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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

SUMÁRIO

Apresentação 2

Pagu: de musa do modernismo à militante pela liberdade feminina – rebeldia e


ironia no poema “Canal”
Poliana Alves de Araújo e Michelle Rubiane da Rocha Laranja ................................... 4

O matrimônio perfeito: a figura da família em Nelson Rodrigues


Iago Nunes dos Santos e Carla Cristina Fernandes Souto .............................................. 18

Sexualidade e prazer femininos como discurso: uma análise da letra Lalá, de


Karol Conká
Ana Luiza Gerfi Bertozzi e Charles Borges Casemiro ................................................... 35

Manoel de Barros: um novo olhar para a criança – reconhecimento e


valorização da infância na poesia de Manoel de Barros
Thais Baldo de Souza e Amanda Cristina Teagno Lopes Marques ............................... 50

Observações sobre os efeitos de sentido em “Oração”, de A Banda Mais Bonita


da Cidade
Carlos Vinicius Veneziani dos Santos ........................................................................... 60

1
Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

APRESENTAÇÃO

Neste número, a Revista Argumento, em parceria com o curso de Letras-Português do


Campus São Paulo do Instituto Federal de Educação, Ciência de Tecnologia de São Paulo
(IFSP), traz artigos cujos resultados advêm das pesquisas dos alunos finalistas do curso com
temáticas que abordam a literatura em diversas dimensões.
O artigo Pagu: de musa do modernismo à militante pela liberdade feminina –
rebeldia e ironia no poema “Canal”, desenvolvido por Poliana Alves de Araújo e Michelle
Rubiane da Rocha Laranja, discute gênero na sociedade a partir da produção da autora
modernista Pagu, defende que grande parte de sua obra permite a reflexão sobre gênero; o
resultado a que chegaram as autoras demonstra a diversidade de visões na sociedade, entre os
que valorizam os ideais feministas e os que apresentam concepções tradicionais e
conservadoras.
No artigo O matrimônio perfeito: a figura da família em Nelson Rodrigues, Iago
Nunes dos Santos e Carla Cristina Fernandes Souto analisam o modo como a figura paterna é
representada nas famílias construídas em duas tragédias de Nelson Rodrigues: Álbum de
família e Senhora dos afogados. Os autores utilizam o conceito da poética sociológica, de
Valentin Volochinov, e o estudo sobre a constituição familiar ocidental, de Elisabeth
Roudinesco, a fim de chegar à conclusão de que, em ambas as tragédias, a figura paterna é
considerada o cerne da constituição familiar, sendo as simbologias que fundamentam cada
figura paterna diferentes em cada uma das obras analisadas.
O terceiro artigo, Sexualidade e prazer femininos como discurso: uma análise da
letra Lalá, de Karol Conká, de Ana Luiza Gerfi Bertozzi e de Charles Borges Casemiro,
analisa a letra da canção “Lalá”, de Karol Conká, pensando a sexualidade e o prazer
femininos como componentes de um discurso que se contrapõe ao silenciamento social
imposto à mulher. Eles utilizam conceitos da Análise de Discurso para embasar sua proposta
e sustentam-na a partir dos recursos discursivos e dos sentidos produzidos na canção “Lalá”.

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O artigo Manoel de Barros: um novo olhar para a criança – reconhecimento e


valorização da infância na poesia de Manoel de Barros, de Thais Baldo de Souza e
Amanda Cristina Teagno Lopes Marques, propõe um novo olhar para a criança, relacionando
o reconhecimento e a valorização desta à obra do poeta Manoel de Barros. Ancora-se em
pesquisa bibliográfica sobre a temática “infância”, articulando as concepções discutidas à
representação de infância na obra do poeta Manoel de Barros. As autoras consideram que
Manoel de Barros, sem falar diretamente sobre e/ou para crianças, consegue trazer o
reconhecimento da infância por meio de seus versos desprendidos de um olhar adultocêntrico.
Encerrando o número, a contribuição do docente Carlos Vinicius Veneziani dos
Santos com a análise da canção “Oração”, no artigo Observações sobre os efeitos de sentido
em “Oração”, de A Banda Mais Bonita da Cidade, a partir da proposta de letra, de
melodia, de arranjo, de interpretação e de entoação, traz uma contribuição bastante importante
para a área da Semiótica da Canção.
Agradecemos as contribuições e convidamos a todos à leitura do número!

Prof. Dr. Flavio Biasutti Valadares


Docente Campus São Paulo/IFSP

Com satisfação subscrevemos a apresentação deste número especial da Revista


Argumento feita pelo professor Dr. Flavio Biasutti Valadares, componente do conselho
editorial da publicação e importante colaborador, que nos ofereceu a parceria por ele referida
e se incumbiu de todo o processo que resulta nesta edição, na qual encontramos as vozes de
docentes e estudantes do Campus São Paulo do Instituto Federal de São Paulo, que vêm
gentilmente se somar às vozes que têm constituído esta revista desde a sua origem e de acordo
com o projeto de divulgação de conhecimento relevante e de propostas de reflexão
enriquecedoras. Manifestamos nossos agradecimentos a todos, com o desejo de que os leitores
se beneficiem ao máximo do conteúdo aqui reunido.

Profa. Esp. Isabel Cristina Alvares de Souza


Coordenadora e editora

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PAGU: DE MUSA DO MODERNISMO À MILITANTE PELA


LIBERDADE FEMININA – REBELDIA E IRONIA NO POEMA
“CANAL”

Poliana Alves de Araújo1


Michelle Rubiane da Rocha Laranja2

Resumo
O presente trabalho tem como objetivo discutir a questão de gênero na sociedade com base na
produção da autora modernista Pagu, uma das maiores representações de feminismo em nosso país.
Grande parte de sua obra permite a reflexão sobre gênero e, para exemplificar, submetemos o poema
“Canal”, de 1960, à análise de linha bakhtiniana do autor Volochínov, que explora as valorações em
que o texto está imerso. Como resultado, demonstramos a diversidade de visões na sociedade, entre os
que valorizam os ideais feministas e os que apresentam concepções tradicionais e conservadoras.

Palavras-chave: Pagu. Modernismo. “Canal”. Feminismo. Gênero. Sociedade.

Abstract
The present work aims to discuss the gender issue in society based on the production of the modernist
author Pagu, one of the greatest representations of feminism in our country. Much of his work allows
for reflection on genre, and to exemplify, we submit the poem “Canal” of 1960 to the analysis of the
Bakhtinian line of author Volochínov, which explores the valuations in which the text is immersed. As
a result, we will demonstrate the diversity of visions in society, among those who value feminist ideals
and those with traditional and conservative views.

Keywords: Pagu. Modernism. “Canal”. Feminism. Genre. Society.

Introdução
Pretende-se, com este trabalho, apresentar questões de gênero, frequentemente
debatidas na sociedade e também presentes na literatura, uma vez que o lugar da mulher ainda
incomoda. A bandeira do feminismo foi erguida ainda no século XIX, com os primeiros
movimentos pela liberdade e emancipação feminina, porém a desigualdade entre os sexos
continua existindo. Como Simone de Beauvoir, pioneira dos estudos sobre mulheres, traz no
livro O Segundo Sexo, de 1949:

A mulher? É muito simples, dizem os amadores de fórmulas simples: é uma matriz,


um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defini-la. Na boca do homem o
epíteto “fêmea” soa como um insulto; no entanto, ele não se envergonha de sua
animalidade, sente-se, ao contrário, orgulhoso se dele dizem: “É um macho!” O
termo “fêmea” é pejorativo não porque enraíze a mulher na Natureza, mas porque a
confina no seu sexo. (BEAUVOIR, 1970, p. 25)

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Licencianda em Letras-Português, IFSP/Campus São Paulo. E-mail: poliana_araujo095@hotmail.com
2
Doutora em Teoria da Literatura/UNESP, docente do Departamento de Humanidades/Letras-Português,
IFSP/Campus São Paulo. E-mail: michelle.laranja@ifsp.edu.br

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Ser mulher é ter desde o nascimento um rótulo, um destino pelo simples fato de
pertencer ao sexo feminino, pois é essa visão que o mundo centrado no logocentrismo e no
falocentrismo reproduz de geração em geração. As definições do que é ser homem e do que é
ser mulher são construtos culturais e sociais que, ao se naturalizarem, legitimam a hegemonia
masculina. Ao lidar com o tema, a literatura cria o lugar para a ruptura, reavalia os papéis dos
sujeitos.
São esses questionamentos que Pagu – autora brasileira significativa, embora sem
grande destaque no cânone literário – aborda, com forte militância, na luta pela liberdade
feminina dentro e fora da literatura. Pagu é o apelido de Patrícia Rehder Galvão (1910-1962),
escritora que teve uma trajetória conturbada devido ao posicionamento ideológico, tendo sido
presa por vinte e três vezes. Teve grande destaque no movimento Modernista, apesar de não
participar da Semana de Arte Moderna, em 1922, visto que contava apenas doze anos de idade
à época.
Nesse contexto, este artigo procura analisar os valores integrados na sociedade a
respeito das mulheres, explicitados no poema de Pagu, intitulado “Canal”, de 1960. Ao longo
do texto, a autora reflete sobre o contraste entre diferentes concepções da mulher na
sociedade, seja apoiada em rótulos convencionais petrificantes ou fundamentada no ideal de
liberdade feminina. Pretende-se demonstrar o discurso de uma mulher falando sobre
mulheres, discurso este silenciado em um mundo determinado por homens, como indica o
comentário abaixo, sobre a literatura de autoria feminina:

A intenção é promover a visibilidade da mulher como produtora de um discurso que


se quer o novo, um discurso dissonante em relação aquele arraigado milenarmente
na consciência e no inconsciente coletivo, inserindo-a na historiografia literária.
(ZOLIN, 2005, p. 276)

A partir da análise de “Canal”, à luz dos conceitos de Volochínov (2013) relativos às


valorações culturais, discutimos a visibilidade desse discurso “novo” no âmbito social,
político e até do inconsciente coletivo. Dessa forma, pretendemos questionar conceitos
arraigados para revelar a necessidade de valorização do discurso feminino, já que a obra de
Pagu apresenta a literatura como instrumento de resistência à discriminação e ao machismo.

Grito de liberdade: o feminismo


Falar sobre mulher é condensar em poucas palavras (pois nunca será o suficiente)
séculos de subjugação e, assim, indignar-se com o fenômeno histórico em que grande parte da
humanidade foi excluída, em diferentes sociedades e em diferentes tempos históricos.

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Constata-se que as diferenças entre os sexos resultam em relações de poder em diferentes


esferas da vida de homens e mulheres, como no trabalho, na participação política, na esfera
familiar, dentre outras. Como nos contam os livros – sejam eles históricos ou fictícios,
didáticos ou artísticos –, houve uma recorrência de apagamento da imagem feminina, sendo
representado:

[...] o feminino como passividade e conformidade, dramatizado na “estética da


renúncia”, na “temática da invisibilidade e do silêncio” ou na “poética do
abandono”, se desdobra na prática representacional de resistência do sujeito
consciente que estilhaça o discurso das exclusões. (SCHIMIDT, 1995, p. 187)

A literatura sistematicamente excluiu as mulheres de serem autoras de sua própria arte,


uma vez que o cânone nem sempre fez questão de inseri-las nesse universo. Prova-se, assim, a
correspondência com o comportamento excludente da sociedade, manifestado também no
campo artístico. A autoria feminina esteve, por muito tempo, marginalizada e apagada pelo
mundo machista, devido ao desejo de acreditar que mulher não escreve, como demonstra o
cronista João do Rio: “Por que escrevem essas senhoras? Ninguém o soube; ninguém o
saberá. Com certeza porque não tinham mais o que fazer [...]. Mas elas escrevem, escrevem,
escrevem”. (XAVIER, 1999, p. 19, citado por ZOLIN, 2005b, p. 276).
A banalização da escrita feminina estende-se à banalização do seu discurso em vários
âmbitos sociais, já que a própria presença feminina em determinados espaços gera julgamento
e preconceito. É preciso questionar características sociais pré-definidas para subverter o
discurso dominante, falocêntrico, num movimento de valorização identitária contrário à
violência sexista.
Em razão dessas questões, os movimentos feministas pelo mundo são intensificados
na segunda metade do século XX, mais ou menos, nas décadas de 60 e 70, na continuidade da
luta para garantir visibilidade à questão da mulher. De maneira geral, o objetivo do feminismo
(ou dos feminismos, se considerarmos as diferentes vertentes) é uma sociedade livre de
hierarquia de gênero, na qual ser homem ou ser mulher não deve legitimar opressão nem
render privilégios.
Observa-se postura semelhante com relação às produções literárias e à crítica. A
produção de autoria feminina constitui-se como resistência à ideologia historicamente
instituída, com a intenção de promover a visibilidade da mulher como produtora de um
discurso próprio, dissonante daquele que a história sempre difundiu. A crítica feminista, na

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mesma direção, emerge, norteada pela bandeira do feminismo, para revelar ideologias
igualitárias.

Se as relações entre os sexos se desenvolvem segundo uma orientação política e de


poder, também a crítica literária feminista é profundamente política na medida em
que trabalha no sentido de interferir na ordem social. Trata-se de um modo de ler a
literatura confessadamente empenhado, voltado para a desconstrução do caráter
discriminatório das ideologias de gênero, construídas, ao longo do tempo, pela
cultura. (ZOLIN, 2005, p. 182)

Aos poucos, o feminismo e a crítica feminista dão visibilidade à mulher, promovendo


a historicização do gênero (e posteriormente do próprio sexo), por meio de mobilização
política para questionar as arbitrariedades convencionadas socialmente. Quando Simone de
Beauvoir (1970) analisa a relação entre os sexos, revela que a mulher aprende a ser
propriedade do “Outro” – o homem, seu senhor. As marcas de opressão estão ligadas ao que é
transmitido há gerações, o que define o “destino de homem” e o “destino de mulher”. As
definições estanques que promovem soberania ao sujeito masculino, contudo, são cada vez
mais questionadas, como atesta a obra dessa escritora, porta-voz de uma minoria silenciada.

Pagu e o modernismo brasileiro


Pagu é o pseudônimo da autora modernista Patrícia Rehder Galvão, nascida em nove
de junho de 1910, em São João da Boa Vista, interior de São Paulo. Pagu atuou em várias
áreas das artes, como escritora (de prosa e poesia), diretora de teatro, tradutora, desenhista e
cartunista, além de ser também jornalista.
Morou com a família em São Paulo, desde a infância, e vivenciou as rápidas mudanças
que ocorriam no Brasil, especialmente na cidade que abria caminho para a modernização. Os
centros urbanos cresciam em ritmo acelerado e apresentavam mudanças sociais profundas,
especialmente devido à expansão econômica advinda da industrialização. O cenário era de
desenvolvimento e, ao mesmo tempo, de crescimento de desigualdades, como explica Alfredo
Bosi:

O quadro geral da sociedade brasileira dos fins do século vai-se transformando


graças a processos de urbanização e à vinda de imigrantes europeus em levas cada
vez maiores para o centro-sul. Paralelamente, deslocam-se ou marginalizam-se os
antigos escravos em vastas áreas do país. Engrossam-se, em consequência, as fileiras
da pequena classe média, da classe operária e do subproletariado. Acelera-se ao
mesmo tempo o declínio da cultura canavieira no Nordeste que não pode competir,
nem em capitais, nem em mão-de-obra, com a ascensão do café paulista. (BOSI,
2003, p. 304)

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A cidade crescia vertiginosamente e é no contexto caótico da metrópole industrial que


Pagu está inserida. Atenta e inquieta, a adolescente demonstra gostos diferentes da maioria,
como indica uma descrição feita na época, por um estudante de direito da faculdade no Largo
de São Francisco:

Era uma menina forte e bonita, que andava sempre muito extravagantemente
maquiada, com uma maquiagem amarelo-escura, meio cor de queijo palmira, e
pintava os lábios de quase roxo, tinha um cabelo comprido, assim pelos ombros, e
andava com o cabelo sempre desgrenhado e com grandes argolas na orelha. Passava
sempre lá pela faculdade, de uniforme de normalista. E os estudantes buliam muito
com ela, diziam muita gracinha pra ela [...] faziam muita piada e ela respondia à
altura, porque não tinha papas na língua para responder. (FRÉSCA, 2014, p. 2,
citado por ACCORSI, 2015)

As atitudes não convencionais no modo de se vestir, de falar e de agir causavam


espanto na avaliação conservadora da época. Seu estilo vanguardista extrapolava a concepção
artística, ao escrever e desenhar, revelando-se também no modo de pensar e de atuar na
sociedade.
Sempre muito precoce, aos quinze anos já escrevia para um jornal da cidade. Aos
dezoito, por intermédio de Raul Boop, intensificou o contato com os artistas modernistas,
representantes da vanguarda intelectual paulistana, que provocavam alvoroço com as
propostas apresentadas na Semana de Arte Moderna.
Seu primeiro casamento, aos vinte anos, é com Oswald de Andrade, ícone da primeira
geração do Modernismo brasileiro. Juntos, divulgam ideais inovadores de arte e política.
Filiam-se ao Partido Comunista do Brasil (PCB), iniciando na vida de Pagu um momento de
intensa militância, responsável por vinte e três prisões.
A modernidade da arte de Pagu não foi vista no marco inicial do Modernismo
brasileiro, pois tinha apenas doze anos em 1922. O projeto modernista apresentado
demonstrava um novo conceito de arte, tipicamente brasileira. Bosi (2003) afirma que “a
Semana foi um acontecimento e uma declaração de fé na arte moderna” (p. 383),
demonstrando uma ação madura, consciente e revolucionária.

Renovar a linguagem está no cerne das preocupações e dos projetos de todos. Mas
subsistem divergências sensíveis sobre o modo de entender as fronteiras entre poesia
e não-poesia, sobre o tipo de mediação que se deve propor entre o ato estético e os
demais atos humanos (éticos, políticos, religiosos, vitais), ou ainda sobre as relações
que se podem estabelecer entre o poema e o objeto de consumo, a imagem da
propaganda, o slogan político, a canção popular e outras manifestações de uma
cultura plural veiculada cada vez mais intensamente pelos meios de comunicação de
massa. (BOSI, 2003, p. 439)

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O excerto destaca a diversidade na unidade. Se, por um lado, os modernistas seguiam


o mesmo desejo de renovação, por outro lado, caminhos diferentes mostravam-se disponíveis
para a reconstrução da linguagem da arte. Uma possibilidade era atrelar a literatura à leitura
política da sociedade, como fez Pagu.
A mulher enigmática, irreverente e revolucionária, não só para a época como também
na atualidade, tornou-se ícone devido à expressividade da sua linguagem poética e ao esforço
político para mudanças sociais. Raul Bopp, responsável pelo pseudônimo “Pagu”, escreve um
poema em sua homenagem, por meio do qual demonstra a força da autora:

Pagu tem uns olhos moles


uns olhos de fazer doer.
Bate-coco quando passa.
Coração pega a bater.

Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer…

Passa e me puxa com os olhos


provocantissimamente.
Mexe-mexe bamboleia
pra mexer com toda a gente.

Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer…

Toda a gente fica olhando


o seu corpinho de vai-e-vem
umbilical e molengo
de não-sei-o-que-é-que-tem.

Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer…

Quero porque te quero


Nas formas do bem-querer.
Querzinho de ficar junto
Que é bom de fazer doer.

Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer…

A mulher que inspira, a musa dos modernistas, era bela, vaidosa e extravagante, como
descrita no poema de 1928, posteriormente transformado em canção. Era também inteligente
e preocupada com causas sociais, como a necessidade de valorização da mulher. Veremos a
seguir, por meio da análise de um de seus poemas, a militância pela liberdade, representada
pelo questionamento do lugar social feminino.

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As valorações da voz silenciada em “Canal”


Nossa leitura procura demonstrar a ligação entre o fazer poético e a perspectiva social
na obra de Pagu. Para tanto, a análise tem como fundamentação teórica os princípios da
corrente russa do Círculo de Bakhtin, mais especificamente, as ideias de Volochínov (2013).
O teórico descreve a arte integrada ao contexto histórico-social, reconhecendo, no discurso
literário, o valor da ideologia dos sujeitos. Assim, expressa que:

A palavra na vida, com toda a evidência, não se centra em si mesma. Surge da


situação extraverbal da vida e conserva com ela o vínculo mais estreito. E mais, a
vida completa diretamente a palavra, que não pode ser separada da vida sem que
perca seu sentido. (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 77)

Em virtude dessa condensação, é possível reconhecer conteúdos sociais, políticos,


históricos e culturais vinculados ao uso da palavra ficcional, literarizada. Para integrar os
aspectos estruturais ao contexto extralinguístico, o real, é preciso identificar a presença das
valorações, que dão sentindo ao texto. Vejamos como o teórico as define:

A fim de evitar mal entendidos, parece-nos necessário destacar que aquilo que
entendemos por “valor” não tem nada a ver com a concepção idealista que era
corrente na Psicologia (ver Münsterberg) e na Filosofia (ver Rickert) no final do
século XIX e início do século XX. Nós operamos com o conceito de valor
ideológico, que não objetiva a nenhuma “universalidade”, mas que carrega uma
significação social e, mais precisamente, uma significação de classe.
(VOLOCHÍNOV, 2013, p. 254)

Portanto, os valores estão sempre ligados a alguma ideologia de significação social.


Assumimos ideologia como as reflexões, interpretações e entendimentos da realidade social e
natural que são feitas na consciência de todos aqueles presentes em um âmbito social. Tais
posicionamentos são materializados por meio da escrita, como a poesia.
“Canal” foi escrito em 1960, dois anos antes do falecimento da autora. O tom
empregado pelo eu-lírico é pessimista e demonstra dois posicionamentos contraditórios: a
conformidade e a indignação. Se, por um lado, temos a visão empregada pela sociedade
tradicional e conservadora, por outro, percebemos a procura por um novo olhar, que seria o da
liberdade feminina. Nesse poema especificamente, podemos notar a oposição entre esses
posicionamentos, ou seja, o que a sociedade impõe à mulher versus o que o eu-lírico
(representante de um grupo) revela Ser e Sentir:

Nada mais sou que um canal


Seria verde se fosse o caso
Mas estão mortas todas as esperanças

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Sou um canal
Sabem vocês o que é ser um canal?
Apenas um canal?

A desesperança leva o eu-lírico a se considerar “apenas” um canal e “Nada mais”. Tal


nomeação veicula a imagem da mulher aos valores tradicionais que a constituem, como
exposto por Simone de Beauvoir (1949), como “uma matriz, um ovário, uma fêmea” (p. 25).
A escolha lexical é significativa, visto que, mesmo se considerada literalmente, há muita
variação de significado para a palavra “canal” e, dentre as dezoito possibilidades apresentadas
pelo dicionário Michaelis on-line (2017), destacamos “cavidade ou tubo que dá passagem a
líquidos ou gases [...] pequenos tubos que percorrem os órgãos vegetais, nos quais se
acumulam substâncias de vários tipos, geralmente produtos de secreção”.
Essa interpretação permite reconhecer a valoração evidenciada por Beauvoir, devido à
imagem metafórica do canal, a qual pode revelar uma conotação sexual e ofensiva. O valor
convencionalmente atribuído ao corpo feminino torna-se um pressuposto por meio do qual
são construídas todas as demais imagens do papel da mulher na sociedade. Imagens essas
naturalizadas e arraigadas historicamente, devido à herança do patriarcado machista que as
fundamenta.

O mundo sempre pertenceu aos machos. Nenhuma das razões que nos propuseram
para explicá-lo nos pareceu suficiente. É revendo à luz da filosofia existencial os
dados da pré-história e da etnografia que poderemos compreender como a hierarquia
dos sexos se estabeleceu. Já verificamos que, quando duas categorias humanas se
acham em presença, cada uma delas quer impor à outra sua soberania; quando
ambas estão em estado de sustentar a reivindicação, cria-se entre elas, seja na
hostilidade, seja na amizade, sempre na tensão, uma relação de reciprocidade. Se
uma das duas é privilegiada, ela domina a outra e tudo faz para mantê-la na
opressão. (BEAUVOIR, 1970, p. 80)

Essa relação de opressão e hierarquia entre os sexos pode ser observada pelo leitor do
poema, que reconhece, por meio da nomeação metafórica, a condição de submissão imposta
pela sociedade patriarcal às mulheres.
“Sou um canal” é a voz do eu-lírico manifestando que tem conhecimento do discurso e
pensamento naturalizado da sociedade, condensado em palavras e atitudes do dia a dia, que
provam a objetificação do corpo, como as cantadas, os comentários de apelo sexual, os
assobios, os abusos. Logo em seguida, porém, vem o questionamento: “Sabem vocês o que é
ser um canal?/Apenas um canal?”, mudando o tom – de constatação para indignação. O
diálogo com esse “vocês” indica a necessidade fazer o “outro” refletir sobre o
constrangimento de ser comparada a um canal.

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Logo, notamos aqui como a construção poética associa-se ao contexto histórico-social


específico de Pagu. Adepta à luta feminista, seu discurso revela os valores sociais do Brasil
dos anos 60, com a intenção de denunciar as limitações femininas para ser possível subvertê-
las. Importante notar o contraponto estabelecido entre os valores impostos – os quais
sexualizam o corpo da mulher, sujeitando-a a concepções inferiorizadas – e os valores
reivindicados, de liberdade e igualdade. A arte é o espaço para o debate entre diferentes
princípios, uma vez que é social e reforça as questões de seu tempo.

A arte é também eminentemente social. O meio social extra-artístico, influenciar a


arte desde o exterior, encontra nela uma resposta imediata interna. Na arte, o que
não é alheio atua sobre o alheio, é uma formação social influenciada pela outra.
(VOLOCHÍNOV, 2013, p. 74)

Partindo dessa lógica, o poema extravasa o que o cotidiano sufoca com a rotina,
problematiza as mazelas de uma época e abarca problemas reais. Em razão dessa conjunção,
revela-se uma das dimensões da literatura, visto que, “na literatura são importantes acima de
tudo os valores subentendidos. Se pode dizer que uma obra artística é um potente
condensador de valores sociais.” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 88). Ao transparecer o
subentendido, compreendemos o embate entre os valores do machismo e do feminismo,
observados também no seguinte excerto:

Evidentemente um canal tem as suas nervuras


As suas nebulosidades
As suas algas
Nereidazinhas verdes, às vezes amarelas
Mas por favor
Não pensem que estou pretendendo falar
Em bandeiras
Isso não

Nesses versos, há a continuação da descrição do canal “aquoso”, mas novamente a


ambiguidade dos termos utilizados contribuem para a criação da imagem poética que remete
ao órgão sexual feminino. O eu-lírico utiliza-se da semelhança entre as duas descrições para
reforçar a ideia de limitação da representatividade feminina na sociedade.
O final dessa estrofe apresenta um conceito novo, com o uso do vocábulo “bandeiras”:
“Não pensem que estou pretendendo falar/ Em bandeiras/ Isso não”. A força dessa palavra é
diminuída pela negação, em uma construção irônica. Provamos a ironia quando observamos a
reiteração do termo, ora rejeitado, na estrofe seguinte:

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Gosto de bandeiras alastradas ao vento


Bandeiras de navio
As ruas são as mesmas.
O asfalto com os mesmos buracos,
Os inferninhos acesos,
O que está acontecendo?
É verdade que está ventando noroeste,
Há garotos nos bares
Há, não sei mais o que há.
Digamos que seja a lua nova
Que seja esta plantinha voacejando na minha frente.

Considerando a biografia da autora, a primeira ideia que surge à mente quando lemos
a palavra “bandeira” é como sinônimo de luta, um lema que direciona atitudes políticas. O eu-
lírico, entretanto, apresenta as bandeiras de navios ao vento, como a vida que segue seu curso
sem necessidade de intervenção. É como uma sociedade ideal, na qual não existe a
discriminação sexista.
Se o poema se abstém de falar do feminismo nesse instante, a bandeira da luta
comunista parece se levantar. O “vento noroeste” pode ser um sinal de turbulência, a agitação
social diante de problemas verificados nas ruas da cidade. Diante de tais problemas, há sinais
de solução, com as imagens da “lua nova” e da “plantinha voacejando na minha frente”. A
visão partidária fica mais evidente na sequência:

Lembranças dos meus amigos que morreram


Lembranças de todas as coisas ocorridas
Há coisas no ar…

Esses versos explicitam traços de autoritarismo, contudo, de maneira indireta, por


meio da introspecção subjetiva. A morte dos amigos pode ser um tipo de denúncia, mas fica
no campo das “lembranças”, assim como “todas as coisas ocorridas”. A vaguidão da palavra
“coisas” é ainda mais intensa no último verso transcrito. A soma de todos esses elementos
permite associar o trecho às questões políticas envolvendo perseguição, repressão, tortura,
prisões e mortes.
Pagu viveu a ditadura da Era Vargas, período em que o governo brasileiro mostrou
simpatia às correntes nazifascistas da Europa. Na tentativa de eliminar a oposição, a liberdade
de expressão foi proibida como forma de silenciar opiniões ditas perigosas à manutenção da
ordem. A ideologia conservadora difundia valores de “Deus, Pátria e Família” para, na
verdade, controlar as minorias, inclusive o avanço das propostas comunistas.
As ditaduras que ocorreram fazem parte da constituição da sociedade brasileira,
permanecem na memória coletiva e dificultam o avanço de ideias democráticas e igualitárias

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até a contemporaneidade. Em 1960, data de publicação do poema, a sociedade tinha saído do


Estado Novo (1937-1945), mas estava prestes a vivenciar a ditadura militar (1964-1985) e o
período de tensão é representado pelo eu-lírico, que traz toda a violência causada pela
repressão e perseguição, como também o sentimento de mudança, marcado pela repetição do
verso “Digamos que seja a lua nova”, pois havia a possibilidade de mudança por meio dos
ideais comunistas.
Quando parece que o eu-lírico encontra algum traço de esperança, o mesmo
posicionamento do início do poema retorna, com pouca variação nos versos:

Digamos que seja a lua nova


Iluminando o canal
Seria verde se fosse o caso
Mas estão mortas todas as esperanças
Sou um canal.

Essa retomada do pessimismo inicial pode indicar que o eu-lírico tem consciência de
que ainda nada mudou, de que o mesmo contexto de diferença está presente, de que a
mudança tão sonhada ainda não chegou. Portanto, o discurso repleto de dualidades, no qual se
alternam otimismo e pessimismo, é concluído com angústia. Ao repetir que “estão mortas
todas as esperanças”, o eu-lírico nomeia-se novamente como um canal, como se quisesse
convencer seu interlocutor (e a si mesmo) de que não há motivo para lutar.
É possível, por outro ponto de vista, interpretar o ser canal de uma maneira menos
negativa. A necessidade de criar novos modelos, seja pela estética modernista, seja pelo
pensamento revolucionário, impõe ao artista e pensador batalhas contínuas. Pode ser que o
eu-lírico revele um cansaço diante de tantas batalhas, mas não se pode negar que a trajetória
lírica/política de Pagu representa uma ponte às gerações posteriores a ela. Assim, ser canal
pode representar a qualidade de ligar sujeitos e épocas diferentes, direcionando a sociedade de
pensamento tradicional e conservador por um caminho de autonomia e justiça.
Tudo no texto artístico se integra na construção dos efeitos de sentido. Há, no poema
analisado, ausência de preocupação formal, embora não apareçam experimentalismos como
nos primeiros poemas da autora. Dialoga com a estrutura formal, o pensamento inquietante,
advindo do jogo de contradições vocabulares e ambiguidades irônicas. Soma-se a ideologia
francamente oposta à concepção convencional acerca do posicionamento da mulher na
sociedade machista, inclusive pelo fato de apresentar uma mulher que escreve literatura. Essas
transgressões de valores convencionalmente estabelecidos traduzem um discurso novo e
moderno.

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Considerações finais
Procuramos demonstrar a integração entre a estrutura do poema e a interpretação,
relacionando dados biográficos e contextuais, considerando o discurso construído na arte
como interligado ao que é vivido. Assim, a interpretação das questões de gênero presentes no
poema está atrelada à observação da sociedade ocidental (genericamente) e brasileira
(especificamente), além da relação com a vida da autora e suas ideologias políticas.
Outra questão importante é valorização da autoria feminina, rompendo a tradição do
cânone literário. Se a voz das mulheres é apagada na vida e na arte, na obra de Pagu tem lugar
de destaque. O discurso artístico – não apenas da autora, mas especialmente o dela – é
impregnado pela biografia, pela vivência que determina o caminho ideológico, nesse caso,
sempre atrelado à militância em prol das mulheres, em uma sonhada sociedade comunista.
Interpretar o poema “Canal” à luz da teoria de Volochínov (2013) permite investigar o
posicionamento crítico-ideológico revelado. Essa perspectiva teórica indica que toda e
qualquer manifestação artística (como a literatura) está diretamente relacionada com seu
momento histórico-cultural e, dessa forma, a arte condensa todos os valores que estão
presentes naquele meio.
Dessa forma, não podemos separar vida (contexto extraliterário) da obra poética.
Pagu, nos versos de “Canal”, critica a forma que a sociedade trata as mulheres, cujo valor
pejorativo se constrói a partir da visão que centra o homem como fonte de todo o saber,
responsável pela condução de todos os âmbitos sociais (e históricos). O que sobra à mulher é
ser apenas um canal, ideia construída, desconstruída, repetida e ressignificada no poema.
A literatura de autoria feminina combate as representações da mulher fundadas nos
valores ideológicos discriminatórios, uma vez que dá voz a sujeitos desprezados na sociedade.
Há uma concepção de revolução, de luta para o empoderamento feminino, para que as
mulheres se apropriem de espaços negados na vida e na literatura. O reconhecimento de
autoras como Pagu torna-se, portanto, fundamental para que a própria sociedade liberte-se de
concepções ultrapassadas e injustas, libertando-se de padrões opressores, baseados em normas
de gênero.

Referências

ACCORSI, Simone. Os delírios de Pagu. Historia y Espacio, [S.l.], v. 11, n. 44, p. 75-89, ago.
2015. ISSN 2357-6448. Disponível em:
<http://historiayespacio.univalle.edu.co/index.php/historia_y_espacio/article/view/1199>.
Acesso em: 5 set. 2017.

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

BEAUVOIR, Simone. Segundo Sexo: Fatos e Mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
1970.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2003.

CANAL. In: MICHAELIS: Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Disponível em:


<http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/canal/>. Acesso
em: 5 set. 2017.

GALVÃO, Patrícia Rehder. Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão. Rio de
Janeiro: Agir, 2005.

SCHMIDT, Rita. Repensando a cultura, a literatura e o espaço da autoria feminina. In:


SCHMIDT, Rita; NAVARRO, Márcia Hoppe (Org.). Rompendo o silêncio: gênero e
literatura na América Latina. Porto Alegre: Editora Universitária/UFRGS, 1995.

VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaïevitch. A palavra na vida e a palavra na poesia: Introdução


ao problema da poética sociológica. In: ______. A construção da enunciação e Outros
ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.

ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica Feminista. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Org.).
Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2005.

______. Literatura de Autoria Feminina. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Org.)
Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2005.

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ANEXO
Canal
Pagu/Patrícia Rehder Galvão
Publicado n’A Tribuna, Santos/SP, em 27-11-1960.

Nada mais sou que um canal


Seria verde se fosse o caso
Mas estão mortas todas as esperanças
Sou um canal
Sabem vocês o que é ser um canal?
Apenas um canal?

Evidentemente um canal tem as suas nervuras


As suas nebulosidades
As suas algas
Nereidazinhas verdes, às vezes amarelas
Mas por favor
Não pensem que estou pretendendo falar
Em bandeiras
Isso não

Gosto de bandeiras alastradas ao vento


Bandeiras de navio
As ruas são as mesmas.
O asfalto com os mesmos buracos,
Os inferninhos acesos,
O que está acontecendo?
É verdade que está ventando noroeste,
Há garotos nos bares
Há, não sei mais o que há.
Digamos que seja a lua nova
Que seja esta plantinha voacejando na minha frente.
Lembranças dos meus amigos que morreram
Lembranças de todas as coisas ocorridas
Há coisas no ar…
Digamos que seja a lua nova
Iluminando o canal
Seria verde se fosse o caso
Mas estão mortas todas as esperanças
Sou um canal.

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O MATRIMÔNIO PERFEITO: A FIGURA DA FAMÍLIA EM NELSON


RODRIGUES
Iago Nunes dos Santos1
Carla Cristina Fernandes Souto2

Resumo
O presente artigo busca analisar o modo como a figura paterna é representada nas famílias construídas
em duas tragédias de Nelson Rodrigues: Álbum de família e Senhora dos afogados. O objetivo é
verificar se as valorações do patriarcado brasileiro, que são representadas nas figuras paternas das
peças, estão estruturadas da mesma forma nas duas tragédias. Como referenciais teóricos, são
utilizados o conceito da poética sociológica, de Valentin Volochinov, que abordará a questão de
valorações sociais; o estudo sobre a constituição familiar ocidental, de Elisabeth Roudinesco; e os
estudos sobre o trágico no teatro desagradável de Nelson Rodrigues, de Carla Souto. A análise foi
realizada por meio da comparação de duas tragédias de Nelson Rodrigues: Álbum de Família e
Senhora dos Afogados. Conclui-se que em ambas as tragédias a figura paterna é considerada o cerne
da constituição familiar, mas as simbologias nas quais cada figura paterna está fundamentada são
diferentes: em Álbum de família, podemos ver o patriarca construído com base em valores cristãos,
enquanto em Senhora dos afogados vemos o pai delineado com base em valores sociais e políticos.

Palavras-chave: Valorações sociais. Patriarcado. Figura paterna. Álbum de Família. Senhora dos
Afogados.

Abstract
This paper analyses the processes by which the father figure is characterized in the families
represented within two tragedies by Nelson Rodrigues – Álbum de família and Senhora dos afogados.
It intends to verify if the valuations of Brazilian patriarchalism – which is represented through the
father figures in each tragedy – are structured the same way in both plays. As theoretical references,
the work evokes the concept of sociological poetics, by Valentin Volochinov, that addresses the social
valuations question; the study on West family formation by Elisabeth Roudinesco; and the studies on
the tragic side of the “unpleasant theatre” of Nelson Rodrigues, by Carla Souto. Present analysis was
performed through the comparison of two tragedies by Nelson Rodrigues: Álbum de família and
Senhora dos afogados. Thus, we conclude that in both tragedies the father figure is considered the core
of family formation, though the simbolisms that underlie each father figure are different: in Álbum de
Família the patriarch is structured by means of Christian values, while in Senhora dos Afogados the
father character is outlined through social and political values.

Keywords: Social values. Patriarchalism. Father figure. Álbum de Família. Senhora dos Afogados.

Introdução
O presente trabalho tem como cerne a análise comparativa de duas tragédias do
dramaturgo Nelson Rodrigues: Álbum de Família e Senhora dos Afogados, com vistas a
verificar como a figura paterna está representada nesta configuração familiar, desenhada nas
duas tragédias. O intuito do trabalho é analisar de que modo o formato de família tradicional é

1
Licenciando em Letras-Português, IFSP/Campus São Paulo. E-mail: iagonunessantos@gmail.com
2
Doutora em Teoria da Literatura/UFRJ, docente do Departamento de Humanidades/Letras-Português,
IFSP/Campus São Paulo. E-mail: carla.souto@gmail.com

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recriado na ficção, apoiado em características nacionais, e verificar, também, como a essência


da sociedade patriarcal funciona nas famílias representadas.
O patriarcado é um dos valores que constituem a família e a sociedade brasileiras. No
país, tais princípios assumem a simbologia de eixo da sociedade, porque é a partir desses
valores, tomados como centro, que outras esferas como a política e a institucional vão se
organizar. Praticamente, desde toda a nossa existência como Brasil, a formação patriarcal de
família era o formato padrão. Atualmente, no ambiente universal, a formação de família
tradicional binária – constituída por pai, mãe e filhos – vem sendo questionada e reformulada
com a proposta de outros formatos de família.
Ao longo dos tempos, a ideia de família vem mudando no mundo. Essa transformação
ocorre tanto em relação ao papel da família, quanto em relação a sua constituição. Temos
agora, século XXI, um novo ideal de família surgindo e aos poucos se firmando, no que se
refere a sua composição. Mas ainda existem barreiras que vão de encontro a esses novos
valores, conservando os antigos. Dentro das famílias, as regras que as organizam são nada
mais do que modelos e princípios que foram transmitidos ao longo da história e que também
podem ser vistos em uma determinada sociedade.
Nesse sentido, pretendemos, neste artigo, mostrar dois modelos da constituição
familiar patriarcal na sociedade brasileira, representadas em duas tragédias de Nelson
Rodrigues, estabelecendo uma comparação entres ambas, a fim de verificar se as famílias
representadas se estruturam da mesma forma.

Valorações, a figura paterna na configuração familiar e Nelson Rodrigues: uma análise


Uma obra de arte é uma forma de comunicação que segue alguns princípios
semelhantes a outros tipos de comunicação social, em que há a interação de pelo menos dois
elementos: um falante e um ouvinte. Na obra de arte, a interação também acontece, sendo que
as figuras dos participantes mudam: temos o autor e o leitor.
Volochinov, em seu ensaio “A palavra na vida e a palavra na poesia: introdução ao
problema da poética sociológica”, mostra como essa interação organiza-se, dentro da obra
artística, partindo – no caso da literatura – de seu elemento fundamental: a palavra. O referido
autor estabelece como a palavra se dá no discurso cotidiano comum e no discurso artístico:

A palavra na vida, com toda evidência, não se centra em si mesma. Surge da


situação extraverbal da vida e conserva com ela o vínculo mais estreito. E mais, a
vida completa diretamente a palavra, que não pode ser separada da vida sem que
perca seu sentido. (VOLOCHINOV, 2013, p. 77)

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No discurso cotidiano comum, a palavra está ligada diretamente a acontecimentos da


vida, carregando juízos e valores de situações extraverbais da enunciação. A palavra olhada
isoladamente, apenas como um “fenômeno linguístico”, sem o contexto extraverbal, não tem
um sentido para aquele que ouve, tornando-se vazia e incompreensível. Para dar sentido à
palavra no cotidiano, o contexto extraverbal compõe-se por três aspectos: 1) Horizonte
espacial, que é a unidade visível, 2) Conhecimento e compreensão comum da situação e 3)
Valoração. Os três são compartilhados pelos participantes da interação. Sendo assim, o
discurso cotidiano comum realiza-se em duas partes (o todo pleno de sentido): a primeira
realizada verbalmente (o DITO, a Enunciação) e a segunda o subentendido (o NÃO-DITO, o
Contexto Extraverbal). Já no discurso artístico, não pode haver coisas não ditas; este contexto
extraverbal precisa, de alguma forma, achar uma representação verbal na enunciação.
Os subentendidos são aspectos que ligam um grupo em específico e não uma questão
individual e subjetiva; não é algo que eu sei, vejo, quero e amo, mas sim o que “nós, os
falantes, sabemos, vemos, amamos e reconhecemos, chegando assim a ser a parte
subentendida de uma enunciação” (VOLOCHINOV, 2013, p. 80). Esses aspectos configuram
elementos do conjunto social objetivo, são uma unidade material do mundo, que se torna parte
dos horizontes dos falantes, e de uma unidade das condições reais da vida, gerando a
comunidade de valorações; comunidade esta que tem a participação de falantes pertencentes a
uma determinada esfera social. As valorações subentendidas aparecem não como emoções
individuais, mas sim como “atos socialmente necessários e consequentes” (VOLOCHINOV,
2013, p. 80). Para a enunciação da vida cotidiana, ela é como uma “palavra-chave” e apenas
os participantes do mesmo horizonte social vão compreendê-la.
As valorações sociais principais que surgem a partir de traços da existência econômica
de um grupo determinado não costumam se enunciar; essas valorações têm uma função de
formação daquele indivíduo, fazendo parte da sua carne e do seu sangue, organizando seus
atos e modos de agir, fundindo-se com objetos e fenômenos correspondentes. Por isso, não
precisam de fórmulas verbais, como sustenta Volochinov (2013, p. 81):

Todos os fenômenos da vida circundante se fundiram com valorações. Se na


realidade a valoração aparece condicionada pela própria existência de um coletivo
dado, costuma ser reconhecida dogmaticamente como algo subentendido e que não
está sujeito à discussão. (VOLOCHINOV, 2013, p. 81)

A valoração, nesse sentido, está na vida e organiza a forma da enunciação e a


entonação. Assim, a valoração fundamentada não está no conteúdo da palavra, mas sim na

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seleção dela, como forma da totalidade verbal: “[...] é na entonação que a valoração encontra
sua expressão mais pura. A entonação estabelece um vínculo estreito entre a palavra e o
contexto extraverbal: a entonação viva parece conduzir a palavra além das fronteiras verbais”
(VOLOCHINOV, 2013, p. 81). A entonação só pode ser compreendida quando as valorações
subentendidas do grupo social dado são compartilhadas. É pela entonação que a palavra se
relaciona diretamente com a vida e é nela que o falante se relaciona com o ouvinte. Por isso, a
entonação é social. Portanto, a enunciação artística está envolvida na enunciação na vida. Em
outros termos,

na literatura são importantes acima de tudo os valores subentendidos. Se pode dizer


que uma obra artística é um potente condensador de valorações sociais não
expressadas: cada palavra está impregnada delas. São justamente essas valorações
sociais as que organizam a forma artística enquanto sua expressão imediata.
(VOLOCHINOV, 2013, p. 88)

Por conseguinte, em uma obra artística, não pode haver coisas não-ditas e, no caso da
literatura, o que ficou de fora da enunciação deve então encontrar um representante verbal. E
é por meio das “metáforas entonacionais” (VOLOCHINOV, 2013, p. 88) que essas enunciações
que ficaram de fora ganham suas representações na obra artística.
Nessa perspectiva, a figura paterna na configuração familiar tem, ao longo de nossa
história universal, um papel fundamental, principalmente para a sociedade burguesa, no
momento da sua consolidação e da sua estruturação. O núcleo familiar é considerado uma
instituição importante, na qual o indivíduo tem seus primeiros contatos com outros indivíduos
semelhantes, criando as primeiras regras de convivência que serão projetadas posteriormente
em um convívio social mais amplo.
Elisabeth Roudinesco, na obra A família em desordem, apresenta as transformações
que o conceito de família sofreu ao longo da história. A autora mostra como caminharam e se
transformaram a família ocidental e seus símbolos. Comenta os estudos do antropólogo Lévi-
Strauss que apontam que a vida familiar aparece em quase todas as sociedades humanas.
Assim, o antropólogo define família como um fenômeno universal, que pode ser ou não uma
união duradoura.

É então em função de unir um homem e uma mulher, isto é, um ser de sexo


masculino e outro de sexo feminino, que a família é um fenômeno universal que
supõe uma aliança de um lado (o casamento) e uma filiação do outro (os filhos).
(LÉVI-STRAUSS, 1956, citado por ROUDINESCO, 2003, p. 10)

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Para se criar uma família, Lévi-Strauss afirma que é necessária a existência de outras
duas famílias, as quais fornecerão um homem e uma mulher, para que com a união dos dois
seja gerada uma terceira família. Nesse aspecto, o fenômeno familiar pode ser estudado por
duas abordagens: a que abrange os campos sociológicos, históricos ou psicanalíticos em que
pode haver um estudo vertical sobre as filiações e das gerações, e a que abrange o campo
antropológico que pode ter uma descrição horizontal, estrutural ou comparativa das alianças.
Dessa maneira, cada abordagem utiliza um termo diferente para esse fenômeno: enquanto
aquela utiliza o termo “Família”, esta utilizará o termo “Parentesco”.
A partir desta constituição familiar, surgem dois movimentos sociais: a prática de
troca, que servia para estabelecer os laços matrimoniais entre os grupos sociais (circulação
das mulheres); e a proibição do incesto, que determinava que as famílias teriam que se aliar a
outras famílias: “e não cada uma por sua conta, consigo.[...] A proibição do incesto é portanto
tão necessária à criação de uma família quanto a união de um macho com uma fêmea”
(ROUDINESCO, 2003, p. 11). Essa proibição, como construção mística, é ligada a uma
função simbólica: é um fato cultural e da linguagem proibindo, em vários graus, o ato
incestuoso, por estes atos existirem na realidade. Desse modo, a família pode ser considerada
uma instituição duplamente universal associada a um fator cultural, construído pela
sociedade, e a um fator da natureza, leis da reprodução biológica. Na visão de Roudinesco
(2003, p. 12),

a própria palavra recobre diferentes realidades. Num sentido amplo, a família sempre
foi definida como um conjunto de pessoas ligadas entre si pelo casamento e a
filiação, ou ainda pela sucessão dos indivíduos descendendo uns aos outros: um
genos, uma linhagem, uma raça, uma dinastia, uma casa etc. (ROUDINESCO, 2003,
p. 12)

Roudinesco (2003), então, aponta como a figura de família foi vista e estudada ao
longo dos séculos. Ela aponta que Aristóteles (1985 [Séc. V a.C.]) define a família como uma
comunidade, oikos, servindo de base para a cidade, polis. Sua estrutura é hierarquizada e
centrada na dominação patriarcal. A partir desta estrutura, estabeleciam-se três tipos de
relações: senhor e escravo, associação entre marido e esposa, vínculo entre pai e filho.
A família dita “conjugal” que conhecemos hoje foi resultado de uma evolução
acontecida nos séculos XVI e XVIII. Neste período, foi se destacando outro tipo de formação
familiar, sobressaindo-se o termo “famílias”: um conjunto, uma casa, um grupo, incluindo
parentes, pessoas próximas, amigos e criados. Houve três períodos de transformação familiar:
1. a Família “Tradicional”, cujo intuito era o de assegurar a transmissão de um patrimônio: os

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casamentos eram arranjados pelos pais, seus filhos tinham uma idade precoce; 2. a Família
“Moderna”, que emerge no final do século XVIII e meados do século XX, fundamentada no
amor romântico, reciprocidade dos sentimentos e desejos carnais pelo casamento; 3. a Família
“Contemporânea”, a partir dos anos 1960, que consiste na união dos indivíduos em busca de
relações íntimas ou sexuais. Roudinesco (2003, p. 13) sustenta que,

na época moderna, a família ocidental deixou portanto de ser conceitualizada como o


paradigma de um vigor divino ou do Estado. Retraída pelas debilidades de um
sujeito em sofrimento, foi sendo cada vez mais dessacralizada, embora permaneça,
paradoxalmente, a instituição humana mais sólida da sociedade. À família autoritária
de outrora, triunfal ou melancólica, sucedeu a família mutilada de hoje, feita de
feridas íntimas, de violências silenciosas, de lembranças recalcadas. Ao perder sua
auréola de virtude, o pai, que a dominava, forneceu então uma imagem invertida de
si mesmo, deixando transparecer um eu descentrado, autobiográfico,
individualizado, cuja grande fratura a psicanálise tentará assumir durante todo o
século XX. (ROUDINESCO, 2003, p. 13)

A partir disso, tem-se o pai como a figura mais fundamental para a constituição
familiar. Nos tempos arcaicos, o pai, um herói ou um guerreiro, era visto como a encarnação
familiar de Deus, um rei, um senhor das famílias: “Herdeiro do monoteísmo, reina sobre o
corpo das famílias e decide sobre os castigos infligidos aos filhos” (ROUDINESCO, 2003, p.
13). Em Roma, o pai é aquele que se designa pai de uma criança, pois assim pode o conduzir,
ou seja, ele pode lhe dar tudo, “assim como a qualquer estranho, instituí-lo herdeiro, deserdar
seus filhos legítimos em prol dele, pois é o senhor de sua casa. Mas pode igualmente deixá-lo
na indigência, ignorá-lo completamente: esta criança não é seu filho, ele nada lhe deve”.
(MULLIEZ, 2000, citado por ROUDINESCO, 2003, p. 13)
O Cristianismo enxerga a figura do pai como uma encarnação terrestre de um poder
espiritual, sem deixar de lado as leis da natureza às quais está submetido seu corpo. Por isso, a
paternidade será reconhecida, não através de um homem, mas sim decorrente da vontade de
Deus; e só será reconhecido pai aquele que se submeteu à “legitimidade sagrada do
casamento”, visto ser por meio dele que a família se constitui. Roudinesco (2003, p. 14)
observa que

o pai é aquele que toma posse do filho, primeiro porque seu sêmen marca o corpo
deste, depois porque lhe dá seu nome. Transmite portanto ao filho um duplo
patrimônio: o do sangue, que imprime uma semelhança, e o do nome — prenome e
patronímico —, que confere uma identidade, na ausência de qualquer prova
biológica e de qualquer conhecimento do papel respectivo dos ovários e dos
espermatozoides no processo da concepção. Naturalmente, o pai é reputado pai na
medida em que se supõe que a mãe lhe é absolutamente fiel. Por outro lado, a
eventual infidelidade do marido não tem efeito na descendência, uma vez que seus
“bastardos” são concebidos fora do casamento e portanto fora da família. Em

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contrapartida, a infidelidade da mulher é literalmente impensável, uma vez que


atingiria o próprio princípio da filiação pela introdução secreta, na descendência dos
esposos, de um sêmen estranho ao seu — e portanto ao “sangue” da família.
(ROUDINESCO, 2003, p. 14)

Na época medieval, acreditava-se que o sêmen feminino não desempenhava nenhum


papel importante para a formação do feto, somente o sêmen masculino e, por isso, o pai tinha
plenos poderes para reconhecer seus filhos: por dar a herança sanguínea. Partindo desta
perspectiva, estabeleceu-se a ordem da procriação. Acreditava-se que o ventre materno era
apenas um recipiente para depósito do sêmen masculino. Assim, a ordem da procriação
deveria seguir a ordem do mundo: o homem em cima e a mulher embaixo do homem, pois
dessa forma era a ordem do mundo e a mulher estaria em seu verdadeiro lugar. Em caso de
inversão, a ordem do mundo estaria perdida, uma vez que “a imagem do homem cavalgando a
mulher e penetrando sua carne é reputada conforme a norma” (ROUDINESCO, 2003, p. 15).
Semelhantes valorações medievais, que o Cristianismo agrega, já eram retratadas
anteriormente, nas tragédias gregas. Nelas, a ideia de que o pai é o que gera e o que fecunda a
mãe e que a Mãe é apenas o recipiente para o germe é recorrente. Roudinesco (2013, p. 15)
exemplifica tal afirmativa com a trilogia de Ésquilo, a Oréstia, que conta a história da família
dos Átridas: Orestes, filho de Clitemnestra e Agamenon, mata a própria mãe por esta ter
traído e assassinado o próprio marido. Apolo, deus da luz e do sol, aponta Orestes como
inocente, visto que ele é “acima de tudo, filho do pai”, já que “filho não é gerado por sua mãe
– ela é somente a nutriz do germe nele semeado”. Apolo, então, irá defender os laços do
matrimônio e do patriarcado que exigem vingança pela questão da traição da esposa por parte
do parente mais próximo do homem assassinado.
Sobre a Idade Média, Roudinesco (2003, p. 16) destaca que,

através da doação do nome, e pelo viés da visibilidade de uma semelhança, o pai se


torna na Idade Média um corpo imortal. Muito embora sua carne esteja fadada à
morte, prolonga, no nome que será carregado por seus descendentes, a lembrança de
seus ancestrais, que igualmente perpetuaram a memória da imagem original de Deus
pai. (ROUDINESCO, 2003, p. 16)

Assim, a figura paterna é vista como algo imortal, pois será a partir dos seus
descendentes que ele será lembrado pelas gerações. A partir desta concepção da figura paterna
com base em dois componentes – carne e espírito – é possível ver, na época medieval, na
construção da figura do rei, a sacralização deste, estabelecendo não só a encarnação da figura
de Deus, mas também a encarnação do Estado. No princípio Monárquico, o soberano exercia
uma dominação sem a partilha por ordem materna, já que o corpo da mulher será visto como

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algo perigoso. Em 1580, Jean Bondim (citado por ROUDINESCO, 2013, p. 16) irá apontar,
na sua obra Demonologia dos feiticeiros, que só acontece e se consolida a soberania do pai
quando este se liberta das feitiçarias da mulher. Já no século XVII, Thomas Hobbes sustenta
a ideia da concepção da autoridade paterna, vendo a ordem do mundo composta por duas
ordens soberanas: a natureza, representada pela mãe, e o “estado de aquisição”, encarnado
pelo pai. Na ordem da natureza, não existem leis sobre o casamento e não se pode saber quem
é o pai, sendo a mãe a única a designar quem é o pai. Portanto, pai só é o pai por meio de um
contrato denominado pela mãe.
Seguindo pelos séculos, a visão da figura paterna foi sendo modificada. A partir do
século XVIII, a figura paterna é contraposta entre a encarnação de Deus pai e a “autoridade
fundada num contrato moral e social” (ROUDINESCO, 2003, p. 17). Quando o pai é julgado
fraco, a família recebe outros tipos de complementação (Estado, nação, pátria). Portanto, a
figura da Família foi sendo vista como modelo das sociedades políticas, nas quais o pai
representa a figura do chefe de família e os filhos, a imagem do povo.
A ideia da figura paterna como a encarnação de Deus foi dando lugar ao pai como
chefe de família. Com o princípio monárquico, a figura do rei, além de ser encarnação divina,
era vista como uma autoridade moral e social. E com o tempo, a concepção de encarnação
divina foi sendo deixada de lado para dar lugar a um aspecto político.

A família é, portanto, se quisermos, o primeiro modelo das sociedades políticas; o


chefe é a imagem do pai, o povo é a imagem dos filhos, e todos, tendo nascido iguais
e livres, não alienam sua liberdade senão por necessidade pessoal. (ROUDINESCO,
2003, p. 18)

No início do Século XX, o mundo passou por duas grandes guerras, ocasionando
imensas transformações sociais que questionavam ideias e valores. Uma das esferas sociais a
sofrer estas transformações foi o núcleo familiar, que vai consolidar no século XX a transição
de uma constituição fundamentada na transmissão do patrimônio para uma constituição
fundamentada na lógica afetiva, passando a valorizar a reciprocidade dos sentimentos e
desejos carnais, delineando o que Elisabeth Roudinesco denomina de “família moderna”
(2003, p. 18).
Nelson Rodrigues, como dramaturgo, escreveu, ao longo de sua vida, dezessete peças.
Desde sua primeira peça, A mulher sem pecado, até a última, A serpente, Nelson traz como
mote um núcleo familiar e as relações entre os seus componentes, abordando os temas tabus
da sociedade brasileira.

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

Carla Souto (2001), em Nelson “Trágico” Rodrigues, irá observar as relações dos
componentes de tais famílias investigando a estruturação das personagens das tragédias/peças
míticas de Nelson Rodrigues: Álbum de família, Anjo negro, Dorotéia e Senhora dos
afogados, tragédias consideradas como “teatro desagradável” do autor. A ideia de
investigação da autora é de que as personagens dessas tragédias não podem alcançar a
felicidade por causa de suas limitações.

As personagens das peças vivem então uma relação de ausência com os seus desejos,
só podendo realizá-los através de sua falta, de sua amputação, de sua morte, sendo
incapazes de torná-los presentes. Isso é impossível para elas, que foram usurpadas
no seu íntimo, no seu desejo mais profundo. E para a realização pessoal é preciso
que o indivíduo não esteja limitado na liberdade do seu ser nem seja tocado na
integridade do seu corpo. (SOUTO, 2001, p. 11)

Partindo das observações de Souto (2001; 2007) sobre as personagens e das famílias
das peças de Nelson Rodrigues e embasando-nos nos estudos de Roudinesco sobre a família
ocidental, analisamos o funcionamento de duas famílias de duas peças de Nelson Rodrigues, a
fim de verificar como as valorações sociais existentes na formação da família brasileira
encontram representação pelas metáforas entonacionais, estudadas por Volochinov (2013),
sendo parte de uma engrenagem do funcionamento de cada uma destas famílias. Para tanto, as
peças observadas e comparadas fazem parte do teatro desagradável do autor: Álbum de família
e Senhora dos afogados.
Álbum de Família, escrita em 1945, foi a terceira peça de Nelson Rodrigues, logo
depois do sucesso de Vestido de Noiva. Mas a peça só foi ter sua realização cênica em 1967,
22 anos depois de ser escrita: foi interditada pela censura em 17 de março de 1946 e liberada,
somente, em 3 de dezembro de 1965. Envolvida em polêmicas, a tragédia de Nelson
Rodrigues causou intrigas e opiniões divergentes na sociedade brasileira. Então, dava-se
início ao ciclo do “teatro desagradável” e Álbum de Família era sua pioneira. Com exceção de
Dorotéia, Nelson aborda um tabu que é a essência dos textos das peças desagradáveis: o
incesto. Ele é o grande tema, principalmente em Álbum de Família.

Com Vestido de Noiva, conheci o sucesso; com as peças seguintes, perdi-o e para
sempre. Não há nesta observação nenhum amargor, nenhuma dramaticidade. Há,
simplesmente, o reconhecimento de um fato e sua aceitação. Pois a partir de Álbum
de Família – drama que se seguiu a Vestido de Noiva – enveredei por um caminho
que pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito. [...] A partir de Álbum de
Família, tornei-me um abominável autor. Por toda a parte, só encontrava ex-
admiradores. Para a crítica, autor e obra estavam justapostos e eram ambos “casos de
polícia”. (RODRIGUES, 1977 citado por MAGALDI, 1981, p. 13-14)

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

A tragédia conta a história de uma família do início do século XX, composta por
Jonas, D. Senhorinha e seus filhos Guilherme, Edmundo, Nonô e Glória. A história tem seu
início quando Glória se envolve com uma menina no colégio de freiras e ambas são
descobertas. Glória e Tereza são expulsas. É com a vinda de Glória e de todos os filhos do
casal para a fazenda da família que os conflitos surgem e os segredos e desejos vão sendo
revelados. Jonas e Senhorinha são primos e se casaram bem novos: ele, com 25 anos e ela,
com “15 risonhas primaveras.”

O que levou Jonas a casar com D. Senhorinha, sua prima dez anos mais nova [...] foi
pura e simplesmente a realização do ato carnal. Jonas é um homem de sensualidade
transbordante, extremamente dominado pelo desejo sexual, enquanto D. Senhorinha
é uma esposa fria. O casamento aqui representa apenas um passo “natural” da vida
adulta, um ritual como tantos outros. [...] Com o nascimento dos filhos, acentuou-se
a repulsa, porque eles descobriram o amor nos filhos do sexo oposto, não um amor
de pais para filhos, mas o que faltava em ambos como casal. (SOUTO, 2007, p. 119)

Assim, se inicia o destino trágico desta família. Impelidas por seus desejos, as
personagens da tragédia não possuem o que Souto (2001) denomina como mecanismo de
censura moral: “Portanto, regem seus atos os instintos e sentimentos mais primários, o que
resulta inevitavelmente em tragédia, já que as leis sociais e morais foram criadas para regular
os conflitos entre as pessoas” (SOUTO, 2001, p. 12). Jonas vê na filha caçula o amor que não
achou na mulher; Senhorinha verá esse amor nos filhos homens.

EDMUNDO (mudando de tom, apaixonadamente) - Mãe, às vezes eu sinto como se


o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós, quer dizer, você,
papai, eu e meus irmãos. Como se a nossa família fosse a única e primeira. (numa
espécie de histeria) Então, o amor e o ódio teriam de nascer entre nós.
(RODRIGUES, 1981, p. 102)

É a partir dos componentes desta família que vemos sentimentos, desejos e vontades
surgirem como se aquela família fosse a “única e primeira”.
Senhora dos Afogados, escrita em 1947, foi a quinta peça de Nelson Rodrigues, sendo
a terceira do ciclo do teatro desagradável. A peça foi interditada em 1948 e só liberada em
1954. Essa peça também causou intrigas na sociedade, principalmente no círculo de amigos
de Nelson.

Eis o fato: minha peça Senhora dos afogados fora interditada. [...] Pedi uma
Comissão de Intelectuais, cujo parecer salvaria ou não Senhora dos afogados.
Indiquei nomes, que o general aceitou. Olegário fora uma das minhas sugestões.
Gilberto Freyre, outra. Muito bem: Olegário votou contra, vejam vocês, contra
(Gilberto a favor). (RODRIGUES, 2015, p. 25)

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Nelson retoma, em Senhora dos Afogados, o universo da família, já explorado na


tragédia Álbum de Família. A também tragédia Senhora dos Afogados conta a história da
família dos Drummond, composta por Misael, D. Eduarda, Dora, Clara, Moema e Paulo, e a
Avó. A peça não tem um tempo definido como ocorre em Álbum de Família. Em Senhora dos
Afogados, esta família pode ser representada em qualquer período de tempo. O lugar onde se
passa a ação é perto de uma praia selvagem.
A história se inicia com a notícia da morte de Clara, que morrera afogada. Seu corpo
fora levado pelo mar. É com a notícia da morte de Clarinha e a chegada do pai, Misael, que a
estrutura familiar, até então sólida, começa a se desfazer. Misael e D. Eduarda são casados e
carregam uma responsabilidade da qual não dão conta: ser a família Drummond.

[...] Ele já conhecia o amor antes de se casar com D. Eduarda, era apaixonado por
uma prostituta. Mas como nascera em uma família tradicional e almejava uma
carreira de sucesso, primeiro como juiz e depois como político, precisava fazer um
matrimônio de acordo com suas pretensões. (SOUTO, 2007, p. 120)

A partir de um casamento sem amor e da ação assassina de Misael, ao matar a


prostituta que o procurou no dia de seu casamento, recai sobre os Drummond uma maldição,
traçando o destino trágico de cada um. “A partir do ato fundador, a maldição de um
Drummond é que o amor vem sempre acompanhado da morte. Quando eles amam se tornam
assassinos” (SOUTO, 2007, p. 120). O amor não se concretiza dentro da família e, caso
aconteça, alguém morre ou alguém mata.

AVÓ - Não gosta de nós. Quer levar toda a família, principalmente as mulheres.
(num sopro de voz) Basta ser uma Drummond, que ele quer logo afogar. (recua
diante do mar implacável) Um mar que não devolve os corpos e onde os mortos não
boiam! (violenta, acusadora) Foi o mar que chamou Clarinha, (meiga, sem
transição) chamou, chamou… [...]
VIZINHO (em conjunto) - Primeiro Dora, depois Clarinha!
VIZINHO (solista, para um e outro) - Já duas afogadas na família!
AVÓ - Depois das mulheres, será vez dos homens…
VIZINHO (solista) - Acredito!
AVÓ - E depois de não existir mais a família - a casa! (olha em torno, as paredes, os
móveis, a escada o teto) Então, o mar virá aqui, levará a casa, os retratos, os
espelhos! (RODRIGUES, 1981, p. 262)

É com a maldição instaurada e o mar como o símbolo da destruição da família


Drummond que vemos esta família como a última do mundo.
A ideia, então, de Pai Sagrado e de Chefe de Família permeiam as obras, como
discutido até aqui, ou seja, o lado ocidental do mundo tem uma figura fundamental na
constituição familiar: o pai. A figura paterna teve um papel importantíssimo para a formação

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de um núcleo familiar. Roudinesco (2003) elucida a existência de dois tipos principais


associados à figura paterna: encarnação de Deus e Chefe de família.
O Cristianismo, na era medieval, irá ver e impor a ideia de que a figura paterna é “a
encarnação terrestre de um poder espiritual que transcende a carne” (ROUDINESCO, 2003, p.
14), mas sem esquecer as leis da natureza às quais está submetido o corpo. A partir daí, o Pai
é visto como aquele que cria toda uma geração, assim como Deus criou Adão e Eva. Partindo
desta perspectiva cristã, podemos verificar esse tipo de figura paterna na peça Álbum de
Família.
Jonas, casado com D. Senhorinha, é pai de quatro filhos: três meninos e uma menina.
Ele é o centro da família, pois é a partir dele e por causa dele que as atitudes das personagens
se desenrolam para o desfecho trágico. Casado aos 25 anos, com a própria prima, Jonas não
descobriu a realização sexual com a esposa, visto que esta era “fria” e não conseguia dar conta
dos “excessos de sensualidade do marido”. Não podendo amar a mulher, ele projeta seus
desejos carnais na própria filha.

JONAS – [...] Você se parece com Glória...


(Jonas está no auge de sua tensão sexual. Aperta entre as duas mãos o rosto de D.
Senhorinha.)
JONAS - Você e as meninas que Rute arranjava - só meninas sem desejo. Uma vez,
morreu uma de 15 anos; o enterro passou no meio do campo de futebol, o jogo
parou… Eu vi essa menina no caixão - era parecida com minha filha. Cada menina
tem alguma coisa de Glória, mas é preciso que não seja larga de cadeiras…
(RODRIGUES, 1981, p. 116)

Na tragédia, Jonas possui uma função teocêntrica dentro da família: D. Senhorinha


odeia o marido; os filhos homens odeiam o pai; Glória ama o pai; Tia Rute ama o cunhado.
Jonas, dessa maneira, assume um papel onipresente, onisciente e onipotente dentro da peça,
colocando todas as outras personagens em conflito com suas atitudes, projetando a figura de
Jonas como aquela que dará o castigo ou a salvação.

Outra marca importante em Jonas é a sua ligeira semelhança física com o Cristo,
sempre lembrada e enfatizada pela filha, Glória. Há aí, porém, uma inversão de
papéis, pois o Cristo simboliza o filho e Jonas representa o pai. Mas não o pai feito
de amor e perdão mostrado por Cristo no Novo Testamento, e sim o pai vingativo e
repressor do Antigo Testamento, capaz de aplicar os maiores castigos aos seus
descendentes. (SOUTO, 2001, p.78)

É possível ver, ao longo da peça, que as personagens colocaram a figura de Jonas


como algo divino. Tal valoração, que é vista na figura do pai, é apontada nos discursos das
personagens que utilizam metáforas entoacionais para que a valoração saia do subentendido.

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

Ao se dirigirem ao pai, direta ou indiretamente, elas o fazem por meio de vocábulos do


universo cristão:

JONAS (gritando) - Mas ELES estão enganados comigo. Eu sou o PAI! O pai é
sagrado, o pai é o SENHOR! (fora de si) Agora eu vou ler a Bíblia, todos os dias,
antes de jantar, principalmente os versículos que falam da família. (RODRIGUES,
1981, p. 65)

Jonas, logo no início da peça, adjetiva a si próprio como sagrado: ele se coloca em um
lugar teocêntrico ao utilizar o termo “SENHOR”, em letras maiúsculas. Esta nomeação o liga
a Cristo, o que é possível constatar em algumas das rubricas do texto. Na primeira aparição de
Jonas, a rubrica aponta que ele é um “tipo de homem nervoso, apaixonado, boca sensual,
barba em ponta” e que possui uma “vaga semelhança com Nosso Senhor”.
Outro momento em que ocorre este recurso estilístico é na cena de Glória com
Guilherme na igreja local. Esta cena revela o amor que a filha tem pelo próprio pai. Assim,
todo o cenário corresponde às “condições psicológicas de Glória”, que vê no retrato grande do
Nosso Senhor o rosto de Jonas.

(Ilumina-se uma nova cena: interior da igrejinha local. Altar todo enfeitado.
Retrato imenso de Nosso Senhor, inteiramente desproporcionado - que vai do teto
ao chão. NOTA IMPORTANTE: em vez do rosto do Senhor, o que se vê é o rosto
cruel e bestial de Jonas. [...]) (RODRIGUES, 1981, p. 87)

Começa a chover, Glória e Guilherme se abrigam na igrejinha perto da fazenda da


família. Neste lugar, ambos começam a revelar seus segredos e desejos: Guilherme
demonstra, desde o começo da cena, que deseja a irmã; e Glória, que deseja o próprio pai.
Glória, então, sempre que olha para o retrato do Nosso Senhor vê a figura de Jonas e pergunta
por ele, ao longo do diálogo com o irmão. Ela revela em um primeiro momento a rivalidade
que sente pela mãe:

GLÓRIA (dolorosa) - Vocês estão sempre do lado de mamãe - mas, eu, NÃO!
GUILHERME - Dou minha palavra de honra!
GLÓRIA - Eu nunca disse a ninguém, sempre escondi, mas agora vou dizer: não
gosto de mamãe. Não está em mim - ela é má, sinto que ela é capaz de matar uma
pessoa. Sempre tive medo de ficar sozinha com ela! Medo que ela me matasse!
GUILHERME - Papai é pior!
GLÓRIA (transportada) - Papai, não. Quando eu era menina, não gostava de estudar
catecismo… Só comecei a gostar - me lembro perfeitamente - quando vi, pela
primeira vez, um retrato de Nosso Senhor… Aquele que está ali, só que menor -
claro! (desfigurada pela emoção) Fiquei tão impressionada com a SEMELHANÇA!
GUILHERME - Onde é que você viu semelhança? (RODRIGUES, 1981, p. 92)

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

Glória faz a oposição entre o pai e a mãe. Ela adjetiva a mãe como uma pessoa “má”,
sentindo que esta poderia matá-la, rebaixando, assim, a figura materna e elevando a figura do
pai. Ao utilizar, em letras maiúsculas, a palavra “SEMELHANÇA!”, Glória faz uma
comparação de Jonas com o Nosso Senhor, colocando o pai em um lugar sagrado e divino,
ideia que predominava no mundo medieval.
Em Senhora dos Afogados, podemos ver a existência de uma dessas facções
familiares, que é a família dos Drummond e a sua figura paterna como o chefe. Misael, casado
com D. Eduarda, é pai de quatro filhos: três meninas e um menino. Ele, assim como a
personagem de Jonas em Álbum de Família, é o centro da família, pois é a partir das atitudes
dele como chefe que recai a maldição na família dos Drummond, levando suas personagens
ao trágico. Antes de se casar com D. Eduarda, Misael se apaixona por uma prostituta, mas por
ser de uma família tradicional na sociedade “precisava fazer um matrimônio de acordo com
suas pretensões” (SOUTO, 2007, p. 120).

MISAEL - Te lembras da nossa primeira noite?


(Misael pousa o copo. Aproxima-se de D. Eduarda.)
D. EDUARDA (com rancor) - Não me lembro - nem quero.
MISAEL - Teu corpo ao longo do meu corpo. Nenhuma palavra que nos unisse. O
quarto parecendo crescer na treva, minuto a minuto… (vai apanhar, de novo, o copo,
fala olhando para ele, como se o copo o fascinasse) Sabes por que foste minha? Por
causa da família… Eu queria de ti filhos… Só podia querer filhos… Prazer, não,
nenhum prazer…
D. EDUARDA - Nunca me tiveste amor!
MISAEL - Não podia… Um Drummond não pode amar nem a própria esposa.
Desejá-la, não; ter filhos. Se Deus nos abençoa é por isso, porque somos sóbrios…
Nossa mesa é sóbria e triste… A cama é triste para os Drummond… (RODRIGUES,
1981, p. 285)

No dia do próprio casamento, Misael deixa a prostituta deitar-se na cama da futura


esposa e logo em seguida ele arrasta a prostituta pelos cabelos, até a praia, e a mata a
machadadas no pescoço. Partindo deste ato de Misael, recai sobre a família a maldição de que
eles são proibidos de amar; e caso o amor se realize, este vem acompanhado de uma morte,
tornando as pessoas assassinas ou assassinadas. A união de Misael e D. Eduarda tem apenas a
função de manter as tradições familiares dos Drummond, gerando descendentes que as
seguirão.

Misael é um homem corroído pela culpa, dilacerado por dentro. Ele se sente velho,
doente e cansado. [...] Ele é um fraco, que se apoiou o tempo todo apenas na força de
trezentos anos dos antepassados. Tudo o que ele deseja realmente é que a esposa seja
uma companheira na velhice, que o ampare no momento de doença e fraqueza [...]
(SOUTO, 2001, p. 117)

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Partindo de uma ideia de família na qual se tem a transmissão de uma tradição que se
perpetua pelas gerações, a figura paterna é aquela que tem a função de garantir a transmissão
das tradições. Ao longo do texto, vemos uma preocupação das personagens que compõem o
núcleo familiar de afirmar e reafirmar suas tradições.

AVÓ - Precisam, sim!... (para os vizinhos) Na nossa família, as mulheres se


envergonham do próprio parto, acham o parto uma coisa imoral - imoralíssima…
(RODRIGUES, 1981, p. 260)
MOEMA (altiva) - Na nossa família ninguém se mata… (RODRIGUES, 1981, p.
261)
MISAEL (exultante) - Você não terá nada de minha mulher, nada!... As esposas de
minha família são fiéis… Em 300 anos, nunca houve um adultério nesta casa! [...]
(RODRIGUES, 1981, p. 299)

Misael tem o poder de assegurar a transmissão das tradições pelas gerações e de que
elas não se percam ao longo da história da família, por isso sua imagem é construída como a
de uma chefe que gerencia aquela pequena parte da sociedade.

SEGUNDO QUADRO

(Abre o pano e Misael vai entrando, em companhia de Moema. Toda a família se


reúne num grupo estático. O único sentado é o próprio Misael, o chefe de família,
que acaba de chegar do banquete. Há nele qualquer coisa de profético, nos olhos
duros, na barba imensa e negra, nas faces fundas. Faz pensar também numa intensa
sensualidade contida. A seu lado, à direita, nobre e altiva, D. Eduarda; à esquerda,
fria e inescrutável, Moema. Ao lado da irmã, Paulo, com uma expressão de doçura
feminina. Aos pés de Moema, a avó. Todos imóveis e convencionais, como se o
grupo fosse uma pose de fotografia. Vêm os vizinhos e atiram insultos contra a
família; têm esgares; gestos de ira, de maldição. Os Drummond nada sentem, nada
veem.) (RODRIGUES, 1981, p. 274)

No início do segundo quadro, há um retrato familiar sendo desenhado, construindo a


figura de uma família tradicional. Nesta imagem inicial da cena, podemos observar a figura de
Misael como a de um rei ou governante, uma vez que é o único daquela composição familiar
que está sentado, lembrando a figura de um rei em seu trono, enquanto os outros membros da
família, estão em pé servindo-o.
No decorrer do texto, vemos, assim como em Álbum de família, as personagens
adjetivando Misael com funções sociais que remetem ao universo político. Os vizinhos têm a
função da opinião pública, que exalta ou deprecia a família Drummond.

VIZINHO - Perfeitamente.
VIZINHO - Mas ouvi dizer que Clarinha era filha predileta do sr. Juiz?
MOEMA - Ministro!
VIZINHO - Já?
VIZINHO - Claro!

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

MOEMA (numa euforia) - A nomeação ainda não saiu, mas está por pouco, é mais
do certa. E agora mesmo papai está num banquete! O próprio governador
compareceu! (RODRIGUES, 1981, p. 264)

É neste diálogo, logo no início da peça, entre Moema, filha de Misael, e os vizinhos,
que vemos a figura de Misael recebendo funções políticas e sociais. As palavras “Juiz” e
“Ministro” carregam uma valoração social que designa uma função política, denominando
chefes de uma dada instituição, assim, acabam por adjetivar Misael, colocando-o em uma
posição de líder. O resultado do processo é que a família agrega um valor perante a
sociedade, que no caso da peça é representada pelas vozes dos vizinhos associando o nome da
família, Drummond, à função social do pai, Juiz e Ministro.

Conclusão
Com base nas análises apresentadas, podemos estabelecer a comparação entre as duas
famílias, sustentando que estas, embora de base patriarcal, possuem uma constituição familiar
diferente uma da outra: enquanto em Álbum de Família podemos ver uma família de cunho
cristão, em Senhora dos Afogados vemos uma família de cunho social e político. Jonas e
Misael são as figuras paternas representadas em cada família, e ambas as figuras têm sua
função central: Jonas é a figura onipotente, onisciente, onipresente a que todos os membros da
família temem, odiando ou amando, adjetivando-o com valorações cristãs, pois chegam a
compará-lo com Nosso Senhor. Misael é a figura gestora da família, responsável por manter a
tradição e o nome dos Drummond. Por isso, acabam por adjetivá-lo com valorações sociais e
políticas, dando-lhe funções de chefia de instituições que são refletidas na própria casa.
Esses valores religiosos ou sociais são representados nas obras através das metáforas
entonacionais, que são os recursos linguísticos utilizados para evidenciá-los e não deixá-los
subentendidos: vocábulos do campo semântico do universo cristão ou com valores políticos
são escritos em letras maiúsculas ou repetidos diversas vezes ao longo da obra. Assim,
podemos concluir que ambas as famílias nas duas tragédias de Nelson Rodrigues refletem a
constituição familiar patriarcal, que foi recorrente ao longo de uma evolução da ideia de
família e que no Brasil teve um papel importante e formador.

Referências

ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de


Brasília, 1985[Séc. V a.C.].

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Companhia das Letras, 1992.

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ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

SOUTO, Carla Cristina Fernandes. Nelson “trágico” Rodrigues. Rio de Janeiro: Ágora da
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______. Nelson Rodrigues: o inferno de todos nós. Araraquara: Junqueira & Marin, 2007.

VOLOCHINOV, Valentin Nikolaievich. A palavra na vida e a palavra na poesia: Introdução


ao Problema da Poética Sociológica. In: ______. A construção da enunciação e outros
ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

SEXUALIDADE E PRAZER FEMININOS COMO DISCURSO: UMA


ANÁLISE DA LETRA LALÁ, DE KAROL CONKÁ

Ana Luiza Gerfi Bertozzi1


Charles Borges Casemiro2

Resumo
O artigo analisa a letra da canção “Lalá”, de Karol Conká, pensando a sexualidade e o prazer
femininos como componentes de um discurso que se contrapõe ao silenciamento social imposto à
mulher. Para tanto, partimos de alguns conceitos da Análise de Discurso, do ponto de vista de Bakhtin
(1999) e Orlandi (2009), das considerações de Gonçalves (2011) a respeito da música popular como
uma criação literária disposta a extrapolar o seu lugar e como produção artística que questiona a
sociedade e seu lugar no cânone musical tradicional e, por fim, sobre a sexualidade feminina a partir
de Ribeiro (1999) e Paranhos (2015). Desse modo, analisamos os recursos discursivos e os sentidos
produzidos na canção “Lalá”, tentando entender sua extensividade como elementos discursivos
recorrentes no discurso musical feminino de recolocação da mulher na sociedade, apresentando-os
como forma de combate e de quebra do silenciamento historicamente imposto à sexualidade e ao
prazer feminino.

Palavras-chave: Sexualidade feminina. Silenciamento. Discurso. Letra de canção. Karol Conká.

Abstract
This paper analyses the lyrics of the song “Lalá”, by Karol Conká, thinking feminine sexuality and
pleasure as components of a discourse that opposes itself to the social silencing imposed to women.
Therefore, we started from some concepts of Discourse Analysis, from Eni Orlandi’s (2009) point of
view and from Rôssi Alves Gonçalves’s (2011) considerations regarding popular music as literary
creation willing to extrapolate its place, as an artistic production that questions society and its place on
traditional music canon. Thus, we will analyse the discursive resources and the meaning produced by
the song “Lalá”, trying to understand its extensiveness as discursive recurring elements on the
feminine musical discourse of the relocation of women on society and showing them as a way of
fighting and breach of the silencing historically imposed to women’s sexuality and pleasure.

Keywords: Women's sexuality. Silencing. Discourse. Song lyrics. Karol Conká.

Introdução
Karol Conká é o nome artístico da rapper Karoline de Freitas Oliveira, natural de
Curitiba, nascida em 1º de janeiro de 1987. Em 2011, ela disponibilizou algumas músicas no
Myspace (plataforma social anterior ao Facebook e ao Orkut) e seu primeiro álbum, Batuk
Freak, foi lançado em 2013. Desde então, a artista segue os caminhos da polêmica e do
questionamento de seu lugar, a despeito de seu sucesso meteórico: recebeu diversas

1
Licencianda em Letras-Português, IFSP/Campus São Paulo. E-mail: ana.bertozzi@gmail.com
2
Doutorando em Literatura Portuguesa/USP, docente do Departamento de Humanidades/Letras-Português,
IFSP/Campus São Paulo. E-mail: oprofcharles@gmail.com

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

premiações, foi trilha sonora de novelas, foi trilha de campanhas publicitárias, realizou shows
por todo o mundo e é apresentadora de um programa de beleza, moda e comportamento no
canal de TV GNT. Mesmo em suas entrevistas, a cantora não se furta aos questionamentos
mais difíceis, relativos à sexualidade, ao comportamento e à realidade da mulher,
contextualizados por um mundo-mercado ainda dominado por homens. Dentro deste campo
das disputas de gênero, a rapper, em uma de suas falas mais polêmicas, declarou-se bissexual
e feminista.
Nesse sentido, coerente em sua perspectiva meteórica, polêmica e questionadora,
Karol Conká já produziu inúmeras canções que abordam a questão de gênero e, mais
especialmente, aquelas voltadas para a discussão do papel e da voz da mulher em sociedade.
Neste artigo, então, partimos da hipótese de que a música “Lalá”, de Karol Conká,
como discurso feminino e como produção artística não-canônica, busca combater o
silenciamento do prazer e da sexualidade femininos, evidenciando sua importância como
formas naturais e, ao mesmo tempo, ideológicas, de expressão sexual da mulher, que, na
forma de discurso, produz, simultaneamente, empoderamento da mulher e uma discussão
renovada sobre a sexualidade e sobre prazer dentro dos relacionamentos amorosos
contemporâneos.
É esta discussão que comparece de modo contundente na letra da canção “Lalá”, de
modo mais concreto no tom subjetivo, casual, crítico, irônico e dialógico que Karol Conká
emprega em seu discurso. É o diálogo com o outro – objeto amado e/ou amante e/ou com os
ouvintes – que se apresenta assim como chave de leitura desta canção; interação social sempre
clara e direta, que cria, sob a perspectiva do eu-lírico, uma situação de autorreconhecimento a
partir do relacionamento com o outro, lugar em que se desconstrói uma imagem do eu-lírico
feminino, preconcebida socialmente, e, ao mesmo tempo, se constitui uma nova imagem
desse eu-lírico, a reboque de seus próprios interesses como sujeito social.
Buscamos, portanto, evidenciar esse diálogo em que se revela o posicionamento do eu-
lírico feminino falando a respeito da sexualidade e do prazer na letra da música “Lalá” e, para
tanto, utilizamo-la como corpus de análise. Objetivamos, com isso, tratar da temática do sexo
oral feminino, do prazer feminino e de suas implicações para e nos relacionamentos amorosos
e para e nos discursos emancipatórios da mulher contemporânea, sob as perspectivas gerais da
Análise de Discurso (BAKHTIN, 1999; ORLANDI, 2009) e de uma espécie de Antropologia
da Canção Popular das periferias culturais (RIBEIRO, 1999; GONÇALVES, 2011;
PARANHOS, 2015).

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

Conceito de sexualidade
Ribeiro (1999) discute o pensamento de Michel Foucault sobre sexualidade como uma
contribuição à área de enfermagem3. Quando trata, entretanto, da história da enfermagem,
Ribeiro (1999, p. 358) detalha que, na virada do século 18 para o século 19, o trato com a
sexualidade mudou, “passou a constituir um problema; ou seja, passou a ter uma conotação
pejorativa, a ser vista como um ócio, um ato imoral quando praticada sem fins reprodutivos”.
Essa discussão é bastante relevante para nossa análise, uma vez que a mudança de
comportamento e o entendimento médico retratados por Ribeiro são fundamentais para
entendermos como a visão da sexualidade foi posta como “tabu”, passando a ser assunto
relegado à intimidade do lar, interditado aos outros espaços de discussão social, exatamente
porque a discussão do “tabu” e do “discurso interdito” podem significar um tipo de superação
histórico-ideológica, social e subjetiva da sociedade de controle.

Nesta visão [de Foucault], parte-se do pressuposto de que o mecanismo que origina
a opressão é o mesmo que gera a libertação. Em outras palavras, os agentes sociais
partem sempre do mesmo dispositivo ou estratégia para inovarem um discurso e o
exercício do poder. [...] O autor refere, por exemplo, que o importante nos
movimentos de libertação da mulher não é a reivindicação em si, mas o fato de
terem partido do próprio discurso que era formulado no interior dos dispositivos de
sexualidade. (RIBEIRO, 1999, p. 360)

É por meio do discurso, portanto, que a sexualidade feminina passa a preencher um


espaço antes esvaziado e silenciado socialmente. E, se tal sexualidade se constrói, a princípio,
como discurso médico e social, que categoriza o prazer feminino como secundário ou, até
mesmo desnecessário, o faz, justamente para, a partir desta colocação preliminar, poder
ultrapassá-lo.
Nas entrelinhas de décadas de silenciamento forçado, as mulheres procuraram formas
de se apropriarem do discurso naturalista sobre sua sexualidade, buscando inverter os pesos
na balança para criar um espaço de fala como complemento e contradição de sua condição de
opressão. Assim, se por meio do dispositivo do discurso o silenciamento foi imposto, também,
por meio do mesmo dispositivo, a mulher encontrou o mecanismo de seu empoderamento,
quebrando o silêncio imposto a sua condição de objeto do discurso, assumindo, de modo
peremptório, a condição de sujeito de seu próprio discurso e de sua própria sexualidade,
propondo um novo discurso correspondente a seus novos lugares sociais e a suas novas

3
O autor faz uma análise mais aprofundada do texto de Foucault com a interpretação de seus pensamentos para a
área médica, o que não é o objetivo deste trabalho, por isso, nos apropriamos das conceituações desenhadas por
Ribeiro dentro de seu texto apenas no que consta ao conceito de sexualidade para Foucault.

37
Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

formações discursivas e ideológicas no mundo do poder. Nesse ponto, consideramos que


Karol Conká se apresenta como artista e mulher que busca evidenciar os contrapontos sociais
de uma cultura de gêneros proposta à desigualdade, busca redefinir uma posição de discurso e
de poder que autonomiza a mulher, que garante e abre espaço para sua própria fala a respeito
das temáticas mais delicadas, como a sexualidade e o prazer femininos.

Discurso e letra de canção


A Linguagem como Discurso foi apresentada, durante o século XX, a partir das
considerações de Mikhail Bakhtin (1999), como instância de superação das visões linguísticas
estruturalistas e funcionalistas. Analisada assim como Discurso, como objeto ao mesmo
tempo linguístico e ideológico, a Linguagem se propõe como uma ação social que produz
significados sociais, compreendidos, todavia, “se e somente se” considerados em sua natureza
histórica, social, dialógica e ideológica.
Pensadas nesse novo contexto, como resultantes de um Discurso, as letras de canção,
tal como qualquer outro tipo de obra de arte, estão submetidas à natureza geral dos discursos
que as produzem e, nesse sentido, somente podem ser compreendidas plenamente, quando
consideradas em sua natureza histórica, social, dialógica e ideológica.
Da natureza histórica do discurso e dos textos que produz, entendemos, amparados
em Bakhtin, que sua realização se dá no tempo e que, desse modo, mobiliza recursos e produz
sentidos disponíveis em um determinado momento da história de uma comunidade linguística
qualquer. Para Bakhtin:

Em cada época de sua existência histórica, a obra (ação social, discurso, a


linguagem como trabalho social, a obra de arte) é levada a estabelecer contatos
estreitos com a ideologia cambiante do cotidiano, a impregnar-se dela, a alimentar-
se da seiva nova secretada. É apenas na medida em que a obra é capaz de estabelecer
um tal vínculo orgânico e ininterrupto com a ideologia do cotidiano de uma
determinada época, que ela é capaz de viver nesta época (é claro, nos limites de um
grupo social determinado). Rompido esse vínculo, ela cessa de existir, pois deixa de
ser apreendida como ideologicamente significante. (BAKHTIN, 1999, p. 119, grifo
nosso)

Assim, se desejamos compreender qualquer uma das letras de canção de Karol Conká,
precisamos localizá-las no tempo, de modo que se revelem, a partir de sua contextualização
histórica, em toda a sua carga de recursos e de sentidos sociais por ela mobilizados.
Quanto à natureza social e dialógica do discurso, Bakhtin, em Marxismo em Filosofia
da Linguagem, assevera a natureza coletiva do discurso, no sentido de que ele ocorre como

38
Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

resultado de uma enunciação e esta, por sua vez, só se dá como interação social e como
interação entre discursos, ou seja,

qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele será


determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é, antes de tudo
pela situação social mais imediata. Com efeito, a enunciação é o produto da
interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um
interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social
ao qual pertence ao locutor. (BAKHTIN, 1999, p. 112)

É nesse aspecto que consideramos os sentidos produzidos pelo discurso da canção de


Karol Conká como resultante de uma ação e de um diálogo social, primeiro, como interação
entre um eu-lírico (uma locutora) e seu interlocutor amoroso, um parceiro sexual e, segundo,
como interação de um indivíduo (uma locutora) com todo o universo social, discursivo e
ideológico de que essa locutora faz parte (interlocutores sociais / interlocutor médio).

A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como não está na
alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido
através do material de um determinado complexo sonoro. É como uma faísca
elétrica que só se produz quando há contato dos dois pólos opostos. (BAKHTIN,
1999, p. 132)

Por fim, consideramos a natureza ideológica do discurso. Para Bakhtin (1999), a


natureza social do discurso e sua natureza semiótica fazem dele, inequivocamente, uma
expressão ideológica:

Os sistemas semióticos servem para exprimir a ideologia e são, portanto, modelados


por ela. A palavra é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores
variações das relações sociais, mas isso não vale somente para os sistemas
ideológicos constituídos, já que a “ideologia do cotidiano”, que se exprime na vida
corrente, é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas.
(BAKHTIN, 1999, p. 16)

Desse modo, nossa compreensão dos recursos e dos sentidos da letra da canção
“Lalá”, produzida por Karol Conká, deverá ser compreendida sob esta ótica geral do discurso,
para que se desenhe em toda a sua plenitude de sentido subversivo, como contradição a uma
sociedade conservadora e machista e como contradição ao cânone musical da MPB: um
discurso entre discursos como uma ação social, histórica, dialógica e ideológica.

39
Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

Sexualidade e música
Gonçalves (2011) faz um breve histórico da criação artística não-canônica no Brasil,
destaca o fim dos anos 1990 como ambiente propício a uma arte urbana, violenta e combativa
que surge a partir da experimentação de “conflitos de modalidades diversas, radicais a ponto
de gerar em seus habitantes a sensação desoladora de não haver solução” (GONÇALVES,
2011, p. 178). Para ela, o conflito social claríssimo nos dias de hoje está assentado em uma
sociedade que se divide permanentemente, por conta dos contraditórios interesses de grupos e
classes.
Nesse aspecto, as parcelas marginalizadas da sociedade produzem artes cada vez mais
conflitantes com aquelas artes consideradas canônicas produzidas pelas parcelas sociais
hegemônicas da sociedade. Segundo Gonçalves, o diálogo dessas artes marginalizadas –
música, cinema, literatura, teatro e literatura – com as instâncias de valorização social,
especialmente, a mídia, é sempre muito difícil, apesar de seguir lentamente assumindo um
lugar de expressão que representa uma espécie de subversão do status quo e uma remodelação
das forças sociais nas lutas de poder:

Cinema, música, teatro e literatura são formas artísticas que, mesmo timidamente,
têm se reciclado, no embalo de uma nova tendência que pode ser definida como
“deixa o excluído falar”. Sobretudo no campo literário, percebe-se uma enorme
transformação: o personagem de antes tomou o lugar do autor. Agora, é ele quem
decide como será o enredo, quais serão os personagens e o que merece ser revelado.
Ao autor – canônico – coube, apenas, aceitar e se refugiar noutras áreas menos
violentas, menos perigosas. Quem manda agora é o personagem cansado de ser
expectador da sua história. Se é o mundo cão que interessa, então que ele seja
narrado o mais fidedignamente possível. Que falem os favelados, os funkeiros, “os
sem cultura”, os sem reconhecimento! (GONÇALVES, 2011, p. 179)

É, portanto, nesse mesmo diálogo difícil com a mídia, em pequenos espaços de


concessão, que o locutor marginalizado vai ganhando lugar, ampliando seu lugar, aos poucos,
por vezes, como expressão de violência e de contundência, realizando-se como discurso,
como significação e como ideologia de reposicionamento social dos marginalizados. Esta
violência discursiva destacada por Gonçalves pode ser vista na música de Karol Conká,
sobremodo, no que diz respeito ao incisivo reposicionamento da mulher como senhora de seu
próprio corpo, de sua sexualidade e de seu prazer.
O sequestro da palavra por esta nova personagem, frente aos seus antigos narradores,
transfigurando-se de personagem em narradora de sua própria história, faz parte da proposta
da cantora e compositora, que coloca a mulher em uma posição de ação agressiva, de domínio
frente ao próprio corpo e prazer, na maior parte das vezes, de modo questionador, irônico,

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

corrosivo, até mesmo destrutivo, diante do amado incompetente para um relacionamento que
se requer entre iguais na democracia do sexo.
Para aceitarmos tais considerações, precisamos nos lembrar, com Bakhtin, de que a
significação de todo discurso vem da praxis, vem de um mundo real. A significação do
discurso do excluído vem da experiência real de um mundo de exclusão e, dessa forma, não
há criação literária que brote desse universo que não se paute na tentativa explícita ou velada
de libertação e superação e que não se constitua da própria vivência da opressão. É, assim, a
vivência da opressão, da marginalização, do conflito, da violência, da agressividade e do
desejo de subversão da condição de marginalidade que configura o discurso criado por Karol
sobre a sexualidade e o prazer feminino, pautando-se na tomada de posse sobre o próprio
corpo.
O reposicionamento da personagem como autora indicia o movimento de assumir o
trabalho, a responsabilidade e o reconhecimento em criar e contar a própria história. É essa a
posição assumida por Karol em “Lalá”.
Nessa perspectiva, é importante salientarmos que a violência destacada por Gonçalves
não pode ser ignorada. Em “Lalá”, ela aparece no léxico cru, sem floreios, mas que evita o
vulgar, o explícito sexual. A tomada da palavra e a inversão de papéis da personagem frente
ao autor canônico refletem exatamente a proposta de Karol ao colocar a mulher em uma
posição de ação frente ao próprio prazer. A realidade do discurso do excluído vem da sua
experiência no mundo real e não há criação literária ficcional que substitua a vivência de
alguém, no sentido de tornar essa experiência uma arma de subversão. Essa vivência é a que
transparece nos diálogos musicais criados por Karol Conká.
A mulher que se apresenta como real, ser humano completo e não apenas
representação de um papel social criado no imaginário masculino é objeto das diversas letras
de Karol Conká e reflete uma mudança de temática e de ponto de vista que se persegue há
décadas, de acordo com Gonçalves (2011), a partir do mal-estar finissecular dos anos 1990 no
olhar coletivo. Assim, o excluído que fala nas músicas de Karol possui diversas facetas que se
complementam a partir da experiência de seu ouvinte: é a mulher, a mulher negra e a mulher
negra excluída socialmente que tem ainda mais dificuldade de acesso à cultura canônica; a
mulher que assume a responsabilidade daquilo que deseja e se movimenta para que aconteça:
“Se é pra vencer, deixa quem sabe fazer / Tô na luta, sou mulher, posso ser o que eu quiser”
(CONKÁ4, 2016). Da mesma maneira, quando aborda a sexualidade, o retrato pintado por

4
Tô na luta. Junho de 2017. Disponível em: https://genius.com/Karol-conka-to-na-luta-lyrics. Acesso em: 30 out.
2017.

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Karol é o de uma mulher que não secundariza suas vontades para proteger o ego de seu
parceiro; ser Amélia5 não é mais possível: “É inacreditável, eles ficam sem ação / Quando a
gente sabe o que quer e já mete a pressão” (CONKÁ6, 2017).
Em entrevista ao Huffpost Brasil, em março de 20167, a cantora reforça a importância
de seu posicionamento político como parte de seus objetivos com a música:

É muito importante ter esse tipo de música porque existem muitas meninas
frustradas precisando de uma palavra de conforto. E a mídia e a sociedade reforçam
esse padrão e criam pessoas frustradas. Eu já passei por isso. Quando eu era mais
nova, me sentia muito mal por ser diferente. Por isso, resolvi escrever músicas que
ajudassem outras meninas que sentiam a mesma coisa que eu. Acredito que quando a
gente ouve uma música com palavra de conforto, de alguém que te entende, a gente
pode se sentir melhor. (CONKÁ, 2016)

Na apresentação da entrevista, Gennari (2016) destaca a importância social que a


artista assume a partir de suas criações artísticas.

A cantora se tornou um símbolo de resistência para as mulheres negras. Conká não


apenas canta, mas se posiciona politicamente em busca do empoderamento de
mulheres negras e da importância do amor próprio e autoestima (GENNARI, 2016).

Nesse sentido, ressaltamos que a música ocupa um papel que vai muito além do
entretenimento, criando um espaço de reflexão e mudança dentro das relações que as
mulheres mantêm na sociedade e propondo novas possibilidades de ação e discurso.
Gonçalves (2011) vai além do histórico do movimento de criação artística dos
excluídos e desenha, também, como essa arte espalhou-se para além dos bairros
marginalizados. Esse “espalhamento” é fundamental, pois agrega pessoas, assumindo o
caráter de mobilização social, conferindo mais concretude e aparência para uma realidade
que, de outra forma, poderia ficar enclausurada e invisível no contexto da luta de classes.

[...] outras formas, principalmente, porque representavam uma modalidade rebelde,


transgressora, atraíram os jovens de classe média, e isso foi importantíssimo para o

5
“Ai que saudade da Amélia” é uma música composta por Mário Lago e Ataulfo Alves, lançada em 1942. Na
letra, o eu-lírico masculino compara a companheira atual com a anterior, Amélia. Essa é uma mulher que “[...]
não tinha a menor vaidade; [...] era mulher de verdade”, a problemática dessa mulher não está na vida vivida na
pobreza, mas no retrato apático criado pelo eu-lírico. Uma mulher só pode ser “de verdade” se não tiver
vontades, se não se expressar e não mostrar ao parceiro aquilo que a individualiza. Ao lado do eu-lírico, Amélia
não era nada mais do que um acessório ou ferramenta.
6
Lalá. In: Ambulante, 2017. Disponível em: <https://youtu.be/t_veXiDyQvU>. Acesso em: 9 ago. 2017.
7
Entrevista concedida a Ana Julia Gennari: Karol Conká fala sobre racismo, empoderamento da mulher negra e
machismo dentro do rap nacional. HuffPost Brasil, março de 2016. Disponível em:
<http://www.huffpostbrasil.com/2016/03/08/karol-conka-fala-sobre-racismo-empoderamento-da-mulher-negra-
e_a_21686477/>. Acesso em: 10 out. 2017.

42
Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

processo de formação de novos meios de locução e dos novos agentes.


(GONÇALVES, 2011, p. 181)

A realidade retratada pela criação artística desses grupos sociais é baseada na divisão
entre “bem-nascidos” e os outros. A entrada de jovens de classe média nos movimentos pode
representar a comercialização do movimento ou a compreensão de uma realidade que vai
além daquela experienciada em seu cotidiano. De qualquer modo, Gonçalves (2011) ressalta a
importância dessa aproximação, não para a consolidação do movimento ou das ideias que
expressam, mas para o reconhecimento dessa produção como arte válida, mesmo que não
canônica: “E estas [classes mais baixas], por sua vez, têm sabido utilizar os espaços – ainda
pequenos, mas visíveis (GONÇALVES, 2011, p. 180)”.
Karol Conká conseguiu ocupar espaços que não eram seus. Vemos isso na variedade
de iniciativas que mantém de forma complementar à produção musical, como em seu
programa de TV e nas campanhas publicitárias. E esse “ocupar o lugar que não lhe pertencia”
parece ser a maior contribuição que a arte não canônica das periferias pode oferecer aos
marginalizados na sua busca consciente ou inconsciente de reorganização do espaço social.

Análise da letra “Lalá”


Na busca da formação do corpus de análise, foi preciso delimitar qual letra de canção
seria analisada, uma vez que a cantora tem uma produção bastante extensa. Excluímos da
possibilidade as letras feitas em parceria com outros artistas e também aquelas nas quais
Karol aparece como participação especial. Retiramos também as versões adaptadas para
campanhas publicitárias. Nosso objetivo foi construir um diálogo focado no tema do prazer e
da sexualidade, por isso a escolha por “Lalá”, canção lançada em 2017. Cantada em primeira
pessoa, Lalá se constrói por um eu-lírico feminino (locutora) que se dirige a um interlocutor,
configurado como um outro muito próximo e íntimo do eu-lírico e que, muitas vezes, pelo uso
da expressão “a gente”, acaba compartilhando o ponto de vista discursivo da locutora, como
um confidente também feminino, o que nos remete ao discurso feminino representado nas
cantigas de amigo medievais, em que o eu-lírico feminino estabelecia o seu discurso como
diálogo com interlocutoras com as quais ele convivia em seu cotidiano. Nesse diálogo e
compartilhamento de ponto de vista, Karol fala de sexo sem romantizá-lo ou torná-lo vulgar,
mas propicia uma sororidade e um eu-coletivo feminino que transpõem a redoma do
individual, alcançando a voz coletiva.
Orlandi (2009), reiterando a teoria do discurso de Bakhtin, entende que um texto,
como resultado de um discurso, não carrega verdades ocultas, mas, sim, ideologias, ações

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sociais de construção de sentido, gestos de interpretação, que devem ser apreendidos pelo
analista a partir de um dispositivo de análise. Pensando em construir tal dispositivo,
identificamos no texto “Lalá”, de Karol Conká, algumas ideias conflituosas que merecem
nossa atenção: a) a decisão feminina perante o parceiro e o ato sexual; b) a historicidade da
má performance masculina; c) o descaso masculino quanto ao prazer da mulher durante o
sexo; d) falta de conhecimento sobre a sexualidade feminina; e) processos de metáfora,
paráfrase e sinonímia; f) desequilíbrio nas relações entre parceiros.
Nesse percurso de construção de sentidos, o primeiro grande impacto causado pela
canção de Karol Conká é, sem dúvida, a clareza com que a temática do prazer e da
sexualidade é abordada. A partir de um discurso direto, cotidiano e impactante, observa-se
uma mimese artística exata da modalidade discursiva popular jovem suburbana. Nesse
sentido, a canção dialoga facilmente com a periferia das cidades, da economia, da política, da
cultura, das ideologias dominantes, rediscutindo a condição historicamente atribuída à mulher,
a partir do lugar em que ela é mais marginalizada e submetida a todos os tipos de opressões e
violências sociais. No entanto, é exatamente deste lugar que o eu-lírico de Karol Conká
realiza seu discurso como subversão, de modo que possa ser amplamente compreendido, não
somente por conta da identificação de recursos e sentidos que propõe em relação aos outros
discursos suburbanos, mas porque propõe uma identificação total com os demais sujeitos
deste lugar e destas formações discursivas.
O uso do imperativo, por exemplo, uma marca textual importante na letra da canção,
permite ao eu-lírico feminino a assunção da tomada de decisão diante do parceiro sexual; a
locutora não mais pede ou espera, mas impõe ao seu parceiro sexual um comportamento
esperado por ela. Esse eu-lírico retrata uma mulher que não está mais disposta a aceitar que a
satisfação de seu parceiro seja o único propósito da relação sexual e que isso seja um
sinônimo de sua própria satisfação: “Só porque eu mandei ajoelhar [...] Seduzi pra conferir
[...] Me dê uma lambida lá [...] Dá um jeito, se ajeite [...] Se eu quero, respeite”.
Nesse trecho, a locutora retoma a tradição do discurso amoroso que, ao representar a
mulher como objeto do amor, coloca a mulher em um pedestal e em posição de culto, todavia,
o faz para desconstruí-lo como mera representação literária vazia e afirmá-lo como realidade
social e ideológica. Isso se dá, primeiro, com a mulher assumindo a condição de sujeito e não
de objeto do discurso e, segundo, com a mulher colocada na condição imperativa, em um
lugar de exercício e de consciência de poder sobre si mesma, sobre o amante e sobre a
situação do sexo. Com “Nem vem”, o eu-lírico rechaça uma possível fala masculina contrária
àquilo que é dito na canção, o que seria o equivalente a “não tem desculpa”, atribuindo

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responsabilidade e culpa histórica ao amante pela irrealização da mulher: “Nem vem, sou
apenas mais uma com experiência”. De certo modo, o discurso de poder feminino aqui se faz
opressivo, no sentido de não permitir ao amante qualquer desculpa para sua impossibilidade,
falta de habilidade ou ignorância sobre a sua performance sexual. Quase como uma inversão e
tomada violenta do poder.
Orlandi (2009) ressalta que a escolha das palavras em qualquer discurso reflete
posicionamentos históricos que são aceitos pelos sujeitos. Assim, a escolha da locutora,
quando fala do comportamento e da performance sexual do homem em seu discurso, reflete a
ideia, construída historicamente, de um desempenho masculino abaixo da expectativa das
mulheres, mas que também historicamente sempre foi camuflado, no discurso amoroso
masculino, geralmente, a respeito de si mesmo, da sexualidade e a respeito da mulher como
objeto silencioso. Textualmente, a crítica direta e agressiva da locutora de “Lalá” se dá pela
adjetivação negativa, “Moleque mimado bolado que agora chora”, ou pela exposição da
diferença entre aquilo que o homem diz e o que a mulher diz após o sexo: “Falam demais,
fingem que faz [...] Vejo vários convencidos achando que no final mandou bem [...] Minhas
amigas concordam também [...] Falam demais, quando chega na hora a ação não é
equivalente”.
Como o sexo assume um caráter social – discursivo e ideológico – na construção do
poder masculino, Karol resgata do imaginário feminino o contraste entre aquilo que o homem
discursa e aquilo que realmente se dá como experiência no universo da sexualidade,
desmontando, com a revelação da não correspondência entre discurso e realidade, um dos
pilares mais importantes de sustentação das sociedades patriarcais: a virilidade a toda prova
do patriarca. É interessante pensarmos que, se a experiência sexual feminina não fosse por
tanto tempo silenciada, essa disparidade entre ideologia e realidade masculina já se teria
facilmente dissipado. Da mesma forma, Karol expõe o descaso e o desconhecimento
masculino quanto ao prazer da mulher durante o sexo: “E percebi que era da boca pra fora [...]
Egoístas criando um orgasmo imaginário [...] Pouco importa pra ele se você também tá
satisfeita [...] Se desmonta, tem medo e no final só me desaponta [...] Já fico arrependida [...]
Seca, desacreditada e fria”.
O descaso e a falta de conhecimento sobre o prazer feminino parecem ser problemas
tanto para os homens quanto para as mulheres e pode ser de diversas ordens: por exemplo, em
relação ao próprio corpo e gostos ou em relação à anatomia ou fisiologia. Bresser (2017)
retrata que muitas mulheres não conhecem sua própria anatomia. A falta de um diálogo verbal
e gestual durante o desenvolvimento da mulher e os tabus socialmente impostos em relação a

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

seu papel fazem com que ela não se conheça e não explore aquilo que, sexualmente, funciona
para ela. Moraes (2017) realça ser histórica essa falha: reflete o tabu que se perpetua nas
relações familiares, nas quais “falar de sexo” envolve apenas o arranhar da superfície: “Mal
sabe a diferença de um clitóris pr’um ovário”.
Outro ponto retomado por Karol e corroborado por pesquisas (MORAES, 2017;
BRESSER, 2017) é que, para muitas mulheres, a experiência sexual é algo que leva tempo.
Esse tempo pode ser medido a partir de dois critérios: a grande variedade de estímulos e áreas
erógenas para serem estimuladas e a falta de conhecimento do próprio corpo e daquilo que
funciona para cada mulher. Esses dois fatores, quando somados à falta de diálogo com os
parceiros, geram a impossibilidade de a mulher sentir-se satisfeita, uma vez que o sexo vira
um jogo de tentativa e erro, em que prevalece, de modo geral, a pressa egoísta do prazer
masculino em desprezo e descaso com o prazer feminino; sexo leva tempo e a minimização
desse tempo joga contra a satisfação da mulher: “Esses caras ainda não aprenderam que dez
minutos é desfeita”.
Na mesma reportagem, Moraes (2017) expõe a fala do ginecologista Amaury Mendes
Júnior, que afirma que a sexualidade feminina intimida homens que não estão preparados para
uma relação de igualdade nos desejos e precisam da submissão ou do silêncio da mulher para
se sentirem seguros. A situação refletiria uma preocupação excessiva com a penetração, único
fim de qualquer ato sexual, na visão desses homens, assim descritos em “Lalá”: “Meia
bomba, que tomba [...] Não aguenta o molejo da lomba”.
Outro aspecto para análise em “Lalá” refere-se à dimensão estilística e poética dos
processos de paráfrase, sinonímia e metáfora (ORLANDI, 2009, p. 67). São, na obra,
devidamente destacados como formas pelas quais a língua se carrega de sentido histórico,
fazendo isso significar aquilo ou aquilo significar isso. São palavras diferentes que podem ser
entendidas como iguais, visto que, historicamente, elas excederam seus significados originais.
É dessa forma que Karol consegue falar sobre sexo, sobre sexo oral, sobre a anatomia
feminina sem precisar recorrer a termos técnicos ou a vulgares, mantendo a poesia e a sutileza
de uma criação metafórica, neológica e imaginativa, promovendo uma interface poética
marginalizada e poética canônica: “Fazer um lalá por várias horas [...] Isso daqui não tá de
enfeite [...] Curvem-se, encostem os lábios na flor”.
Karol reafirma, em sua letra de canção, uma maneira poética para se referir ao sexo,
especialmente ao sexo oral, mas inverte os sentidos esperados socialmente, porque fala de
sexo oral “na mulher” e não “da mulher”.

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Recorrendo à musicalidade e ao jogo de sentidos da língua portuguesa, Karol faz


reverberar em seu texto a expressividade da palavra “lábios”, criando uma forte relação com
outras palavras, a partir de assonâncias, aliterações, paronomásias e sinestesias (“Lalá, me dê
uma lambida lá, habilidade na lambida, saliva, me lambe lá”). Com tal jogo poético, exacerba
o erotismo da canção realçando as sensações, sobretudo, sonoras e gustativas, fazendo
referência ao som, ao movimento e à experiência da língua durante o sexo oral.
Essa apropriação de recursos “pertencentes” a uma poética canônica por uma poética
periférica, não canônica, pode ser lida, do ponto de vista político, como uma subversão social
e uma tomada radical de espaços sociais. Do ponto de vista feminino, essa subversão e
invasão de espaços sociais inauditos permite à mulher um discurso antes silenciado e confere
à mulher uma nova posição e possibilidade no discurso e no relacionamento amoroso. Vale
lembrar que essa subversão e esse redimensionamento do lugar da mulher nas relações
amorosas e sociais emergem das ideologias libertárias e das ideias de superação localizadas na
periferia.
Em “Lalá”, a locutora retoma ainda a ideia de que a prática do sexo oral cria uma
obrigação de reciprocidade que, muitas vezes, supera a vontade, recolocando a ideia do sexo
oral como tabu, como mito. Do ponto de vista dos sentidos sociais e ideológicos, a troca do
hábito do sexo oral destinado ao homem pelo sexo oral destinado à mulher, proposto na letra
da canção, pode significar uma subversão das relações de poder, uma vez que aquele que
recebe o sexo oral se coloca na condição de sujeito, tomando o outro como objeto de seu
prazer. Nesse sentido, talvez, a ideia do sexo oral na letra da canção de Karol Conká
signifique mais amplamente um discurso de inversão do protagonismo nas relações sociais, a
partir da metáfora da relação sexual, invertendo o sentido e o destinatário dos benefícios
produzidos socialmente.
Toda a experiência sexual passa, porém, por um processo de mitificação: cria-se um
imaginário composto por questões que buscam preservar as reservas sociais de manutenção de
uma “regulamentação sexual” (RIBEIRO, 1999, p. 360) para o melhor convívio em
sociedade. Assim, talvez, a reciprocidade do sexo oral possa significar mais amplamente, na
leitura de mundo de Kaol Conká, uma sociedade mais igualitária e justa, não somente na
relação de gêneros, mas também nas demais instâncias das relações sociais, nas dimensões
econômicas, políticas, culturais, ideológicas etc. Nessa lógica, falar da experiência sexual
abertamente seria desbalancear as relações sociais por trazer para o coletivo algo que, por
força da tradição e das ideologias dominantes, deve ser mantido no âmbito pessoal e
individual. Contra o silenciamento daqueles que são oprimidos e marginalizados nos

47
Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

discursos sociais – discurso econômico, político, educacional, religioso, médico, de gênero


etc; discursos que se internalizam em todos os sujeitos sociais como ideologias – instaura-se o
discurso erótico de consciência do corpo, da própria sexualidade, do prazer e do novo lugar a
ser ocupado pela mulher no mundo oral – do sexo, do discurso e das ideologias –; novo lugar
para todos os que vivenciam condição de submissão, de violação e de marginalização e que,
em “Lálá”, encontram sua expressão de subversão e reelaboração da própria condição, como
exigência da consciência tomada da própria realidade e dos sentidos que os movem: Egoístas
criando um orgasmo imaginário [...] Pouco importa pra ele se você também tá satisfeita [...]
Desse jeito desanima [...] Quero ser bem atendida [...] Tem que saber fazer, se não gera
contradição [...] Direitos de prazer iguais, mais compreensão [...] Quebra esse tabu, isso não é
nenhum favor.

Considerações finais
[...] os sentidos não estão só nas palavras, nos textos, mas na relação com a
exterioridade, nas condições em que eles são produzidos e que não dependem só das
intenções dos sujeitos. (ORLANDI, 2009, p. 30)

A criação de sentido vai muito além do texto que é lido; as palavras escritas refletem
ideologias históricas do sujeito e do papel que ele representa socialmente. Assim, Karol
Conká assume, em “Lalá”, a insatisfação de todas as mulheres que podem se identificar com
seu discurso. Ela representa ideologicamente o papel de uma mulher empoderada que quer
igualdade não só como mulher na sociedade, mas como mulher dentro dos relacionamentos
sexuais. Retratar essa frustração na canção é uma maneira de dar voz a mulheres que não se
sentem representadas dentro da experiência sexual, podendo, através do discurso, empoderá-
las.
Já foi dito que a divisão entre “bem-nascidos” e os outros é fundamental para a
existência de uma arte dos excluídos, ao mesmo tempo em que serve para controlar e cercear
indivíduos que busquem uma mudança dessa formatação social. “A eterna divisão excluídos
de um lado e bem-nascidos de outro continua sendo uma eficiente forma de controle, de
impedimento” (GONÇALVES, 2011, p. 180). No entanto, nas letras de Karol Conká, como
ocorre em “Lalá”, podemos perceber que essa divisão, tornada mais aparente, assume, de
modo peremptório, em toda a sua potencialidade conflituosa, a condição sine qua non de uma
subversão e mudança da ordem social e das instâncias e relações de poder, seja no
relacionamento sexual, em favor da mulher, seja nas outras relações sociais, em favor de
outros excluídos do prazer de viver.

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

Referências

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

MANOEL DE BARROS: UM NOVO OLHAR PARA A CRIANÇA –


RECONHECIMENTO E VALORIZAÇÃO DA INFÂNCIA NA POESIA
DE MANOEL DE BARROS

Thais Baldo de Souza1


Amanda Cristina Teagno Lopes Marques2

Resumo
Neste artigo, propõe-se um novo olhar para a criança, relacionando o reconhecimento e a valorização
desta à obra do poeta Manoel de Barros. O artigo também justifica a potência e a importância de as
crianças serem ouvidas como agentes históricos e sociais produtores de cultura dentro da sociedade.
Do ponto de vista metodológico, a investigação ancora-se em pesquisa bibliográfica sobre a temática
“infância”, tendo como principais referenciais Sarmento (2002), Corsaro (2011), Kohan (2008), dentre
outros, articulando as concepções discutidas à representação de infância na obra do poeta Manoel de
Barros. Como resultados, consideramos que Manoel de Barros, sem falar diretamente sobre e/ou para
crianças, consegue trazer o reconhecimento da infância por meio de seus versos desprendidos de um
olhar adultocêntrico.

Palavras-chave: Infância. Criança. Manoel de Barros. Poesia. Sociologia da Infância.

Abstract
This article proposes a new look to the child, relating its recognition and value to the work of poet
Manuel de Barros. The article also justify the potency and the importance of listening the children as
historic and social agents producers of culture inside society. From the methodological point of view,
the investigation anchor itself in its bibliographical research about the thematic of childhood, having
as main references Sarmento (2002), Corsaro (2011), Kohan (2008), among others, articulating the
conceptions discussed to the childhood representation on the work of the poet Manoel de Barros. As
results, its considered that Manoel de Barros, without talking directly about or to children, is able to
bring recognition of childhood through his verses loosen from an adult-centered look.

Keywords: Childhood. Child. Manoel de Barros. Poetry. Childhood Sociology.

Introdução
[...] pesquisar criança é um pouco buscar algo
novo para nós e para elas, é buscar esse mundo
que virá, nesse regime de visibilidade que
vivemos. Quando pesquisamos crianças, acho
que também nós procuramos algo de novo
naquilo que virá, e que em alguma medida a
criança pode anunciar (além do passado e do
presente). (FARIA; FINCO, 2011, p. 21)

1
Licencianda em Letras-Português, IFSP/Campus São Paulo. E-mail: thaisbaldo@hotmail.com
2
Doutora em Educação/USP, docente do Departamento de Humanidades/Letras-Português, IFSP/Campus São
Paulo. E-mail: amandamarques@ifsp.edu.br

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

Este artigo tem por objetivo propor uma aproximação ao universo infantil por meio da
poética de Manoel de Barros, dialogando com autores que discutem a infância, em especial
aqueles do campo da denominada Sociologia da Infância, que ressalta a relevância de se
conceber a criança como agente histórico-social e produtor de cultura.
É para uma infância reconhecida e valorizada em sua potência lúdica, brincante e de
força política que Manoel nos transporta. Por meio da importância conferida às coisas
desimportantes em sua poética, o autor traz a possibilidade de o mundo ser outra coisa
enaltecendo os restos. Partimos da hipótese de que Manoel traz a criança estando no mundo,
dando sentido e significado a ele por meio da brincadeira. O autor permite-nos, também,
reconhecer a importância de escutar as crianças, entendendo-as como seres capazes de
contribuir para a produção de cultura do mundo.
O presente artigo está organizado em três seções: na primeira, apresentamos a
contribuição de autores que discutem a infância, especialmente aqueles vinculados à
perspectiva sociológica da infância, considerando o movimento que justifica e demonstra a
potência da criança; a seção seguinte, por sua vez, propõe um diálogo entre esta perspectiva e
a poesia de Manoel de Barros, fazendo-o por meio da seleção de trechos de suas obras
literárias que refletem a sua criação poética realizada sobre a infância reconhecida e
valorizada em seu movimento imaginativo, brincante, e político. Ao final, apresentamos
algumas considerações.

As crianças e sua potência


Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças.
(Fernando Pessoa)

A criança é responsabilidade de toda sociedade: dos pais, do governo, da escola, dos


parentes e até mesmo dos vizinhos. Cada criança que nasce pertence ao todo da humanidade,
e as crianças possuem a capacidade de ter empatia por tudo, pelas pessoas, coisas e natureza
(O COMEÇO..., 2016). São sujeitos ativos e criativos na sociedade, produtores de cultura e
não apenas reprodutores das culturas adultas ou folhas em branco que necessitam ser
preenchidas (CORSARO, 2011).
Para Corsaro (2011), as crianças já começam a vida como seres sociais capazes de
interagir com o outro e construir os seus próprios mundos sociais. É também por meio da
interação com os colegas na pré-escola e em outros espaços de convívio que produzem suas
culturas de pares:

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

O processo é reprodutivo no sentido em que as crianças não só internalizam


individualmente a cultura adulta que lhes é externa, mas também se tornam parte da
cultura adulta, i. é, contribuem para a sua reprodução através das negociações com
adultos e da produção criativa de uma série de culturas de pares com outras crianças.
(CORSARO, 2011, p. 115)

Portanto, a ideia preconcebida, que é histórica, de que a criança está sempre à mercê
daquilo que os adultos lhe ensinam vem sendo superada à luz das perspectivas de autores do
campo da denominada Sociologia da Infância. Esse campo de estudos questiona a concepção
clássica de socialização (segundo a qual a criança é compreendida somente como objeto do
processo), reconhecendo a atividade da criança no processo de reprodução e de produção
culturais; como indica Corsaro (2011), as crianças inserem-se ativa e criativamente no mundo
e não simplesmente internalizam elementos dele, mas essencialmente os recriam,
incorporando-os às culturas infantis. As culturas infantis, por sua vez, são alimentadas por
elementos da cultura mais ampla, e também alimentam a cultura.
Por “culturas da infância”, entende-se “a capacidade das crianças em construírem de
forma sistematizada modos de significação do mundo e de ação intencional, que são distintos
do modo adulto de significação e ação” (SARMENTO, 2003, p. 3-4). Ainda de acordo com
Sarmento (2003), formas e conteúdos das culturas infantis são produzidos em uma “relação de
interdependência com culturas societais atravessadas por relações de classe, de gênero e de
proveniência étnica” (SARMENTO, 2003, p. 4), o que implica considerar que a criança faz
parte da sociedade, recebe influência do contexto no qual se insere e o influencia também.
Cabe destacar que a perspectiva com a qual dialogamos propõe a percepção da
infância como construção social, componente estrutural da sociedade, trazendo a criança
como ator e sujeito produtor de cultura. Considerar a infância uma categoria social do tipo
geracional (SARMENTO, 2005) implica entender que a infância faz parte da sociedade e
exerce um papel no contexto social mais amplo; implica também reconhecer o impacto que as
condições sociais exercem sobre a vivência da infância, o que nos leva a identificar várias
infâncias, a depender do tempo, do espaço e das representações que se fazem sobre ela. O
conceito permite-nos distinguir as especificidades da infância em relação à idade adulta e
evidenciar sua permanência na sociedade, independentemente dos sujeitos que a compõem –
as crianças crescem, mas a infância permanece na sociedade enquanto forma estrutural.
Considerar a criança como pessoa implica, por outro lado, reconhecer a dependência
em relação ao adulto como uma característica definidora da infância. Como parte da estrutura
social, a infância está exposta a forças como os outros grupos, porém de maneira ainda mais

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

devastadora, pois a criança depende economicamente do adulto e é jovem demais para


reclamar por políticas de proteção. Nesse sentido, Qvortrup (1994) alerta para a degradação
das condições materiais de vida das crianças, apontando para a necessidade de criação de
políticas de suporte à família que tenham como foco a infância. As crianças, como cidadãs,
precisam ter assegurado seu direito à participação, provisão e proteção (QVORTRUP, 1994).
A perspectiva da sociologia da infância rompe, também, com a compreensão da
psicologia clássica, segundo a qual o imaginário infantil é concebido em termos de déficit;
nessa perspectiva, entende-se que as crianças conseguem imaginar o mundo porque são
carentes de objetividade em seus pensamentos e os seus laços com a realidade não estão
perfeitamente formados (SARMENTO, 2002). A perspectiva sociológica na qual embasamos
esta discussão, ao revés, considera o imaginário como inerente ao quadro das culturas da
infância, sendo um modo de apropriação particular da realidade social:

A incorporação do imaginário no conhecimento do mundo, que é inerente às


gramáticas das culturas da infância, corresponde a um resgate do sensível na
interação com a natureza e com os outros. O imaginário infantil é um fator de
conhecimento, e não uma incapacidade, uma marca de imaturidade ou um erro.
(SARMENTO, 2002, p. 16)

Nesse sentido, o universo infantil, em toda sua ludicidade e imaginação, não exclui a
criança da sociedade e tampouco a coloca como um ser inferior aos outros, possuidora de
algum tipo de “déficit”. O imaginário infantil passa a ser entendido como uma forma
específica de relação da criança com o mundo e permite à criança alterar a linearidade
temporal e navegar entre dois mundos – o real e o imaginário –, que coexistem na forma de
racionalidade específica da criança. A diferença entre o jogo da criança e o jogo do adulto
deixa de ser vista como imaturidade infantil e passa a ser concebida como um princípio de
transposição imaginária do real que é radicalizada pelas crianças. Portanto, o imaginário
infantil se enquadra na ordem da diferença e não do déficit. (SARMENTO, 2002)
Em síntese, a capacidade imaginativa inerente à criança é um fator de conhecimento,
supondo que é a única possibilidade de configurar história, visto que designa o momento de
entrada na linguagem, sem a qual nem chegaríamos à adultice. A infância, em vez de ser um
momento “sem fala”, é a única possibilidade de se constituir fala. Se não há constituição da
linguagem na infância, a dificuldade será maior em constituí-la na fase adulta (FARIA;
FINCO, 2011).
Psicólogos, pedagogos, neurocientistas, e até mesmo economistas, apontam: “Como
adultos devemos tentar entender o que é ser criança”. Além disso, discorrem sobre a

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

necessidade de ouvi-las, uma vez que, quando as crianças não são escutadas, o mundo as
perde, e elas possuem coisas valiosas a serem ditas. (O COMEÇO..., 2016)
Ademais, o tempo da criança é o tempo presente e o seu ritmo é aquele de descoberta,
um construir baseado em colocar tijolos, um por um, em cima do outro. É preciso entender e
acompanhar o tempo da criança, deixá-la descobrir e construir sua concepção de mundo sem
ignorar aquilo que anuncia, pois

os primeiros anos são como construir a estrutura de uma casa. É a estrutura sobre a
qual todo o resto se desenvolverá. Os bebês aprendem nos primeiros três anos de
vida como jamais aprenderão de novo.
[...] cientistas do mundo todo estão numa corrida para tentar entender como o
cérebro jovem pode aprender tão rapidamente. É uma época muito mágica e muito
importante para o resto da vida. (O COMEÇO..., 2016)

Sendo assim, há uma relevância em pensar que toda criança traz em si um futuro que
ainda não chegou e será inventado, é uma surpresa para toda a humanidade, um tempo que
não somos e que não temos mais. E o seu desenvolvimento depende da importância que os
pais, a sociedade e o governo dão à sua fala, à sua necessidade de descoberta e ao seu direito
de exprimir sua opinião. Encará-las como sujeitos ativos que constituem a linguagem durante
a infância e capazes de contribuir para a cultura da sociedade implica um novo olhar sobre a
criança, retirando-a desse lugar inferior e discriminante em relação a sua potência.
Reportar a criança a partir do adulto é um movimento absolutamente adultocêntrico. A
perspectiva com a qual dialogamos neste artigo, por sua vez, destaca a importância de dar voz
às crianças, trazendo em seus movimentos inversões instigantes, novas perspectivas sobre a
infância e uma resistência ao adultrocentrismo.
A falta de importância conferida à voz da criança mostra-se algo recorrente na
sociedade, o que pode ser associado à consideração da criança como parte das classes
minoritárias, como os negros e as mulheres, por exemplo. Minoritárias não em questões
numéricas, mas como categorias que possuem vozes, porém, estas não ressoam na sociedade.
(FARIA; FINCO, 2011)
Mesmo que pareça que todos podem falar, não são todos que falam. A questão a ser
tratada na próxima seção é como a poesia pode dar voz a essa subalternização recorrente da
infância por meio do movimento político de Manoel de Barros em enaltecer os restos e dar
importância às coisas desimportantes por meio de seus versos.

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Um novo olhar imenso às crianças: estabelecendo diálogos entre infância e poesia de


Manoel de Barros
Manoel de Barros criou versos que aumentaram o mundo, sendo considerado um dos
poetas mais relevantes da literatura brasileira. O poeta, conhecido por dar importância às
coisas desimportantes, e ser marcante por sua escrita de preferência ao conjunto das coisas
residuais que representam a sobra da sociedade, traz consigo o enaltecimento das coisas reles,
o despertar de um encantamento para as coisas que nessa curta vida valem a pena,
estabelecendo uma cumplicidade poética com o insignificante:

Dou respeito às coisas desimportantes


e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que as dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
(BARROS, 2015, p. 122)

O autor, ao ser entrevistado no documentário “Só dez por cento é mentira”, fala sobre
a relação entre infância e poesia. Segundo Manoel, quando é pedido a ele que escreva sobre
outros capítulos de sua vida, como a mocidade ou a velhice, não é possível; ele declara que só
teve infância e só sabe escrever sobre a infância.
Sua poesia é marcada por invenções, sendo conhecido como o poeta do “deslimite” da
palavra, onde inventa um “glossário de transnominações em que não se explicam alguma
delas (nenhumas) ou menos” tornando sua biografia uma “desbiografia”, sendo tamanha a
beleza de suas invenções na poesia que não seriam encontradas verdades:

Árvore, s.f.
Gente que despetala
Possessão de insetos
Aquilo que ensina de chão
(BARROS, 2016, p. 51)

Em sua criação poética, Manoel afirma que a poesia nasce não do existir (um
paradoxo presente em sua ordem do poético), e sim, do inventar. E a invenção, segundo ele, é
um negócio profundo, uma coisa que serve para aumentar o mundo (SÓ DEZ..., 2002):

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

Tenho uma confissão a fazer:


Noventa por cento do que escrevo é invenção
Só dez por cento é mentira.
(SÓ DEZ, 2002)

O autor não escreveu especificamente para o público infanto-juvenil e tampouco


realizou pesquisas científicas acerca do universo da criança. Considerou, apenas, a criança
como semente de sua escrita, considerando-se um “caçador de achadouros da infância”
(BARROS, 2015). Em seus versos, não há como ressaltar um olhar previsível e adultocêntrico
sobre as coisas e/ou o mundo.
No entanto, a sua imprevisibilidade em definir as coisas sob um olhar lúdico e não
adultocêntrico; o seu paradoxo em enaltecer os restos e as sobras; em amar aquilo que é reles,
tendo empatia por tudo e por todos; em mergulhar na vida por meio da invenção, da
brincadeira com as palavras e da sua descoberta de significância para aquilo que é
considerado insignificante pela maioria dos adultos o aproximam da concepção Sociológica
da Infância:

Somos seres simbólicos. Somos seres brincantes. É na infância, no seu decorrer, que
estruturamos capacidades de ação e simbolização, e o brinquedo é a forma mais
completa de lidar com elas. Brincar, portanto, deixa de ser somente um direito para
se tornar o espaço de liberdade, de criação. Através da brincadeira a criança
mergulha na vida, criando um espaço que expressa, que atribui sentido e significado
aos acontecimentos. (MULLER; CARVALHO, 2009, p. 123)

Manoel atribui sentido e significado à insignificância das pessoas e do mundo por


meio da brincadeira de ultrapassar os limites das palavras, de trazer o leitor para um êxtase de
encantamento através da simplicidade em transformar seu quintal de poesia maior que o
mundo, de achar mais importante fundar um verso do que uma usina atômica. Sua poesia
chega ao grau de brinquedo por meio da sua invenção, da inversão da ordem sintática de suas
orações, da sinestesia e da simplicidade lúdica de seus versos:

...Sabe que a lua


Tem gosto de vaga-lume para as margaridas.
Precisa muito de sempre
Passear no chão. Aprende antro e estrelas.
(Tem dia o sapo anda estrelamente!)
(BARROS,2016, p. 33)

Dentro da perspectiva Sociológica da Infância desenvolve-se a ideia de que a criança


está no mundo por meio da brincadeira (CORSARO, 2011); também Sarmento (2002) discute
a infância por uma perspectiva de autoria infantil, com culturas pautadas pela ludicidade,

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fantasia do real e necessidade de interagir com os outros. São discussões acerca da infância
que acordam com as características elementares da poesia de Manoel de Barros, já que a
brincadeira com as palavras, a invenção, a subjetividade e a ludicidade são elementos
marcantes de sua construção poética.
Essa sensibilidade em apresentar em estado de latência o universo infantil e estar
totalmente desprendido de um olhar adulto sobre o mundo traz para a poética de Manoel
acontecimentos inusitados e invenções imprevisíveis que demonstram a importância e o
encanto que podem ter conhecer as crianças sob um novo olhar sociológico da infância:

Conhecer as crianças enquanto grupo que se relaciona e cria sentidos e significados


para o mundo requer tempo, sensibilidade e, principalmente, desprendimento de um
olhar adultocêntrico viciado.
Portanto, aproximar-se do universo infantil requer um olhar de revelação que precisa
estar aberto à novidade, para os acontecimentos inusitados, que só se torna possível
sem as amarras determinadas por saberes e verdades previsíveis. (MULLER;
CARVALHO, 2009, p. 118)

Ademais, colocar o seu fazer poético dentro do âmbito dos restos e construir versos
que enaltecem as coisas e os seres desimportantes suscita como uma de suas estratégias
literárias a metalinguagem. Refletir sobre o fazer poético equiparando-o a coisas baixas e
reles traz a questão da desvalorização da poesia e de seu lugar marginalizado:

...O prédio era de estilo bizantino do século IX.


Colosso!
Mas eu achei as pombas mais importantes do que
o prédio.
Agora, hoje, eu vi um sabiá pousado na Cordilheira
dos Andes.
Achei o sabiá mais importante do que a Cordilheira
dos Andes.
O pessoal falou: seu olhar é distorcido.
Eu, por certo, não saberei medir a importância
das coisas: alguém sabe?
Eu só queria construir nadeiras para botar
nas minhas palavras.
(BARROS, 2015, p. 104)

Assim como a poesia está à margem, as crianças também estão. E por meio de seus
versos, Manoel abre o nosso olhar para uma nova concepção da infância, para o movimento e
a força política que possuem a poesia e as vozes das crianças.

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Considerações finais
As coisas não querem mais serem vistas por
pessoas razoáveis. Elas desejam ser olhadas de
azul – que nem uma criança que você olha de
ave.
(Manoel de Barros, “XIII”. In: O livro das
ignorãças)

Pesquisar o universo infantil é abrir-se a novos olhares para o mundo e para a criança
e sua potência. Sensibilidade, curiosidade e aprendizado como processo de autopercepção e
percepção do mundo configuram a criança como um ser histórico e social capaz de construir
cultura de forma criativa, rica e humanizadora.
Ademais, as crianças são sujeitos que possuem empatia por tudo e por todos e o tempo
todo anseiam descobrir e aprender, estabelecendo contatos por meio dos seus cinco sentidos.
Esse aspecto sensorial, sinestésico, lúdico, inteligente, criativo e, principalmente, esse olhar
de descoberta para o novo de forma imprevisível e cheio de disposição aproxima as crianças
da linguagem poética.
Manoel de Barros, sem falar diretamente sobre e/ou para crianças, consegue trazer
esse reconhecimento e valorização da infância por meio de seus versos desprendidos de um
olhar adultocêntrico. Ora ele traz a infância com toda sua riqueza em estado de latência, ora
nos confunde sendo a própria criança que seus versos são por inteiro.
O poeta que fala sobre o mundo por meio da importância que dá aos “inutensílios” e
aos “seres desimportantes” nos salta os olhos para o que realmente importa e, muitas vezes,
acaba passando sem ser notado. Seus poemas são cirandas cheias de vida.
Uma criança que não é ouvida, que não recebe afeto e não é cuidada tem seu
desenvolvimento e visibilidade comprometidos. Manoel, que dá voz à riqueza da capacidade
inventiva e dos olhos curiosos de uma criança, oferece-nos a possibilidade de aumentar o
mundo e olhar para as nossas crianças como grandes inovadoras, cheias de movimentos
políticos em suas falas e seres ativos dentro da sociedade.

Três personagens me ajudaram a compor estas memórias. Quero dar ciência delas.
Uma, a criança; dois, os passarinhos; três, os andarilhos. A criança me deu a
semente da palavra. Os passarinhos me deram desprendimento das coisas da terra. E
os andarilhos, a preciência da natureza de Deus.
... O outro parceiro de sempre foi a criança que me escreve. Os pássaros, os
andarilhos e a criança em mim são meus colaboradores destas Memórias inventadas
e doadores de suas fontes.
(BARROS, 2015, p. 127)

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Referências

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

OBSERVAÇÕES SOBRE OS EFEITOS DE SENTIDO EM “ORAÇÃO”,


DE A BANDA MAIS BONITA DA CIDADE

Carlos Vinicius Veneziani dos Santos1

Resumo
O artigo analisa a canção “Oração”, lançada pelo conjunto A Banda Mais Bonita da Cidade em 2011,
a partir dos recursos oferecidos pela semiótica da canção. A base teórica da análise, para os aspectos
gerais da semiótica, são as contribuições de José Luiz Fiorin e de Diana Luz Barros, e para os aspectos
específicos dos textos analisados, são os trabalhos de Peter Dietrich e Luiz Tatit. São analisados, pela
ordem, a letra da canção, a estrutura do arranjo e a relação entre melodia e letra, apoiada em
transcrição gráfica para visualização. As análises indicam características de tematização e
figurativização na compatibilidade entre melodia e letra. Os dados apontam, ainda, para as funções do
arranjo na construção dos efeitos de sentido, ora fortalecendo a ideia de circularidade, ora contribuindo
para a caracterização do texto cancional como similar a uma prece coletiva.

Palavras-chave: Linguística. Semiótica. Canção.

Abstract
This article analyses the song “Oração”, released by A Banda Mais Bonita da Cidade in 2011, based on
theoretical foundations of song’s semiotics. These foundations are, for general semiotics issues, the
contributions of José Luiz Fiorin and Diana Luz Barros, and for specific topics of analyzed texts, the
works of Peter Dietrich and Luiz Tatit. The topics selected for analysis are, in this order: lyrics,
musical arrangement’s structure, the relationship between music and lyrics, supported by graphic
transcription appropriate for viewing. The analysis indicates characteristics of figurativization and
musical structuring by themes in the relationship between music and lyrics. The data suggests,
additionally, that musical arrangement reinforce the ideas of circularity and collective prayer.

Keywords: Linguistic. Semiotics. Songs.

Introdução: a canção e a escolha de abordagem


A canção “Oração”, composição de Leonardo Fressato, está incluída no primeiro
álbum de carreira do grupo curitibano A Banda Mais Bonita da Cidade, de 2011. Foi lançada
em forma de videoclipe independente, alcançando ampla repercussão nas mídias e redes
sociais. Só depois do sucesso do vídeo é que o conjunto conseguiu fundos para gravação de
seu primeiro álbum, financiado via Crowdfunding, e hoje disponível na página do grupo na
internet (A BANDA..., 2018).
Aos poucos, o estilo musical da Banda se tornou conhecido nacionalmente, com
apresentações em diversas cidades e estados. Entretanto, desde 2011 até hoje, “Oração”
continua sendo o principal sucesso do grupo, e é comum ouvir a execução da canção em
diversos contextos, como apresentações musicais, festivais, karaokês, saraus etc. A

1
Doutor em Linguística/USP. Docente do IFSP/Campus São Paulo. E-mail: viniciuscex@gmail.com

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Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

penetração midiática de “Oração” atingiu estatuto icônico, que permite incluí-la entre as
canções brasileiras mais populares da segunda década do século XXI.
Justificar, explicar ou analisar as condições que transformaram “Oração” em sucesso
comercial consiste em tarefa que implica a descrição, comparação e ponderação de número
elevado de fatores, dimensionados a partir de perspectivas teóricas dificilmente passíveis de
conciliação. Sem pretender esgotar as possibilidades dessa sondagem, este trabalho visa a
investigar aspectos da força estética, das possibilidades comunicativas e dos elementos de
construção dessa canção que podem ter contribuído para o efeito de sentido do produto final
no fonograma. A investigação analítica apresentada propõe-se como aplicação de abordagem
semiótica de leitura da canção, como esboço de interpretação de elementos menos
imediatamente evidentes na audição e como tributo à qualidade singular do material
produzido pelos músicos paranaenses.
Em nossa abordagem, procuramos apresentar as dimensões de sentido apontadas e
sugeridas pelo material musical do fonograma de 2011, considerando a proposta de letra, de
melodia, de arranjo, de interpretação e de entoação oferecida pela gravação que analisamos.
Destacamos que nossa opção, para o corpo de análise, foi a de análise de todos os recursos
sonoros apresentados pela gravação em uma faixa de disco específica e, por isso,
apresentamos nosso esforço de pesquisa como análise de um fonograma e não somente de
relação letra/melodia da letra, ainda que a admitamos como núcleo de sentido do texto
cancional.2

A canção no álbum
Antes de examinar o fonograma específico, realizamos uma aproximação preliminar, a
partir de sua relação com o produto final ao qual foi englobada, e do qual faz parte, entre
outros fonogramas. “Oração” é a décima-primeira faixa do álbum A Banda Mais Bonita da
Cidade. O álbum caracteriza-se pelo espírito descontraído, intimista e emotivo. Para
compreender a maneira como o disco é estruturado, dividimos as canções em três grupos
distintos:
1) Algumas faixas do álbum fazem referência a situações da vida cotidiana com humor e
leveza, como no caso de “Mercadorama”, “Solitária” e a inteligente “Canção pra não voltar”.

2
Em concordância com as observações do semioticista Márcio Coelho na obra O arranjo e a canção: uma
abordagem semiótica (COELHO, 2014, p. 70-71), nossa opção é detalhada na obra Estudo semiótico de canções
de Adoniran Barbosa: “Dessa forma, aderimos à noção de fonograma como um todo de sentido delimitado com
início e fim, estruturado para dar forma, por meio de um arranjo musical, ao núcleo de identidade da canção, a
letra e a melodia da letra” (SANTOS, 2017, p. 50).

61
Revista Argumento, Ano 19, Número 28 (2018)

Nesse caso, a simplicidade das letras e a reduzida intenção de eloquência resultam em


material divertido e de fácil assimilação, que, por outro lado, beneficia-se de alto grau de
elaboração musical nos arranjos e na evolução da composição, com soluções inusitadas de
organização das partes e de densidade e textura musical.
2) Outras canções são mais experimentais, como “Aos garotos de aluguel”, “A balada da
bailarina torta” e “Oxigênio” com mais impacto sonoro nas escolhas de instrumento, voz e
efeitos musicais. Nesse caso, as composições possuem várias partes distintas, costuradas pela
organicidade da letra e da harmonia, mas descontínuas no tratamento dos timbres e dos
elementos da seção rítmica, por vezes dissonantes ou transmitindo sensação de ruptura.
3) Há, ainda, canções conceitualmente simples em letra, melodia, arranjo e interpretação
vocal; estas são mais suaves e menos exigentes, enquanto audição. São canções que
funcionam bem em abordagens acústicas, e, em alguns casos, que valorizam o canto menos
empostado, mais próximo da fala. Podemos citar como exemplos desse grupo “Boa pessoa”,
“Nunca”, “Cantiga de dar tchau” e “Se eu corro” (a despeito do trecho mais denso e
agressivo).
Em geral, A Banda Mais Bonita da Cidade procura oferecer canções em que se
destacam escolhas inusitadas, que quebram a expectativa constituída pelo reconhecimento do
gênero. Essas escolhas se refletem tanto nos aspectos musicais quanto nos verbais. Quando
não há opção pela surpresa, a Banda aposta na simplicidade, na exploração de imagens do
cotidiano e nos sentimentos de amor e carinho, tomados de forma amena e descomplicada.3 O
resultado é um trabalho que oscila entre a provocação estética pela surpresa e a sedução do
ouvinte pelo caráter prosaico e despretensioso.4
Do ponto de vista da ordem de audição dentro do álbum, considerando um ouvinte que
se dispusesse a conhecer as canções em sequência, sem nenhuma interferência na execução ou
seleção prévia, “Oração” é a penúltima faixa, precedida e sucedida por duas canções que se
associariam ao terceiro grupo de canções anteriormente descrito, que tendem para uma

3
Evidentemente, os termos de comparação e as gradações apresentadas referem-se ao universo do próprio
material, considerado como uma unidade de sentido enquanto produto comercial. Uma canção pode ser simples
para o universo de canções de um determinado conjunto, mas soar complexa se comparada a outra propostas
artístico-musicais. As canções consideradas aparentemente mais convencionais da Banda, se tomadas no
contexto geral e comparadas com a média da produção musical pop brasileira contemporânea, apresentam
soluções mais elaboradas de composição e execução.
4
A canção “Ótima” assume posição única dentro do trabalho, por não ser inovadora do ponto de vista dos usos
específicos e da densidade do arranjo, e sim na organização do conteúdo verbal e musical como surpresa,
provocação, ironia e humor. Nessa canção, a mudança da intenção da letra é acompanhada da mudança da
perspectiva musical (da escala menor, mais carregada e vocalmente contida, para a explosão em escala maior e
maior abertura vocal), com a segunda parte traindo as expectativas musicais contidas na primeira.

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execução acústica e com menor quantidade de instrumentos no arranjo. O aspecto circular e


iterativo de “Oração” consistiria no ponto mais evidente desse investimento do terceiro grupo
de canções. O álbum equilibra os três grupos (1, 2 e 3) em dois conjuntos gerais (o primeiro,
com as do grupo 1 e 2; o segundo, com as do grupo 3) mais ou menos coesos, e a faixa
analisada pertenceria ao segundo conjunto, ao terço final do álbum iniciado por “Nunca”. No
primeiro conjunto, revezam-se canções do primeiro e segundo grupo analisados, mais
experimentais e/ou mais irreverentes. No segundo conjunto, ficariam faixas do terceiro grupo,
mais emotivas e menos provocativas. Essa disposição dos conjuntos distintos remete a uma
estratégia de apresentação que investe no choque inicial, com aposta no impacto, e evolui, ao
final, para o relaxamento.
Importa entendermos que a classificação das canções anteriormente realizada incide
em determinada proposta de fruição da obra, na qual buscamos localizar a posição da canção
em relação ao restante do material oferecido na unidade do álbum. Evidentemente, o
fonograma pode ser ouvido em separado, e é provável que isso tenha ocorrido muitas mais
vezes do que a audição completa das doze canções, dadas as circunstâncias e possibilidades
de acesso oferecidas pelos grandes complexos midiáticos. O que é relevante observar é a
singularidade de “Oração” mesmo em relação às propostas dos seus autores-intérpretes. Se
podemos entendê-la como uma canção do terceiro grupo, com vocações intimistas, acústicas e
de menor complexidade melódica, também devemos ressaltar que o arranjo proposto para sua
gravação investe em evolução sonora e de intensidade, à semelhança das canções mais
experimentais do segundo grupo, e a letra tem muitos aspectos do cotidiano e muita leveza,
remetendo a canções do primeiro grupo. A síntese de intenções em “Oração” abarca o
despretensioso e o inovador, o corriqueiro e o profundo, os aspectos mais descontraídos e
sentimentais da produção da Banda e os aspectos irreverentes, surpreendentes e inteligentes
dos chistes que caracterizam suas letras e suas guinadas no interior das canções. A faixa
analisada aparece assim, singularmente, como uma canção pop convencional pouco agressiva
para o ouvinte e como um material repleto de particularidades significativas em sua
elaboração, passíveis de agradar a um ouvido mais exigente.

Recorte teórico e definições adotadas


As considerações que serão realizadas adiante exigem delimitação teórica de termos
que serão empregados nas análises. Em primeiro lugar, é necessário fazer referência às noções
de continuidade e descontinuidade para a linha de estudos semióticos que adotamos. Na
semiótica tensiva, base da semiótica da canção, há o princípio de que as continuidades e

63
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descontinuidades do discurso musical produzem efeitos de sentido que orientam a escuta do


enunciatário. Maior quantidade de informações oferecidas em menor espaço de duração
temporal resulta em maior exigência de atenção e do ouvinte, o que implica descontinuidade,
pois exige reorientação da percepção. Por outro lado, quantidade menor de informação
oferecida em lapso de tempo mais amplo resulta assimilação mais confortável, menos
exigente, o que implica continuidade no campo perceptivo. Esses conceitos são desenvolvidos
pelo semioticista Peter Dietrich:

Podemos observar mais uma vez a atuação da categoria aceleração vs.


desaceleração, em suas várias gradações. Essa categoria pode ser diretamente
associada à percepção de alteridade vs. identidade, ou se preferirmos usar o termo
geralmente empregado pela teoria musical, informação vs. redundância, na
comparação entre as células que compõem as frases de uma peça. Quanto maior for
o contraste (de alturas, durações, intensidades ou timbres), maior a percepção da
aceleração. Ao contrário, à medida que os contrastes se diluem, a desaceleração
passa a tornar-se dominante. Como sempre, a atuação desta categoria acontece
dentro de uma escala tensiva. Nada será completamente acelerado ou totalmente
desacelerado. No limite da aceleração, o discurso não acontece, pois o fluxo de
informações é tão veloz que nada consegue acompanhá-lo. Em um regime de
desaceleração total, o discurso também não acontece, pois não havendo nenhum
contraste entre seus componentes, nenhum sentido é produzido. É evidente que
discursos desta maneira não são concebíveis na prática. O que acontece é uma
tendência a aceleração ou desaceleração, sendo mais freqüente ainda uma
combinação dos dois fatores, recaindo sobre aspectos musicais diferentes.
(DIETRICH, 2008, p. 98)

As observações de Dietrich são importantes para compreender os efeitos de sentido em


“Oração”, na medida em que estabelecem, para as transformações ocorridas na canção,
valores tensivos. A aceleração aqui não se refere ao apressamento do ritmo, e sim, ao aumento
do volume de informações; por consequência, a desaceleração corresponde à diminuição
desse volume. Do ponto de vista semiótico, a aceleração associa-se à alteridade (descontínuo)
e a desaceleração à identidade (contínuo). Mudanças bruscas de andamento, saltos
intervalares amplos, diferenças evidentes na densidade e na intensidade na execução
constituem fatores de quebra da percepção identitária da canção, constituída pela repetição de
células e trechos no tempo musical.
É importante, ainda, explicitar a definição de densidade. Quando fazemos referência,
neste trabalho, a esse termo, estamos nos apropriando de noção utilizada por Peter Dietrich,
que avalia a presença ou ausência de diferentes timbres (executados por diferentes vozes ou
instrumentos) em uma determinada canção ou peça musical. Para o semioticista:

Para analisar o discurso musical, dispomos a princípio de apenas quatro elementos,


que são as propriedades do som [...]. Podemos ainda pensar em um outro elemento,

64
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resultado da projeção de cada uma das quatro propriedades no tempo: a densidade.


Um trecho composto por um instrumento solo, em uma interpretação homogênea,
seria um trecho de baixa densidade timbrística. Uma orquestra no momento do tutti
(todos os instrumentos tocando juntos) apresentaria grande densidade timbrística.
(DIETRICH, 2008, p. 39)

A noção de densidade é fundamental para a análise da canção em foco, visto que as


alterações gradativas do canto e do instrumental acontecem no âmbito do arranjo e não na
relação entre melodia e letra. As transformações de densidade no arranjo são responsáveis por
efeitos de sentido que se contrapõem àqueles revelados na análise da relação entre melodia e
letra.
Também se faz necessário estabelecermos a diferenciação entre as noções de unidade
entoativa, verso e frase melódica. Uma frase melódica consiste de uma sequência de células
melódicas, constituídas, por sua vez, de notas musicais, que estabelece um caminho de
sentido no campo das alturas em uma execução musical.5 Há frases melódicas em qualquer
material musical, seja ou não complementado por componentes verbais. Os versos são, por
sua vez, definidos como “cada uma das linhas de um poema” (HOUAISS, 2009, p. 1938),
sendo associados, assim, prioritariamente, à produção literária. As unidades entoativas podem
ser transcritas como versos, ou executadas sobre uma linha melódica de uma frase musical,
mas não se confundem com as outras duas formas de segmentação. Luiz Tatit, concebendo a
canção como uma linguagem distinta da poesia e da música isoladas, afirma a respeito das
unidades entoativas:

Ao propor uma letra, portanto, o autor não está apenas combinando sonoridade
linguística com sonoridade melódica, mas sobretudo experimentando diversos tipos
de recortes linguísticos para o mesmo segmento melódico, de modo a gerar
diferentes efeitos figurativos. A melodia em si já traz as suas frases musicais que, a
partir do encontro com a letra, serão convertidas em unidades entoativas
identificadas por qualquer falante da língua utilizada. Ou seja, a melodia cancional
cuja criação não proceda diretamente das entoações da fala precisa reencontrá-las
numa etapa seguinte, no momento de concepção da letra. (TATIT, 2016, p. 76)

Dessa forma, uma mesma frase musical pode ser subdividida em número distinto de
unidades entoativas, a depender do sentido da letra que lhe é acoplada. Adicionalmente, a
transcrição da letra em versos não respeita, necessariamente, as divisões e escolhas de
5
Não é por acaso que podemos dizer que a frase é a menor estrutura que ainda produz um efeito de sentido de
unidade. Abaixo da frase, só poderemos perceber fragmentos de ideias. Existem várias explicações possíveis
para esse fenômeno, mas a principal parece ser uma explicação harmônica. No nível da frase ainda é possível
perceber uma movimentação harmônica, o que confere à frase um perfil melódico que tem em si uma direção. A
frase pode ser suspensiva ou conclusiva, ela pode ser linear ou tortuosa. É verdade que as células (componentes
do nível imediatamente inferior) também têm essas características, mas elas não possuem o poder de produzir o
efeito de sentido de unidade que a frase produz: as células são sempre ouvidas como fragmentos (DIETRICH,
2008, p. 88).

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expressividade da linha do canto, e um único verso pode ser dividido, em uma canção, em
mais de uma unidade entoativa, e vice-versa. A não coincidência dessas noções obriga o
analista a recuperar a letra da canção, na transcrição, por meio de uma escuta atenta, sensível
às nuances de interpretação do conteúdo verbal.
Na análise da letra e da melodia, tornam-se importantes também os conceitos de
interlocutor/interlocutário e de manipulação, enquanto estratégia persuasiva. Em relação às
projeções enunciativas, assumimos que as relações entre o “eu” lírico que assume a primeira
pessoa na canção e o “você” que é instaurado como segunda pessoa correspondem a uma
situação de interlocução, que não corresponde à da relação entre o enunciador e o enunciatário
(os responsáveis pelo fonograma e os ouvintes), nem entre o narrador e o narratário (o “eu”
que narra o texto não corresponde ao “eu” que assume a palavra em discurso direto dentro do
texto). Por essa razão, optamos pelos termos interlocutor e interlocutário para descrever a
estrutura de enunciação na letra estudada. Procuramos recuperar a forma como esses
conceitos são definidos por José Luiz Fiorin:

Os esquemas narrativos são assumidos pelo sujeito da enunciação que os converte


em discurso. A enunciação é o ato de produção do discurso, é uma instância
pressuposta pelo enunciado (produto da enunciação). Ao realizar-se, ela deixa
marcas no discurso que constrói. [...] Mesmo quando os elementos da enunciação
não aparecem no enunciado, a enunciação existe, uma vez que nenhuma frase se
enuncia sozinha. [...] Isso implica que é preciso distinguir duas instâncias: o eu
pressuposto e o eu projetado no interior do enunciado. Teoricamente, essas duas
instâncias não se confundem: a do eu pressuposto é a do enunciador e a do eu
projetado no enunciado é a do narrador. Como a cada eu corresponde um tu, há um
tu pressuposto, o enunciatário, e um tu projetado no interior do enunciado, o
narratário. Além disso, o narrador pode dar a palavra a personagens, que falam em
discurso direto, instaurando-se então como eu e estabelecendo aqueles com quem
falam como tu. Nesse nível, temos o interlocutor e o interlocutário. (FIORIN, 2013,
p. 55-56)

Em relação às estratégias de manipulação, consideramos as observações de Diana Luz:

Na manipulação, o destinador propõe um contrato e exerce a persuasão para


convencer o destinatário a aceitá-lo. O fazer persuasivo ou fazer-crer do destinador
tem como contrapartida o fazer-interpretativo ou crer do destinatário, de que decorre
a aceitação ou recusa do contrato.
[...]
Uma tipologia bastante simples prevê quatro grandes classes de manipulação: a
provocação, a sedução, a tentação e a intimidação. (BARROS, 2008, p. 28-29)

A partir dessas definições, assumimos que a relação de interlocução entre as vozes


discursivas em “Oração” é uma relação de manipulação, em que a interpelação discursiva tem

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como objetivo o convencimento daquele a quem a mensagem é dirigida. Faz sentido,


portanto, pensar em estratégias de persuasão dentro do texto cancional estudado.

Análise do plano verbal


De posse dessas definições, iniciamos nossa análise pelo título do fonograma,
“Oração”. No caso específico dessa canção, o título tem grande relevância. Sabe-se que nem
sempre o conteúdo da canção está expresso em seu título e que alguns desses títulos não são
facilmente associados ao que está sendo dito pela letra. Poderíamos citar como exemplo a
poderosa canção de Geraldo Vandré, “Pra não dizer que não falei de flores”, em que o
impacto dos versos com forte cunho político não está, de forma alguma, nem antecipado nem
contemplado pelo nome do trabalho. Outro exemplo possível é o de “Drão”, de Gilberto Gil,
em que as referências à biografia do cantor-compositor são convocadas pela letra e pelo título,
que seria de outra forma demasiadamente aleatório ou obscuro, podendo ser erroneamente
atribuído a alguma brincadeira ou jogo de palavras gratuito.
Em “Oração”, por outro lado, a ideia de prece ou de fim religioso ou místico das
palavras não é uma simples alusão a algum elemento disperso, e sim, uma apresentação
coerente tanto do material verbal quanto do melódico. A definição de oração, segundo o
Dicionário Houaiss, é a seguinte:

1 – súplica, pedido dirigido a Deus, a santo, a uma divindade; reza, prece;


2 – prédica, sermão, pregação;
3 – discurso, geralmente pronunciado em ocasião solene; fala, alocução, discurso.
(HOUAISS, 2009, p. 1393)

As definições oferecidas pelo dicionário propõem um conjunto de traços semânticos


elucidativos do ponto de vista da apropriação dessa ideia pelo compositor da canção. A
primeira acepção remete à religiosidade, considerando a oração um tipo de uso verbal que liga
o homem à divindade por meio de uma súplica ou solicitação. Há, assim, a associação da
vontade humana, que se declara, à vontade divina, que se sonda. A ideia de que a força
espiritual superior pode ser invocada é o primeiro aspecto relevante sobre o vocábulo a ser
destacado. Na segunda acepção, a oração está menos associada à sua finalidade e mais ao seu
gênero. Há, nesse caso, uma noção de duração (sermão, pregação), de continuidade no tempo,
por meio da insistência, para que a palavra atinja seu objetivo. A terceira acepção reforça essa
característica, ampliando-a para além da perspectiva religiosa. A oração, nesse caso, seria o
próprio discurso, naquilo que pode ter de solene. Torna-se importante, aqui, a ideia de
solenidade, no sentido de relevância dada a determinado tema. Não se faz uma oração, ou não

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se chama de oração, o discurso despreocupado, cujo objeto seja uma banalidade


desimportante.
A solenidade do mérito e o prolongamento da duração são as noções que podemos
extrair das definições de dicionário em relação ao conceito de oração. Essas noções são
importantes para pensarmos, adiante, de que maneira essa oração estetizada d’A Banda Mais
Bonita da Cidade assume esses elementos conceituais e os transforma, em sua leitura
particular do tema.
Em relação ao plano verbal dos conteúdos, a canção oferece uma letra curta,
inteiramente construída em forma de apelo, em discurso direto. A letra é transcrita adiante,
dividida em unidades entoativas, conforme o canto:

Oração

1 Meu amor,
2 Essa é última oração
3 Pra salvar seu coração.
4 Coração não é tão simples quanto pensa.
5 Nele cabe o que não cabe na despensa.
6 Cabe o meu amor.
7 Cabem três vidas inteiras.
8 Cabe uma penteadeira.
9 Cabe nós dois.
10 Cabe até o...
10* (alternativo no final) Cabe essa oração.

Pode-se perceber, pelo vocativo “meu amor”, no verso correspondente à unidade


entoativa 1, que o caráter religioso do gênero “oração”, proposto pelo título e pelo conjunto
do texto, sofre uma alteração inusitada, com o direcionamento da fala para o interlocutor em
benefício do qual ela se realiza, e não para a divindade. Como consequência, a estrutura de
enunciação apresenta a indicação de um interlocutário, reforçada pela presença do pronome
possessivo “seu”, no verso correspondente à unidade entoativa 3. Ao mesmo tempo, nesse
trecho, a escolha vocabular de palavras como “última” e “salvar” remete à pungência da
locução, recuperando o aspecto sagrado, próprio dos textos oracionais.
Temos, assim, nos três primeiros versos da letra, elementos que estabelecem o
mapeamento enunciativo da locução. Esses elementos são também índices da estrutura
narrativa do texto: o sujeito-interlocutor dirige-se ao sujeito-interlocutário dizendo que
pronunciará uma oração para “salvar” o coração deste. A relação semiótica entre sujeitos
caracteriza-se como relação de manipulação, em que o primeiro atua de maneira persuasiva
sobre as possibilidades de ação e entendimento do segundo. No caso da letra de “Oração”, a
manipulação faz uso da ideia de urgência (“última”) e de perda (evitada pela “salvação”),

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configurando-se como estratégia de intimidação (se o sujeito manipulador não for atendido, o
sujeito manipulado perderá algo).6
A partir do verso correspondente à unidade entoativa 4, o conteúdo passa a ser menos
apelativo e mais explicativo. O interlocutor esforça-se para explicar ao interlocutário tudo o
que cabe no coração. O coração, evidentemente, é utilizado de forma metafórica,
representando a vida afetiva do interlocutário; assim, aquilo que cabe nele, cabe na vida
afetiva. É importante, para a estratégia de manipulação, que haja o entendimento de que o
coração é espacialmente mais amplo, que corresponde, metaforicamente, ao entendimento de
que a vida afetiva pode abarcar mais elementos. O interlocutário não possui esse
entendimento (“coração não é tão simples quanto pensa”), fundamental para a salvação de
suas emoções. A manipulação consiste em fazê-lo assimilar essa informação, o que
representa, para o interlocutor, a possibilidade de incluir, entre outros conteúdos aleatórios
citados, o amor que sente e demonstra (“cabe o meu amor” – unidade entoativa 6; “cabe até o
meu amor” – unidade entoativa 10, completada pela unidade entoativa 1). Se o interlocutário
não assimilar essa informação, por discordância ou desconhecimento, seu coração (sua vida
afetiva) não será salvo (haverá perdas, sofrimento). Por outro lado, se a abrangência do
coração for admitida, o interlocutário “salva-se” dessa condição destrutiva, por possuir agora
as competências cognitivas necessárias para tal, e o interlocutor atinge mais um objetivo de
manipulação, que é aproximar-se de seu objeto afetivo, estabelecendo a conjunção
anteriormente impossibilitada pelas restrições de conteúdo possível entre os afetos do outro.
A importância de exercer influência sobre a perspectiva cognitiva do interlocutário
revela-se, na estrutura da canção, pela insistência do interlocutor, discursivizada na repetição
constante do conjunto da letra e no efeito cíclico conseguido pelo arranjo musical. Na letra, a
circularidade das repetições é articulada pelo acoplamento da unidade entoativa 1, que
funciona na primeira ocorrência como vocativo, à unidade entoativa 10, passando a exercer a
função de objeto direto do verbo “caber”. Esse recurso revela-se significativo do ponto de
vista dos efeitos de sentido da canção, porque mantém a solução entoativa de chamamento,
produzindo, nas repetições, a sensação de apelo na realização sonora e, ao mesmo tempo, a de
complementaridade verbal na linearidade linguística do discurso. O complemento verbal só
deixa de receber esse tratamento entoativo quando, justamente, é substituído por outro
conteúdo, “essa oração” (unidade entoativa 10*), no encerramento da canção, com supressão
da unidade entoativa 9 (“cabe nós dois”). Essa substituição do paradigma (“o meu amor”, ou

6
Cf. BARROS, 2008, p. 33.

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“nós dois”, por “essa oração”) no eixo do sintagma (“cabe ...”), reforçada pela expectativa
criada na estrutura musical insistentemente repetitiva, provoca a percepção de ruptura, mas
também de equivalência (poética) entre os termos. Às expressões “o meu amor” e “nós dois”
passa a corresponder a expressão “essa oração”, criando o efeito de aproximação semântica:
afinal, a oração atua em benefício do amor, ligação do interlocutor com o interlocutário.

Análise do plano musical e dos recursos entoativos


Procederemos, agora, à análise do plano musical da canção, a partir da audição do
fonograma. Do ponto de vista da macroforma, canção pode ser dividida basicamente em duas
partes: uma introdução e o tema, consistindo da repetição constante da mesma parte, e da
repetição ao fim com uma alteração adicional. Como nos interessa estabelecer algumas
observações de arranjo em relação à canção, convencionamos para as partes assinaladas que a
ocorrência padrão será designada pela letra A maiúscula, seguida da numeração relativa à
ordem (ex.: A2 é a segunda ocorrência de A; A’ é uma ocorrência com modificação no último
verso, gerando a unidade entoativa 10*). Com isso, a estrutura de macroforma da canção
pode ser graficamente representada a seguir:

Figura 1 – Estrutura de macroforma de “Oração”

Introdução Tema: A1 – A2 – A3 – A4 – A5 – A6 – A7 – A8 – A’

Fonte: Elaborada pelo autor.

Observando a Figura 1, compreendemos que o arranjo da canção valoriza a repetição


do tema, apresentando, apenas, uma breve introdução dedilhada ao violão como elemento
anterior, e uma pequena modificação final como elemento de fechamento. Todo o resto da
canção consiste na repetição de mesma letra e melodia.
Como contraponto ao processo iterativo evidente, o arranjo atua para criar variações
de interpretação e de atmosfera sonora em cada ocorrência da letra. As variações de densidade
e intensidade do arranjo são sintetizadas abaixo:

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Tabela 1 – Evolução do arranjo na canção “Oração”


Ocorrência Execução
do tema
A1 Voz masculina. Densidade baixa (voz e violão).
Pouca intensidade sonora.
A2 Voz masculina e feminina. Aumento de densidade
(duas vozes e violão, com dedilhado mais “cheio”
e entrada de acordeom a partir do segmento 6).
Aumento da intensidade sonora.
A3 Voz masculina e feminina. Aumento de densidade
(duas vozes e violão, acordeom e entrada do
baixo; a partir do segmento 6, baixo fica mais
marcado e acompanha pulsação de bumbo).
Aumento da intensidade sonora.
A4 Voz masculina e feminina. Aumento de densidade
(duas vozes e violão, acordeom, baixo pulsante,
bumbo e acompanhamento de novo instrumento
ao fundo, com execução semelhante ao violão da
introdução; após segmento 6, sons de flauta,
aumento da presença do som de acordeom,
intensificação do ritmo e da percussão). Aumento
da intensidade sonora.
A5 Voz feminina em stacatto e redução da densidade
na primeira parte. Depois do segmento 6, mais
vozes (em linhas de backing vocals), presença de
teclado e salto na densidade e na intensidade.
Entrada de acordeom.
A6 Voz feminina e masculina. Pequena redução de
intensidade na primeira parte. Depois do
segmento 6, entrada de vozes em coro e de bateria
com forte marcação. Elevação de densidade e
intensidade.
A7 Voz feminina e masculina. Vozes em coro.
Bateria com forte marcação. Entrada de baixo em
notas contínuas. Entrada de guitarras em acordes.
Manutenção da densidade.
A8 Voz feminina e masculina. Vozes em coro.
Bateria com forte marcação. Baixo em notas
contínuas. Cama de guitarras dedilhadas. Ponto
máximo de densidade e intensidade.
A’ Redução abrupta da densidade: nenhum
instrumento e coro de vozes. Supressão da
unidade entoativa 9. Adição da unidade entoativa
10*
Fonte: Elaborada pelo autor.

A observação das ocorrências do tema na Tabela 1 mostra paulatina evolução na


intensidade e na densidade da canção, atingindo o ápice na ocorrência A8, com a
descontinuidade na ocorrência do canto a capella em A’, que tem a função de fechamento do
fonograma. Aos poucos, somam-se novos timbres, adicionados aos anteriores no arranjo

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(baixo, acordeom, teclados, com a guitarra, instrumento de timbre impactante, aparecendo ao


fim). O jogo de vozes, no entanto, segue uma linha ascendente de aumento de densidade até o
fim. A partir da ocorrência A6, a identificação das vozes masculina e feminina perde-se em
meio ao coro /, que multiplica os timbres e remete a um canto coletivo em uníssono.
As observações sobre a macroforma e a estrutura geral do arranjo apontam para duas
direções de sentido na canção, que se complementam. Uma é a circularidade da mensagem,
associada à constância das repetições e ao vínculo entre o último e primeiro versos nas
transições entre elas. Outra é a evolução dentro dessa circularidade, que se associa ao
aumento paulatino de intensidade e densidade instrumental no decorrer do fonograma, e à
ampliação do corpo de vozes, que se mantém constante até o final.
Esses dados sobre o arranjo já oferecem pistas para detecção do modelo de
compatibilidade entre letra e melodia por meio do qual “Oração” se estrutura. Do ponto de
vista musical, predomina, na canção, a tematização. Enquanto modo de compatibilizar letra e
melodia, a tematização apresenta as seguintes características:

Uma integração baseada num processo geral de celebração. Na letra, exalta-se a


mulher desejada, a terra natal, a dança preferida, o gênero musical, uma data, um
acontecimento, enquanto na melodia manifesta-se uma tendência para a formação de
motivos e temas a partir de decisões musicalmente complementares: aceleração do
andamento, valorização dos ataques consonantais e acentos vocálicos
(consequentemente, redução das durações) e procedimentos de reiteração. Esta
última funciona como agente moderador do andamento rápido, pois instala uma
previsibilidade musical que refreia o ímpeto melódico. Primeiramente, as sucessivas
caracterizações do objeto enaltecido na letra ressoam na recorrência dos motivos
melódicos. Depreendemos uma enumeração ao mesmo tempo linguística e
melódica. Mas o que torna mais convincente a integração das duas faces é a relação
de identidade do sujeito (um personagem caracterizado na letra ou o próprio
enunciador) com os valores atribuídos ao objeto, identidade essa que se reproduz na
semelhança dos temas sonoros emitidos durante o canto. (TATIT; LOPES, 2008, p.
18-19)

Podemos verificar, no decorrer da análise, que vários elementos evidenciam a


tematização como estratégia de compatibilidade em “Oração”. A letra se organiza em torno de
repetições constantes, há poucos e pequenos saltos intervalares e há células que estabelecem
iterações na audição do enunciatário, aparecendo como temas que se repetem. Outros
elementos ratificam essa classificação, como as enumerações e a pequena amplitude de
tessitura, conforme adiante.
Por outro lado, a própria organização musical cede vez a segmentos de letra que se
expandem ou retraem de acordo com a necessidade de encaixe na melodia, mostrando a
persistência da força dos modos de dizer. Assim, os segmentos entoativos, embora possuam

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desenhos que remetam ao aproveitamento de células melódicas, acabam tornando-se


diferentes entre si, sugerindo uma organização do conteúdo da letra que cede à lógica
entoativa em diversos pontos. Essas observações podem ser corroboradas pela apresentação
da canção transcrita em modelo adaptado para a análise.
Cabe, neste ponto, apresentar os princípios de transcrição da melodia adotados neste
trabalho, que diferem tanto da partituração quanto do registro em tablatura. A semiótica da
canção, cuja base teórica foi estabelecida, no Brasil, pelo trabalho do pesquisador e
cancionista Luiz Tatit, teve como principal conquista teórica a ampliação das possiblidades de
abordagem por meio da consideração das inflexões entoativas como elemento central de
investigação. Para Tatit, musicalidade e fala são importantes para compreender o valor
estético e a estratégia persuasiva das canções. A musicalidade age de forma a estabilizar os
segmentos de fala e as entoações que os acompanham, fixando ascendências, descendências,
iterações e saltos nas linhas vocais das canções. Como aquilo que a canção diz não está
dissociado do modo de dizer em fala natural, as inflexões entoativas construídas a partir de
variações melódicas criam soluções que podem ser assimiladas como apelos, afirmações,
questionamentos, dúvidas, chamamentos etc. Segundo Luiz Tatit:

A forma musical e a força entoativa sempre disputaram espaço na composição de


canções. Quando a proposta musical é também uma proposta vocal, sempre
ouvimos, paralelamente ao canto, frases melódicas que nos reportam de imediato à
linguagem oral e suas modulações expressivas conhecidas como entoações. Afinal,
todos nós, músicos e leigos, convivemos com as entoações que trazem movimento e
direção à sonoridade da fala, e sabemos interpretá-las como afirmações, perguntas,
hesitações, exclamações, interpelações, ironias, enumerações e outros incontáveis
matizes que vivificam nossa comunicação cotidiana e dão realces especiais ao
conteúdo do texto. O fato de ampliarmos as atribuições da voz, destacando-a
também para o canto, jamais a desvincula de seus usos corriqueiros nem de seus
recursos expressivos primários. (TATIT, 2016, p. 45)

Para recuperar, na análise da canção, as estruturas entoativas, torna-se necessário


estabelecer uma solução gráfica que facilite sua visualização. Nos primórdios da semiótica da
canção, considerou-se que a melhor forma de mostrar as curvas de inflexão das melodias seria
a construção de diagramas melódicos cromáticos, nos quais cada linha representaria um
semitom dentre os doze da escala ocidental tradicional. Esses diagramas abstraem as durações
e os ritmos das frases cantadas, focando apenas suas curvas melódicas. Ocorre que, a despeito
de sua eficiência para o fim de transcrição, os diagramas muitas vezes são considerados de
difícil compreensão para leigos em música ou semiótica. Luiz Tatit, em trabalhos recentes,
procurou simplificá-los e, em Estimar canções, já não apresenta as tabelas construídas com

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linhas horizontais. Em lugar disso, Tatit adotou elementos mínimos, que facilitam ainda mais
a observação das curvas melódicas.7
O sistema de transcrição mais recente utilizado por Tatit é o que aplicamos à letra de
“Oração”, adicionando pequenas alterações adaptativas. Nesse modelo, cada linha está
associada a uma nota musical. As incidências de voz sobre as notas musicais aparecem em
forma de sílabas que ocupam, nas linhas correspondentes, o lugar da notação. As diferenças
de altura entre duas sílabas são preenchidas com os sinais \ ou /. Quando as sílabas distintas
são entoadas como notas subsequentes e idênticas, elas são grafadas na sequência
convencional da palavra, sem outra indicação. Os segmentos verbais são divididos conforme a
organização do canto, constituindo segmentos entoativos. Cada segmento entoativo é
delimitado pelo sinal //.
De acordo com esses princípios de transcrição, seguem as partes do tema único da
canção, seguidas de observações analíticas. A primeira parte corresponde aos segmentos 1, 2
e 3, incluídos na figura 2, adiante:

Figura 2 – Oração – segmentos 1, 2 e 3

Fonte: Elaborada pelo autor.

Na transcrição, operam como indicativos visuais adicionais à linha vermelha, que


mostra a nota tônica da melodia da canção (Ré Maior), e a elipse sobre o primeiro verso,
indicando o vocativo. Nessa primeira aproximação com as figuras, já podemos perceber
alguns dados significativos. A extensão da tessitura é bastante reduzida, o que de saída já
indica pouco espaço para saltos intervalares amplos (e reforça-se o caráter temático da
canção). O maior salto intervalar é de quatro semitons, indicando uma linha melódica mais

7
Cf. a análise de Feitiço da Vila e os recursos visuais empregados (TATIT, 2016, p. 78-81).

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“horizontal”, voltada mais à apresentação dos temas que às intensidades emocionais. As


finalizações dos segmentos entoativos são, em geral, ascendentes e não coincidentes com a
nota tônica. O efeito dessa flutuação confirma as tendências apontadas na análise do arranjo e
da letra. Os segmentos entoativos com elevação no final assumem caráter prossecutivo, ou
seja, indicam expectativa de resolução posterior e sensação de que a melodia não terminou.
Da mesma forma, a finalização dos segmentos em nota não tônica faz com que a melodia não
retorne a seu ponto de “descanso” natural, ampliando a sensação de necessidade de resolução
posterior.
Em relação à Figura 2, também é válido observar que as notas mais agudas estão
associadas à enunciação do vocativo “meu amor”; aqui, a flutuação musical respeita os modos
de fala cotidiana, nos quais a melodia do vocativo distingue-se da melodia do restante das
frases por ocupar outra região tonal. Há, também, pelo modo de inflexão, caráter apelativo no
chamamento, revelado pela exploração do limite mais alto da tessitura.8 Essa mudança de
região, confirmada em todas as ocorrências do tema, constrói a percepção de chamamento
mesmo quando, gramaticalmente, “meu amor” funciona como objeto direto.
As Figuras 3, 4 e 5 apresentam a segunda parte do tema único da canção:

Figura 3 – Oração – segmentos 4 e 5

Fonte: Elaborada pelo autor.

8
Procedimento similar ao da canção “Volta”, de Lupicínio Rodrigues. Cf. TATIT, 2012, p. 146.

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Figura 4 – Oração – segmentos 6, 7 e 8

Fonte: Elaborada pelo autor.

Figura 5 – Oração – segmentos 9, 10 e 10*

Fonte: Elaborada pelo autor.

Nas Figuras 3, 4 e 5, podemos observar que a tendência de resolução dos segmentos


em elevação permanece constante, a não ser para os segmentos 5 e 8, em que há também
resolução na nota tônica, e para o segmento 10*, que só aparece na ocorrência de A’, no final
da canção. A manutenção dessa tendência conforme as observações sobre prossecução e
circularidade realizadas em relação à Figura 2.
A Figura 3 traz uma variação constante da linha melódica entre duas notas, para um
segmento verbal extenso. Esse tipo de variação caracteriza maior aproximação da melodia
entoativa às melodias da fala natural, aumentando o efeito de locução do que é dito. Com isso,
os segmentos 4 e 5 podem ser reconhecidos mais facilmente como conselhos ou afirmações
gerais.
Nas Figuras 4 e 5, a sequência de elevações da curva melódica incide sobre os
complementos do verbo “caber” (“o meu amor”, “três vidas inteiras”, “nós dois”). A iteração
melódica tem correspondência com a iteração verbal. Nesse trecho, acontece uma enumeração
daquilo que cabe no coração do interlocutário. A ideia de sequência encontra, com a repetição

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de células de elevação do tom, recurso de expressão condizente com o sentido tanto na


melodia quanto na letra.
O segmento 8, que faz parte da sequência de itens enumerados, deve ser percebido
dentro de outra lógica, mais ligada à tendência prossecutiva geral da canção. Nele, embora a
finalização seja descendente, há uma forte ascendência no interior da frase, recuperando
tensão em relação à descendência mais acentuada de todo o tema. Essas descidas amplas de
tom dão caráter mais fortemente asseverativo à frase, mas o conteúdo verbal parece ser o
menos solene possível, com a afirmação de que “cabe uma penteadeira” (objeto material
cotidiano) no coração do interlocutário. Com isso, o segmento não assume caráter de
afirmação peremptória no contexto da letra, embora sua entoação encaminhe essa percepção.
O resultado dúbio impede a sensação de finalização, de fechamento da letra e da melodia.
O segmento entoativo 10, que aparece na Figura 5, caracteriza-se melodicamente
como passagem preparatória para o retorno do tema, pois não oferece nenhum ganho de
tensão, permitindo que isso ocorra apenas no segmento 1 que, como vimos, funciona tanto
como complemento verbal do 10, quanto como vocativo e indicador do direcionamento da
oração. Na última execução do tema (A’), sem acompanhamento instrumental e com coro de
vozes, o sentido de finalização fica bastante evidente no segmento 10*, uma vez que a frase
musical só oferece uma elevação de grau conjunto, mínimo ganho de tensão para o
fechamento. A melodia das vozes ganha destaque em função do arranjo, que, eliminando os
instrumentos de acompanhamento, estabelece densidade mínima para esse momento. O canto
a capella também tem como função aproximar a execução da voz oracional, cantada ou
recitada, característica de cerimoniais religiosos.
Considerando as características que se repetem para a maioria dos segmentos da
canção, a melodia parece deixar em suspenso a afirmação categórica final, ou o encerramento
das enumerações que realiza. Com isso, a frase anterior está sempre anunciando a frase
posterior, o que as imbrica em uma relação de continuidade. Nas repetições, o último
segmento já aparece ligado ao primeiro; assim, a tensão não se resolve, e a continuidade do
segmento entoativo dentro do tema transforma-se em elo para continuidade das ocorrências
do tema, contribuindo para a percepção de um tempo circular, cíclico, sempre retornando ao
início. Mesmo em relação aos segmentos 5 e 8, que não são encerrados com a elevação do
tom, importa notar que o retorno à tônica na última nota não coincide com a sílaba tônica das
palavras cantadas (dis-PEN-sa, pentea-DEI-ra), o que minimiza o relaxamento da tensão
nesses pontos específicos (ou seja, mantém ainda alguma tensão de resolução).

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Em síntese, a análise do plano musical coloca em destaque elementos de sentido


imprescindíveis para compreensão dos sentidos do fonograma. Em primeiro lugar, evidencia-
se a circularidade do arranjo, com as repetições do tema; a organicidade dos segmentos
entoativos de caráter prossecutivo, a finalização em grau acima da nota tônica, e a ligação
entre o segmento 10, de passagem, e o caráter vocativo do segmento 1 reforçam a sensação de
ciclo, de tensão não resolvida. A circularidade da interpretação abriga, em sua estrutura,
diferenças de intensidade e densidade que caracterizam uma curva de ascensão de intenção,
descontinuada pela última execução do tema. Há, assim, uma oscilação de elã, em que a
canção gradualmente assume características de dança e de apelo em comunhão. O coro de
vozes estende o sentido coletivo do canto até a parte não dançante, que encerra o arranjo.

Considerações finais
Os recursos verbais e musicais analisados mostram como a simplicidade de letra e
melodia em “Oração” são complexificadas dentro da estrutura do fonograma e estabelecem
um jogo entre os sentidos convencionais e a irreverência da proposta musical construída pelos
autores-intérpretes. Trata-se de uma canção que valoriza os temas, realiza enumerações na
letra e estrutura-se a partir de células rítmicas repetitivas na melodia. De forma complementar,
explora recursos entoativos, como o apelo, o chamamento e a suspensão. Essas características
contribuem para criar as continuidades e confirmar as expectativas do ouvinte, desacelerando
a percepção e aproximando-se das estruturas convencionais. Por outro lado, a circularidade e
iteratividade, presentes na relação entre melodia e letra, são desafiadas pela estrutura de
arranjo, na qual as repetições do tema, que o transformam em uma espécie de refrão puro, são
executadas com intensidade e densidade crescentes, fatores que aceleram a percepção, por
oferecerem, a cada ocorrência, dados novos para o enunciatário. Essa duplicidade de sentidos
associa-se à proposta de construção da oração por meio do material sonoro e musical do
fonograma. A urgência solene do apelo, que remete à força do elemento religioso,
convencional, recebe tratamento formal que valoriza sua mensagem com a repetição, mas ao
mesmo tempo desvirtua sua sisudez por meio da elevação de intensidade gradual, que leva do
tímido apelo pessoal à celebração coletiva. A irreverência atua, assim, sobre a reverência, de
forma a transformar “Oração” em canção genuinamente representativa do álbum em que está
incluída: há a descontinuidade do inusitado, a continuidade do cotidiano e a leveza da
irreverência bem-humorada como competente costura estética do todo.

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