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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA


CURSO DE DOUTORADO

DISCIPLINA: Tópicos Avançados em História Social.


DOCENTE: Francisco Régis Lopes Ramos.
DISCENTE: Roberto Viana de Oliveira Filho.

O lugar da testemunha na “história do tempo presente” e no “presentismo”: tensões


entre o pensamento de François Hartog e de Henry Rousso.

Tempo é segredo
Senhor de rugas e marcas
E das horas abstratas
Quando paro pra pensar
(Alceu Valença – Embolada do tempo)

Fazendo um “passeio pelos bosques da história” (e também da ficção), me


permito presenciar diálogos impossíveis. Ouvir testemunhos que percorreram o tempo,
pois se fossilizaram na escrita: benandantes da Itália no século XVI, africanos
escravizados e trazidos à América, uma mulher operária da Inglaterra no século XIX. O
exercício imagético de “viver o tempo presente” dessas personagens me faz idealizar os
seus testemunhos.
Essa atividade imaginativa, por mais abstrata que pareça, é basilar a qualquer
produção historiográfica que se proponha a investigar tomando para a sua análise esses
discursos indiretos, fontes em que fragmentos dos testemunhos de mulheres e homens
puderam sobreviver. É provável, inclusive, que muitos desses relatos tenham sido
preservados por pessoas preocupadas em “escrever a história” no “calor do
acontecimento” em seu tempo.
O campo da produção historiográfica tem experimentado, especialmente desde
a segunda metade do século XX, um debate intenso voltado para a análise das
possibilidades de desenvolver uma pesquisa que tome como ponto corolário o tempo
presente. Penso que a principal questão que emerge desse debate é a possibilidade de
refletir sobre a testemunha e os testemunhos em um momento onde o exercício
imaginativo de conversar com os mortos pode ser substituído pela prática de ouvir os
vivos.
Na esteira desse debate, existem duas propostas que oferecem uma
contribuição valiosa para essa peleja tão cara para nós, “do presente”: o aporte da
história do tempo presente desenvolvida por Henry Rousso e a ideia do presentismo
estabelecida por François Hartog.
Essas duas ideias, apesar de terem sido pensadas como respostas a questões
diferentes, entram em choque ao se debruçarem sobre o mesmo estrato do tempo: o
presente. A proposta de Henry Rousso pauta-se em fomentar reflexões sobre a produção
de uma história que é um “ainda ai”, ou seja, que não “foi encerrada”. Os historiadores
que mergulham nessa perspectiva, adentram em um presente que ainda é o seu.
O também historiador François Hartog afirma que este presente está tomado
por um sentimento que ele chama de presentismo: o entusiasmo pelo imediato, por
aquilo que “não dura no tempo”, ou que resume todo o tempo ao agora. Hartog
argumenta que a construção de uma história do tempo presente, tal como pontuou
Rousso, é um sintoma implicado do presentismo, ou seja, que não existe outra forma de
compreender o passado senão a partir do presente.
Em resposta a essa crítica, Rousso pontua aquilo que acredito ser fundamental
para construir uma história do tempo presente: a tarefa árdua de manter uma distância
face ao próprio presente. É exatamente nesse momento que a figura da testemunha e
suas narrativas merecem um destaque maior.
Os historiadores do tempo presente são privilegiados, de certa maneira, com a
possibilidade de ouvir, ler e viver os testemunhos do seu tempo no “calor da emoção”,
tal qual Tucídides na Grécia antiga durante a guerra do Peloponeso. O que nós devemos
fazer é, na minha interpretação, “escapar” da resolução/motivação de Tucídides. Este
historiador grego escreveu seu livro motivado em tentar explicar a razão da derrota de
Atenas, sua cidade natal, neste conflito. Não houve aqui uma distância necessária entre
os testemunhos colhidos por Tucídides e a narrativa que ele produziu sobre a guerra.
Como afirma Rousso, essa é uma tarefa árdua, mas não impossível. É esse
esforço teórico e metodológico que tem alavancado centenas de pesquisas no “tempo
presente” que tomam o “ainda ai” como seu principal lugar de análise.
Por fim, é preciso que o trabalho sobre esses testemunhos contemporâneos
mergulhem em um aprofundado debate sobre a memória e também a forma como ela é
apresentada nas tradições orais. Não podemos imaginar que o fato de podermos
conversar, viver e se relacionar com os narradores e narradoras dessas histórias seja de
alguma forma o imperativo para a “verdade sobre nosso tempo”.
As memórias, aliás, viajam por entre as temporalidades. Penso que, além do
desafio do distanciamento, outra questão fundamental é entender de que maneira essas
temporalidades se ramificam nas narrativas, quebrando os regimes de historicidade e
revelando as experiências e as expectativas dos sujeitos na história.

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