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SUMÁRIO
Apresentação 2
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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)
APRESENTAÇÃO
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Resumo
O presente trabalho tem como objetivo discutir a questão de gênero na sociedade com base na
produção da autora modernista Pagu, uma das maiores representações de feminismo em nosso país.
Grande parte de sua obra permite a reflexão sobre gênero e, para exemplificar, submetemos o poema
“Canal”, de 1960, à análise de linha bakhtiniana do autor Volochínov, que explora as valorações em
que o texto está imerso. Como resultado, demonstramos a diversidade de visões na sociedade, entre os
que valorizam os ideais feministas e os que apresentam concepções tradicionais e conservadoras.
Abstract
The present work aims to discuss the gender issue in society based on the production of the modernist
author Pagu, one of the greatest representations of feminism in our country. Much of his work allows
for reflection on genre, and to exemplify, we submit the poem “Canal” of 1960 to the analysis of the
Bakhtinian line of author Volochínov, which explores the valuations in which the text is immersed. As
a result, we will demonstrate the diversity of visions in society, among those who value feminist ideals
and those with traditional and conservative views.
Introdução
Pretende-se, com este trabalho, apresentar questões de gênero, frequentemente
debatidas na sociedade e também presentes na literatura, uma vez que o lugar da mulher ainda
incomoda. A bandeira do feminismo foi erguida ainda no século XIX, com os primeiros
movimentos pela liberdade e emancipação feminina, porém a desigualdade entre os sexos
continua existindo. Como Simone de Beauvoir, pioneira dos estudos sobre mulheres, traz no
livro O Segundo Sexo, de 1949:
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Licencianda em Letras-Português, IFSP/Campus São Paulo. E-mail: poliana_araujo095@hotmail.com
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Doutora em Teoria da Literatura/UNESP, docente do Departamento de Humanidades/Letras-Português,
IFSP/Campus São Paulo. E-mail: michelle.laranja@ifsp.edu.br
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Ser mulher é ter desde o nascimento um rótulo, um destino pelo simples fato de
pertencer ao sexo feminino, pois é essa visão que o mundo centrado no logocentrismo e no
falocentrismo reproduz de geração em geração. As definições do que é ser homem e do que é
ser mulher são construtos culturais e sociais que, ao se naturalizarem, legitimam a hegemonia
masculina. Ao lidar com o tema, a literatura cria o lugar para a ruptura, reavalia os papéis dos
sujeitos.
São esses questionamentos que Pagu – autora brasileira significativa, embora sem
grande destaque no cânone literário – aborda, com forte militância, na luta pela liberdade
feminina dentro e fora da literatura. Pagu é o apelido de Patrícia Rehder Galvão (1910-1962),
escritora que teve uma trajetória conturbada devido ao posicionamento ideológico, tendo sido
presa por vinte e três vezes. Teve grande destaque no movimento Modernista, apesar de não
participar da Semana de Arte Moderna, em 1922, visto que contava apenas doze anos de idade
à época.
Nesse contexto, este artigo procura analisar os valores integrados na sociedade a
respeito das mulheres, explicitados no poema de Pagu, intitulado “Canal”, de 1960. Ao longo
do texto, a autora reflete sobre o contraste entre diferentes concepções da mulher na
sociedade, seja apoiada em rótulos convencionais petrificantes ou fundamentada no ideal de
liberdade feminina. Pretende-se demonstrar o discurso de uma mulher falando sobre
mulheres, discurso este silenciado em um mundo determinado por homens, como indica o
comentário abaixo, sobre a literatura de autoria feminina:
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mesma direção, emerge, norteada pela bandeira do feminismo, para revelar ideologias
igualitárias.
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Era uma menina forte e bonita, que andava sempre muito extravagantemente
maquiada, com uma maquiagem amarelo-escura, meio cor de queijo palmira, e
pintava os lábios de quase roxo, tinha um cabelo comprido, assim pelos ombros, e
andava com o cabelo sempre desgrenhado e com grandes argolas na orelha. Passava
sempre lá pela faculdade, de uniforme de normalista. E os estudantes buliam muito
com ela, diziam muita gracinha pra ela [...] faziam muita piada e ela respondia à
altura, porque não tinha papas na língua para responder. (FRÉSCA, 2014, p. 2,
citado por ACCORSI, 2015)
Renovar a linguagem está no cerne das preocupações e dos projetos de todos. Mas
subsistem divergências sensíveis sobre o modo de entender as fronteiras entre poesia
e não-poesia, sobre o tipo de mediação que se deve propor entre o ato estético e os
demais atos humanos (éticos, políticos, religiosos, vitais), ou ainda sobre as relações
que se podem estabelecer entre o poema e o objeto de consumo, a imagem da
propaganda, o slogan político, a canção popular e outras manifestações de uma
cultura plural veiculada cada vez mais intensamente pelos meios de comunicação de
massa. (BOSI, 2003, p. 439)
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Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer…
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer…
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer…
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer…
A mulher que inspira, a musa dos modernistas, era bela, vaidosa e extravagante, como
descrita no poema de 1928, posteriormente transformado em canção. Era também inteligente
e preocupada com causas sociais, como a necessidade de valorização da mulher. Veremos a
seguir, por meio da análise de um de seus poemas, a militância pela liberdade, representada
pelo questionamento do lugar social feminino.
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A fim de evitar mal entendidos, parece-nos necessário destacar que aquilo que
entendemos por “valor” não tem nada a ver com a concepção idealista que era
corrente na Psicologia (ver Münsterberg) e na Filosofia (ver Rickert) no final do
século XIX e início do século XX. Nós operamos com o conceito de valor
ideológico, que não objetiva a nenhuma “universalidade”, mas que carrega uma
significação social e, mais precisamente, uma significação de classe.
(VOLOCHÍNOV, 2013, p. 254)
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Sou um canal
Sabem vocês o que é ser um canal?
Apenas um canal?
O mundo sempre pertenceu aos machos. Nenhuma das razões que nos propuseram
para explicá-lo nos pareceu suficiente. É revendo à luz da filosofia existencial os
dados da pré-história e da etnografia que poderemos compreender como a hierarquia
dos sexos se estabeleceu. Já verificamos que, quando duas categorias humanas se
acham em presença, cada uma delas quer impor à outra sua soberania; quando
ambas estão em estado de sustentar a reivindicação, cria-se entre elas, seja na
hostilidade, seja na amizade, sempre na tensão, uma relação de reciprocidade. Se
uma das duas é privilegiada, ela domina a outra e tudo faz para mantê-la na
opressão. (BEAUVOIR, 1970, p. 80)
Essa relação de opressão e hierarquia entre os sexos pode ser observada pelo leitor do
poema, que reconhece, por meio da nomeação metafórica, a condição de submissão imposta
pela sociedade patriarcal às mulheres.
“Sou um canal” é a voz do eu-lírico manifestando que tem conhecimento do discurso e
pensamento naturalizado da sociedade, condensado em palavras e atitudes do dia a dia, que
provam a objetificação do corpo, como as cantadas, os comentários de apelo sexual, os
assobios, os abusos. Logo em seguida, porém, vem o questionamento: “Sabem vocês o que é
ser um canal?/Apenas um canal?”, mudando o tom – de constatação para indignação. O
diálogo com esse “vocês” indica a necessidade fazer o “outro” refletir sobre o
constrangimento de ser comparada a um canal.
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Partindo dessa lógica, o poema extravasa o que o cotidiano sufoca com a rotina,
problematiza as mazelas de uma época e abarca problemas reais. Em razão dessa conjunção,
revela-se uma das dimensões da literatura, visto que, “na literatura são importantes acima de
tudo os valores subentendidos. Se pode dizer que uma obra artística é um potente
condensador de valores sociais.” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 88). Ao transparecer o
subentendido, compreendemos o embate entre os valores do machismo e do feminismo,
observados também no seguinte excerto:
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Considerando a biografia da autora, a primeira ideia que surge à mente quando lemos
a palavra “bandeira” é como sinônimo de luta, um lema que direciona atitudes políticas. O eu-
lírico, entretanto, apresenta as bandeiras de navios ao vento, como a vida que segue seu curso
sem necessidade de intervenção. É como uma sociedade ideal, na qual não existe a
discriminação sexista.
Se o poema se abstém de falar do feminismo nesse instante, a bandeira da luta
comunista parece se levantar. O “vento noroeste” pode ser um sinal de turbulência, a agitação
social diante de problemas verificados nas ruas da cidade. Diante de tais problemas, há sinais
de solução, com as imagens da “lua nova” e da “plantinha voacejando na minha frente”. A
visão partidária fica mais evidente na sequência:
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Essa retomada do pessimismo inicial pode indicar que o eu-lírico tem consciência de
que ainda nada mudou, de que o mesmo contexto de diferença está presente, de que a
mudança tão sonhada ainda não chegou. Portanto, o discurso repleto de dualidades, no qual se
alternam otimismo e pessimismo, é concluído com angústia. Ao repetir que “estão mortas
todas as esperanças”, o eu-lírico nomeia-se novamente como um canal, como se quisesse
convencer seu interlocutor (e a si mesmo) de que não há motivo para lutar.
É possível, por outro ponto de vista, interpretar o ser canal de uma maneira menos
negativa. A necessidade de criar novos modelos, seja pela estética modernista, seja pelo
pensamento revolucionário, impõe ao artista e pensador batalhas contínuas. Pode ser que o
eu-lírico revele um cansaço diante de tantas batalhas, mas não se pode negar que a trajetória
lírica/política de Pagu representa uma ponte às gerações posteriores a ela. Assim, ser canal
pode representar a qualidade de ligar sujeitos e épocas diferentes, direcionando a sociedade de
pensamento tradicional e conservador por um caminho de autonomia e justiça.
Tudo no texto artístico se integra na construção dos efeitos de sentido. Há, no poema
analisado, ausência de preocupação formal, embora não apareçam experimentalismos como
nos primeiros poemas da autora. Dialoga com a estrutura formal, o pensamento inquietante,
advindo do jogo de contradições vocabulares e ambiguidades irônicas. Soma-se a ideologia
francamente oposta à concepção convencional acerca do posicionamento da mulher na
sociedade machista, inclusive pelo fato de apresentar uma mulher que escreve literatura. Essas
transgressões de valores convencionalmente estabelecidos traduzem um discurso novo e
moderno.
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Considerações finais
Procuramos demonstrar a integração entre a estrutura do poema e a interpretação,
relacionando dados biográficos e contextuais, considerando o discurso construído na arte
como interligado ao que é vivido. Assim, a interpretação das questões de gênero presentes no
poema está atrelada à observação da sociedade ocidental (genericamente) e brasileira
(especificamente), além da relação com a vida da autora e suas ideologias políticas.
Outra questão importante é valorização da autoria feminina, rompendo a tradição do
cânone literário. Se a voz das mulheres é apagada na vida e na arte, na obra de Pagu tem lugar
de destaque. O discurso artístico – não apenas da autora, mas especialmente o dela – é
impregnado pela biografia, pela vivência que determina o caminho ideológico, nesse caso,
sempre atrelado à militância em prol das mulheres, em uma sonhada sociedade comunista.
Interpretar o poema “Canal” à luz da teoria de Volochínov (2013) permite investigar o
posicionamento crítico-ideológico revelado. Essa perspectiva teórica indica que toda e
qualquer manifestação artística (como a literatura) está diretamente relacionada com seu
momento histórico-cultural e, dessa forma, a arte condensa todos os valores que estão
presentes naquele meio.
Dessa forma, não podemos separar vida (contexto extraliterário) da obra poética.
Pagu, nos versos de “Canal”, critica a forma que a sociedade trata as mulheres, cujo valor
pejorativo se constrói a partir da visão que centra o homem como fonte de todo o saber,
responsável pela condução de todos os âmbitos sociais (e históricos). O que sobra à mulher é
ser apenas um canal, ideia construída, desconstruída, repetida e ressignificada no poema.
A literatura de autoria feminina combate as representações da mulher fundadas nos
valores ideológicos discriminatórios, uma vez que dá voz a sujeitos desprezados na sociedade.
Há uma concepção de revolução, de luta para o empoderamento feminino, para que as
mulheres se apropriem de espaços negados na vida e na literatura. O reconhecimento de
autoras como Pagu torna-se, portanto, fundamental para que a própria sociedade liberte-se de
concepções ultrapassadas e injustas, libertando-se de padrões opressores, baseados em normas
de gênero.
Referências
ACCORSI, Simone. Os delírios de Pagu. Historia y Espacio, [S.l.], v. 11, n. 44, p. 75-89, ago.
2015. ISSN 2357-6448. Disponível em:
<http://historiayespacio.univalle.edu.co/index.php/historia_y_espacio/article/view/1199>.
Acesso em: 5 set. 2017.
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BEAUVOIR, Simone. Segundo Sexo: Fatos e Mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
1970.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2003.
GALVÃO, Patrícia Rehder. Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão. Rio de
Janeiro: Agir, 2005.
ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica Feminista. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Org.).
Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2005.
______. Literatura de Autoria Feminina. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Org.)
Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2005.
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ANEXO
Canal
Pagu/Patrícia Rehder Galvão
Publicado n’A Tribuna, Santos/SP, em 27-11-1960.
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Resumo
O presente artigo busca analisar o modo como a figura paterna é representada nas famílias construídas
em duas tragédias de Nelson Rodrigues: Álbum de família e Senhora dos afogados. O objetivo é
verificar se as valorações do patriarcado brasileiro, que são representadas nas figuras paternas das
peças, estão estruturadas da mesma forma nas duas tragédias. Como referenciais teóricos, são
utilizados o conceito da poética sociológica, de Valentin Volochinov, que abordará a questão de
valorações sociais; o estudo sobre a constituição familiar ocidental, de Elisabeth Roudinesco; e os
estudos sobre o trágico no teatro desagradável de Nelson Rodrigues, de Carla Souto. A análise foi
realizada por meio da comparação de duas tragédias de Nelson Rodrigues: Álbum de Família e
Senhora dos Afogados. Conclui-se que em ambas as tragédias a figura paterna é considerada o cerne
da constituição familiar, mas as simbologias nas quais cada figura paterna está fundamentada são
diferentes: em Álbum de família, podemos ver o patriarca construído com base em valores cristãos,
enquanto em Senhora dos afogados vemos o pai delineado com base em valores sociais e políticos.
Palavras-chave: Valorações sociais. Patriarcado. Figura paterna. Álbum de Família. Senhora dos
Afogados.
Abstract
This paper analyses the processes by which the father figure is characterized in the families
represented within two tragedies by Nelson Rodrigues – Álbum de família and Senhora dos afogados.
It intends to verify if the valuations of Brazilian patriarchalism – which is represented through the
father figures in each tragedy – are structured the same way in both plays. As theoretical references,
the work evokes the concept of sociological poetics, by Valentin Volochinov, that addresses the social
valuations question; the study on West family formation by Elisabeth Roudinesco; and the studies on
the tragic side of the “unpleasant theatre” of Nelson Rodrigues, by Carla Souto. Present analysis was
performed through the comparison of two tragedies by Nelson Rodrigues: Álbum de família and
Senhora dos afogados. Thus, we conclude that in both tragedies the father figure is considered the core
of family formation, though the simbolisms that underlie each father figure are different: in Álbum de
Família the patriarch is structured by means of Christian values, while in Senhora dos Afogados the
father character is outlined through social and political values.
Keywords: Social values. Patriarchalism. Father figure. Álbum de Família. Senhora dos Afogados.
Introdução
O presente trabalho tem como cerne a análise comparativa de duas tragédias do
dramaturgo Nelson Rodrigues: Álbum de Família e Senhora dos Afogados, com vistas a
verificar como a figura paterna está representada nesta configuração familiar, desenhada nas
duas tragédias. O intuito do trabalho é analisar de que modo o formato de família tradicional é
1
Licenciando em Letras-Português, IFSP/Campus São Paulo. E-mail: iagonunessantos@gmail.com
2
Doutora em Teoria da Literatura/UFRJ, docente do Departamento de Humanidades/Letras-Português,
IFSP/Campus São Paulo. E-mail: carla.souto@gmail.com
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seleção dela, como forma da totalidade verbal: “[...] é na entonação que a valoração encontra
sua expressão mais pura. A entonação estabelece um vínculo estreito entre a palavra e o
contexto extraverbal: a entonação viva parece conduzir a palavra além das fronteiras verbais”
(VOLOCHINOV, 2013, p. 81). A entonação só pode ser compreendida quando as valorações
subentendidas do grupo social dado são compartilhadas. É pela entonação que a palavra se
relaciona diretamente com a vida e é nela que o falante se relaciona com o ouvinte. Por isso, a
entonação é social. Portanto, a enunciação artística está envolvida na enunciação na vida. Em
outros termos,
Por conseguinte, em uma obra artística, não pode haver coisas não-ditas e, no caso da
literatura, o que ficou de fora da enunciação deve então encontrar um representante verbal. E
é por meio das “metáforas entonacionais” (VOLOCHINOV, 2013, p. 88) que essas enunciações
que ficaram de fora ganham suas representações na obra artística.
Nessa perspectiva, a figura paterna na configuração familiar tem, ao longo de nossa
história universal, um papel fundamental, principalmente para a sociedade burguesa, no
momento da sua consolidação e da sua estruturação. O núcleo familiar é considerado uma
instituição importante, na qual o indivíduo tem seus primeiros contatos com outros indivíduos
semelhantes, criando as primeiras regras de convivência que serão projetadas posteriormente
em um convívio social mais amplo.
Elisabeth Roudinesco, na obra A família em desordem, apresenta as transformações
que o conceito de família sofreu ao longo da história. A autora mostra como caminharam e se
transformaram a família ocidental e seus símbolos. Comenta os estudos do antropólogo Lévi-
Strauss que apontam que a vida familiar aparece em quase todas as sociedades humanas.
Assim, o antropólogo define família como um fenômeno universal, que pode ser ou não uma
união duradoura.
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Para se criar uma família, Lévi-Strauss afirma que é necessária a existência de outras
duas famílias, as quais fornecerão um homem e uma mulher, para que com a união dos dois
seja gerada uma terceira família. Nesse aspecto, o fenômeno familiar pode ser estudado por
duas abordagens: a que abrange os campos sociológicos, históricos ou psicanalíticos em que
pode haver um estudo vertical sobre as filiações e das gerações, e a que abrange o campo
antropológico que pode ter uma descrição horizontal, estrutural ou comparativa das alianças.
Dessa maneira, cada abordagem utiliza um termo diferente para esse fenômeno: enquanto
aquela utiliza o termo “Família”, esta utilizará o termo “Parentesco”.
A partir desta constituição familiar, surgem dois movimentos sociais: a prática de
troca, que servia para estabelecer os laços matrimoniais entre os grupos sociais (circulação
das mulheres); e a proibição do incesto, que determinava que as famílias teriam que se aliar a
outras famílias: “e não cada uma por sua conta, consigo.[...] A proibição do incesto é portanto
tão necessária à criação de uma família quanto a união de um macho com uma fêmea”
(ROUDINESCO, 2003, p. 11). Essa proibição, como construção mística, é ligada a uma
função simbólica: é um fato cultural e da linguagem proibindo, em vários graus, o ato
incestuoso, por estes atos existirem na realidade. Desse modo, a família pode ser considerada
uma instituição duplamente universal associada a um fator cultural, construído pela
sociedade, e a um fator da natureza, leis da reprodução biológica. Na visão de Roudinesco
(2003, p. 12),
a própria palavra recobre diferentes realidades. Num sentido amplo, a família sempre
foi definida como um conjunto de pessoas ligadas entre si pelo casamento e a
filiação, ou ainda pela sucessão dos indivíduos descendendo uns aos outros: um
genos, uma linhagem, uma raça, uma dinastia, uma casa etc. (ROUDINESCO, 2003,
p. 12)
Roudinesco (2003), então, aponta como a figura de família foi vista e estudada ao
longo dos séculos. Ela aponta que Aristóteles (1985 [Séc. V a.C.]) define a família como uma
comunidade, oikos, servindo de base para a cidade, polis. Sua estrutura é hierarquizada e
centrada na dominação patriarcal. A partir desta estrutura, estabeleciam-se três tipos de
relações: senhor e escravo, associação entre marido e esposa, vínculo entre pai e filho.
A família dita “conjugal” que conhecemos hoje foi resultado de uma evolução
acontecida nos séculos XVI e XVIII. Neste período, foi se destacando outro tipo de formação
familiar, sobressaindo-se o termo “famílias”: um conjunto, uma casa, um grupo, incluindo
parentes, pessoas próximas, amigos e criados. Houve três períodos de transformação familiar:
1. a Família “Tradicional”, cujo intuito era o de assegurar a transmissão de um patrimônio: os
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casamentos eram arranjados pelos pais, seus filhos tinham uma idade precoce; 2. a Família
“Moderna”, que emerge no final do século XVIII e meados do século XX, fundamentada no
amor romântico, reciprocidade dos sentimentos e desejos carnais pelo casamento; 3. a Família
“Contemporânea”, a partir dos anos 1960, que consiste na união dos indivíduos em busca de
relações íntimas ou sexuais. Roudinesco (2003, p. 13) sustenta que,
A partir disso, tem-se o pai como a figura mais fundamental para a constituição
familiar. Nos tempos arcaicos, o pai, um herói ou um guerreiro, era visto como a encarnação
familiar de Deus, um rei, um senhor das famílias: “Herdeiro do monoteísmo, reina sobre o
corpo das famílias e decide sobre os castigos infligidos aos filhos” (ROUDINESCO, 2003, p.
13). Em Roma, o pai é aquele que se designa pai de uma criança, pois assim pode o conduzir,
ou seja, ele pode lhe dar tudo, “assim como a qualquer estranho, instituí-lo herdeiro, deserdar
seus filhos legítimos em prol dele, pois é o senhor de sua casa. Mas pode igualmente deixá-lo
na indigência, ignorá-lo completamente: esta criança não é seu filho, ele nada lhe deve”.
(MULLIEZ, 2000, citado por ROUDINESCO, 2003, p. 13)
O Cristianismo enxerga a figura do pai como uma encarnação terrestre de um poder
espiritual, sem deixar de lado as leis da natureza às quais está submetido seu corpo. Por isso, a
paternidade será reconhecida, não através de um homem, mas sim decorrente da vontade de
Deus; e só será reconhecido pai aquele que se submeteu à “legitimidade sagrada do
casamento”, visto ser por meio dele que a família se constitui. Roudinesco (2003, p. 14)
observa que
o pai é aquele que toma posse do filho, primeiro porque seu sêmen marca o corpo
deste, depois porque lhe dá seu nome. Transmite portanto ao filho um duplo
patrimônio: o do sangue, que imprime uma semelhança, e o do nome — prenome e
patronímico —, que confere uma identidade, na ausência de qualquer prova
biológica e de qualquer conhecimento do papel respectivo dos ovários e dos
espermatozoides no processo da concepção. Naturalmente, o pai é reputado pai na
medida em que se supõe que a mãe lhe é absolutamente fiel. Por outro lado, a
eventual infidelidade do marido não tem efeito na descendência, uma vez que seus
“bastardos” são concebidos fora do casamento e portanto fora da família. Em
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Assim, a figura paterna é vista como algo imortal, pois será a partir dos seus
descendentes que ele será lembrado pelas gerações. A partir desta concepção da figura paterna
com base em dois componentes – carne e espírito – é possível ver, na época medieval, na
construção da figura do rei, a sacralização deste, estabelecendo não só a encarnação da figura
de Deus, mas também a encarnação do Estado. No princípio Monárquico, o soberano exercia
uma dominação sem a partilha por ordem materna, já que o corpo da mulher será visto como
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algo perigoso. Em 1580, Jean Bondim (citado por ROUDINESCO, 2013, p. 16) irá apontar,
na sua obra Demonologia dos feiticeiros, que só acontece e se consolida a soberania do pai
quando este se liberta das feitiçarias da mulher. Já no século XVII, Thomas Hobbes sustenta
a ideia da concepção da autoridade paterna, vendo a ordem do mundo composta por duas
ordens soberanas: a natureza, representada pela mãe, e o “estado de aquisição”, encarnado
pelo pai. Na ordem da natureza, não existem leis sobre o casamento e não se pode saber quem
é o pai, sendo a mãe a única a designar quem é o pai. Portanto, pai só é o pai por meio de um
contrato denominado pela mãe.
Seguindo pelos séculos, a visão da figura paterna foi sendo modificada. A partir do
século XVIII, a figura paterna é contraposta entre a encarnação de Deus pai e a “autoridade
fundada num contrato moral e social” (ROUDINESCO, 2003, p. 17). Quando o pai é julgado
fraco, a família recebe outros tipos de complementação (Estado, nação, pátria). Portanto, a
figura da Família foi sendo vista como modelo das sociedades políticas, nas quais o pai
representa a figura do chefe de família e os filhos, a imagem do povo.
A ideia da figura paterna como a encarnação de Deus foi dando lugar ao pai como
chefe de família. Com o princípio monárquico, a figura do rei, além de ser encarnação divina,
era vista como uma autoridade moral e social. E com o tempo, a concepção de encarnação
divina foi sendo deixada de lado para dar lugar a um aspecto político.
No início do Século XX, o mundo passou por duas grandes guerras, ocasionando
imensas transformações sociais que questionavam ideias e valores. Uma das esferas sociais a
sofrer estas transformações foi o núcleo familiar, que vai consolidar no século XX a transição
de uma constituição fundamentada na transmissão do patrimônio para uma constituição
fundamentada na lógica afetiva, passando a valorizar a reciprocidade dos sentimentos e
desejos carnais, delineando o que Elisabeth Roudinesco denomina de “família moderna”
(2003, p. 18).
Nelson Rodrigues, como dramaturgo, escreveu, ao longo de sua vida, dezessete peças.
Desde sua primeira peça, A mulher sem pecado, até a última, A serpente, Nelson traz como
mote um núcleo familiar e as relações entre os seus componentes, abordando os temas tabus
da sociedade brasileira.
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Carla Souto (2001), em Nelson “Trágico” Rodrigues, irá observar as relações dos
componentes de tais famílias investigando a estruturação das personagens das tragédias/peças
míticas de Nelson Rodrigues: Álbum de família, Anjo negro, Dorotéia e Senhora dos
afogados, tragédias consideradas como “teatro desagradável” do autor. A ideia de
investigação da autora é de que as personagens dessas tragédias não podem alcançar a
felicidade por causa de suas limitações.
As personagens das peças vivem então uma relação de ausência com os seus desejos,
só podendo realizá-los através de sua falta, de sua amputação, de sua morte, sendo
incapazes de torná-los presentes. Isso é impossível para elas, que foram usurpadas
no seu íntimo, no seu desejo mais profundo. E para a realização pessoal é preciso
que o indivíduo não esteja limitado na liberdade do seu ser nem seja tocado na
integridade do seu corpo. (SOUTO, 2001, p. 11)
Partindo das observações de Souto (2001; 2007) sobre as personagens e das famílias
das peças de Nelson Rodrigues e embasando-nos nos estudos de Roudinesco sobre a família
ocidental, analisamos o funcionamento de duas famílias de duas peças de Nelson Rodrigues, a
fim de verificar como as valorações sociais existentes na formação da família brasileira
encontram representação pelas metáforas entonacionais, estudadas por Volochinov (2013),
sendo parte de uma engrenagem do funcionamento de cada uma destas famílias. Para tanto, as
peças observadas e comparadas fazem parte do teatro desagradável do autor: Álbum de família
e Senhora dos afogados.
Álbum de Família, escrita em 1945, foi a terceira peça de Nelson Rodrigues, logo
depois do sucesso de Vestido de Noiva. Mas a peça só foi ter sua realização cênica em 1967,
22 anos depois de ser escrita: foi interditada pela censura em 17 de março de 1946 e liberada,
somente, em 3 de dezembro de 1965. Envolvida em polêmicas, a tragédia de Nelson
Rodrigues causou intrigas e opiniões divergentes na sociedade brasileira. Então, dava-se
início ao ciclo do “teatro desagradável” e Álbum de Família era sua pioneira. Com exceção de
Dorotéia, Nelson aborda um tabu que é a essência dos textos das peças desagradáveis: o
incesto. Ele é o grande tema, principalmente em Álbum de Família.
Com Vestido de Noiva, conheci o sucesso; com as peças seguintes, perdi-o e para
sempre. Não há nesta observação nenhum amargor, nenhuma dramaticidade. Há,
simplesmente, o reconhecimento de um fato e sua aceitação. Pois a partir de Álbum
de Família – drama que se seguiu a Vestido de Noiva – enveredei por um caminho
que pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito. [...] A partir de Álbum de
Família, tornei-me um abominável autor. Por toda a parte, só encontrava ex-
admiradores. Para a crítica, autor e obra estavam justapostos e eram ambos “casos de
polícia”. (RODRIGUES, 1977 citado por MAGALDI, 1981, p. 13-14)
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A tragédia conta a história de uma família do início do século XX, composta por
Jonas, D. Senhorinha e seus filhos Guilherme, Edmundo, Nonô e Glória. A história tem seu
início quando Glória se envolve com uma menina no colégio de freiras e ambas são
descobertas. Glória e Tereza são expulsas. É com a vinda de Glória e de todos os filhos do
casal para a fazenda da família que os conflitos surgem e os segredos e desejos vão sendo
revelados. Jonas e Senhorinha são primos e se casaram bem novos: ele, com 25 anos e ela,
com “15 risonhas primaveras.”
O que levou Jonas a casar com D. Senhorinha, sua prima dez anos mais nova [...] foi
pura e simplesmente a realização do ato carnal. Jonas é um homem de sensualidade
transbordante, extremamente dominado pelo desejo sexual, enquanto D. Senhorinha
é uma esposa fria. O casamento aqui representa apenas um passo “natural” da vida
adulta, um ritual como tantos outros. [...] Com o nascimento dos filhos, acentuou-se
a repulsa, porque eles descobriram o amor nos filhos do sexo oposto, não um amor
de pais para filhos, mas o que faltava em ambos como casal. (SOUTO, 2007, p. 119)
Assim, se inicia o destino trágico desta família. Impelidas por seus desejos, as
personagens da tragédia não possuem o que Souto (2001) denomina como mecanismo de
censura moral: “Portanto, regem seus atos os instintos e sentimentos mais primários, o que
resulta inevitavelmente em tragédia, já que as leis sociais e morais foram criadas para regular
os conflitos entre as pessoas” (SOUTO, 2001, p. 12). Jonas vê na filha caçula o amor que não
achou na mulher; Senhorinha verá esse amor nos filhos homens.
É a partir dos componentes desta família que vemos sentimentos, desejos e vontades
surgirem como se aquela família fosse a “única e primeira”.
Senhora dos Afogados, escrita em 1947, foi a quinta peça de Nelson Rodrigues, sendo
a terceira do ciclo do teatro desagradável. A peça foi interditada em 1948 e só liberada em
1954. Essa peça também causou intrigas na sociedade, principalmente no círculo de amigos
de Nelson.
Eis o fato: minha peça Senhora dos afogados fora interditada. [...] Pedi uma
Comissão de Intelectuais, cujo parecer salvaria ou não Senhora dos afogados.
Indiquei nomes, que o general aceitou. Olegário fora uma das minhas sugestões.
Gilberto Freyre, outra. Muito bem: Olegário votou contra, vejam vocês, contra
(Gilberto a favor). (RODRIGUES, 2015, p. 25)
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[...] Ele já conhecia o amor antes de se casar com D. Eduarda, era apaixonado por
uma prostituta. Mas como nascera em uma família tradicional e almejava uma
carreira de sucesso, primeiro como juiz e depois como político, precisava fazer um
matrimônio de acordo com suas pretensões. (SOUTO, 2007, p. 120)
AVÓ - Não gosta de nós. Quer levar toda a família, principalmente as mulheres.
(num sopro de voz) Basta ser uma Drummond, que ele quer logo afogar. (recua
diante do mar implacável) Um mar que não devolve os corpos e onde os mortos não
boiam! (violenta, acusadora) Foi o mar que chamou Clarinha, (meiga, sem
transição) chamou, chamou… [...]
VIZINHO (em conjunto) - Primeiro Dora, depois Clarinha!
VIZINHO (solista, para um e outro) - Já duas afogadas na família!
AVÓ - Depois das mulheres, será vez dos homens…
VIZINHO (solista) - Acredito!
AVÓ - E depois de não existir mais a família - a casa! (olha em torno, as paredes, os
móveis, a escada o teto) Então, o mar virá aqui, levará a casa, os retratos, os
espelhos! (RODRIGUES, 1981, p. 262)
28
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Outra marca importante em Jonas é a sua ligeira semelhança física com o Cristo,
sempre lembrada e enfatizada pela filha, Glória. Há aí, porém, uma inversão de
papéis, pois o Cristo simboliza o filho e Jonas representa o pai. Mas não o pai feito
de amor e perdão mostrado por Cristo no Novo Testamento, e sim o pai vingativo e
repressor do Antigo Testamento, capaz de aplicar os maiores castigos aos seus
descendentes. (SOUTO, 2001, p.78)
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JONAS (gritando) - Mas ELES estão enganados comigo. Eu sou o PAI! O pai é
sagrado, o pai é o SENHOR! (fora de si) Agora eu vou ler a Bíblia, todos os dias,
antes de jantar, principalmente os versículos que falam da família. (RODRIGUES,
1981, p. 65)
Jonas, logo no início da peça, adjetiva a si próprio como sagrado: ele se coloca em um
lugar teocêntrico ao utilizar o termo “SENHOR”, em letras maiúsculas. Esta nomeação o liga
a Cristo, o que é possível constatar em algumas das rubricas do texto. Na primeira aparição de
Jonas, a rubrica aponta que ele é um “tipo de homem nervoso, apaixonado, boca sensual,
barba em ponta” e que possui uma “vaga semelhança com Nosso Senhor”.
Outro momento em que ocorre este recurso estilístico é na cena de Glória com
Guilherme na igreja local. Esta cena revela o amor que a filha tem pelo próprio pai. Assim,
todo o cenário corresponde às “condições psicológicas de Glória”, que vê no retrato grande do
Nosso Senhor o rosto de Jonas.
(Ilumina-se uma nova cena: interior da igrejinha local. Altar todo enfeitado.
Retrato imenso de Nosso Senhor, inteiramente desproporcionado - que vai do teto
ao chão. NOTA IMPORTANTE: em vez do rosto do Senhor, o que se vê é o rosto
cruel e bestial de Jonas. [...]) (RODRIGUES, 1981, p. 87)
GLÓRIA (dolorosa) - Vocês estão sempre do lado de mamãe - mas, eu, NÃO!
GUILHERME - Dou minha palavra de honra!
GLÓRIA - Eu nunca disse a ninguém, sempre escondi, mas agora vou dizer: não
gosto de mamãe. Não está em mim - ela é má, sinto que ela é capaz de matar uma
pessoa. Sempre tive medo de ficar sozinha com ela! Medo que ela me matasse!
GUILHERME - Papai é pior!
GLÓRIA (transportada) - Papai, não. Quando eu era menina, não gostava de estudar
catecismo… Só comecei a gostar - me lembro perfeitamente - quando vi, pela
primeira vez, um retrato de Nosso Senhor… Aquele que está ali, só que menor -
claro! (desfigurada pela emoção) Fiquei tão impressionada com a SEMELHANÇA!
GUILHERME - Onde é que você viu semelhança? (RODRIGUES, 1981, p. 92)
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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)
Glória faz a oposição entre o pai e a mãe. Ela adjetiva a mãe como uma pessoa “má”,
sentindo que esta poderia matá-la, rebaixando, assim, a figura materna e elevando a figura do
pai. Ao utilizar, em letras maiúsculas, a palavra “SEMELHANÇA!”, Glória faz uma
comparação de Jonas com o Nosso Senhor, colocando o pai em um lugar sagrado e divino,
ideia que predominava no mundo medieval.
Em Senhora dos Afogados, podemos ver a existência de uma dessas facções
familiares, que é a família dos Drummond e a sua figura paterna como o chefe. Misael, casado
com D. Eduarda, é pai de quatro filhos: três meninas e um menino. Ele, assim como a
personagem de Jonas em Álbum de Família, é o centro da família, pois é a partir das atitudes
dele como chefe que recai a maldição na família dos Drummond, levando suas personagens
ao trágico. Antes de se casar com D. Eduarda, Misael se apaixona por uma prostituta, mas por
ser de uma família tradicional na sociedade “precisava fazer um matrimônio de acordo com
suas pretensões” (SOUTO, 2007, p. 120).
Misael é um homem corroído pela culpa, dilacerado por dentro. Ele se sente velho,
doente e cansado. [...] Ele é um fraco, que se apoiou o tempo todo apenas na força de
trezentos anos dos antepassados. Tudo o que ele deseja realmente é que a esposa seja
uma companheira na velhice, que o ampare no momento de doença e fraqueza [...]
(SOUTO, 2001, p. 117)
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Partindo de uma ideia de família na qual se tem a transmissão de uma tradição que se
perpetua pelas gerações, a figura paterna é aquela que tem a função de garantir a transmissão
das tradições. Ao longo do texto, vemos uma preocupação das personagens que compõem o
núcleo familiar de afirmar e reafirmar suas tradições.
Misael tem o poder de assegurar a transmissão das tradições pelas gerações e de que
elas não se percam ao longo da história da família, por isso sua imagem é construída como a
de uma chefe que gerencia aquela pequena parte da sociedade.
SEGUNDO QUADRO
VIZINHO - Perfeitamente.
VIZINHO - Mas ouvi dizer que Clarinha era filha predileta do sr. Juiz?
MOEMA - Ministro!
VIZINHO - Já?
VIZINHO - Claro!
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MOEMA (numa euforia) - A nomeação ainda não saiu, mas está por pouco, é mais
do certa. E agora mesmo papai está num banquete! O próprio governador
compareceu! (RODRIGUES, 1981, p. 264)
É neste diálogo, logo no início da peça, entre Moema, filha de Misael, e os vizinhos,
que vemos a figura de Misael recebendo funções políticas e sociais. As palavras “Juiz” e
“Ministro” carregam uma valoração social que designa uma função política, denominando
chefes de uma dada instituição, assim, acabam por adjetivar Misael, colocando-o em uma
posição de líder. O resultado do processo é que a família agrega um valor perante a
sociedade, que no caso da peça é representada pelas vozes dos vizinhos associando o nome da
família, Drummond, à função social do pai, Juiz e Ministro.
Conclusão
Com base nas análises apresentadas, podemos estabelecer a comparação entre as duas
famílias, sustentando que estas, embora de base patriarcal, possuem uma constituição familiar
diferente uma da outra: enquanto em Álbum de Família podemos ver uma família de cunho
cristão, em Senhora dos Afogados vemos uma família de cunho social e político. Jonas e
Misael são as figuras paternas representadas em cada família, e ambas as figuras têm sua
função central: Jonas é a figura onipotente, onisciente, onipresente a que todos os membros da
família temem, odiando ou amando, adjetivando-o com valorações cristãs, pois chegam a
compará-lo com Nosso Senhor. Misael é a figura gestora da família, responsável por manter a
tradição e o nome dos Drummond. Por isso, acabam por adjetivá-lo com valorações sociais e
políticas, dando-lhe funções de chefia de instituições que são refletidas na própria casa.
Esses valores religiosos ou sociais são representados nas obras através das metáforas
entonacionais, que são os recursos linguísticos utilizados para evidenciá-los e não deixá-los
subentendidos: vocábulos do campo semântico do universo cristão ou com valores políticos
são escritos em letras maiúsculas ou repetidos diversas vezes ao longo da obra. Assim,
podemos concluir que ambas as famílias nas duas tragédias de Nelson Rodrigues refletem a
constituição familiar patriarcal, que foi recorrente ao longo de uma evolução da ideia de
família e que no Brasil teve um papel importante e formador.
Referências
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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)
CASTRO, Ruy. O anjo Pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 27. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2014.
MAGALDI, Sábato. Teatro da obsessão: Nelson Rodrigues. São Paulo: Global, 2004.
RODRIGUES, Nelson. Álbum de Família. (Tragédia em três atos). In: RODRIGUES, Nelson.
Teatro completo. V. 2: peças míticas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
______. Memórias: A menina sem estrela. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
______. Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária. (Peça em três atos). In:
RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. V. 4: tragédias cariocas II. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1990.
______. Senhora dos Afogados. (Tragédia em 3 atos). In: RODRIGUES, Nelson. Teatro
completo. V. 2: peças míticas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
SOUTO, Carla Cristina Fernandes. Nelson “trágico” Rodrigues. Rio de Janeiro: Ágora da
Ilha, 2001.
______. Nelson Rodrigues: o inferno de todos nós. Araraquara: Junqueira & Marin, 2007.
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Resumo
O artigo analisa a letra da canção “Lalá”, de Karol Conká, pensando a sexualidade e o prazer
femininos como componentes de um discurso que se contrapõe ao silenciamento social imposto à
mulher. Para tanto, partimos de alguns conceitos da Análise de Discurso, do ponto de vista de Bakhtin
(1999) e Orlandi (2009), das considerações de Gonçalves (2011) a respeito da música popular como
uma criação literária disposta a extrapolar o seu lugar e como produção artística que questiona a
sociedade e seu lugar no cânone musical tradicional e, por fim, sobre a sexualidade feminina a partir
de Ribeiro (1999) e Paranhos (2015). Desse modo, analisamos os recursos discursivos e os sentidos
produzidos na canção “Lalá”, tentando entender sua extensividade como elementos discursivos
recorrentes no discurso musical feminino de recolocação da mulher na sociedade, apresentando-os
como forma de combate e de quebra do silenciamento historicamente imposto à sexualidade e ao
prazer feminino.
Abstract
This paper analyses the lyrics of the song “Lalá”, by Karol Conká, thinking feminine sexuality and
pleasure as components of a discourse that opposes itself to the social silencing imposed to women.
Therefore, we started from some concepts of Discourse Analysis, from Eni Orlandi’s (2009) point of
view and from Rôssi Alves Gonçalves’s (2011) considerations regarding popular music as literary
creation willing to extrapolate its place, as an artistic production that questions society and its place on
traditional music canon. Thus, we will analyse the discursive resources and the meaning produced by
the song “Lalá”, trying to understand its extensiveness as discursive recurring elements on the
feminine musical discourse of the relocation of women on society and showing them as a way of
fighting and breach of the silencing historically imposed to women’s sexuality and pleasure.
Introdução
Karol Conká é o nome artístico da rapper Karoline de Freitas Oliveira, natural de
Curitiba, nascida em 1º de janeiro de 1987. Em 2011, ela disponibilizou algumas músicas no
Myspace (plataforma social anterior ao Facebook e ao Orkut) e seu primeiro álbum, Batuk
Freak, foi lançado em 2013. Desde então, a artista segue os caminhos da polêmica e do
questionamento de seu lugar, a despeito de seu sucesso meteórico: recebeu diversas
1
Licencianda em Letras-Português, IFSP/Campus São Paulo. E-mail: ana.bertozzi@gmail.com
2
Doutorando em Literatura Portuguesa/USP, docente do Departamento de Humanidades/Letras-Português,
IFSP/Campus São Paulo. E-mail: oprofcharles@gmail.com
35
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premiações, foi trilha sonora de novelas, foi trilha de campanhas publicitárias, realizou shows
por todo o mundo e é apresentadora de um programa de beleza, moda e comportamento no
canal de TV GNT. Mesmo em suas entrevistas, a cantora não se furta aos questionamentos
mais difíceis, relativos à sexualidade, ao comportamento e à realidade da mulher,
contextualizados por um mundo-mercado ainda dominado por homens. Dentro deste campo
das disputas de gênero, a rapper, em uma de suas falas mais polêmicas, declarou-se bissexual
e feminista.
Nesse sentido, coerente em sua perspectiva meteórica, polêmica e questionadora,
Karol Conká já produziu inúmeras canções que abordam a questão de gênero e, mais
especialmente, aquelas voltadas para a discussão do papel e da voz da mulher em sociedade.
Neste artigo, então, partimos da hipótese de que a música “Lalá”, de Karol Conká,
como discurso feminino e como produção artística não-canônica, busca combater o
silenciamento do prazer e da sexualidade femininos, evidenciando sua importância como
formas naturais e, ao mesmo tempo, ideológicas, de expressão sexual da mulher, que, na
forma de discurso, produz, simultaneamente, empoderamento da mulher e uma discussão
renovada sobre a sexualidade e sobre prazer dentro dos relacionamentos amorosos
contemporâneos.
É esta discussão que comparece de modo contundente na letra da canção “Lalá”, de
modo mais concreto no tom subjetivo, casual, crítico, irônico e dialógico que Karol Conká
emprega em seu discurso. É o diálogo com o outro – objeto amado e/ou amante e/ou com os
ouvintes – que se apresenta assim como chave de leitura desta canção; interação social sempre
clara e direta, que cria, sob a perspectiva do eu-lírico, uma situação de autorreconhecimento a
partir do relacionamento com o outro, lugar em que se desconstrói uma imagem do eu-lírico
feminino, preconcebida socialmente, e, ao mesmo tempo, se constitui uma nova imagem
desse eu-lírico, a reboque de seus próprios interesses como sujeito social.
Buscamos, portanto, evidenciar esse diálogo em que se revela o posicionamento do eu-
lírico feminino falando a respeito da sexualidade e do prazer na letra da música “Lalá” e, para
tanto, utilizamo-la como corpus de análise. Objetivamos, com isso, tratar da temática do sexo
oral feminino, do prazer feminino e de suas implicações para e nos relacionamentos amorosos
e para e nos discursos emancipatórios da mulher contemporânea, sob as perspectivas gerais da
Análise de Discurso (BAKHTIN, 1999; ORLANDI, 2009) e de uma espécie de Antropologia
da Canção Popular das periferias culturais (RIBEIRO, 1999; GONÇALVES, 2011;
PARANHOS, 2015).
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Conceito de sexualidade
Ribeiro (1999) discute o pensamento de Michel Foucault sobre sexualidade como uma
contribuição à área de enfermagem3. Quando trata, entretanto, da história da enfermagem,
Ribeiro (1999, p. 358) detalha que, na virada do século 18 para o século 19, o trato com a
sexualidade mudou, “passou a constituir um problema; ou seja, passou a ter uma conotação
pejorativa, a ser vista como um ócio, um ato imoral quando praticada sem fins reprodutivos”.
Essa discussão é bastante relevante para nossa análise, uma vez que a mudança de
comportamento e o entendimento médico retratados por Ribeiro são fundamentais para
entendermos como a visão da sexualidade foi posta como “tabu”, passando a ser assunto
relegado à intimidade do lar, interditado aos outros espaços de discussão social, exatamente
porque a discussão do “tabu” e do “discurso interdito” podem significar um tipo de superação
histórico-ideológica, social e subjetiva da sociedade de controle.
Nesta visão [de Foucault], parte-se do pressuposto de que o mecanismo que origina
a opressão é o mesmo que gera a libertação. Em outras palavras, os agentes sociais
partem sempre do mesmo dispositivo ou estratégia para inovarem um discurso e o
exercício do poder. [...] O autor refere, por exemplo, que o importante nos
movimentos de libertação da mulher não é a reivindicação em si, mas o fato de
terem partido do próprio discurso que era formulado no interior dos dispositivos de
sexualidade. (RIBEIRO, 1999, p. 360)
3
O autor faz uma análise mais aprofundada do texto de Foucault com a interpretação de seus pensamentos para a
área médica, o que não é o objetivo deste trabalho, por isso, nos apropriamos das conceituações desenhadas por
Ribeiro dentro de seu texto apenas no que consta ao conceito de sexualidade para Foucault.
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Assim, se desejamos compreender qualquer uma das letras de canção de Karol Conká,
precisamos localizá-las no tempo, de modo que se revelem, a partir de sua contextualização
histórica, em toda a sua carga de recursos e de sentidos sociais por ela mobilizados.
Quanto à natureza social e dialógica do discurso, Bakhtin, em Marxismo em Filosofia
da Linguagem, assevera a natureza coletiva do discurso, no sentido de que ele ocorre como
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resultado de uma enunciação e esta, por sua vez, só se dá como interação social e como
interação entre discursos, ou seja,
A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como não está na
alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido
através do material de um determinado complexo sonoro. É como uma faísca
elétrica que só se produz quando há contato dos dois pólos opostos. (BAKHTIN,
1999, p. 132)
Desse modo, nossa compreensão dos recursos e dos sentidos da letra da canção
“Lalá”, produzida por Karol Conká, deverá ser compreendida sob esta ótica geral do discurso,
para que se desenhe em toda a sua plenitude de sentido subversivo, como contradição a uma
sociedade conservadora e machista e como contradição ao cânone musical da MPB: um
discurso entre discursos como uma ação social, histórica, dialógica e ideológica.
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Sexualidade e música
Gonçalves (2011) faz um breve histórico da criação artística não-canônica no Brasil,
destaca o fim dos anos 1990 como ambiente propício a uma arte urbana, violenta e combativa
que surge a partir da experimentação de “conflitos de modalidades diversas, radicais a ponto
de gerar em seus habitantes a sensação desoladora de não haver solução” (GONÇALVES,
2011, p. 178). Para ela, o conflito social claríssimo nos dias de hoje está assentado em uma
sociedade que se divide permanentemente, por conta dos contraditórios interesses de grupos e
classes.
Nesse aspecto, as parcelas marginalizadas da sociedade produzem artes cada vez mais
conflitantes com aquelas artes consideradas canônicas produzidas pelas parcelas sociais
hegemônicas da sociedade. Segundo Gonçalves, o diálogo dessas artes marginalizadas –
música, cinema, literatura, teatro e literatura – com as instâncias de valorização social,
especialmente, a mídia, é sempre muito difícil, apesar de seguir lentamente assumindo um
lugar de expressão que representa uma espécie de subversão do status quo e uma remodelação
das forças sociais nas lutas de poder:
Cinema, música, teatro e literatura são formas artísticas que, mesmo timidamente,
têm se reciclado, no embalo de uma nova tendência que pode ser definida como
“deixa o excluído falar”. Sobretudo no campo literário, percebe-se uma enorme
transformação: o personagem de antes tomou o lugar do autor. Agora, é ele quem
decide como será o enredo, quais serão os personagens e o que merece ser revelado.
Ao autor – canônico – coube, apenas, aceitar e se refugiar noutras áreas menos
violentas, menos perigosas. Quem manda agora é o personagem cansado de ser
expectador da sua história. Se é o mundo cão que interessa, então que ele seja
narrado o mais fidedignamente possível. Que falem os favelados, os funkeiros, “os
sem cultura”, os sem reconhecimento! (GONÇALVES, 2011, p. 179)
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corrosivo, até mesmo destrutivo, diante do amado incompetente para um relacionamento que
se requer entre iguais na democracia do sexo.
Para aceitarmos tais considerações, precisamos nos lembrar, com Bakhtin, de que a
significação de todo discurso vem da praxis, vem de um mundo real. A significação do
discurso do excluído vem da experiência real de um mundo de exclusão e, dessa forma, não
há criação literária que brote desse universo que não se paute na tentativa explícita ou velada
de libertação e superação e que não se constitua da própria vivência da opressão. É, assim, a
vivência da opressão, da marginalização, do conflito, da violência, da agressividade e do
desejo de subversão da condição de marginalidade que configura o discurso criado por Karol
sobre a sexualidade e o prazer feminino, pautando-se na tomada de posse sobre o próprio
corpo.
O reposicionamento da personagem como autora indicia o movimento de assumir o
trabalho, a responsabilidade e o reconhecimento em criar e contar a própria história. É essa a
posição assumida por Karol em “Lalá”.
Nessa perspectiva, é importante salientarmos que a violência destacada por Gonçalves
não pode ser ignorada. Em “Lalá”, ela aparece no léxico cru, sem floreios, mas que evita o
vulgar, o explícito sexual. A tomada da palavra e a inversão de papéis da personagem frente
ao autor canônico refletem exatamente a proposta de Karol ao colocar a mulher em uma
posição de ação frente ao próprio prazer. A realidade do discurso do excluído vem da sua
experiência no mundo real e não há criação literária ficcional que substitua a vivência de
alguém, no sentido de tornar essa experiência uma arma de subversão. Essa vivência é a que
transparece nos diálogos musicais criados por Karol Conká.
A mulher que se apresenta como real, ser humano completo e não apenas
representação de um papel social criado no imaginário masculino é objeto das diversas letras
de Karol Conká e reflete uma mudança de temática e de ponto de vista que se persegue há
décadas, de acordo com Gonçalves (2011), a partir do mal-estar finissecular dos anos 1990 no
olhar coletivo. Assim, o excluído que fala nas músicas de Karol possui diversas facetas que se
complementam a partir da experiência de seu ouvinte: é a mulher, a mulher negra e a mulher
negra excluída socialmente que tem ainda mais dificuldade de acesso à cultura canônica; a
mulher que assume a responsabilidade daquilo que deseja e se movimenta para que aconteça:
“Se é pra vencer, deixa quem sabe fazer / Tô na luta, sou mulher, posso ser o que eu quiser”
(CONKÁ4, 2016). Da mesma maneira, quando aborda a sexualidade, o retrato pintado por
4
Tô na luta. Junho de 2017. Disponível em: https://genius.com/Karol-conka-to-na-luta-lyrics. Acesso em: 30 out.
2017.
41
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Karol é o de uma mulher que não secundariza suas vontades para proteger o ego de seu
parceiro; ser Amélia5 não é mais possível: “É inacreditável, eles ficam sem ação / Quando a
gente sabe o que quer e já mete a pressão” (CONKÁ6, 2017).
Em entrevista ao Huffpost Brasil, em março de 20167, a cantora reforça a importância
de seu posicionamento político como parte de seus objetivos com a música:
É muito importante ter esse tipo de música porque existem muitas meninas
frustradas precisando de uma palavra de conforto. E a mídia e a sociedade reforçam
esse padrão e criam pessoas frustradas. Eu já passei por isso. Quando eu era mais
nova, me sentia muito mal por ser diferente. Por isso, resolvi escrever músicas que
ajudassem outras meninas que sentiam a mesma coisa que eu. Acredito que quando a
gente ouve uma música com palavra de conforto, de alguém que te entende, a gente
pode se sentir melhor. (CONKÁ, 2016)
Nesse sentido, ressaltamos que a música ocupa um papel que vai muito além do
entretenimento, criando um espaço de reflexão e mudança dentro das relações que as
mulheres mantêm na sociedade e propondo novas possibilidades de ação e discurso.
Gonçalves (2011) vai além do histórico do movimento de criação artística dos
excluídos e desenha, também, como essa arte espalhou-se para além dos bairros
marginalizados. Esse “espalhamento” é fundamental, pois agrega pessoas, assumindo o
caráter de mobilização social, conferindo mais concretude e aparência para uma realidade
que, de outra forma, poderia ficar enclausurada e invisível no contexto da luta de classes.
5
“Ai que saudade da Amélia” é uma música composta por Mário Lago e Ataulfo Alves, lançada em 1942. Na
letra, o eu-lírico masculino compara a companheira atual com a anterior, Amélia. Essa é uma mulher que “[...]
não tinha a menor vaidade; [...] era mulher de verdade”, a problemática dessa mulher não está na vida vivida na
pobreza, mas no retrato apático criado pelo eu-lírico. Uma mulher só pode ser “de verdade” se não tiver
vontades, se não se expressar e não mostrar ao parceiro aquilo que a individualiza. Ao lado do eu-lírico, Amélia
não era nada mais do que um acessório ou ferramenta.
6
Lalá. In: Ambulante, 2017. Disponível em: <https://youtu.be/t_veXiDyQvU>. Acesso em: 9 ago. 2017.
7
Entrevista concedida a Ana Julia Gennari: Karol Conká fala sobre racismo, empoderamento da mulher negra e
machismo dentro do rap nacional. HuffPost Brasil, março de 2016. Disponível em:
<http://www.huffpostbrasil.com/2016/03/08/karol-conka-fala-sobre-racismo-empoderamento-da-mulher-negra-
e_a_21686477/>. Acesso em: 10 out. 2017.
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A realidade retratada pela criação artística desses grupos sociais é baseada na divisão
entre “bem-nascidos” e os outros. A entrada de jovens de classe média nos movimentos pode
representar a comercialização do movimento ou a compreensão de uma realidade que vai
além daquela experienciada em seu cotidiano. De qualquer modo, Gonçalves (2011) ressalta a
importância dessa aproximação, não para a consolidação do movimento ou das ideias que
expressam, mas para o reconhecimento dessa produção como arte válida, mesmo que não
canônica: “E estas [classes mais baixas], por sua vez, têm sabido utilizar os espaços – ainda
pequenos, mas visíveis (GONÇALVES, 2011, p. 180)”.
Karol Conká conseguiu ocupar espaços que não eram seus. Vemos isso na variedade
de iniciativas que mantém de forma complementar à produção musical, como em seu
programa de TV e nas campanhas publicitárias. E esse “ocupar o lugar que não lhe pertencia”
parece ser a maior contribuição que a arte não canônica das periferias pode oferecer aos
marginalizados na sua busca consciente ou inconsciente de reorganização do espaço social.
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sociais de construção de sentido, gestos de interpretação, que devem ser apreendidos pelo
analista a partir de um dispositivo de análise. Pensando em construir tal dispositivo,
identificamos no texto “Lalá”, de Karol Conká, algumas ideias conflituosas que merecem
nossa atenção: a) a decisão feminina perante o parceiro e o ato sexual; b) a historicidade da
má performance masculina; c) o descaso masculino quanto ao prazer da mulher durante o
sexo; d) falta de conhecimento sobre a sexualidade feminina; e) processos de metáfora,
paráfrase e sinonímia; f) desequilíbrio nas relações entre parceiros.
Nesse percurso de construção de sentidos, o primeiro grande impacto causado pela
canção de Karol Conká é, sem dúvida, a clareza com que a temática do prazer e da
sexualidade é abordada. A partir de um discurso direto, cotidiano e impactante, observa-se
uma mimese artística exata da modalidade discursiva popular jovem suburbana. Nesse
sentido, a canção dialoga facilmente com a periferia das cidades, da economia, da política, da
cultura, das ideologias dominantes, rediscutindo a condição historicamente atribuída à mulher,
a partir do lugar em que ela é mais marginalizada e submetida a todos os tipos de opressões e
violências sociais. No entanto, é exatamente deste lugar que o eu-lírico de Karol Conká
realiza seu discurso como subversão, de modo que possa ser amplamente compreendido, não
somente por conta da identificação de recursos e sentidos que propõe em relação aos outros
discursos suburbanos, mas porque propõe uma identificação total com os demais sujeitos
deste lugar e destas formações discursivas.
O uso do imperativo, por exemplo, uma marca textual importante na letra da canção,
permite ao eu-lírico feminino a assunção da tomada de decisão diante do parceiro sexual; a
locutora não mais pede ou espera, mas impõe ao seu parceiro sexual um comportamento
esperado por ela. Esse eu-lírico retrata uma mulher que não está mais disposta a aceitar que a
satisfação de seu parceiro seja o único propósito da relação sexual e que isso seja um
sinônimo de sua própria satisfação: “Só porque eu mandei ajoelhar [...] Seduzi pra conferir
[...] Me dê uma lambida lá [...] Dá um jeito, se ajeite [...] Se eu quero, respeite”.
Nesse trecho, a locutora retoma a tradição do discurso amoroso que, ao representar a
mulher como objeto do amor, coloca a mulher em um pedestal e em posição de culto, todavia,
o faz para desconstruí-lo como mera representação literária vazia e afirmá-lo como realidade
social e ideológica. Isso se dá, primeiro, com a mulher assumindo a condição de sujeito e não
de objeto do discurso e, segundo, com a mulher colocada na condição imperativa, em um
lugar de exercício e de consciência de poder sobre si mesma, sobre o amante e sobre a
situação do sexo. Com “Nem vem”, o eu-lírico rechaça uma possível fala masculina contrária
àquilo que é dito na canção, o que seria o equivalente a “não tem desculpa”, atribuindo
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responsabilidade e culpa histórica ao amante pela irrealização da mulher: “Nem vem, sou
apenas mais uma com experiência”. De certo modo, o discurso de poder feminino aqui se faz
opressivo, no sentido de não permitir ao amante qualquer desculpa para sua impossibilidade,
falta de habilidade ou ignorância sobre a sua performance sexual. Quase como uma inversão e
tomada violenta do poder.
Orlandi (2009) ressalta que a escolha das palavras em qualquer discurso reflete
posicionamentos históricos que são aceitos pelos sujeitos. Assim, a escolha da locutora,
quando fala do comportamento e da performance sexual do homem em seu discurso, reflete a
ideia, construída historicamente, de um desempenho masculino abaixo da expectativa das
mulheres, mas que também historicamente sempre foi camuflado, no discurso amoroso
masculino, geralmente, a respeito de si mesmo, da sexualidade e a respeito da mulher como
objeto silencioso. Textualmente, a crítica direta e agressiva da locutora de “Lalá” se dá pela
adjetivação negativa, “Moleque mimado bolado que agora chora”, ou pela exposição da
diferença entre aquilo que o homem diz e o que a mulher diz após o sexo: “Falam demais,
fingem que faz [...] Vejo vários convencidos achando que no final mandou bem [...] Minhas
amigas concordam também [...] Falam demais, quando chega na hora a ação não é
equivalente”.
Como o sexo assume um caráter social – discursivo e ideológico – na construção do
poder masculino, Karol resgata do imaginário feminino o contraste entre aquilo que o homem
discursa e aquilo que realmente se dá como experiência no universo da sexualidade,
desmontando, com a revelação da não correspondência entre discurso e realidade, um dos
pilares mais importantes de sustentação das sociedades patriarcais: a virilidade a toda prova
do patriarca. É interessante pensarmos que, se a experiência sexual feminina não fosse por
tanto tempo silenciada, essa disparidade entre ideologia e realidade masculina já se teria
facilmente dissipado. Da mesma forma, Karol expõe o descaso e o desconhecimento
masculino quanto ao prazer da mulher durante o sexo: “E percebi que era da boca pra fora [...]
Egoístas criando um orgasmo imaginário [...] Pouco importa pra ele se você também tá
satisfeita [...] Se desmonta, tem medo e no final só me desaponta [...] Já fico arrependida [...]
Seca, desacreditada e fria”.
O descaso e a falta de conhecimento sobre o prazer feminino parecem ser problemas
tanto para os homens quanto para as mulheres e pode ser de diversas ordens: por exemplo, em
relação ao próprio corpo e gostos ou em relação à anatomia ou fisiologia. Bresser (2017)
retrata que muitas mulheres não conhecem sua própria anatomia. A falta de um diálogo verbal
e gestual durante o desenvolvimento da mulher e os tabus socialmente impostos em relação a
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seu papel fazem com que ela não se conheça e não explore aquilo que, sexualmente, funciona
para ela. Moraes (2017) realça ser histórica essa falha: reflete o tabu que se perpetua nas
relações familiares, nas quais “falar de sexo” envolve apenas o arranhar da superfície: “Mal
sabe a diferença de um clitóris pr’um ovário”.
Outro ponto retomado por Karol e corroborado por pesquisas (MORAES, 2017;
BRESSER, 2017) é que, para muitas mulheres, a experiência sexual é algo que leva tempo.
Esse tempo pode ser medido a partir de dois critérios: a grande variedade de estímulos e áreas
erógenas para serem estimuladas e a falta de conhecimento do próprio corpo e daquilo que
funciona para cada mulher. Esses dois fatores, quando somados à falta de diálogo com os
parceiros, geram a impossibilidade de a mulher sentir-se satisfeita, uma vez que o sexo vira
um jogo de tentativa e erro, em que prevalece, de modo geral, a pressa egoísta do prazer
masculino em desprezo e descaso com o prazer feminino; sexo leva tempo e a minimização
desse tempo joga contra a satisfação da mulher: “Esses caras ainda não aprenderam que dez
minutos é desfeita”.
Na mesma reportagem, Moraes (2017) expõe a fala do ginecologista Amaury Mendes
Júnior, que afirma que a sexualidade feminina intimida homens que não estão preparados para
uma relação de igualdade nos desejos e precisam da submissão ou do silêncio da mulher para
se sentirem seguros. A situação refletiria uma preocupação excessiva com a penetração, único
fim de qualquer ato sexual, na visão desses homens, assim descritos em “Lalá”: “Meia
bomba, que tomba [...] Não aguenta o molejo da lomba”.
Outro aspecto para análise em “Lalá” refere-se à dimensão estilística e poética dos
processos de paráfrase, sinonímia e metáfora (ORLANDI, 2009, p. 67). São, na obra,
devidamente destacados como formas pelas quais a língua se carrega de sentido histórico,
fazendo isso significar aquilo ou aquilo significar isso. São palavras diferentes que podem ser
entendidas como iguais, visto que, historicamente, elas excederam seus significados originais.
É dessa forma que Karol consegue falar sobre sexo, sobre sexo oral, sobre a anatomia
feminina sem precisar recorrer a termos técnicos ou a vulgares, mantendo a poesia e a sutileza
de uma criação metafórica, neológica e imaginativa, promovendo uma interface poética
marginalizada e poética canônica: “Fazer um lalá por várias horas [...] Isso daqui não tá de
enfeite [...] Curvem-se, encostem os lábios na flor”.
Karol reafirma, em sua letra de canção, uma maneira poética para se referir ao sexo,
especialmente ao sexo oral, mas inverte os sentidos esperados socialmente, porque fala de
sexo oral “na mulher” e não “da mulher”.
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Considerações finais
[...] os sentidos não estão só nas palavras, nos textos, mas na relação com a
exterioridade, nas condições em que eles são produzidos e que não dependem só das
intenções dos sujeitos. (ORLANDI, 2009, p. 30)
A criação de sentido vai muito além do texto que é lido; as palavras escritas refletem
ideologias históricas do sujeito e do papel que ele representa socialmente. Assim, Karol
Conká assume, em “Lalá”, a insatisfação de todas as mulheres que podem se identificar com
seu discurso. Ela representa ideologicamente o papel de uma mulher empoderada que quer
igualdade não só como mulher na sociedade, mas como mulher dentro dos relacionamentos
sexuais. Retratar essa frustração na canção é uma maneira de dar voz a mulheres que não se
sentem representadas dentro da experiência sexual, podendo, através do discurso, empoderá-
las.
Já foi dito que a divisão entre “bem-nascidos” e os outros é fundamental para a
existência de uma arte dos excluídos, ao mesmo tempo em que serve para controlar e cercear
indivíduos que busquem uma mudança dessa formatação social. “A eterna divisão excluídos
de um lado e bem-nascidos de outro continua sendo uma eficiente forma de controle, de
impedimento” (GONÇALVES, 2011, p. 180). No entanto, nas letras de Karol Conká, como
ocorre em “Lalá”, podemos perceber que essa divisão, tornada mais aparente, assume, de
modo peremptório, em toda a sua potencialidade conflituosa, a condição sine qua non de uma
subversão e mudança da ordem social e das instâncias e relações de poder, seja no
relacionamento sexual, em favor da mulher, seja nas outras relações sociais, em favor de
outros excluídos do prazer de viver.
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Referências
BRESSER, D. Tabus ainda são inimigos das mulheres na busca por prazer. R7 Social.
Disponível em: <https://meuestilo.r7.com/tabus-ainda-sao-inimigos-das-mulheres-na-busca-
por-prazer-04102017>. Acesso em: 30 out. 2017.
MORAES, M. Dia do sexo: homens conhecem pouco sobre a sexualidade feminina, diz
estudo. Disponível em: <https://www.meionorte.com/entretenimento/adulto/dia-do-sexo-
homens-conhecem-pouco-sobre-sexualidade-feminina-diz-estudo-258411>. Acesso em: 30
out. 2017.
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Resumo
Neste artigo, propõe-se um novo olhar para a criança, relacionando o reconhecimento e a valorização
desta à obra do poeta Manoel de Barros. O artigo também justifica a potência e a importância de as
crianças serem ouvidas como agentes históricos e sociais produtores de cultura dentro da sociedade.
Do ponto de vista metodológico, a investigação ancora-se em pesquisa bibliográfica sobre a temática
“infância”, tendo como principais referenciais Sarmento (2002), Corsaro (2011), Kohan (2008), dentre
outros, articulando as concepções discutidas à representação de infância na obra do poeta Manoel de
Barros. Como resultados, consideramos que Manoel de Barros, sem falar diretamente sobre e/ou para
crianças, consegue trazer o reconhecimento da infância por meio de seus versos desprendidos de um
olhar adultocêntrico.
Abstract
This article proposes a new look to the child, relating its recognition and value to the work of poet
Manuel de Barros. The article also justify the potency and the importance of listening the children as
historic and social agents producers of culture inside society. From the methodological point of view,
the investigation anchor itself in its bibliographical research about the thematic of childhood, having
as main references Sarmento (2002), Corsaro (2011), Kohan (2008), among others, articulating the
conceptions discussed to the childhood representation on the work of the poet Manoel de Barros. As
results, its considered that Manoel de Barros, without talking directly about or to children, is able to
bring recognition of childhood through his verses loosen from an adult-centered look.
Introdução
[...] pesquisar criança é um pouco buscar algo
novo para nós e para elas, é buscar esse mundo
que virá, nesse regime de visibilidade que
vivemos. Quando pesquisamos crianças, acho
que também nós procuramos algo de novo
naquilo que virá, e que em alguma medida a
criança pode anunciar (além do passado e do
presente). (FARIA; FINCO, 2011, p. 21)
1
Licencianda em Letras-Português, IFSP/Campus São Paulo. E-mail: thaisbaldo@hotmail.com
2
Doutora em Educação/USP, docente do Departamento de Humanidades/Letras-Português, IFSP/Campus São
Paulo. E-mail: amandamarques@ifsp.edu.br
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Este artigo tem por objetivo propor uma aproximação ao universo infantil por meio da
poética de Manoel de Barros, dialogando com autores que discutem a infância, em especial
aqueles do campo da denominada Sociologia da Infância, que ressalta a relevância de se
conceber a criança como agente histórico-social e produtor de cultura.
É para uma infância reconhecida e valorizada em sua potência lúdica, brincante e de
força política que Manoel nos transporta. Por meio da importância conferida às coisas
desimportantes em sua poética, o autor traz a possibilidade de o mundo ser outra coisa
enaltecendo os restos. Partimos da hipótese de que Manoel traz a criança estando no mundo,
dando sentido e significado a ele por meio da brincadeira. O autor permite-nos, também,
reconhecer a importância de escutar as crianças, entendendo-as como seres capazes de
contribuir para a produção de cultura do mundo.
O presente artigo está organizado em três seções: na primeira, apresentamos a
contribuição de autores que discutem a infância, especialmente aqueles vinculados à
perspectiva sociológica da infância, considerando o movimento que justifica e demonstra a
potência da criança; a seção seguinte, por sua vez, propõe um diálogo entre esta perspectiva e
a poesia de Manoel de Barros, fazendo-o por meio da seleção de trechos de suas obras
literárias que refletem a sua criação poética realizada sobre a infância reconhecida e
valorizada em seu movimento imaginativo, brincante, e político. Ao final, apresentamos
algumas considerações.
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Portanto, a ideia preconcebida, que é histórica, de que a criança está sempre à mercê
daquilo que os adultos lhe ensinam vem sendo superada à luz das perspectivas de autores do
campo da denominada Sociologia da Infância. Esse campo de estudos questiona a concepção
clássica de socialização (segundo a qual a criança é compreendida somente como objeto do
processo), reconhecendo a atividade da criança no processo de reprodução e de produção
culturais; como indica Corsaro (2011), as crianças inserem-se ativa e criativamente no mundo
e não simplesmente internalizam elementos dele, mas essencialmente os recriam,
incorporando-os às culturas infantis. As culturas infantis, por sua vez, são alimentadas por
elementos da cultura mais ampla, e também alimentam a cultura.
Por “culturas da infância”, entende-se “a capacidade das crianças em construírem de
forma sistematizada modos de significação do mundo e de ação intencional, que são distintos
do modo adulto de significação e ação” (SARMENTO, 2003, p. 3-4). Ainda de acordo com
Sarmento (2003), formas e conteúdos das culturas infantis são produzidos em uma “relação de
interdependência com culturas societais atravessadas por relações de classe, de gênero e de
proveniência étnica” (SARMENTO, 2003, p. 4), o que implica considerar que a criança faz
parte da sociedade, recebe influência do contexto no qual se insere e o influencia também.
Cabe destacar que a perspectiva com a qual dialogamos propõe a percepção da
infância como construção social, componente estrutural da sociedade, trazendo a criança
como ator e sujeito produtor de cultura. Considerar a infância uma categoria social do tipo
geracional (SARMENTO, 2005) implica entender que a infância faz parte da sociedade e
exerce um papel no contexto social mais amplo; implica também reconhecer o impacto que as
condições sociais exercem sobre a vivência da infância, o que nos leva a identificar várias
infâncias, a depender do tempo, do espaço e das representações que se fazem sobre ela. O
conceito permite-nos distinguir as especificidades da infância em relação à idade adulta e
evidenciar sua permanência na sociedade, independentemente dos sujeitos que a compõem –
as crianças crescem, mas a infância permanece na sociedade enquanto forma estrutural.
Considerar a criança como pessoa implica, por outro lado, reconhecer a dependência
em relação ao adulto como uma característica definidora da infância. Como parte da estrutura
social, a infância está exposta a forças como os outros grupos, porém de maneira ainda mais
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Nesse sentido, o universo infantil, em toda sua ludicidade e imaginação, não exclui a
criança da sociedade e tampouco a coloca como um ser inferior aos outros, possuidora de
algum tipo de “déficit”. O imaginário infantil passa a ser entendido como uma forma
específica de relação da criança com o mundo e permite à criança alterar a linearidade
temporal e navegar entre dois mundos – o real e o imaginário –, que coexistem na forma de
racionalidade específica da criança. A diferença entre o jogo da criança e o jogo do adulto
deixa de ser vista como imaturidade infantil e passa a ser concebida como um princípio de
transposição imaginária do real que é radicalizada pelas crianças. Portanto, o imaginário
infantil se enquadra na ordem da diferença e não do déficit. (SARMENTO, 2002)
Em síntese, a capacidade imaginativa inerente à criança é um fator de conhecimento,
supondo que é a única possibilidade de configurar história, visto que designa o momento de
entrada na linguagem, sem a qual nem chegaríamos à adultice. A infância, em vez de ser um
momento “sem fala”, é a única possibilidade de se constituir fala. Se não há constituição da
linguagem na infância, a dificuldade será maior em constituí-la na fase adulta (FARIA;
FINCO, 2011).
Psicólogos, pedagogos, neurocientistas, e até mesmo economistas, apontam: “Como
adultos devemos tentar entender o que é ser criança”. Além disso, discorrem sobre a
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necessidade de ouvi-las, uma vez que, quando as crianças não são escutadas, o mundo as
perde, e elas possuem coisas valiosas a serem ditas. (O COMEÇO..., 2016)
Ademais, o tempo da criança é o tempo presente e o seu ritmo é aquele de descoberta,
um construir baseado em colocar tijolos, um por um, em cima do outro. É preciso entender e
acompanhar o tempo da criança, deixá-la descobrir e construir sua concepção de mundo sem
ignorar aquilo que anuncia, pois
os primeiros anos são como construir a estrutura de uma casa. É a estrutura sobre a
qual todo o resto se desenvolverá. Os bebês aprendem nos primeiros três anos de
vida como jamais aprenderão de novo.
[...] cientistas do mundo todo estão numa corrida para tentar entender como o
cérebro jovem pode aprender tão rapidamente. É uma época muito mágica e muito
importante para o resto da vida. (O COMEÇO..., 2016)
Sendo assim, há uma relevância em pensar que toda criança traz em si um futuro que
ainda não chegou e será inventado, é uma surpresa para toda a humanidade, um tempo que
não somos e que não temos mais. E o seu desenvolvimento depende da importância que os
pais, a sociedade e o governo dão à sua fala, à sua necessidade de descoberta e ao seu direito
de exprimir sua opinião. Encará-las como sujeitos ativos que constituem a linguagem durante
a infância e capazes de contribuir para a cultura da sociedade implica um novo olhar sobre a
criança, retirando-a desse lugar inferior e discriminante em relação a sua potência.
Reportar a criança a partir do adulto é um movimento absolutamente adultocêntrico. A
perspectiva com a qual dialogamos neste artigo, por sua vez, destaca a importância de dar voz
às crianças, trazendo em seus movimentos inversões instigantes, novas perspectivas sobre a
infância e uma resistência ao adultrocentrismo.
A falta de importância conferida à voz da criança mostra-se algo recorrente na
sociedade, o que pode ser associado à consideração da criança como parte das classes
minoritárias, como os negros e as mulheres, por exemplo. Minoritárias não em questões
numéricas, mas como categorias que possuem vozes, porém, estas não ressoam na sociedade.
(FARIA; FINCO, 2011)
Mesmo que pareça que todos podem falar, não são todos que falam. A questão a ser
tratada na próxima seção é como a poesia pode dar voz a essa subalternização recorrente da
infância por meio do movimento político de Manoel de Barros em enaltecer os restos e dar
importância às coisas desimportantes por meio de seus versos.
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O autor, ao ser entrevistado no documentário “Só dez por cento é mentira”, fala sobre
a relação entre infância e poesia. Segundo Manoel, quando é pedido a ele que escreva sobre
outros capítulos de sua vida, como a mocidade ou a velhice, não é possível; ele declara que só
teve infância e só sabe escrever sobre a infância.
Sua poesia é marcada por invenções, sendo conhecido como o poeta do “deslimite” da
palavra, onde inventa um “glossário de transnominações em que não se explicam alguma
delas (nenhumas) ou menos” tornando sua biografia uma “desbiografia”, sendo tamanha a
beleza de suas invenções na poesia que não seriam encontradas verdades:
Árvore, s.f.
Gente que despetala
Possessão de insetos
Aquilo que ensina de chão
(BARROS, 2016, p. 51)
Em sua criação poética, Manoel afirma que a poesia nasce não do existir (um
paradoxo presente em sua ordem do poético), e sim, do inventar. E a invenção, segundo ele, é
um negócio profundo, uma coisa que serve para aumentar o mundo (SÓ DEZ..., 2002):
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Somos seres simbólicos. Somos seres brincantes. É na infância, no seu decorrer, que
estruturamos capacidades de ação e simbolização, e o brinquedo é a forma mais
completa de lidar com elas. Brincar, portanto, deixa de ser somente um direito para
se tornar o espaço de liberdade, de criação. Através da brincadeira a criança
mergulha na vida, criando um espaço que expressa, que atribui sentido e significado
aos acontecimentos. (MULLER; CARVALHO, 2009, p. 123)
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fantasia do real e necessidade de interagir com os outros. São discussões acerca da infância
que acordam com as características elementares da poesia de Manoel de Barros, já que a
brincadeira com as palavras, a invenção, a subjetividade e a ludicidade são elementos
marcantes de sua construção poética.
Essa sensibilidade em apresentar em estado de latência o universo infantil e estar
totalmente desprendido de um olhar adulto sobre o mundo traz para a poética de Manoel
acontecimentos inusitados e invenções imprevisíveis que demonstram a importância e o
encanto que podem ter conhecer as crianças sob um novo olhar sociológico da infância:
Ademais, colocar o seu fazer poético dentro do âmbito dos restos e construir versos
que enaltecem as coisas e os seres desimportantes suscita como uma de suas estratégias
literárias a metalinguagem. Refletir sobre o fazer poético equiparando-o a coisas baixas e
reles traz a questão da desvalorização da poesia e de seu lugar marginalizado:
Assim como a poesia está à margem, as crianças também estão. E por meio de seus
versos, Manoel abre o nosso olhar para uma nova concepção da infância, para o movimento e
a força política que possuem a poesia e as vozes das crianças.
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Considerações finais
As coisas não querem mais serem vistas por
pessoas razoáveis. Elas desejam ser olhadas de
azul – que nem uma criança que você olha de
ave.
(Manoel de Barros, “XIII”. In: O livro das
ignorãças)
Pesquisar o universo infantil é abrir-se a novos olhares para o mundo e para a criança
e sua potência. Sensibilidade, curiosidade e aprendizado como processo de autopercepção e
percepção do mundo configuram a criança como um ser histórico e social capaz de construir
cultura de forma criativa, rica e humanizadora.
Ademais, as crianças são sujeitos que possuem empatia por tudo e por todos e o tempo
todo anseiam descobrir e aprender, estabelecendo contatos por meio dos seus cinco sentidos.
Esse aspecto sensorial, sinestésico, lúdico, inteligente, criativo e, principalmente, esse olhar
de descoberta para o novo de forma imprevisível e cheio de disposição aproxima as crianças
da linguagem poética.
Manoel de Barros, sem falar diretamente sobre e/ou para crianças, consegue trazer
esse reconhecimento e valorização da infância por meio de seus versos desprendidos de um
olhar adultocêntrico. Ora ele traz a infância com toda sua riqueza em estado de latência, ora
nos confunde sendo a própria criança que seus versos são por inteiro.
O poeta que fala sobre o mundo por meio da importância que dá aos “inutensílios” e
aos “seres desimportantes” nos salta os olhos para o que realmente importa e, muitas vezes,
acaba passando sem ser notado. Seus poemas são cirandas cheias de vida.
Uma criança que não é ouvida, que não recebe afeto e não é cuidada tem seu
desenvolvimento e visibilidade comprometidos. Manoel, que dá voz à riqueza da capacidade
inventiva e dos olhos curiosos de uma criança, oferece-nos a possibilidade de aumentar o
mundo e olhar para as nossas crianças como grandes inovadoras, cheias de movimentos
políticos em suas falas e seres ativos dentro da sociedade.
Três personagens me ajudaram a compor estas memórias. Quero dar ciência delas.
Uma, a criança; dois, os passarinhos; três, os andarilhos. A criança me deu a
semente da palavra. Os passarinhos me deram desprendimento das coisas da terra. E
os andarilhos, a preciência da natureza de Deus.
... O outro parceiro de sempre foi a criança que me escreve. Os pássaros, os
andarilhos e a criança em mim são meus colaboradores destas Memórias inventadas
e doadores de suas fontes.
(BARROS, 2015, p. 127)
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Referências
BARROS, Manoel de. Arranjos para assobio. São Paulo: Alfaguara, 2016.
______. Meu quintal é maior do que o mundo: Antologia. São Paulo: Alfaguara, 2015.
______. Meu quintal é maior do que o mundo [recurso eletrônico] / Manoel de Barros. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2015.
CORSARO, William A. Sociologia da Infância. Traduzido por: Lia Gabriele Regius Reis. 2.
ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.
FARIA, Ana Lúcia Goulart de; FINCO, Daniela. Sociologia da infância no Brasil. Campinas:
Autores Associados, 2011.
MÜLLER, Fernanda; CARVALHO, Ana Maria Almeida. Teoria e prática na pesquisa com
crianças: diálogos com William Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009.
O COMEÇO da vida. Direção: Estela Renner. Produção: Estela Renner, Luana Lobo e
Marcos Nisti. Brasil: Maria Farinha Filmes, 2016. Disponível em:
<https://www.netflix.com/br>. Acesso em: 1º jun. 2017.
SÓ DEZ por cento é mentira. Direção: Pedro Cezar. Produção: Pedro Cezar, Kátia Adler e
Marcio Paes. Brasil: Artezanato Eletrônico, 2008. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=VG4P_mWWAI0&t=194sb>. Acesso em: 5 maio 2017.
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Resumo
O artigo analisa a canção “Oração”, lançada pelo conjunto A Banda Mais Bonita da Cidade em 2011,
a partir dos recursos oferecidos pela semiótica da canção. A base teórica da análise, para os aspectos
gerais da semiótica, são as contribuições de José Luiz Fiorin e de Diana Luz Barros, e para os aspectos
específicos dos textos analisados, são os trabalhos de Peter Dietrich e Luiz Tatit. São analisados, pela
ordem, a letra da canção, a estrutura do arranjo e a relação entre melodia e letra, apoiada em
transcrição gráfica para visualização. As análises indicam características de tematização e
figurativização na compatibilidade entre melodia e letra. Os dados apontam, ainda, para as funções do
arranjo na construção dos efeitos de sentido, ora fortalecendo a ideia de circularidade, ora contribuindo
para a caracterização do texto cancional como similar a uma prece coletiva.
Abstract
This article analyses the song “Oração”, released by A Banda Mais Bonita da Cidade in 2011, based on
theoretical foundations of song’s semiotics. These foundations are, for general semiotics issues, the
contributions of José Luiz Fiorin and Diana Luz Barros, and for specific topics of analyzed texts, the
works of Peter Dietrich and Luiz Tatit. The topics selected for analysis are, in this order: lyrics,
musical arrangement’s structure, the relationship between music and lyrics, supported by graphic
transcription appropriate for viewing. The analysis indicates characteristics of figurativization and
musical structuring by themes in the relationship between music and lyrics. The data suggests,
additionally, that musical arrangement reinforce the ideas of circularity and collective prayer.
1
Doutor em Linguística/USP. Docente do IFSP/Campus São Paulo. E-mail: viniciuscex@gmail.com
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penetração midiática de “Oração” atingiu estatuto icônico, que permite incluí-la entre as
canções brasileiras mais populares da segunda década do século XXI.
Justificar, explicar ou analisar as condições que transformaram “Oração” em sucesso
comercial consiste em tarefa que implica a descrição, comparação e ponderação de número
elevado de fatores, dimensionados a partir de perspectivas teóricas dificilmente passíveis de
conciliação. Sem pretender esgotar as possibilidades dessa sondagem, este trabalho visa a
investigar aspectos da força estética, das possibilidades comunicativas e dos elementos de
construção dessa canção que podem ter contribuído para o efeito de sentido do produto final
no fonograma. A investigação analítica apresentada propõe-se como aplicação de abordagem
semiótica de leitura da canção, como esboço de interpretação de elementos menos
imediatamente evidentes na audição e como tributo à qualidade singular do material
produzido pelos músicos paranaenses.
Em nossa abordagem, procuramos apresentar as dimensões de sentido apontadas e
sugeridas pelo material musical do fonograma de 2011, considerando a proposta de letra, de
melodia, de arranjo, de interpretação e de entoação oferecida pela gravação que analisamos.
Destacamos que nossa opção, para o corpo de análise, foi a de análise de todos os recursos
sonoros apresentados pela gravação em uma faixa de disco específica e, por isso,
apresentamos nosso esforço de pesquisa como análise de um fonograma e não somente de
relação letra/melodia da letra, ainda que a admitamos como núcleo de sentido do texto
cancional.2
A canção no álbum
Antes de examinar o fonograma específico, realizamos uma aproximação preliminar, a
partir de sua relação com o produto final ao qual foi englobada, e do qual faz parte, entre
outros fonogramas. “Oração” é a décima-primeira faixa do álbum A Banda Mais Bonita da
Cidade. O álbum caracteriza-se pelo espírito descontraído, intimista e emotivo. Para
compreender a maneira como o disco é estruturado, dividimos as canções em três grupos
distintos:
1) Algumas faixas do álbum fazem referência a situações da vida cotidiana com humor e
leveza, como no caso de “Mercadorama”, “Solitária” e a inteligente “Canção pra não voltar”.
2
Em concordância com as observações do semioticista Márcio Coelho na obra O arranjo e a canção: uma
abordagem semiótica (COELHO, 2014, p. 70-71), nossa opção é detalhada na obra Estudo semiótico de canções
de Adoniran Barbosa: “Dessa forma, aderimos à noção de fonograma como um todo de sentido delimitado com
início e fim, estruturado para dar forma, por meio de um arranjo musical, ao núcleo de identidade da canção, a
letra e a melodia da letra” (SANTOS, 2017, p. 50).
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Evidentemente, os termos de comparação e as gradações apresentadas referem-se ao universo do próprio
material, considerado como uma unidade de sentido enquanto produto comercial. Uma canção pode ser simples
para o universo de canções de um determinado conjunto, mas soar complexa se comparada a outra propostas
artístico-musicais. As canções consideradas aparentemente mais convencionais da Banda, se tomadas no
contexto geral e comparadas com a média da produção musical pop brasileira contemporânea, apresentam
soluções mais elaboradas de composição e execução.
4
A canção “Ótima” assume posição única dentro do trabalho, por não ser inovadora do ponto de vista dos usos
específicos e da densidade do arranjo, e sim na organização do conteúdo verbal e musical como surpresa,
provocação, ironia e humor. Nessa canção, a mudança da intenção da letra é acompanhada da mudança da
perspectiva musical (da escala menor, mais carregada e vocalmente contida, para a explosão em escala maior e
maior abertura vocal), com a segunda parte traindo as expectativas musicais contidas na primeira.
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Ao propor uma letra, portanto, o autor não está apenas combinando sonoridade
linguística com sonoridade melódica, mas sobretudo experimentando diversos tipos
de recortes linguísticos para o mesmo segmento melódico, de modo a gerar
diferentes efeitos figurativos. A melodia em si já traz as suas frases musicais que, a
partir do encontro com a letra, serão convertidas em unidades entoativas
identificadas por qualquer falante da língua utilizada. Ou seja, a melodia cancional
cuja criação não proceda diretamente das entoações da fala precisa reencontrá-las
numa etapa seguinte, no momento de concepção da letra. (TATIT, 2016, p. 76)
Dessa forma, uma mesma frase musical pode ser subdividida em número distinto de
unidades entoativas, a depender do sentido da letra que lhe é acoplada. Adicionalmente, a
transcrição da letra em versos não respeita, necessariamente, as divisões e escolhas de
5
Não é por acaso que podemos dizer que a frase é a menor estrutura que ainda produz um efeito de sentido de
unidade. Abaixo da frase, só poderemos perceber fragmentos de ideias. Existem várias explicações possíveis
para esse fenômeno, mas a principal parece ser uma explicação harmônica. No nível da frase ainda é possível
perceber uma movimentação harmônica, o que confere à frase um perfil melódico que tem em si uma direção. A
frase pode ser suspensiva ou conclusiva, ela pode ser linear ou tortuosa. É verdade que as células (componentes
do nível imediatamente inferior) também têm essas características, mas elas não possuem o poder de produzir o
efeito de sentido de unidade que a frase produz: as células são sempre ouvidas como fragmentos (DIETRICH,
2008, p. 88).
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expressividade da linha do canto, e um único verso pode ser dividido, em uma canção, em
mais de uma unidade entoativa, e vice-versa. A não coincidência dessas noções obriga o
analista a recuperar a letra da canção, na transcrição, por meio de uma escuta atenta, sensível
às nuances de interpretação do conteúdo verbal.
Na análise da letra e da melodia, tornam-se importantes também os conceitos de
interlocutor/interlocutário e de manipulação, enquanto estratégia persuasiva. Em relação às
projeções enunciativas, assumimos que as relações entre o “eu” lírico que assume a primeira
pessoa na canção e o “você” que é instaurado como segunda pessoa correspondem a uma
situação de interlocução, que não corresponde à da relação entre o enunciador e o enunciatário
(os responsáveis pelo fonograma e os ouvintes), nem entre o narrador e o narratário (o “eu”
que narra o texto não corresponde ao “eu” que assume a palavra em discurso direto dentro do
texto). Por essa razão, optamos pelos termos interlocutor e interlocutário para descrever a
estrutura de enunciação na letra estudada. Procuramos recuperar a forma como esses
conceitos são definidos por José Luiz Fiorin:
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Oração
1 Meu amor,
2 Essa é última oração
3 Pra salvar seu coração.
4 Coração não é tão simples quanto pensa.
5 Nele cabe o que não cabe na despensa.
6 Cabe o meu amor.
7 Cabem três vidas inteiras.
8 Cabe uma penteadeira.
9 Cabe nós dois.
10 Cabe até o...
10* (alternativo no final) Cabe essa oração.
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configurando-se como estratégia de intimidação (se o sujeito manipulador não for atendido, o
sujeito manipulado perderá algo).6
A partir do verso correspondente à unidade entoativa 4, o conteúdo passa a ser menos
apelativo e mais explicativo. O interlocutor esforça-se para explicar ao interlocutário tudo o
que cabe no coração. O coração, evidentemente, é utilizado de forma metafórica,
representando a vida afetiva do interlocutário; assim, aquilo que cabe nele, cabe na vida
afetiva. É importante, para a estratégia de manipulação, que haja o entendimento de que o
coração é espacialmente mais amplo, que corresponde, metaforicamente, ao entendimento de
que a vida afetiva pode abarcar mais elementos. O interlocutário não possui esse
entendimento (“coração não é tão simples quanto pensa”), fundamental para a salvação de
suas emoções. A manipulação consiste em fazê-lo assimilar essa informação, o que
representa, para o interlocutor, a possibilidade de incluir, entre outros conteúdos aleatórios
citados, o amor que sente e demonstra (“cabe o meu amor” – unidade entoativa 6; “cabe até o
meu amor” – unidade entoativa 10, completada pela unidade entoativa 1). Se o interlocutário
não assimilar essa informação, por discordância ou desconhecimento, seu coração (sua vida
afetiva) não será salvo (haverá perdas, sofrimento). Por outro lado, se a abrangência do
coração for admitida, o interlocutário “salva-se” dessa condição destrutiva, por possuir agora
as competências cognitivas necessárias para tal, e o interlocutor atinge mais um objetivo de
manipulação, que é aproximar-se de seu objeto afetivo, estabelecendo a conjunção
anteriormente impossibilitada pelas restrições de conteúdo possível entre os afetos do outro.
A importância de exercer influência sobre a perspectiva cognitiva do interlocutário
revela-se, na estrutura da canção, pela insistência do interlocutor, discursivizada na repetição
constante do conjunto da letra e no efeito cíclico conseguido pelo arranjo musical. Na letra, a
circularidade das repetições é articulada pelo acoplamento da unidade entoativa 1, que
funciona na primeira ocorrência como vocativo, à unidade entoativa 10, passando a exercer a
função de objeto direto do verbo “caber”. Esse recurso revela-se significativo do ponto de
vista dos efeitos de sentido da canção, porque mantém a solução entoativa de chamamento,
produzindo, nas repetições, a sensação de apelo na realização sonora e, ao mesmo tempo, a de
complementaridade verbal na linearidade linguística do discurso. O complemento verbal só
deixa de receber esse tratamento entoativo quando, justamente, é substituído por outro
conteúdo, “essa oração” (unidade entoativa 10*), no encerramento da canção, com supressão
da unidade entoativa 9 (“cabe nós dois”). Essa substituição do paradigma (“o meu amor”, ou
6
Cf. BARROS, 2008, p. 33.
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“nós dois”, por “essa oração”) no eixo do sintagma (“cabe ...”), reforçada pela expectativa
criada na estrutura musical insistentemente repetitiva, provoca a percepção de ruptura, mas
também de equivalência (poética) entre os termos. Às expressões “o meu amor” e “nós dois”
passa a corresponder a expressão “essa oração”, criando o efeito de aproximação semântica:
afinal, a oração atua em benefício do amor, ligação do interlocutor com o interlocutário.
Introdução Tema: A1 – A2 – A3 – A4 – A5 – A6 – A7 – A8 – A’
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linhas horizontais. Em lugar disso, Tatit adotou elementos mínimos, que facilitam ainda mais
a observação das curvas melódicas.7
O sistema de transcrição mais recente utilizado por Tatit é o que aplicamos à letra de
“Oração”, adicionando pequenas alterações adaptativas. Nesse modelo, cada linha está
associada a uma nota musical. As incidências de voz sobre as notas musicais aparecem em
forma de sílabas que ocupam, nas linhas correspondentes, o lugar da notação. As diferenças
de altura entre duas sílabas são preenchidas com os sinais \ ou /. Quando as sílabas distintas
são entoadas como notas subsequentes e idênticas, elas são grafadas na sequência
convencional da palavra, sem outra indicação. Os segmentos verbais são divididos conforme a
organização do canto, constituindo segmentos entoativos. Cada segmento entoativo é
delimitado pelo sinal //.
De acordo com esses princípios de transcrição, seguem as partes do tema único da
canção, seguidas de observações analíticas. A primeira parte corresponde aos segmentos 1, 2
e 3, incluídos na figura 2, adiante:
7
Cf. a análise de Feitiço da Vila e os recursos visuais empregados (TATIT, 2016, p. 78-81).
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Procedimento similar ao da canção “Volta”, de Lupicínio Rodrigues. Cf. TATIT, 2012, p. 146.
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Considerações finais
Os recursos verbais e musicais analisados mostram como a simplicidade de letra e
melodia em “Oração” são complexificadas dentro da estrutura do fonograma e estabelecem
um jogo entre os sentidos convencionais e a irreverência da proposta musical construída pelos
autores-intérpretes. Trata-se de uma canção que valoriza os temas, realiza enumerações na
letra e estrutura-se a partir de células rítmicas repetitivas na melodia. De forma complementar,
explora recursos entoativos, como o apelo, o chamamento e a suspensão. Essas características
contribuem para criar as continuidades e confirmar as expectativas do ouvinte, desacelerando
a percepção e aproximando-se das estruturas convencionais. Por outro lado, a circularidade e
iteratividade, presentes na relação entre melodia e letra, são desafiadas pela estrutura de
arranjo, na qual as repetições do tema, que o transformam em uma espécie de refrão puro, são
executadas com intensidade e densidade crescentes, fatores que aceleram a percepção, por
oferecerem, a cada ocorrência, dados novos para o enunciatário. Essa duplicidade de sentidos
associa-se à proposta de construção da oração por meio do material sonoro e musical do
fonograma. A urgência solene do apelo, que remete à força do elemento religioso,
convencional, recebe tratamento formal que valoriza sua mensagem com a repetição, mas ao
mesmo tempo desvirtua sua sisudez por meio da elevação de intensidade gradual, que leva do
tímido apelo pessoal à celebração coletiva. A irreverência atua, assim, sobre a reverência, de
forma a transformar “Oração” em canção genuinamente representativa do álbum em que está
incluída: há a descontinuidade do inusitado, a continuidade do cotidiano e a leveza da
irreverência bem-humorada como competente costura estética do todo.
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Referências
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Disponível em <http://bandamaisbonita.com.br>. Acesso em: 17 fev. 2018.
DIETRICH, P. Semiótica do discurso musical: uma discussão a partir das canções de Chico
Buarque. Tese (Doutorado em Semiótica) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. 256p.
FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. 15. ed. 1. reimpr. São Paulo: Contexto,
2013.
TATIT, L.; LOPES, I. C. Elos de melodia e letra: análise semiótica de seis canções. Cotia:
Ateliê Editorial, 2008.
TATIT, L. O cancionista: composição de canções no Brasil. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2012.
______. Estimar canções: estimativas íntimas na formação do sentido. Cotia: Ateliê Editorial,
2016.
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