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—_ ate ; DN MARTYN LLOYD-JONES E O RESGATE DA TRADICAO CALVINISTA DE VIDA CRISTA ANTONIO CaRLos COSTA As Dimens6es da Espiritualidade Reformada Tenho a nobre e honrosa missao de tecer esse conciso comentario sobre essa relevante obra escrita pelo Rev. Antonio Carlos Costa. Conhego o autor a 17 anos, e, nesse interim, tenho acompanhado com alegria, a sua trajetéria pastoral e académica. Coube-me também, a grata experiéncia de ser seu professor no Seminario Presbiteriano do Rio nos idos de 1988, e de estar presente na sua banca de mestrado em Teologia Historica, no Centro Presbiteriano de Pés-Graduacgao Andrew Jumper. O Rev. Antonio Carlos, é um destes raros ministros de Deus, que soube unir 0 academicismo e a ortodoxia, com a praxis de uma vida cristd ungida e piedosa. Nesta presente obra, o autor disserta com profunda propriedade € pertinéncia sobre a vida e obra do Dr. Martyn Lloyd-Jones, considerado por muitos, o principe dos tedlogos reformados do século XX. De forma académica e com escrutineo minucioso, 0 autor analisa as seguintes dimensées da verdadeira espiritualidade crist4, a partir do pensamento e vida de Lloyd-Jones: A dimensio doutrinaria, a dimensao experimental, e a dimensao pratica. 0 autor trata, pertinentemente, do lugar do Espirito Santo na auténtica espiritualidade, criando uma abengoadora simbiose com 0 momento histérico da igreja do Senhor, perscrutando oportunidades e desafios. Creio piamente que o presente livro, fruto de laborioso estudo académico por parte do autor, surge num momento altamente auspicioso da igreja, e, certamente, trard resultados profundamente abengoadores na vida de todos os que haverdo de ler essa obra. Anelo uma excelente leitura para todos! Prof. Antonio José do Nascimento Filho Mestre em Teologia; mestre em Educagiio, Arte ¢ Histéria da Cultura; Doutor em Missiologia. Anténio Carlos Costa As Dimensées da Espiritualidade Reformada Martyn Lloyd-Jones e o resgate da tradicao calvinista de vida crista PONTAL “DO ATALAIA Textus] © 2005 Antdnio Carlos Alves de $4 Costa Revisao Carlos Buczynski Paulo Pancote Diagramacéo Pedro Simas Capa Magno Paganeli Impressao Grifica Betania Publicado no Brasil com a devida autorizagio ¢ com todos os direitos reservados na lingua portuguesa por Editora Pontal do Atalaia Avenida Exnani do Amaral Peixoto, 84 - sala 1007 CEP 24020-074 ipbarra@uol.com.br accosta@ar.microlink.com.br Esta é uma co-edigao com a Editora Textus Caixa Postal 107.006 — Niterdi - RJ - 24360-970 textus@editoratextus.com.br — www.editoratextus.com.br [As citages biblicas desta obra sio da Biblia Sagrada -'Traducio de Almeida Revista e Atualizada no Brasil, segunda edigio © 1959, 2003 Sociedade Biblica do Brasil Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sem 0 consentimento prévio, por escrito, dos editores, exceto breves citagdes em livros e resenhas. Sumario Dedicat6ria.......sesecsscsessessecsseseeseeeneeneneeseneessssessssneasesseaeeneeneeees 7 APPeS€NtaGd0.....ssccsssesesesessesessseereeeneseseeeeesenesenetstseeenseeeeenses 9: AGCACCCUINCINOG 13 UmtrOdugao.......sscescsecsessseessesseesessesseeseesseeeeseeesessseeneseesuess Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida € Obra... 37 A dimensio doutrindria. A dimensao experimental. A dimensao pratica.....cecececsessseceeseeseseessseseesesesseeeeeneneseeneees 223 Comclus0....esscsesecseseeesreseesesessssesseesseseenesesnesesneseseeneseseseeseenes 317 Bibliografia.....s.ssessssesseeessessessssseeseessesesessessessssssesseseeseeseeneee 327 Dedicatoéria Aos queridissimos Rev. Anténio Elias, Maria José Elias, Téo Elias e Lucilia Elias, por todo encorajamento, ajuda, diregdo, inspiragao e amor recebidos nos anos de convivio com tio estimada familia. Com vocés aprendi a amar e temer a Deus e tratar 0 meu semelhante com respeito. Obrigado pela igreja onde fui convertido, pelo discipulado, pelas igrejas que plantamos (Barra e Icarai), por meu envio para o seminario, meu culto de ordenag4o, minha ceriménia de casamento, momentos de oracdo, boas conversas sobre nossa fé comum, pelo batismo dos meus filhos e de minha mie e toda orientagao fornecida em momentos decisivos de minha vida. Espero que vocés sempre encontrem motivos de alegria no investimento feito em mim. Apresentagao Como orientador académico e amigo pessoal do Rev. Anténio Carlos Costa, tenho a grata satisfagao de fazer a apresentagao deste livro tao relevante. O texto foi escrito originalmente como uma dissertagao de mestrado apresentada ao Centro Presbiteriano de Pés-Graduagao Andrew Jumper, sediado no Instituto Presbiteriano Mackenzie, em Sao Paulo. O tema nao poderia ser mais oportuno, visto abordar a vida e a reflexdo biblica de um dos mais celebrados pregadores evangélicos do século XX, D. Martyn Lloyd-Jones. Embora tenhamos em portugués um bom nimero de livros desse personagem, faltava-nos um estudo criterioso sobre 0 seu pensamento e as suas contribuigdes a igreja, o que agora é suprido por esta obra valiosa. As razdes da importancia de Lloyd-Jones sao varias. Em primeiro lugar, ele destacou-se pelo seu profundo compromisso com Deus e com a Sua Palavra. Tendo pela frente uma carreira promissora no campo da medicina, esse notavel cristio contemporaneo decidiu abrir mao da mesma em favor de uma vocagio ainda maior — a pregagao fiel e zelosa do evangelho de Cristo. No entanto, Lloyd-Jones nao foi um pregador comum. Dentro da melhor tradigdo protestante e evangélica, ele foi um expositor das Escrituras, alimentando semanalmente 0 seu rebanho em Londres com 0 estudo sistematico e cuidadoso da Palavra de Deus. Seus sermées eram nao sé profundamente biblicos e comprometidos com a fé crista histérica, mas intensamente doutrindrios. O pregador galés sabia da importancia da boa teologia, tanto para o ministério pastoral e para a tarefa da pregagao quanto para a vida crist4 em seus miltiplos aspectos. Assim sendo, ele abragou para si a corrente teolégica mais profunda e consistente dentro do protestantismo, aquela que mais honra a Deus e a Sua Palavra, ou seja, a teologia reformada ou calvinista. Como um profeta contemporaneo, Lloyd-Jones proclamou 10 As dimens6es da espiritualidade reformada ousadamente do seu pulpito na Capela de Westminster, ano apdés ano, os grandes temas da fé reformada: a majestade, poder e soberania de Deus; a incapacidade moral e espiritual dos seres humanos; sua profunda necessidade de transformagaio; a salvacéo como dadiva sublime e graciosa de Deus aos pecadores impotentes; ¢ em particular, a importancia vital da santificagao para os filhos de Deus. Neste estudo competente e criativo, o autor demonstra como, em seus muitos sermées, o grande pregador se esforgou por recuperar o que havia de melhor na heranga reformada, no que diz respeito a um tema fundamental — a espiritualidade crista. Como grande herdeiro ¢ admirador de uma das correntes mais vigorosas e influentes dentro do calvinismo — 0 movimento puritano—Lloyd-Jones mostrou, a luz das Escrituras, que a vida espiritual do cristéo deve possuir trés dimensdes que se complementam: doutrinaria, experimental e pratica. Além de abragarem as grandes e solenes verdades das Escrituras, os cristaos devem pautar as suas vidas de acordo com as mesmas, em todos os aspectos. Lloyd-Jones pregou muito e grande parte do que pregou foi publicado. Assim sendo, é enorme o mimero de livros que contém os frutos do seu labor exegético e homilético. O autor do livro revela um conhecimento notavel de todo esse vasto material, demonstrando ter compreendido muito bem o pensamento de Lloyd-Jones ¢ as énfases principais da sua teologia e pregacado. Além do completo dominio dessas fontes, ele demonstra ter estudado cuidadosamente os autores que influenciaram o pregador de Gales, especialmente os puritanos ingleses e Jonathan Edwards. Adicionalmente, ele utilizou de maneira muito habil os valiosos estudos que tém sido publicados por autores passados ou presentes sobre Lloyd-Jones e seus predecessores. Este estudo tem muitas virtudes, das quais certamente resultaraio preciosos beneficios para os leitores. E uma analise abrangente, que aborda praticamente tudo o que ha de mais relevante com respeito a biografia ¢ ao pensamento do personagem. Quem ler o texto de modo atento, tera uma boa nocao de quem foi esse homem extraordindrio e compreendera porque as suas énfases sao tao necessdrias para a igreja contemporanea. Além disso, o autor procura situar Lloyd-Jones claramente no seu contexto histérico, religioso e intelectual. Por exemplo, procura mostrar a cada passo como as idéias de Lloyd-Jones refletem a cosmovisao ¢ os pressupostos da fé reformada hist6rica, a comegar de Calvino. O tom com que o livro foi escrito também ¢ revelador. O autor Apresentagao bt) demonstra ndo sé profundo conhecimento do assunto, mas a capacidade de apresentar os muitos tépicos com clareza e objetividade. Ele também revela grande simpatia pelo personagem, identificag&o com o seu idedrio e a convicgdo de que a sua mensagem é indispensavel para as igrejas evangélicas do Brasil. Em pontos controvertidos, como a questio do “selo do Espirito Santo”, a argumentacao é suficientemente detalhada e clara de modo a permitir que o leitor conhega todos os aspectos relevantes e tenha condigdes de posicionar-se a respeito do assunto. O autor deixa evidente que escreve com a mente e com 0 corac4o, crendo profundamente nas verdades que esto em jogo e entendendo que elas continuam sendo indispensdveis. Em dias em que imperam nas igrejas 0 pragmatismo, 0 desejo de atrair adeptos a qualquer custo e o apego a teologias centradas no ser humano e nao em Deus, é grande e valioso o beneficio que esta obra podera trazer aos lideres cristéos, 4s congregagdes e aos crentes em geral. Em dias em que a qualidade de vida moral e espiritual de tantos evangélicos tem estado em profundo contraste com as verdades que professam crer, é desejavel o brado de adverténcia e desafio que nos vem da parte do Dr. Lloyd-Jones e desta valiosa andlise das suas pregagdes. Que Deus use este livro para levar a igreja brasileira a uma atitude de corajosa e honesta reavaliagdo dos seus alvos, métodos e prioridades. Alderi Souza de Matos Centro Presbiteriano de Pés-Graduagao Andrew Jumper Pascoa de 2005 Agradecimentos Ao Deus que sabe o que quero lhe dizer, quando afirmo em Sua santa presenga, que nesses dois ultimos anos Ele me deu forga e resisténcia, dias de batalhas, luto, perplexidade, lagrimas e muito trabalho. Porém, tempo de servigo, oragaio, perseveranga, esperanga e encanto com a fé que professo. A minha esposa, Adriany, e filhos, Pedro e Matheus, por toda a liberdade de tempo que me deram para estudar, viajar, escrever, pregar e orar. Aos amigos e professores Heber Carlos de Campos, cujo apoio foi fundamental para meu ingresso na vida académica; Anténio José pela forma sempre gentil de me tratar e palavras de encorajamento quanto 4 minha pesquisa; Valdeci da Silva Santos, pelas boas idéias para minha dissertacao; Augustus Nicodemus Lopes, companheiro de aproximadamente vinte anos, a quem sempre respeitei por sua sinceridade em Cristo; e meu orientador, Alderi Souza de Matos, por toda preciosa ajuda nos ajustes técnicos e sugestdes quanto ao contetido da pesquisa. Gragas 4 sua disponibilidade de tempo e boa disposigao em ajudar n&o apenas pude fazer um trabalho melhor do que faria sozinho, como também ganhei um novo amigo. Devo confessar que, no convivio com todos vocés, eu cresci. Ao conselho da minha amada igreja, presbiteros Nairo, Tony e Marcelo, que tém investido em mim, compreendem a natureza do meu chamado e tém sido companheiros leais. Ao irmao Bill Barkley, pelo maravilhoso trabalho missiondrio que 14 As dimensoes da espiritualidade reformada tem desempenhado no Brasil a frente da PES (Publicagdes Evangélicas Selecionadas), mediante o qual a gloriosa fé reformada tem se tornado conhecida por muitos e mais estimada ainda pelos que ja a conhecem. Obrigado por nos ter trazido a mensagem do seu estimado “Doutor”. Ao querido Carlos Buczynski, com gratidio pelo trabalho de revisao do texto, disponibilidade e encorajamento. A meméria do meu saudoso pai Octacilio Ferreira Costa, falecido no decurso deste ano, podendo confessar que, se tivesse que entrar no céu, seria pela graca de Deus, porque fora, ao longo de sua vida, pecador. Em menos de um ano sofri a perda de dois pais, pois dez meses depois do falecimento de meu pai biolégico, aprouve a Deus levar meu querido tio Jodo Alves. Meu consolo é que um dia haverei de vé-lo na ressurrei¢ao dos mortos. A memiéria do grande David Martyn Lloyd-Jones, a quem um dia, no céu, poderei dizer: “Muito obrigado”. Dizer tudo o que ele representa para mim é escrever uma outra dissertac4o. Em 1981 ele morria e, em 1982, eu nascia para Cristo. Quando poderia ele imaginar que no ano seguinte 4 sua morte seria redimido, pela graga, um brasileiro que haveria de ama-lo e estimar tanto as suas obras? Mas, pelas misericérdias divinas, foi o que aconteceu, a fim de que saibamos que somente na eternidade poderemos mensurar os resultados do nosso ministério. Introdugao Oa. no século passado, passou por uma crise que o atingiu no seu 4mago. De uma certa forma, teve que fazer frente a uma prova pior do que a enfrentada nos seus primérdios, quando a Reforma Protestante se estabelecia progressivamente no norte da Europa. O adversario nao era mais 0 poder religioso associado ao estatal para destruir suas idéias e matar seus arautos. A batalha nao haveria de ser travada para se defender o sentido de certas doutrinas biblicas tais como justificagdo pela fé, regeneragdo ou expiagdo. Sem diivida, temas dessa natureza sempre haverdo de ser objeto de discussao entre os que professam a fé crista. Nao se deve negar o fato de que mesmo hoje é necessdrio que se faca uma defesa dessas doutrinas. Porém, o foco central do debate mudou significativamente no século XX. Nao era mais 0 conjunto doutrindrio que estava em questo, mas a base sobre a qual estava erigido 0 edificio teolégico inteiro, a propria Escritura Sagrada. Era o liberalismo teolégico solapando o fundamento da fé crista, a autoridade da Biblia como palavra infalivel de Deus. A maior prova de que a crise atingia os alicerces da igreja foram os estragos produzidos em centenas de comunidades cristas varridas do cenario europeu. Hoje é s6 deserto em inimeras cidades. Templos que se transformaram em bares. Igrejas que servem para recitais de musica e nao para a pregacao viva do evangelho. Nunca a Historia deu testemunho 16 As dimens6es da espiritualidade reformada t4o elogiiente do poder destruidor de uma heresia. Como afirmou Gresham Machen (1881-1937): “Na realidade, todavia, o liberal moderno nao sustenta de forma estavel nem mesmo a autoridade de Jesus. Ele, com certeza, nao aceita as palavras de Jesus como elas foram registradas nos Evangelhos”.' E para ampliar 0 foco dos ataques liberais as Escrituras declara: “O liberal modemo nao rejeita apenas a doutrina da inspiragdo plena, mas até mesmo o respeito pela Biblia que seria apropriado em contraste com qualquer livro ordinariamente digno de confianga”.? A autoridade das Escrituras passou a ser menosprezada por setores inteiros da igreja, dando ensejo ao surgimento de pontos de vista que colidiam contra a fé dos reformadores e, em alguns aspectos, até mesmo contra a fé dos ramos catélico-romano e ortodoxo do cristianismo. Os credos e as confissées estavam sendo relativizados. O século XX herdou conflitos de geragdes passadas. Os debates em torno da autoridade da Biblia ndo eram recentes. O que chama a atengdo de qualquer observador, contudo, foi a decisdo de igrejas e denominacdes evangélicas inteiras de estender a destra da comunhio a pessoas e movimentos que ndo eram essencialmente evangélicos e muito menos crist@os. No inicio do século XX, Gresham Machen ja podia observar a miudanga no cenario protestante: A igreja de hoje tem sido infiel ao seu Senhor, admitindo grandes associagdes de pessoas no crist’s nao apenas em seu rol de membros, mas em suas agéncias de ensino... a grande ameagca 4 igreja crista hoje nao vem de inimigos externos, mas dos inimigos internos; vem da presenga, dentro da igreja, de um tipo de fé e pratica que é anticrista no seu ceme.? 1 MACHEN, Gresham J. Cristianismo e liberalismo. Sao Paulo: Os Puritanos, 2001. p. 82. 2 Ibid., 81 3 Ibid., 157, Introducao 17 Lideres passaram a falar na possibilidade de se encontrar ateus confessos no céu. A pregacao nao deveria mais ser feita com autoridade, mas na simples perspectiva de se compartilhar idéias. A morte de Cristo na cruz deixou de ser vista como expiatéria, mas apenas como um belo exemplo de vida a ser seguido pelo ser humano. A grande obsessdo de todos passou a ser a unidade da igreja. Esse era o verdadeiro pecado a ser tratado. Para tal, alguns dos principais pressupostos apresentados pelos reformadores no século XVI foram postos de lado em nome da unidade da igreja. R. C. Sproul adverte a todos quanto ao fato de que as palavras “evangélico” e “protestante” nao sao mais termos intercambiaveis. Uma pessoa pode se dizer evangélica e ser contraria 4 separacdo entre protestantes e catdlicos romanos. Ha igrejas e lideres que se dizem evangélicos, mas que ndo sao protestantes: No curso da Historia, 0 significado do termo evangélico passou por uma significativa evolugdo. Nao pode ser mais presumido que no uso popular a palavra evangélico é um sinénimo de protestante. No século XX, a principal distingao indicada por evangélico nao tem sido tanto para diferengar a posi¢ao teolégica de alguém da igreja de Roma, mas preferivelmente para apontar para uma posicdo especifica ou grupo dentro do Protestantismo. Ou seja, evangélico veio a ser usado para descrever um grupo particular dentro da comunidade protestante.* Nesse contexto, por motivos Obvios, a fé reformada ou calvinista sofreu os maiores abalos de sua histéria. Esse sistema de doutrinas, considerado por muitos 0 reencontro da igreja com o cristianismo auténtico ou a “evolucdo completa do protestantismo”,’ tornou-se a teologia de 4 SPROUL, R. C. Getting the gospel right. Grand Rapids: Baker Books, 1999. p. 34, 36. Minha tradugao. 5 KUYPER, Abraham. Calvinismo, Sao Paulo: Editora Cultura Crista, 2002. p. 51 18 As dimensées da espiritualidade reformada poucos. Apenas um grupo bastante reduzido ousava pregar doutrinas que se tornaram tao antipaticas para o homem moderno. Martyn Lloyd-Jones destaca-se nessa fase da historia do cristianismo como um homem que defendeu a posig&o reformada e procurou leva-la as suas implicagdes praticas. Sua historia esta amalgamada 4 historia do protestantismo do século XX. Essa afirmagao pode ser feita pelos seguintes motivos: Primeiro, por haver nascido em 1899 e morrido em 1981. Viveu a maior parte do século recém-passado. Em segundo lugar, pela influéncia que exerceu sobre a vida de milhares de pessoas, que através de suas mensagens foram trazidas de volta 4s grandes convicgdes doutrinarias de Calvino e dos puritanos ingleses e americanos. Seu trabalho representou 0 resgate de uma tradic¢ao de espiritualidade que marcou a historia da igreja e de nacdes inteiras. Como indaga Abraham Kuyper: “... perguntem-se 0 que a Europa e a América teriam se tornado se, no século XVI, a estrela do Calvinismo nao tivesse subitamente nascido no horizonte da Europa Ocidental”.6 E numa declaragao que representa uma constatacao historica, ele diz: Lembre que somente pelo Calvinismo o salmo de liberdade encontrou seu caminho da consciéncia perturbada para os labios; que ele tem conquistado garantido para nés nossos direitos civis constitucionais; e que, simultaneamente a isto, saiu da Europa Ocidental aquele poderoso movimento que promoveu o reavivamento da ciéncia e da arte, abriu novas avenidas para 0 comércio ¢ negécios, embelezou a vida doméstica e social, exaltou a classe média a posigdes de honra, produziu filantropia em abundancia, e mais do que isto, elevou, purificou e enobreceu a vida moral pela seriedade puritana.” 6 Ibid, 48. 7 Ibid, 49. Introdugao 19 Tais coisas somente ocorreram por causa do tipo de cristo que a fé calvinista produzia. Diz John Leith, ao observar a trajetria de calvinistas da Genebra de Calvino e ingleses que foram para a Nova Inglaterra: “O santo Calvinista era responsavel por seu mundo. Era um soldado do Senhor na conquista do mundo, da carne e do Diabo. Era um instrumento eleito de Deus para cumprir Seus propésitos”.* Ha frutos que somente nascem em solo calvinista. Trata-se de uma tradigao que cria uma espécie de mentalidade que produz conseqiiéncias praticas muito profundas na vida dos que a abracaram. Martyn Lloyd-Jones resgatou a tradigdo calvinista de teologia e vida crist4. Ele assim o fez de um modo especial mediante suas exposigdes biblicas. Sendo, sem margem de duvida, um auténtico pregador reformado, deixou sua geracao marcada pelo resgate que fez de uma linha de espiritualidade que nao pode ser ignorada. Especialmente por aqueles que, através da simples andlise da historia do cristianismo, conhecem os seus resultados histéricos. Por meio da influéncia da fé reformada, vidas, instituigdes e nagdes inteiras foram afetadas de modo indelével, dando ensejo a salvacdo de milhares de seres humanos e embelezamento da vida. Sem davida alguma a manutencao da chama do calvinismo em pleno século XX foi a grande contribuigdo de Martyn Lloyd-Jones para a hist6ria da igreja. Seus resultados se fazem sentir no Brasil e no mundo nesse inicio de século XXI. 14. JUSTIFICATIVA A relevancia do tema central desta pesquisa relaciona-se as seguintes coisas: em primeiro lugar, 0 acesso ao pensamento daquele 8 LEITH, John H. A tradicdo reformada, Sao Paulo: Pendao Real, 1997. p. 118. 20 As dimensées da espiritualidade reformada que provavelmente foi o melhor expositor biblico do século XX, alguém que influenciou uma geracio inteira de tedlogos e pregadores. Entre estes podemos destacar J. I. Packer, que reconhecia sua inestimavel divida para com 0 ministério de Martyn Lloyd-Jones: “Sei que, em grande parte, a minha vis&o atual é o que é porque ele foi o que foi e, sem duvida, a sua influéncia foi mais profunda do que eu poderia delinear”, e John Stott, que foi levado a fazer comentario igualmente exaltado da mensagem do grande pregador galés: O Dr. Martyn Lloyd-Jones, de 1938 a 1968, exerceu um ministério extremamente influente na Capela de Westminster, em Londres. Nunca fora do seu piilpito aos domingos (exceto durante as férias), sua mensagem alcangou os cantos mais distantes da terra. Seu treinamento e prdtica inicial como médico, seu inabalavel compromisso com a autoridade da Escritura e o Cristo da Escritura, sua agugada mente analitica, sua penetrante percepgao do coragaio humano e seu apaixonado fogo galés combinaram-se para fazer dele 0 mais poderoso pregador britanico dos anos cingtienta e sessenta.'° Em segundo lugar, o valor do tema deve-se ao fato de que em Martyn Lloyd-Jones temos ingresso ao ponto de vista doutrindrio de um homem que raramente falou sem ter um texto biblico diante dos seus othos. Quase tudo o que Martyn Lloyd-Jones ensinou emergiu de um texto biblico sobre 0 qual se propunha falar. Estuda-lo é estudar as Escrituras Sagradas. Suas andlises sobre os desafios de seu tempo, os males da igreja e solugSes apresentadas para os problemas que o cristianismo enfrentava 9 LLOYD-JONES, Martyn, Discernindo os tempos. Sao Paulo: PES, 1994. p. 7. 10 STOTT, John. Between two worlds. Grand Rapids: Eerdmans, 1994. p. 46, Minha tradugao. Introdugao. 21 nada mais foram do que a aplicagao natural de versos biblicos sobre os quais estava pregando. Em terceiro lugar, refletir sobre a espiritualidade crista em Martyn Lloyd-Jones representa conhecer um caminho de expressdo de vida espiritual biblico, reformado e integral. Suas posigdes doutrindrias sao eminentemente biblicas. A teologia que emerge de seu esforco em entender as Escrituras é profundamente reformada. Em todo 0 tempo o vemos chamando seus leitores para levarem os pressupostos reformados as suas implicagGes légicas e praticas. E como conseqiiéncia disso tudo, vé-se surgir um modelo de espiritualidade reformado, no qual a vida crist é vivida na sua totalidade. Em quarto lugar, o tema a ser abordado pode ser util para que os reformados facam um resgate das riquezas da sua fé e os que nao conhecem a heranga de espiritualidade reformada entendam seu conteudo. Aqui vé- se que é possivel ser reformado e viver uma vida crista bela. Ninguém esté mais proximo dela do que aquele que conheceu a f€ calvinista. E justamente por isso pode ser criada uma ponte com aqueles que no Brasil nao conhecem a espiritualidade reformada. Martyn Lloyd-Jones esta entre os autores reformados que melhor podem dialogar com grupos pentecostais e neopentecostais no Brasil (aos quais os evangélicos brasileiros pertencem na sua ampla maioria) e no mundo. Nele percebe-se um reformado falando sobre o lado experimental e sobrenatural do cristianismo de um modo tal que deixa, para quem conhece o contetido de suas mensagens, a impressao de que um calvinista espiritualmente frio é uma contradi¢ao de termos. Como diz Kuyper: Somente é verdadeiro calvinista e pode levantar a bandeira calvinista aquele que, em sua propria alma, pessoalmente, foi tocado pela Majestade do Altissimo, e submisso ao poder esmagador de Seu amor eterno ousou proclamar este amor majestoso em oposi¢ao a Satands, ao mundo e ao mundanismo 22 As dimens6es da espiritualidade reformada de seu proprio coracao, na convic¢do pessoal de haver sido escolhido pelo proprio Deus e, portanto, devendo agradecer a Ele ¢ a Ele somente por toda a graga eterna." 1.2, ENFOQUE O objetivo do presente trabalho, portanto, é apresentar o resgate da tradigao de espiritualidade reformada feita pelo pregador galés D. Martyn Lloyd-Jones nos seus sermées, com énfase especial nos que foram pregados sobre a carta de Paulo aos Efésios entre 1954 e 1962, nos domingos de manha, na Capela de Westminster, na cidade de Londres. A tradi¢ao reformada de espiritualidade envolve a mente, 0 coragao e a vontade. Por isso, pode-se chama-la de integral. Conseqiientemente, os aspectos intelectual, experimental e pratico estao harmoniosamente distribuidos. O ser integral do homem é chamado a viver para a gloria de Deus. Esta é uma das principais caracteristicas dessa corrente teoldgica de espiritualidade. Porém, indubitavelmente, existem diferengas de énfases e doutrina dentre aqueles que abragaram o corpo de teologia reformada. Como existem variagdes dentro da tradi¢do reformada, a preocupagdo precipua deste trabalho sera mostrar com que vertentes da espiritualidade reformada Martyn Lloyd- Jones interagiu e das quais extraiu suas principais conviccées. Certas questdes serdo respondidas ao longo deste trabalho. Antes de tudo, porém, convém lembrar que é tentar defender o 6bvio procurar demonstrar que Martyn Lloyd-Jones (doravante também identificado como MLJ) era calvinista. Mas, como existem convicgées doutrinarias suas que Ihe sao bem peculiares e das quais certos reformados discordam, convém indagar: Pode-se reconhecer a totalidade da teologia da espiritualidade cristaé em MLJ como reformada? Como MLJ se situa na tradigao reformada 11 KUYPER, Calvinismo, p. 77. Introdugao 23 e puritana, da qual se considerava um herdeiro? Quais as contribuigdes que deu a igreja na area da espiritualidade e da vida crista? Essas perguntas serao consideradas quando analisarmos 0 contetido de suas exposigdes biblicas sobre a carta de Paulo aos Efésios. Nesses sermées, o pregador galés revela como a teologia reformada regeu sua pregac&o quanto aos trés aspectos principais da verdadeira espiritualidade: doutrina, experiéncia e pratica. 13. METODOLOGIA A pesquisa foi feita principalmente com o propdsito de se conhecer © pensamento de Martyn Lloyd-Jones mediante 0 exame das centenas de sermées transcritos e palestras feitas por ele. Houve também uma anilise biografica que teve como principal foco conhecer sua vida, caracteristicas pessoais e envolvimento com a igreja e sociedade como um todo. Para tal foram consultadas obras de autores que escreveram sobre a vida de Lloyd- Jones, escritos pessoais e extratos de suas mensagens que cooperaram para a construgao de seu perfil como ser humano. Houve uma preocupagao de se mostrar suas conexdes com a tradi¢ao reformada. Por isso, na perspectiva de estabelecer essas ligacdes teoldgicas, constam nesse trabalho as obras de varios autores eminentementes calvinistas, muitos dos quais contribuiram decisivamente para a formacaio tanto teolégica como espiritual de Martyn Lloyd-Jones. Para a construc4o do seu tempo, sua relagaéo com os de sua geracio e ligago com outras tradigdes de espiritualidade e pensamento cristaos, sempre que necessario so mencionados autores contemporaneos a Martyn Lloyd-Jones, escritores de outras linhas teoldgicas e grandes tedlogos da historia do cristianismo. Esse é 0 caso dos contemporaneos R. C. Sproul, John Gerstner, J. I. Packer, John Stott; do arminiano John Wesley e dos que mudaram a histéria do cristianismo de modo incontestavel, como Agostinho e Lutero. 24 As dimensées da espiritualidade reformada Em suma, toda essa teia de conexdes precipuamente estabelecida com a fé reformada foi feita com a intengdo de se mostrar 0 quanto ele foi primariamente devedor ao cristianismo reformado e de modo secundario ao que se poderia chamar de cristianismo ortodoxo, ou seja, a fé crista dos grandes credos e fiel no fundamental ao cristianismo biblico. Portanto, comegando com as suas mensagens e indo em diregao as obras de autores mencionados por ele, e outros que claramente contribuiram para a formag3o do seu pensamento, houve toda uma tentativa de se mostrar que a pregagao calvinista foi preservada com fidelidade pelo pregador galés. 1.4. SEQUENCIA DA ARGUMENTACAO A abordagem do tema da-se da seguinte forma: em primeiro lugar, é feita uma andlise biografica. Nessa seco, sao tratadas questdes como sua trajetoria histérica, as principais tendéncias do seu tempo, caracteristicas pessoais e alcance ministerial. Em segundo lugar, é feita uma andlise da dimensao doutrindria da espiritualidade reformada. O relacionamento do lado doutrindrio com os demais aspectos da vida crista se estabelece. Qual a relacao da doutrina com as afeigdes, as experiéncias com Deus e a pratica do cristianismo? Em seguida, a segunda das trés dreas essenciais da verdadeira espiritualidade é que recebe atengdo: a dimens4o experimental. O que se nota é que, embora Martyn Lloyd-Jones tenha sido um pregador preocupado em trazer a riqueza da teologia reformada para a sua geracao, ele nao via o conhecimento doutrinario como um fim em si mesmo. A teologia deve remeter 0 crente para as reais experiéncias com Deus, como também servir de base intelectual para a avaliagdo das mesmas. Esse encontro experimental com Deus deve envolver as trés pessoas da Trindade. Por isso, é apresentada a comunhao mistica do crente com o Pai, o Filho e o Espirito Santo. Recebem tratamento particular a comunh4o mistica com 0 Introdugao, 25 Espirito, em especial a experiéncia da selagem,’? como também a habitagdo de Cristo no coracao do crente, seguida do conhecimento vivo do amor infinito de Deus, que Martyn Lloyd-Jones considerava o ponto culminante do cristianismo experimental. Em quarto e ultimo lugar, o lado pratico da tradi¢ao reformada em Martyn Lloyd-Jones é tratado. O que Deus faz pelo crente a fim de assegura- lo de sua santificagdo? Qual o papel do cristéo na obra de santificagio? A doutrina da santificacdo, portanto, é vista 4 luz do ordo salutis reformado. Porém, um ponto de suma importancia merece tratamento. Quais as caracteristicas principais do homem santo? O conceito de simetria de carater e a relagao do crente com as esferas da vida sao tratados nessa secao sobre as exposigdes de Efésios. 1.5. FONTES O material usado para esta pesquisa constou dos oitos volumes da série de sermées sobre a Epistola aos Efésios e as dezenas de livros de Martyn Lloyd-Jones langados nos ultimos anos. Os ultimos sao usados na medida em que lancem importante luz sobre algum tema tratado. Assim sendo, quase tudo que é apresentado sobre 0 ponto de vista do autor emerge de fontes primdrias. Deve-se destacar o fato de que MLJ raramente apresenta as fontes das citagdes que faz em seus livros. Suas obras literdrias nao foram resultado da sua decisdo de sentar para escrever, mas de pregagdes suas, gravadas e taquigrafadas, que justamente por isso nao revelaram as fontes consultadas. Obras publicadas sobre sua vida também constam neste trabalho. A principal delas é a sua biografia autorizada em dois volumes, escrita por Iain Murray, que hoje é fundamental para a construcao de sua trajetoria histérica: 12.0 testemunho interno do Espirito Santo que assegura ao salvo a sua filiagdo divina, 26 As dimens6es da espiritualidade reformada D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years, 1899-1939 (Carlisle: Banner of Truth, 1998. 381 p.). Esse é o primeiro volume da biografia de MLJ, um relato dos seus primeiros quarenta anos de vida é feito, incluindo uma série de detalhes histéricos sobre 0 cristianismo no Reino Unido no inicio do século XX. O segundo volume, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith, 1939-1981 (Carlisle: Banner of Truth, 1998. 381 p.), é fundamental para que se conhecer os melhores anos da vida de MLJ e alguns dos principais acontecimentos da historia da igreja da Inglaterra. O titulo faz jus 4 principal marca desse periodo da vida de MLJ. Foram anos de confrontos teolégicos sem trégua, nos quais o pregador da capela de Westminster teve que resistir a ameaga liberal, ecuménica e a da chamada ortodoxia morta. Para a apresentagao do relacionamento entre MLJ e a tradigdo reformada, s&o apresentadas as idéias de autores reformados cujas obras sao quase que normativas, tais como Jodo Calvino, Francis Turretin, John Owen, John Flavel, Thomas Goodwin, Richard Sibbes, Richard Baxter, Jonathan Edwards, George Whitefield, Charles Spurgeon, Charles Hodge, B. B. Warfield e, de igual modo, aqueles que freqiientemente sao citados em suas pregacdes. Sempre que necessario, como ja foi exposto acima, sao usados autores antigos, contempordneos ou de outras linhas teolégicas que tenham alguma contribuicao a fazer a presente pesquisa. Centenas dos sermées de Martyn Lloyd-Jones ja foram publicados e continuam a ser lancados todos os anos. Uma porg¢ao significativa dessas mensagens foi traduzida para o portugués. Dentre essas obras ja traduzidas para a lingua portuguesa constam os livros que se tornaram conhecidos do publico do mundo inteiro e que certamente s4o os mais importantes de sua produgao literaria: as séries sobres Efésios e Romanos (ainda por se completar em portugués). A série de Efésios é composta pelos seguintes volumes, todos publicados pela editora Publicagdes Evangélicas Selecionadas (PES), de Sao Paulo: Introdugao 27 O supremo propésito de Deus (1996, 428 p.). Nessa obra tem- se acesso as primeiras exposigdes da epistola aos Efésios, que tiveram inicio em 1954, na capela de Westminster. O conteudo do livro, portanto, inclui suas mensagens sobre o primeiro capitulo da carta supramencionada, na qual so tratados temas tais como predestinagao, adogao e selo do Espirito Santo. Reconciliagdo: 0 método de Deus (1995, 415 p.). Esse € 0 segundo livro da série de Efésios, que trata do capitulo dois da referida epistola. O grande tema abordado é a reconciliagao entre os homens e desses com Deus. Para 0 autor nao ha texto que exponha com tanta clareza a mensagem evangelistica essencial para o incrédulo e os privilégios dos crentes. As insondaveis riquezas de Cristo (1992, 282 p.). Esse é 0 ponto mais alto da exposi¢do de Efésios feita por MLJ. Com base no capitulo trés da epistola uma série de mensagens é apresentada sobre aquilo que o autor considera a mais alta experiéncia com Deus, a luz das Escrituras, que um homem pode provar: a béngo de Cristo habitar pela fé no coracdo e o ser humano ser tomado de toda a plenitude de Deus. . A unidade cristé (1994, 242 p.). Nessa exposigo dos dezesseis versiculos iniciais do capitulo quatro de Efésios, MLJ apresenta as bases da unidade crista. Um livro essencial para todo aquele que quer conhecer 0 pensamento do autor sobre ecumenismo e as bases da unidade da igreja. . As trevas e a luz (1995, 410 p.). Com esta série de sermées MLJ mostra seu ponto de vista acerca da doutrina da santificagdo. Com base nos versos finais do capitulo quatro e iniciais do capitulo cinco da Carta aos Efésios, o autor apresenta um perfil muito bem tragado do auténtico viver em santidade. Vida no Espirito (1991, 293 p.). Nessa série de sermdes que 28 As dimens6es da espiritualidade reformada tiveram como base Efésios 5.18 a 6.9, MLJ faz com que se veja a implicagdo pratica da verdadeira vida no Espirito em trés areas fundamentais da existéncia humana: casamento, lar e trabalho. 7. O combate cristdo (1991, 331 p.). Certamente nessa exposi¢ado, dos versos dez a vinte do capitulo seis da Carta aos Efésios, tem-se acesso ao seu pensamento sobre batalha espiritual. Aqui vemos em destaque a sabedoria do pregador da capela de Westminster. 8. O soldado cristéo (1996, 332 p.). Com esse livro encerra-se a série de Efésios. Nessa exposi¢&o vé-se uma continuagdo do tema da batalha espiritual. E mais uma vez é vista de modo muito claro a capacidade incontestavel de Lloyd-Jones no sentido de aplicar a fé reformada aos aspectos praticos da vida. A série de Romanos é considerada por muitos sua principal obra. Infelizmente Martyn Lloyd-Jones nao péde concluir a série toda de pregaco por motivos de satide, vindo a parar no capitulo 14, quando fazia a exposi¢ao do verso dezessete da carta paulina. Abaixo segue a relacio completa da série sobre Romanos (quase todos da PES), incluindo o que até a data da pesquisa nao foi lancado em lingua portuguesa: 1. Oevangetho de Deus (1998, 478 p.). Com essa obra é inaugurada a série de Romanos. E feita uma andlise do primeiro capitulo da principal epistola do apéstolo Paulo. Devido a majestade e amplitude do texto biblico, MLJ fala sobre uma variedade de assuntos fundamentais da teologia crista. Destacam-se a sua andlise do contetido do evangelho e a descrigéio que é feita do homem sem Deus. 2. Ojusto juizo de Deus (1999, 284 p.). Nessa analise de Romanos 2.1 a 3.20, MLJ expe o pensamento do apdstolo Paulo sobre as bases justas sobre as quais esta alicergado o juizo Deus. A Introdugao 29 faléncia moral da humanidade é exposta pelo autor. Expiacao e justificagdo (2000, 296 p.). Com base em Romanos 3.30 a 4.25, MLJ faz uma exposigdo das doutrinas da expiagao e da justificagao. Seu ponto de vista sobre a salvacdo pela graca no Antigo Testamento é revelada em seus comentarios sobre a natureza da experiéncia de salvacao do patriarca Abraao. | A certeza da fé (2000, 436 p.). Essa obra é fundamental para © entendimento da teologia de MLS. E feita uma anilise profundamente elucidativa de uma das passagens mais importantes do apéstolo Paulo. MLJ fala sobre a relacdo pactual de Deus com o homem no seu aspecto federal, conforme costuma-se dizer nas obras de teologia reformada. O novo homem (2001, 407 p.). Com essa exposigao do capitulo seis de Romanos, MLJ faz uma introdugao a teologia da santificagao. E feita uma anilise da unio do crente com Cristo que ajuda o leitor a saber 0 quanto a graca de Deus é eficaz para a vit6ria sobre o pecado. Para MLJ a compreensio desse capitulo foi uma das experiéncias mais libertadoras da sua vida crista. A lei: suas fungées e seus limites (2001, 463 p.). Certamente essa é uma das obras mais polémicas de MLJ. Seu tratamento do homem que se diz “desventurado” vai de encontro a muito do que tem sido ensinado por pregadores proeminentes. Seu ponto de vista é que esse homem nao pode ser o crente. Os desdobramentos dessa abordagem para a vida cristi como um todo constituem um dos aspectos mais fascinantes da teologia de MLJ. Os filhos de Deus (2002, 570 p.). Esse é um livro fundamental para o entendimento de sua pneumatologia. Aqui se tem uma das suas exposi¢des biblicas sobre o selo do Espirito Santo. Segundo o seu relato, a exposi¢ao desses versos deu a ele mais 30 As dimensées da espiritualidade reformada alegria do que qualquer outra coisa ocorrida na sua vida crista. 8. A perseveranga final dos santos (2002, 585 p.). Essa é uma das obras nas quais sua base teoldgica calvinista fica mais exposta. Aqui é apresentado um Deus soberano que rege a Histéria. Seu amado povo é visto como uma raga eleita que caminha segura para a gloria. Trata-se de uma exposi¢ao que mostra as alturas nas quais a graga deixa o crente. 9. O soberano propésito de Deus (2002, 406 p.). Com base no capitulo nove da carta aos Romanos, MLJ comega a tratar da relagéo de Deus com o Israel nagio e o Israel espiritual, a Sua igreja. Sua igreja é a comunidade de judeus e gentios convertidos a Cristo. E certamente uma obra que ajudard o leitor a compreender o fato de que Deus nao tem dois povos, a igreja e os judeus, mas apenas um, a Sua igreja. 10. Fé salvadora (2003, 535 p.). O grande tema da série de sermdes que constam nessa obra é a fé salvadora mediante a qual judeus e gentios podem se reconciliar com Deus. O tema de Israel como nagao volta a ser tratado e algumas explicagées sio dadas do porqué do povo hebreu haver rejeitado o evangelho. 11. Para a gloria de Deus (2003, 585 p.). Uma obra fundamental para se entender MLJ. Nessa exposigao do capitulo onze é apresentado o seu ponto de vista sobre escatologia, o futuro de Israel ¢ a doutrina da predestinagao. 12. O comportamente cristao (2003, 621 p.). Aqui se observa MLI no que talvez soubesse fazer de melhor: a aplicacaio da doutrina. Sua maneira de lidar com a vida crista a partir da aplicagdo pratica da doutrina é uma das maiores contribuigdes dessa obra. 13. Life in two kingdoms (Lymington: Banner of Truth, 2002. 323 p.). Essa é sem divida uma obra polémica. Nessa exposigao Introdugao 31 do capitulo treze, MLJ fala sobre a relac&o do crente com o estado. Temas como sujei¢éo as autoridades, pena de morte, guerra santa e desobediéncia civil sdo tratados de forma muito clara. 14. Liberty and conscience (Lymington: Banner of Truth, 2003. 271 p.). Aqui MLJ termina subitamente a sua exposigao da Carta aos Romanos, por motivos de sade. O foco dessas mensagens nao é mais a relagao do crente com o estado, mas a relacdo do crente com a igreja. Como devem se relacionar na igreja pessoas de consciéncia forte e pessoas de consciéncia fraca? Essa é a pergunta que MLJ procura responder. Vale a pena destacar as seguintes obras, ja traduzidas para o portugués, que sem divida alguma estao entre aquelas que tornaram Martyn Lloyd-Jones renomado no mundo inteiro (todas da editora PES, exceto onde indicado): Estudos no Sermdo do Monte (Editora Fiel, 1984), provavelmente uma das maiores obras sobre vida crista do século passado. Um verdadeiro tratado de espiritualidade crist4, no qual mais uma vez sua sabedoria espiritual se manifesta na aplicagao do Serm&o do Monte a vida di livro esto todas as palestras feitas por MLJ na capela de Westminster ‘ia do crente. Os puritanos: suas origens e seus sucessores (1993). Nesse na conferéncia anual puritana. E uma obra fundamental para aqueles que querem conhecer as principais influéncias exercidas sobre o ministério de MLJ e todo o seu ponto de vista sobre o movimento puritano. Depressdo espiritual (1987) mostra 0 método calvinista de se lidar com os problemas da vida. As séries Deus 0 Pai e Deus o Filho (1997), Deus o Espirito (1998) e A igreja e as tltimas coisas (1999) apresentam em linguagem simples as grandes doutrinas reformadas. Discernindo os tempos (1994) sao palestras proferidas entre 1942 e 1977, constituindo-se em obra de suma importancia para todo aquele que quer entender seus pontos de vista sobre diversos temas que geraram tensdo no protestantismo do século 32 As dimens6es da espiritualidade reformada XX. Pregagdo e pregadores (Editora Fiel, 1984) é leitura que tem se tornado obrigatéria em seminérios teolégicos do mundo inteiro para todo candidato ao ministério sagrado. Avivamento (1992) é uma das obras mais conhecidas do autor. Nesses sermdes MLJ apresenta a posicao calvinista sobre avivamento, com base em passagens biblicas e inumeras ilustracdes tiradas da histéria do cristianismo. Cartas: 1919-1981 (1996) é uma boa obra para quem quer conhecé-lo melhor como ser humano. Ainda podem ser mencionados varios livros e opisculos em lingua portuguesa igualmente uteis para a vida de qualquer leitor cristio: Jesus Cristo e este crucificado (s/d), O caminho de Deus nao o nosso (2003), O segredo da béncdo espiritual (Rio de Janeiro: Editora Textus, 2002), O sobrenatural na medicina (s/d), Paraiso perdido e recuperado (s/d), Que é a igreja? (s/d), Sermées evangelisticos (1989), Uma nagao sob a ira de Deus (Rio de Janeiro: Textus, 2000). Quanto as obras que ainda nao foram traduzidas para a lingua portuguesa destacam-se, numa lista nado exaustiva: Expository sermons on 2 Peter (Carlisle: Banner of Truth, 1999), mensagens sobre a Segunda Epistola da Pedro; Joy unspeakable (Eastbourne: Kingsway Publications, 1985), na qual apresenta toda a sua posi¢Ao sobre o batismo com o Espirito Santo; Life in Christ: studies in 1 John (Wheaton: Crossway Books, 2002), pregacées transcritas sobre a Primeira Epistola de Jodo; livro fundamental para todo aquele que quer conhecer os principais sinais de uma verdadeira obra de conversio; Prove all things (Kingsway Publications, 1985), onde MLJ apresenta uma série de mensagens sobre os dons do Espirito Santo; The cross (Crossway Books, 1986), que sio mensagens sobre os significado da cruz de Cristo a luz do livro de Galatas; The assurance of our salvation (Crossway Books, 2000), que sio mensagens sobre a ora¢ao sacerdotal do Senhor Jesus em Joao 17; Studies in the book of Acts: authentic Christianity (Crossway Books, 2000), Studies in the book of Acts: courageous Christianity (Crossway Books, 2001) e Studies in the book of Introdugao 33 Acts: victorious Christianity (Crossway Books, 2003) sao mensagens sobre o livro de Atos dos Apéstolos; The life of joy and peace (Grand Rapids: Baker Books, 1999), exposi¢des biblicas sobre 0 livro de Filipenses; Truth unchanged unchanging (Crossway Books, 1993), um trabalho de linha mais apologética; Authority (Banner of Truth, 1997), um livro ja traduzido para a lingua portuguesa no qual o autor fala sobre as bases da autoridade do ptegador do evangelho; Heirs of salvation (Ebbw Vale: Bryntirion Press, 2000) sao estudos sobre o tema da seguranga da salvagao; My soul magnifies the Lord (Crossway Books, 2000), mensagens sobre o sentido do natal; Old evangelistic sermons (Banner of Truth, 1995), mensagens evangelisticas pregadas com base no Antigo Testamento; Out of the depths (Crossway Books, 1995), sermées sobre o Salmo 51; Singing to the Lord (Ebbw Vale: Bryntirion Press, 2003), um livro interessante no qual MLJ fala sobre o papel da misica e da adoragao na igreja e os cAnticos espirituais que em sua opiniao o Espirito Santo pode dar subitamente a um crente; True happiness (Crossway Books, 2001), pregacdes sobre os Salmos 1 e 107; Why does God allow war? (Crossway Books, 2003), um livro onde MLJ apresenta seu ponto de vista sobre a relac&o da soberania de Deus com as guerras. Vale mencionar que muitos dos seus sermdes gravados que se tornaram livros esto 4 disposigao do grande publico em sites da internet. Também podem ser encontrados artigos do autor em revistas ¢ jornais. John Brencher, em sua tese de doutorado sobre MLJ (“Martyn Lloyd-Jones (1899-1981) and twentieth-century evangelicalism” [Carlisle: Paternoster Press, 2002]), apresenta uma série de fontes de consulta que podem ser uteis para aqueles que querem obter mais informagées sobre a vida de MLJ. 1.6. DEFINICOES Ha pelo menos dois termos que precisam ser definidos antes de 34 As dimensoes da espiritualidade reformada qualquer coisa: espiritualidade e tradi¢ao reformada de espiritualidade. Ambos serao usados extensamente e relacionam-se ao 4mago da pesquisa proposta. O que significa a palavra espiritualidade? Alister E. McGrath faz uma diferenciacao entre o sentido mais amplo da palavra espiritualidade € 0 seu sentido cristéo. No seu sentido mais amplo, “espiritualidade diz respeito 4 busca de uma plena e auténtica vida religiosa, que envolve reunir as idéias distintas dessa religiao ¢ a experiéncia total de viver sobre a base e dentro do escopo daquela religido”.'? Nesse sentido, pode-se falar de uma espiritualidade hindu, budista ou muculmana. Como também se pode falar de uma falsa espiritualidade. Mas, ha uma verdadeira espiritualidade. E a caracterizada por uma relacdo viva com o unico Criador: 0 Deus cristéo. Desse modo, existe uma espiritualidade crista. Como defini-la? McGrath oferece uma descrigao parecida com a supramencionada, porém com o elemento diferenciador do cristianismo: “A espiritualidade crista diz respeito 4 busca da plena e auténtica existéncia crista, envolvendo reunir as idéias fundamentais do cristianismo e a experiéncia total de viver na base e dentro do escopo da fé crista”.'* “A espiritualidade é geralmente entendida”, lembra McGrath, “como significando a experiéncia de Deus e a transformacao de vidas como resultado dessa experiéncia”.'* Deve-se considerar o fato que alguns véem a teologia da espiritualidade como algo téo-somente relacionado ao exercicio das disciplinas espirituais cristas. Este de fato é um sentido possivel. Essa vem a ser a principal énfase de Dallas Willard no seu conhecido livro The Spirit of the Disciplines, no qual fala largamente sobre as disciplinas espirituais 13 McGRATH, Alister E. Christian spirituality. Oxford: Blackwell Publishers, 1999. p. 2. Minha tradugio. 14 Ibid., 2. 15 MCGRATH, Alister E. Christian theology. Oxford: Blackwell Publishers, 2001. p. 147. Minha tradugao. Introdugao, 35 que viabilizam a vida crista: “A teologia pratica estuda a maneira pela qual nossas agées interagem com Deus para a realizagao de Seus fins na vida humana”.'* O significado que se esta dando a palavra “espiritualidade” neste trabalho envolve a utilizago dos meios de graca para o fortalecimento da vida crista, 0 que esta incluido no que Willard chama de teologia pratica. Porém, esse sentido dado aqui a palavra espiritualidade nao se restringe a vida devocional do crente. Envolve tudo aquilo que a vida devocional pode proporcionar, mais a vida cristé vivida nas suas trés principais dimensdes: doutrina, experiéncia e pratica. Portanto, nao se trata apenas de uma abordagem sobre como viver a vida crista, mas sobre a vida crist& propriamente dita também. A palavra espiritualidade, portanto, é dado o sentido mais amplo, conforme sugerido por McGrath. A espiritualidade crista auténtica, portanto, significa o ser humano integral se relacionando com Deus através de Cristo, no Espirito, nessa triplice dimensao da vida crista: intelectual, experimental e pratica. O que significa espiritualidade reformada? A espiritualidade reformada vem a ser a relagio do homem integral com Deus através de Cristo no Espirito Santo, vista 4 luz da teologia reformada, dos seus padres confessionais e do testemunho histérico daqueles que em eras passadas procuraram encarnar esse sistema doutrindrio. Esse resgate doutrindrio ¢ histérico parte da firme convic¢do de que ninguém esta mais bem preparado para viver a vida cristi na sua totalidade do que o calvinista. Isso pelo simples fato de seu sistema doutrinario ter como meta a fidelidade as Escrituras. Sinclair Ferguson apresenta num breve relato a principal virtude da fé reformada e seus maiores expoentes: A teologia reformada tem um débito especial para com os principios de exposigao biblica resgatados para a igreja no 16 WILLARD, Dallas. The spirit of the disciplines. New York: HarperSanfrancisco, 1988. p. 14. Minha tradugdo. 36 As dimens6es da espiritualidade reformada tempo da reforma, Ela est particularmente associada ao trabalho de Joo Calvino, mas foi mais tarde desenvolvida por puritanos do século XVII tais como John Owen e Thomas Goodwin (na Inglaterra) e Thomas Hooker e John Cotton (na Nova Inglaterra). Muitos cristéos, mais tarde, tiveram um débito especial para com a tradi¢&o teolégica reformada. Eles incluem pregadores como George Whitefield, C. H. Spurgeon e D. Martyn Lloyd-Jones; e tedlogos tais como Jonathan Edwards, Charles Hodge, Abraham Kuyper e B. B. Warfield; como também influentes lideres cristéos do século XX como J. Gresham Machen e Francis Schaeffer.'” 17 ALEXANDER Donald L. (E4.). Sinclair Ferguson “The Reformed view”, em Christian Spiri- tuality. Downers Grove: InterVarsity, 1988. p. 47. Minha tradugao. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra ualquer escritor que queira apresentar um relato da vida de Qwicn Lloyd-Jones necessitara inevitavelmente recorrer aos dois volumes escritos pelo seu biégrafo Iain Murray (1931-). Além de a sua biografia haver sido autorizada pelo proprio Martyn Lloyd-Jones, seu trabalho resultou de mais de vinte anos de pesquisas, cuja principal fonte de informagao foi o préprio MLJ. '* Foraisso, Iain Murray foi testemunha ocular de muitos dos principais acontecimentos da vida de MLJ, e teve livre acesso através da familia a fontes suplementares de informagio.'? No fim da vida de MLJ, com este jé cooperando conscientemente para a publicagao da sua biografia, muitas outras informagées mais foram transmitidas, a fim de que tal obra pudesse ser publicada para a “gloria de Deus apenas”. Assim sendo, grande parte desta pesquisa biografica deve-se ao trabalho de Iain Murray, acrescida de informagGes suplementares obtidas principalmente nas obras do préprio Martyn Lloyd-Jones. 18 MURRAY, Iain. D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, Carlisle: Banner of Truth, 1998. p. xii, Minha tradugdo. 19 MURRAY. D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981. Carlisle: Banner of truth, 1990. p. xxii. Minha tradugdo. 20 Ibid., 729. 38 As dimensoes da espiritualidade reformada 2.1. TRAJETORIA PASTORAL 2.1.1. DO NASCIMENTO A CHAMADA PARA O ISTERIO Martyn Lloyd-Jones nasceu no dia 20 de dezembro de 1899 na cidade de Cardiff, no Pais de Gales. Seu pai, Henry Lloyd-Jones, era casado com Magdalene (de quem MLJ tinha 6timas recordagdes e julgava altamente inteligente). Sua estima pelo pai pode ser medida por esta sua emocionada declaragao: “o melhor homem natural que eu ja conheci e o carater mais bondoso que ja encontrei”.”' Seus pais tiveram trés filhos: Harold, Martyn e Vincent. Martyn Lloyd-Jones considerava os anos vividos com seus pais e irmaos extremamente felizes. Em janeiro de 1910, contudo, sua familia passou por um grave problema que representou sérias dificuldades financeiras para o seu pai a partir de entéo. A casa em que moravam pegou fogo. MLJ relata a sensago estranha que experimentou quando teve que morar na nova casa construida, que apesar de ser melhor que a antiga, deixava-o com a sensagao de que algo estava faltando. Mais lutas viriam nos anos subseqiientes. A vida espiritual de sua familia foi muito prejudicada pelo estado espiritual das igrejas de Gales, mas em especial pelo estado espiritual de sua propria igreja local. Apesar de um avivamento ocorrido em algumas regides do Pais de Gales entre 1904-1905, sua igreja em Llangeitho, que pertencia 4 denominagdo Metodista Calvinista, permaneceu sem receber influéncia nenhuma. Martyn Lloyd-Jones fez um comentario certa vez sobre esse avivamento: Existem indubitavelmente muitos problemas em conex4o com o Avivamento de 1904-5, certas tendéncias para o misticismo extremo no préprio senhor Evan Roberts, a diferenga 21 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, p. 6. Minha tradugao. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 39 geral em carater entre esse avivamento e os anteriores, e a lamentavel falha de pregadores de continuarem a pregar e a ensinar durante 0 avivamento etc. Todos esses problemas foram tratados da maneira mais judiciosa pelo Dr. Evans. Todo avivamento produz problemas, a vida sempre faz assim também, e o perigo é esquecer o fendmeno inteiro por causa de certos excessos que freqiientemente o acompanham.”* Segundo descrigao do préprio MLJ, seu pastor era um homem moralista e legalista. Na sua memoria, nao havia registro de haver ouvido da boca desse homem nenhuma pregacio sobre o evangelho.” Isso, conforme se observard, marcou profundamente seu ministério. A falta de mensagens que confrontassem o pecador com 0 seu pecado e apresentassem a Cristo como a dadiva de Deus ao homem para sua redengao prejudicou a vida espiritual de sua familia. Certamente, nao foi facil para ele chamar 0 seu pai de o melhor “homem natural” que j4 conheceu. Até os seus onze anos, MLJ nfo era nada chegado aos livros. Vivia a vida propria de um garoto de sua idade e revelava um grande gosto pelo futebol. Logo, foi necessdrio que estudasse em Tregaron, onde teve que morar longe de casa. Foi um periodo dificil de sua vida por causa da saudade do seu lar. Nesse periodo em Tregaron, houve trés acontecimentos que marcaram sua vida: a influéncia de um professor que despertou em sua mente o interesse por Histéria, a decisdo pela medicina e um evento organizado pela Associac¢éo de Verao dos Metodistas Calvinistas para a comemoracao do bicentendrio do nascimento de Daniel Rowland. Tal entidade o afetou de modo significativo: “Essa associagdo teve um profundo efeito sobre mim, ¢ possivelmente a coisa mais importante foi 22 EVANS, Eifon. The Welsh revival of 1904. Bryntirion: Evangelical Press of Wales, 1997. p. 6. Minha tradugao. 23 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, p. 3. Minha tradugao. 40 As dimens6es da espiritualidade reformada que ela criou um interesse pelos metodistas calvinistas que tem durado até hoje”.4 Noano de 1915, Martyn Lloyd-Jones e sua familia estavam morando em Londres por causa das suas dificuldades financeiras. A primeira vez que MLI esteve na Capela de Westminster foi nesse mesmo ano. Sua familia, no entanto, escolheu como igreja a Presbiteriana Galesa ou Metodista Calvinista (termos sinénimos). Apés trés anos, morria de infecg&o seu irm&o mais velho, Harold, com vinte anos de idade, evento que marcaria muito sua vida. A incerteza da vida sempre foi tema de suas mensagens e um dos principais motivos pelos quais pregava com tamanho senso de urgéncia. Em 1916, MLI iniciou seus estudos em medicina no renomado St. Bartholomew’s Hospital, no centro de Londres. Em 1921, comegou a trabalhar com um médico que consta na lista dos mais renomados do referido hospital, Sir Thomas Horder. O contato com Horder e 0 exercicio da medicina criaram-lhe uma espécie de mentalidade que determinou a forma como fazia teologia, pregava e aconselhava. Seu método sempre foi o de pensar claramente, a partir de primeiros principios, sem nunca pular a priori para as conclus6es, e sempre ir em busca da causa dos problemas, em vez de administrar os sintomas, como se pode notar nessa declaragao: .. a infelicidade ¢ a miséria, e mesmo a enfermidade fisica, e todas as demais coisas que tanto nos atormentam e atribulam, so resultados e conseqiiéncias do pecado original e da queda de Adio. Tais males nao perfazem o problema principal; so apenas conseqiiéncias, manifestagdes, ou, digamos assim, sintomas dessa enfermidade priméria.> 24 Ibid., 27. 25 LLOYD-JONES, D. Martyn. Pregagdo e pregadores. Sao Paulo: Editora Fiel, 1984. p. 20. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 4 S4o tantas as vezes em que MLJ menciona esses dois principios (pensar a partir de primeiros principios sem nunca saltar diretamente para conclusdo e sempre procurar a causa dos problemas em vez de administrar os sintomas) nos seus sermdes e os exemplifica na forma como lidava com os problemas em geral, que dificilmente sera exagerada a afirmagdo de que a medicina o marcou para sempre. Nisso se percebe como certas verdades, por serem axiomaticas, adaptam-se e colaboram para 0 exercicio da vida crista. Numa palestra proferida em 1971, na Conferéncia Anual da Fraternidade Médica, onde fora chamado para falar sobre 0 tema “Cura Milagrosa”, péde revelar o quanto guardou até o fim de sua vida a mentalidade propria de um médico: Digo ent&o que, se simplesmente dizemos que nao acreditamos nisso, adotamos uma atitude ndo-cientifica. Temos que enfrentar os fatos; se esses concordam ou nao com as nossas teorias é outro assunto. E errado rejeitar os fatos, por qualquer que seja a razao.”* Na verdade, o “Doutor” continuou praticando a medicina informalmente por muito tempo depois de havé-la abandonado oficialmente. Seu interesse por ela durou a vida toda. Um dos seus grandes prazeres era ler o British Medical Journal para relaxar.”” Em fevereiro de 1912, MLJ e dois irmaos jé haviam professado sua fé e se tornado membros comungantes da denominacgéo Metodista Calvinista. Aos dezoito anos, durante um ano, MLJ foi superintendente da escola dominical da igreja de Charing Cross Road, em Londres. Porém, sé no inicio dos seus vinte anos foi levado 4 convicgao de que de fato havia se convertido. Em sua opiniao, tanta demora para a sua conversao, apesar de todo o envolvimento com a igreja, deveu-se ao fato de nunca haver ouvido 26 LLOYD-JONES, D. Martyn. O sobrenatural na medicina, Sio Paulo: PES. p. 16. 27 CATHERWOOD, Christopher. Martyn Lloyd-Jones: A family portrait, Eastbourne: Kingsway, 1995. p. 26. Minha tradugao. 42 As dimensoes da espiritualidade reformada mensagens que © confrontassem com o seu pecado e 0 levassem a crer na sua necessidade de regeneragao.* Para o seu bidgrafo, o incéndio de sua casa na infancia, a morte do irmao mais velho e a do pai mostraram a MLJ 0 cardater transitério e incerto da vida. Essas foram as obras da providéncia que prepararam seu coracao para Cristo. Mas, o que foi decisivo foram as mensagens de um pregador escocés de nome John Hutton, na Capela de Westminster. Nesses cultos, um senso da realidade do mundo espiritual e o conhecimento do poder de Deus para transformar a vida dos homens afetaram seu coragao. A experiéncia mais importante para sua conversdo definitiva viria do seu contato com a classe alta de Londres. Com o seu crescimento na carreira de médico, portas se abriram para seu contato com os ricos da sociedade londrina. Ao perceber a superficialidade de suas vidas, a conversagao vazia e a presenga do pecado, MLJ chegou a conclusao de que o problema do homem nao é¢ intelectual, mas moral e espiritual. O que nesse contexto reforgou sua constatagao foi a presenga do pecado em seu proprio coragao. Ele descobrira que o pecado nfo esta apenas nos nossos atos, mas também nos nossos desejos. Como este entendimento da natureza humana nao regenerada aos poucos foi ganhando espago em sua visdo do mundo e de si préprio, aos vinte e trés anos sua vida mudava por completo.” Todo esse conjunto de acontecimentos e percepgdes da vida que o levaram a experiéncia de conversdo acabou conduzindo o Dr. Lloyd-Jones a largar a medicina a fim de ingressar no ministério. Deus comegou a se tornar real para ele.*’ Antes disso, por volta dos seus dezoito e dezenove anos, MLJ sentira a convicgao de que haveria de se envolver no ministério 28 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, p. 58. Minha tradugao. 29 Ibid., 63. 30 Ibid., 77. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 43 cristéo. Agora, contudo, seu coracfo se enchera de vontade de curar nao os corpos dos homens, e sim suas almas. Nao tirar a doenga do corpo, mas 0 pecado do coracdo. Sua maior ambigdo passou a ser pregar o evangelho das “insondaveis riquezas de Cristo”. Num contexto onde tantos ministros no Brasil deliberadamente esto dividindo seu tempo com a politica e outras tantas atividades mais, MLJ é um testemunho de alguém que escolheu o ministério sagrado por considerd-lo a tarefa mais importante da qual um homem pode ser incumbido, e por isso digna de dedicagao integral. Anos mais tarde, na sua obra classica sobre pregagdo, viria a fazer a seguinte afirmacao: No instante em que se considera a necessidade real do homem, como também a natureza da salvagdo anunciada e proclamada nas Escrituras, chega-se forgosamente A conclustio de que a tarefa primordial da igreja consiste em pregar e proclamar a Verdade, consiste em apontar a verdadeira necessidade do ser humano, e demonstrar qual o tnico remédio, a inica cura para tal necessidade.*! E assim, as oportunidades para pregar comegaram a surgir na vida daquele que ja se revelava grande orador e alguém que tinha uma mensagem para entregar aos de sua gerac¢fo. Seu coragao revelava-se cheio de encanto com 0 cristianismo e anseio por proclama-lo aos homens e mulheres de seu tempo. O periodo de indeciséo quanto a entrada no ministério, contudo, foi um dos mais dificeis de sua vida. Chegou a perder dez quilos de peso: “Tenho sido provado até 4 medula, mas gragas a Deus, continuo sempre onde estive, e a minha fé permanece inabalavel”.* Ele nado revela em 31 LLOYD-JONES, Pregagdo e pregadores, p. 19. 32 MURRAY, Iain H. D.Martyn Lloyd-Jones: Cartas 1919-1981. Sio Paulo: PES, 1996. p. 33. 44 As dimens6es da espiritualidade reformada nenhum momento o desejo de largar a medicina por estar desencantado com ela. Sua decisio de abrir mao da carreira de médico foi resultado de uma aguda compreensio da urgéncia de se pregar o evangelho para uma sociedade que definhava no pecado, superficialidade de vida e falta de esperanga. Amigos julgavam que nao era sensato largar uma profisso tio promissora. Sua propria mae foi contra. A idéia de conciliar a medicina com 0 ministério, contudo, era para MLJ inconcebivel. Para ele, as demandas do exercicio do ministério sagrado sao de tal magnitude, que requerem um envolvimento exclusivo de quem o exerce. Sua histéria reforgara a opiniado de que nao é bom um ministério leigo. Aessa altura, MLJ ja dava aulas na Escola Dominical de Charing Cross e via ampliadas as oportunidades de pregar. Em junho de 1926, chegara a conclusao de que deveria deixar a medicina e se tornar ministro, profundamente convencido de que na vida o mais importante é trazer os homens para um correto relacionamento com o Criador. Seu impulso inicial foi pregar o evangelho para os pobres ¢ a classe trabalhadora, sem pensar em assumir uma congregaco estabelecida e perseguir 0 curso tradicional de formagcao teolégica de sua denominaciio. Seu desejo era ser evangelista. Isso em sua denominagao representava o exercicio de um ministério inferior ao de um pastor. Em geral, os evangelistas eram pessoas sem treinamento teolégico ou que haviam falhado na tentativa de concluir o curso de teologia para se tornarem pastores. Uma queda significativa no padrao de vida de alguém que tinha diante de si uma carreira que haveria de dar-lhe status e boa rentabilidade. No dia 21 de julho de 1926, porém, foi aceito como candidato ao ministério pela Charing Cross Chapel, abrindo mao de um sonho que ja se tornara realidade em sua vida. MLJ nao deixara de sonhar em entrar numa faculdade de medicina. Ele abandonara tudo depois de formado e estar trabalhando com um dos médicos mais renomados do seu tempo. O privilégio de ser pregador arrebatara-lhe 0 coragao. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 45 2.1.2. DE ABERAVON A MUDANCA PARA A CAPELA DE WESTMINSTER No dia 27 de novembro de 1926, MLJ chegava a Aberavon, no distrito de Sandfields, para pregar na Bethlehem Forward Mission, uma igreja fundada através da cooperagdo de duas igrejas presbiterianas locais. Tratava-se de uma igreja que vinha de uma sucessao de fracassos ministeriais numa cidade que vivia sob a influéncia de um cristianismo bem secularizado e do socialismo. Os cultos dominicais eram freqiientados por aproximadamente setenta pessoas, que ouviram MLJ pregar pela primeira vez. Contrariando o procedimento da igreja presbiteriana, MLJ foi de modo nao oficial declarado naquele mesmo dia pastor da igreja de Aberavon. John Brencher recorda em que condi¢des MLJ chegou para trabalhar na sua primeira igreja: “Ele chegou a Aberavon sem nenhuma experiéncia de dirigir uma igreja e sem nenhum treinamento teolégico formal”.* E logo cedo veio 0 convite oficial para ser pastor leigo da Bethlehem Forward Movement Mission Hall, 0 que ele prontamente aceitou, vindo a se mudar para a cidade com sua esposa Bethan. Martyn Lloyd-Jones tinha 27 anos de idade nessa época e havia acabado de se casar. Ao chegar 4 nova igreja, MLJ nao deu inicio a nenhum novo programa. Uma caracteristica de seu trabalho como pastor até o fim de seu ministério foi a manutengdo de uma estrutura eclesidstica simples, com a igreja focada no que, em sua missao, é essencial, a edificagao dos cristéos mediante o ensino das Escrituras e a converséo dos nao crentes através da pregacdo evangelistica. Ele se manteve interessado apenas na parte tradicional da igreja, que consistia de cultos regulares dominicais (as 11h00 e 18h00), uma reunido de oragao na segunda-feira e um encontro 33 BRENCHER, John. Martyn Lloyd-Jones (1899-1981) and twentieth-century evangelicalism. Carlisle: Paternoster Press, 2002. p. 13. Minha tradugao. 46 As dimens6es da espiritualidade reformada de meio de semana na quarta-feira. Alguns trechos das suas mensagens revelam o motivo pelo qual a igreja imediatamente comegou a crescer em niimero: Aigreja sempre alcangou seus maiores triunfos quando pregou a mensagem dupla da depravagiio da natureza humana, e da necessidade absoluta de intervengao direta de Deus para a sua salvagiio... uma igreja que prega essa mensagem vai atrair ou repelir; ou nos unimos a ela, ou a odiamos ¢ perseguimos. Uma coisa é certa: nfo podemos ignord-la, porque sua mensagem néo vai nos ignorar; cla machuca, transtorna, condena, enfurece, ou ent&o convida c atrai.* Jamais seré encontrada, numa analise de sermées de MLJ, uma mensagem sentimentalista, que passe a impressdo de que o cristianismo trata de trivialidades. Sua mensagem consistia daquele tipo de pregagao que gera amor ou ddio, mas nunca indiferenga. Dificilmente um nao crente haveria de sentir prazer em cultos dirigidos por ele. Todos tinham como alvo a gloria de Deus e a edificago da igreja, e sua pregacao inseria-se dentro desse contexto. Numa outra mensagem em que admoestava aqueles que freqiientemente deixavam de estar na igreja no domingo, a fim de irem para a praia, foi levado a declarar: A nao ser que vocé sinta que aqui Ihe ¢ oferecida e dada alguma coisa que nenhuma outra instituigdo pode oferecer ou igualar, entado, pelo amor de Deus, v4 embora para 0 campo ou para o litoral. A igreja de Cristo é uma igreja de crentes, uma associagdo de pessoas ligadas por uma crenga comum e amor. Vocé nao cré? Bem, acima de tudo, nao finja que vocé o faz, v4 para o campo e para o litoral. Tudo o que eu pego de vocé é: seja consistente. Quando 34 LLOYD-JONES, Martyn. Sermdes evangelisticos. Sao Paulo: PES, 1983. p. 13. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 47 alguém morrer na sua familia, ndo venha pedir a igreja na qual vocé nao cré que o enterre. Va para o litoral para consolacio...° Para ele, 0 cristianismo lidava com a vida e a morte. Todo envolvimento com a fé crista deveria ter como base a convicgao de que o homem esta fazendo o que de melhor poderia fazer pela sua vida. As mensagens eram sempre de ensino pela manha, e mais evangelisticas 4 noite, nos dois cultos dominicais. Sua preocupagao era desfazer qualquer conceito errado quanto a fé crist, e ao mesmo tempo fugir de todo discurso essencialmente moralista, politico e propagador de reformas sociais. Conscientemente procurava fugir dos erros cometidos pelos pregadores de sua geracdo e corrigir os equivocos nos quais muitos cairam quanto ao conceito do cristianismo. Apesar de haver nascido num lar onde se discutia politica e de ele proprio conhecer bem as tendéncias do seu tempo, julgava que Deus o tirara da medicina nao para dizer do pulpito o que os politicos deviam fazer, ou até mesmo pregar reforma dos costumes, mas para proclamar o evangelho de Cristo. Qualquer andlise dos seus serm6es iniciais revela sua preocupagao em mostrar a relevancia do evangelho em face da realidade do pecado e incerteza da vida: Quantos de nés verdadeiramente créem que, se nado fosse a intervengdo de Deus em nossas vidas, estariamos perdidos e condenados? Acaso a igreja crista, em nossos dias, ainda comunica a mensagem de que a humanidade esta condenada, parte da graca de Deus em Cristo Jesus? Estariamos tio confiantes desse fato como os apéstolos, os santos ¢ a igreja em todas as épocas em que experimentou um periodo de reavivamento e despertamento espiritual?** 35 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, p.138, Minha traducaio. 36 LLOYD-JONES, Sermdes evangelisticos, p. 14 48 As dimens6es da espiritualidade reformada No inicio do século passado, ja se podia observar um grande interesse, por parte das igrejas, em transformar 0 culto num momento de entretenimento para os incrédulos. Percebia-se a queda na freqiiéncia aos cultos, e muitos trataram de descobrir como atrair auditério para a igreja. Aconclusao de muitos foi que a igreja deveria tornar 0 culto cada vez mais atraente para o nao crente. Para MLJ, uma verdadeira igreja nunca haveria de ser um lugar agradavel para o nao cristéo. Quando tal ocorresse, essa ha muito teria deixado de ser igreja: Porque a verdade do cristianismo e a pregagao do evangelho deveriam tornar a igreja intoleravel e desconfortavel para todos, exceto para aqueles que créem, e mesmo esses deveriam ir para casa sentindo-se castigados e humilhados.*” A maior parte da dedicacdo do seu tempo era para o preparo de seus sermées. Ja no inicio do seu ministério, observa-se sua énfase na prega¢ao, que em sua opinido se constitui na principal atividade do ministro: “A tarefa primordial da igreja e do ministro cristéo é a pregacdo da Palavra de Deus”.** Embora as mudangas tenham sido lentas na vida da igreja, respostas 4 sua mensagem comegaram a ocorrer com a chegada dos novos convertidos e as profundas alteragdes na vida dos membros da igreja, que finalmente emergiam de um histérico de apatia espiritual. Sua propria mulher foi levada a rever todo o seu cristianismo com as mensagens de seu esposo: “Bom, se isso é cristianismo, eu realmente ndo conhe¢o nada sobre ele”. Apés oito meses como pastor leigo da igreja, veio a indicacao para a ordenagdo sem que fosse necessario seu envio para uma instituigao de ensino teoldgico. E de fato, no seu caso especifico, de modo contrario a 37 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, p.142. Minha tradugdo. 38 LLOYD-JONES, Pregacao e pregadores, p. 14, 39 Ibid., 166. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 49 muitos que precisam de treinamento formal, ndo foi necessario que ele sentasse num banco de seminario. A urgéncia do momento, suas singulares capacidades intelectuais, sua graga para pregar ¢ a formagdo académica em medicina, que Ihe deu subsidios para um preparo autodidata em teologia, tornaram a decisdo de envid-lo para uma instituigao de ensino teoldgico desnecessaria. As respostas dadas em seu exame de ordenagdo levaram a congrega¢ao as lagrimas e ao louvor, tamanha a sinceridade e convicgao das suas palavras: Quando Ihe foi pedido que desse uma palavra sobre sua experiéncia, sua resposta foi téo apaixonada que o decoro da ocasiao foi abalado por um irmao gritando até reverberar no prédio: “Louvem a Ele!” e a congregagdo caindo em lagrimas.” No inicio da década de trinta, seu ministério comegava a se estender para além do 4mbito da igreja local e sua igreja vivia um periodo de consciente presenga de Deus. O que salta aos olhos de qualquer observador € 0 fato dessa consciéncia da presenga de Deus dar-se num contexto em que MLJ evitava com toda a forga 0 emocionalismo tao caracteristico dos seus dias e enfatizava a busca solene, sem barulho ¢ interrupgées, da presenga de Deus. Em meio a cultos solenes e exposi¢&o biblica pura, a igreja crescia com pessoas chegando com uma hora de antecedéncia para o culto da noite. As seis horas 0 auditério ja estava repleto, embora 0 culto comegasse meia hora mais tarde. Porém, o mais impressionante para os que testemunharam aqueles anos iniciais em Aberavon foram os relatos de conversdo de pessoas aparentemente incorrigiveis. E importante destacar que as pessoas que se aproximavam da igreja vinham de todas as camadas sociais da cidade, confirmando sua conviccdo de que, quando o Espirito 40 BRENCHER, Martyn Lloyd-Jones (1899-1981) and twentieth-century evangelicalism, p. 15. Minha tradugdo. 50 As dimens6es da espiritualidade reformada Santo esta de fato operando numa igreja, todas as espécies de pessoas sao afetadas."' O tipo de cristo que estava surgindo como resultado do trabalho de MLJ também chamava a aten¢o de muitos. Eram pessoas que conseguiam permanecer duas horas num culto e que pareciam nao ter mais gosto para nada, a nao ser os encontros cristdos. Isso traz 4 memoria a transformagao andloga ocorrida entre os indios aos quais 0 conhecido missionario americano David Brainerd (1718-1747) anunciara o evangelho: “Os ingleses piedosos, com os quais pude dialogar em bom numero, pareceram revigorados ao contemplar os indios adorando a Deus daquela maneira devota e solene, junto com a assembléia dos crentes”.? Uma preocupacao com os campos missionarios surgiu no coragdo da igreja e, apesar da Depressao,* comegaram a ser levantados fundos para o trabalho das miss6es estrangeiras. Em 1933, ja se podia perceber a crescente influéncia do ministério de MLJ sobre estudantes e ministros. Multiddes de igual modo se comprimiam para ouvi-lo. Houve uma ocasidéo em que algumas pessoas que nao puderam entrar em certa igreja para ouvir sua mensagem pediram para quebrar a janela da igreja com a promessa de pagar depois, a fim de que pudessem ouvir sua pregagdo.* Atengdo a sua mensagem comegava a ser dada por evangélicos que viviam fora do Pais de Gales. A pregacao biblica, franca, clara, sem afetagao, com intensidade de conviccdo, em meio a uma personalidade dominante, levava as pessoas a ouvi-lo por uma hora 41 Ibid, 226. 42 EDWARDS, Jonathan, A vida de David Brainerd. Sao José dos Campos: Editora Fiel, 1993. p. 126 43 Longo periodo de contracdo da economia americana que gerou perda significativa de poder aquisitivo, faléncias € desemprego. A Grande Depressdo norte-americana comegou em 1929 ¢ du- rou cerca de dez anos. Sua pior fase foi de 1929 a 1933, quando o Produto Nacional Bruto dos EUA caiu 30% e 0 pais perdeu tudo o que havia ganho durante toda a década de 20, Essa crise teve efeitos em grande parte do mundo. 44 Ibid, 308. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 51 sem se distrairem. Afirma-se, devido 4 sua influéncia, que Martyn Lloyd- Jones teve uma responsabilidade direta pela nao entrada do comunismo no Sul de Gales. Iniciavam-se de igual modo suas primeiras lutas com o ambiente religioso do seu tempo. Deum lado, teve que combater as supostas experiéncias espirituais vazias de contetdo e, do outro lado, a influéncia danosa dos ensinamentos do tedlogo suigo Karl Barth (1886-1968). Martyn Lloyd- Jones, nessa época, ja estava se tornando um pregador que haveria de corrigir tendéncias deletérias para a causa do cristianismo vindas dos mais diferentes segmentos da igreja. Muitas vezes, teve que pregar mensagens que ao mesmo tempo enfatizavam pontos bastante diferentes da fé crista, a fim de corrigir erros que vinham de lados opostos, como por exemplo, 0 emocionalismo sem contetido de um lado e a ortodoxia sem emogaio de outro. No ano de 1935, ocorreu um fato sumamente decisivo para sua vida, 0 encontro com o Dr. Campbell Morgan (1863-1945), que em seguida o convidaria para pregar na Capela de Westminster e posteriormente para ser seu pastor assistente. Em 1937, MLJ chegou a conclusao de que o seu ministério em Aberavon estava prestes a se findar. No dia primeiro de maio de 1938, iniciou os contatos em Londres com o Dr. Campbell Morgan a respeito da sua ida para a Capela de Westminster. Logo, MLJ anunciou sua saida da igreja para julho. No dia 27 de maio, veio o telegrama de Londres dando-lhe conta da decisao da capela de Westminster de recebé-lo como pastor. A resposta foi dada por MLJ no mesmo dia. E assim foi para Londres, onde, logo apés um breve periodo de experiéncia, aceitou em definitivo o convite para trabalhar como pastor assistente do Dr. Campbell Morgan. Aqui se conclui a fase de sua vida que o preparou para 0 exercicio de seu ministério em Londres, que se tornaria conhecido por pessoas de todo o mundo. Foram os dias dos humildes comegos, em que sua teologia foi forjada, sua forma de pregar aprimorada e seu discernimento sobre 52. As dimensdes da espiritualidade reformada os desafios de sua época clarificado. Numa carta enderegada ao grande amigo, o Sr. E. T. Rees, MLJ resume os seus sentimentos em relagdo aos anos iniciais de ministério em Aberavon: “Ainda me parece totalmente impossivel dar-me conta de que no sou mais ministro em Sandfields, Aberavon... 0 que o futuro nos reserva ndo sabemos, mas nao ha a minima possibilidade de que seja mais feliz do que nos anos recém-passados”.*° 2.1.3. DA CAPELA DE WESTMINSTER A FASE FINAL DA VIDA O primeiro culto de Martyn Lloyd-Jones na Westminster Chapel realizou-se em setembro de 1938. Sua mensagem puramente evangélica, chamando os presentes ao arrependimento, prendeu a atenc&o de todos. Porém, o trabalho que tinha pela frente haveria de ser arduo. Isso por causa de certas caracteristicas da igreja. Apesar de manter uma freqiiéncia média de 1500 a 1800 pessoas, seu namero de membros era comparativamente pequeno. Quando o Dr. Morgan foi chamado para estar a frente do trabalho da igreja em 1935, houve apenas 311 pessoas presentes a reuniao convocada para tratar de sua vinda. “* MLJ logo perceberia a auséncia da comunhao calorosa experimentada em Aberavon. Percebia-se a falta de compromisso com a igreja por parte de muitos que freqiientavam os cultos dominicais. Sua auséncia era sentida nos trabalhos de meio de semana da igreja, em especial nos encontros de oragdo. MLJ confessou na época que se sentia muito so e admirava-se de encontrar tanta gente espiritualmente fria. Nao tardou que ele comegasse reunides de orag4o na igreja e agendasse para todas as sextas-feiras encontros de comunhdo e discussao na parte da noite. Tain Murray confessa sua surpresa pelo nivel de harmonia que havia entre o Dr. Campbell Morgan e MLJ. Eles eram pessoas diferentes tanto no 45 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: Cartas 1919-1981, p. 4S. 46 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, p. 363. Minha tradugio, Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 53 pulpito quanto no campo teoldgico: “Morgan, embora evangélico em sua lealdade a Biblia, tinha uma estrutura doutrindria pouco precisa para seu pensamento, que era arminiano em suas afinidades”.”” Warren W. Wiersbe concorda amplamente com Murray: Ele [Campbell Morgan] foi basicamente um pregador dos quatro evangelhos, mas nunca expés, verso por verso, as grandes epistolas doutrindrias, Romanos, Efésios e Hebreus. “Ele as deixou para mim”, Lloyd-Jones falou-me um dia, “e eu estou feliz por ele ter feito assim”. Penso que uma razio pela qual Morgan evitou essas cartas é que ele foi basicamente um pregador devocional, naio um pregador doutrinario.** O periodo inicial em Londres representou o contato com movimentos evangélicos nao denominacionais que eram feitos em meio as suas constantes viagens. Em 1939, foi eleito presidente da InterVarsity Fellowship. Mas um periodo de grandes provas se seguiu 4 sua chegada a Londres. No dia 3 de setembro de 1939, as onze horas da manha, o Dr. Campbell Morgan subia ao pulpito para anunciar que, devido ao temor de haver um bombardeio por parte dos alemaes, todos os cultos do dia estavam cancelados. Chegava a Segunda Guerra Mundial. O panorama da cidade foi completamente alterado. A noite, todas as luzes de Londres permaneciam apagadas por causa dos ataques da forga aérea alema. Churchill se dirigia aos cidadaos londrinos preparando-os para a completa demoligao da cidade. O Bispo de Londres reportou que somente em sua diocese 32 igrejas tinham sido completamente destruidas e 47 seriamente avariadas. Por volta de margo de 1941, muitas das igrejas historicas de Londres haviam desaparecido. Entre elas, o Spurgeon’s Tabernacle ¢ 0 47 Ibid., 368. 48 WIERSBE, Warren W. Living with the giants. Grand Rapids: Baker, 1994. p. 187. Minha tradugao. 54 As dimens6es da espiritualidade reformada City Temple. MLJ confessa que naqueles dias uma firme certeza chegara de algum modo ao seu coracao, a de que a Capela de Westminster no seria destruida, o que de fato se cumpriu. O Dr. Morgan, naquele tempo, estava certo da destruigao completa da Capela de Westminster, por forga da sua proximidade com 0 Palacio de Buckingham: E claro que é quase certo que seremos bombardeados e destruidos completamente. Estamos tao perto do Palacio de Buckingham, e provavelmente é s6 uma questio de dias até que este edificio seja demolido completamente, e eu ¢ vocé vamos ficar sem trabalho e sem pastorado.” Porém, de algum modo, Martyn Lloyd-Jones fora levado a uma convic¢ao contraria: Mais uma vez, uma dessas coisas extraordinarias aconteceu. N§o sou daqueles que recebem os chamados avisos télepaticos ou que tém premoni¢ées ou pressentimentos — nao sou vidente. Nao sou desse tipo de gente, mas quando o Dr. Morgan me disse aquilo, pude responder-lhe com total confianga. Eu disse: “Esta capela no sera bombardeada”. Ele disse: “Vocé esta muito seguro disso, no est4?” Respondi: “Estou absolutamente seguro”. Ele perguntou: “Como sabe disso?” “Bem”, respondi, “nao posso explicar-lhe isso, mas recebi um aviso de que esta capela no vai ser destruida”.*? Certo dia, enquanto orava no culto dominical da manha, uma bomba V1 veio de encontro a Londres. Seu barulho, lembra Lloyd-Jones, cresceu de tal modo que chegou a ponto de ele nao ouvir mais a sua propria oragao. Quando houve a explosdo de fato, a estrutura da capela rachou 49 LLOYD-JONES, Martyn, Discernindo os tempos. Sio Paulo: PES, 1994. p. 255. 50 Ibid., 255. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 55 audivelmente e pedagos do teto e poeira cairam do telhado. O que chamou a atencao dos presentes é que, depois de uma pequena pausa, Lloyd-Jones continuou sua oragdo, vindo a se sentar apenas apdés o término da mesma: “Sua filha Elizabeth recorda que ele nao apenas se manteve absolutamente calmo, mas, aps alguns poucos minutos de pausa, quando o barulho tinha sido ensurdecedor, ele retomou sua oragao!”*! As finangas da igreja cairam muito nessa época. A freqiiéncia ficou seriamente reduzida, variando entre 100 e 200 pessoas. Certo dia, ao ligar para o Dr. Campbell Morgan, MLJ o sentiu muito depressivo, sentindo que chegara a hora de deixar a igreja, a fim de que esta pudesse manter seu recém-chegado jovem pastor. E se quando da chegada de MLJ o Dr. Campbell Morgan monopolizava o pulpito, agora o deixava inteiramente nas maos de MLJ, chegando, em certas ocasiées, a desistir no exato instante de ir pregar. Brencher afirma que o proprio MLJ reconheceu que os anos iniciais na Westminster Chapel nao foram faceis: “Quando MLJ foi para a Westminster Chapel, em 1939, tal era a estima que cercava Morgan, que Lloyd-Jones e sua abordagem dos trabalhos da igreja nado foram bem recebidos: ‘Em meus dois primeiros anos, atravessei 0 inferno””.* Martyn Lloyd-Jones soube usar muito bem os anos de dificuldades da guerra para chamar o povo inglés ao arrependimento: “Sob a bén¢ao da paz desde a tltima guerra, homens e mulheres, em numero crescente e constante, se esqueceram de Deus e da religido, e estabeleceram como desejo uma vida essencialmente materialista e pecaminosa”.** Ele chegou ao ponto de afirmar que as pessoas nao mereciam a paz, pois nela viviam uma vida que insultava a Deus.™ Ele percebera que o cristianismo sem 51 CATHERWOOD, Martyn Lloyd-Jones: a family portrait, p. 62. Minha tradugio. 52 BRENCHER, Martyn Lloyd-Jones (1899-1981) and twentieth-century evangelicalism, p. 67. Minha tradugao, 53 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 25. Minha tradugio. 54 Ibid., 26. 56 As dimens6es da espiritualidade reformada doutrina, sem poder e focado no lado emocional da religiao nao preparara as pessoas para 0 momento dificil que atravessavam. MLJ se esforgava para que as pessoas nao apenas aprendessem a tirar conforto das Escrituras, mas pensassem teologicamente: O primeiro oficio da igreja com respeito aos crentes é ensinar as doutrinas da fé, ¢ néo meramente tentar entusiasmar ou confortar em geral... a incapacidade de compreender que isso € assim certamente explica grande parte da infelicidade na vida de pessoas cristas, e também grande parte do senso de desapontamento que elas sentem quando certas experiéncias desagradaveis desabam sobre seu destino.** Essa era a tinica forma de estarem preparadas para a vida: “Eu apelo, em outras palavras, para um reavivamento do estudo da teologia... No é suficiente cultivar uma vida devocional”.** Sua pregagdo doutrindria € expositiva come¢ou a dar resultado, com novas pessoas comegando a freqiientar a igreja. Um bom numero de gente das forgas armadas comegava a participar dos cultos: “Outra grande lembranga do periodo da guerra foram as centenas de visitantes das forgas aliadas. Havia uniformes de todos os formatos e cores e um sentimento de grande calor de pertencer a irmaos e irmas cristéos de outros paises”.°’ E enquanto se mantinha fielmente no pulpito aos domingos, usava 0 meio de semana para pregar em varios outros lugares. Em julho de 1943, o Dr. Campbell Morgan anunciava sua saida do trabalho pastoral da Westminster Chapel. MLJ teve que enfrentar a recusa de certos membros de ouvir sua mensagem todos os domingos 55 LLOYD-JONES, D. Martyn. Why does God allow war? Wheaton: Crossway Books, 2003. p. 112. Minha tradugao. 56 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 30. Minha tradugao, 57 CATHERWOOD, Martyn Lloyd-Jones: A family portrait, p. 63. Minha tradugao. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 57 a partir de entdo. Na época, ja havia gente que s6 participava do culto para ouvir seu antigo pastor. Morgan veio a falecer no dia 16 de maio de 1945. MLI veio a fazer 0 seguinte comentario sobre a vida do ministro que foi to fundamental para o futuro do seu ministério: “Nés diferimos teologicamente, mas nunca discutimos por isso; nds acreditamos na mesma autoridade final desse livro. Se um de nds foi um pouco mais calvinista em sua pregacao, o outro foi sempre calvinista em sua oragdo”.** Os anos continuavam extremamente dificeis. Houve ocasides em que MLJ precisou consolar pessoas que perderam parentes na guerra, como € 0 caso da carta de 22 de janeiro de 1942 que enviou para uma vita: “... tenho certeza de que calma e deliberadamente ele sacrificou sua vida pela liberdade, pela verdade ¢ pela honra contra a odiosa tirania do nazismo”.°? Entre junho e agosto de 1944, oito mil bombas aéreas foram langadas contra Londres. Em 31 de julho de 1944, 0 mesmo tipo de bomba matou 4735 pessoas na cidade, e destruiu 17000 casas. Em 1945, quando a Segunda Guerra Mundial terminou, o saldo para a vida da igreja foi a perda da grande maioria dos membros, sendo o remanescente do periodo pés-guerra pessoas de meia-idade e idosas. Porém, gradativamente, a igreja voltava a crescer. Numa carta de 21 de maio de 1943, MLJ comenta: “Os pesados bombardeios de 1940-41 dispersaram os membros da nossa igreja, que até entao, vinham se mantendo bem. De fato, estamos melhorando e aumentando aos poucos, atualmente”.© Martyn Lloyd-Jones insistia em exposig6es de livros da Biblia inteiros. No final dos anos quarenta, a presenga de Deus era profundamente sentida na igreja. A igreja se enchia de estudantes e jovens promissores, entre eles J. I. Packer, que em 1948 ouvia as exposigdes biblicas que, segundo seu relato pessoal, o ajudaram a saber 0 que é pregagao."! 58 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 133. Minha tradugao. 59 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: Cartas 1919-1981, p. 118. 60 Ibid., 122. 61 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 188. Minha tradugdo. 58 As dimens6es da espiritualidade reformada Chegavam os anos 50 e com eles a Capela de Westminster alcangou o numero de participantes nos cultos dominicais que se manteve até o fim do ministério de Martyn Lloyd-Jones. Centenas de pessoas convergiam de todas as direges para ouvir o pregador galés. A igreja recebia muitos visitantes, ¢ os que se faziam presentes nas reunides dominicais eram sempre em maior numero do que os membros da igreja. Os cultos eram muito simples e parecidos. Poucos hinos e avisos. Nao se aceitava que pessoas respondessem ou expressassem palavras de aprovacao audivelmente durante a mensagem. Nenhuma saudag4o a qualquer celebridade presente. Um ambiente de muita solenidade e reveréncia e marcado por um senso de transcendéncia bastante forte. Seus pontos altos eram as oragdes de MLJ, que duravam as vezes quinze minutos (houve muitos relatos de pessoas que se disseram socorridas por Deus quando MLJ orava), e sua exposigao das Escrituras, que em geral durava 40 minutos, sempre seguida por oragdo e um hino cuidadosamente escolhido para a ocasiado. Claramente a igreja se dirigia na diregao contraria do que ocorria em muitas igrejas da época, que se mantinham preocupadas em agradar o visitante ¢ ter cultos agradaveis, com muita musica, sem pregac4o expositiva e doutrindria. No dia 25 de fevereiro de 1968, Martyn Lloyd-Jones ocupava pela Ultima vez o pulpito da Capela de Westminster. Ao ter que se submeter a uma cirurgia proveniente de um quadro de cancer, julgara que havia chegado © momento de deixar a igreja. Nessa época, percebera a importancia do pregador nao depender do pulpito para viver. Nenhum ministro deve depender do pulpito para viver, mas de Cristo. No dia 29 de maio do mesmo ano, ele haveria de comunicar sua deciséo aos membros da Capela de Westminster. Na carta datada de 30 de maio de 1968, enderegada aos membros da Capela de Westminster, Martyn Lloyd-Jones diz: Completei 30 anos de ininterrupto pastorado em Westminster, ao qual dei os melhores anos de minha vida. Significa que recusei convites de varias partes do mundo para lecionar em Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 59 escolas e seminarios e para falar em conferéncias de ministros etc. Nao posso imaginar uma condigdo ministerial mais feliz do que a minha. Nenhum pastor poderia querer ter um povo mais fiel ¢ leal... lembro-me dos casamentos, dos nascimentos, dos falecimentos, até dos bombardeios na guerra, a reconstrugéo dos edificios, e de muitas outras coisas que enfrentamos juntos; porém, acima de tudo, guardarei como um tesouro 0 privilégio de ministrar aos que tinham problemas graves e de varios tipos, e de gozar da confianga e do crédito dos que passaram por tenebrosas e fundas Aguas. © Isto ndo significava o fim de seu trabalho, mas um redirecionamento. Martyn Lloyd-Jones haveria de dar continuidade ao seu trabalho de pregacdo, socorrer jovens vocacionados para o ministério e fazer 0 que provavelmente foi a parte mais importante dessa fase de sua vida, a publicagAo dos seus livros, que seria supervisionada por ele. Nesse periodo, ele continuaria também presidindo as reunides com as quais durante tanto tempo esteve associado: a Livraria Evangélica,” a Westminster Fellowship, a Conferéncia Puritana e as conferéncias do Movimento Evangélico de Gales. O ano de 1979 representou o fim do seu ministério publico. Em 1976, MLJ retirara a prdstata e agora, em 1979, o cancer reincidira. A noite de 7 de novembro do ano supramencionado foi a Ultima vez que MLJ pregou na Capela de Westminster. Iain Murray relata que no dia 23 de novembro estivera com ele e 0 sentira mais quieto do que jamais vira anteriormente. Conforme a morte se aproximava, seu coragdo permanecia inabalavel e crescia sua convic¢do de que na hora da morte dos crentes 62 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: Cartas 1919-1981, p. 261. 63 Essa livraria de Londres foi criada com o propésito de divulgar a literatura calvinista e puri- tana. 60 As dimens6es da espiritualidade reformada Os anjos vém ao seu encontro para levd-los ao céu: “Eu acredito nesse ministério dos anjos, e penso mais e mais nele”. Ele comentava: “As pessoas me dizem que deve ser muito triste nao poder pregar, nao! De modo algum! Eu nao vivia da minha pregagdo”.® No balango final de sua vida, MLJ reconheceu que uma série de acontecimentos de sua historia nao saiu como imaginara. Ele nunca concebera a possibilidade de seu ministério ter tamanha amplitude. Em janeiro de 1981, MLJ disse as seguintes palavras para Tain Murray: “Quando vocé chega onde eu estou, ha apenas uma coisa importante, que é sua relagao com Ele e seu conhecimento dEle”®*. Com muita emocao e a voz embargada afirmou: “Deus é muito paciente conosco e muito bom e tolera nosso comportamento mau, tal como fez com o povo de Israel... O amor de Deus!””” Numa noite de quinta-feira, no dia 26 de fevereiro, com a mao trémula, escreveu num pedago de papel para sua esposa Bethan e familia a seguinte suplica: “Nao orem pela cura. Nao me detenham da gloria”. No dia 28 de fevereiro de 1981, morria Martyn Lloyd-Jones. 2.2. CARACTERISTICAS PESSOAIS 2.2.1. SUA FORMACAO TEOLOGICA Falar da formacao teolégica de MLJ ¢ falar sobre 0 ministério de um pastor que nao passou por um semindrio, embora tivesse formagao académica, e que, portanto, nao recebeu treinamento teolégico formal 64 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 738. Minha tradugao. 65 Ibid., 739. 66 Ibid., 744. Minha tradugao. 67 Ibid, 744, Minha tradugao. 68 Ibid., 747. Minha tradugio, Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 61 algum. Nota-se também em sua biografia e no restante de sua obra que Martyn Lloyd-Jones nao teve nenhum mentor. Nao ha registro em sua vida de alguém que o aconselhasse regularmente, ou de uma igreja sdlida que 0 tenha ajudado amplamente anos a fio no seu desenvolvimento pessoal. No ambiente familiar, nio vemos uma grande influéncia da mae na sua formagao espiritual, como ocorreu, por exemplo, no caso de Agostinho em sua relagao com sua mae, Monica. Ele nao era filho de pastor, como Jonathan Edwards. Como Martyn Lloyd-Jones veio a tornar-se um renomado expositor biblico calvinista? E o que foi fundamental para sua formacao como pastor e pregador? Antes de tudo, deve-se mencionar o fato de que Martyn Lloyd- Jones nasceu com talentos naturais que muito colaboraram para que viesse a ter tamanha amplitude de conhecimento e mensagem. E fato que parte do que um homem é¢ relaciona-se aquilo que lhe veio por nascimento e sem esforgo. Mas, ¢ dbvio que isso nao basta. No caso de Martyn Lloyd- Jones, nota-se que, além dos talentos naturais, seus estudos de medicina o ajudaram de modo significativo. A medicina certamente, entre tantas outras coisas, lhe proporcionou dois ganhos especiais: em primeiro lugar, seus estudos no Saint Bartholomew Hospital deram-lhe o preparo académico necessario, que supriu a lacuna que possivelmente haveria por nao ter estudado teologia. Certamente isso 0 ajudou imensamente em seus estudos particulares. Em segundo lugar, criou em Martyn Lloyd-Jones uma mentalidade que o ajudou na forma como lidava tanto como os problemas teolégicos quanto com os problemas da vida. Em muitas ocasides 0 vemos falando sobre procurar sempre tratar das causas e nunca dos sintomas das enfermidades. E, em tantas outras, sobre o dever de partir sempre do geral para o particular ao lidar com qualquer questao dificil. Em sua opiniao, grandes problemas sao resolvidos quando tratamos de vé-los 4 luz do que sabemos que é certo e indubitavel, partindo assim para a andlise do particular: 62 As dimens6es da espiritualidade reformada Quando vocé estiver enfrentando ou tentando resolver um problema dificil, é sempre bom e sdbio comegar com alguma coisa da qual vocé jé esteja absolutamente certo. Quando tiver que explicar algo desconhecido, parta de algo conhecido. Se vocé se envolver numa argumentago complexa, com pormenores dificeis, pergunte a si proprio: “Pois bem, haveria algum grande princfpio acerca do qual eu esteja absolutamente certo e que se relacione com esses pormenores?” Se houver, expresse-o ¢ estabelega-o.” Pode-se destacar também a série de acontecimentos de sua vida que o despertou para uma consideragao mais profunda sobre a condigao humana. O incéndio de sua casa quando menino, as mortes do pai e do irmao mais velho, o sofrimento de pacientes no hospital e a decepgao com a intelectualizada e rica sociedade de Londres 0 convenceram de que somente o evangelho pode oferecer cura e esperanga para o homem: O que o mundo precisa nfo é conhecimento; nao sao ensinamentos; nao é informago; nao é tratamento médico; nao é psicoterapia; no é progresso social; nem mesmo puni¢ao. Ndo é nenhuma dessas coisas. O que homens e mulheres precisam é de um cora¢io novo, uma nova natureza, uma natureza que odiara as trevas e amara a luz, em vez de amar as trevas e odiar a luz. Eles precisam de uma renovagtio completa e, bendito seja o nome do Senhor, ¢ justamente isso que Deus oferece por meio de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.” Um outro elemento de sua historia, que lhe abriu grandes portas intelectuais e espirituais, foi a heranga que recebeu do metodismo calvinista. 69 LLOYD-JONES, Martyn. Romanos: 0 justo juizo de Deus. Sao Paulo: PES, 1989. p. 231. 70 LLOYD-JONES, Martyn. O caminho de Deus ndo 0 nosso. Sio Paulo: PES, 2003. p. 82. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 63 Como para muitos soa contraditério falar em “metodismo calvinista”, pelo fato de o metodismo ser reconhecidamente de linha teolégica arminiana, vale a pena destacar o fato, como lembra MLJ, de que o metodismo “nao é primordialmente uma posicao teolégica, nem mesmo uma atitude teologica. O metodismo nao foi um movimento destinado a reformar a teologia. Nada disso... 0 metodismo é essencialmente experimental, ou religido experimental e um modo de viver”.”! E o que muitos nao sabem é que havia metodistas calvinistas, homens que tinham as preocupacdes metodistas relacionadas a santidade de vida e enchimento do Espirito Santo, mas que adotavam a fé calvinista. E no caso da sua terra natal, Gales, o metodismo era totalmente calvinista: A principio cram todos um — na Inglaterra ¢ em Gales — quando finalmente se encontraram e se uniram. Havia um so metodismo... mas depois... houve uma cisio ¢ o metodismo se dividiu em dois grupos, calvinista e arminiano, Em Gales cram todos calvinistas. Na Inglaterra nao.” Nota-se que Martyn Lloyd-Jones foi um pregador da mente e do coragao. E isto, sem divida, deveu-se a esse legado espiritual. Dessa influéncia surgiu todo o seu interesse pela teologia reformada e um cristianismo experimental que determinou o curso completo de sua vida e pregacdo: Passemos agora a examinar as caracteristicas do metodismo calvinista galés. Sdo muito claras. Primeiro e acima de tudo havia a grande pregacao. Essa era a caracteristica proeminente. Sou dos que acreditam que o calvinismo sempre ha de levar a uma grande pregacao; e quando nao o faz, questiono a 71 LLOYD-JONES, Martyn. Os puritanos, suas origens e seus sucessores. So Paulo: PES, 1993, p. 206, 72 Ibid., 205. 64 As dimens6es da espiritualidade reformada genuinidade desse calvinismo. Nao se pode ter uma grande pregagdo sem um grande tema; ¢ eles tinham aquele grande tema, e dai temos aquela grande pregacao por todo 0 pais... 0 calvinismo sem o metodismo tende a levar ao intelectualismo e a0 escolasticismo, essa é a sua tentagao peculiar. O resultado & que os homens falam mais da “verdade que sustentamos” do que da “verdade que nos sustenta”.”’ Martyn Lloyd-Jones foi um calvinista convicto, e uma andlise dos autores e obras reformados que o influenciaram é fundamental para que se entenda o curso do seu ministério. Em 1913, chegara-lhe 4s maos um pequeno livro sobre 0 ministério de Howell Harris, uma das principais figuras do avivamento galés do século XVIII. Essa foi sua primeira leitura sobre ahistdria do metodismo calvinista. Depois, lendoum jornal, encontrou anuncios de literatura sobre o puritanismo inglés. Entre elas, a autobiografia de Richard Baxter. Isto o levou a ler A Vida de Richard Baxter, escrita por F. J. Powicke. Baxter o afetou profundamente, e de modo imediato surgiu uma grande afinidade com os puritanos. O puritanismo veio a ser a vertente do calvinismo que viria a governar todo o seu ministério: O meu real interesse surgiu em 1925, quando, de um modo que nao necessito explicar agora, sucedeu que eu li uma nova biografia de Richard Baxter, recém-publicada na época. Eu tinha lido uma resenha dessa obra no entio British Weekly (Semanario Britanico), e tao atraido me senti, que a comprei. Desde aquele tempo, um verdadeiro e vivo interesse pelos puritanos e suas obras me prendeu, e sou franco em confessar que todo 0 meu ministério tem sido governado por isso.” 74 Ibid., 247. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 65 Nos puritanos, MLJ encontrou um cristianismo integral. Eram crentes que levavam a vida a sério, que dedicavam todo 0 seu tempo e atengao a vida crista: “O interesse principal do puritano é por uma igreja pura, uma igreja verdadeiramente Reformada”.”’ Porém esse puritanismo, que revela de modo singular o cristianismo, haveria de ser encontrado sobretudo nos livros que falam sobre a vida de grandes personagens da sua historia. Martyn Lloyd-Jones tinha um auténtico interesse por biografias de homens santos do passado e nelas encontrava cristéos verdadeiros, especialmente calvinistas, aplicando a teologia a vida. Apés Baxter, em 1925, seguiu-se a leitura de puritanos do século XVII, como R. D. Dickinson. John Owen o agradava muito. Uma das conhecidas obras de Baxter, Christian Directory, era tida em alta estima por ele. Nesse inicio de ministério, MLJ lia com especial interesse biografias e histéria da igreja. O diario de John Wesley 0 ajudou de modo significativo no inicio do seu trabalho cristao. Para MLJ, 0 século XVIII era um verdadeiro t6nico espiritual: ..outra coisa muito boa que ha para fazermos é ler sobre os avivamentos. Esse é combustivel de que 0 fogo gosta. Leiam sobre a vida dos santos; leiam sobre a vida dos grandes pregadores que pregaram nos avivamentos. Acaso vocés nao verificaram que ndo hé nada que atice tanto a chama do Espirito dentro de vocés como ler sobre homens cheios do Espirito e utilizados por Deus no passado? Eu sempre tenho dito isso, e © digo agora com maior senso de urgéncia que nunca: depois da Biblia, ndo ha nada que seja mais proveitoso, mais estimulante, mais revigorante, do que ler tais narrativas. © mais excelente ténico que eu conhego, melhor do que qualquer mudanga de cenario ou de clima, é 0 século XVIII. Quando fico cansado ou desanimado e com preguiga, até hoje 75 Ibid., 267. 66 As dimens6es da espiritualidade reformada nunca li alguma coisa sobre Whitefield, os Wesley e Jonathan Edwards que nao me deixasse imediatamente restaurado e com a chama reavivada.”* No final da década de vinte, MLJ chegou a conclusao de que deveria rever alguns aspectos dos seus sermdes calvinistas. Muita énfase era dada, no inicio de suas pregacées, a doutrina da regeneragao. Em suas mensagens, o homem era apresentado como incapaz de se salvar e absolutamente dependente do poder exterior ¢ soberano de Deus. Isto durou até o dia em que um ministro metodista calvinista o admoestou revelando-lhe que na pregagao de MLJ nao era enfatizada a responsabilidade do homem de crer em Cristo para a justificac¢do, nem mostrava com clareza suficiente como a justificagdo flui da aceitacao da morte propiciatéria de Cristo. Isso o levou a Se interessar mais por teologia. E assim, MLJ, auxiliado por um ministro congregacional, Vernon Lewis, a quem procurava em busca de indicagdes literérias, veio a conhecer os congregacionais P. T. Forsyth, R. W. Dale e€ 0 presbiteriano escocés James Denney, autor de The Death of Christ (1903). O livro de Forsyth, “The Cruciality of the Cross” (1909), prestou- lhe, naqueles dias, grande ajuda.” Um capitulo desta pesquisa seria digno de ser dedicado ao seu interesse por Jonathan Edwards (1703-1758). Certamente ninguém estava acima do conhecido pastor congregacional de Northampton: “Sua infiuéncia sobre mim nao posso expressar com palavras”.” Impressionava-o a extraordinaria capacidade intelectual de Edwards associada as experiéncias incomuns com Deus e 0 poder do Espirito Santo: Vou dar a minha opinido de que o elemento do Espirito Santo é mais proeminente em Edwards do que em qualquer outro 76 LLOYD-JONES, Martyn, Romanos: 0 comportamento cristdo. Sao Paulo: PES, 2003. p. 449-450, 77 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, p. 191. Minha tradugao. 78 LLOYD-JONES, Os puritanos, suas origens e seus sucessores, p. 358. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 67 puritano... Jonathan Edwards é 0 maior fildsofo da América... Em Edwards 0 puritanismo alcangou seu dpice: Aventuro-mea asseverar que em Edwards chegamos ao zénite ou ao Apice do puritanismo, pois nele temos 0 que vemos em todos os outros, mas, em acréscimo, este espirito, esta vida, esta vitalidade adicional. Nao que nos outros houvesse completa falta disso, porém é uma caracterfstica tdo saliente que eu afirmo que 0 puritanismo chegou 4 sua mais completa florescéncia na vida e ministério de Jonathan Edwards.” MLJ diz que assim que conheceu os dois volumes das obras completas de Edwards os devorou. Em sua opiniao, nada o ajudou mais do que a leitura de Jonathan Edwards.” A obra do bispo de Oxford, Kenneth E. Kirk, The Vision of God, lida nessa época inicial de seu ministério, era considerada por MLJ como um dos maiores livros que péde ler. Tal como o de Norman Powell Williams, que foi professor de teologia em Oxford, The Ideas of the Fall and of Original Sin, considerado por MLJ como 0 livro mais brilhante que leu do ponto de vista do estilo. A leitura do livro de Luke Tyerman, Life and Times of George Whitefield, foi feita reconhecidamente com grande prazer: “Quando li Whitefield, senti que nunca havia realmente pregado em minha vida”.*! O reconhecido tedlogo de Princeton, B. B. Warfield, também foi fundamental para a vida de MLJ: “indubitavelmente [na opiniao de MLJ] o maior tedlogo dos ultimos setenta anos no mundo de fala inglesa”.** Impressionava-o a exegese precisa, a teologia ancorada na Escritura e a 79 Ibid., 356-357. 80 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, p. 254, Minha tradugo. 81 Ibid., 130. 82 Ibid., 285. 68 As dimens6es da espiritualidade reformada devogao que elevava tudo acima do nivel académico apenas. Warfield deu a MLJ uma nova compreensao da necessidade de um ensino douttinario e demonstrou a superioridade do ensino reformado sobre todos os demais sistemas. Entre nomes de obras ¢ autores que muito o influenciaram e que se podem perceber em sua biografia, sermGes e palestras, devem-se mencionar: Joao Calvino (obviamente), J. C. Ryle, Charles Hodge, Cornelius Van Til (a quem muito admirava e viera a conhecer pessoalmente), W. Hendriksen (cujo livro More than Conquerors era considerado por MLJ a melhor obra escrita por um americano sobre o livro do Apocalipse), A. W. Pink (MLI reconhece que um dos seus sermées o ajudou a vencer uma grande batalha espiritual que enfrentara), Thomas Goodwin (a quem menciona freqiientemente quando fala sobre cristianismo experimental), John Flavel e Christmas Evans (outros dois muito citados em sermées sobre selo do Espirito), William Williams (como autor de hinos), Richard Sibbes, A. W. Tozer (MLJ o tinha como um profeta e, ao conhecé-lo pessoalmente, foi levado a dizer que suas obras literdrias nao faziam justiga a ele), Thomas Watson, Robert Haldane (MLJ 0 usou largamente em suas exposigdes de Romanos), Charles Spurgeon (a quem considerava um grande ténico espiritual), George Smeaton, Octavius Winslow, Jonathan Dickinson (a quem considerava estar muito proximo de Edwards), James Henley Thornwell (ele conta haver “devorado” com grande interesse os cinco volumes das obras completas de Thornwell) e Daniel Rowland. Houve livros, ja no final de sua vida, em 1980, que MLJ leu ¢ que certamente recomendaria para todos: a biografia de Philip Doddrige; The Essays and Letters of Thomas Charles; Archibald Grindal, escrito por Patrick Collinson; The Works of Walter Craddock, The Diary of Kenneth MacRae; Drunk Before Dawn, escrito por Shirley Lees; as cartas de Calvino e The Glory of Christ, de John Owen.” 83 Ibid., 741 Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 69 2.2.2, SUA PERSONALIDADE Martyn Lloyd-Jones deve ser visto acima de tudo como um pregador, calvinista-puritano e galés. Essas trés caracteristicas destacam- se sobre as demais, obviamente, com excegéo de suas caracteristicas de temperamento, dotes naturais (como o intelecto, por exemplo) e os pressupostos da medicina que marcaram muito seu ministério, conforme foi apresentado acima. O pilpito era seu lugar preferido: Pregar é a atividade mais admirdvel e emocionante na qual uma pessoa pode estar ocupada, por causa do que ela pode propiciar a todos nds no presente, ¢ por causa das gloriosas e infindas possibilidades que ela reserva para ndés no futuro eterno.* Sua semana girava em torno do preparo para o domingo. Somente no final de sua vida dedicou-se as suas obras literarias, porém téo-somente tratando das transcrigdes feitas de suas mensagens gravadas. Iain Murray acredita que MLJ seguiu o caminho de John Owen, que preferia abengoar sua geragdo com suas pregagdes a escrever livros para as geracdes futuras. No ministério de MLJ, a voz viva tinha prioridade sobre a palavra escrita.* Sem duvida, antes de ser calvinista, MLJ era cristo. Mas, se alguém viesse a lhe perguntar onde, em sua opiniao, o cristianismo havia se manifestado de forma mais bela ¢ fiel, ele nao hesitaria em dizer que no calvinismo. MLJ era um calvinista convicto. E um calvinista que se preocupava com a proclamagao de seu sistema doutrindrio, a manutengdo do seu espirito e a aplicagao pratica de suas grandes pressuposi¢des. Ao falar sobre as Institutas, 0 magnum opus de Calvino, MLJ afirma: E sem diivida sua obra prima. A verdade é que se pode dizer que nenhum outro livro teve tanta influéncia sobre o homem e 84 LLOYD-JONES, Pregagdo e pregadores, p. 71. 85 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, p. xi. Minha tradugao. 70 As dimensées da espiritualidade reformada sobre a histéria da civilizagao. Nao ¢ tampouco exagero dizer que foram as “Institutas” que salvaram a Reforma Protestante, pois elas constituem a “summa theologica” do protestantismo, ea mais clara declaragdio de fé que a fé evangélica ja teve.*° O que mais 0 deixava fascinado com Calvino? Ele responde: O aspecto principal de Calvino é que ele baseia tudo na Biblia... € nas “Institutas” que se obtém teologia biblica pela primeira vez, em vez de teologia dogmatica. Calvino nao arrazoa de modo indutivo, como os catélicos romanos, mas em vez disso, extrai conclusdes e elabora de maneira dedutiva aquilo que é ensinado na Biblia.*” Por fim, observam-se as caracteristicas galesas em stia vida como um todo. Gales era a terra que amava. A preocupagdo com defini¢des claras, raciocinio claro e ordenado, e a ampla abertura para a expressdo da emogao eram caracteristicas de sua terra natal que preservava. Esse certamente é um dos motivos pelos quais MLJ tanto procurou distinguir as mudangas necessdrias que devem ocorrer na vida de um verdadeiro convertido daquelas que nao devem necessariamente ocorrer. Entre essas caracteristicas, MLJ menciona as de temperamento e nacionalidade. Ele tinha extrema preocupagao com a eliminagao de tracos pessoais a ponto de o crente fazer violéncia contra si mesmo e a igreja se tornar uma comunidade de pessoas iguais: “... os crist&os nao sao todos iguais. Esta é uma proposi¢ao geral e um principio muito importante. E algo que nunca € dito a respeito de membros de uma seita, os quais sempre ouvem que sio iguais”.** Essa era uma defesa biblica da manutengdo de seu espirito 86 LLOYD-JONES, Martyn. Discernindo os tempos. Sao Paulo: PES, 1994, p. 45. 87 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 45. Minha tradugao. 88 LLOYD-JONES, Martyn. Romans: liberty and conscience. Carlisle: Banner of Truth, 2003. p. 10, Minha traduso, Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra a galés, com certeza. Observa-se a mesma énfase numa das suas exposigdes de Romanos: Se vocés encontrarem um grupo de crist&os que fazem todos a mesma coisa e da mesma maneira - quero dizer com isso que eles quase chegam a se parecer uns com os outros, andam igualmente, falam com o mesmo tipo de sotaque e empregam as mesmas frases - digo-lhes que vocés tém 0 direito de deduzir que nao estao olhando para a obra do Espirito Santo. Nao digo que eles nao sio cristdos, mas digo que ali se inseriu outra influéncia, adversa ao espirito de Cristo.” Martyn Lloyd-Jones nao era muito de rir, segundo afirmam seus contemporaneos. Observava-se, contudo, um sorriso sutil que habitava o fundo dos seus olhos. Ele nao se julgava alguém de grande forga fisica, mas de grande energia nervosa, assim dizia. A capacidade, por exemplo, de participar de eventos sem se desgastar emocionalmente demais. Em poucas ocasiées é possivel vé-lo em depressdo, como se nota na biografia de David Brainerd, por exemplo. Isso é interessante de se observar, pois MLJ sentia-se muito solitario em razio das suas preferéncias doutrinarias e das decis6es que tomou em fungdo das mesmas. Jain Murray diz que ele amava uma boa conversa, como todo celta. As viagens que teve que fazer com MLJ foram sempre sentidas como curtas por Murray.” Seu programa de televisdo favorito foi um chamado “Desert Island Discs”, no qual alguma figura publica bem conhecida era entrevistada e falava das suas cang6es prediletas. Mozart era seu compositor favorito. Bach de igual modo falava-lhe muito ao coragao. Ele também gostava de vozes bonitas, tais como as de Gigli e Maria Callas, embora tivesse Caruso como o melhor. Murray conta que certa vez, ouvindo Caruso, MLJ foi 89 LLOYD-JONES, Romanos: 0 comportamento cristdo, p. 216. 90 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 457. Minha traducao. 2 As dimensoes da espiritualidade reformada levado as lagrimas. Ele julgava que ouvir musica ajudava a preparar 0 espirito do pregador: Preciso dizer uma palavra sobre a musica. A musica nao ajuda a todo mundo, mas é de prestimoso auxilio para algumas pessoas; e, afortunadamente, sou uma delas... qualquer coisa que nos faga bem, que nos ponha em estado de espirito ou condigiio de boa qualidade, qualquer coisa que nos satisfaga ou que afrouxe as tensdes e nos deixe relaxados, sera de inestimavel valor. A misica faz isso para algumas pessoas, de maneira admiravel. Portanto, facga funcionar seu toca- discos..." Nota-se em sua vida um grande amor e amizade pela sua esposa, Bethan (com quem teve duas filhas, Elizabeth e Ann), que podem ser medidos pelas seguintes palavras escritas a ela numa carta: “Com o passar dos anos eu penso mais e mais que sou o homem mais afortunado do mundo... Nenhum amante jamais anelou pela sua amada tanto quanto seu pobre marido anela por vocé”. Ele a chamava de “a garota mais querida do mundo”. Como era MLJ no exercicio do seu ministério? Segundo seu bidgrafo e o que se pode ver em suas pregacées, ele raramente fazia alusdes sobre sua vida quando pregava.® Exercia controle sobre si mesmo a fim de nao incorrer nos erros de pregadores galeses que, em anos anteriores e proximos dos seus, confundiram emocionalismo com a verdadeira emogao espiritual. Isso se refletia em suas mensagens, jamais afetadas, nunca num tom de voz exagerado e sempre bem raciocinadas: O que & que leva ao culto ¢ louvor, a exultagio, 4 adoragdo? A resposta é que ¢ sempre 0 entendimento. O tinico canto que 91 LLOYD-JONES, Pregagdo e pregadores, p. 132-133. 92 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 40-41. Minha traduglo. 93 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, p, xii. Minha tradugio. Martyn Lloyd-Jones. seu tempo, vida e obra B tem algum valor aos olhos de Deus é aquele que é baseado no entendimento da verdade... nés nunca devemos ir para as emogées diretamente. Nos nunca devemos ir para a vontade diretamente. As emogées e a vontade sao resultado de alguma coisa que é vista pelo entendimento.* A liturgia das igrejas por onde passou também revelava essa sobriedade. MLJ fugia de igual modo do erro detectado em muitos pregadores galeses, que comec¢avam seus sermées com anilises de palavras © conexdes de pensamentos, sem prender a atengado dos pecadores ao revelar a relevancia da mensagem: Ele [o pregador] deseja persuadir seus ouvintes sobre a veracidade de sua mensagem; ele quer que seus ouvintes percebam sua mensagem; ele est procurando fazer algo em favor deles, esta procurando influencid-los. Ele nao est4 apresentando uma erudita pesquisa de um texto, e nem esta fazendo exibigdo de seu proprio conhecimento; ele estd tratando com almas vivas e deseja comové-las, conduzindo- as com ele, guiando-as até a verdade.%* Era sua opiniao que, muito embora os ouvintes nunca devessem regular a pregagdo, esta nunca deveria ignora-los.*° Nao era do seu estilo contar piadas ou fazer brincadeiras no pulpito: “O pregador deve ser um homem sério; jamais pode transmitir a impressdio de que a pregacdo é algo leviano, superficial ou trivial”.”” Julgava que a seriedade da condi¢ao da alma de todos os homens, o fato de que eles estio perdidos e em perigo de eterna perdigao e a conseqiiente 94 LLOYD-JONES, Martyn. My soul magnifies the Lord. Wheaton: Crossway Books, 2000. p. 17. Minha traducao. 95 LLOYD-JONES, Pregagdo e pregadores, p. 66. 96 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, p. 288. Minha tradugao. 97 LLOYD-JONES, Pregacdo e pregadores, p. 62. wa As dimens6es da espiritualidade reformada necessidade de salvagao tornavam o pulpito um lugar nao apropriado para brincadeiras.* Outro perigo, em sua opinido, era a pregagdo tao-somente denunciatéria. Esta nao haveria de ajudar tanto os jovens cristaos quanto a primeira necessidade bdsica, que é um ensino positivo da verdade.” Sermées contenciosos podem atrair muita gente, tal como ocorre em briga de cachorro, dizia MLJ: “Ja observei que sempre que ha uma briga de cachorros na rua, uma multidao sempre se reine em volta. Sempre havera pessoas que gostam de apreciar conflitos...”.! As pessoas gostam desse tipo de coisa, mas isso nao é util: As pessoas se ajuntam a fim de escutar tais ataques; esses ataques atraem sentimentos carnais, e elas gostam dessas coisas. Mas vocé nunca poderd edificar uma igreja sobre 0 alicerce da polémica! Nao poderd edificar uma igreja sobre a apologética, quanto menos sobre polémica! O pregador foi chamado, primariamente, a fim de anunciar a verdade positiva.!%! Martyn Lloyd-Jones passava a maior parte do seu dia orando, estudando e preparando o serma&o dominical. As manhas e as tardes eram gastas desse modo, e podia-se pega-lo a noite com um livro na mao. Ele nao permitia que nada interferisse no seu preparo para o pulpito. Seus sermdes nada mais eram do que umas poucas notas, que lhe serviam de roteiro para © que haveria de pregar, escritas com cuidado e de forma linear, porém de um modo que pudessem acontecer duas coisas que reputava essenciais para a pregagao: a liberdade em relagdo 4 mensagem escrita e abertura para a iluminagao do momento feita pelo Espirito Santo.! Ele nao via 98 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, p. 257. Minha tradugao. 99 Ibid., 271 100 LLOYD-JONES, Pregacéo e pregadores, p. 191. 101 Ibid., 191. 102 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the first forty years 1899-1939, p. 154, Minha tradugao. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 75 problema em pregar esses mesmos sermées dezenas de vezes, obviamente em locais diferentes. Apesar de ser um amante dos livros, MLJ alertava a todos contra 0 perigo de se viver dos livros e julgar que se possui 0 espirito dos autores de que se gosta pelo simples fato de gostar de 1é-los. Outro erro gravissimo, em sua opiniao, era ler para extrair citagdes. Ele cria que o objetivo da leitura é fazer o homem pensar.'® Ele temia que as pessoas lessem muito e pensassem pouco, absorvendo idéias de outros sem refletir.!* Um outro exemplo da influéncia de Gales em sua vida observa- se na sua repulsa por comités, convengdes e regulamentos em excesso. A estrutura das igrejas que pastoreou era a minima possivel. O suficiente para aministragao simples dos meios de graga.'°’ Para ele, um pregador puritano do passado se surpreenderia com a quantidade de trabalhos, comissdes e atividades das igrejas locais do século XX. Uma igreja tipicamente puritana no tinha nada disso: Esse lado operacional da igreja deve ser mantido em nivel minimo; quanto menos melhor. E é evidente que ha os que fazem exatamente 0 contrario, e isso tem sido uma maldi¢ao, especialmente no século XX. Ha aqueles que nunca se sentem felizes, a menos que estejam pensando numa nova comissio ou numa subcomiss&o ou nalguma organiza¢ao adicional.'° Nota-se também que a igreja ocupava lugar central em sua vida, ministério e esperanga de transformag4o do mundo. Ele sempre foi a favor de que a miss4o crista estivesse centrada na igreja. Ele nao via esperanga para o mundo sem renovagao da igreja. Certamente era da sua opiniao que 103 bid, 157, 104 fbid., 174. 105 fbid., 196. 106 LLOYD-JONES, Romanos: 0 comportamento cristdo, p. 315-316. 76 As dimensées da espiritualidade reformada campanhas de evangelizag4o que levam pessoas para igrejas mortas pouco valem. Quando a igreja esta bem, o reino de Deus inevitavelmente avanca. Os crentes espontaneamente testemunhardo de Cristo e pregadores ungidos atrairao os incrédulos. Apesar de haver ansiado mais do que ninguém, ao longo de sua vida, por um avivamento, MLJ julgava errado a igreja orar por um continuo avivamento. Isto porque a igreja sempre haverd de ter grandes dias e dias ordindrios. Parte de sua missao é continuar vivendo o seu dia-a-dia mesmo quando o incomum nAo esta em curso.'" 2.3. CONTEXTO HISTORICO A historia de Martyn Lloyd-Jones esta intimamente relacionada 4 historia do movimento evangélico do século XX. Além de haver vivido mais de trés quartos desse século, sua influéncia se fez sentir em varios segmentos do evangelicalismo de seu tempo. Compreendendo os desafios de seu tempo, pode-se compreender o porqué de algumas énfases de sua mensagem. Chega-se 4 conclusaéo que parte do que ele pregou deveu sua origem as suas raizes calvinistas. Porém, além de haver pregado 0 que qualquer pregador reformado em qualquer época e regiao do mundo pregaria, a aplicagao da fé que professava ao mundo em que vivia o fez enfatizar certas doutrinas reformadas em especial. Quais foram as principais influéncias que a igreja de seu tempo recebeu e que demandaram a atengao e aplicagao da fé reformada por parte de Martyn Lloyd-Jones? 2.3.1. CENARIO EVANGELICO Num certo sentido, os desafios enfrentados pela igreja no século XX foram maiores que os enfrentados pelos reformadores no século XVI. Neste, de modo diferente daquele, havia de uma certa forma uma base 107 Ibid., 204. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 77 intelectual comum, mediante a qual o didlogo era possivel. E bem verdade que os reformadores tiveram que enfrentar uma instituicao que colocava ao lado da Biblia a autoridade dos concilios, da tradigao oral e dos papas. Mas acreditava-se na inspiracao da Biblia. Martyn Lloyd-Jones teve que semear num dos solos menos propicios a frutificagao da verdade que a igreja encontrou em toda a sua historia. Basta, em primeiro lugar, pensar nos desafios gerais que a igreja teve que enfrentar, tais como 0 surgimento do comunismo, 0 ceticismo proveniente das duas grandes guerras, o advento da psicandlise com todo o seu determinismo, os ecos do iluminismo ja decadente, porém ainda capaz de fazer com que muitos mantivessem uma postura racionalista perante a fé cristi e a chegada da chamada pés- modernidade com todo o seu desprezo pela razdo e por sistemas amplos capazes de oferecer respostas para a totalidade da vida, levando assim 4 relativizagao do saber como um todo. Richard Tarnas descreve essa radical mudanga ocorrida na cosmovisio do homem ocidental com o advento da chamada pdés-modernidade: Podemos considerar 0 espirito pés-moderno como sendo um conjunto de atitudes abertas e indeterminadas que foi moldado por uma grande diversidade de correntes intelectuais e culturais: pragmatismo, existencialismo, marxismo, psicandlise, feminismo, hermenéutica, desconstrugio ¢ a filosofia pés-empirista da Ciéncia... ha uma avaliagao da plasticidade e da mudanga constante da realidade e do conhecimento, uma énfase na prioridade da experiéncia concreta sobre os principios abstratos fixos e uma convicgdo de que nenhum sistema de pensamento axiomatico deva reger a crenga ou a investigagao.'"* Sem divida, esse ethos fez com que homens como Martyn Lloyd- 108 TARNAS, Richard. A epopéia do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p.422. 8 As dimensdes da espiritualidade reformada Jones se vissem diante da necessidade de resistir a influéncias saidas de dentro da prdpria igreja que ameagavam seriamente o cristianismo. Essas tendéncias tiravam sua forga do contexto social ¢ filoséfico da época e exigiam que uma luta fosse travada dentro da propria igreja. Quais as principais influéncias a que Martyn Lloyd-Jones teve que resistir durante seu tempo de ministério? Indubitavelmente, 0 ecumenismo foi uma das influéncias mais perniciosas que Martyn Lloyd-Jones detectou na igreja de seu tempo. Para muitos, o maior pecado da igreja era a sua desuniao. A unidade tornou-se © principal tema da imprensa religiosa. Presses vinham de todos os lados para que a igreja abracasse o ecumenismo. Ao fazer uma analise sobre a pressdo ecuménica no século XX, Francis Schaeffer apresenta a seguinte constatagao: Parece-me que alguns evangélicos esto desistindo de qualquer tentativa séria de mostrar a verdade e a antitese. Ha uma tendéncia de se deslocar [sic] de uma falta de seriedade eclesiastica no que se refere a verdade, para a mesma tendéncia em dreas de cooperacdo mais ampla. Isto geralmente acaba em uma negagdo, se ndo na teoria, pelo menos na pratica, da importancia da verdade doutrindria como tal.' Outra grande influéncia adveio do movimento carismatico. A década de 60 representou para a Inglaterra a chegada desse movimento. Milhares de cristaéos no mundo inteiro sairam em busca de uma liturgia livre de qualquer formalidade, uma espiritualidade mistica, uma participagdo maior dos membros na vida eclesidstica, entre tantas outras caracteristicas desse movimento, que hoje se encontra extensamente distribuido por todos os continentes. Em 1975, escrevia John Stott: “Ele [o movimento carismatico] é um fendmeno de alcance mundial, e tem como lideres pessoas muito 109 SCHAEFFER, Francis. O Deus que intervém. Brasilia: Refiigio Editora, 1985. p. 168. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 79 respeitadas. Nao é possivel analisar 0 cenario eclesidstico contemporaneo sem leva-lo em conta”.""° Na Inglaterra, mesmo uma Igreja como A/l Souls, que tinha como um dos seus lideres o proprio John Stott, teve que enfrentar a pressdo exercida pelo movimento. Isso exigiu que ele se visse diante da necessidade de pregar e escrever um livro sobre o tema, a fim de trazer a igreja de volta a um necessario equilibrio.!" Nenhuma influéncia, no entanto, haveria de ser tao sentida pelaigreja e de ter conseqiténcias mais amplas em seus efeitos do que 0 movimento liberal. O chamado modernismo veio como uma enchente, afetando a vida de todas as denominagées. Um significativo exemplo desse avan¢o liberal encontra-se na vida do tedlogo americano Gresham Machen, que por causa da sua recusa de se submeter ao ponto de vista liberal acerca da inspiragao da Biblia, foi suspenso do ministério sete meses antes de sua morte.'? Mas, nao sem antes haver fundado o Seminario Teologico Westminster, a fim de manter 0 ensino reformado em face da capitulagao do Seminario de Princeton ao liberalismo teolégico. Machem via no liberalismo teolégico © surgimento de uma religido que nao tinha a minima relagdo com o cristianismo. Em sua famosa obra Christianity and Liberalism, fez um dos ataques mais bem fundamentados contra o liberalismo teolégico de seus dias. Porém, embora sua defesa da fé reformada tenha sido essencial para o fornecimento de uma base intelectual para a fé dos que nao seguiram o movimento liberal, de uma certa forma, como afirma Mark Noll, ele nao venceu os modernistas.'!? Roger Olson descreve o estado das instituigdes de ensino teoldgico das grandes denominagées: 110 STOTT, John. Batismo e plenitude do Espirito Santo. Sio Paulo: Edigdes Vida Nova, 1986. p.7. 111 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 485. Minha tradugao. 112 tbid., 327. 113 NOLL, Mark. 4 history of Christianity in the United States and Canada, Grand Rapids: Eerd- mans, 2001. p. 376. Minha tradugao, 80 As dimens6es da espiritualidade reformada A teologia liberal protestante classica expandiu-se triunfante pelos semindrios e pelas principais denominagdes da Europa e da América do Norte, com poder ¢ influéncia to transformadores que muitos pensadores e lideres protestantes tradicionais foram apanhados de surpresa.''* O liberalismo veio como uma avalanche, deixando como resultado 0 esvaziamento de igrejas, cujos templos foram transformados em bares. Os pulpitos mais influentes da Gra-Bretanha e a lideranga das escolas teolégicas, portanto, adotaram a forma liberal de cristianismo. Muitos pregadores diziam que o cristianismo perderia sua relevancia caso se mantivesse amarrado a velha forma de pensar. Sendo assim, todo o elemento sobrenatural da Biblia estava sendo descartado, a fim de que fosse apresentada ao homem do século XX uma Biblia despojada de seus mitos: Bultmann... estava particularmente interessado em interpretar a mensagem do Novo Testamento de tal modo que pudesse ser compreendido e recebido por seus contemporaneos. A fim de conseguir tal interpretagao do Novo Testamento, Bultmann propunha que a primeira tarefa era desmitologizd-lo. O Novo Testamento, segundo Bultmann, havia sido escrito dentro de um marco mitolégico, e é necessério por isto distinguir entre o que nele ha de mito ¢ 0 que é da esséncia do kerigma cristio.'5 Claramente, portanto, podia-se observar toda a heranga religiosa do povo inglés sendo lan¢gada fora. Talvez o que melhor demonstre o real estado da igreja foi a declarag4o do arcebispo de Cantuaria, Michael 114 OLSON, Roger. Histéria da teologia cristd, Sao Paulo: Editora Vida, 2001. p. 568. 115 GONZALEZ, Justo L. Historia del pensamiento cristiano . Nashville: Editorial Caribe, 2002. p. 454. Minha tradugdo. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 81 Ramsey (1904-1988), afirmando que o céu nao seria um lugar de cristdos apenas, mas um lugar onde também se encontrariam ateus.''* John Robinson (1919-1983), bispo de Woolwich, prop6s um Deus impessoal, de acordo com as idéias de Bultmann e Tillich. O evento que haveria, na opiniao de MLJ, de representar um divisor de Aguas na histéria do protestantismo seria a cruzada do evangelista americano Billy Graham em 1954, em Londres. “Durante onze semanas, na Harringay Arena, 37.600 pessoas responderiam ao apelo para ir a frente a fim de ‘receber a Cristo”, diz Iain Murray.""’ O que ocorreu de importante nessa cruzada foi que, devido ao seu sucesso, lideres nao evangélicos, que nao acreditavam, por exemplo, na inspiragdo da Biblia, deram apoio 4 campanha evangelistica. Pessoas de linhas teolégicas diametralmente opostas estavam juntas na plataforma do estadio. No dia 22 de maio, quando houve o grande encontro final no estadio de Wembley, o arcebispo de Cantuaria, Geoffrey Fisher (1887-1972), estava presente para dar a béngdo final.'"* Ele foi o primeiro arcebispo de Cantuaria a visitar 0 Vaticano desde 1397, quando, em 1960, teve um encontro ecuménico com o Patriarca de Constantinopla e o Papa Jodo XXIII.!"" A pessoa de Cristo, a natureza da expiagao ¢ a autoridade da Biblia j4 nao eram mais pontos de vista doutrinarios essenciais para a unidade crista. Billy Graham ofereceu a seguinte justificativa para o scu procedimento ao manter uma base mais ampla de cooperagao evangelistica: “Se um homem aceita a divindade de Cristo e esta vivendo para Cristo no melhor do seu conhecimento, eu tenciono ter comunhao com ele em Cristo”.!° O problema é que, apesar 116 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 428. Minha tradugio. 117 Ibid., 302. 118 Ibid. 303. 119 LIVINGSTONE, E. A. (Ed.). Oxford concise dictionary of the Christian church. New York: Oxford University Press, 2000. p. 215. Minha tradugao. 120 NOLL, Mark. American evangelical Christianity. Oxford: Blackwell, 2001. p. 51. Minha tradugdo. 82 As dimensées da espiritualidade reformada do respeito que se deve a vida desse famoso evangelista americano, tem-se que admitir que tudo cabe dentro dessa declaragao. Toda uma agenda ecuménica foi estabelecida. Uma forte militancia antifundamentalista ganhou corpo, a fim de que 0 movimento evangélico ganhasse espa¢o nas principais denominagdes. O alvo era acabar com todo suposto separatismo, anti-intelectualismo e espirito de contenda, diz Marsden."?! Muitos evangélicos passaram a nao ver problema na igreja participar do Concilio Mundial de Igrejas. A relagao de MLJ nesse periodo se enfraqueceu com muitos que seguiram toda a tendéncia ecuménica da época. Como recorda John Brencher: Se 0 ecumenismo agregou a maioria dos talentos e lideres do século XX, ele certamente n4o exerceu nenhuma atra¢do sobre Martyn Lloyd-Jones. Pelo contrario, na metade dos anos 60 ele sentiu fortemente que o Concilio Mundial de Igrejas era uma ameaga para 0 verdadeiro significado do evangelho.'” Martyn Lloyd-Jones recusou-se a apoiar as cruzadas de Billy Graham em razio de seu ecumenismo, e nao conseguia ver 0 que acontecia na Harringay Arena como um avivamento, conforme muitos diziam. Ele nao deu apoio a cruzada de Billy Graham em 1954-55, na cidade de Londres. Em 1963, houve um encontro entre MLJ e Billy Graham sobre o Congresso Mundial de Evangelismo que veio a se realizar na cidade de Berlim. Martyn Lloyd-Jones fez um relato da conversa: Eu disse que faria um trato: se ele parasse com 0 patrocinio geral das suas campanhas, parasse de ter catdlicos e liberais na plataforma, e abandonasse o sistema de apelo, eu de todo o 121 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 304. Minha tradugao, 122 BRENCHER, Martyn Lloyd-Jones (1899-1981) and twentieth-century evangelicalism, p. 83. Minha tradugo. Martyn Lioyd-Jones: seu tempo, vida e obra 83 coragdo 0 apoiaria e presidiria o Congresso. Nés conversamos por trés horas, mas ele nao aceitou as condigées.!% Martyn Lloyd-Jones nao esteve sé. Outro lider que expressou a mesma preocupa¢ao com Billy Graham foi Francis Schaeffer: Nunca vamos nos esquecer que nés que permanecemos na corrente histérica do cristianismo realmente acreditamos que a falsa doutrina, naqueles pontos cruciais onde a falsa doutrina é heresia, no é coisa pequena. Se nés nao deixarmos clara pela palavra e pratica nossa posigao pela verdade como verdade e contra a falsa doutrina, estaremos construindo uma parede entre nés e a proxima geragiio ¢ 0 evangelho."* 2.3.2. DISCER) iDO OS TEMPOS Em tempos de grandes ataques 4 fé crista, com inimigos de fora e de dentro ameagando o contetido do evangelho e a satide da igreja, Martyn Lloyd-Jones nao se calou. Foi impossivel para ele ficar apenas no enunciado da doutrina, sem aplica-la a realidade que o cercava, vindo, em muitas ocasides, até mesmo a mencionar nomes ¢ movimentos que colocavam em risco toda a causa do evangelho. Qual a leitura que MLJ fez do quadro espiritual do século XX? Que solugdes apresentou para a igreja dos seus dias? Em primeiro lugar, preocupava-o a propria forma de a igreja se reunir para adorar a Deus. Durante 0 periodo em que ficou doente, em 1968, por quatro meses ele participou de cultos em diferentes igrejas da Inglaterra. Sua conclusao foi a seguinte: 123 MURRAY, Iain H. Evangelicalism divided. Carlisle: Banner of Truth, 2001. p. 76. Minha tradugdo. 124 Ibid., 76-77. 84 As dimens6es da espiritualidade reformada Minha impressao geral é que a maior parte dos nossos cultos é terrivelmente depressiva. Eu me maravilho de pessoas irem ainda a igreja; a maioria dos quais séo mulheres acima dos quarenta anos. A nota ausente é alegria no Espirito Santo... as pessoas vém juntas a fim de partir. Nao ha nada nesses cultos que faca um estranho sentir que ele est perdendo alguma coisa por nfo estar ali." O esvaziamento do culto em termos de contetdo, com mais énfase na misica do que na pregagao sdlida, foi denunciado por ele.'”* A cultura da sensacdo e do sentimento avessa ao intelecto e entendimento era, no seu modo de pensar, responsavel pelo declinio dos cultos evangélicos: Vivemos numa era que tem aversdo pela precisio e por definigdes. E uma era antiteolégica, antidoutrinaria, e que nao tem nenhum gosto por proposigées e pelo conhecimento exato. E uma era ociosa em todos os aspectos, uma era sentimental e confusa, uma era que deseja entretenimento e nao gosta de esforgo. Em tudo, na vida atual, principio “é coisa que nfo serve para nada”. Estamos prontos a receber, mas nao estamos prontos a trabalhar; nao estamos dispostos a dar-nos, a dedicar-nos. Essa é uma verdade predominante em toda parte, e explica muito dos nossos problemas. Isso é particularmente verdadeiro na area da Igreja Crista.” Na sua opiniao, em vez de adorar a Deus, o louvor da igreja era mera express4o de sentimentalismo. Ele via o emocionalismo como um inimigo do cristianismo e as lagrimas como uma pobre indicagao para a presenga da fé salvadora: 125 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 603. Minha tradugdo. 126 Ibid., 667. 127 LLOYD-JONES, Martyn, Romanos: fé salvadora. Sao Paulo: PES, 2003. p. 47. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 85 Emocionalismo é um estado e uma condigo em que as emogées esto descontroladas. As emogdes est&o no controle. Esto numa espécie de éxtase. E se 0 emocionalismo é ruim, muito pior é a tentativa deliberada de produzi-lo... as emogdes devem ser constatadas através da compreensio, através da mente, pela verdade. E qualquer assalto direto sobre as emogé6es é, necessariamente, falso e inevitavelmente resultara em problemas.'* A verdadeira emogo deve ser proveniente da compreensdo da verdade revelada. Quanto as supostas experiéncias espirituais, se essas nao viessem acompanhadas da verdade, deveriam ser vistas como contrarias as Escrituras. O subjetivo e experimental deveria ser entendido e definido em termos da Escritura.'° Ele lamentava o fato de as pessoas ndo saberem pensar teologicamente. Interpretar todas as facetas da verdade a luz do ensino geral das Escrituras era fundamental em sua opiniao. MLJ temia de igual modo a tendéncia da ultra-especializagéo. Enxergar as arvores sem ver a floresta levaria os estudiosos das Escrituras a uma falta de proporgdo em seu ensino. Dai o valor que dava a teologia sistematica.'*° Nesse sentido, 0 papel dos ministros era de suma importancia. Por isso, o estimulo para que escolas teolégicas conservadoras fossem abertas.'*! A pregagao mais cheia de psicologia do que de cristianismo também recebeu sua atencao: Pregar tem se tornado em grande parte uma profisso. Em vez de sermées realmente cristaos, nds estamos dando exposigdes 128 LLOYD-JONES, Martyn. Avivamento, Sao Paulo: PES, 1992. p. 79. 129 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 290. Minha traducao. 130 Ibid., 75. 131 Ibid, 75. 86 As dimens6es da espiritualidade reformada de segunda mao de psicologia. Os pregadores dizem que eles dao o que as congregagdes pedem! Que terrivel condenagdo, tanto dos pregadores quanto de suas congregacées! '* Numa outra mensagem em que revela sua preocupagdo com o estado da igreja e todo o seu desejo de agradar o mundo, MLJ afirma: O mundo hoje esta rindo da igreja; ri das suas tentativas de ser boa e fazer as pessoas se sentirem bem em casa. Meu amigo, se vocé se sente em casa em qualquer igreja, sem acreditar em Cristo como seu Salvador pessoal, entio tal igreja nao é igreja de forma alguma, mas um lugar de entretenimento ou um clube social. Porque a verdade do cristianismo e a pregacdo do evangelho deveriam tomar a igreja intoleravel e desconfortavel para todos, exceto aqueles que créem, e mesmo esses deveriam ir para casa se sentindo castigados ¢ humilhados.'? Ele era contra a igreja usar o pulpito para falar sobre politica e enviar mensagens para o parlamento. Como também a igreja pregar moralidade em vez do evangelho: “Nés estamos perdendo nosso tempo e negligenciando nossa obrigacgao ao pregar moralidade para um mundo perdido. Porque o que o mundo precisa é vida, nova vida, e ela s6 pode ser achada em Cristo somente”."** Para ele, a pregag4o que visava atacar pecados especificos sem antes anunciar a Cristo piorava a condigao do pecador: Ao ordenar-me que eu nao faca uma coisa, a Lei provoca em mim um anseio por fazer exatamente aquela coisa, devido eu ser pecador. Quando a lei vem e me diz: “Vocé nao deve 132 Ibid., 88. 133 Ibid., 142. 134 Ibid., 160. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 87 fazer isso ou aquilo”, ela dirige a minha mente para aquilo ¢, porque a minha natureza é pecaminosa, cria em mim o desejo de fazé-lo.""* A pregacao que nao humilha o pecador era vista como contraria ao método de Deus de levar o homem pecador a Cristo, que é primeiro gerar convic¢ao de pecado em seu cora¢ao para depois tornd-lo maravilhado com a graga de Deus que esta em Cristo: A pregaciio de hoje nem mesmo incomoda os homens, mas deixa-os precisamente onde estavam, sem perturbagdio e sem 0 menor disturbio... A igreja é considerada como uma espécie de dispensdrio onde drogas e calmantes sio distribuidos e na qual todo mundo tem que se sentir tranqiiilizado e confortado. E 0 tinico tema da igreja deve ser “o amor de Deus”. Qualquer um que aparega para quebrar essas regras e que produza efeito perturbador sobre os membros de sua congrega¢ao é considerado uma pessoa desagradavel...'* Uma de suas principais énfases sem divida foi no avivamento. Poucos pregadores enfatizaram tanto a necessidade de um derramar do Espirito para que a igreja fizesse frente aos desafios do século XX como ele: Precisamos nos perguntar como podemos ser bem sucedidos se nao temos essa autoridade, essa comissao, essa forga e poder. Precisamos nos convencer de forma absoluta da nossa necessidade. Precisamos parar de ter tanta confianga em nés mesmos, e em todos os nossos métodos e organizagdes, em toda a nossa sofisticagao. Precisamos compreender que necessitamos ser cheios do Espirito de Deus.'” 135 LLOYD-JONES, Martyn. Romanos: expiagdo e justificagdo. Sio Paulo: PES, 2000. p. 233. 136 MURRAY. D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981. p. 207. Minha tradugio. 137 LLOYD-JONES, Avivamento, p. 79. 88 As dimensées da espiritualidade reformada Ele entendia que a igreja estava fazendo um diagnostico superficial da realidade que a cercava. Por esse motivo, a igreja acreditava tanto em métodos, quando a unica coisa que poderia salva-la seria um novo pentecoste.'** Sendo assim, a igreja ocupava lugar central em sua esperanca de ver mudar o quadro desolador do mundo. Em sua opiniao, nada melhor poderia acontecer naqueles dias do que as igrejas locais serem renovadas espiritualmente: Amados irmaéos em Cristo, se eu e vocés taio-somente funciondssemos como cristéos da maneira que deviamos, sem divida, entre outras coisas, grandes somas de dinheiro da igreja seriam poupadas. E porque eu e vocés nao estamos divulgando a fé crista como deviamos, que a igreja tem que estabelecer secretarias de imprensa, montar departamentos de publicidade e fazer propaganda. No principio, no século primeiro, o cristianismo era divulgado pela vida e pelo modo de viver do povo cristao.' O quadro nao se alteraria sem que a igreja fosse alterada.° “Antes de pensarmos sobre planejamento e organizagdo a fim de alcangar os de fora, vamos nos concentrar em nossas proprias igrejas. Estéo nossas igrejas vivas? Nosso povo é realmente cristéo?”"*! Essa era a principal razdo pela qual as cruzadas de evangelizag4o no o animavam tanto. Se as igrejas locais nao fossem vivificadas, nao haveria modificacdo alguma no panorama espiritual da sua gera¢ao: “Precisamos saber a diferenga entre uma campanha evangelistica e o avivamento. Nao podem ser comparados. Precisamos compreender a diferenga entre experimentar 0 poder de Deus no avivamento e chamar pessoas para tomarem uma decisao”.' Algo 138 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 78. Minha tradugao, 139 LLOYD-JONES, Martyn. Romanos: o evangelho de Deus. Si Paulo: PES, 1998. p. 225-226, 140 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 78. Minha tradugao, 141 Ibid., 78-79. 142 LLOYD-JONES, Os puritanos, suas origens e seus sucessores, p. 373. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 89 tinha que acontecer na igreja que chamasse a atengo do mundo. E esse algo nao se relacionava a drama nos cultos, boa musica, uma estrutura eclesidstica enorme, propaganda ou outra coisa qualquer que nao fosse um avivamento: “Quando ‘o elemento vida’ vem a igreja, o mundo comeg¢a a ouvir, e 0 povo se aglomera. Entdo o problema sera, nado como conseguir gente para vir ouvir, mas como achar recinto para todos os que vém”.'* Quais os principais motivos da queda perceptivel do interesse pelo avivamento? Os escritos de Finney, que confundia avivamento com campanha evangelistica, era um motivo certamente: Afigura-se para mim ser uma grande pena que aquele maravilhoso homem de Deus, Charles Finney, que foi tao poderosamente usado, tivesse introduzido a nog&o de que os homens podem preparar e organizar um avivamento.'* Um outro motivo relacionava-se 4 queda no interesse pela fé reformada: Antes de 1860 era uma coisa instintiva pensar em avivamento. Se havia um periodo de aridez espiritual, se as coisas nao iam bem na igreja, a primeira coisa em que pensavam era esta: “Nao deveriamos ter um periodo de confissio, humilhagao e oragdo a Deus para que nos visite de novo?” Faziam isso quase que instintivamente. No entanto, nés nao fazemos isso. Por qué? Qual a explicagéio desta mudanga que parece ter penetrado no pensamento da igreja? Penso que posso sugerir alguns fatores, Primeiro: fora de toda a ditvida, é 0 declinio da teologia reformada. Todo 0 movimento modernista que comegou na década de quarenta do século passado, ganhou grande impeto na década de sessenta. Cresceu com alarmante velocidade, e particularmente a teologia reformada foi para 143 LLOYD-JONES, Discernindo os tempos, p. 39-40. 144 LLOYD-JONES, Martyn. Authority. Carlisle: Banner of Truth, 1997. p. 89. Minha tradugao. 90 As dimensoes da espiritualidade reformada tras. Até essa data... a teologia predominante era inteiramente calvinista.'*> A €nfase maior no preparo intelectual do ministro do que na sua santidade foi um outro motivo pelo qual o interesse por avivamento caiu: “Parece acontecer na pratica que, conforme os homens se tornam cada vez mais cultos, tendem a dar cada vez menos atengdo ao lado espiritual das coisas”.'4 Para os reformados que nao se interessavam por avivamento, MLJ apontava as seguintes causas: em primeiro lugar, o descanso na ortodoxia sem preocupagao com a vida espiritual e a vida da igreja: Este é o perigo que assedia os que sustentam a posi¢ao reformada. Essas sdo as tinicas pessoas realmente interessadas em teologia, pelo que o Diabo vem a eles ¢ os impele para demasiado longe na linha desse interesse, e eles tendem a tornar-se meros tedlogos e sé intelectualmente interessados na verdade.'*” Outra causa podia ser encontrada na preocupagdo exagerada com apologéticé Noséculo passado, muita energia foi empregadanalutacontrao modernismo. O inimigo estava atacando nessa linha particular, e toda a energia dos ortodoxos foi aplicada a subjugé-lo, a deté- lo e a derrota-lo. Sim, mas inconscientemente eles deixaram que este conflito dominasse completamente seu pensamento, e para eles a apologética se tornou a coisa principal, em vez de se dedicarem a uma mensagem positiva... Nao me entendam mal; nao estou argumentando contra o valor da apologética, 145 LLOYD-JONES, Os puritanos, suas origens e seus sucessores, p. 18-19. 146 Ibid., 20. 147 Ibid. 22. O desgosto pela emoc&o e uma excessiva reacio contra o pentecostalismo s4o outros motivos para os reformados deixarem de dar énfase em avivamento: “Tem havido excessiva reacdo contra o pentecostalismo e os seus fendmenos. Muitos ha que estao com tanto medo do pentecostalismo e dos seus excessos e aberragdes, que acabam extinguindo o Espirito”. Preocupava-o, em conex4o a isso, a exagerada Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra negando-o completamente, mas o que estou dizendo é que uma igreja que venha a ser governada pelo interesse apologético é uma igreja que parou de funcionar positivamente. O Diabo se apossou dela, e ela tende a ser negativa e deixar de reconhecer a atividade positiva do Espirito Santo. A Histéria mostra que © que os conferencistas das Prelegdes Boyle, o bispo Butler ¢ outros deixaram de fazer, Deus fez derramando o Seu Espirito sobre homens como Whitefield e Wesley.'* preocupacao com a ordem do culto: Como MLJ lidou com o fenémeno pentecostal? Claramente nota- se que ele via diferengas concretas e significativas entre o ponto de vista reformado e o pentecostal. Definitivamente MLJ nao abracou o movimento Fico a perguntar se o maior problema da Igreja Crista hoje (e o digo com temor e tremor, mesmo entre os crist4os) nao é que somos escravos do decoro. Somos por demais polidos. Por demais dignos. Por demais finos! Parece que temos muito medo de que, de repente, o Espirito Santo desca sobre nés, e que alguns de nds nos tornemos atarantados, porque esse tipo de coisa acontece nos avivamentos, vocés sabem.'*° 148 Ibid. 22-23. 149 Ibid. 23. 150 LLOYD-JONES, Romanos: o evangetho de Deus, p. 235. a1 92 As dimensées da espiritualidade reformada carismatico. Ele se dizia contrario ao mesmo.'*' Contudo, nao deixava de ressaltar 0 fato de que em parte o movimento pentecostal foi uma reacao 4 aridez espiritual das igrejas, ao ministério de um sé homem, ao formalismo do culto publico e 4 pouca pregagio sobre 0 ministério do Espirito Santo.'? MLJI entendia que a igreja nao deveria assumir 0 conceito de que qualquer coisa nova é errada. E nao bastava fazer oposigao as novas idéias; também eram necessarios auto-exame e autocritica.'*? Porém, ele via os excessos do pentecostalismo como algo que haveria de leva-lo a desintegragao: “Eu profetizo que o movimento carismatico logo estara com problemas e se desintegrara”.'*4 Outra constatacao: “A tendéncia do movimento moderno é levar as pessoas a procurar experiéncias. Verdadeiro avivamento humilha o homem perante Deus e enfatiza a pessoa de Cristo”.'** Apreocupagao coma unidade da igreja se fez presente em muitas das suas mensagens. Martyn Lloyd-Jones deplorava o fato de a igreja estar tao dividida. Porém, ao mesmo tempo, lamentava que as pessoas procurassem a unidade as expensas da verdade. Em sua opiniao, a igreja deveria estar usando o poder das chaves e nao aceitar no seu seio a presenga de pessoas que tinham diferengas basicas com a fé crist: Se me fosse pedido que explicasse por que as coisas sio como sao na Igreja; se me fosse pedido que explicasse por que a estatistica revela os numeros decrescentes, a falta de poder e a falta de influéncia sobre homens e mulheres; se me fosse pedido que explicasse a razdo de tantas igrejas parecerem incapazes de sustentar a causa sem recorrerem a jogos, dangas e coisas semelhantes; se me fosse pedido que explicasse por que a igreja se acha em condic&o tio lamentavel, minha 151 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 695. Minha tradugao. 152 Ibid., 689. 153 Ibid., 694. 154 Ibid., 689. 155 Ibid., 693. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra resposta teria de ser que a causa principal é a falha de exercer a disciplina."* 93 Para exemplificar o que esta dizendo, MLJ usa um exemplo negativo e outro positivo, tirados da historia da igreja. Primeiro, o negativo: Nao hesito em asseverar que nossos avés € bisavés do século XIX nfo exerceram a disciplina que deveriam ter exercido quando a fatal Alta Critica comecou a chegar aqui, vinda da Alemanha. Foi em decorréncia de nao terem disciplinado aS pessoas que creram e ensinaram tais coisas que estamos enfrentando a presente situagao.!” Porém, encontrou um exemplo positivo do exercicio da verdadeira disciplina na vida de John Wesley: Leiam, por exemplo, sobre Jo’io Wesley. Se j4 houve um disciplinador na Igreja, foi esse homem! Em seu Journals, ele registra que em determinada ocasifio saiu para visitar uma igreja, certas reunides em Dublin, e quando chegou 14, encontrou cerca de seiscentas pessoas. Entio comegou a examinar os membros da igreja, um a um; e quando terminou, alguns dias depois, a igreja tinha trezentos membros.'** O medo de entristecer pessoas nao deveria levar a igreja 4 omissado em questdes doutrindrias de fundamental importancia: “Nés temos que estar prontos para dizer que os homens nao sao cristéos e que sdo inimigos da fé”.'*° Antes de discutir sobre a unidade, a igreja deveria 156 LLOYD-JONES, Martyn. A igreja e as tiltimas coisas. S80 Paulo: PES, 1999. p. 25. 157 Ibid., 28. 158 Ibid., 29. 159 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 434-435, Minha tradugao. 94 As dimensées da espiritualidade reformada fazer as seguintes perguntas: O que é um crente? O que é uma igreja? Respondendo 4 afirmagao de Michael Ramsey, Arcebispo de Cantuaria, que dizia aguardar a presenga de ateus no céu, MLJ declarou: “Se um homem que nao acredita em Deus pode ir para 0 céu, porque deveriamos pedir que ele cresse na Biblia? Por que deveriamos de qualquer modo ter uma igreja?”.' A omissio em combater erros doutrindrios se constituia na maior fraqueza das igrejas de seu tempo, dizia MLJ.'*' Sendo assim, embora julgasse a possibilidade de uma pessoa conhecer teologia e nado conhecer a Deus, MLJ via como essencial pensar na unidade da igreja em termos de adesdo a certas verdades basicas: A coisa que faz de um homem um cristao é algo claramente definido ¢ declarado. Pessoas que tém a idéia de que ser cristo € algo que efetivamente nao se pode definir estdo, assim, proclamando que nao sao cristis. Ele nao é um termo perdido ou indefinido, ele é perfeitamente claro ¢ especifico. As proprias Escrituras dizem-nos que examinemos ¢ provemos a nés mesmos se estamos na fé ou nao, e obviamente, se somos exortados a fazer isso, portanto tem que haver um meio pelo qual possamos fazé-lo.' Ele via a necessidade, em alguns casos, de crentes e igrejas inteiras se desfiliarem de suas denominac6es por estas haverem abandonado os principios basicos da fé: Ora, a coisa que ultrapassa minha compreensio nos dias atuais, é a seguinte: embora o Novo Testamento nos diga que, a fim de pertencermos a Igreja, talvez tenhamos de nos “separar” do 160 Ibid., 438. 161 Ibid., 447. 162 LLOYD-JONES, Martyn. The assurance of our salvation. Wheaton: Crossway Books, 2000. p. 257. Minha tradugao. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 95 pai, mae, marido, mulher, irmaos e irms, existem evangélicos que ainda preferem permanecer em intima relagdo e parceria com 0s infiéis e negadores do evangelho, a se separar e alinhar- se exclusivamente com irmaos evangélicos. Devemos estar dispostos a separar-nos inclusive de pai e mae nesse caso, e, contudo, a atitude de tantos na hora presente é ecuménica.'® Vinculo denominacional algum deveria levar o crente 4 negociacao da verdadeira doutrina e vida crista. Essa unido nao poderia ser baseada em confissio de fé meramente: “Existe hoje em dia um acentuado e bem conhecido ensino que parece considerar uma igreja ndo como uma congregagao de pessoas, e, sim, como uma confissdo de fé ou como algo escrito num papel”.'“ Qual o motivo para um vinculo com a igreja ndo baseado em uma confissdo de fé? O motivo tem relagao com algo que MLJ ja percebia em seu tempo: a hipocrisia daqueles que fazem parte de igrejas confessionais e que nao créem mais nas mesmas, ¢ até mesmo trabalham para destruir 0 contetido confessional dessas igrejas: “O que importa nao € 0 que os pais disseram nos séculos XVI e XVII; 0 que importa é: qual a crenga dos membros dessas denominag6es hoje?! Ele julgava que os verdadeiros evangélicos, além de deixarem essas igrejas, deveriam formar comunidades cristas independentes, unindo-se em vinculos ndo-denominacionais, com um minimo controle, para comunhao e mitua ajuda. Martyn Lloyd-Jones nao tinha esperanga de que grupos evangélicos infiltrados nas grandes denominagdes pudessem transforma- las.! Pelo contrario, 0 que se observava no contato com liberais, dizia, era uma queda na temperatura espiritual e acomodagao doutrindria.!*’ Ele via 163 LLOYD-JONES, Martyn. Que é a igreja? Sao Paulo: PES, s.d. p. 20. 164 tbid., 11. 165 Ibid., 14, 166 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 510. Minha tradugo. 167 Ibid., 565. 96 As dimens6es da espiritualidade reformada como equivocada a preocupacio de evangélicos em manter a integridade das denominagdes acima de tudo.'* Observa-se que MLJ nao conseguiu passar 0 tempo apenas cuidando de sua igreja local. Havia grande interesse por parte dele em ver a igreja como um todo vivendo 4 luz do ideal do Novo Testamento: “Ha sempre o perigo de vivermos apenas para nds mesmos, por nés mesmos, na igreja local... Nos somos parte de um todo maior, e somos responsaveis pelo que acontece 14 também”.'° A perda da heranga calvinista foi objeto de suas andlises acerca do estado de decadéncia da igreja. Houve gente que quase o considerou o ultimo calvinista.'” E esse foi um dos motivos do seu isolamento. A aplicagao dos principios reformados trouxe problemas para MLJ. Sua preocupagao nado se relacionava apenas ao enunciado da doutrina, mas a sua aplicagdo pratica e especifica também. O calvinismo deveria ser restaurado acima de tudo por ser biblico: “O verdadeiro cristianismo pode existir onde isso nao é entendido [a fé reformada], mas a tendéncia resultante sempre sera fraqueza tanto na teologia como na vida”.'7! Esse foi o principal motivo da sua preocupagdo com a publicagao de literatura puritana. Em sua opiniao, © puritanismo poderia desempenhar um papel singular para o futuro do cristianismo: O interesse principal do puritano é por uma igreja pura, uma igreja verdadeiramente reformada. Os homens podem gostar de aspectos do ensino puritano, sua grande énfase a doutrina da graca, e sua énfase a teologia pastoral; contudo, por mais que um homem possa admirar esses aspectos do puritanismo, se 0: seu interesse nao for uma igreja pura, uma reuniao de santos, certamente nao tem o direito de chamar-se puritano.'” 168 Ibid., 423. 169 Ibid., 535. 170 Ibid., 193. 171 Ibid, 194. 172 LLOYD-JONES, Os puritanos, suas origens ¢ seus sucessores, p. 261. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra Ad Apesar de sua firme ades&o a fé reformada, MLJ nunca permitiu que sua comunhdo com arminianos fosse abalada: “Eu nao diria que o arminianismo é um outro evangelho. Ele é preferivelmente um outro entendimento do mecanismo de como a salvacdo é dada a nés”.!? Ele nao via o calvinismo como requisito para a comunhio entre os cristdos.'* Inclusive apoiou agéncias que ndo professavam a fé reformada. Se as igrejas calvinistas fossem pacientes no ensino biblico aos arminianos, seriam capazes de ganhar aqueles cujos coragdes estavam corretos.'’> Ele via grupos dentro da igreja que estavam indo para um extremo oposto ao movimento ecuménico, a ortodoxia precisa demais, que excluia verdadeiros crentes.'7° 2.3.3. REFLEXOS DO SEU MINISTERIO Quais foram as principais realizagdes do ministério de Martyn Lloyd-Jones? Que impacto teve em seu tempo? E impossivel medir os resultados dos seus anos de ministério. O que se sabe é que, desde 0 inicio de seu trabalho como pregador, quando foi descoberto, nunca mais parou de pregar. As portas em Gales se abriram imediatamente e logo as demais regides do Reino Unido. No inicio dos anos quarenta, dificilmente houve alguma campanha evangelistica na Inglaterra para a qual ele nao tenha sido convidado ou consultado.'” Sua preocupagao com a unidade da igreja fez-se revelar logo nos seus primeiros anos de ministério em Aberavon. Em 1930, participou de uma alianga de cooperacao para o avivamento da religido.'”* Foi pensando 173 MURRAY, D. Martyn Lloyd-Jones: the fight of faith 1939-1981, p. 547. Minha tradugao. 174 Tbid., 194, 175 Ibid., 459. 176 Ibid., 545. 177 Ibid., 77. 178 Ibid., 199. 98 As dimens6es da espiritualidade reformada nisso que assumiu a lideranga da Inter-Varsity Fellowship na Inglaterra. Sua influéncia foi significativa em sociedades e organizagdes evangélicas. No inicio de seu trabalho pastoral em Westminster, MLJ participou da criagao de trés novas agéncias em Londres, que tiveram larga influéncia. Com elas esteve envolvido até o fim de sua vida. A Livraria Evangélica tinha como principal alvo colocar 4 disposig&éo do grande piblico as grandes obras literdrias reformadas e puritanas. A outra agéncia foi The Westminster Fellowship, que comegou em 1941, a fim de promover encontros de comunhio e reflexdo teoldgica entre lideres evangélicos. E, por fim, MLJ esteve especialmente envolvido na criagdo do London Bible College, que haveria de dar instrugao biblica a obreiros cristdos. Ele também incentivou a criago da revista Banner of Truth Magazine. O seu envolvimento e apoio a editora que viria a publicar centenas de obras de autores reformados e puritanos, Banner of Truth Trust, foi importante para a criagao e expansao da mesma. Nisso pode-se observar 0 quanto estimava © movimento puritano, como ja se péde demonstrar. O pulpito da Capela de Westminster, sem sombra de duvida, representou, para seu ministério, a plataforma da qual sua voz alcangou © mundo inteiro. Homens e mulheres de dezenas de nagées se dirigiam 4 sua igreja a fim de ouvir os sermdes de Martyn Lloyd-Jones. Fitas cassetes com as gravacdes de seus sermdes correram o mundo. J. I. Packer foi um dos muitos jovens que tiveram a vida afetada pelas pregagdes de MLJ: “Eu nunca tinha ouvido tal pregacio, e fiquei eletrizado... Tudo 0 que sei sobre pregagdo, eu posso dizer honestamente, de fato eu sempre digo, aprendi pelo exemplo do Doutor...”.'” Martyn Lloyd-Jones exerceu influéncia sobre um numero incalculavel de estudantes, muitos dos quais foram salvos da influéncia da teologia liberal pelo seu ministério. Pastores encontraram inspiragéo em suas mensagens. Nao foram poucas as pessoas que ouviram suas pregacdes 179 Ibid., 188. Martyn Lloyd-Jones: seu tempo, vida e obra 99 na Capela de Westminster e que vieram a ocupar posigdes de grande destaque nos circulos evangélicos. Por volta de 1950, um consideravel numero de pessoas abragou a fé reformada como conseqiiéncia direta da pregagao de MLJ. A Conferéncia Puritana, iniciada no mesmo ano, muito colaborou para isso. Foi numa dessas conferéncias que J. I. Packer correu na diregaéo de MLJ a fim de lhe dizer: “Agora eu sou um calvinista completo, Doutor”.'* Suas centenas de livros, que sao resultado basicamente de mensagens gravadas e taquigrafadas transcritas, esto nas estantes de um numero incontavel de pastores no mundo inteiro. Especialmente no Brasil, nota-se uma grande influéncia de sua literatura mediante o trabalho da editora Publicacdes Evangélicas Selecionadas (PES), que, liderada por Bill Barkley, um missionario da Capela de Westminster, tem colaborado de modo significativo para a divulgacao da fé reformada em solo brasileiro. Martyn Lloyd-Jones foi uma voz solitaria. Sofreu muita oposigao por nado se haver mantido na corrente que arrastou tantos crentes, pastores e tedlogos da sua gerag4o. Porém, deixou como legado o resgate de uma tradi¢ao de espiritualidade que, por onde passou e foi entendida e encarnada, transformou vidas, igrejas e nages inteiras. E para o exame do resgate das dimensGes da espiritualidade reformada, a Juz das suas exposigdes sobre a carta de Paulo aos Efésios, que se dirige agora este trabalho. 180 Ibid., 231. A dimensao doutrinaria 3.1.0 LI R DO INTELECTO a teologia de Martyn Lloyd-Jones, nota-se a presenga do ponto de vista paradoxal da fé reformada em relacao ao intelecto. Na teologia reformada, a razao é elevada 4 mais alta posi¢do que pode ocupar na vida de um ser humano, porém jamais é vista como auténoma em relagdo as Escrituras Sagradas, suficiente para levar 0 pecador a experiéncia de redengao ou capaz de abarcar o contetido da revelagao. Sendo assim, embora para Martyn Lloyd-Jones a mente humana desempenhe um papel fundamental na vida crista, no entanto, como todo bom calvinista, ele apresenta os limites impostos 4 mesma pela Biblia. Em primeiro lugar, deve ficar claro que, embora ninguém seja salvo sem razoes, ninguém é salvo pela razdo. A quantidade de neur6nios que um ser humano possa ter, ou o nivel de conhecimento que tenha adquirido, ndo é o que determinara sua salvagao: “Nao ¢ 0 poder do intelecto que faz 0 cristo; a salvagdo € espiritual; é tudo dado por Deus”.'*! Nesse sentido, todos os homens est4o em pé de igualdade: 181 LLOYD-JONES, Martyn. O supremo propésito de Deus. Sao Paulo: PES, 1996. p. 187. 102 As dimensées da espiritualidade reformada Ele nos da a sabedoria e a prudéncia, como também a verdade... é por causa disso que vocé pode ir ao corago da Africa Central e visitar uma tribo de pessoas que nao sabem ler e escrever, e sem instrugdo. Vocé pode pregar o evangelho com a mesma confianga como o prega na sociedade ocidental, porque Deus pode ilumind-las por intermédio do Espirito Santo.1® Martyn Lloyd-Jones acreditava na influéncia noética do pecado. O que isso significa? Os efeitos noéticos do pecado sdo as influéncias exercidas pelo coragao'* na mente do homem que o levam a inconscientemente perverter seus julgamentos racionais com referéncia a Deus. A teologia reformada nao ¢ cética quanto ao aparelho mental do homem em si. Ela nao se assombra quando vé o homem usando sua mente para fazer ciéncia, por exemplo. Ela é cética quanto 4 possibilidade de a mente humana agir com absoluta neutralidade quando se propée pensar em Deus. R.C. Sproul diz 0 seguinte: “O problema nao é que haja insuficiente evidéncia para convencer seres racionais de que ha um Deus, mas que os seres racionais tém uma natural hostilidade para com o ser de Deus”.'* O pecado faz com que a mente nfo se relacione com a verdade de Deus de modo neutro: A capacidade humana de entender a verdade espiritual, em conseqiiéncia da queda, foi tao prejudicada que, mesmo quando vocé coloca essa sabedoria que Deus nos deu mediante o Espirito Santo diante dos olhos do homem, ele nao a pode ver nem compreender.'*5 182 Ibid, 187-188. 183 Muitas vezes a palavra coragdo refere-se a sede das afeigdes. Outras vezes, ao Srgo central da alma humana, do qual promanam os pensamentos, sentimentos e voligdes do homem. Neste pardgrafo 0 segundo sentido é 0 aplicado. 184 Sproul, R.C. If theres a God, why are there atheists? Wheaton, Illinois: Tyndale House Pub- lishers,1996, p. 57. Minha tradugdo, 185 Ibid,, 345. A dimensao doutrinaria 103 O homem nao se aproxima de Deus e Sua verdade revelada como se aproxima de um tubo de ensaio num laboratério. Inconscientemente, 0 homem teme que seja verdade o que a Biblia afirma, por isso seu exame das Escrituras sempre seré condicionado. Porém, seus problemas nao param nessa barreira produzida pelo pecado. Para que o homem possa discernir a verdade de Deus, é necessdrio que receba um sentido novo: Nao importa qudo grande seja a sua mente, ou o seu entendimento, o homem, por natureza, nao é mais espiritual; é “carnal”, “vendido sob 0 pecado”., A faculdade espiritual com a qual ele foi criado originalmente atrofiou-se, e nao pode ser mais exercitada.'*° Por isso, seu conselho para os que querem conhecer a Deus remete oser humano para a completa dependéncia do Espirito Santo: “Onde posso encontrar Deus? Ha somente uma solucao: devo esperar em Deus; e Deus haverd de falar-me sobre Si. Isso é revelacao; e é funcao do Espirito Santo dar-nos esta revelacao”.'*” Sendo assim, o cristianismo é visto nao como algo do qual o homem se apossa intelectualmente, mas “é algo que se apossa de nds, nos cativa, nos governa e nos domina”.!** Martyn Lloyd-Jones, embora tenha tido uma formagao cientifica, nunca foi um racionalista. O racionalista é todo aquele que acredita que 0 ser humano so deve crer naquilo que foi compreendido pela razio. Como afirma A. A. Hodge (1823-1886): “Com os racionalistas, a razdo é 0 ultimo fundamento e juiz da fé”.!" Para MLJ, ha verdades na fé crista que sdo supra-racionais e que exigem humildade intelectual de quem delas se aproxima. Por isso, 0 cristo nao pode lidar com a teologia assumindo a postura de um filésofo: “A insisténcia no entendimento faz parte da 186 Ibid., 340. 187 Ibid., 342. 188 LLOYD-JONES, Martyn. As frevas e a luz. Sao Paulo: PES, 1995. p. 149. 189 HODGE, A. A. Esbocos de teologia. Sao Paulo: PES, 2001. p. 69. 104 AS dimens6es da espiritualidade reformada filosofia. Nao podem entender a expiacao, dizem tais pessoas, e por isso nao créem nela”.!° No seu modo de entender a relagao da filosofia com a teologia, MLJ julgava que a histéria provava que a mentalidade filoséfica, especialmente grega, trouxe os problemas teolégicos do passado, que exigiram a reuniao da lideranca em concilios. Esses concilios salvaram a igreja: E 0s cristdos primitivos, conduzidos pelo Espirito Santo, reuniam-se em solenes concilios nos quais definiam a verdade. Diziam, isto esta certo, aquilo esté errado. Definiam a heresia ea condenavam, e excomungavam os que a ensinavam. Se nao tivessem feito isso, no haveria igreja crista hoje. A filosofia grega entrou, e os homens procuravam entender e explicar © que no se pode entender e explicar, e assim surgiram as heresias; e os lideres da igreja tiveram que reunir-se em concilios.'"! Desse modo, cabia ao pregador proclamar a mensagem mesmo que ela gerasse grandes perplexidades intelectuais nos ouvintes. Nao que ele fosse contra a apologética, mas contra o orgulho intelectual proveniente da queda: Foi 0 desejo de entender que levou a queda. O orgulho e arrogancia intelectual é 0 primeiro e 0 tiltimo pecado. O dever da pregagiio nao é pedir ao povo que entenda; a tarefa confiada ao pregador é a de proclamar a mensagem.' Nesse sentido, MLJ cria que a fé crist@ exige uma fé cega de quem a abraca? Nao. Esse é 0 paradoxo biblico, e conseqiientemente calvinista. 190 LLOYD-JONES, O supremo propésito de Deus, p. 216. 191 LLOYD-JONES, Martyn. O soldado cristo, Sao Paulo: PES, 1996. p. 173 192 LLOYD-JONES, Martyn. Reconciliagdo: 0 método de Deus. Sao Paulo: PES, 1995. p. 66. A dimensao doutrinaria 105 O crente tem todos os motivos racionais possiveis para crer. Mas, s6 ele os vé como racionais: Nao me entendam mal. Isso nao significa que o cristianismo é irracional; 0 que significa é que o cristianismo é super- racional, supra-racional, poderiamos dizer. Nao ha, e isso me causa prazer, pelo que o repito muitas vezes, nao ha nada que, uma vez que vocé esteja dentro, seja tao racional, tao légico como a fé crista. Mas se vocé est fora, ndo a entende; parece haver algo de misterioso nela. Por qué? Porque é obra de Deus, porque é agao direta do Eterno.!? Uma outra adverténcia preliminar acerca do lugar do intelecto na vida crista que é digna de ser enfatizada é a que se relaciona com a diferenga entre conhecer o plano da redengao e conhecer a Cristo. O homem nao é salvo por uma filosofia de redengao. E salvo por “aquela pessoa histérica chamada Jesus de Nazaré, o Filho de Deus”.'* Nao faltaram, de igual modo, adverténcias quanto ao intelectualismo morto. Em MLJ percebe-se uma grande repulsa por um uso da mente que nao leve em consideragao as demais dimensées da vida crista. O cristo havera de usar a mente, se preocupara com o que pensa e trabalhara para que a dimensio intelectual da vida crista se desenvolva. Mas jamais 0 fara com aquela obsess4o que 0 leve a esquecer o restante da vida: Ha alguns que se deixaram persuadir de que devem dar exclusiva atengio a mente, apenas ao conhecimento. Chamamos-lhes intelectuais; interessam-se pelas id¢ias. Nada lhes importa, sendo 0 conhecimento, e eles passam o tempo lendo, estudando ¢ reunindo grande soma de conhecimentos. 193 Ibid., 407. 194 LLOYD-JONES, O supremo propésito de Deus, p. 91. 106 As dimensées da espiritualidade reformada Eles tendem a desprezar os sentimentos e as emogdes. Sao homens de intelecto, conhecimento e entendimento, e menosprezam 0 aspecto experimental. Quanto a pratica, eles ndo negam que é importante, todavia esto ocupados demais lendo, para preocupar-se muito com isso.'”° Em conexdo com isso, MLJ alertava também quanto ao perigo de as pessoas lerem em demasia e da forma errada. Ele chamava isso de cobiga da mente: Depois pensem nisso em termo de leitura, leitura de livros, quero dizer, e de periddicos, etc. Com muita freqiiéncia isto se torna cobiga e, em vez de pensar, meditar e orar, lemos. Uma das tragédias do mundo moderno é que a leitura veio a ser um substituto do pensamento, no caso da imensa maioria do povo.'* Sendo assim, de igual modo, é um erro imperdoavel permitir que outros pensem por nés mesmos: “Um dos nossos problemas atuais é que nao pensamos mais por nds mesmos. Os jornais o fazem por nds, as pessoas entrevistadas no radio e na televisio o fazem por nds, e nés nos sentamos e escutamos”.'*” Apesar de todas as ressalvas feitas quanto ao uso da mente, MLJ julgava que ocristianismo auténtico exigeouso dointelecto. Eleviaa letargia intelectual como o maior pecado dos cristaos dos seus dias. Lamentava ver pessoas que pararam na vida cristé onde comecaram, ao se recusarem a crescer no conhecimento. E de modo algum aceitava a desculpa das pessoas que se diziam cansadas, com muitas ocupagées, problemas na vida diaria e auséncia de inclinag&o para ser leitor ou pensador. Em seu modo 195 LLOYD-JONES, O combate cristdo, p. 139. 196 LLOYD-JONES, Reconciliagdo: 0 método de Deus, p. 66. 197 LLOYD-JONES, Martyn. 4 vida no Espirito. Sao Paulo: PES, 1991. p. 204-205. A dimensao doutrinaria 107 de ver, nessa area da espiritualidade crista, as desculpas supramencionadas negavam as Escrituras, que exigem que o crente pense.'* Toda idéia de que as pessoas nao devem lutar para entender a doutrina e a afirmagao de que a verdade é simples e, portanto, o crente no deve se esforcar para conhecer a doutrina, em sua opinido, eram caracteristicas do falso ensino.'” Qual a relag&o existente entre o cristianismo e o uso da mente por parte do homem? Martyn Lloyd-Jones entendia que é da esséncia do cristianismo a obteng&o de conhecimento: “O cristianismo nao é uma vaga, indefinida e nebulosa espécie de sentimento ou de experiéncia; é manifestamente algo que se pode definir e descrever; é primordialmente matéria de conhecimento”.™ Sendo assim, o cristéo é alguém que em primeiro lugar recebeu algo “na esfera do conhecimento”.”" Em sua andlise de Efésios 4.20-21, MLJ faz uma observacdo perspicaz: “Se nado conhecemos 0 que cremos, como podemos ser cristéos de acordo com a definigdo, ‘Vés aprendestes assim a Cristo?’”.? Nessa perspectiva, ele via a vida crist4 como algo a ser vivido com inteligéncia: Quando 0 apéstolo nos exorta a despojar-nos do velho homem e a revestir-nos do novo, ele nao esté pedindo que haja uma conformidade mecanica, mas sim, que ponhamos em pratica uma mudanga inteligente... 0 cristo nao deve fazer coisas sem saber por que as faz. Nao deve fazé-las cegamente s6 porque lhe disseram que as faga. Nada disso! A inteligéncia é essencial! O espirito da mente! Se vocé nao sabe por que vive a vida crista, vocé estA sendo um pobre cristao.2 198 LLOYD-JONES, Martyn. As insondéveis riquezas de Cristo. Sto Paulo: PES, 1992. p. 123. 199 Ibid, 206. 200 LLOYD-JONES, As trevas e a luz, p. 83. 201 Ibid., 84, 202 Ibid., 86. 203 Ibid, 148. 108 As dimens6es da espiritualidade reformada O crist&o, nesse contexto no qual se vé a vida cristé como algo que é vivido com inteligéncia, é alguém que procura viver com sabedoria. Nao havia quase espaco na visao de vida cristaé de MLJ para algo como a intuigao: “O cristaéo nunca deve ser uma pessoa destituida de pensamento, nunca deve viver aquele tipo de vida instintiva, intuitiva”.* O que vem a ser a sabedoria? A passagem de Efésios em que Martyn Lloyd-Jones apresenta seu conceito de sabedoria é tao reveladora do seu conceito sobre a vida crista, e o apresenta de modo tao especial no que tem de melhor quando se propée a falar sobre os aspectos praticos da vida, que vale analisa-la na integra, apesar da extensio da citagao: Sabedoria ¢ a faculdade de fazer uso da inteligéncia e do conhecimento e de relacionar estas capacidades com as coisas praticas e comuns da vida. Ai esté como eu vejo a esséncia desta palavra. Sabedoria, ¢ claro, é muito semelhante a julgamento, e também estamos familiarizados com a diferenga entre posse de conhecimento e julgamento. Nao s&o a mesma coisa. Ha pessoas que sabem muitissimas coisas. Tém memoria maravilhosa e podem lembrar todo tipo e espécie de fatos, mas s&o incapazes de exercer julgamento. Consegitentemente, nao podem equipar o seu conhecimento, nao conseguem aplicé-lo, so incapazes de usé-lo para enfrentar problemas particulares. Sdo como discos de vitrola, podem repetir informagées, porém n&o as podem aplicar, e dai dizerem delas: ‘Ah, sim, ele é muito instruido, mas incapaz de julgar; realmente Ihe falta sabedoria’. Quais as caracteristicas do homem descrito na Biblia como néscio, como uma pessoa tola, insensata, nfo sabia?...A primeira caracteristica de uma pessoa néscia é que é geralmente governada pelos sentimentos. E 0 tipo de pessoa que vota 204 LLOYD-JONES, A vida no Espirito, p. 46. A dimensao doutrinaria num membro do parlamento somente porque se impressiona com a sua bela aparéncia ou algo semelhante... Outro sinal do néscio, do insensato, é que ele é sempre governado pelo desejo. Tenho que ter 0 que quero e o que quero é justo... a pessoa néscia, insensata, sempre age e é governada por impulsos e instintos e, naturalmente, em geral se orgulha disso. “Nao sou dos que Iéem bastante, pensam e meditam, vocé sabe. Eu pego uma idéia ¢ a ponho em acao”... Tenho ouvido homens desse tipo dizerem que quando precisam fazer uma nomeagao realmente importante em seu negécio ou em seu escritério, sempre confiam no julgamento instintivo de suas esposas. Bem, pode haver algo nisso! Mas, 0 que estou dizendo é que se vocés elevarem isso 4 condigao de principio, certamente estardio fazendo alguma coisa realmente perigosa, sob todos os pontos de vista e, sem diivida, contraria ao ensino das Escrituras. Com muita freqiiéncia 0 néscio é governado pelo zelo... 0 zelo e a sinceridade so maravilhosos, porém nunca foram destinados a estar no comando, e se Ihe derem 0 comando, € certo que sobrevird o desastre. Mas, existem muitos que se deixam governar pelo seu zelo. Eles véem algo e querem fazé- lo, e assim se precipitam, sem tomar em consideragdo mais nada. Presumem que devido a serem zelosos, s6 podem estar certos. Nao, vocés podem estar sinceramente errados. Eis a que tudo isto chega: a pessoa insensata nao pensa adequadamente. Nao pensa direito num assunto; em particular nao pensa adiante. $6 esté preocupada com o momento particular... visto que ele nao olha adiante ¢, visto que nao considera as conseqiiéncias, esta sempre impaciente. Ento o que € a sabedoria? Sabio ¢ o homem que sempre pensa. Nao age baseado apenas no instinto, ou no impulso, ou no desejo. Nao, ele insiste em aplicar-se ao pensamento, a razio e 4 meditacao... ele € um homem que examina 109

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