parte da cena
porque o companheiro dele naviagem que, então, o escritor começou a con- que estava registrando e de nenhuma
ao Japão era o fotógrafo Cecil Beaton, tar uma história rocambolesca sobre o maneira fosse excluído dela” (como
um amigo em comum. maestro Leonard Bernstein. Segundo mais tarde diriam seus críticos, tam-
Fiore, que estava no quarto quando Capote, ele e Bernstein tinham passado bém permitiu que Capote inventasse
Capote chegou, porvolta das sete da uma longa tarde no apartamento do fatos importantes na narrativa).
noite, contou em suas memórias que maestro – tarde na qual Capote, inci- Como combinado, Fiore ligou para
Brando tinha até esquecido o compro- tado por Bernstein, difamara conheci- Brando uma hora depois. Àquela altura,
misso. O ator passara a tarde traba- dos dos dois. Sem que o escritor sou- o ator já estava “alto como uma pipa”
lhando no roteiro do faroesteA Burst besse, Bernstein escondera um micro- e sem nenhuma vontade de dar por
of Vermilion (Uma Erupção de Ver- fone no apartamento e gravara a con- encerrada a entrevista. Fiore pergun-
melhidão) que sua produtora supos- versa inteira. Pouco tempo depois, o tou se Brando tinha bebido. “Dei uns
tamente iria rodar (a primeira versão maestro deu uma festa à qualcompare- goles, só isso”, respondeu Brando. O
chegou a 312 páginas; o longa nunca ceu muita gente que a dupla tinha cri- amigo sugeriu que se cuidasse e que
saiu do papel). Brando pediu a Fiore ticado. No ponto alto da noite, Berns- não dissesse nada de que viesse a se
que ligasse para o quarto de hora em tein pediu a atenção de todos e colo- arrepender depois. “O Truman já fez

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relacionamento com a mãe, atriz ama-
dora e dona de casa frustrada. Dodie
Brando tinha incentivado o lado cria-
tivo do filho na infância. O pai, distante,
era, nas palavras do próprio Brando,
“um idiota de carteirinha... um sujeito
intimidante, caladão, fechado, bravo,
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beberrão, rude – um valentão que ado-
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rava dar ordens e ultimatos”. Tanto o
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pai como a mãe eram alcoólatras.
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A mãe de Capote, Nina, também
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tinha sérios problemas com a bebida.
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O fato de ter abandonado Capote ainda
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T cedo, deixando o menino nas mãos de
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D parentes para ir morar sozinha emNova
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York, marcou o filho para sempre. Seu
Marlon Brando, que tinha aversão a promover seus filmes, faz pose na década de 1950 nome verdadeiro, Lillie Mae, era quase
idêntico a Lula Mae, nome de batismo
de Holly Golightly, a heroína de
Bone-
a entrevista. Agora, estamosós conver- tado sobre uma pilha de doces, mas quinha de Luxo, que também parte para
sando, entre nous”, disse o ator. “Liga só comia as casquinhas”. Anunciou a Nova York para se reinventar. As duas –
de novo em uma hora.” Assim como intenção de demitir o secretário e de a mãe de Brando e a de Capote – mor-
Logan, Fiore sabia que, com o estímulo ir morar numa casa menor, sem cozi- reram em 1954, com um intervalo de
certo, a reticência de Brando podia nheiro, sem empregada, sem telefone poucos meses uma da outra.
sumir. “Ele raramente bebia”, lem- – telefone que suspeitava estar gram- O assunto da mãe de Brando apa-
brou o amigo. “E, às vezes, depois de peado. Falou da inaptidão para man- rentemente veio à tona quando já pas-
um copo ou dois, a desconfiança natu- ter a atenção por mais de “sete minu- sava da uma da madrugada. No perfil,
ral que sentia de estranhos evaporava, tos”, contou que era incapaz de amar, Capote escreveu: “Servi um pouco de
ele ficava sentimental, piegas, disposto teceu teorias sobre a amizade: “Sabe vodca; o Brando não quis me acompa-
a contar a vida todinha, a expor livre- como faço amigos? Vou cercando, fico nhar. Mais tarde, entretanto, apanhou
mente todosos esqueletosdo armário.” rondando. Aos poucos, me aproximo meu copo, tomou um gole, o colocou
Foi o que Brando fez. Enquanto se mais. Até a hora em que chego e toco entre nós e, do nada, disse algo num
esbaldava com um jantar que incluiu a pessoa, de um jeito muito sutil. Aí tom displicente que, mesmo assim,
sopa, carne, fritas, três variedades de recuo, aguardo um pouco, espero que transmitia emoção: ‘Minha mãe. Ela se
legumes, massa, pães, queijos, bola- processe. Na hora certa, volto a ata- partiu como um pedaço de porcelana
chinhas e torta de maçã coberta com car, a tocar, a rondar. A pessoa não (...). Meu pai era indiferente comigo.
sorvete, Brando (supostamente de entende o que está acontecendo. Antes Nada que eu fizesse o interessava, ou
regime) contou que a fama tinha trans- que perceba, caiu na rede, está envol- o agradava. Hoje,já aceitei isso. Somos
formado sua vida em um caos. Confes- vida, se deixou apanhar”. amigos agora, nos damos bem’”. Na
sou a Capote que estava fazendo aná- Até aquela noite, não havia segredo esteira, Brando contou como, ainda
lise e sentia como se estivesse “sen- mais íntimo na vida de Brando do que o rapazinho, costumava encontrar a

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 95


casa e a geladeira vazias ao chegar
da rua. “O telefone tocava, era sem-
pre alguém ligando do bar. Diziam que
havia uma senhora lá, que era melhor
eu ir buscá-la.” Mais adiante, quando
Brando estava na Broadway, a mãe foi
morar com ele em Nova York. “Achei
que se ela me amasse o bastante, se
confiasse o suficiente em mim, daria
para estarmos
viveríamos juntos,
juntos, em Novadela...
eu cuidaria York;
Fiz de tudo. Mas meu amor não bas-
tava... Um dia, deixei de me impor- Logan. “Você deve estar escondendo devastado. Imediatamente escreveu
- uma longa carta a Capote. Nela, admi-
tar. Ela estava lá, no quarto, se agar- alguma coisa. Ele não fala de coisas pes
rando a mim. E deixei que caísse. Já soais.” Logan disse que Capote devia tia que uma “inacreditável idiotice”
não aguentava mais presenciar aquilo, ter armado algumaarapuca para o ator. o levara a crer que estavam trocando
ver a pessoa se destruindo na minha “Não enganei ninguém”, retrucou confidências em caráter privado, e que
frente, como um objeto de porcelana. Capote. “Simplesmente trocamos his- agora suas entranhas seriam “expostas
Passei por cima dela, me desliguei. tórias. Inventei coisas sobre a loucura e adornadas para o deleite do público”.
Fiquei indiferente.” da minha família e, acredite, tornei a Brando comparou Capote a Judas, ao
Para o leitor moderno, talvez seja coisa tão escabrosa que ele começou a general norte-americano Benedict
difícil entender o efeito chocante que sentir pena de mim, a contar sua his- Arnold, a Átila, o Huno. Capote depois
o desabafo de Brando teria sobre o tória para que eu me sentisse melhor.” diria que foi “a carta mais longa e con-
público da época. Hoje, estamos acos- Em outra ocasião, Capote esmiuçaria fusa” que já recebera. E nunca respon-
tumados – e já nem damos muita aten- essa técnica para seu biógrafo, Gerald deu. A portas fechadas, o tom de Brando
ção – a histórias cabeludas de ricos e Clarke. “Na arte de entrevistar – e é era ainda mais irado. À futura mulher,
famosos. Mas, em 1957, o sistema dos uma arte –, o segredo é deixar que o Anna Kashfi, Brando disse que Capote
estúdios de Hollywood, que por tanto entrevistado ache que está entrevis- o “embebedara” com vodca até às duas
tempo controlara cuidadosamente a tando você... você conta algo sobre si da manhã. Mas admitiu que o “filho da
imagem de seus astros, mal começara mesmo e, devagarinho, vai tecendo a mãe” tinha uma memória perfeita. “Ele
a entrar em declínio. Até ali, detalhes teia até que a pessoa se abra comple- lembrou cada palavrinha.”
íntimos da vida de um ator tinham tamente. Foi assim que peguei o Mar- O perfil foi publicado na edição de
sido circunscritos à imprensa mar- lon.” Em entrevista à revista Rolling 9 de novembro de 1957 daNew Yorker.
rom, execradíssima. Era a primeira Stone mais de 15 anos depois do epi- Capote nunca saiu da lista negra de
vez que a intimidade de um astro da sódio, Capote declarou: “Lembra que Brando. “Foi a única grande entrevista
grandeza de Brando era servida em eu contei como o Marlon Brando ficou que tiraram de Brando”, disse Kashfi.
banquete público, e ainda por cima impressionado? Eu não tinha anotado “Para grande arrependimentodele.”
por um escritor do calibre de Capote. nada. Não mexi um dedo. Não pare- Brando foi falar com o advogado e o
Era algo inédito. cia sequer interessado”. assessor de relações públicas para deci-
Na manhã seguinte à entrevista, dir se processava ou não Capote, mas
Brando tinha pouca noção do perigo Estrelas em declínio foi dissuadido depois de constatado
ao qual se expusera. Quando ficou que os fatos narrados na reportagem
sabendo do encontro, Logan questio- No final, Sayonara se saiu bem nas correspondiam à verdade. “Não olhei
nou o maquiador de Brando. Então, bilheterias e rendeu a Brando a quinta para ele como [alguém da] imprensa”,
descobriu que o astro tinha “adorado a indicação ao Oscar. Já no final das fil- esbravejou Brando para o relações-
noitada”. Mais tarde, tomando um drin- magens, Logan conseguiu as provas de -públicas, Walter Seltzer. “Achei que
que com Logan, Capote mal continha “O duque em seus domínios”. A coisa era um amigo”. Capote, por sua vez,
o orgulho. “Ah, você estava totalmente era feia como esperava. Além das reve- não se desculpou – nem na época,
equivocado ao dizer que o Marlon não lações sobre a mãe, o perfil trazia farpasnem depois. “O Marlon sabia qual era
se abria”, disse Capote a Logan, comen- disparadas por Brando contra Logan, a minha. Depois, disse que não, que não
tando que Brando tinha falado do alco- suas teorias autocentradas sobre rela- sabia”, afirmou Capote aAndy Warhol.
olismo da mãe e de outros assuntos pes-cionamentos e o pouco apreço que sen- “É claro que ele sabia. Não até certo
soais. “Duvido, Truman”, respondeu tia por colegas de ofício. Brando ficou ponto – sabia que eu fazia uma entre-

96 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


Acho que as pessoas cometem um grande erro
hoje em dia, pois o jornalismo pode ser uma das formas
mais elevadas de arte em um novo gênero

vista, mas, por outro lado, eu estava muito, antes mesmo da incursão no papéis coadjuvantes. Já perto dos 80,
usando meu método, que dá a impres- jornalismo: a do romance de não fic- pesava quase 160 quilos (media pouco
são de que não estou fazendo coisa ção. Ao ler sobre o assassinato de uma mais de 1,75 metro). Como Capote, foi
alguma. Sabe como?”, disse Capote. família de agricultores num rincão per- uma vítima dos excessos.
“Aquela conversa foi um ot tal prenún- dido do Kansas, Capote convenceu a Depois que o perfil foi publicado,
cio do que seria a vida dele, de tudo o New Yorker a deixar que investigasse Brando raramente voltou a falar
que aconteceu com ele até o presente o caso. Seis anos depois, publicavaA com jornalistas. Só consegui achar
momento. E tudo em 40 páginas.” Sangue Frio (Companhia das Letras, uma declaração pública dele sobre o
Embora mais tarde Capote tenha dito2003), seu relato do crime. O sucesso encontro em Kyoto (o episódio é total-
que o ensaio não fora um ataque preme-foi estrondoso: até hoje, o livro é um mente omitido da autobiografia do
ditado, suas declarações nos anos sub- marco na literatura norte-americana. astro). Em 1978, Lawrence Grobel via-
sequentes à publicação do texto tendemMas o processo de escrever a obra, jou para a ilha particular de Brando no
a reforçar a ideia de Josh Logan de que de penetrar na mente e no caráter de Taiti para uma conversa que se esten-
o escritor armara uma para Brando. Na outros indivíduos (no caso, frios assas- deria por dez dias. Falou-se de tudo
entrevista com Andy Warhol, Capote sinos), tirou Capote do prumo. um pouco: da obsessão de Brando
deu a seguinte declaração: “Para ser com os direitos de índios norte-ame-
um ator, a pessoa não deve ter nenhum Morte na solidão ricanos ao embargo de petróleo pela
orgulho... Precisa ser uma coisa, um Organização dos Países Exportadores
objeto. E quanto menos inteligência A partir dali, Capote aumentou tanto o de Petróleo (Opep). A certa altura, a
tiver, melhor será... Para ser ator é pre- consumo de álcool e drogas que, a certa conversa rumou para questões pes-
ciso ter uma imaturidade absoluta, umaaltura, ficou mais conhecido como a soais – e foi prontamente cortada por
total falta de autorrespeito”. Em outra figura excêntrica que circulava pela Brando. “Não acredito nessa coisa de
entrevista, falando sobre Brando, disse: boate Studio 54 e pelos talk shows que lavar a roupa suja na frente de todos,
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J “Ai, meu Deus, o Brando se acha um passavam tarde da noite na TV do que não estou interessado em confissões
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gênio. Ele olha para você com aquele como escritor ou jornalista. Nos últi- de astros do cinema.” A maioria das
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0 olhar de piedade, como se soubesse mos 15 anos de vida, dizia estar traba- celebridades, disse Brando, acaba se
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de algo que você não sabe. Mas o fato lhando em uma grande obra,Súplicas enforcando com as próprias palavras.
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é que você sabe algo que ele não sabe: Atendidas. Só um punhado de capítu- “Você sentiu isso com o Capote?
”, per-
e
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/ ele não é lá tão inteligente”. los do romance inacabado foi publi- guntou Grobel. Brando objetou: “Não,
ro
m
b Menos óbvio, talvez, foi como o cado – e o tumulto causado por per- ele é um escritor bom demais para
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o encontro de Capote com Brando anun- sonagens mal disfarçadas e escânda- ficar só no sensacionalismo”, disse.
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d ciaria o declínio do próprio escritor. los tirados do mundinho do Upper “Mas distorcia, mexia nas coisas...
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O perfil, que William Shawn classi- East Side fizeram Capote ser banido Todo mundo edita. É inevitável...”
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ficou de “obra-prima”, repercutiu do glamouroso mundo que tanto lutara O ator acrescentou: “Há algo de
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a mais do que qualquer outra reporta- para cultivar. Capote morreu no exí- obsceno em expor seus sentimentos
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b
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gem da revista desde “Hiroshima”, de lio – na Califórnia, em 1984. Tinha 59 e suas emoções para que todos vejam.
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e
t John Hersey. Depois de sua publica- anos. Brando viveu outros 20. Mas, no De qualquer maneira, quem está inte-
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a
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l ção, Capote voltou brevemente à fic- cômputo geral, não foram anos feli- ressado?”. ■
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ção com o popular romanceBonequi- zes. O filho se envolveu num assassi-
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to
nha de Luxo. Na sequência, embarcou nato famoso e o grosso de seu trabalho douglas mccollam é editor-contribuinte
x
e
T numa ideia que vinha ruminando havia nessa fase se resumiu, basicamente, a da Columbia Journalism Review(CJR).

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Por que os jornais erram
ao atacar o Google News
Os dirigentes da mídia impressa brasileira
mostram que ainda não entenderam a internet e tampouco
os ensinamentos do economista Milton Friedman

p o r leão serva

os principais jornais brasileiros , comandados pela enti- Segundo a ANJ, o Google News não éessencial para os
dade patronal que os representa, a Associação Nacional deveículos jornalísticos do país, porque os jornais brasileiros
Jornais (ANJ), exigiram que o Google deixasse de indexartêm como público oleitor fiel, quesabe procurar as informa-
suas páginas de web no buscador de notícias Google News.ções que deseja e acredita em cada marca. Dessa maneira, a
Basicamente, o argumento é o de que o site de pesquisas ferramenta não agregava tanta audiência aos seus sites 1.
norte-americano faz dinheiro com o conteúdo alheio. A deci- Assim, os periódicos optaram por desligar seus conteúdos
são é de 2011, efetivada em outubro de 2012. do buscador aos poucos, por conta própria 2.
Os 154 jornais reunidos anANJ, cerca de 90% da mprensa
i Os dois argumentos parecem estranhos a quem observa
diária brasileira, afirmam que seu conteúdo é reproduzido o comportamento dos meios de comunicação nas últimas
na internet sem remuneração ou autorização dos produ- décadas: o Google é responsável por direcionar um contin-
tores. Querem que o Google pague por indicar seus sites gente muito grande de internautas para sites em geral. Sua
nos resultados de buscas dos internautas. Antes de esti- importância como referência para os usuários da rede pode
mular tamanho “êxodo”, a ANJ chegou a discutir soluções ser medida pela audiência do buscador, sempre líder entre
de parcerias que gerassem receitas com a indexação das buscadores, que por sua vez são endereços de passagem
notícias. Algumas reuniões com o Google no Brasil resul- constante de quem navega na web. Sua importância é tanto
taram em acordo para produzir o “Projeto 1 linha”, noqual maior quanto menos conhecida a marca de um site. Mas não
os resultados da busca feita pelo usuário mostrariam ape- pode ser considerada irrisória por nenhuma publicação. Ao
nas a primeira linha do artigo, e não mais quatro ou cinco dizer que os sites dos jornais brasileiros não se beneficiam
como hoje. O intuito era fazer com que o internauta não se da audiência gerada pelo Google, aANJ parece estar repre-
saciasse com as informações do início do texto, exposto no sentando a raposa diante das uvas na fábula deaLFontaine,
Google News, e fosse obrigado a acessar o conteúdo ori- fingindo desprezar o que não consegue dominar.
ginal nos sites dos jornais, aumentando acesso e audiên- Da mesma forma, parece saído da fábula do escritor
cia em seus endereços eletrônicos. renascentista francês o segundo argumento usado pela
O projeto, entretanto, não foi concluído devido a um entidade representante dos jornais: dizer que o público
problema técnico. Segundo a ANJ, “a redução no número dos sites de jornais brasileiros é formado por leitores fiéis
de linhas afetou radicalmente o ranqueamento dos resul- que não precisam usar o buscador para chegar a seus ende-
tados exibidos nas buscas”, ou seja,a ordem de apresenta- reços é fingir que está tudo ótimo nofront impresso das
ção das respostas conforme a pertinência dotexto em rela- empresas jornalísticas e que sua audiência é suficiente
ção à pergunta do usuário. Constatado o problema, aasso- para sobreviverem no mundo digital. Sabemos que isso
ciação sugeriu a possibilidade de saída dos jornais do Goo- não é verdade: as audiências dos sites de jornais ainda têm
gle News, “uma vez que tal ferramenta não contribuía de números apenas compatíveis com o universo da circula-
forma significativa nem para a audiência do site dos jor- ção paga de suas edições impressas, já as assinaturas on-
nais, nem para a rentabilização da audiência”. -line ainda são pequena fração do contingente em papel.

98 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


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Enquanto isso, grandes jornais no exterior têm na inter- acordo com a sua qualidade e produção. Isto é, se o veículo
net números dezenas de vezes maiores do que em papel. tem muitos autores de textos opinativos ou pessoais, grande
A decisão de sair do Google News é um erro estratégico quantidade de textos publicados, usa linguagem formal e hos-
que reforça a distância das empresas jornalísticas conven-peda artigos longos (critério utilizado para evitar reproduções
cionais em relação ao ambiente digital, em vez de apressarde outras fontes), provavelmente irá aparecer nos primeiros
sua adaptação, como seria desejável diante da decadêncialugares na busca do Google News. Todas essas características
do meio jornal e da explosão vertiginosa da penetração dassão típicas de empresas jornalísticas consolidadas, como os
novas mídias. A esta altura da era digital, os jornais revelamvelhos jornais em papel... Dessa maneira, o boicote da grande
com absoluta transparência que ainda não entenderam asimprensa ao buscador é um tiro no pé, uma vez que ele pri-
peculiaridades do funcionamento da internet, o que explicavilegia a divulgação do jornalismo de qualidade. O autor ter-
em grande medida a situação melancólica que vive a maio-mina seu texto com um lamento em forma de alerta: “A sele-
ria das empresas jornalísticas nacionais, que não consegui-ção natural raramente ajuda os voluntariamente cegos” 4.

ram até hoje se adaptar bem ao mundo digital e seguem em Muitos dos que atacam o buscador, reivindicando parte
rota cadente de circulação (nas edições em papel) e relevân-das receitas de publicidade em suas páginas, citam em defesa
cia (no meio impresso e no digital). de suas decisões o tão famoso quanto surrado pensamento
O problema não é exclusivo da imprensa brasileira. Há do economista Milton Friedman, segundo o qual “não há
alguns anos a mídia europeia também vem acusando o almoço grátis”, como a dizer que oGoogle deve pagar pelo
Google de “roubar” suas notícias, sob omesmo argumento conteúdo que indica em seu site de busca de notícias em
de que o buscador não paga direitos autorais para divulgar resposta a pesquisas de leitores. O próprio diretor-execu-
esse conteúdo. Editores franceses ameaçaram a empresa tivo da ANJ, Ricardo Pedreira, deu a entender isso ao afir-
com punições baseadas em novas leis de direitos autorais. mar, após a resolução de saída dos jornais brasileiros do
Em meio à disputa, o Google aceitou, em acordo assinado buscador, que o “Google entende que não deve pagar pelo
com o presidente da República, pagar US$ 80 milhões em conteúdo, que pode usá-lo livremente”5.
subsídios para a pesquisa de novas plataformas digitais. O O discurso sugere que o Google seja o comensal. O que é
entendimento, feito para aplacar a tensão na região onde revelador de que os dirigentes brasileiros da mídia impressa
o Google é ainda mais dominante do que
nos Estados Unidos (tem cerca de 90% de
share de mercado), foi um enigma: todos
os envolvidos comemoraram vitória. Os 154 jornais reunidos na
No último dia primeiro de março, o Par-
lamento alemão aprovou lei de direitos
autorais que autoriza o Google a repro-
ANJ afirmam que seu conteúdo
duzir pequenos trechos das reportagens. é reproduzido na internet sem
A lei pareceu descontentar todos os lados
em disputa, mas reconhece que o busca- remuneração ou autorização
dor pode usar parte do conteúdo como
referência sem ferir o direito autoral.
Deputados alinhados com a reivindica-
ção dos jornais tentarão mudar a lei no Senado alemão. tampouco entenderam o que disse o economista norte-
Há outras disputas semelhantes em curso em mais paí- -americano, ganhador do Nobel de Economia de 1976.
ses da Europa, sempre em torno do argumento comum Friedman dizia apenas que tudo tem um custo e alguém
de que o Google se apropria de conteúdos dos jornais ao há de pagá-lo. Praticamente em toda a sua vida adulta, no
publicar o início dos textos nas respostas das buscas do entanto, Friedman assistiu à TV aberta e chegou a produ-
usuário e deveria repassar um pedaço das receitas que zir um programa com sua mulher. Sabia que o “almoço não
obtém com publicidade em suas páginas 3. é grátis”, mas que ninguém paga para ver o conteúdo da
Em artigo recente para a revista
Forbes, Jeff Bercovici cri- TV aberta, por exemplo. O consumidor paga a luz (como
tica o posicionamento europeu e afirma que as medidas são também acontece com o usuário de internet); paga o apa-
absurdas porque o Google News ajuda a imprensa, e não arelho de TV (como o internauta paga o computador e a
atrapalha. No texto “Por que editores precisam parar de se conexão). Mas a programação da emissora é remunerada
preocupar e aprender a amar o Google”, Bercovici explicapela publicidade. Bingo: o almoço não sai de graça, mas o
que o buscador elenca a aparição dos websites de notícias de consumidor não paga a conta do conteúdo.

1 http://info.abril.com.br/noticias/internet/foi-bom-sair-do-google-news-diz-anj-28102012-7.shl
2 www.anj.org.br/sala-de-imprensa/noticias/jornais-brasileiros-fora-do-

google-news-esclarecimento-da-anj-associacao-nacional-de-jornais 3 www.nytimes.com/2013/02/18/technology/a-first-step-on-continent-for-google-on-use-of-content.
html?pagewanted=1&_r=1 4 www.forbes.com/sites/jeffbercovici/2013/02/25/why-publishers-need-to-stop-worrying-and-learn-to-love-google/ 5 www.estadao.com.br/noticias/

impresso,boicote-ao-google-news-no-brasil-vira-referencia-,951639,0.htm6 www.techdirt.com/articles/20121019/07505220761/brazilian-newspapers-apparently-dont-want-
7
traffic-they-all-opt-out-google-news.shtml=_blank www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/7395 9-boicote-de-jornais-do-brasil-ao-google-vira-modelo-no-exterior.shtml
8 http://www.techdirt.com/articles/20121019/07505220761/brazilian-n ewspapers-apparently-dont-want-traffic-they-all-opt-out-google-news.shtml=_blank

100 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


O Google também não cobra do consumidor; ganha de Globo – segue indexado; enquanto Folha
a de S.Paulo reti-
anunciantes pela audiência que gera para seus comerciais. rou-se do buscador, seu irmão mais novo Agora segue rece-
E quanto ao conteúdo?Para seguir na metáfora do almoço, bendo audiência dirigida pelo Google News.)
o Google tampouco serve refeições. Ao contrário do site Se esses jornalões, em seus sites, não oferecem o conteúdo
de postagem de videoclipes YouTube, no qual o usuário premium que poderia distingui-los uns dos outros, não con-
assiste integralmente a um conteúdo no ambiente do site seguem a fidelidade dos leitores on-line, que por decorrên-
(e, portanto, o direito do autor precisa ser remunerado cia não respondem como desejado às campanhas de assina-
por ele), o Google News não oferece conteúdos noticio- tura on-line (além de tudo, também muito caras).
sos, só indica o endereço eletrônico das notícias e suas pri- A ANJ acredita ter derrubado o argumento do Google
meiras linhas. Na metáfora do almoço, ele é o cardápio. E News de que estar no rol do buscador ajuda a incremen-
até Milton Friedman sabia que ler o menu no restaurante tar a audiência. Isso porque, segundo os jornais associa-
não custa nada (há quem leia e vá embora sem comer). dos à entidade, seu tráfego caiu (à época da decisão) ape-
A internet gera a cada ano milhares
de
aosnovos
outrossites jornalísticos,
tantos já existentessomando
para com-
por milhões de novas páginas diárias. É Se uma pequena sinopse exibida
virtualmente impossível achar algo que
se queira sem mecanismos de busca. O na homepage do Google News
internauta precisa de guias para achar
o que quer ou necessita, como um con- satisfaz o leitor, significa que
sumidor consulta cardápios para deci-
dir-se diante de uma praça de alimen- o artigo não capta a sua atenção
tação em um shopping. Essa é, estrita-
mente, a carência do usuário da web que
o Google sacia. E por que os empresários
brasileiros de jornais acham que o menu deveria pagar a nas cerca de 5%. Para o diretor-executivo da ANJ, Ricardo
conta do jantar? Não há por quê 6. Pedreira, este “é um custo muito pequeno comparado aos
Assim como cabe aos restaurantes atrair os seus clien- efeitos danosos de ter seu conteúdo distribuído de graça”. 7

tes por terem comida de qualidade, sabor único, receitas Mesmo que não percam audiência significativa (o que
que não podem ser encontradas em qualquer outro lugar, parece difícil, dado que o Google gera algo em torno de 4
cabe aos sites de jornais tornarem-se reconhecidos por suabilhões de cliques a novos sites por mês, segundo o artigo
qualidade única, e diante da adesão de consumidores, atra-citado ), os jornais não entenderam que o problema não gira
8

írem anunciantes e clientes que paguem pela assinatura. em torno, somente, desse contingente. Ao pedir sua exclu-
Quer dizer, se uma pequena sinopse exibida na homepage são do Google News, os jornais perdem a chance de turbi-
do Google News satisfaz o leitor, significa que o artigonão nar e revigorar suas marcas na web; deixam de se posicio-
capta a sua atenção. O problema, claramente, não reside nonar bem no ambiente digital. Renunciam a se apresentar aos
buscador, mas na indiferenciação do noticiário, que resulta olhos de uma imensa população jovem, que é “nativa digi-
em indiferença no consumidor. tal” – expressão usada por Caio Túlio Co
sta em “Analógicos
Agora, pergunte-se, leitor, como internauta que certamente
versus digitais”, na segunda edição desta
Revista de Jorna-
o que lismo ESPM– e que poderia ser cativada. Além disso, a ideia
é: há algo dessa qualidade alta e diferenciadora naquil
nos oferecem os sites dos jornais brasileiros reunidos na de que servem a um “público fiel” é contraproducente, uma
inglória disputa com o Google? O consumidor parece dizervez que esse público é restrito (não se renova) e tende a não
que não. Desde que os grandes jornais deixaram o Googleaumentar. Em um país onde os números de consumidores e
News, a audiência do buscador não caiu; suas páginas seguemde internautas crescem e os leitores de jornal somem, parece
trazendo resultados para as consultas dos leitores em buscapouco ambicioso contar somente com seus “leitores fiéis”.
de notícias sobre temas de seu interesse, mas as respostas Ao mesmo tempo, ao não oferecer um conteúdo que seja
apontam para sites de empresas quase sempre sem ligaçãosuficientemente distinto do jornal em papel e dos demais
com os grandes jornais em papel: são sites independentes,sites de jornal a ponto de justificar uma fidelização do lei-
portais, sites ligados às TVs e, às vezes, pequenos jornais dotor digital e contrabalançara perda de audiência do papel,
interior. E todos eles têm noticiário completo, semelhanteos jornais vão perdendo a onda da história agarrados aos
aos sites dos grandes jornais, desde logo porque compram,restos de um barco que afunda rapidamente.■
comocommodities, as mesmas notícias de agências que com-
põem a maior parte do conteúdo dos sites de grandes jor-leão servaé jornalista e escritor, autorJornalismo
de e Desinformação
nais filiados à ANJ. (Há um aspecto curioso, que sugere que(Senac, 2001). O diretor da agência de conteúdo Santa Clara Ideias
mesmo as grandes empresas jornalísticas não têm convicção Folha de S.Paulo
ocupou diversos cargos na , em Notícias Popularese no
formada sobre o que defendem: enquanto O Globo deixou o Diário de S.Paulo. Também dirigiu a revistaPlacar e foi responsável pela
Google News, seu coirmão G1 – também das Organizaçõesimplantação doÚltimoSegundo, do portal iG, entre outras publicações.

REVISTA DE JORNALISMO ESPM| CJR 101


Aulas de sobrevivência
Repórteres que cobrem cartéis do tráfico

no México recorrem a colegas colombianos


para formar redes e se manterem vivos

p o r judith matloff

os 20 jornalistas mexicanos tinham voado até a fronteira O


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da Guatemala para discutir como cobrir as atividades do tráfico de E


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drogas e permanecer vivos, e ouviram atentamente os palestrantes, O

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um após o outro. Quase todo mundo na conferência, tanto do México E
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como de outros países, já tinha perdido um colega ou recebido uma F


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ameaça de morte de gangues de traficantes que têm a imprensa N


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como alvo. Eles estavam ansiosos por dicas de sobrevivência. E

Um geek de computação falou sobre tigações, coordenaram publicações e um movimento nacional”, disse Ginna.
encriptação de dados. Veio em seguida até encenaram um blecaute de notí- “Esqueça a exclusividade.”
uma palestra sobre como esquivar- cias para protestar contra um assas- “Uau”, sussurrou o repórter a meu
-se de agressores. A conversa conti- sinato. Eles convenceram as autori- lado. “Isso é inspirador.”
nuou, abordando o tema de como agir dades a lhes fornecer guarda-costas. O México é um dos locais mais
quando o repórter na mesa ao lado “Eu não conseguia mais ficar perigosos para a prática do jorna-
trabalha para bandidos. calada”, ela comentou, a propósito lismo, devido à impunidade dos car-
Ginna Morelo então se levantou, e a da decisão, tomada havia seis anos, de téis de drogas. Até o fechamento
sala ficou em silêncio. A pequena mas fundar com amigos uma rede inves- da edição de janeiro da Columbia
resistente repórter investigativa deEl tigativa que agora se espalhava pelo Journali sm Review (CJR), mais de
Meridiano de Córdoba, da Colômbia, país. A organização hoje tem 87 mem- 80 jornalistas haviam sido assassi-
contou como jornalistas de seu país bros ativos e uma lista de seis mil nados e 16 sequestrados num perí-
tinham enfrentado a violência relacio- e-mails. Os repórteres do grupo tra- odo de 12 anos, porque escreveram
nada ao tráfico de drogas duas décadas balham juntos em histórias que seriam sobre as atividades de gangues em
antes. Os colegas formaram uma rede perigosas demais ou difíceis de apu- guerra. Muitos repórteres se tor-
nacional que, com o tempo, conseguiu rar por uma pessoa só. “O que come- naram clandestinos e outros tan-
proteção do Estado para a imprensa. çou com dois jornalistas sediados em tos foram silenciados pelo medo.
Concorrentes colaboraram em inves- Bogotá foi aumentando até se tornar Segundo dados divulgados em Gene-

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bra no início de abril pela Campa- O idioma comum facilita a comu- Colegas de Armando
nha Emblema de Imprensa (PEC, nicação, assim como a compreensão Rodríguez, repórter policial
na sigla em inglês), no primeiro tri- do que é lidar com o mundo sombrio do jornal El Diario de Juárez
mestre de 2013, mais um jornalista das gangues de traficantes. “Acredita- morto a tiros em 2008,
mexicano foi assassinado. mos que podemos servir como exem- mantêm sua estação de
Em meio ao desespero por ajuda, plo para os mexicanos”, disse Ignacio trabalho como espécie de
uma rede informal chamada Perio- Gómez, líder do principal grupo de memorial. Na baia, um vaso
distas de a Pie (www.periodistas- liberdade de imprensa da Colômbia, com flores murchas e o retrato
deapie.org.mx – organização que a Fundación para Libertad de Prensa do jornalista alertam sobre o
tem por objetivo melhorar a quali- (Flip). Ele perdeu a conta de quantos risco que correm diariamente
dade do jornalis mo mexicano ofe - seminários a Flip (www.flip.org.co/)
recendo cursos, discussões e inter- promoveu no México para colegas
câmbio), começou a recorrer a cole- que enfrentam o perigo.
gas colombianos em busca de dicas e, Os workshops geraram uma asso-
nos últimos dois anos, especialistas ciação informal, de Juárez a Oaxaca,
tarimbados como Ginna Morelo se de repórteres que compartilham de
dirigiram ao México para se encon- tudo – desde nomes de psicólogos
trar com repórteres por todo o país. que cobram valores acessíveis, pas-

REVISTA DE JORNALISMO ESPM| CJR 103


sando por um sofá, se alguém preci- trado. Em alguns casos, os chefões dos pelos publishers e editores para
sar fugir da cidade, até fotocópias de dos jornais mexicanos vivem do outro desenvolver uma estratégia comum
guias de contraespionagem. E come- lado da fronteira, nos Estados Uni- para proteger seus jornalistas.”
çaram a discutir como fazer lobby em dos, e têm pouco contato, se é que têm Conversei com dezenas de jorna-
grupo, para receber a proteção oficial algum, com os repórteres. Os jornalis- listas mexicanos país afora, e quase
da qual os colegas colombianos des- tas colombianos costumam ser mais todos disseram que apelos por trans-
frutam. “Precisamos de uma lei como bem conectados. ferências para sucursais mais seguras
a da Colômbia, que obriga o Estado a Além disso, diferentemente da ou para a contratação de vigilância
agir”, disse Brisa Solis, líder do Cen- Colômbia, os gigantes da mídia mexi-
armada são recebidos com risos. Os
tro Nacional de Comunicação Social cana parecem não ter interesse em um
salários são baixos – o salário médio
(Cencos – cencos.org/), uma ONG lobby de proteção em grupo, segundo o
mensal é de US$ 650 – e os empre-
gos são tão escassos que os repórte-
res geralmente têm medo de lutar por
seus direitos. Esqueça a ideia de sindi-
catos fortes. “Meu editor esperava que
eu voltasse a trabalhar logo depois de
Não temos dinheiro para pagar ter levado uma surra”, disse-me um
repórter de uma cidade de fronteira.
advogados. Não há um número Pelo menos nesse estágio, é difícil ima-
ginar o México adotando um meca-
de telefone para ligar quando as nismo similar ao Comité de Regula-
mentación y Evaluación de Riesgos,
que faz parte do programa de prote-
pessoas são ameaçadas ção a jornalistas do governo colom-
biano. Esse grupo, estabelecido em
2000, reúne representantes da Flip, de
outras ONGs e do governo. Eles revi-
que tem como ponta de lança o trei- Center for International Media Assis- sam pedidos de proteção de 16 grupos
namento de segurança no México. tance (Cima – cima.ned.org/), orga- vulneráveis – incluindo jornalistas –
“Não temos uma forma organizada nização sediada em Washington, nos e fornecem guarda-costas e carros
de reagir. Não temos dinheiro para Estados Unidos, que apoia e defende à prova de balas para quem precisa.
pagar advogados. Não há um número o desenvolvimento da mídia indepen- Também falta ao México um sis-
de telefone para ligar quando as pes- dente em todo o mundo. Isso deixa os tema judicial robusto que faça justiça
soas são ameaçadas.” repórteres do interior em um limbo contra os assassinos. No início deste
Isso não quer dizer que os casos do de segurança sem nenhum defensor ano, legisladores mexicanos aprova-
México e da Colômbia sejam pareci- forte com assento no governo. Já a ram uma emenda à Constituição que
dos. Não são. influente mídia nacional de Bogotá torna ataques a jornalistas um crime
A Colômbia desfrutava de condi- uniu forças com a elite política, que federal e deu às autoridades federais
ções mais favoráveis para construir de maneira similar tinha sido alvo do o poder de processar em áreas geo-
redes de solidariedade. Para começar, cartel de Medellín. gráficas que normalmente estão sob
o mundo do jornalismo no México é jurisdição local ou estadual. Mas o
alienado da sociedade civil; a popu- Falta estratégia Poder Legislativo ainda precisa apro-
lação geralmente vê jornalistas medí- var leis complementares para definir
ocres como abutres irresponsáveis, o “Quase todos os ataques no México o processo.
que não acontece na Colômbia. E até aconteceram longe da capital, con- Dois anos atrás, frustrada pela falta
essas iniciativas recentes, os traba- tra alvos locais, e despertaram pouca de iniciativa federal, a Comissão de
lhadores da imprensa do interior não atenção nacional”, observou um rela- Direitos Humanos do estado frontei-
tinham contato com colegas de outras tório recente do Cima. “Quase não há riço de Chihuahua esboçou a própria
cidades, muito menos da Cidade do contato entre a mídia local e a nacional lista de procedimentos para jornalistas
México, onde o poder está concen- no México, não há esforços coordena- em risco, mais ou menos baseada no

104 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


modelo colombiano. Isso incluía fazer
um rodízio de repórteres policiais,
para que eles não se tornassem víti-
mas de fontes corruptas, e instruir a
polícia a reagir imediatamente a amea- El Diario implorou para os
ças contra a imprensa. A comissão diz

que também
financiar ajudou
guardas 20 jornalistas
armados ao
ou passa- barões da droga definirem regras,
gens de avião para que pudessem via- de modo que seus jornalistas
jar para outras cidades. Mesmo assim,
repórteres independentes dizem que soubessem o que passava do limite
os beneficiários estão amplamente ali-
nhados a autoridades do Estado e que
a maioria dos jornalistas só conta con-
sigo mesmos – comunicando-se em
código para evitar escutas clandesti-
nas de oficiais cúmplices, por exem- tórias e convidaram especialistas a nal El Mañana anunciou que pararia
plo, ou viajando em grandes grupos explicar coisas como senhas de pro- de cobrir disputas violentas entre gru-
até cenas de crime. teção e alteração de rotinas. Regu- pos rivais depois do segundo ataque
Uma líder local é Rocío Gallegos, larmente, eles conferem o estado com granada que atingiu seus escri-
a resoluta editora do jornal El Diario emocional um do outro. É um misto tórios em dois meses. Os moradores
de Juárez, na cidade fronteiriça que de grupo de apoio com sindicato de da cidade se valem do Facebook para
por muito tempo sustentou a distin- desenvolvimento profissional. “Esta- saber a respeito detiroteios, que geral-
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ção dúbia de ser a capital mundial belecemos alianças entre jornalistas, mente são mencionados sob o eufe-
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d do homicídio. Ela é lembrada diaria- de maneira que podemos tomar conta mismo “festas”. Os jornalistas se põem
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1 mente dos perigos que corre ao colo- um do outro”, explicou Rocío. “Os a pensar em como conseguir voltar a
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d car sua pasta na baia em frente à de furos ficam em segundo plano.” fazer seu trabalho direito.
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Armando Rodríguez, um repórter “A colaboração não funcionaria,
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policial morto a tiros em 2008. Sua Imprensa amordaçada porque não cobrimos mais essas notí-
ro i estação de trabalho tem servido de cias”, observou secamente Daniel
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e memorial, com flores murchas cor de A ideia está se espalhando. Uma repór- Rosas, editor on-line do El Mañana.
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o laranja e um porta-retratos empoei- ter da cidade de Chihuahua que par- “Gosto da ideia, porém.”
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rado. O colega do outro lado de Rocío ticipou de uma sessão saiu tão entu- Então ele desistiu totalmente?
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tinha enfeitado sua mesa com fitas siasmada que criou a própria seção “De forma alguma”, disse Rosas. “A
ca il de isolamento policial e cápsulas de ao voltar para casa. Os membros são decisão de Ginna Morelo, da Colôm-
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balas encontradas em cenas do crime checados para se ter certeza de que bia, de quebrar o silêncio realmente
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li do narcotráfico. não estão agindo como informantes me impressionou. Temos de encon-
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As coisas iam tão mal em Juárez há dos traficantes, já que a falta de con- trar uma forma de fazer isso aqui.” ■
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S l dois anos queEl Diario implorou para fiança nas redações é uma reclamação
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os barões da droga definirem regras, comum. “Tivemos de tomar a inicia- judith matloff é editora
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de modo que seus jornalistas soubes- tiva”, disse Patricia Mayorga, da publi- contribuinte da Columbia Journalism
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sem o que passava do limite. “O que cação on-line Omnia. “Ninguém mais Review (CJR). Veterana correspondente
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p vocês querem de nós?”, perguntava o está olhando por nós.” estrangeira, ela ministra curso sobre
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editorial, que saiu na primeira página. Mesmo assim, medidas como essas reportagem de conflitos na Columbia
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Os editores nunca receberam res- ainda permanecem distantes de repór- University e é autora de Fragments of
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posta, então Rocío tomou o problema teres em locais como a cidade de fron- a Forgotten War (Fragmentos de uma
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te para si. No ano passado, ela criou uma teira de Nuevo Laredo, onde o cartel Guerra Esquecida) e Home Girl – Building
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associação informal de repórteres de Zetas impõe tanto terror que muitas a Dream House on a Lawless Block
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x espírito independente, cansados da pessoas não pronunciam seu nome (Nova no Pedaço – Construindo a Casa
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O autocensura. Eles reuniram suas his- em voz alta. Em julho de 2012, o jor- dos Sonhos em um Quarteirão sem Lei).

REVISTA DE JORNALISMO ESPM| CJR 105


ENQUANTO ISSO, NO BRASIL... MILTON BELLINTANI

Compromisso de risco
Casos de jornalistas obrigados a exilar-se
para se proteger de ameaças acendem
o sinal vermelho no Brasil

a imagem que abre esta matéria é um retrato da situação do jornalismo a afirmação se confirmou nos meses
investigativo no Brasil, apesar de mostrar o outdoor de um prédio do South seguintes. Boa parte dos mortos não
Bronx – área do bairro mais pobre de Nova York, que já foi um dos redutos tinha passagem pela polícia. Em mui-
da violência nos Estados Unidos. A placa alerta a comunidade para denun- tos casos, pessoas de fora dos bairros
ciar policiais que ajam fora da lei, fotografando, filmando evisando
a por celu- foram vistas recolhendo cartuchos de
lar sobre qualquer excesso cometido por agentes públicos que têm como balas espalhados nas cenas dos cri-
dever garantir a segurança dos cidadãos. O que isso tem a ver com o nosso mes antes da chegada da polícia.
país? A foto foi feita com a câmera do celular do repórter André Caramante, Em 13 anos deexperiência de cober-
do jornal Folha de S.Paulo, durante o exílio de 90 dias que ele e a família vive- tura da segurança pública, o repórter
ram entre setembro e dezembro do ano passado, devido a ameaças que pas- da Folha denunciou a existência de
sou a sofrer após publicar uma reportagem sobre o então candidato a verea- sete grupos de extermínio formados
dor Paulo Telhada – ex-comandante da Rota – eleito como o quinto mais por policiais. Por causa disso, acumu-
votado no pleito municipal de outubro, em São Paulo. lou processos por “calúnia e difama-
No texto “Ex-chefe da Rota vira político e prega a violência no Facebook”, ção” de agentes que se sentiram atin-
publicado em 14 de julho, Caramanteescreveu que o policial reformadousava gidos. Não foi condenado em nenhum
sua página pessoal “para veicular relatos de supostos confrontos com civis (sem- deles, mas viu o time de desafetos cres-
pre chamados de ‘vagabundos’)”. A reação não tardou. No mesmo dia,Telhada cer. Para Caramante, as ameaças con-
postou críticas ao repórter e sugeriu que se deveria reagir contra os “notórios tra ele e a família partiram de simpati-
defensores de bandidos”, como ele qualificou Caramante. Nas semanas que se zantes de policiais como esses.
seguiram, dezenas de apoiadores da página publicaram ameaças ao jornalista. “Foram feitas ligações anônimas à
Desde maio de 2012, a violência explodira em São Paulo, com a ocorrência redação da Folha dizendo que sabiam
de chacinas em bairros da periferia seguindo um padrão: homens encapuza- onde eu moro, onde fica a escola de
dos chegavam em motos ou carros pretos, desciam e executavam seus alvos. meus filhos e que a ‘nossa hora’ estava
As ações aconteciam sempre após atentados que tiveram como alvos poli- para chegar”, conta.“Além disso, pos-
ciais. André Caramante escreveu que se tratava de uma guerra entre o PCC taram uma foto do diretor de redação
(a organização criminosa Primeiro Comando da Capital) e policiais militares do jornal, Sérgio Dávila, como sendo
da Força Tática e da Rota (a sigla para o Batalhão de Polícia de Choque Ron- eu. Entendi como um recado também
das Ostensivas Tobias de Aguiar). Apesar de veementes desmentidos oficiais, à direção da empresa de que o cerco

106 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


Outdoor em prédio no South
Bronx, Nova York, capturado
por André Caramante
durante refúgio nos Estados
Unidos, alerta sobre excessos
cometidos por policiais de lá

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se apertava. Então, em comum acordo mos os bilhetes de embarque, fui reti- longa. Em silêncio na maior parte
com o jornal, se decidiu que eu deve- rado da fila, já no finger, por funcio- do tempo, e mal conseguindo dor-
ria trabalhar a distância.” nários da Infraero e da Polícia Fede- mir, Caramante e a mulher tentavam
A estratégia durou menos de três ral. Estava com meu filho mais novo antecipar o futuro se perguntando
semanas. Caramante e a Folha con- no colo. Minha mulher ficou com ele quando a vida da família voltaria ao
cluíram que não era seguro perma- e com nossa filha, aguardando minha normal. Lá fora, embora se sentindo
necer na cidade. No dia 11 de setem- liberação. Fui conduzido para trás de em segurança, o casal de jornalistas
bro, o repórter, a mulher e os dois um biombo, longe da vista dela. Pedi- descobriu que a democracia brasileira
filhos – um com menos de 2 anos e a ram que eu levantasse a camisa e apli- produz exílios.
outra com menos de 5 – embarcaram caram um produto químico nas bar-
para Nova York. Por causa da data, ras da minha calça, no tênis, cinto e Ameaças seguem padrão
que remete aos atentados às Torres também em minhas mãos. Questio-
Gêmeas do World Trade Center, na nei o procedimento e ouvi que se tra- O jornalista Mauri König, 47 anos,
Big Apple, ao escritório e residência tava de uma verificação de rotina para acompanhou com interesse cada
presidencial da Casa Branca e à sede ‘saber se eu transportava algum tipo passo da saga de Caramante. Repór-
do Departamento de Defesa ameri- de material ilícito’. Indaguei também ter do jornal Gazeta do Povo , do
cano (Pentágono), em Washington, as o motivo de ter sido o único a passar Paraná, e diretor da Associação
tarifas de voos para os Estados Unidos pelo procedimento, em um voo de Brasileira de Jornalismo Investiga-
continuam mais baixas no “nine-ele- 230 passageiros. Responderam que tivo (Abraji), o fez por solidariedade
ven”, mesmo tendo se passado 11 anos. meu filho, um bebê, havia sido ‘esco- profissional e humana, mas também
Na saída do Brasil, em vez de alí- lhido por amostragem’. Como estava porque a experiência do colega o
vio, um inesperado momento de ten- em meu colo, coube a mim passar pela lembrou das duas ocasiões em que
são. “Fomos retidos por 40 minutos averiguação especial. Só então fui libe- esteve frente a frente com o perigo.
na emigração, aguardando a libera- rado para embarcar. Todos os demais A primeira no ano 2000, quando foi
ção de nossos quatro passaportes”, passageiros já estavam acomodados.” detido, espancado e “deixado para
recorda Caramante. “Passageiros que O episódio, como era de prever, morrer” por policiais paraguaios,
chegaram depois foram liberados sem fez a viagem de pouco mais de nove como recorda, por haver denun-
a mesma vistoria. Depois de entregar- horas até Nova York parecer mais ciado em reportagem para o jornal

REVISTA DE JORNALISMO ESPM| CJR 107


O Estado do Paraná o sequestro e vivemos. Minha ex-mulher partiu México e da Colômbia. Nesses 20
alistamento forçado de crianças pelo de Foz levando meus dois outros anos, em plena democracia, houve o
Exército do Paraguai. “Apurei que ao filhos, hoje com 13 e 15 anos. Dessa dobro de execuções de jornalistas do
menos 109 morreram tentando esca- vez, eles leram que eu teria de sair que na ditadura de 1964-1985. Nesse
par, entre elas crianças brasileiras e do país. Fui embora sem conseguir período, segundo a Comissão Esta-
argentinas”, diz König. “Senti medo vê-los”, relata König. dual da Verdade “Rubens Paiva”, da
de morrer, mas os abusos cessaram Assembleia Legislativa de São Paulo,
graças à denúncia.” A segunda acon- Impunidade eleva risco foram 12, número apurado pelo rela-
teceu em 2003, em Foz do Iguaçu, tório “Direito à Memória e à Ver-
quando ele publicou na Gazeta do Segundo o Comitê para a Proteção dos dade”, produzido pela Comissão
Povo que policiais civis haviam se Jornalistas (CPJ), organização não Especial sobre Mortos e Desapare-
aliado a ladrões de automóveis que governamental de promoção da liber- cidos Políticos, em 2007. Na conta-
operavam na fronteira do Brasil com dade de imprensa sediada em Nova bilidade de outras organizações de
o Paraguai. “Tive de me mudar para York, opara
Brasil é um dosde
países de maior defesa dos direitos humanos, chega
Curitiba para escapar”, explica. risco a atuação jornalistas. a 20, por incluírem militantes polí-
Mauri König só não imaginava que Ficou em 11º no Índice Anual de Impu- ticos que em algum momento de sua
se lembraria do exílio da família Cara- nidade. O indicador leva em conta o trajetória atuaram na imprensa par-
mante menos de uma semana depois número de mortes, prisões, legislação tidária – legal ou clandestina.
de ela voltar ao Brasil, sem alarde. restritiva, censura estatal, impunidade Os dois jornalistas mortos no perí-
Mauri, a mulher e o filho de 3 anos em ataques contra a imprensa ejorna- odo cujos assassinatos tiveram maior
tiveram de viver seu próprio exílio, listas levados ao exílio. repercussão foram Vladimir Herzog,
ao embarcar para o Peru devido a Só em 2013, três repórteres foram diretor de jornalismo da TV Cul-
novas ameaças que recebera. O repór- assassinados com intervalo de 60 tura, ligado ao Partido Comunista
ter acredita que provavelmente vie- dias. Todos em consequência do tra- Brasileiro (PCB), morto sob tortura
ram de policiais civis, devido à série balho como jornalistas. O radialista no Destacamento de Operações de
de reportagens “Polícia fora da lei”, Renato Machado Gonçalves, presi- Informações – Centro de Operações
publicada em maio pela Gazeta, em dente da Associação A Voz de São de Defesa Interna (DOI-Codi) de São
que mostrou agentes públicos utili- João da Barra e administrador da Paulo, em 1975; e Luiz Eduardo da
zando carros oficiais para fazer com- Rádio Comunitária Barra FM, foi Rocha Merlino, do Partido Operá-
pras, levar os filhos à escola e, alguns, morto no dia 8 de janeiro ao sair de rio Comunista (POC) – com passa-
até para frequentar motéis. A série casa, em São João da Barra, Estado gens no início da carreia pelo Jornal
teve a participação de Diego Ribeiro, do Rio de Janeiro, por dois pisto- da Tardee pela Folha da Tarde –, que
Felippe Aníbal e Albari Rosa, mas as leiros que chegaram em uma moto. morreu em decorrência de torturas
ameaças se concentraram em König, A polícia investiga as hipóteses de sofridas, em 1971, também no DOI-
possivelmente pelo conjunto da obra. crime político, vingança por briga e -Codi. Essas mortes foram masca-
Assim como aconteceu com Cara- crime passional. Em 22 de fevereiro, radas como sendo, respectivamente,
mante, as redes sociais foram utili- o radialista Mafaldo Bezerra Goes, suicídio por enforcamento e atrope-
zadas para potencializar as amea- da FM Rio Jaguaribe, de Jaguaribe, lamento por caminhão na rodovia
ças. A exemplo do que fez a Folha de no Ceará, foi assassinado por pis- BR-116, após fuga. As duas versões
S.Paulo, a Gazeta do Povojuntou fotos toleiros com cinco tiros à queima foram desmontadas graças à obsti-
das postagens e comunicou as autori- roupa. A suspeita é de que tenha sido nação das famílias, que jamais acei-
dades para que fossem tomadas pro- vítima de traficantes que atuam na taram os laudos do regime e exigiram
vidências legais contra os promoto- cidade. Na madrugada do dia 9 de na Justiça a investigação completa
res das ameaças. E fez mais: contra- março, o repórter Rodrigo Neto, das circunstâncias em que os jorna-
tou seguranças para proteger seus da Rádio Vanguarda AM e do jor- listas morreram. Em 23 de junho de
quatro jornalistas. “Até ser tomada a nal Vale do Aço, de Ipatinga, Minas 2012, o coronel reformado do Exér-
decisão de sair, minha família mudou Gerais, foi executado com três tiros. cito Carlos Alberto Brilhante Ustra,
de hotel regularmente a fim de difi- Recentemente, ele havia denunciado que dirigia o DOI-Codi paulistano
cultar a nossa localização”, diz König. à Comissão de Direitos Humanos a à época, foi condenado a pagar R$
Mas a volta do exílio peruano de participação de policiais em ativida- 100 mil de indenização à família de
60 dias não significou que a vida do des ilegais. Em 2012, quatro jornalis- Merlino pela juíza Claudia de Lima
jornalista voltaria ao normal. Assus- tas foram mortos no país. Menge, da 20ª Vara Cível do foro cen-
tada, a mulher comunicou a ele que Somados os casos de jornalistas tral de São Paulo. Em 23 de setembro,
se mudaria do estado, levando o assassinados desde 1992, o número o juiz da 2ª Vara de Registros Públicos
filho com ela. “Me vi revivendo um chega a 25, o que coloca o Brasil como do Tribunal de Justiça de São Paulo
filme. Em 2003, meu primeiro casa- terceiro país das Américas em que Márcio Martins Bonilha Filho deter-
mento acabou devido ao trauma que mais se matam jornalistas, atrás do minou que no atestado de óbito de
108 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013
Vladimir Herzog passasse a constar mais adiante, resumiu sua situação. apenas 17 anos quando passou no ves-
que a “morte decorreu de lesões e “Retomar a vida é difícil. Faço tra- tibular de jornalismo da Uniban, então
maus-tratos sofridos em dependên- tamento psicológico e psiquiátrico, um recém-criado Centro Universitá-
cia do II Exército - SP (DOI-Codi)”. tomo uma dúzia de remédios. Quase rio localizado praticamente sob o via-
não vejo meus filhos, que estão cres- duto que liga as avenidas Rio Branco,
O limite do medo cendo longe de mim. Tenho agora na fronteira do centro paulistano, com
um neto que mal conheço. Não soube a Rudge, que faz a ligação com a ponte
No país em que ao menos 45 jor- mais nada da repórter e do motorista, da Casa Verde e de onde se divisa a
nalistas foram mortos nos últimos sumiram. Esqueci dos amigos. Preciso periferia norte de São Paulo. Traba-
45 anos, seria exagero afirmar que de fotos para me lembrar do rosto de lhava como marreteiro e, depois, office
André Caramante e Mauri König quem gosto. Mas me lembro nitida- boy, e era um dos alunos que tinham
podem ser considerados sobreviven- mente dos que me torturaram.” sérias dúvidas se o curso seria, afinal,
tes? Antes deles, outros repórteres Relatório inédito, divulgado mun- reconhecido pelo Ministério da Edu-
se viram na linha divisória entre o dialmente pela ONG internacional cação e, mais que isso, se faria dife-
risco calculado e o imponderável. Foi Article 19 em 14 de março, revela que rença em sua vida. Se a faculdade o
assim com Caco Barcellos, que teve 52 jornalistas e defensores de direi- decepcionou, o mesmo não aconte-
de deixar o Brasil após a publicação tos humanos sofreram graves viola- ceu com um grupo de professores que
de seu livro Rota 66, em 1992, em que ções à liberdade de expressão no ano o ajudou a dar forma à sua vocação
denunciou padrões de extermínio da de 2012 no Brasil – e 207 no México. de repórter. Sua banca de trabalho de
população jovem, negra e pobre da No Brasil, o levantamento identifi- conclusão, em 1998, diz isso por si só:
periferia paulistana – a maioria sem cou casos de homicídio (30%), ten- dela fizeram parte o repórter Caco
passagem pela polícia e com carteira tativas de homicídio (15%), amea- Barcellos, a seção brasileira da Anis-
de trabalho assinada. Na volta, anos ças de morte (51%) e sequestros ou tia Internacional ea Pastoral Carcerá-
depois, mudou o foco de sua atua- desaparecimento (4%). As vítimas ria, convidados a avaliar o livro-repor-
ção na TV Globo. Em Londres, onde haviam denunciado publicamente tagem que escreveu a seis mãos com
atuou como correspondente, Bar- atos de violência praticados por poli- as colegas Kátia Cavalleiro e Solange
cellos aprendeu com organizações ciais, srcinados de conflitos agrários,Facó sobre um ex-preso da Casa de
humanitárias que toda ameaça deve crimes ambientais e casos de corrup- Detenção de São Paulo, o Carandiru,
ser tornada pública e que deve haver, ção. A íntegra do relatório “Graves que escreveu um relato de 140 páginas
sim, um limite para correr riscos. violações à liberdade de expressão sobre o massacre de 18 detentos em 29
Já o fotógrafo Nilton Claudino e de jornalistas e defensores de direi- de março de 1982 e a vida na cadeia
uma colega repórter do jornal O Dia, tos humanos” está disponível no site mais famosa da históriade São Paulo.
do Rio de Janeiro, só descobriram www.article19.org. Quem leu o trabalho nunca duvidou
isso depois de cair nas mãos de poli- No lançamento do relatório, a dire- de aonde Caramante chegaria.
ciais e ex-policiais que integram as tora da Article 19 na América do Sul, Formado em Letras, König resol-
chamadas milícias, grupos parami- Paula Martins, afirmou que “o Estado veu cursar jornalismo com a idade
litares que disputam território para não apenas tem se omitido como que Caramante tem hoje, 35 anos.
venda de drogas e proteção com nar- acaba sendo protagonista de certas E já com nove anos de trabalho prá-
cotraficantes cariocas. Em 2008, dis- ações”. De acordo com ela, “embora tico na imprensa de Foz do Iguaçu,
farçados para investigar a atuação não haja uma intenção da institucio- cobrindo a Tríplice Fronteira. Ape-
de milicianos em uma favela do Rio, nalização da censura no Brasil, em sar de certamente ter mais a ensinar
foram descobertos, torturados e man- boa parte dos casos os processos de do que aprender, não subestimou o
tidos vivos pelos algozes como forma intimidação e violência ocorrem por aprendizado que poderia extrair da
de mandar um recado aos jornalis- meio da atuação de representantes experiência. Mas buscou nas reda-
tas para se manterem longe da dis- do Estado, seja através da polícia, de ções a sua melhor escola. “Tive a
puta nas ruas e morros. Abandonado políticos ou agentes públicos”. sorte de conhecer o jornalista Mon-
pela mulher, filhos e amigos próxi- tezuma Cruz, com quem trabalhei
mos, Claudino descreveu a epopeia Escola de jornalismo na Folha de Londrina e a quem con-
que viveram em depoimento à revista sidero o meu grande professor. Com
piauí nº 59, edição de agosto de 2011. Onde nasce o repórter? Quando se ele aprendi que jornalismo é, essen-
No texto “Minha dor não sai no jor- opera o parto que faz emergir de cialmente, compromis so social. E a
nal”, ele conta que decidiram morar dentro o compromisso com algo que fazer reportagens mais aprofunda-
em uma favela para fazer a repor- parece infinitamente maior do que a das. Aprendi que o bom jornalismo
tagem. “Fui descoberto, torturado capacidade individual de fazer alguma vai além do relato dos acontecimen-
e humilhado. Perdi minha mulher, diferença? Para Caramante, a escola de tos, que deve ir às causas que deter-
meus filhos, os amigos, a casa, o Rio, jornalismo foi um elemento determi- minam os fatos e, por isso, interessam
o sol, a praia, o futebol, tudo.” E, nante de suas escolhas. André tinha mais à sociedade”, diz.

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Rodrigo Neto foi executado com três tiros em março E
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Mauri König, da Gazeta do Povo, foi obrigado a deixar o país

Quando as ameaças a André e A entrevista foi publicada no blog da fissionais de imprensa e assassinatos,
Mauri se tornaram públicas, entida- jornalista, no dia 8 de outubro, no site bem como pela impunidade de quem
des profissionais de jornalistas de da revista ÉPOCA 1. comete esses crimes”, afirma.
todo o país e também organizações Ivo Herzog, diretor do Instituto
humanitárias do Brasil, Estados Uni- Vladimir Herzog, tinha apenas 9 anos O maior prêmio de todos
dos e Europa logo manifestaram soli- quando o pai, Vladimir, foi morto na
dariedade, fazendo ecoar nas redes ditadura. Ele explica que o instituto Mauri König e André Caramante são
sociais a denúncia do risco que eles articula, ao lado da Abraji, da Conec- jornalistas premiados. Colecionam
sofriam e cobrando das autoridades tas, da organização Repórteres sem reconhecimentos profissionais e tam-
brasileiras providências no sentido de Fronteiras e do Centro de Informações bém outros que resultam dos com-
protegê-los. A Anistia Internacional, o das Nações Unidas no Brasil, a criação promissos assumidos com o interesse
Comitê para a Proteção dos Jornalis- de um grupo de proteção a jornalistas público e a defesa dos direitos huma-
tas, a Abraji, o Instituto Vladimir Her- ameaçados. Nemércio Nogueira, dire- nos. Em 2012, König recebeu o Prê-
zog, o Comitê Paulista pela Memó- tor executivo do Instituto Vladimir mio Internacional de Liberdade de
ria, Verdade e Justiça, a Conectas, e Herzog, explica que um dos objetivos Imprensa concedido pelo CPJ, que
a Federação Nacional dos Jornalistas é prestar assistência jurídica aos ame- dedicou a colegas perseguidos em
(Fenaj), entre outras organizações, açados. “É indispensável que a socie- outros países e à memória do jorna-
iniciaram uma mobilização que deu dade como um todo se conscientize de lista Tim Lopes, morto em 2002 por
resultado. No caso de Caramante, ela que, institucionalmente, a população traficantes, no Rio de Janeiro. No ano
ganhou escala com a entrevista conce- é a maior prejudicada na medida em passado, Caramante foi lembrado no
dida por ele à jornalista Eliane Brum, que seu direito à informação é frus- discurso de abertura do 34º Prêmio
já estando fora do país, que recebeu trado ou cerceado, seja por qualquer Vladimir Herzog de Direitos Huma-
mais de 300 mil acessos. O barulho tipo de censura, pela excessiva judi- nos como alguém que deveria estar
virtual demonstrou que o tema estava cialização da atividade jornalística, presente à cerimônia, “e não estava
nas ruas. Não há comoduvidar de que pela intimidação, por manobras decor- ali por se encontrar exilado”. E foi um
contribuiu para ambos e suas famí- rentes de corrupção e desvio de fun- dos ganhadores do 16º Prêmio Santo
lias voltarem ao país em segurança. ção, pela violência física contra pro- Dias de Direitos Humanos, da Comis-

1 http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/10/um-reporter-ameacado-de-morte.html

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Vladimir Herzog, da TV Cultura, morto sob tortura em 1975 O jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino
, assassinado em 1971

são de Direitos Humanos da Assem- melhor roupa e subiu ao púlpito da Caramante não pode exercer o direito
bleia Legislativa do Estado de São Assembleia Legislativa, deixou sua constitucional de ir e vir, no que se
Paulo, entregue três dias antes de sua dor de lado para engrossar a home- refere ao trajeto casa-trabalho-casa.
volta dos Estados Unidos. Para rece- nagem a Caramante. Perguntou se A Folha disponibiliza um carro para
ber o diploma em seu lugar, pediu ele e a família estavam bem e quis apanhá-lo e, ao final da jornada, levá-
que a diarista Maria da Conceição saber quando voltariam. Contou a -lo de volta. Os motoristas do jornal já
Ferreira Alves o representasse. Ela todos que nunca antes alguém havia se habituaram ao fato de que ele sem-
é mãe de Antonio Carlos Silva Alves, se referido ao filho dela com o res- pre pede para descer em uma esquina
morto aos 31 anos no dia 8 de outubro peito demonstrado pelo repórter. em que não existe nem casa nem pré-
de 2008, na periferia paulistana, por Por causa de compromissos assim, dio. E é também por ali que sabem
policiais militares queprovavelmente André e Mauri foram convidados a que devem buscá-lo.
confundiram a dificuldade dele para participar de uma reunião de um Mauri König ainda não se acostu-
falar – decorrente de sua deficiência grupo de trabalho criado pela Secre- mou a chegar em casa e não encontrar
intelectual – com uma ardilosa estra- taria de Direitos Humanos da Pre- a mulher e o filho. Seu tempo presente
tégia para enganá-los. Seu corpo foi sidência da República, em Brasília, é um eterno sonhar com o futuro em
encontrado no dia seguinte, a muitos em fevereiro, a convite da ministra que estarão novamente juntos.
quilômetros de casa, com a cabeça Maria do Rosário. Ali, eles finalmente Os dois repórteres contabilizam as
e mãos decepados para dificultar a se conheceram e tiveram a oportuni- perdas. Sem dúvida, são pequenas,
identificação. Os policiais responsá- dade de relatar suas experiências aos comparadas ao que significa imagi-
veis pelo crime foram identificados, demais presentes – um deles, dele- nar que reportagens poderiam estar
presos e expulsos da PM. O advogado gado da Polícia Federal. fazendo se o país fosse capaz de pro-
de defesa conseguiu anular o julga- Na volta ao Brasil, em comum teger do risco máximo os jornalistas
mento. Três foram soltos. Na Folha, acordo com os jornais em que tra- que têm compromisso. ■
André Caramante relatou cada passo balham, Mauri König e André Cara-
dessa saga com ares de farsa. Maria mante se afastaram momentanea- milton bellintani é jornalista e
da Conceição escreveu uma carta à mente da cobertura de segurança professor. Foi editor de publicações como
presidente Dilma Rousseff relatando pública com o objetivo de deixarem Claudia, Quatro Rodas e Placar, e editor
que ela e a família passaram a sofrer de ser alvos e de proteger as famílias. adjunto do caderno Cotidiano, do jornal
ameaças. Na noite em que vestiu sua Há mais de seis anos e meio André Folha de S.Paulo.

REVISTA DE JORNALISMO ESPM| CJR 111


Inovação com prazo de validade
Incorporadas a grandes estruturas, empresas visionárias
começam a cair na repetição de velhos modelos.
Há alguma solução para isso?

por michael schudson e katherine fink

algu ns me se s atr ás , no site do minando o que aconteceu na Nova a investir naquilo que ela frequente-
Poynter Institute, Bill Adair, do Poli- Orleans pós-Katrina, quando um blog mente não faz: reportagem investiga-
tiFact (projeto do Tampa Bay Times hoje conhecido como The Lens (The- tiva. E, mais uma vez, como muitos
que visa verificar a precisão de ale- LensNola.org) ganhou legitimidade outros lançamentos, o Lens afirma
gações feitas no meio político), inci- e público, mas talvez em detrimento sua autoridade nesse trabalho con-
tava: “Vamos ‘dinamitar’ a matéria da inovação. Os autores, estranha- tratando repórteres que dedicaram
jornalística”. O jornalismo tem de mente, dão ao Lens um pseudônimo anos de serviço ao jornalismo sério em
ser reimaginado desde as suas bases, – The New Orleans Eye (A Visão de empresas convencionais de notícias.
argumentava ele, a começar por sua Nova Orleans) – sem deixar claro Mas o Lens se tornou um blog de
pedra fundamental, a “notícia”. “É que, de fato, estão fazendo isso. Usa- jornalismo cidadão arrojado, que per-
tempo de repensar a unidade do jor- mos aqui o nome verdadeiro, com seguia obstinadamente o caos buro-
nalismo... Vamos despedaçá-lo. Vamos sua permissão. crático nos esforços de reconstru-
reinventar a maneira de dar as notí- ção de moradias da Nova Orleans
cias e propor algumas formas novas.” Jornalismo investigativo pós-Katrina. Quando o blog buscou
Quer este seja um bom ou um mau crescer como uma empresa de notí-
conselho, é muito mais fácil dizer do Como muitas outras novas empresas cias completamente financiada, ele
que fazer. Essa é a lição que os soció- de notícias on-line cheias de vivaci- se concebeu como “um blog ‘nervoso’
logos Stephen Ostertag e Gaye Tuch- dade, o Lens é pequeno (nove funcio- sobre o uso da terra” e se voltou à
man ensinam em “When Innovation nários e um orçamento de US$ 480 mil Open Society Foundations (instituição
Meets Legacy” (“Quando a Inovação em 2012) e financiado principalmente filantrópica fundada com o objetivo
Encontra a Tradição”), um artigo por fundações (Knight, Open Society de contribuir para o fortalecimento
publicado em 2012 no Information, Foundations e outras). da democracia) para obter fundos.
Communication & Society (periódico O Le ns é também como muitas A Open Society aconselhou o Lens
internacional cujo tema é o desenvol- outras publicações recém-lançadas, a mudar de uma parceria com cida-
vimento e a aplicação de tecnologias no sentido de que se dedicou não a dãos que faziam reportagem “blo-
de informação e comunicação) exa- replicar a mídia tradicional, mas sim gando” para um modelo mais con-

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vencional de notícias, com um sis- trar competência”. Não exatamente da NPR), ganhou legitimidade com
tema de editorias completo, edito- uma descoberta digna de manchete as fontes, uma presença no ar e uma
res profissionais com credenciais do principal, essa é mais uma confirma- grande quantidade de espectadores.
jornalismo impresso e um corpo de ção de que sociólogos às vezes reafir- E isso deu à boa reportagem inves-
diretores (do qual Ostertag se tornou mam o óbvio. Mas Ostertag e Tuch- tigativa uma nova aceitação, porém
membro depois de completar a pes- man colocam o óbvio em um con- mais uma vez restringiu a nova publi-
quisa para seu artigo). texto que lhe dá alguma sustentação. cação a objetivos jornalísticos facil-
O Lens seguiu o conselho e alterou o mente reconhecíveis. Adeus à ideia
R J formato, daquilo que o software livre Sem surpresas de “dinamitar notícia”.
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do Google possibilitava fazer para O Lens acumulou prêmios locais de
1
0 colunas regradas de jornal; sua prosa Para eles, a ênfase das fundações em jornalismo e até mesmo notáveis prê-
2
e
d
ro
saiu da primeira para a terceira pes- “competência” no âmbito da experi- mios nacionais, mas se um novato no
b
e
m soa; e sua “voz”, de direta e pessoal, mentação produz um resultado irô- ramo jornalístico não consegue ganhar
z
e
d
/ para a “voz” objetiva das redações jor- nico: os financiadores que defendem força com financiadores, fontes, par-
ro
m
b nalísticas. Expandiu sua cobertura de a inovação acabam por bloqueá-la. ceiros e audiência quando se distancia
e
v
o notícias do uso da terra à responsabi- Eles dão às jovens empresas jornalís- dos elementos básicos da cobertura
n
e
d lidade geral do governo: “finanças e ticas os meios para crescer, mas, ao de notícias convencional, ele tem de
o
ã

d
política, pavimentação, ar e água, uso pressioná-las a contratar profissionais abandonar o sonho da inovação? Ou
e
a
n
da terra, escolas, investigação e crime para produzir jornalismo de qualidade deveríamos começar a nos pergun-
o
d
a e punição”. A Open Society gostou das da forma convencionalmente enten- tar se “inovação”, em si, longe de ser
ilc
u
b mudanças e, quando o Lens solicitou dida, eles também dão pouco espaço um sinônimo para liberdade, é uma
p
n
e
t uma subvenção maior, conseguiu. para as surpresas. nova camisa de força conceitual? ■
e
a
m
l A Open Society e outras fundações, Quando o Lens se tornou parceiro
in relatam Ostertag e Tuchman, favo- do canal de televisão WVUE da Fox 8 michael schudson e katherine fink
g
ir
o
to
recem “empreitadas experimentais (e em setembro anunciou uma parce- são colaboradores da Columbia
x
e
T que tenham capacidade de demons- ria com a rádio WWNO-FM, afiliada Journalism Review (CJR)

REVISTA DE JORNALISMO ESPM| CJR 113


PARA LER e PARA VER TITO MONTENEGRO

SERIADO
House os Cards
Beau Willimon
e David Fincher
Netflix

Remakede uma série britâ-


nica dos anos 1990,House
of Cards tem como protago-
nista o veterano congressista
norte-americano Francis J. Un-
derwood, interpretado por Kevin
Spacey. A nova versão, adapta-
da pelo roteirista Beau Willimon
(indicado ao Oscar porTudo pelo
Poder), tem entre os produtores
o cineasta David Fincher (de A
Rede Social), que também diri-
giu os dois primeiros episódios.
No capítulo inicial, o deputado
sente-se traído ao saber que
não será indicado secretário
de Estado pelo presidente que
ele ajudou a eleger. A decepção
transforma Underwood no
pior tipo de inimigo – aquele
que parece estar a seu lado. O
deputado dá início a uma série
de manobras, com o objetivo de
voltar ao centro das decisões. Kevin Spacey é
Para levar seu plano adiante, o congressista
O
conta com a ajuda de Zoe Barnes, Francis J. Ç
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jovem repórter do fictício The Underwood na L
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Washington Herald , que se série do Netflix S
O
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oferece para publicar no jornal O
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qualquer “notícia” repassada


pelo deputado “sem fazer debate tão velho quanto o ele está parcialmente correto. esse o futuro do jornalismo?
nenhuma pergunta”. Assim, ela jornalismo, claro, mas com No entanto, é difícil acreditar Outra pergunta que se pode
dá alguns furos e torna-se uma novos desdobramentos. Em que ainda existam grandes fazer é: será esse o futuro da
aspirante a estrela jornalística. tempos de blogs e tuítes,House jornais com aquele nível de televisão? Isso porqueHouse of
A promíscua relação entre fonte of Cardsapresenta oWashington resistência ao mundo virtual, o Cards, uma produção srcinal do
e jornalista é um dos destaques Herald como um jornal alheio às que torna por vezes caricaturais serviço on-line de filmes e
da série, que ainda aborda mudanças que a internet vem os embates entre repórter e seriados Netflix, inaugurou um
negociatas de lobistas e trazendo para a imprensa. editor. Zoe acaba saindo do formato de veiculação. Além de
financiamento de campanhas. Rígido nos métodos, o Herald para se juntar ao site ser transmitida apenas pela
A ascensão de Zoe no jornal editor-chefe parece enxergar Slugline, uma espécie de internet, a série teve os
cria suspeitas, especialmente em Zoe e na internet o inimigo cooperativa de blogueiros com 13 episódios da primeira
por parte dos repórteres mais da tradição do jornalismo um escritório moderninho, ao temporada liberados de uma
experientes. O que estaria ela apurado com rigor e publicado estilo Google, e total liberdade só vez, no começo de fevereiro,
fazendo para obter os furos? Um depois de várias checagens – e de postagem de notícias. Será para os assinantes do site.■

114 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


É justamente pelo fim Gettleman para o New York
do regime, e do ditador, que Times sobre a miséria e os
tem início O Silêncio contra conflitos armados no Leste da
Muamar Kadafi , livro de África, que deu ao jornalista
estreia de Andrei Netto, o prêmio de “reportagem
repórter que também passou internacional” em 2012.
pelas redações dos jornais
Zero Hora e Gazeta Mercantil . aosVale dar atenção
premiados especial
na categoria
Nas primeiras páginas da “fotografia jornalística”,
obra, o jornalista reconstitui criada em 2000. Em 2002,
os últimos momentos do sagrou-se vencedora a
homem que dominou a Líbia equipe de fotógrafos do New
por 42 anos – e também York Times , com a cobertura
LIVRO a tétrica exposição dos SITE dos ataques terroristas ao
O Silêncio Contra cadáveres de Kadafi e de Pulitzer Prize World Trade Center, em 11
Muamar Kadafi seu filho Mutassim. http://www.pulitzer.org de setembro de 2001. No
Andrei Netto As imagens – vídeos e ano passado, quem levou
Companhia das Letras, fotos feitos por revoltosos Ganhar prêmios não é o o prêmio foi o fotógrafo
368 páginas e civis em seus celulares – objetivo final de um jornalista, afegão Massoud Hossaini,
mostraram ao mundo que claro, mas é um incentivo e pela imagem de uma menina
Correspondente em Paris o desejo de vingança contra tanto. Nos Estados Unidos, o desesperada após o ataque
do jornal O Estado de S.Paulo , décadas de opressão foi mais conceituado é o Pulitzer de um homem-bomba em
Andrei Netto esteve por três mais forte do que a intenção Prize, criado em 1917 em Cabul, em dezembro de 2011.
vezes na Líbia cobrindo as dos líderes rebeldes homenagem ao magnata das Setenta pessoas morreram
revoltas contra o ditador de levar o déspota a comunicações Joseph Pulitzer no atentado, entre elas
Muamar Kadafi. Já na julgamento. Enquanto o povo – morto cinco anos antes –, parentes da garota.
primeira incursão, em março comemorava a libertação e com recursos deixados por Graças ao prêmio inspirado
de 2011, foi sequestrado, a transição de poder dava ele. Hoje em dia, o prêmio e bancado por Joseph
agredido e mantido preso os primeiros passos, Netto destaca os melhores trabalhos Pulitzer, cenas como estas
num calabouço do regime relata a experiência de ir não apenas em jornalismo, não serão esquecidas. ■
nas proximidades de atrás de informações precisas mas também nas artes.
Trípoli. Libertado após num momento singular, e No site do Pulitzer, é
intermediação do governo especialmente violento, da possível ter acesso à relação
brasileiro, Netto ainda história líbia. ■ completa dos premiados em
voltaria duas vezes à Líbia. toda a história do prêmio.
Na última delas, em outubro No entanto, a melhor parte
do mesmo ano, chegou ao disponível é a íntegra dos
país na véspera do dia em trabalhos vencedores a
que Kadafi foi capturado e partir de 1995 nas categorias
executado sumariamente jornalísticas – nas áreas de
pelos rebeldes, num dos Letras, Teatro, Música e
episódios marcantes da Prêmios Especiais, apenas
chamada Primavera Árabe. trechos do material estão
on-line. É uma grande chance
de conhecer o que de melhor
o jornalismo americano
produziu – como a série
de reportagens de Jeffrey

REVISTA DE JORNALISMO ESPM| CJR 115


Quanto mais demorar, melhor. Paulo (USP), encontrado morto
Aos poucos, o propositalmente em 1999, após o trote. A perda
lento resgate ganha a forma de de um filho, durante a guerrilha
um circo midiático do qual do Araguaia, compõe, ainda, a
Tatum é o mestre de cerimônias pauta que encerra o livro: “A
e o principal beneficiário. Suas Longa Viagem da X2”. Ojovem era
O
Ã
Ç
A
G reportagens correm o país e ele o militante do Partido Comunista
L
U
V
já se imagina de volta a Nova do Brasil (PC do B) desaparecido
I
D
S
O
York. Enquanto isso, o homem em 1972, de nome Bergson Gurjão
T
O
F soterrado aguarda o desfecho. Farias, cujos restos mortais foram
Lançado em 1951, entregues à família em 2009. Já
o filme A Montanha dos em “Viagem ao Centro da Guerra”,
7 Abutres tornou-se um o repórter chega ao fundo do
clássico não apenas por ser poço de sangue de um
FILME magistralmente executado, LIVRO pronto-soco rro municipal durante
A Montanha dos 7 Abutres mas também por sua crítica A Poeira dos Outros - um fim de semana, no Campo
Paramount mordaz ao sensacionalismo Um Repórter na Casa da Limpo, zona sul de São Paulo. A
Roteiro e direção: Billy Wilder da imprensa. Merecidamente, Morte e Outras Histórias realidade da periferia transborda
111 minutos está na maioria das listas dos Ivan Marsiglia de sua narrativa, regada a tiros,
grandes filmes que retratam Arquipélago Editorial facadas e fraturas expostas.
O decadente repórter Charles o jornalismo. Escrito e dirigido 168 páginas Embora predomine o tom
Tatum, interpretado por Kirk por Billy Wilder – ele mesmo de crítica, não falta bom humor.
Douglas, já havia sido demitido um ex-jornalista, diga-se –, O repórter Ivan Marsiglia acaba A veia desponta em “Sou
de 11 jornais das maiores a obra apresenta uma visão de lançar uma coletânea de Suçuarana”, em que a própria
cidades norte-americanas amarga, e talvez cínica, do 20 textos produzidos desde a onça desfia suas desventuras
quando chega à provinciana metiê. Para quem pratica o década de 1990. O cardápio por conta do desmatamento.
Albuquerque, no Novo México, jornalismo, no entanto, evoca temático percorrido pela Ou em “Ele Fez a Cabeça da
disposto a refazer o caminho uma reflexão imprescindível pena do jornalista é amplo, Dilma”, no qual o autor perfila
rumo ao topo do jornalismo. e diária: até onde um repórter narrando histórias que vão o cabeleireiro Celso Kamura,
A chance se apresenta pode ir na sua busca pela desde o cotidiano de uma responsável pela repaginação
quando um homem fica notícia? ■ praia de nudismo até os da então candidata, que deixou
preso no interior de uma mina horrores da Casa da Morte, o artista das tesouras “bege”
abandonada e Tatum é o aparelho clandestino usado no primeiro encontro, diante
primeiro repórter no local. pela ditadura para a tortura do desafio de torná-la
O jornalista enxerga na e extermínio de dissidentes fotogênica. Mais um exemplo?
situação uma grande história, políticos. O assunto abre “Com a Palavra, a Faixa”, que
e com ela imagina voltar às o volume, na reportagem traz a faixa presidencial como
manchetes. Para isso, precisa “A Memória das Paredes”, narradora das suas agruras
de tempo. que rendeu ao autor o Prêmio de centenária.
A maneira encontrada por Estadão de Jornalismo de 2012. Como diz Humberto Werneck
Tatum para prolongar o O retrato da dor e da na apresentação da obra,
drama – e, consequentemente, indignação é alvo de outras “o preciso e precioso ‘modo
aumentar a visibilidade de suas narrativas deA Poeira dos Outros, de ver’ de Ivan Marsiglia
reportagens – é manipular os como a do imigrante taiwanês transparece em tudo que ele
responsáveis pelo salvamento. Feng Ming Hsueh, que morreu de escreve”. E o melhor é que o
desgosto à espera de justiça para leitor pode agora saborear essa
o caso do filho Edison Tsung Chi visão neste livro, que reúne
Hsueh – calouro da Faculdade de lições de bom jornalismo. ■
Medicina da Universidade de São (ANA PAULA CARDOSO)
tito montenegro é jornalista e sócio da Arquipélago Editorial

116 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


CREDENCIAL JORGE TARQUINI

dos órgãos de trânsito e até a venda de


carteiras de motorista. Sim, já se pas-
saram mais de 52 anos desde então...

Todo poder
Ao retratar (sem concessões) não
apenas o cotidiano dentro dos carros,
mas se posicionando politicamente,

às quatro rodas Quatro Rodasmostrou que não era ape-


nas uma “revista de carros”, em que
máquinas reluzentes, unhas sujas de
graxa ou discussões sobre velocidade
Uma “revista de carros” dos anos 1960 e desempenho poderiam servir decor-
tina de fumaça para temas mais impor-
ainda pode nos ensinar bom jornalismo tantes. Criou um jeito próprio de fazer
“Imprensa Especializada” (sim, em
caixa alta e baixa), mostrando que, por
mais que o brasileiro tenha se apaixo-
nado por carro (assim como se apaixo-
criar uma revista de carros em um da época filosofando sobre mulheres nou por futebol ou novelas), o espaço
país sem carros e sem jornalistas espe- ao volante, era um caminho suave na ali era para jornalismo de verdade.
cializados em carros pode significar ao alfabetização da sociedade que logo O talento e a autoridade adquiridos
menos três coisas: uma ousadia culturaliria de 0 a 100 km/h rumo ao conhe- pela revista para ser veículo de trans-
no Brasil de 1960, onde havia um carro cimento (e à paixão) do automóvel. formação do Brasil viram-se cercea-
para cada 138 habitantes e uma linha Nos três anos seguintes, porém, dos após 1964. Além do ambiente polí-
imaginária a dividi-lo entre o rural e o ao mesmo tempo que seria criado o tico cruel, com a imprensa amorda-
urbano – coronelismo, carroças e doen-“jeito Quatro Rodas” de fazer jorna- çada, como manda a cartilha da dita-
ças infecciosas de um lado, com classe lismo (ensaiando, sim, um “jeitoRea- dura, os poderosos de plantão acha-
média, arranha-céus e doenças cardí- lidade” de ser), suas páginas se torna- ram por bem declarar a indústria auto-
acas de outro; uma guinadasem prece- riam o espaço para um jornalismo vee- mobilística de “segurança nacional”.
dentes para uma editora que publicava mente, aguerrido e que rapidamente Iriam mais longe: a tecnologia seria
gibis, principalmente da Disney, mol- assumiu para si a função de “comprar proibida de entrar no país pela Lei
des de costura deManequime fotono- brigas”. Fosse com os governos, fosse da Informática e feudos de poder se
velas italianas na Capricho; e um tema com a indústria. Fosse até com os lei- instalariam em órgãos públicos como
e tanto para a dissertação de mestrado tores, motoristas que contribuíam para parte do aparelhamento do Estado
de um ex-diretor da revista. tornar o trânsito caótico. Na lista de pelos militares. A resistência ofere-
Para a Abril, Quatro Rodas foi mais jornalistas que ganhavam autoridade cida pela Quatro Rodas, indo além do
do que apenas uma revista: foi o passo para esses confrontos figuram José que era permitido pelo controle dos
que reescreveria o destino da editora, Hamilton Ribeiro e Paulo Patarra – e, censores, foi memorável. A ponto de
ao lançar seu primeiro título jorna- alguns anos depois, nomes como o de jornalistas da revista serem comu-
lístico, pioneiro no segmento. Para Audálio Dantas e Woile Guimarães. mente “convidados a prestar escla-
dar conta do recado, Victor e Roberto Com tanta gente boa praticando um recimentos” em órgãos da repressão.
Civita reuniram em torno da ideia uma estilo de reportagem e texto que se con-Quem diria que, além de criar a cul-
seleção de nomes oriundi, dignos da sagraria na casa comRealidade, ainda tura do automóvel no brasileiro, uma
squadra azzurra: os irmãos Carta, Luís hoje há quem acredite que uma foi revista de carros poderia assustar os
e Mino, chefiariam a redação, enquantoapenas o laboratório da outra. Roberto tiranos de plantão? Ah, como é peri-
o paulistano de primeira geração AttilioCivita jura que não foia intenção. Fato goso o bom jornalismo... ■
Baschera emprestava sua elegância ao é que Quatro Rodas passou a mostrar
design da publicação.Auguri! suas garras: textos envolventes em pau-jorge tarquini foi diretor de
O primeiro ano da revista, aos olhos tas que tratavam de modelos de carro, redação deQuatro Rodas de 1994 a 98,
de hoje, revela contornos quase pue- sim, falavam de turismo, sim, mas criti- é coordenador da Pós-Graduação em
ris e até equivocados na abordagem cavam enganos da indústria, denuncia- Jornalismo com ênfase em Direção Editorial
do tema carro. Afinal, dizer que dar vam o suborno nas relações entre poli- da ESPM e mestrando em Comunicação
uns beijinhos enquanto dirige coloca ciais e motoristas, o desvio de dinheiro pela Universidade Metodista de São Paulo,
a vida em risco, ou ouvir celebridades em obras viárias, a corrupção dentro onde leciona Crítica da Mídia.

118 ABRIL | MAIO | JUNHO 2013


A ESPM acaba de inaugurar
novas unidades:

a Unidade Sua Sala,


a Unidade Seu Quarto,
a Unidade Praça
da Esquina e a Unidade
Onde Você Estiver.

Com a Educação a Distância ESPM, a sala de aula


é onde você estiver.
Você tem o conteúdo de uma das melhores escolas do País, com aulas
on-line e muito mais comodidade.

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