Você está na página 1de 21

Quando cada caso NÃO é um caso

Pesquisa etnográfica e educação*

Claudia Fonseca
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Trabalho apresentado na XXI Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, setembro de 1998.

Introdução Na filosofia de “Cada caso é um caso”, exigiriam


de si mesmos um olhar atento às circunstâncias par-
“Cada caso é um caso” é um lema que ouço ticulares de cada aluno, de cada parturiente, de cada
freqüentemente nos corredores de serviços públicos paciente. Em princípio, não haveria como brigar
— entre assistentes sociais, enfermeiras, psicólogos, com a sabedoria de tal disposição.
juízes e professores. É usado habitualmente por pes- É interessante e até gratificante notar que a
soas que mostram grande sensibilidade aos fatos frustração com tipologias massificantes e teorias
concretos a sua frente e que demonstram um espí- sumamente abstratas tem levado muitas pessoas a
rito crítico diante de estereótipos do senso comum. procurar na antropologia e, em particular, no mé-
De forma inquestionavelmente salutar, usam essa todo etnográfico uma nova “solução” para seu di-
frase (“Cada caso é um caso”) para rejeitar precon- lema profissional — um tipo de elo perdido que
ceitos sobre “nordestinos”, “caboclos”, “negros” ajudaria a fechar a lacuna entre a teoria e a reali-
ou, simplesmente, “pobres”. Este mesmo espírito dade. A etnografia é calcada numa ciência, por ex-
crítico, em muitos casos, serve até para questionar celência, do concreto. O ponto de partida desse mé-
a aplicabilidade de teorias livrescas, para sublinhar todo é a interação entre o pesquisador e seus obje-
o fato de que a realidade não se encaixa facilmente tos de estudo, “nativos em carne e osso”. É, de certa
nos tipos ideais propostos nos manuais escolares. forma, o protótipo do “qualitativo”. E — melhor
Mediante sua prática profissional, os agentes sociais ainda — com sua ênfase no cotidiano e no subjeti-
aprendem a desconfiar de fórmulas pré-fabricadas. vo, parece uma técnica ao alcance de praticamente
todo mundo, uma técnica investigativa, enfim, in-
* Agradeço aos colegas do GT “Educação e Socieda-
teligível para combater os males da quantificação.
de” da ANPEd (Caxambu, 1998), que me deram a oportu- Como antropóloga, e tendo dedicado a maior
nidade de apresentar e debater com eles este trabalho. parte da minha carreira a pesquisas nessa área, con-

58 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Quando cada caso NÃO é um caso

fesso que compartilho do entusiasmo pelo “méto- recer alguns pontos. Para tanto, tentarei mostrar
do etnográfico”. Acredito que, além de ser um ins- que, embora se remetam ambos a uma perspectiva
trumento importante para a compreensão intelec- “qualitativa”, a filosofia de “cada caso é um caso”
tual de nosso mundo, também pode ter uma utili- e o método etnográfico não são equivalentes. A in-
dade prática. Penso aqui na educação — a educa- sistência — na visão antropológica — no aspecto
ção enquanto ato de comunicação, de diálogo, e — social de comportamento leva à procura por siste-
eventualmente — de orientação (Fonseca, 1994). mas que vão sempre além do caso individual. Nes-
Meu interesse aqui é pensar o método etnográfico sa primeira parte de meu trabalho tentarei mostrar
como instrumento que pode enriquecer a interven- os equívocos de um método etnográfico truncado,
ção educativa — quer seja de um professor com seus isto é, que se fecha em técnicas e orientações teóri-
alunos da terceira série, a enfermeira com seu pa- cas que realçam o indivíduo às custas da análise
ciente ou o assistente social com seu cliente. Em social. Na segunda parte, farei uma demonstração
todos os casos, o sucesso do contato educativo de- metodológica mostrando como, a partir dos dados
pende do diálogo estabelecido entre o agente e seu empíricos da minha própria pesquisa em grupos
interlocutor, e é nessa área de comunicação que o populares urbanos, chego do particular ao geral. A
método etnográfico atua. discussão fecha-se com ressalvas quanto aos exage-
Neste sentido, colocamo-nos na linha de uma ros possíveis da perspectiva sociológica. Enfim, o
antropologia semiótica (Geertz, 1978 e 1985; Dou- método etnográfico é visto como o encontro tenso
glas, 1994). Na pesquisa de campo, queremos an- entre o individualismo metodológico (que tende pa-
tes de tudo entender o que “está sendo dito” por ra a sacralização do indivíduo) e a perspectiva so-
nossos interlocutores. É possível que, em certas si- ciológica (que tende para a reificação do social).
tuações, as duas partes do processo comunicativo
falem exatamente a mesma linguagem propiciando Além da dimensão individual
um entendimento perfeito. No caso da intervenção
educativa, por falar em geral a mesma língua pá- O “qualitativo” e o “reflexivo”:
tria (nesse caso, português) que seus “clientes”, o engodos do método
educador nutre a ilusão de estar se comunicando
bem. Mas o antropólogo trabalha a base da premis- Permitam-me aqui fazer uma pequena regres-
sa de que o processo comunicativo não é tão sim- são para a área propriamente acadêmica. Tive o
ples assim — que, em muitas situações, por causa prazer de participar recentemente de diversas ban-
de uma diferença em faixa etária, classe, grupo étni- cas de alunos em áreas afins da antropologia: edu-
co, sexo ou outro fator, existe uma diferença sig- cação, psicologia e comunicação. Nessas situações,
nificativa entre os dois universos simbólicos capaz sou convidada porque o candidato em questão pro-
de jogar areia no diálogo. Em outras palavras, a an- põe usar o método etnográfico na sua pesquisa.
tropologia procura criar dúvidas, levantando hipó- Olhando para essas teses, vejo algumas representa-
teses sobre os hiatos e assimetrias que existem entre ções que existem por aí sobre a “etnografia” e nem
nossa maneira de ver as coisas e a dos outros. Tra- sempre consigo me achar nelas.
ta-se de um viés que ora pode nos levar a dar com Um primeiro critério que leva as pessoas a clas-
os burros na água, ora pode abrir o caminho para sificar sua pesquisa como “etnográfica” parece ser
descobertas inovadoras. Não é aconselhável para o pequeno número de sujeitos contemplados nos da-
toda e qualquer situação mas, quando é aplicado, dos. Propõe-se fazer uma análise intensiva de pou-
temos interesse em aplicá-lo de forma competente. cas pessoas. O tamanho restrito do universo é justi-
No interesse de garantir essa competência no ficado pela natureza qualitativa da análise e, para
método etnográfico, considero fundamental escla- isso, citam-se precedentes na literatura antropoló-

Revista Brasileira de Educação 59


Claudia Fonseca

gica. Num caso que tenho em mente, a aluna entre- vem a reboque das hipóteses teóricas, e é neste sen-
vistou separadamente homem e mulher de três ca- tido que os informantes devem ser “representativos”.
sais diferentes sobre expectativas em torno do pa- No segundo tipo de pesquisa, essa relação é pratica-
pel paterno. O vínculo que estabeleceu com os infor- mente invertida. Feita a observação, o pesquisador
mantes assim como a intimidade da situação quase procura definir quais as generalizações possíveis.
terapêutica das entrevistas permitiram que ela abor- Num exemplo clássico da antropologia de so-
dasse temas ligados à emoção e sentimento. Certa- ciedades complexas, vemos como Elizabeth Bott, em
mente essa pesquisadora conseguiu dados interes- Londres na década de 50, passou por inúmeras es-
santes sobre algumas situações e atitudes da vida fa- colas, clínicas e igrejas para achar vinte famílias que
miliar contemporânea. O único problema é que, por aceitariam participar de sua pesquisa sobre “Família
escrúpulos éticos, isto é, por medo de seus informan- e redes sociais” (Bott, 1976). Só depois de analisar
tes serem identificados por leitores eventuais, ela é seus dados, Bott conseguiu encaixar cada família
muito parcimoniosa com informações quanto à pro- numa tipologia que levava em consideração fatores
veniência, o local de residência (tipo de bairro, tama- tais como profissão, educação, mobilidade geográ-
nho da cidade) e a profissão deles! Informação so- fica etc. Hoje, não há cientista social que não co-
bre as idades é fornecida em termos tão gerais (“os nheça a “família Newbolt”, família operária mo-
informantes têm entre 23 e 55 anos...”) que é quase rando há longos anos no mesmo bairro — protóti-
impossível classificar qualquer um dos informantes po da “rede de malha estreita” e “papéis sexuais
em termos sociológicos. Foram criados onde? Tive- segregados”. Mas essa associação entre fatores so-
ram que tipo de educação? Pertencem a que geração? cioeconômicos e formas de organização familiar só
A que classe? Enfim, faltam ganchos para saber co- veio à tona depois de a pesquisadora ter lido e reli-
mo formular qualquer generalização baseada des- do seus dados. É interessante notar que a pesqui-
ses dados. sadora formula sua análise a partir das diferenças
Ora, a representatividade dos sujeitos pesqui- entre seus entrevistados. Não encarava seu univer-
sados não é tratada na etnografia da mesma forma so como um todo homogêneo (pressupondo que
que o é em outros ramos das ciências sociais (Zaluar, “todos os chineses se parecem”). Percebeu a parti-
1975; Becker, 1994). Nas análises usuais destes, os cularidade dos casos diferentes e soube usar essas
“informantes” são cuidadosamente escolhidos con- particularidades para aprofundar a análise.
forme critérios (muitas vezes estatísticos) formula- Em outro exemplo clássico, Sidney Mintz tece
dos de antemão; devem ser “representativos” das sua análise em torno da história de vida de um só
categorias analíticas (e/ou tipos ideais) usadas na porto-riquenho, Taso. Porém, nunca sugere que seu
formulação inicial do problema. O particular é usado protagonista seja mecanicamente representativo da
para ilustrar ou testar alguma afirmação geral. Por totalidade dos nativos. Aproximou-se de Taso du-
outro lado, na antropologia clássica, o pesquisador rante a pesquisa de campo não por algum critério
escolhe primeiro seu “terreno” e só depois procura “objetivo”, mas por afinidades pessoais. Ao com-
entender sua representatividade. Chega ao campo parar essa figura com parentes e vizinhos, o leitor
com algumas perguntas ou hipóteses, mas é sabido vê ora pontos de encontro que sublinham semelhan-
que estas devem ser modificadas ao longo do con- ças entre as pessoas, ora divergências que ressaltam
tato com os sujeitos pesquisados. Muitas vezes o individualidades. É nesse vaivém que se resgatam
“problema” enfocado sofre uma transformação ra- as sutilezas da análise social. Cabe lembrar que o
dical em função de preocupações que só vêm à tona pesquisador já tinha mais de um ano de contato
através da pesquisa de campo. É o dado particular etnográfico com todo tipo de pessoa no território
que abre o caminho para interpretações abrangentes. de sua pesquisa antes de iniciar o trabalho intenso
No primeiro tipo de pesquisa, a pesquisa empírica com Taso. Reconhecia a complexidade do contex-

60 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Quando cada caso NÃO é um caso

to e soube fazer falar a vida de seu protagonista, que a subjetividade do autor/pesquisador é assumi-
sujeita às mesmas influências históricas de toda uma da como um componente essencial da análise. Lem-
geração de “operários de cana”, sem que este dei- bro de uma dissertação em particular na qual o es-
xasse de ser um indivíduo singular (Mintz, 1974). tudante, depois de mais de cem páginas discorren-
Finalmente, podemos citar o trabalho do an- do sobre a reflexividade no método etnográfico,
tropólogo brasileiro Gilberto Velho, que, basean- tenta demonstrar sua teoria com uma breve “pes-
do-se nos relatos de cinco entrevistados, discorre quisa de campo”. Trabalha com um só informante
sobre a paixão amorosa nas camadas médias altas — uma professora aposentada a quem visita repe-
do Rio de Janeiro (Velho, 1989). Neste caso, o pes- tidas vezes durante a metade dum ano. Geralmen-
quisador escolhe informantes de seu próprio univer- te a sós com seu objeto de pesquisa, o pesquisador
so, profissionais liberais e professores universitários, observa a decoração da casa, a disposição dos mó-
seguindo numa linha de investigação que desenvol- veis e outros detalhes da vida cotidiana que podem
ve há muitos anos. Sua familiaridade com esse uni- ser garimpados do ambiente fechado do apartamen-
verso não o impede, no entanto, de caracterizar es- to. Desta vez, temos algumas informações sobre o
sas pessoas em termos de profissão, ascensão social, lugar social da informante — fornecidas principal-
afinidades políticas, experiência de psicanálise e, es- mente a partir de sua narrativa autobiográfica. Mas
pecialmente, redes familiares. Com um olhar com- ela é apresentada em quase total isolamento de qual-
parativo, alimentado por vastas pesquisas bibliográ- quer relação social. Um velho pai, umas irmãs que
ficas, ele consegue distanciar-se de seu próprio uni- moram perto, sua professora de desenho — mere-
verso para constituí-lo em termos sociológicos e cul- cem cada um uma frase só. Afinal, sem saber mais
turais. Enfim, nesses exemplos etnográficos, os in- sobre como esta senhora se insere no mundo, o lei-
formantes não foram escolhidos por serem estatis- tor acaba por transformá-la numa figura sem ros-
ticamente representativos de algum tipo ideal. Mas, to — um ser humano genérico.
para o pesquisador tirar qualquer conclusão de seu Contrariando a prioridade declarada da pes-
material, foi necessário situar seus sujeitos em um quisa, não aprendemos muito quanto à subjetivida-
contexto histórico e social. É só ao completar esse de dos indivíduos envolvidos — nem da pesquisada
movimento interpretativo, indo do particular ao nem do pesquisador. Este descreve seu constrangi-
geral, que o pesquisador cria um relato etnográfi- mento cada vez que a entrevista descamba para te-
co. Sem esta “contextualização” (um tipo de repre- mas emocionais. Já que nota lágrimas iminentes
sentatividade post ipso facto), o “qualitativo” não quando a professora fala de seu ex-marido, nosso
acrescenta grande coisa à reflexão acadêmica. pesquisador passa a evitar o assunto. Recua diante
Voltando agora àquela dissertação sobre pa- de indagações feitas sobre sua própria pessoa. Tenta
péis paternos, podemos dizer que a autora, sem nos expressar opiniões neutras e faz-se de surdo quan-
fornecer um mínimo de detalhes sobre o “lugar” so- do recebe solicitação por conselhos. Quando a re-
ciológico/histórico dos seus entrevistados, parece lação pesquisado/pesquisador parece estar chegan-
estar lidando com “A Mulher” e “O Homem” — su- do a um nível de identificação mútua, o autor da
jeitos eternos e ahistóricos. Tais conclusões podem dissertação descreve como resolve seguir, nas pró-
ser interessantes para outras disciplinas — a filoso- ximas visitas, com um tom mais seco, “para não
fia ou psicologia, por exemplo. Mas não se encai- perder controle da situação”.
xam nas ciências sociais e não contribuem para uma (Vocês imaginem minha perplexidade. Pági-
compreensão sócio-histórica de nossa realidade. nas e páginas de uma discussão sumamente sofisti-
Um segundo motivo que leva os colegas de ou- cada sobre a subjetividade como novo paradigma
tras áreas a classificar seu trabalho como “etno- de pensamento científico para chegar a essa “pes-
gráfico” diz respeito à noção de reflexividade, em quisa de campo”... na qual o pesquisador parece se

Revista Brasileira de Educação 61


Claudia Fonseca

esconder mais do que nunca atrás do avental bran- Mas a idéia é que podemos aprender uns com os er-
co do cientificismo. O descompasso entre teoria e ros dos outros. O tipo de descompasso teórico-me-
método não poderia ser mais gritante.) todológico que descrevo aqui não é incomum en-
Nesta dissertação, a reflexividade parece ma- tre acadêmicos e, o que é mais relevante, entre agen-
terializar-se apenas no modo confessional — co- tes sociais que propõem usar técnicas etnográficas
mentários sobre o estado de alma do indivíduo fa- na sua prática profissional. É, de fato, típico de si-
zendo a pesquisa. Somos informados quanto ao seu tuações que exigem uma reflexão interdisciplinar.
mal-estar diante dos silêncios na conversação, seu Resumimos o problema assim. Por causa do
tédio com tantos assuntos “banais” de conversa, seu valor central do indivíduo em nossa sociedade, es-
desconforto diante da formalidade de uma janta pelhado em toda uma corrente de pensamento cien-
oferecida por sua anfitriã... e, muito ocasional- tífico (o individualismo metodológico), existe, en-
mente, seu encanto quando consegue se entregar ao tre nossos estudantes, uma forte tendência a isolar
aconchego da cozinha e descobre, com surpresa, que o indivíduo de seu grupo social. A “pesquisa de
uma professora aposentada semelhante a suas tias campo” se reduz a entrevistas quase terapêuticas
pode ser interessante. O que não vemos nunca é a entre apenas duas pessoas. Existem ramos científi-
revelação do autor como ser social. Não somente cos (da psicologia até as ciências cognitivas) que
esconde essa identidade da informante, mas também fornecem orientações para a análise de tal situação.
do leitor. Em momento algum ele vai além da con- Dentro das ciências sociais, há volumes escritos so-
fissão para tentar analisar os valores que subjazem bre como tirar pleno proveito da situação de entre-
seus humores. Inferimos da situação que nosso au- vista (quer sejam sobre etnometodologia, história
tor é um estudante universitário, com cerca de 25 de vida ou análise de discurso) Mas — no clima
anos, provavelmente de sexo masculino. Mas, so- iconoclasta atual — essas abordagens são rejeita-
bre essa categoria de indivíduo, não aprendemos das por boa parte dos antigos adeptos em prol de
grande coisa. Será que por causa de sua própria algo considerado mais “aberto”: o método etnográ-
história de vida — sua origem socioeconômica, sua fico. O problema é que a etnografia não é tão “aber-
idade ou geração — ele teria simpatia ou antagonis- ta” assim, pois faz parte das ciências sociais e exi-
mo especial pelo modo de vida que está investigan- ge o enquadramento social (político, histórico) do
do? O autor dessa dissertação insiste em descrever comportamento humano. Quando estudantes de
exaustivamente “o lugar epistemológico” de onde educação (ou comunicação ou medicina etc.) sol-
fala. Para tanto cita com suma competência Boa- tam as amarras de suas tradições disciplinares e se
ventura Santos, Bourdieu, Peirce e Clifford Geertz. atiram na direção da antropologia sem preparação
Mas sua epistemologia é depurada do contexto po- adequada, podem, em vez de realizar uma costura
lítico e social. Aqui, o intelectual desencarnado, interdisciplinar, cair no vazio — um território nem
ahistórico, faz um par perfeito para seu objeto de lá, nem cá, onde o que mais floresce é o senso co-
estudo, acasalando o jovem existencialista com o ser mum da cultura do pesquisador.
humano genérico. “Cada caso é um caso” é uma expressão que,
Trago esses comentários críticos não para de- em muitas situações, vem a calhar. Mas meu temor
sencorajar estudantes neófitos querendo se aventu- com seus excessos deve estar-se tornando mais cla-
rar no método etnográfico. (Pelo contrário, admi- ro. “Cada caso é um caso” justifica a rejeição de so-
ro sua ousadia e torço que persistam no seu cresci-
mento bem além de seus professores e críticos. 1)
cia avança mais pelos erros do que pela confusão. Ao que
tudo indica, a tarefa do professor é de ajudar a transformar
1 Lembramos o ditado de Francis Bacon de que a ciên- a confusão do estudante em erro.

62 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Quando cada caso NÃO é um caso

luções pré-fabricadas. E então? O que vem depois? temente esquecida quando os pesquisadores redu-
Com quais instrumentos vamos tentar apreender e zem a pesquisa qualitativa a um encontro de psyches
compreender a realidade diante de nós? Com a in- individuais, e quando o agente social afirma que
tuição pessoal de cada um? É o que temo, pois essa “cada caso é um caso”.
intuição — que tende a chegar na forma de vagos O que significa esse “social”? Lembramos do
princípios universalizantes — é muitas vezes o que exemplo da viúva que chora “por encomenda”. Pa-
mais garante o massacre simbólico do “outro”. Res- ra interpretar esse choro, é preciso conhecer bem a
gata-se sua particularidade psicológica (enquanto sociedade de onde vem — dos padrões residenciais
indivíduo sui generis), mas às custas de sua realidade e normas de herança até as atitudes corporais e os
enquanto membro de um grupo social com valores critérios estéticos e morais. É no intuito de desco-
possivelmente bem diferentes dos do pesquisador. brir a relação sistêmica entre os diferentes elemen-
tos da vida social que os etnógrafos abraçam a ob-
Subjetivo e social servação participante — para tentar dar conta da
totalidade do sistema. Acreditam que é através desse
Por envolver em geral um número pequeno de prisma que a experiência pessoal de cada indivíduo
informantes e por insistir na importância do con- assume um sentido. Lévi-Strauss, na introdução à
tato pessoal do antropólogo com seu “objeto”, o obra de Mauss, reitera esta “subordinação do psi-
método etnográfico propicia, sim, o estudo da sub- cológico ao sociológico” frisando que “as condu-
jetividade. Porém, os sentimentos e emoções que são tas individuais normais jamais são simbólicas por
a matéria-prima dessa subjetividade não são os da elas mesmas. São os elementos a partir dos quais um
psicologia individual. Desde Marcel Mauss e seu sistema simbólico, que só pode ser coletivo, se cons-
ensaio sobre “a expressão obrigatória dos sentimen- trói” (Lévi-Strauss, 1974).
tos”, os antropólogos tratam as emoções como fa- O que acontece, então, quando o estudante
tos sociais totais (Mauss, 1979). No seu texto clás- dispensa a observação participante junto ao grupo
sico, descreve a viúva que, entre os indígenas aus- social? Emprega, ao invés, uma técnica cortada do
tralianos, chora pontualmente toda tarde à mesma “fluxo contínuo da vida cotidiana” — a entrevis-
hora conforme dita o costume. Em vez de questio- ta, preferivelmente num lugar isolado e com um só
nar a sinceridade dessa forma de luto, sugere, pelo informante a cada vez? Como, nessas condições,
contrário, que esta viúva não é, no fundo, tão dife- pode-se esperar captar a dimensão social da emo-
rente das senhoras de nossa contemporaneidade que ção? Neste tipo de pesquisa, o peso todo está no
choram em todo e qualquer casamento, dos rapa- discurso verbal do entrevistado. Não vemos assim
zes que aplaudem as lindas adolescentes no baile de as inevitáveis (e nada repreensíveis) discrepâncias
debutantes, ou dos espectadores do jogo de futebol entre discurso e prática. Perguntando “o que você
que explodem com gritos agressivos cada vez que faz” ou “o que você acha”, recebemos respostas
o adversário marca um gol. Em cada caso, estamos interessantes, que refletem uma dimensão idealizada
diante de ritos sociais que fazem parte do vasto le- da sociedade. Mas não temos como comparar este
que de experiências e que servem como educação com outros tipos de fala: com a fofoca da avó so-
sentimental dos envolvidos. Demolindo a demarca- bre uma neta grávida, com as desculpas do adoles-
ção entre sentimentos “falsos” e “verdadeiros”, a cente que chega tarde da escola, com as piadas gros-
análise de Mauss mostra que nenhum sentimento seiras que os adultos contam depois da janta... Es-
humano é inteiramente espontâneo. A alegria, a dor, tes discursos também revelam algo sobre os valo-
o desgosto, o ódio são fenômenos que carregam o res do grupo assim como os múltiplos atos do co-
peso tanto do social quanto do fisiológico e psico- tidiano: o estilo da decoração, o padrão de compras,
lógico. É esta dimensão social que parece freqüen- a escolha de uma estação de rádio, o arranjo de

Revista Brasileira de Educação 63


Claudia Fonseca

camas... A abordagem etnográfica exige uma aten- velho senhor — evidentemente um amigo de longa
ção especial a essas outras linguagens que técnicas data. E, dois segundos depois, só esperando o tem-
de entrevista têm mais dificuldade em alcançar.2 po de receber um aceno afável do amigo, retomou
Ao cruzar dados, comparar diferentes tipos de sua conversa comigo, no mesmo tom lamuriento de
discurso, confrontar falas de diferentes sujeitos so- antes4. Como interpretar a mudança abrupta de
bre a mesma realidade, constrói-se a tessitura da tom? Dona Rosa não estava solicitando nada em
vida social em que todo valor, emoção ou atitude particular de mim. Mas, encontrando-se diante de
está inscrita. Sem estes recursos, é fácil o neófito uma “professora da faculdade” num tête-à-tête que
descambar para uma visão simplificada da realidade tanto lembra o ambiente terapêutico do hospital ou
em que, por exemplo, o informante é visto como da escola, ela assumiu o discurso — aquela parte
sendo “falso” ou “verdadeiro”. Quando existe uma de sua vida — que considerava adequado. Um dis-
empatia entre os dois, o pesquisador chega a qua- curso nem falso, nem verdadeiro, mas que represen-
se entregar ao seu interlocutor a tarefa analítica. ta apenas uma dimensão de uma realidade social
Transcreve as palavras deste como sendo a versão multifacetada.
definitiva da realidade.3 Podemos imaginar que, muitas vezes, o pesqui-
Por outro lado, quando, por causa de diferen- sador neófito prefere a entrevista isolada justamente
ças de idade, classe ou outros fatores, não existe porque não se sente à vontade no meio social de seu
grande empatia entre entrevistado e entrevistador, informante e acabaria inevitavelmente vivendo si-
este tenderia a ser mais cético, detectando a “falsi- tuações constrangedoras. Não tendo sido socializa-
dade” do seu interlocutor — as mentiras para in- do naquele ambiente, ele não consegue fazer piadas,
glês ver, as tentativas de manipulação que traem a nem rir no momento certo. Seus temas de conver-
confiança mútua implícita no contato a dois. sa destoam, seu sotaque e atitudes corporais o de-
Ora, devemos lembrar que a entrevista a dois nunciam como estrangeiro... Mas, na pesquisa de
é uma situação particular que exige um registro es- campo antropológica, é esse o processo recomen-
pecífico. É muitas vezes na tentativa de ajustar sua dado: quando o objeto de estudo não é mais “in-
narrativa às expectativas do pesquisador que o in- formante”, submetido a regras da entrevista, que lhe
formante tece seus exageros: para entreter seu in- são estranhas, mas sim “nativo” dominando seu pe-
terlocutor tanto quanto para manipulá-lo (Fonse- daço. Nesta situação, o pesquisador, um intruso
ca, 1995). Lembro aqui de dona Rosa, uma senho- mais ou menos tolerado no grupo, não nutre mais
ra roliça de 60 anos que — um belo dia — conver- a ilusão de estar “em controle da situação”. É jus-
sava comigo, em pé no seu portão. Com lágrimas tamente aqui, quando seu mal-estar, sua incompe-
nos olhos, contava as misérias de sua vida sofrida, tência nas linguagens locais o obriga a reconhecer
ressaltando sempre a malvadez do marido bêbado dinâmicas sociais que não domina bem, que o an-
e mulherengo. De repente, mudou o foco de seu tropólogo sente que está chegando a algum lugar.
olhar para uma figura que passava do outro lado Quando nossos “nativos” começam finalmen-
da rua. “Ô, seu velho corno. Sua mulher te deixou te a sentir-se em casa na nossa presença, zombam
sair para pastar hoje?”, ela gargalhou na direção do de nós ou até nos ignoram, aí passamos além dos

2 Sobre o uso dessas diversas linguagens, ver o artigo 4 Ao escutar sua narrativa, cunhada exclusivamente
clássico de Magnani, 1986. para meus ouvidos, eu poderia tecer hipóteses sobre a eter-
3 Quando ocorre este tipo de entrega à “verdade” do na vitimização da mulher neste grupo. Porém, ao refletir
nativo, falamos que o pesquisador está “comendo pela boca sobre este “assalto humorístico” de uma mulher ao seu ve-
do informante”. lho amigo, deduzo que as coisas não são tão simples assim.

64 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Quando cada caso NÃO é um caso

diálogos “para inglês ver”. Ninguém nega que so- Para um estudo ser reflexivo, não basta o au-
mos parte da realidade que pesquisamos. Quer seja tor falar de si mesmo. Na verdade, não obstante o
na linha de Marx, Bourdieu ou Foucault, não há alarido em torno das “rupturas epistemológicas”
pesquisador que ainda nutra a ilusão de ser “neu- operadas pelos paradigmas pós-modernos, a intro-
tro”. A reação do “nativo” diante de nossa pessoa jeção da subjetividade na escrita acadêmica já existe
— seja ela de dissimulação, adulação, hostilidade, há muito tempo. Clifford Geertz lembra que foi a
franqueza ou indiferença — é um dado fundamen- influência do romantismo novecentista que levou
tal da análise que diz muito sobre relações de desi- Malinowski — um dos fundadores da antropolo-
gualdade e dominação. Mas seria um engano igual- gia — a misturar seu spleen à pesquisa “científica”
mente ingênuo reduzir a realidade àquela dimensão de campo já na segunda década deste século. Em vez
que diz respeito a nossa presença.5 Ousamos ima- de ver a atual moda de antropologia reflexiva em
ginar que existe vida social além da situação pes- termos de uma “ruptura” epistemológica, este au-
quisador-pesquisado e — quem sabe — além da tor a apresenta como fruto da própria tradição an-
relação dominante-dominado (ou, pelo menos, algo tropológica. Desta forma, os antropólogos da van-
que não se explica só em função dela). A relação guarda pós-moderna seriam “os filhos (espirituais)
entre iguais também nos interessa e o método etno- de Malinowski”. Geertz suscita as raízes tradicio-
gráfico tem a pretensão de ir atrás dela. nais desta “sacralização do eu” justamente para
Paradoxalmente, é nessa ambição de mergu- atiçar o pesquisador a ir além. Embora aprecie os
lhar em situações estranhas que o etnógrafo tem méritos dos chamados pós-modernos (freqüente-
maior esperança de conhecer seu próprio universo mente sendo colocado ele mesmo como pai funda-
simbólico. Ao reconhecer que existem outros “ter- dor do movimento), previne contra seus excessos:
ritórios”, ele enxerga com maior nitidez os contor- o texto “autor-saturado” (do etnógrafo-terapeuta,
nos e limites históricos de seus próprios valores. auto-consciente até a moela), em muitos casos, le-
Descentrando o foco de pesquisa dele para o outro, varia o pesquisador a se afastar da etnografia “em
ele realiza le détour par le voyage — e só assim, direção a reflexão metacientífica, o periodismo cul-
completando o processo com a volta para a casa, tural e o ativismo social” (Geertz, 1988, p. 99).
alcança a reflexividade almejada. E qual seria a direção que deveríamos tomar?
A reflexividade é realizada por essa ida e vol- O objetivo do método etnográfico? Lembramos o
ta entre dois universos simbólicos. A situação de que foi dito no início desse trabalho — que, na an-
entrevista nem sempre propicia esse jogo de alter- tropologia semiótica, procura-se ressaltar alterida-
nâncias. Pelo contrário, em muitas situações, parece des para assim facilitar o processo de comunicação.
levar a um tipo de fusão da subjetividade do entre- Usa-se muitas vezes a metáfora do espelho para des-
vistado com a do pesquisador. Aquela acaba sub- crever o encontro entre sujeito e objeto na pesqui-
sumida nesta, servindo como suporte empírico para sa de campo. Tal processo não deveria ser confun-
a elaboração de teorias psicológicas sobre patolo- dido com o efeito narcísico em que os dois se fun-
gia, teorias sociológicas sobre dominação ou teo- dem no mesmo objeto. É, pelo contrário, atentan-
rias filosóficas sobre o “ser e o nada”. do para as diferenças — atrás das aparentes seme-
lhanças — que se cria um espaço para o diálogo
acontecer. Na maioria de nossos encontros educa-
5 As análises centradas exclusivamente em relações de
tivos, estamos lidando com pessoas da sociedade
dominação, apesar de levantarem considerações fundamen-
complexa — pessoas que vivem sob a pressão das
tais, podem ter um efeito inesperado. Ao reduzir o univer-
so simbólico dos “subalternos” a um mero subproduto das mesmas forças estruturais que nós e que, em mui-
normas dominantes, arriscam reforçar a violência simbóli- tos casos, ostentam valores e crenças idênticas. Po-
ca que denunciam (De Certeau, 1994). rém, pressupor de antemão essa semelhança com o

Revista Brasileira de Educação 65


Claudia Fonseca

universo simbólico do pesquisador, submeter todas las populares de Porto Alegre.6 Fui introduzida à
as falas a um mesmo paradigma de análise, é faci- pesquisa de grupos populares no Brasil urbano por
litar a violência simbólica exercida pelas classes do- umas crianças que, depois da aula, passavam dia-
minantes. A abertura da antropologia para a pos- riamente na minha casa para pedir restos de comi-
sibilidade (e não o fato) de “outras lógicas”, de ou- da. Era 1979. Eu estava há pouco tempo no país e
tras dinâmicas culturais, serve como arma contra a situação me chocava. Apesar de ter vivido em ou-
a massificação e, em alguns casos (onde o método tros lugares do “Terceiro Mundo” (Alto Volta, For-
acerta seu alvo), pode transformar um diálogo de mosa), parecia-me que nunca tinha experimentado
surdos em comunicação. uma situação de desigualdade social e econômica
tão violenta. Ao mesmo tempo, as crianças me dei-
*** xavam perplexa pois não correspondiam a minha
É praxe, nas discussões sobre o método etno- imagem de “mendigos”. Pouco se via dos tímidos
gráfico, dar ênfase à experiência do pesquisador no ou envergonhados. Os que me adotaram como fre-
campo. Discorre-se longamente sobre a relação pes- guês se comportavam com uma desenvoltura taga-
quisador-pesquisado ou o “anthropological blues” rela. Convidados a entrar, se instalavam sem hesi-
dessa etapa da pesquisa e sublinha-se a importân- tação na caixa de brinquedos dos meus filhos e,
cia do insubstituível diário de campo. Trata-se de sentados à mesa, ofereciam copiosas dicas sobre
elementos fundamentais do método. No entanto, a como melhorar o gosto do feijão (faltava sal). Não
análise antropológica não se limita a esta dimensão conseguia enxergar nelas a patologia e desestrutu-
intersubjetiva da pesquisa. Através desse método, ração familiar que, na minha maneira de ver as coi-
em geral tecem-se conclusões também quanto aos sas, acompanhavam inevitavelmente a miséria. Para
“nativos”: seu modo de vida, suas formas de orga- entender como estas pessoas sobreviviam — econô-
nização social, seus valores familiares, suas crenças mica e psicologicamente — fui bater palmas na fren-
religiosas, atitudes políticas etc. Entre a experiên- te das diferentes casas da vila de invasão onde mo-
cia de campo e estas conclusões, há uma série de ravam. Mas acabei descobrindo muito mais do que
etapas que são descritas pouco ou pas du tout nas simples “estratégias de sobrevivência”. A experiên-
discussões metodológicas. cia de campo foi sendo elaborada em diálogo com
Para viabilizar essa passagem entre a experiên- reflexões acadêmicas até desembocar em modelos
cia de campo e as interpretações analíticas, isto é, hipotéticos passíveis de aplicação em outros casos.
para dar corpo a este elo perdido, desdobramos o
“método etnográfico” em cinco etapas: 1. estranha- Estranhamento
mento (de algum acontecimento no campo); 2. es-
quematização (dos dados empíricos); 3. desconstru- Começamos com o menor elemento da cadeia
ção (dos estereótipos preconcebidos); 4. compara- — um fragmento do cotidiano de nossos “nativos”
ção (com exemplos análogos tirados da literatura transcrito no meu diário de campo.
antropológica) e 5. sistematização do material em
Chego na vila em torno das 15h00. Estou no
modelos alternativos.
canto da sala de dona Miriam, brincando com seu

Do particular ao geral: uma


ilustração do método etnográfico 6 Tratando-se de uma população “de baixa renda” —
o tipo que freqüentemente inspira diferentes formas de in-
Nesta segunda parte do artigo, tentarei ilustrar tervenção educativa — esta parte da apresentação visa es-
esta abordagem com exemplos tirados de meu pró- timular idéias pertinentes tanto à prática educativa quanto
prio trabalho sobre a organização familiar em vi- ao método etnográfico.

66 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Quando cada caso NÃO é um caso

cachorro. Conheci esta família uns três, quatro anos me teve e a mãe que me criou”. Mas ela ainda não
atrás quando fiz uma longa história de vida com a chegava perto de Solange, casada e com seus pró-
dona de casa. Mas hoje, o assunto não é com ela. Ela prios filhos, que chamava cinco mulheres diferen-
simplesmente ofereceu um lugar para descansar en- tes de “mãe”. Os casos foram se multiplicando, sem
quanto espero a volta da vizinha da frente que é meu explicação ou comentário particular de meus inter-
alvo previsto para hoje. locutores. Evidentemente, para eles, esta história de
Entra uma moça com cerca de 20 anos — Anita, vaivém de crianças entre uma casa e outra não era
concunhada de Miriam — e, momentos depois, ou- nada especial. Meu estranhamento diante de uma
tra mulher, levemente mais velha que veio visitar a prática que, para eles, parecia banal criou espaço
dona da casa. A primeira carrega seu recém-nascido suficiente para construir meu objeto de análise.
nos braços, a segunda está pajeando uma menina de Ao longo da década de 80, em pesquisas com
cerca de dois anos. Deixadas por alguns momentos a aproximadamente 120 famílias em dois bairros de
sós, enquanto Míriam faz café, as duas mulheres tro- Porto Alegre, cheguei a sistematizar informação so-
cam as perguntas usadas habitualmente neste bairro bre cerca de cem pessoas que tinham “circulado”
quando as pessoas se encontram pela primeira vez: quando criança. Alguns saíam nenês, outros já eram
“Mora perto daqui?”, “É parente de Fulano?”, “Quan- “bem grandinhos” quando começaram a circular.
tos filhos tem?” e enfim... “Está criando todos?” Muitos chegaram deste modo a conhecer diversas
casas, a ponto de ter duas, três... e em um caso cin-
A última pergunta, direcionada a Anita, foi co “mães”. Hoje, interpreto as idas e vindas de
formulada depois de saber que o nenê nos seus bra- crianças entre sua madrinhas, avós e outras “mães”
ços era seu quarto filho. A jovem mãe, longe de se à luz da “circulação de crianças”. A partir desta
ofender com a pergunta, respondeu que, de fato, seu noção, levantei uma série de hipóteses sobre práti-
segundo filho estava sendo criado pela sogra. En- cas e atitudes. Assim, certas particularidades neste
dereçando a mesma pergunta a sua interlocutora, meio (quanto ao valor da família, a noção do tem-
Anita aprendeu que esta, apesar de ser viúva, fre- po, o ciclo de vida) foram se tornando inteligíveis.
qüentemente em apuros, tinha resistido aos pedidos Mas, quando fui a primeira vez à vila, nunca tinha
insistentes de sua ex-sogra que queria levar um neto ouvido falar do termo. Foi na alternância entre da-
para viver com ela. dos de campo e leituras bibliográficas que fui apli-
Não era nem o lugar, nem as pessoas, nem o cando o “método etnográfico”, procurando enten-
roteiro que eu tinha preparado para aquele dia. En- der qual o sentido dessas práticas.
tretanto, esta cena acendeu a luz de minha sensibi-
lidade etnográfica. De que essas pessoas estavam Esquematização
falando? Aquela mãe não ia se ofender com uma
pergunta dessa (“Você está criando todos?”) Não Não é nada evidente tramitar do estranhamen-
é “mãe” que cria filho? Por que a avó se acharia no to à análise interpretativa. No capítulo sem dúvi-
direito de exigir um neto para criar? Não entendia da mais citado da literatura sobre o método etno-
como podiam falar da separação de mãe e filhos gráfico, a introdução aos Argonautas (Malinowski,
como se fosse um acontecimento banal. No meu 1922; Zaluar, 1975), Malinowski recomenda ao
entender, tratava-se de algo que só podia ocorrer aspirante a etnógrafo diversas técnicas para iniciar
em circunstâncias catastróficas. o processo: além do inevitável e indispensável diá-
Com cada visita subseqüente, minha perple- rio de campo,7 um levantamento censitário do ter-
xidade crescia. Conheci, por exemplo, Claudiana,
uma linda garota de nove anos que dizia tranqüi-
7
lamente ter três mães: “a mãe de leite, a mãe que Não entramos aqui nos detalhes do diário de cam-

Revista Brasileira de Educação 67


Claudia Fonseca

ritório, genealogias, mapas e quadros sinópticos. É mo mãe de criação, mas variava o sexo da criança,
bom começar com as coisas concretas, relações de assim como o do progenitor que ligava a criança a
alguma forma institucionalizadas. Assim, estabe- sua mãe de criação. Em quais circunstâncias e com
lecemos listas sobre “dados básicos” tais como: que freqüência esses elementos eram femininos? Em
“composição da unidade doméstica”, “profissão”, quais circunstâncias eram masculinos? A partir daí,
“idade”... Procuramos entender quem é ligado a fui cruzando os dados quanto a: a idade e sexo da
quem, por que tipo de vínculo; com estes dados, for- criança, a idade e status conjugal da mãe ao entre-
mulamos tabelas, desenhamos casas, projetamos di- gar o filho etc. Com isso, começaram a aparecer
agramas e cruzamos variáveis. A esta altura, pro- certas regularidades. Meninas circulavam mais den-
curando juntar “partículas” (“sendo cada Nuer que tro da parentela; meninos fora... Entre as mães de
encontrava usado como fonte de conhecimento”) criação, havia, ao todo, tanto avós paternas quan-
(Evans-Pritchard, 1978, p. 20), tudo nos interessa. to maternas. Quanto mais velha a mulher, maior
Para fornecer um exemplo, comecei por dia- suas chances de ter um filho de criação morando
gramar a relação entre as mães biológicas e as pes- com ela etc. Não tinha certeza nenhuma quanto a
soas às quais tinham dado seus filhos. Fora as crian- “o que” estava procurando, mas justamente por isso
ças que foram para madrinhas e outras pessoas não queria considerar todas as possibilidades. Tratava-
aparentadas (cerca da metade das que circularam), se de um primeiro exercício de abstração.
ficamos num primeiro momento com transferências Foi também nessa fase de pesquisa que come-
dentro da rede de parentes, resultando em diagra- cei a juntar dados. Dados etnográficos, estatísticos,
mas do seguinte teor: históricos e sociológicos — tudo servia desde que
fosse sobre minha população ou outra semelhante.
Diagrama 1 Diagrama 2 Mas este tipo de comparação — definindo o que é
Mãe de criação = tia Mãe de criação = avó “semelhante” — também exigia uma abstração de
meus dados, para resolver em que categoria incluir
meus sujeitos. Se quisesse estatísticas sobre o nú-
mero médio de pessoas na unidade doméstica, por
exemplo, onde devia olhar? Para Porto Alegre, re-
gião urbana, renda mensal per capita abaixo de
meio salário? Estatísticas sobre o RS como um todo
deviam me interessar? Dados sobre famílias traba-
lhadoras em outros estados e outras cidades eram
pertinentes? Ao caracterizar meu universo como
= Mulher “grupos populares urbanos”, estava pressupondo
que toda etnografia sobre tema semelhante traria
= Sexo indeterminado descrições idênticas às minhas? Os biscateiros e pa-
peleiros porto-alegrenses que estudei possuíam va-
lores “iguais” aos dos operários paulistas ou das
Esquemas tão simples assim já me obrigaram classes trabalhadoras cariocas? Certamente, as hi-
a acirrar minhas observações. Sempre era uma mu- póteses levantadas em outras etnografias (quanto
lher que tomava a responsabilidade principal co- a relações de gênero, a noção de pessoa e as leal-
dades consangüíneas — Sarti, 1995; Duarte, 1986;
po — tema que exigiria um artigo a parte. Recomenda-se a Knauth, 1996) me ajudaram a pensar problemas
leitura do livro Fieldnotes: the makings of anthropology, analíticos no meu campo. Mas existem processos
organizado por Roger Sanjek (1990). em jogo, conforme a região e a inserção no mercado

68 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Quando cada caso NÃO é um caso

de trabalho, que ditam diferenças importantes entre da de 50, de papai, mamãe e os filhos reunidos em
um caso e outro. Neste processo comparativo, as torno da mesa de jantar. Certamente antropólogos
diferenças tanto quanto as semelhanças ajudaram. não duvidam da “normalidade” desta família para
A especificidade do meu caso se construía no pon- determinados contextos, mas recusam-se categori-
to de interseção de diversas categorias sociais mais camente a considerá-la uma forma familiar “mais
amplas. Em outras palavras, fui obrigada a refinar civilizada” do que outras e, ainda menos, uma for-
a classificação de meu universo para chegar, de for- ma “mais natural” (Segalen e Zonabend, 1986).
ma mais cuidadosa, a eventuais generalizações. Para desconstruir premissas que penetram tão
profundamente na cultura do pesquisador que —
Desconstrução tal como o ar que respira — parecem de uma reali-
dade indisputável, a história social traz uma impor-
Os dados não falam por si sós. Pelo contrário. tante contribuição. Historiadores nos informam que
Dependendo da lente usada para examiná-los, o o ideal da família “moderna” que surgiu na Euro-
mesmo material empírico pode inspirar leituras pa ocidental em torno do século XVII é caracteri-
opostas — ora em termos de “dinâmica sociais”, zado pelos seguintes elementos: a) a livre escolha do
ora em termos de “patologia”. Tudo depende das cônjuge e a incorporação do amor romântico ao
perguntas que orientam nosso olhar, como emol- laço conjugal; b) o aconchego da unidade domés-
duramos o material. Será sempre possível colocar tica (“lar doce lar”), que se torna um refúgio con-
um verniz cientifisista nos estereótipos do senso co- tra as pressões do mundo público; e, finalmente, c)
mum. Como, então, desconstruir esses estereótipos a importância central dos filhos e da mãe enquanto
que projetam a luz sempre sobre os mesmos fatos sua principal socializadora (Fonseca, 1989). Adep-
enquanto deixa outros no esquecimento? tos da lógica evolucionista podem achar que este
É muito fácil, quando lidamos com pessoas da modelo representa um “avanço” moral. A maioria
nossa própria sociedade, escorregar para termos dos estudiosos da história social tratam-no, pelo
de análise que vêm diretamente do senso comum. contrário, como a conseqüência de um determina-
Quanto mais emocionalmente carregado o tema, do contexto histórico que implica, entre outras coi-
mais fácil é. Sem dúvida o assunto da família suscita sas, um nível mínimo de segurança econômica, um
atitudes que, quase como reflexo, classificam qual- Estado central capaz de controlar e disciplinar seus
quer comportamento não-convencional na catego- sujeitos e a proeminência da instituição escolar (na
ria de “desorganizado”, “desestruturado” ou “anô- França, por exemplo, desde o século XIX, a escola
mico”. No entanto, tais chavões fazem pouco para é gratuita, obrigatória e universal). Poderíamos
aprofundar nossas análises e menos ainda para fa- apresentar essa relação entre o contexto e a forma
cilitar processos de comunicação. Para “escutar” o familiar da seguinte maneira:
outro, para estarmos prontos a captar significados
particulares, devemos primeiro rever certas noções Evolução da família na Europa
de nossa própria cultura que permanecem obstina-
damente no pensamento contemporâneo.
CONTEXTO FORMA FAMILIAR
Por exemplo, ainda existe, em muitos tratados
jurídicos, uma “naturalização” da família conjugal. Estado consolidado —> Casamento legal
Evidentemente, a maioria dos juristas têm isto em
mente quando dizem que a adoção deve “imitar a Estabilidade econômica —> Intimidade do lar
natureza” e quando falam da “família normalmente
constituída”. Essa noção evoca a imagem, manifesta Escola generalizada —> Criança — eixo da família

em cartilhas escolares reproduzidas a partir da déca-

Revista Brasileira de Educação 69


Claudia Fonseca

Uma vez constatada a natureza histórica e es- car inteiramente aos filhos (Ariès, 1981; Badinter,
pecífica do modelo, podemos perguntar até que 1980). As famílias que estudei não se apresentam
ponto esse modelo é aplicável em outros contextos. na forma de uma unidade doméstica bem delimi-
A título de provocação, poderíamos sugerir que as tada, autocontida. Muito pelo contrário, são per-
circunstâncias históricas que orientaram a evolução passadas por outros grupos que competem pela
da vida familiar entre grupos populares no Brasil lealdade dos seus membros, criando uma dinâmica
— um Estado fraco e descentralizado, condições de social que tem pouco em comum com o modelo nu-
vida precárias e a quase ausência da escola — pa- clear. Neste caso, não é realista tratar a família con-
recem opostas às que vimos no caso europeu. jugal como um objeto analítico isolado. Muitas ve-
Na ausência de uma escola eficaz ou acessível, zes aparente no próprio aspecto da residência, o
as crianças continuaram se socializando pelo “tra- caráter aberto desta unidade torna-se perfeitamen-
balho infantil” e convivência com adultos até, pelo te evidente quando algumas famílias são acom-
menos, meados deste século (Alvim, 1997). O es- panhadas nas rotinas diárias. Apesar de cada ca-
paço exíguo da casa, que, além do casal e seus fi- sal gostar de ter seu próprio canto para cozinhar,
lhos, podia abrigar agregados de diversos tipos, não as crianças se infiltram pelas fronteiras dessas “ca-
propiciava o ambiente do “lar, doce lar”. Pelo con- sas” burlando os limites entre uma “família” e ou-
trário, os membros da casa viviam enredados em tra. Nestas circunstâncias, não podemos pressupor
outras formas de sociabilidade — no circuito de de antemão a relevância da configuração de valo-
comadres, nas turmas do bar, nas redes de vizinhan- res que acompanha o “modelo conjugal moder-
ça... Morte e mobilidade geográfica punham um no”. Devemos considerar a possibilidade de dinâ-
fim precoce a muitos arranjos conjugais de forma micas “alternativas”.
que, em certas instâncias (cidades de Minas Gerais
e São Paulo no início do século XIX), a família che- Especificidade do caso brasileiro
fiada por uma mulher chegava a ser tão comum
quanto a família conjugal (Dias, 1984). Ainda mais,
CONTEXTO FORMA FAMILIAR
evidências históricas sugerem que, desde a época
colonial, crianças circulavam entre genitores, ma-
Estado descentralizado —> União consensual
drinhas, criadeiras, e outros tipos de pais de cria- (M-C-F), rede extensa de
ção (Fonseca, 1995; Priore, 1997). Ao todo, por parentes
meio do exame cuidadoso de documentos, histo-
riadores vislumbram uma sociedade de pessoas que Precariedade econômica —> Casa aberta para a
“sociabilidade da rua”
se esquivavam aos controles legais: juntavam-se sem
casar, pariam filhos sem fazer certidão de nascimen-
Trabalho infantil —> Circulação das crianças
to e separavam-se sem fazer divórcio. 8
O conceito de domesticidade conjugal é par-
ticularmente adequado à intimidade da família nu-
clear “moderna”, isto é, à unidade doméstica on- Comparação: a procura por
de moram só pai, mãe e filhos e onde certa divisão dinâmicas análogas
de trabalho dá disponibilidade à mãe para se dedi-
A história nos ajuda a desconstruir algumas
imagens que — se não fossem postas entre parên-
8 teses — poderiam atrapalhar nossa apreensão do
“Divórcio” nessa época significava apenas separa-
ção por sentença de Juiz, não existindo possibilidade de con- “outro”. Demonstra a historicidade de nossos pró-
trair novas núpcias. prios valores; no entanto, não chega necessariamen-

70 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Quando cada caso NÃO é um caso

te a propor modelos alternativos. É para a literatu- nhagem (Lallemand, 1993; Collard, 1991; Cadoret,
ra da antropologia clássica que voltamos para esta 1995).
inspiração. A partir deste olhar comparativo, chega-se à
Para chegar aonde queremos ir, é preciso via- conclusão de que, em toda as sociedades estudadas,
jar. É preciso ter a experiência de uma imersão to- os pais biológicos têm um papel indiscutível: o de
tal em culturas exóticas. Esta imersão é realizada fornecer à criança uma identidade social através
não somente pela viagem (literal) mas também pe- da noção de filiação biológica. No entanto, outras
la leitura de monografias sobre sociedades longín- responsabilidades paternas, tais como alimentar a
quas. Hoje em dia, com a popularidade crescente criança, ensinar e encaminhá-la neste ou naquele
da antropologia “at home”, muitos de nós prescin- ofício, podem ser muito bem realizadas por pessoas
dimos do deslocamento geográfico. A viagem pela que não são os pais biológicos. No modelo conju-
leitura, no entanto, é insubstituível. gal moderno, a grande maioria de responsabilida-
Foi numa destas viagens, lendo sobre uma tri- des paternas se concentra no casal de genitores. Po-
bo na África Ocidental, que vi, pela primeira vez, rém, em muitas sociedades as funções paternas são
a noção de “circulação de crianças”. Descobri que divididas entre diversos “pais” e “mães”. Estes, con-
os Gonja põem seus bebês em circulação com re- siderando que o bem-estar da criança é inseparável
lativa facilidade. Circulam em situações de crise do bem-estar do grupo, teriam dificuldade em com-
quando os pais se separam e a criança é absorvida preender preocupações sobre a “formação psicoló-
por algum parente. Mas existe também a circula- gica” da criança. Ainda assim, é interessante ano-
ção “voluntária”, quando a criança vai morar com tar que uma antropóloga, intrigada pelo alto índi-
um tio ou uma tia a dezenas ou centenas de quilô- ce de crianças em circulação entre os Gonja, apli-
metros da casa dos pais biológicos para estreitar os cou testes psicológicos para compará-las com as que
laços de solidariedade entre ramos geograficamen- estavam sendo criadas pelos próprios genitores. No
te dispersos do grupo familiar (Goody, 1982). que se refere ao equilíbrio emocional e ao sucesso
Depois, seguindo adiante nas investigações bi- social, ela não conseguiu descobrir nenhuma dife-
bliográficas, fui me dando conta que algo semelhan- rença significativa (Goody, 1982).
te existe em diversas regiões do globo. Na Oceania, As etnografias clássicas nos fornecem mode-
por exemplo, considera-se o bebê como pertencente los que podem ser experimentados por analogia em
antes de tudo ao clã matrilinear, devendo ser aloca- outros contextos. Vemos por exemplo que em so-
do de acordo com o bem do grupo. A mãe que não ciedades tribais, onde não existe escola formal, a
aceita dar seu filho a uma velha tia solitária ou a circulação de crianças contribui para a socialização
uma prima estéril pode perfeitamente ser tachada de jovens (ver também Ariès, 1981). Tal fato sus-
de egoísta. No Alto Volta (Burkina Fasso), entre os cita hipóteses sobre o contexto brasileiro, onde, na
Mossi (patrilineares), as jovens mães são encoraja- socialização de crianças pobres, a escola tem sido
das a dar seus bebês a uma co-esposa mais idosa; tradicionalmente ausente ou ineficaz. Ir morar com
assegura-se assim a estabilidade das mulheres mais uma tia na cidade, fazer companhia a uma velha
jovens que, de outra forma, poderiam estar tentadas viúva, ou trabalhar com um primo não seriam tá-
a deixar o domicílio conjugal e retornar à casa dos ticas para o jovem adolescente aumentar seus ho-
pais. Aliás, dar os filhos como “garantia viva” em rizontes, ganhando patrocinadores e eventualmente
contratos econômicos, militares ou políticos entre experiência numa profissão?
adultos é uma prática observada em todos os can- Outra relação particularmente interessante,
tos do planeta. E, ao longo da história, não faltam que observamos na literatura, liga a circulação de
exemplos de crianças que são casadas ou adota- crianças à solidariedade familiar. Ao enviar seu filho
das para manter ou consolidar o patrimônio da li- para morar com um parente, os pais garantem um

Revista Brasileira de Educação 71


Claudia Fonseca

vínculo ativo entre eles e o casal que recebe a crian- Diagrama 3


ça. Reafirmam um laço que — em outras circuns-
tâncias, arriscaria perder. Mais uma vez, é proveito-
so pensar situações analógicas no caso brasileiro.
É evidente que a transferência da criança de
uma casa para outra pode também preencher uma
função “prática”. Quando chamadas a dizer por Bibo
que seu filho foi morar em outro lugar, é, de fato,
este tipo de explicação que meus informantes nor-
malmente dão: a mãe de criação mora mais perto Nádia
da escola; ela é velha e precisa de ajuda ou, simples-
mente, ela possui o que os genitores não possuem:
dinheiro suficiente para sustentar mais uma crian-
ça. Mas a escolha da família de criação não é alea-
tória... Além de considerações “práticas” (ou, jun-
to com elas), obedece a uma lógica simbólica que
dá um peso enorme à rede de parentes consangüí-
neos. Formam-se redes em função da necessidade
de ajuda mútua, mas também a ajuda pode ser acio- Relação de compadrio
nada — mesmo quando não existe necessidade ime- Circulação de crianças
diata — para preservar ou reforçar redes já existen-
tes. Neste último caso, crianças podem ser usadas A circulação de crianças compensa várias ten-
como elemento de troca, para consolidar vínculos dências que poderiam, de outra forma, enfraquecer
da rede extensa de parentesco. a solidariedade do grupo familiar como um todo.
Citemos um caso concreto, tirado das nossas Pode, por exemplo, se contrapor à tendência mas-
anotações de campo, para ilustrar como a circula- culina de se afastar do grupo familiar. Uma mulher
ção de crianças junto com o compadrio cria laços acaba freqüentemente abrigando filhos de um pa-
duradouros entre certos membros da parentela. rente masculino seu. A metade das avós criadeiras
Deixado com uma tia materna desde sua primeira estava cuidando de filhos de seu filho. Com freqüên-
infância, Bibo foi criado com primas matrilaterais. cia uma mulher recebe filhos, ou mesmo netos, de
Uma delas, depois de grande, deu sua filha, Nádia, seu irmão. Como os homens têm a reputação de ser
para Bibo e a mulher dele. Dezessete anos mais tar- menos ativos no intercâmbio diário com parentes,
de, encontramos Bibo, doente e abandonado por mais passíveis de romper com o grupo de parentes-
sua mulher e por seus quatro filhos, hospedado co, não seria este tipo de adoção uma tática para
junto a Nádia na casa do pai dela (já divorciado). reatar parentes agnatos ao grupo? É também impor-
Para explicar o laço entre Nádia e ele, Bibo me diz: tante salientar que, por esse processo, mantém-se
“Eu sou seu tio de criação, seu padrinho, seu pai atualizada a identidade paterna da criança mesmo
de criação, e agora ela vai se tornar minha coma- na ausência física do pai. Assim, pelo menos no caso
dre pois eu vou batizar seu bebê”. Graças a seu lu- porto-alegrense, seria um equívoco falar de uma
gar assim consolidado na rede familiar, Bibo con- filiação matrilinear. A circulação das crianças obe-
segue um ponto de apoio na casa de alguém (pai dece e reforça os princípios da filiação bilateral.
de Nádia) com quem não tem nenhum vínculo A circulação de crianças também serve para
consangüíneo. reforçar as obrigações de filhos adultos com seus
velhos pais. Ao cuidar de um neto, uma mulher jus-

72 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Quando cada caso NÃO é um caso

tifica sua demanda de apoio material e de afeto aos conhecerem. Conheci esta família através de Inez,
seus próprios filhos. Aqui, a prestação e contra- então com 38 anos, trabalhadora na creche comu-
prestação ocorrem em momentos diferentes, con- nitária e casada com o pai de seus dois filhos, um
forme o ciclo de vida de cada geração. Os primei- distribuidor de jornais. Contou-me que tinha sido
ro-nascidos de uma geração freqüentemente pas- criada pela “madrinha”; disse que esta velha senho-
sam boa parte de sua infância com uma avó que, ra de quase noventa anos, hoje, vivia no quintal de
cuidando deles, cumpre suas últimas obrigações fa- sua mãe “verdadeira” e me convidou para fazer
miliares. Vinte anos depois, quando a obrigação uma visita. Chegando poucos dias mais tarde na
transforma-se em direito, a avó pode muito bem rei- casa indicada, um domingo de tarde, encontrei as
vindicar, na sua velhice, a companhia de um dos seguintes pessoas comendo churrasco no quintal:
netos mais novos. Em todo caso, ela terá direito re- além de Inez, seu marido e filhos, sua madrinha, sua
dobrado a um amparo filial. mãe, cinco de seus seis irmãos, e as famílias respec-
Um último fator capaz de diminuir a solida- tivas destes. Explicaram-me que a madrinha não
riedade entre parentes é a mobilidade social. Exis- tinha nenhum laço de sangue com eles; de fato,
te uma ameaça de os parentes “ricos” desdenharem apesar de ter casado, ela nunca teve filhos. Por isso,
ou esquecer completamente seus parentes pobres. tinha “pego para criar” um nenê que veio a ser o
Ao aceitar cuidar de crianças ou jovens dos ramos pai do primeiro irmão de Inez. Inez, um ano mais
mais pobres da família, o primo (ou tio) rico rea- velha, foi deixada — junto com seu irmão — aos
firma seu lugar como membro ativo da parentela. cuidados desta senhora enquanto sua mãe trabalha-
Assim, a circulação de crianças serve como o divisor va “em casa de família”. Os primeiros dois irmãos
de águas entre aqueles indivíduos em ascensão que da fratria ficaram portanto com a madrinha, en-
adotam valores de classe média e aqueles que, ape- quanto os outros, fruto de ligações posteriores da
sar de terem subido na hierarquia socioeconômica, mãe, tiveram outros destinos. O terceiro — que,
permanecem ligados aos valores “tradicionais”. En- naquele dia do churrasco, estava de farda, pronto
quanto os primeiros concentram energias nos pró- para “pegar no serviço” de guarda noturno às cin-
prios filhos, criando um ambiente doméstico fecha- co da tarde — tinha “fugido” com oito ou nove
do em torno da escola e de carreiras futuras, os úl- anos, só retornando quando tinha idade do servi-
timos recebem crianças de ramos mais pobres na sua ço militar. Inez conta com leve riso como foi o re-
unidade doméstica, garantindo a continuidade dos encontro, depois de todos aqueles anos:9
laços e expondo seus próprios filhos à influência
(Eu) estava com uns 18 ou 19 anos. Ele apare-
diária da classe trabalhadora mais humilde.
ceu na lomba. Nós ia subindo na metade da lomba,
ele ia subindo. Prá la tem uma chácara assim e ele
Modelos alternativos
vinha subindo de bicicleta sem camisa. E eu olhei as-
sim prá ele. Olhei, olhei. Não achei nada parecido
A antropologia de sociedades tribais suscita
com ninguém de nós. Mas ele chegou e perguntou prá
hipóteses que podem iluminar processos analógicos
mim: “Escuta, tu não conhece uma senhora chama-
no contexto brasileiro, sugerindo a existência de
da de D. Maria. Ela tem um monte de filho aí”. Eu
dinâmicas culturais em lugares inesperados. O pes-
olhei para ele: “Olha, pelo que tu tá dizendo, eu acho
quisador é confrontado, então, ao desafio de jun-
tar os pedaços — as diversas dinâmicas — para en-
tender a lógica que subjaz e ordena as várias par- 9 Esta e outras falas de Inez foram registradas em fi-
tes do sistema. Uma maneira para elucidar esta ló- ta videocassete e aparecem num vídeo, “Ciranda, Ciran-
gica é de concentrar-se em “casos exemplares” e, dinha”, produzido pelo Núcleo de Antropologia Visual,
neste espírito, trago um último caso para vocês IFCH-UFRGS.

Revista Brasileira de Educação 73


Claudia Fonseca

que é a minha mãe que é a única Maria aqui que tem mãe é uma só...” Essa expressão diz respeito a muito
um monte de filho. Não sei se é ela. Vou te levar ali.” mais do que a relação entre mãe e filhos. Diz res-
Até nem dei muita bola. Cheguei e entreguei pra mãe. peito à própria identidade da pessoa e sua relação
Esse guri aqui quer falar com a senhora... com o mundo social. A pessoa se identifica como
parte de um grupo consangüíneo com qual tem di-
O quarto irmão da fratria acabou morando reito de se relacionar e contar mesmo após anos de
com a avó (paterna) dele. separação. Inez expressa esse sentimento quando
A mãe via ele até seus oito ou nove anos. De-
fala de seu irmão que passou quase sete anos longe
pois mudaram e nunca mais se viu... Ele a gente des-
da família: “quando a gente se abraça, se abraça
cobriu o ano passado. Até foi a mãe que descobriu
com a emoção de irmão, apesar de a gente ter pas-
porque a mãe procurou, perguntou para parente, pa-
sado tantos anos sem se ver...”
ra pessoas conhecidas e quase ninguém sabia, né? A
Surge a pergunta evidente quanto ao ponto de
minha irmã descobriu que o pai dele tinha um táxi. vista das mães de criação — as madrinhas, avós,
Fomos e procuramos e aí a mãe confirmou que real-
primas, e vizinhas que cuidam durante longos anos
mente era ele. Ai encontraram meu irmão.
de uma criança, freqüentemente só para vê-la vol-
tar junto à mãe “legítima”. Neste caso, o provér-
Esta família não programou o churrasco em bio “pai (ou mãe) é quem criou”, usado para falar
honra da pesquisadora: já estava marcado para de padrastos tanto quanto de mães de criação, afir-
aquele dia quando souberam da minha visita. A ma um direito reconhecido: quem sustenta a criança
presença de quatro dos irmãos estava garantida tem direito a reivindicar a identidade de “pai” ou
porque moravam — junto com suas respectivas fa- “mãe”. Mas trata-se de um status adquirido, vul-
mílias — no mesmo pátio com a mãe e madrinha. nerável, pois condicional à manutenção do susten-
(Só as duas meninas mais novas tinham sido cria- to. Os genitores, por outro lado, gozam de um sta-
das pela mãe e pai. Os outros tinham “voltado” tus dado pois a identidade social é colada à idéia
depois de grandes.) Inez e um outro irmão tinham do laço biológico. Como os pais de criação podem
marcado se encontrar aquele dia na casa da mãe. temporariamente adquirir direitos paternos por vir-
Só um irmão não tinha aparecido — o filho do ta- tude de seus atos, os genitores podem também per-
xista, que, porém, tinha passado na véspera, con- der temporariamente seus direitos quando “aban-
firmando o comentário de seus irmãos, de que “não donam” o filho. Mas a longo prazo o status perce-
sai mais de perto da mãe”. (Resumimos esta des- bido como imanente ao indivíduo parece se impor.
crição no diagrama 6.) No momento em que se interrompem os atos pon-
Aqui, mais uma vez, é importante entender que tuais que modificaram o status (os pais de criação
não se trata de um caso excepcional. Durante mi- deixam de zelar pelo filho, os genitores reaparecem),
nha pesquisa, conheci inúmeras pessoas que, após volta a força das noções culturais básicas — “é o
anos passados numa instituição ou com uma famí- sangue; o sangue puxa”.
lia de criação, voltaram, na idade adulta, morar Numa tentativa de resumir estas informações
perto dos parentes consangüíneos. Reparando nes- num modelo sobre o ciclo de vida, gostaria de vol-
sas regularidades e procurando destacar padrões tar à idéia de comparação, contrastando o caso es-
que envolvem os múltiplos personagens e momen- tudado aqui com o modelo convencional da famí-
tos do processo, chegamos a interpretações quan- lia conjugal. Como ilustração desta última, cito o
to a valores e emoções. Vemos que a idealização do caso de uma família norte-americana, a saber, a de
laço entre mãe biológica e filhos desponta sem ces- onde eu mesma sái. Em sucessivas gerações, desde
sar no discurso: “Uma mãe nunca perde o direito o século passado, tem ocorrido o mesmo processo.
aos filhos”, “Tu podes ter cinqüenta maridos, mas Os filhos nascem e crescem dentro de uma unida-

74 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Quando cada caso NÃO é um caso

de doméstica que abriga a totalidade da família con- to minhas hipóteses são passíveis de generalização.
jugal — e mais ninguém. Quando os filhos chegam Seriam relevantes em outros bairros de Porto Ale-
a determinada idade (em torno de 18 anos), saem gre ou em outras cidades brasileiras? Cercadas por
de casa, vão para os quatro cantos do país e não tantas restrições, para que servem então minhas
mantêm mais contato entre eles. (Meu avô não sa- “conclusões”?
bia do paradeiro de nenhum de seus quatro irmãos
quando morreu.) Ao mais tardar quando casa, cada Diagrama 5
filho cria uma nova unidade independente: nuclear Ciclo familiar com circulação de crianças
e nuclearizada. Podemos representar esse ciclo da
seguinte forma:
Vida O sangue
adulta dos puxa
Diagrama 4 filhos Fase II
Modelo da família conjugal “moderna”
Primeira A circulação
infância das crianças
Vida Dispersão dos filhos Fase I
adulta dos dos filhos
filhos Fase II

Primeira Família Para responder a esta pergunta, quero descre-


infância conjugal ver uma última cena, que envolve uma trabalhadora
dos filhos Fase I social. Depois de ouvir o relato de uma assistente
minha falando sobre a circulação de crianças e, em
particular, sobre o reencontro de irmãos, esta agente
Em compensação, o que observei na minha social apenas sacudiu a cabeça: “Isto não existe”.
pesquisa é uma identidade familiar que não dimi- Apesar de anos lidando com “crianças abandona-
nui com o tempo. Não existe a mesma transferên- das”, nunca tinha observado nada desta natureza
cia de identidade da família de origem para o novo Sua rejeição à possibilidade de uma lógica alheia
núcleo conjugal. Muito pelo contrário, parece que nos deixou pasmas. Considero que o esquema que
a idéia do laço consangüíneo só cresce com o tem- montei, apesar de ser uma simplificação grosseira
po. Assim, apesar de um grupo de irmãos passar sua da realidade, serve como emblema de outros siste-
infância morando em diferentes casas, há grandes mas possíveis, alternativos — isto é, para inspirar
chances destes morarem perto uns dos outros e co- trabalhadores sociais e educadores a pensarem duas
laborar de forma rotineira na vida adulta. Diagra- vezes antes de declarar que qualquer coisa “não
maticamente, vejo a situação quase como uma in- existe”.
versão da primeira (ver o diagrama 5).
Esse diagrama representa uma simplificação Reflexões finais —
terrível de um complexo sistema de relações e va- sobre os usos do modelo
lores. Não pretende descrever qualquer “média” de
comportamentos reais. Tampouco chega a repre- No início deste trabalho, insisti muito no as-
sentar uma norma codificada (ao contrário da fa- pecto social da análise para combater uma tendên-
mília moderna, institucionalizada na lei e na escri- cia oriunda do individualismo metodológico de iso-
ta). Sem dúvida muitos dos meus informantes não lar o sujeito de seu contexto. Tentei, com o exem-
reconheceriam, neste esquema, qualquer semelhan- plo da circulação de crianças em grupos populares,
ça com seu sistema familiar. Nem sei até que pon- ilustrar como dados tirados do estudo qualitativo

Revista Brasileira de Educação 75


Claudia Fonseca

de um certo segmento da vida social podem dar de cada “grupo”. A alteridade é analiticamente
ensejo a modelos abstratos. construída para responder a certas perguntas; de-
Na primeira parte do artigo, considerei a im- pendendo do problema, pode ser irrelevante ou até
portância do social para contextualizar histórias enganadora.10
individuais; nesta segunda parte, tentei mostrar co- Tal fato se encadeia na segunda ressalva. Nun-
mo é possível chegar a generalizações a partir de da- ca podemos prever de antemão que o modelo que
dos particulares. Nessa forma de raciocínio, “é a construímos seja “a chave da compreensão” ou se-
particularidade mais ínfima […] que mantém aber- quer relevante quando lidamos com casos específi-
ta a rota do universal” (Dumont, 1992). cos. Deve ser trabalhado como hipótese, a ser tes-
Cabe, agora, fazer uma última ressalva quan- tada ao lado de outras hipóteses. Serve para ofere-
to às generalizações sociológicas que pautamos. cer uma alternativa, para abrir o leque de interpre-
Para fins didáticos, sublinhamos certos processos tações possíveis, não para fechar o assunto ou criar
investigativos neste artigo. Da mesma forma que o novas fórmulas dogmáticas.
individualismo metodológico resvala por momen- “Cada caso é um caso” só faz sentido nessa
tos para uma sacralização do indivíduo, da mesma perspectiva aberta — em que o educador ou agen-
forma a abordagem sociológica arrisca desembo- te social não somente se mune de diversos modelos
car na reificação de processos coletivos. Para nos explicativos mas também ousa — a partir da ob-
prevenimos contra tal excesso devemos lembrar servação de caso após caso — criar ele mesmo no-
duas coisas. vas hipóteses. Ao colocar a ênfase no método (e não
Em primeiro lugar (como nos lembram to- em algum receituário teórico), o método etnográ-
dos os antropólogos sensatos, de Evans-Pritchard fico serve como uma maneira interessante para o
e Leach a Geertz), nossos modelos são criações ab- educador pensar sua interação com o material em-
stratas, cunhadas para ajudar-nos — nós, intelec- pírico de seu dia-a-dia. Ele provavelmente não po-
tuais e educadores — a fazer sentido daqueles “ou- derá cumprir o método etnográfico ao pé da letra.
tros”. Este fato é evidente antes de tudo nos estu- Não terá a disponibilidade para passar horas a fio
dos antropológicos de sociedades ágrafas, onde as fazendo observação participante. (Muitas vezes, seu
normas nunca foram escritas, as regras de compor- contato com o “nativo” é confinado à sala de aula
tamento não foram “codificadas” e não seguem ou consultório.) Não terá o luxo de passar “incóg-
necessariamente uma lógica jurídica homogenei- nito” entre seus nativos. Entretanto, poderá tomar
zante e linear. Ao nos atirarmos para a “lógica in- de empréstimo alguns dos elementos descritos aqui
formal da vida cotidiana”, estamos também aden- — o estranhamento, a esquematização, a descons-
trando uma zona mal definida, mapeando maneiras trução de estereótipos e a comparação sistemática
de ver e pensar o mundo que não são nem homo- entre casos para chegar a novas maneiras de com-
gêneas, nem estanques. Em outras palavras, nossos preender seus “clientes” e interagir de forma cria-
modelos sempre vão ser uma simplificação gros- tiva com eles.
seira da realidade.
A própria “diferença” entre nós e nossos na-
tivos é um artifício da análise. Não adianta criti-
car a ilusão narcisista de uma fusão de egos entre
pesquisador e pesquisado para cair no erro opos-
10 Colegas universitários, ao me chamarem atenção
to, isto é, na reificação da diferença. Existe uma
para o fato de que a circulação de crianças já foi razoavel-
multiplicidade de maneiras para conceber agrupa- mente comum também nas camadas médias brasileiras,
mentos na nossa sociedade — maneiras que ditam trazem um antídoto bem-vindo contra a reificação do meu
novos arranjos, novas definições sobre os limites modelo.

76 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Quando cada caso NÃO é um caso

Diagrama 6
As múltiplas formas de parentesco

1. Filha — Criada pela madrinha 5. Filho — Criado pelo padrasto e mãe


2. Filho — Criado pela mãe de criação do pai 6. Filha — Criada pelo pai e mãe
3. Filho — Fugiu de casa, ficou “fora” de 8 a 18 anos 7. Filha — Criada pelo pai e mãe
4. Filho — Criado pela avó paterna

CLAUDIA FONSECA, doutora pela EHESS, Paris, é BECKER, H., (1994). Métodos de pesquisa em ciências so-
professora titular de antropologia no Programa de Pós-Gra- ciais. São Paulo: Hucitec.
duação em Antropologia Social na Universidade Federal do BOTT, E., (1976). Família e rede social. Rio de Janeiro:
Rio Grande do Sul. Faz pesquisa na área de organização fa- Francisco Alves.
miliar, camadas populares e direitos humanos. Entre suas
CADORET, A., (1995). Parenté plurielle: anthropologie du
publicações recentes, incluem-se: Caminhos de adoção (Cor-
placement familial. Paris: Harmattan.
tez, 1995), Honra, família e gênero (Editora da UFRGS, no
prelo) e a organização de um número especial da revista Ho- COLLARD, C., (1991). Les Orphelins “propres” et les au-
rizontes Antropológicos: “Diversidade Cultural e Cidada- tres... carence parentale et circulation des orphelins au
nia” (PPGAS/UFRGS, 1999). Québec (1900-1960). Culture, v. 11, nº 1, 2.
DE CERTEAU, M., (1994). A invenção do cotidiano. Pe-
trópolis: Vozes.
Referências bibliográficas
DIAS, M. O. L. da S., (1984). Quotidiano e poder em São
Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense.
ALVIM, R., (1997). A sedução da cidade. Rio de Janeiro:
Graphia. DOUGLAS, M., (1994). Risk and Blame: Essays in Cultu-
ARIÈS, P., (1981). História social da criança e da família. ral Theory. Londres: Routledge.
São Paulo: Zahar. DUARTE, L. F., (1986). A vida nervosa. Rio de Janeiro:
BADINTER, E., (1980). L’Amour en plus: l’histoire de l’a- Zahar.
mour maternel du XVIIe au XXe siècle. Paris: Flamma- DUMONT, L., (1992). Homo hierarquicus. São Paulo:
rion. EDUSP.

Revista Brasileira de Educação 77


Claudia Fonseca

EVANS-PRITCHARD, E., (1978). Os Nuer. São Paulo: SARTI, C., (1995). A família como espelho. São Paulo: Edi-
Perspectiva. toras Reunidas.
FONSECA, C. (1989). A história social no estudo da famí- SEGALEN, M., ZONABEND, F., (1986). Familles en Fran-
lia: uma excursão interdisciplinar. BIB, v. 27, p. 51-73. ce. In: Histoire de la famille, v. 3: Le choc des moderni-
__________, (1994). Antropologia, cidadania e educação. tés. Paris: Armand Colin.
Revista do Geempa (Para transpor o milênio), nº 3, p. VELHO, G., (1989). Subjetividade e sociedade: uma expe-
75-84. riência de geração. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
__________, (1995). A mulher valente. Horizontes Antro- ZALUAR, A. Z. (org.), (1975). Desvendando máscaras so-
pólogicos, v. 1, p. 113-30. ciais. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
GEERTZ, C., (1978). A interpretação das culturas. Rio de
Janeiro: Zahar.
__________, (1985). The uses of diversity. Tanner Lectures
on Human values, v. VII, Salt Lake City: University of
Utah Press.
__________, (1988). Works and Lives: The Anthropologist
as Author. Stanford: Stanford University Press.
GOODY, E., (1982). Parenthood and Social Reproduction:
Fostering and Occupational Roles in West Africa. Lon-
dres: Cambridge University Press.
KNAUTH, D., (1996). Aids, relações de consangüinidade
e de aliança. Cadernos do NUPACS — Textos para di-
vulgação, v. 3.
LALLEMAND, S., (1993). La Circulation des enfants en
société traditionnelle: Prêt, don, échange. Paris: Editions
Harmattan.
LÉVI-STRAUSS, C. (1974). Sociologia e antropologia. São
Paulo: EPU.
MAGNANI, José Guilherme. (1986). Discurso e represen-
tação ou De como os baloma de Kiriwana podem reen-
carnar-se nas atuais pesquisas. In: CARDOSO, R. (org.).
Aventura antropológica. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
MALINOWSKI, B., (1922). Argonauts of the Western Pa-
cific. Nova York: E. P. Dutton.
MAUSS, M., (1979). A expressão obrigatória de sentimen-
tos. In: OLIVEIRA, R. C. de (org.). Mauss. São Paulo:
Ática.
MINTZ, S., (1974). Worker in the Cane. Nova York: The
Norton Library.
MINTZ, S., (1984). Encontrando Taso, me descobrindo.
Dados, v. 27, p. 45-58.
PRIORE, M. del, (1997). A história das mulheres no Bra-
sil. São Paulo: Contexto.
SANJEK, Roger (org.), (1990). Fieldnotes: The Makings of
Anthropology. Ithaca: Cornell University Press.

78 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10

Você também pode gostar