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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE

Book · April 2018

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1 author:

Ana Roque Dantas


New University of Lisbon
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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE 

 
 

ANA ROQUE DANTAS 
 

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE 
 

 
 

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação 
 
DANTAS, Ana Roque, 1975‐ 
 
A construção social da felicidade. – (Trilhos ; 4)  
ISBN 978‐989‐689‐174‐9 
 
CDU 316 
         159 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Título: A Construção Social da Felicidade 
Autora: Ana Roque Dantas 
Edição: Edições Colibri 
Capa: João Roque 
Depósito legal n.º 337 123/11 
 
 
 
 
Lisboa, Novembro de 2012 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
Ao João e à Francisca,  
pela sua importância na minha felicidade. 
 
 
 

ÍNDICE 

 
 
 
 
PREFÁCIO ............................................................................................................................ 9 
 
INTRODUÇÃO................................................................................................................... 11 
 
1   FELICIDADE: CONSTRUÇÃO DO OBJECTO SOCIOLÓGICO ....................... 13 

1.1  Do problema social ao objecto sociológico .................................... 13 


1.2  A felicidade como objecto de investigação sociológica: 
romper com o biológico e o individual e “procurar o 
social” ......................................................................................................... 15 
1.2.1  O sentimento de felicidade ........................................................ 17 
1.2.2  As dimensões da felicidade ....................................................... 19 
1.3  Para um modelo de análise de felicidade........................................ 23 
1.3.1  A construção do modelo...................................................................... 23 
1.3.2  Como observar empiricamente as dimensões e 
variáveis inerentes aos perfis da felicidade?....................... 27 
 
2  BREVES CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS .............................................. 31 

3  O CONTEXTO ECONÓMICO E SOCIAL DA FELICIDADE............................. 33 

3.1  Características socioculturais da faixa etária: 30‐45 anos........ 34 


 
4  CONFIGURAÇÕES COLECTIVAS: CONDUTAS, ATITUDES E 
VALORES ASSOCIADOS À FELICIDADE............................................................ 39 
4.1  Dimensão relacional dos perfis.......................................................... 44 
8  ANA ROQUE DANTAS  

5  A FELICIDADE EM CONSTRUÇÃO: PRÁTICAS E DINÂMICAS 
SOCIAIS.......................................................................................................................... 49 

5.1  Os percursos de vida e a construção da felicidade ...................... 50 


5.2  Os contextos da felicidade ................................................................... 52 
5.2.1  As relações interpessoais........................................................... 52 
5.2.1.1  Os pais .................................................................................. 54 
5.2.1.2  A conjugalidade e o casamento .................................... 56 
5.2.1.3  Os filhos ............................................................................... 60 
5.2.1.4  As relações de amizade................................................... 62 
 
5.3 A felicidade na relação com o trabalho ............................................ 64 
5.4 Os valores orientadores das práticas e condutas.......................... 70 
5.4.1  O colectivo e o individual ........................................................... 70 
5.4.2  Espiritualidade .............................................................................. 73 
5.4.3  Hedonismo ...................................................................................... 75 
5.4.4  Ter ou ser ........................................................................................ 76 
5.4.5  Materialidade ................................................................................. 80 
5.4.6  Felicidade ........................................................................................ 83 
 
5.5  Projectos de vida..................................................................................... 87 
5.5.1  A importância do tempo ............................................................. 88 
5.5.2  Viver ou Adiar ................................................................................ 91 
 
6  CONCLUSÃO................................................................................................................. 97 
 
ANEXOS .............................................................................................................................. 99 
 
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................. 107 
 

PREFÁCIO 

 
Este livro da Ana Roque, A Construção Social da Felicidade, é o ponto de 
chegada  de  um  percurso  de  investigação  iniciado  há  alguns  anos  no 
âmbito  do  mestrado  em  Sociologia,  da  Faculdade  de  Ciências  Sociais  e 
Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Ele representa o fim de uma 
longa  etapa  cientificamente  muito  criativa,  à  qual  se  segue  um  novo 
desafio, agora no âmbito do doutoramento ainda em curso. 
A questão de partida que a Ana tinha para a sua pesquisa era relati‐
vamente simples: será que a procura de felicidade é uma das condicio‐
nantes maiores da acção dos actores sociais? Se sim, então porque não 
procurar estudá‐la de um ponto de vista sociológico? 
Apesar do trabalho poder ancorar‐se teórica e metodologicamente 
nas  reflexões  e  estudos  da  equipa  do  CesNova,  a  que  a  Ana  pertence, 
particularmente os que se situam no âmbito da acção social e das emo‐
ções, o risco continuava a ser grande. Sendo pioneiro na Sociologia, era 
ainda  incerto  como  é  que  este  novo  tema  poderia  ser  resgatado  aos 
olhares da Psicologia, da Economia e da Filosofia.  
Em tal desafio, a Sociologia era claramente o parente pobre. Falta‐
va‐lhe  reflexão  teórica  específica,  conceitos  operacionalizáveis  empiri‐
camente, modelos de análise e instrumentos metodológicos de observa‐
ção  fiáveis  para  captar  dimensões  e  variáveis  que  a  maior  parte  das 
vezes se situam mais nos “bastidores” do que no “palco” do teatro social, 
para utilizar uma metáfora de Erving Goffman. 
A ambição da Ana era equivalente à sua determinação em procurar 
um fio condutor que lhe permitisse compreender como e porquê a ideia 
de felicidade e a sua representação social constituem um forte catalisa‐
dor da acção, fazendo com que um número crescente de actores sociais 
nas sociedades ocidentais, pertencentes a estratos sociais médios e ele‐
vados, mudem completamente a sua trajectória de vida no imediato, ou 
que  permaneçam  com  essa  preocupação  como  pano  de  fundo  de 
mudanças futuras. 
Ana  Roque  foi  pioneira  em  Portugal  nesse  caminhar  sociológico; 
fazendo a revisão bibliográfica das várias disciplinas das ciências sociais 
que abordaram o tema da felicidade, explicitando conceitos, formulando 
hipóteses,  construindo  um  modelo  explicativo  a  partir  de  variáveis 
10  ANA ROQUE DANTAS  

socioculturais e validando‐o empiricamente através de um conjunto de 
16 entrevistas em profundidade, em cujo conteúdo buscou a compreen‐
são  sociológica  sobre  as  representações  dos  diferentes  actores,  bem 
como  dos  factores  biográficos,  socioculturais  e  de  trajectórias  de  vida 
que lhe estão associados.  
No plano teórico, a pesquisa situa‐se na confluência das sociologias 
das emoções e da acção social. A nível metodológico é notória a influên‐
cia das teorias sistémicas, dando esta dissertação um contributo signifi‐
cativo para futuras abordagens intersistémicas.  
A  amostra  escolhida  é  constituída  por  pessoas  de  estratos  sociais 
médios, e médios altos, de uma faixa etária surgida com a Revolução de 
Abril, onde as expectativas de um futuro risonho marcaram os seus per‐
cursos sociais. Esta foi a sua opção na escolha do campo de observação; 
foi  o  ponto  de  partida  para  uma  pesquisa  com  uma  maior  amplitude 
social, sobre o mesmo tema, que agora está a desenvolver no âmbito do 
doutoramento  e  que  nos  irá  trazer  novos  conhecimentos,  também,  dos 
efeitos da actual crise económico‐financeira nas representações e práti‐
cas dos actores sociais. 
Creio  estar  certo  ao  afirmar  que  este  trabalho  representa  também 
para a Ana um tempo de transição. De facto, quando nos envolvemos em 
estudos  desta  ambição,  cujos  contornos  são  indefiníveis  no  plano  pes‐
soal,  até  podemos  saber  como  entrámos,  mas  é  incerta  a  forma  como 
terminamos.  A  mudança  é  sempre  uma  certeza  e  a  sua  intensidade  e 
amplitude dependem só do grau de inscrição que a viagem provoca em 
nós.  Fazemo‐nos  sociólogos,  produzindo  Sociologia;  sempre  incomple‐
tos, porque reflexiva e criticamente vamos continuamente mudando. 
Este trabalho da Ana Roque tem mais do que é necessário para que 
um  novo  voo  possa  ser  dado  sobre  a  investigação  sociológica  da  felici‐
dade.  Depois  desta  publicação,  ficamos  agradavelmente  à  espera  dos 
resultados  do  estudo  que  tem  em  curso  no  âmbito  do  doutoramento  e 
que certamente assinalará o tema do seu próximo livro. 
 
 
Manuel Lisboa 
12 de Março de 2011 
Algures no espaço aéreo africano – entre a República Centro Africana e a 
República Democrática do Congo. 

 
 
 

INTRODUÇÃO 

 
A felicidade é hoje um tema que quase todas as semanas preenche uma 
parte  da  imprensa  escrita.  Este  poderia  ser  um  primeiro  sinal  da  sua 
importância  na  estruturação  das  expectativas  e  acção  dos  actores 
sociais.  
Sendo  a  felicidade,  sem  dúvida,  um  dos  motores  de  acções  indivi‐
duais  e  colectivas  será  que  tem  de  ficar  prisioneira  do  senso  comum 
esclarecido e da comunicação social? Não será ela, também, um proble‐
ma passível de análise sociológica? Se sim, como a analisar a partir dos 
instrumentos sociológicos?  
A  manifestação  da  felicidade  extravasa  os  meros  percursos  indivi‐
duais e assume uma dimensão de acção colectiva. Constitui um proble‐
ma social na medida em que surgem indicadores de que ela é central na 
vida  dos  actores  sociais.  É  a  partir  desta  centralidade  que  se  pretende 
construir o problema sociológico.  
Assim,  defendemos  que  a  felicidade  assume  o  papel  de  motor  da 
acção social, ainda que sob formas diferenciadas. E questionamos de que 
forma  estas  diferentes  características  se  podem  observar  através  das 
práticas, dos valores, da relação com o tempo e dos quadros de vida dos 
actores sociais.  
São  estas  as  principais  questões  que  estruturam  a  primeira  parte 
deste  trabalho  que  se  inicia  com  a  justificação  da  importância  de  uma 
abordagem  da  Sociologia  ao  tema  da  felicidade  enquanto  problema 
social  –  revelado  pela  sua  crescente  visibilidade  –  e  a  sua  constituição 
em  objecto  sociológico.  Partindo  da  reflexão  teórica  de  outros  autores, 
mostra‐se a pertinência e urgência de uma reflexão sociológica sobre o 
tema.  
Este  trabalho  começou  como  uma  exploração  de  um  domínio  que 
parecia  estar  fora  do  âmbito  da  Sociologia.  A  sua  legitimidade  decorre 
da  própria  existência  de  um  problema  social  e  do  reconhecimento  da 
sua  relevância  temática,  transformando  um  fenómeno  da  realidade 
social num objecto da Sociologia.  Estamos conscientes das dificuldades 
em abordar um tema como este a partir desta ciência. Por isso, partimos 
das  poucas  contribuições  teóricas  já  existentes  para  desenvolver  uma 
proposta de um novo modelo de análise que possa ser observado empi‐
12  ANA ROQUE DANTAS  

ricamente. O que se propõe é uma nova janela, um novo olhar sobre um 
velho fenómeno: a procura de felicidade1. 
 
 
 

                                                             
1  Este livro apresenta os resultados de uma investigação desenvolvida no âmbito do 
Mestrado em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universi‐
dade Nova de Lisboa.  
 

 1   FELICIDADE: CONSTRUÇÃO DO OBJECTO SOCIOLÓGICO 

1.1  Do problema social ao objecto sociológico  

O  tema  da  felicidade  interessa  particularmente  à  Sociologia  na 


medida em que hoje uma parte considerável dos actores sociais procura 
modelos de vida em que a questão da felicidade é equacionada como um 
factor fundamental na sua acção. 
O crescente interesse pelo fenómeno da felicidade traduz‐se por um 
aumento da informação sobre novas formas de a alcançar, novas opções 
e  escolhas  em  que  a  felicidade  aparece  com  um  papel  central,  influen‐
ciando a forma e expressão de sentir.  
Destacam‐se as alusões à qualidade de vida, ao bem‐estar, à satisfa‐
ção;  sinais  de  que  a  felicidade  pode  constituir  um  problema  social.  E  é 
um  problema  social  na  medida  em  que  são  inquietações  que  condicio‐
nam  as  expectativas  e  a  acção  dos  indivíduos  em  sociedade  e  não  se 
reduzem  a  meros  desejos  individuais  sem  eco  no  tecido  social  onde  os 
actores  individuais  interagem.  Existe  uma  preocupação  social  com  o 
fenómeno  da  felicidade.  Os  inúmeros  artigos  que  têm  vindo  a  público 
através  da  comunicação  social  são  disso  um  exemplo.  Este  apelo  cons‐
tante  à  felicidade  é,  por  um  lado,  um  indicador  do  quanto  os  actores 
sociais  a  quem  ela  se  destina  estão  dispostos  a  orientar  a  sua  conduta 
em  função  da  sua  procura  e,  por  outro,  mostra  a  influência  que  tais 
media podem ter nas suas representações sociais sobre a felicidade, bem 
como da importância para as suas vidas.  
Podemos  questionar  quais  as  razões  que  conduzem  à  visibilidade 
crescente deste fenómeno na sociedade portuguesa.  
Nas últimas décadas, os níveis económicos da população portuguesa 
melhoraram  substancialmente,  com  a  consequente  satisfação  das  neces‐
sidades básicas e a melhoria da qualidade de vida em geral. Seria expectá‐
vel que, com o crescimento do bem‐estar, houvesse um aumento do sen‐
timento de felicidade. Contudo, estudos realizados não revelam uma asso‐
14  ANA ROQUE DANTAS  

ciação directa e linear1. Como nos diz Layard (2005), nos últimos 50 anos, 
não  se  verificaram  acréscimos  na  felicidade  individual  mas,  ao  mesmo 
tempo, as pessoas estão mais ricas, trabalham menos, gozam mais férias, 
viajam mais, têm maior esperança de vida e são mais saudáveis. 
Portugal  apresenta,  desde  1986,  níveis  de  satisfação  com  a  vida 
inferiores  à  média  da  União  Europeia  (enquanto  a  totalidade  dos  cida‐
dãos  membros  apresentou  sempre  percentagens  de  satisfação  equiva‐
lentes  ou  superiores  a  75%,  os  portugueses  revelaram,  para  o  mesmo 
período, uma média de cerca de 66% de satisfeitos) e a distância entre 
Portugal  e  os  restantes  países  da  UE  tem  vindo  a  acentuar‐se  nos  últi‐
mos  anos.  “Se  em  1986,  a  diferença  entre  a  percentagem  de  cidadãos 
nacionais satisfeitos e a média da UE era de 13%, em 2006 situa‐se aci‐
ma dos 22%” (Relatório Eurobarómetro 66, 2006: 5). 
No  mesmo  sentido,  e  segundo  o  Inquérito  à  Ocupação  do  Tempo 
(INE, 1999), num dia médio, um indivíduo ocupa cerca de 8:04 a dormir, 
7:37  a  trabalhar,  0:56  em  trajectos  e  3:04  em  actividades  domésticas, 
restando  muito  pouco  tempo  para  outras  actividades.  As  actividades 
realizadas  no  tempo  livre  deixado  pelas  obrigações  profissionais,  fami‐
liares  e  voluntariado/participação  cívica  são  essencialmente  ler  e  ver 
televisão.  Mesmo  que  destas  actividades  se  retire  prazer  e  satisfação, 
questionamos  porque  é  que  cerca  de  metade  da  população  portuguesa 
com 15 ou mais anos (54%) sente que anda apressada2. Aliás, o controlo 
do  tempo  tem  sido  analisado  nas  suas  implicações  sobre  a  felicidade, 
sugerindo  contradições  e  desequilíbrios  entre  as  expectativas  indivi‐
duais  e  os  constrangimentos  sociais  a  que  os  indivíduos  estão  sujeitos. 
Uma boa vida não é aquela em que se goza o tempo disponível?  
Por um lado, alguns estudos indicam que as pessoas não se conside‐
ram  mais  felizes  do  que  no  passado  (Layard,  2003  e  2005;  Easterlin, 
2001 e 2003); por outro, aumenta a importância da felicidade, resultan‐
do no que alguns autores classificam como paradoxal: as pessoas dedi‐
cam  a  maior  parte  da  sua  vida  ao  trabalho,  na  procura  de  uma  vida 
melhor e deixam pouco tempo e energia para dela usufruir. 

                                                             
1  Os  EUA  (Gallup)  e  a  Europa  (Eurobarómetro)  recolhem  sistematicamente  infor‐
mação sobre a satisfação auto­revelada e expectativas com a vida e a maioria dos 
trabalhos sobre felicidade utiliza estes indicadores. 
2  Quanto à frequência que o sentimento de falta de tempo assume, 37% dos homens 
e 42% das mulheres anda apressado todos os dias e 31% dos homens e 31% das 
mulheres com frequência (INE, 1999). 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   15 

A civilização de felicidade paradoxal é o conceito proposto por Gilles 
Lipovetsky (2006) para descrever a coexistência de princípios contradi‐
tórios nas sociedades ocidentais na actualidade: vivemos até mais tarde, 
em melhor forma física e com melhores condições materiais; cada um é 
responsável pela conduta da sua vida; os nascimentos são cada vez mais 
decididos; os comportamentos sexuais liberalizados; o tempo consagra‐
do  ao  lazer  aumenta  constantemente  e  as  festas  e  incitações  ao  prazer 
invadem  a  vida  quotidiana.  A  par  destas  melhorias  e  mesmo  que  uma 
imensa maioria se declare feliz, aumenta o número de depressões, stress 
e ansiedade; vivemos em sociedades cada vez mais ricas mas onde cada 
vez  mais  pessoas  têm  condições  precárias;  as  solicitações  hedonistas 
são  constantes,  mas  existem  a  par  de  inquietudes,  decepções  e  insegu‐
rança social (Lipovetsky, 2006). 
Vários  autores  que  se  têm  dedicado  ao  estudo  da  felicidade  lem‐
bram que a cultura ocidental valoriza positivamente o ideal de felicidade 
e admira os “felizes”. Satisfação e felicidade são construções sociocultu‐
rais, num modelo em que estas se assumem como um objectivo social – 
procuramos  ser  felizes  e  que  os  outros  nos  reconheçam  como  felizes 
(Veenhoven, 1984; Garhammer, 2003; Rapley, 2003).  
Assim,  parecem  emergir  constrangimentos  socioculturais  que 
assumem  importância  para  os  actores  sociais,  como  o  reconhecimento 
social (da felicidade e de todo um quadro de vida que se traduz também 
pela  posse  de  bens  simbólicos  e  materiais),  a  par  de  uma  acção  indivi‐
dual hedonista que evita o desagradável e procura o prazer. 
Entendemos que há uma solicitação ou apelo social à felicidade, seja 
de forma directa, procurando formas individuais de a alcançar, ou indi‐
recta,  através  da  criação  de  expectativas  colectivas  que  guiam  a  acção 
individual.  

1.2  A  felicidade  como  objecto  de  investigação  sociológica: 


romper  com  o  biológico  e  o  individual  e  “procurar  o 
social”.  

Felicidade começa por ser uma palavra que caracteriza uma forma 
de sentir que remete para a expressão individual de um estado afectivo 
e  emocional.  Mesmo  quando  racionalizado,  sugere  um  termo  que  tem 
sido  apropriado  fundamentalmente  pela  Psicologia.  Por  vezes,  procu‐
ram‐se  algumas  manifestações  biológicas,  mas  quase  sempre  na  pers‐
pectiva de que é um termo que se refere à definição de um sentimento 
16  ANA ROQUE DANTAS  

individual,  que  se  manifesta  através  de  formas  de  agir,  de  pensar  e  de 
sentir de actores sociais individuais.  
Mas  significará  isto  que  não  há  nada  de  colectivo  neste  fenómeno 
que interesse à Sociologia? Defendemos neste trabalho que há. Primeiro 
porque há grupos sociais que manifestam essas formas de sentir de um 
modo  semelhante.  Segundo  porque  essa  forma  de  sentir  é,  também, 
produto  de  uma  construção  social,  o  resultado  de  influências  de  vários 
sistemas que se sobrepõem e interagem, consolidando‐se em represen‐
tações  que  orientam  e  condicionam  as  nossas  práticas  e  modelos  de 
interpretação,  assim  como  as  nossas  relações  pessoais  e  colectivas 
(Moscovici, 1984; Jodelet; 1999).  
Nesse sentido, é possível e desejável a sua abordagem pela Sociolo‐
gia, construindo um corpo teórico orientador e  enquadrador, com uma 
rigorosa  explicitação  conceptual  e  a  construção  de  hipóteses  que  pos‐
sam ser objecto de validação pela observação empírica. 
Machado Pais (2006) defende que, quando nos interrogamos sobre 
o significado social de um sentimento, iniciamos só por isso um questio‐
namento sociológico, uma vez que a Sociologia deve procurar objectivar 
a  dimensão  social  dos  sentimentos  sentidos.  “…  se  a  Sociologia  tem 
alguma  coisa  a  dizer  sobre  tais  sentimentos  é  porque  eles  se  revestem 
de profundas marcas sociais apesar de se manifestarem individualmen‐
te…” (Pais, 2006: 14). 
O estudo da felicidade tem de centrar‐se nos factores que a condi‐
cionam e na forma como influencia condutas e acções de actores sociais 
e  não  enquanto  estado  de  espírito  pessoal  ou  expressão  de  um  senti‐
mento individual, onde ela é objecto de outras áreas científicas. 
Sabemos que cada ciência oferece a sua própria “janela” do mundo, 
dando uma versão forçosamente parcial e incompleta da realidade que, 
embora  singular,  pode  ser  analisada  sobre  ópticas  diferentes  (Nohria, 
2002;  Sedas  Nunes,  1977).  Aqui  preocupar‐nos‐emos  essencialmente 
com o ponto de vista da Sociologia. 
Lembramos Durkheim (1993) e a importância que atribui aos cons‐
trangimentos sociais na orientação das condutas individuais. Da mesma 
forma,  torna‐se  importante  reconhecer  que  construímos  e  reconstruí‐
mos  activamente  a  estrutura  social  no  decurso  das  nossas  actividades 
diárias, incorporando e reproduzindo modelos sociais. 
 
 
 
 
 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   17 

1.2.1 Em torno do sentimento de felicidade 

A felicidade é um sentimento ou uma emoção? Quando falamos em 
emoção  e  sentimento  referimo‐nos  a  conceitos  distintos  ou  eles  reme‐
tem  para  a  mesma  realidade?  De  que  forma  os  sentimentos  e  emoções 
condicionam a acção social? São estas algumas das questões que guiam 
este  ponto,  onde  se  procura  analisar  a  distinção  entre  sentimentos  e 
emoções e a sua relação com a acção social. 
No  âmbito  da  Sociologia  das  Emoções,  Jack  Barbalet  (1998,  2003) 
defende  que,  qualquer  que  seja  o  fenómeno  social  em  análise,  a  sua 
compreensão ganha com a identificação das dimensões emocionais, uma 
vez que as emoções são a ligação necessária entre a estrutura social e a 
acção social.  
Para Carlos Castilla del Pino (2000), à Sociologia não importa o que 
são os sentimentos em si, mas o modo como o colectivo os maneja, pois 
a  Sociologia  centra‐se  nos  indivíduos  no  plural,  indivíduos  que  são 
interdependentes,  cujas  vidas  se  transformam  e  que  são  significativa‐
mente moldadas e condicionadas por configurações sociais. 
Machado  Pais  (2006),  numa  obra  dedicada  à  solidão,  refere  que  à 
Sociologia interessa compreender os mecanismos que produzem os sen‐
timentos. A propósito da solidão, argumenta que perceber o seu signifi‐
cado é uma via para o entendimento das formas sociais em que os sen‐
timentos são vividos. 
Outro importante contributo à temática dos sentimentos e emoções 
chega‐nos pela via da Neurobiologia. Damásio considera que “... os sen‐
timentos,  bem  como  os  apetites  e  emoções  que  os  causam,  desempe‐
nham  um  papel  decisivo  no  comportamento  social.”  (2003:  162).  Este 
autor defende que a tomada de decisão não depende só dos sentimentos 
e emoções mas do conhecimento a eles associado, ou seja, sobre a base 
biológica actua o processo social e cultural, abrindo caminho à discussão 
do papel dos constrangimentos sociais associados ao processo de sentir 
e de regular as emoções. Defende que os sentimentos e as emoções são 
importantes  porque  fazem  parte  daquilo  que  somos,  pessoal  e  social‐
mente, e que os indivíduos governam as suas vidas na procura de felici‐
dade, sendo que “… os conhecimentos … sobre emoção e sentimento têm 
alguma coisa a dizer sobre a forma como vivemos… [e por isso] são per‐
tinentes ao nível da sociedade.” (2003: 320/321). 
Os  trabalhos  de  António  Damásio  (2003)  deram  centralidade  à 
temática dos sentimentos e das emoções, ao defender a sua importância 
para  a  vida  em  sociedade  e  para  a  condição  humana,  nomeadamente, 
como a emoção e o sentimento condicionam o comportamento racional 
18  ANA ROQUE DANTAS  

e social. O autor mostra como sentimentos e emoções desempenham um 
papel  na  racionalidade  e  no  processo  de  tomada  de  decisão  e,  conse‐
quentemente, nas relações sociais: “... o facto é que as emoções, positivas 
ou negativas, bem como os sentimentos que se lhes seguem, se tornam 
componentes obrigatórios das nossas experiências sociais.” (2003: 169).  
O  autor  propõe  uma  distinção  entre  sentimento  e  emoção,  pois 
embora  sejam  termos  utilizados  de  forma  indistinta,  têm  significados 
diferentes. Diz‐nos que a palavra emoção tende a incluir a noção de sen‐
timento  mas  que  “…  as  emoções  e  as  reacções  com  elas  relacionadas 
parecem preceder os sentimentos na história da vida e constituir o ali‐
cerce  dos  sentimentos.”  (2003:  44).  Assim,  distingue  claramente  senti‐
mentos  e  emoções  e  explica  que  é  através  dos  sentimentos  (que  são 
dirigidos para o interior e são privados) que as emoções (dirigidas para 
o exterior e que são públicas) iniciam o seu impacto na mente. Mas emo‐
ção e sentimento constituem o início e o fim de um processo com meca‐
nismos diferentes em que podemos sentir emoções de forma consciente 
(2003: 56). Não há sentimentos sem emoções. 
Também  Stephen  Fineman  (2003)  esclarece  que  a  diferença  entre 
emoção  e  sentimento  reside  no  facto  de  que  a  emoção  pode  afectar 
espontaneamente os processos do nosso corpo, enquanto  os sentimen‐
tos  decorrem  da  forma  como  avaliamos  e  somos  avaliados,  pois  aquilo 
que  mostramos  dos  nossos  sentimentos  é  influenciado  por  convenções 
sociais. Apresenta o sentimento como construção social com significado 
cultural, social e pessoal. 
Numa  lógica  de  continuidade,  emoção  e  sentimento,  embora  dife‐
rentes, apoiam‐se uma à outra; as emoções constituem‐se como estrutu‐
ras  de  sentimentos  que  dão  sentido  à  experiência  emocional  (Burkitt, 
2002). 
Se o termo emoção vulgarmente inclui a ideia de sentimento, quan‐
do  as  emoções  são  mapeadas  mentalmente,  representando  os  estados 
dos  sistemas  do  corpo,  o  resultado  é  o  sentimento  (Damásio,  2003: 
96/97). António Damásio define sentimento como o estado mental que 
suporta  a  regulação  homeoestática.  Assim,  o  sentimento  aparece  como 
uma  emoção  organizada  através  de  conhecimento  e  aprendizagem  e  a 
sabedoria associada ao processo de sentir. Os sentimentos surgem como 
um indicador da nossa economia interna, da forma como estamos. Estes 
sentimentos, enquanto percepções compostas de um determinado esta‐
do  do  corpo  são,  também,  a  reconstrução  de  memórias  com  certos 
temas.  Desta  forma,  quando  nos  sentimos  felizes  surgem‐nos  lembran‐
ças  de  situações  felizes.  Estas  percepções  estão  ligadas  temporalmente 
com o objecto que as causa e desencadeia. Sabemos que estamos felizes 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   19 

por causa de determinado estímulo que igualmente permite que tenha‐
mos  consciência  da  felicidade  e  do  sofrimento.  Explica  que  o  desejo  de 
felicidade,  assim  como  o  de  evitar  a  dor,  são  fins  da  condição  humana, 
pertencem à sua essência, desempenhando um papel crucial no assegu‐
rar da sobrevivência, apesar dos estímulos que o provocam variarem em 
cada  indivíduo  segundo  uma  forma  de  personalização  da  emoção 
(Damásio, 2003).  
Damásio  esclarece  ainda  que  a  linha  que  separa  emoções  e  senti‐
mentos é ténue e que “… os sentimentos levaram à emergência da capa‐
cidade de antecipação e previsão de problemas e à possibilidade de criar 
soluções novas…” (2003: 97).  
Os  referidos  contributos  esclarecem  que  os  sentimentos  incorpo‐
ram  conhecimento  e  sabedoria  e  suportam  a  acção;  mostram‐nos  tam‐
bém  que  a  felicidade  é  um  sentimento  e,  como  tal,  tem  um  papel  na 
orientação da acção. Assim, à Sociologia importa perceber a importância 
que os sentimentos têm para a acção social e de que forma a condicio‐
nam. A este trabalho interessa mostrar como o sentimento de felicidade 
motiva a acção dos actores sociais e lhes condiciona as práticas e com‐
portamentos. 

1.2.2  As dimensões da felicidade 

A  felicidade  é  apresentada  por  António  Damásio  (2003)  como 


essência  da  condição  e  manutenção  humana,  equilibrada  e  gerida 
segundo os atributos pessoais de cada um. Embora concordando com as 
especificidades  individuais  de  que  este  sentimento  se  pode  revestir, 
podemos  questionar‐nos  acerca  da  influência  que  o  contexto  social 
exerce na produção da representação da mesma.  
Acreditamos que o que separa o individual e o social, tal como o que 
distingue o privado e o público: “... dois territórios construídos à medida 
das  conveniências...  separa‐os  uma  linha  fictícia,  um  campo  neutro  dos 
dois  lados,  permanentemente  em  tensão,  de  forças  e  poderes  que  se 
entrincheiram de cada lado, se confrontam e se misturam... dois mundos 
que se interpenetram e se realimentam...” (Lisboa, 2003: 12). 
A  felicidade  não  é  unicamente  construída  pelo  indivíduo  e  depen‐
dente  das  suas  especificidades  psicológicas,  é  também  fortemente  con‐
dicionada  pelo  contexto  social  em  que  o  indivíduo  se  insere  e  do  meio 
social  em  que  foi  socializado  (Veenhoven,  1984,  1991;  Frey  e  Stutzer, 
2002).  Assim,  admitimos  que  tanto  as  dimensões  individuais  e  biológi‐
cas como as sociais exercem influência sobre a felicidade dos indivíduos 
e questionamos o que pode fazer as pessoas felizes.  
20  ANA ROQUE DANTAS  

Recentemente, alguns autores que se dedicam a esta temática des‐
tacam a importância da articulação das componentes individuais com as 
sociais (Veenhoven, 1984, 1991; Frey e Stutzer, 2002). 
Bruno Frey e Alois Stutzer (2002, 2003, 2004) concluem que a feli‐
cidade  não  depende  só  de  características  biológicas  e  características 
socioculturais,  mas  também  do  meio  social  de  pertença.  Estes  autores 
apresentam‐nos a felicidade enquanto construção do indivíduo, por ele 
actualizada  e  dependente  do  seu  contexto  social  e  não  como  emoção 
adquirida  e  imutável.  Assim,  o  estudo  da  felicidade  não  deve  situar‐se 
apenas na comparação entre níveis de bem‐estar subjectivos, mas tam‐
bém na identificação das suas causas, para assim distinguir modelos de 
comportamento.  
Com  esse  objectivo,  os  referidos  autores  destacam  vários  factores 
com influência sobre a felicidade, como a personalidade, as característi‐
cas  biográficas  e  económicas,  assim  como  factores  contextuais,  nomea‐
damente, as condições de trabalho, as relações interpessoais e a saúde. 
Referem  ainda  a  importância  dos  factores  institucionais  relativos  aos 
direitos de participação política. 
Embora  concordando  com  esta  perspectiva,  defendemos  que  o 
estudo da felicidade deve ainda incluir reflexão sobre a sua importância 
para o comportamento e orientação da acção. E se algumas destas con‐
dições  (como  a  personalidade)  são  claramente  objecto  de  estudo  de 
outras áreas, as de natureza social impõem uma abordagem da Sociolo‐
gia. 
A felicidade não é apenas um traço de personalidade e, se os indiví‐
duos  diferem  nas  suas  capacidades,  também  os  constrangimentos  do 
meio limitam as suas acções. São as capacidades e a situação que forne‐
cem o contexto objectivo para a avaliação da felicidade (Averill e More, 
2000).  
Outro contributo importante para o estudo da felicidade é o de Ruut 
Veenhoven,  cujo  trabalho  deu  visibilidade  e  importância  a  este  tema. 
Este autor procurou identificar as condições que influenciam uma apre‐
ciação positiva da vida. Para tal, reuniu resultados de diversas investiga‐
ções  empíricas  e  procurou  relações  estatísticas  entre  vários  tipos  de 
indicadores  e  felicidade,  inventariando  os  factores  que  se  relacionam 
com felicidade. Propõe a seguinte definição de felicidade: “Happiness is 
the  degree  to  which  an  individual  judges  the  overall  quality  of  his  life 
favourably” (Veenhoven, 1991: 2), que remete para a apreciação indivi‐
dual, para a forma como cada indivíduo avalia a sua vida globalmente.  
Veenhoven identifica duas importantes componentes da felicidade: 
a  satisfação  das  necessidades  universais  e  o  contentamento  ou  prazer. 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   21 

Segundo este autor, a apreciação da vida decorre de como nos sentimos 
afectivamente.  Este  nível  hedónico  depende  da  gratificação  de  necessi‐
dades inatas, que são pré‐requisitos biopsicológicos de funcionamento e 
que  não  são  ajustáveis.  Mas  o  contentamento  e  o  prazer  aparecem 
igualmente como componentes da felicidade, num nível cognitivo decor‐
rente  das  expectativas  e  da  comparação  social.  Estas,  por  sua  vez,  são 
construções  dependentes  da  aprendizagem  e  variam  entre  culturas  e 
indivíduos, dificultando a sua avaliação. 
Assim, propõe para o seu estudo a consideração de duas fontes dis‐
tintas: como cada um se  sente (de uma forma geral), e quão  favoravel‐
mente se compara com os vários níveis de sucesso. Veenhoven enuncia 
as  características  do  meio  social,  condições  de  vida  e  características 
socioculturais que considera terem influência sobre a felicidade.  
No domínio social, destaca a riqueza, a qualidade e estabilidade da 
economia, e as características políticas, como a democracia, a liberdade 
e a existência de paz (tanto no passado como no presente).  
Ao  nível  das  condições  de  vida,  distingue  a  importância  da  posição 
social  (avaliada  através  das  características  socioculturais  do  indivíduo, 
como  a  idade,  pertença  a  minorias,  rendimento,  educação,  prestígio  da 
profissão, ter ou não trabalho, tipo de trabalho), e também a importância 
das  relações  íntimas  com  cônjuge,  filhos,  familiares  e  amigos.  A  posição 
social e as redes de relações definem oportunidades de vida e quadros de 
referência, influenciando a representação que cada um faz da felicidade.  
Ao nível individual, realça a importância dos traços de personalida‐
de  e  dos  estilos  de  vida  (estilos  de  vida  mais  hedonistas  e  activos  do 
ponto de vista do lazer), dos recursos disponíveis (físicos, sociabilidade, 
níveis  de  actividade),  das  convicções  (em  relação  ao  prazer,  religião  e 
política)  e  das  motivações  face  à  mudança,  ao  dinheiro,  aos  valores,  à 
família, à saúde e as sociais. 
Na  sua  análise,  Veenhoven  ignora  a  importância  da  evolução  e 
dinâmica  dos  sentimentos.  A  felicidade  não  é  constante,  pode  suportar 
dificuldades, não depende de eventos ou objectos específicos e é compa‐
tível  com  diferentes  actividades  (Averill  e  More,  2000).  Da  mesma  for‐
ma, não se manifesta por um comportamento singular (para alguns, está 
mais  ligada  à  alegria  e  euforia,  para  outros,  à  tranquilidade).  Assim,  ao 
longo  da  trajectória  dos  indivíduos,  o  sentimento  pode  assumir  impor‐
tância diferente e sofrer alterações3.  

                                                             
3  Pascal Bruckner (2003) defende que, na sociedade contemporânea, a felicidade se 
tornou um dever, mas que a existência não dispensa a dor e o sofrimento. 
22  ANA ROQUE DANTAS  

Por outro lado, as expectativas e as aspirações são socialmente cons‐
truídas e transformadas ao longo do tempo, criando diferentes represen‐
tações  sociais  (Moscovici,  1984;  Jodelet,  1999).  E,  se  as  representações 
sociais  são  determinadas  por  valores,  crenças  e  experiência  de  vida,  as 
condutas  e  práticas  mudam  face  às  representações  que  se  vão  criando, 
relativizando a importância dada por Veenhoven à comparação social. 
Assim, entendemos a felicidade como um conceito subjectivo e com 
dimensão  temporal,  uma  vez  que  os  sentimentos  e  as  emoções  são 
dinâmicos e a sua intensidade pode sofrer variações. O seu estudo deve 
centrar‐se  nas  percepções  que  os  actores  sociais  desenvolvem  sobre  a 
sua  importância  e  sobre  a  forma  como  influencia  condutas  e  práticas 
sociais. 
Desta forma, temos uma dimensão dinâmica da felicidade, que nos 
surge  enquanto  construção  social,  enquanto  fenómeno  social,  com 
mudanças  históricas  e  temporais,  com  causas  e  consequências,  pressu‐
pondo que a realidade não existe como um dado exterior às consciências 
dos indivíduos; antes é, simultaneamente, produtora e produto dos pro‐
cessos sociais ligados às consciências dos indivíduos (Berger e Luckman, 
1999). 
Perante a possibilidade de existência de vários modelos de felicida‐
de e de estes sofrerem alterações, questionamo‐nos como se definem e 
constroem em cada momento? E como condicionam a acção de actores 
sociais? 
James Averill e Thomas More (2000) defendem que a investigação 
sobre esta temática deve centrar‐se sobre os sistemas de comportamen‐
to, pois a felicidade assim encarada permite a análise dos seus princípios 
de  organização  –  combinação  e  interacção  de  princípios  biológicos, 
sociais e psicológicos – que agem para produzir comportamento. Enten‐
dem  que  cada  um  dos  sistemas  considerado  individualmente  (como  a 
maioria dos trabalhos faz) é insuficiente, pois nem os constrangimentos 
biológicos,  nem  as  práticas  sociais  podem  determinar  inteiramente  os 
nossos comportamentos.  
Para estes autores, a felicidade requer a existência de um compro‐
misso entre procuras diferentes e a sua análise exige um quadro teórico 
alargado que inclua uma abordagem sistémica e não apenas a mensura‐
ção  de  experiências  subjectivas.  A  maioria  das  investigações  recentes 
apenas  tem  tido  esta  preocupação,  com  o  objectivo  de  a  avaliar,  pela 
comparação da situação actual com algum padrão (gap theories). Argu‐
mentam  os  mesmos  autores  que,  se  a  vida  é  um  compromisso,  a  felici‐
dade nunca pode ser completa, excepto em momentos (breves) de equi‐
líbrio (Averill e More, 2000). 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   23 

A  proposta  aqui  apresentada  encara  a  felicidade  como  um  senti‐


mento, um estado afectivo e emocional, que é socialmente condicionado 
e que influencia a acção dos actores sociais. Pretende analisar as percep‐
ções  e  representações  que  os  actores  sociais  fazem  deste  sentimento, 
bem como a sua influência sobre condutas e práticas sociais, e não ava‐
liar  ou  medir  formas  de  sentir,  recorrendo  a  escalas  ou  outros  instru‐
mentos de medição. 
Assim,  impõe‐se  conhecer  os  contextos  sociais  em  que  se  criam 
diferentes formas de sentir e expressar o sentimento, tentando perceber 
o  que  as  influencia.  Sabemos  que  nunca  chegaremos  à  realidade  dos 
sentimentos,  apenas  à  sua  expressão  e  reflexo,  como  nos  diz  Machado 
Pais (2006). 

1.3 Para um modelo de análise de felicidade 

1.3.1 A construção do modelo 

Todos  queremos  ser  felizes.  Mas  será  que  estamos  perante  uma 
expressão  de  múltiplas  individualidades  ou  podemos  encontrar  seme‐
lhanças e regularidades no envolvimento que cada um faz na construção 
e  orientação  da  sua  felicidade?  Como  é  que  a  procura  de  felicidade  se 
reflecte nas práticas e representações dos actores sociais? Quais os indi‐
cadores pelos quais podemos observar a felicidade? 
Jack  Barbalet  (1998)  defende  que  as  emoções  estão  directamente 
relacionadas com a transformação que os actores fazem das circunstân‐
cias de que dispõem. Para este autor, as emoções permitem uma avalia‐
ção instantânea das situações e influenciam a disposição do actor, tendo 
um papel fundamental na origem e orientação da acção no contexto das 
relações sociais.  
Tanto as dimensões estruturais, como as sociais e individuais, con‐
correm para a definição de condições de vida que os actores sociais ava‐
liam e transformam em circunstâncias diferenciadas. São várias as reali‐
dades que se interpenetram e que é necessário, ao actor social, incorpo‐
rar e gerir. Diferentes constrangimentos sociais podem conduzir a pro‐
curas  de  felicidade  distintas,  determinadas  pela  apropriação  individual 
dos modelos disponíveis.  
Com base na revisão teórica apresentada, propomos três dimensões 
para a análise do objecto de estudo. Considera‐se que estas têm influên‐
cia sobre os processos de percepção e representação da felicidade, pois 
contribuem  para  estruturação  de  um  campo  de  possibilidades  onde  se 
24  ANA ROQUE DANTAS  

constrói  a  mesma.  Numa  dimensão  mais  macro,  focam‐se  as  condições 


estruturais  do  país;  ao  nível  das  condições  de  vida,  a  análise  centra‐se 
nas  características  socioculturais  (educação,  condições  de  trabalho, 
prestígio  da  actividade)  e  nas  redes  de  relações  (família,  amigos);  ao 
nível das condições individuais, destacam‐se as características biográfi‐
cas  (idade,  sexo,  estado  civil),  os  estilos  de  vida  (lazer,  organização  do 
quotidiano) e as convicções, valores orientadores e motivações4. 
A investigação empírica desenvolvida estrutura‐se em torno da aná‐
lise da importância que cada indivíduo atribui à felicidade, acompanha‐
da pela avaliação das vivências pessoais em torno deste sentimento. Não 
se  pretende  avaliar  se  os  actores  sociais  analisados  são  ou  não  felizes, 
mas  sim  se  a  preocupação  com  a  felicidade  está  presente  enquanto 
motor  da  sua  acção.  Mais  especificamente,  o  objectivo  é  conhecer  o 
papel  que  a  felicidade  assume  na  estruturação  de  projectos  de  vida: 
como é que se foi construindo e contribuindo para estruturar as condu‐
tas  dos  actores  sociais  ao  longo  da  vida.  É  esta  análise  que  nos  parece 
permitir  uma  compreensão  dos  processos  e  mecanismos  subjacentes  à 
construção social da felicidade. 
A felicidade actualiza‐se e transforma‐se através das relações entre 
os indivíduos, nas suas acções e projectos, bem como nas suas trajectó‐
rias  sociais.  A  sua  busca  poderá  ser  mais  ou  menos  intencional,  cons‐
ciente, ou consequência da acção.  
Neste  sentido,  questionamos  o  papel  que  a  felicidade  assume  para 
os actores sociais, uma vez que a sua concepção parece estar, para uns, 
mais  balizada  por  valores  éticos  e  normativos  (ou  mesmo  religiosos), 
enquanto, para outros, mais ligada à vivência quotidiana ou associada a 
aspectos  materiais.  A  felicidade  adquire  diferentes  significados  sociais, 
podendo ser assumida enquanto ideal ou objectivo último, ou enquanto 
concepção mais hedonista.  
A nossa proposta de análise centra‐se na identificação dos factores 
que condicionam e distinguem diferentes acções e condutas na sua rela‐
ção com a felicidade. Decorre de uma inquietação em torno dos proces‐
sos de ruptura realizados por pessoas que, apesar da sua inserção social 
e  profissional,  largam  empregos,  cortam  laços  sociais  e  iniciam  novas 

                                                             
4  Embora  reconhecendo  a  importância  de  várias  dimensões,  não  esquecemos  que 
este trabalho é realizado no âmbito da Sociologia e, como tal, as dimensões indivi‐
duais de construção da felicidade são apenas analisadas em relação aos aspectos 
motivacionais, de aspirações e estilos de vida, direccionando a análise para o sen‐
tido que os actores sociais dão às suas acções, deixando de fora aspectos de per‐
sonalidade e características físicas e psicológicas. 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   25 

actividades e mesmo novas formas de estar na vida. Perante estas situa‐
ções, questionamos o que influencia tais decisões: a procura de felicida‐
de? Uma diferente valorização da felicidade? Que influência têm as tra‐
jectórias de vida?  
Assim, o ponto de partida para a construção da estratégia de opera‐
cionalização  é a situação  de ruptura. Mas, como  uma  amostra  que con‐
temple apenas situações deste tipo não permite a comparação e limita a 
caracterização,  propomos  que  a  análise  foque  diferentes  trajectórias 
sociais,  percursos  e  valorações  de  felicidade.  Neste  sentido,  e  para  res‐
ponder  às  questões  colocadas,  propomos  dois  eixos  de  análise:  impor­
tância da felicidade (eixo vertical) e trajectória de vida (eixo horizontal). 
É  nossa  convicção  que  estes  permitem  aceder  à  compreensão  de  como 
diferentes trajectórias de vida se relacionam com a felicidade, enquanto 
elemento orientador da acção. 
As trajectórias polarizam diferentes percursos (a uns mais conven‐
cionais opõem‐se outros mais radicais, em que a ruptura simboliza a sua 
expressão máxima). Por sua vez, a valorização da felicidade oscila entre 
dois extremos: ideal e real, e entendendo que o primeiro pode designar 
opções que se guiam por “ideais”, por planos de actuação não pragmáti‐
cos e que definem metas de actuação que visam a superação das contin‐
gências  dessa  mesma  realidade;  e  o  realismo  por  planos  de  actuação 
construídos sob condições objectivas, pragmáticas e determinadas. 
A  importância  da  felicidade  e  a  trajectória  de  vida  são  observadas 
através das condições estruturais existentes, das condições de vida dos 
actores sociais e das suas especificidades individuais.  
A figura 1 propõe uma expressão visual destes eixos de análise. 
 

Figura 1: Eixos de análise 

Real

Eixo 2: Felicidade

Convencional Ruptura
Eixo 1: Trajectórias sociais

Ideal
 
26  ANA ROQUE DANTAS  

Para  a  investigação,  admitimos  a  hipótese  de  que  a  partir  desta 


polarização se criam diferentes estruturações que caracterizam os perfis 
propostos, apresentados sob a forma de tipos‐ideiais5. São eles: 
1.  Pragmático:  este  perfil  caracteriza‐se  por  um  pragmatismo 
ligado  ao  quotidiano  e  às  rotinas.  Vive  uma  lógica  instrumental  do 
trabalho  e  centra‐se  nas  questões  materiais  (pagar  casa,  comprar 
carro). Ter e possuir assumem um importante significado: ter saúde, 
ter  emprego.  Inclui  pessoas  conformistas  e  envoltas  em  determinis‐
mo social: sempre foi assim. Este perfil situa‐se num extremo do eixo 
vertical onde a procura de felicidade assume pouca importância.  
2.  Espiritual:  o  perfil  espiritual  situa‐se  no  outro  extremo  do 
eixo  vertical  com  a  felicidade  a  assumir  o  papel  de  ideal.  Pretende 
retratar indivíduos que encaram a vida com ideais espirituais, com a 
procura  de  um  sentido  para  a  vida,  com  o  objectivo  de  desenvolvi‐
mento  e  realização  pessoal  em  todas  as  dimensões  da  vida.  Para 
estes, todas as acções têm em vista a felicidade; vivem na procura de 
equilíbrio e bem‐estar ou prazer. Os cuidados com o corpo, alimentação 
e desporto adquirem muita importância. É um perfil que se estrutura em 
torno do desenvolvimento do ser através do fazer. 
3. Convencional: este perfil localiza‐se no eixo horizontal relativo às 
trajectórias de vida. Cristaliza características convencionais, agrupando 
actores  sociais  com  “vidas  normais”,  rotineiras,  com  preocupações 
financeiras e procura de acumulação de rendimentos e de continuidade 
social  e  económica.  Desenvolvem  trajectórias  profissionais  contínuas, 
procuram  estabilidade  e  carreira,  bem  como  recompensas  e  benefícios 
materiais.  O reconhecimento  social  assume  muita  importância.  Como  o 
investimento  no  trabalho  é  grande,  as  questões  da  conciliação  entre  a 

                                                             
5  As  balizas  destes  quatro  perfis  são  tipos‐ideais  que  não  pretendem  resumir  os 
traços  comuns  mas  sim  valorizar  aquilo  que  é  típico.  Não  são  uma  descrição  da 
realidade mas uma construção mental que incorpora propriedades essenciais de 
um  fenómeno  particular,  no  sentido  de  um  retrato  unilateral  que  não  coincide 
exactamente  com  a  realidade  singular.  Nas  palavras  de  Max  Weber:  “In  order  to 
give  a  precise  meaning  to  these  terms,  it  is  necessary  for  sociology  to  formulate 
pure  ideal  types  of  the  corresponding  kind  of  action  which  in  each  case  involve 
the  highest  possible  degree  of  logical  integration  by  their  complete  adequacy  of 
meaning. But precisely because of its pureness, it is probably seldom if ever that a 
real phenomenon can be found which corresponds exactly to one of these ideally 
constructed pure types… Theoretical analysis in the field of sociology is possible 
only  in  terms  of  such  pure  types”  in  http://www.ne.jp/asahi/moriyuki/ 
abukuma/weber/method/basic/basic_concept_frame.html 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   27 

esfera profissional e a vida pessoal colocam‐se com acuidade. As férias, o 
ginásio e o consumo surgem como momentos de quebra da rotina e de 
procura  de  bem‐estar.  Este  perfil  caracteriza‐se  pela  necessidade  de 
posse,  do  “ter”:  ter  um  bom  emprego,  ter  um  bom  ordenado,  ter  uma 
carreira, ter uma família… 
4. Ruptura: o perfil de ruptura pretende caracterizar indivíduos que 
seguem  uma  lógica  vivencial  com  condutas  inovadoras,  empreendedo‐
ras  e  aventureiras.  Procuram  um  sentido  para  a  vida  mas  vivem  para 
“gozar  o  momento”.  São  pessoas  para  quem  a  ruptura  (largar  tudo  e 
começar de novo) funciona como um momento propício a novas opções. 
Para  estes,  a  questão  da  posse  é  secundária,  assumindo  a  acção  um 
papel estruturador da vivência. 
Partindo  dos  resultados  de  Baudelot  e  Gollac  (2003)  que  identifi‐
cam  diferenças  sociais  e  de  género  na  identificação  dos  factores  que 
assumem importância para a felicidade e separam os respondentes em 
dois  tipos  –  felicidade  associada  à  posse,  “ter”,  e  felicidade  associada  à 
acção em que “ser” é “fazer” – admitimos que, em torno dos perfis con‐
vencional  e  pragmático,  a  dimensão  do  “ter  ou  possuir”  assume  um 
papel preponderante e, ao contrário, para os perfis espiritual e ruptura, 
as dimensões do agir, “ser e fazer” assumem maior importância. 
 
1.3.2 Como  observar  empiricamente  as  dimensões  e  variá­
veis inerentes aos perfis da felicidade? 

Para perceber como se formaliza a ideia de felicidade em diferentes 
actores  sociais,  escolheu‐se  um  universo  para  análise  constituído  por 
homens e mulheres, actualmente com idades compreendidas aproxima‐
damente  entre  os  30  a  45  anos  (datas  de  nascimento  entre  1960  e 
1975),  e  com  características  urbanas  (embora  possam  não  residir  na 
cidade). São indivíduos plenamente inseridos na vida activa, com estilos 
de vida já definidos, projectos planeados, assim como expectativas deli‐
neadas.  O  universo  é,  ainda,  constituído  por  pessoas  que,  pela  via  do 
capital escolar ou social, se situam em espaços ou contextos sociais com 
possibilidade de escolha, de opção entre diversas alternativas e tipos de 
vida.  
Beck  e  Beck‐Gernsheim  (1995,  2005)  falam‐nos  na  importância 
crescente das biografias de escolha. Defendem que as possibilidades na 
vida que não envolvem tomada de decisão estão a diminuir e, ao contrá‐
rio,  as  oportunidades  de  decisão  e  iniciativa  individual  a  aumentar.  Se 
esta sociedade é caracterizada por formas híbridas, contradições, ambi‐
valências,  é  também  caracterizada  pela  biografia  do  faça  você  mesmo, 
28  ANA ROQUE DANTAS  

que depende da situação económica, qualificações formais, condições de 
vida e situação familiar de cada um.  
Assim, a delimitação da faixa etária a observar pretende incluir tan‐
to os que nascem ainda nos anos 60, e numa sociedade marcada essen‐
cialmente por valores tradicionais, mas que vivem a transição para uma 
sociedade mais aberta e moderna, e aqueles que nascem no rescaldo do 
25 de Abril de 1974 e que são já fruto das mudanças em curso.  
De  facto,  o  universo  escolhido  é  fruto  das  mudanças  sociais  inicia‐
das  em  Portugal  nos  anos  60,  com  o  desenvolvimento  das  classes 
médias,  aumento  do  peso  do  Estado  e  alargamento  da  função  pública, 
massificação  do  sistema  de  ensino,  crescimento  do  sistema  de  saúde, 
aumento  da  esperança  de  vida  e  abertura  dos  costumes,  assim  como 
aumento  das  desigualdades  sociais  (Barreto,  2000).  Os  mais  velhos 
vivem  o  25  de  Abril  na  infância/adolescência  e  todos  crescem  com 
liberdades  instituídas  e  com  o  sistema  democrático  implementado.  A 
entrada  na  União  Europeia  dá‐se  na  sua  juventude,  ao  mesmo  tempo 
que se verifica uma contínua abertura da sociedade às suas influências. 
Verifica‐se  “…  o  aumento  progressivo  e  quase  constante  do  bem‐estar 
colectivo e individual visto através de indicadores de consumo, de equi‐
pamento  doméstico,  de  conforto,  de  acesso  à  educação…”  (Barreto, 
2000:  62).  A  massificação  do  ensino  conduz  a  que  esta  geração  seja  a 
primeira a encontrar obstáculos no acesso à Universidade e posteriores 
dificuldades de inserção na vida activa, depois de uma situação, identifi‐
cada por António Barreto, como de quase pleno emprego, vivida em Por‐
tugal nos anos 70. 
Todas  estas  transformações  estruturam  as  condições  de  vida  de 
uma geração e se a ela todas as opções de vida se abrem com campos de 
possibilidades vastos e quase infinitos (quando comparada com a gera‐
ção dos seus pais), também sobre ela se canalizam expectativas ilimita‐
das e (talvez) de difícil concretização6. Neste contexto e perante a cres‐
cente valorização e difusão da felicidade, consideramos que, nesta faixa 

                                                             
6  A  esse  propósito,  Beck  e  Beck‐Gernsheim  (2005)  referem  a  luta  pelas  cada  vez 
menores  oportunidades  que  as  novas  gerações  enfrentam.  As  grelhas  orientado‐
ras das sociedades modernas incluem um aumento da amplitude das opções dos 
indivíduos,  assim  como  da  necessidade  de  decisão  e  desenvolvimento  de  acções 
individuais  de  ajustamento,  coordenação  e  integração.  Se  não  querem  falhar,  os 
indivíduos devem ser capazes de planear a longo prazo, ter iniciativa, flexibilidade 
e capacidade de adaptação às mudanças. São condicionados a viver biografias do 
faça você mesmo e de risco ou incerteza. 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   29 

etária  (actualmente  entre  os  30  e  45  anos),  se  encontram  projectos  de 
vida que constituem um espaço privilegiado para o objecto de estudo.  
Tendo em conta dimensões de análise já identificadas, a estratégia 
de  observação  centrar‐se‐á  na  reconstrução  das  trajectórias  de  vida 
(com o recurso a entrevistas biográficas aprofundadas) a indivíduos de 
ambos  os  sexos,  com  qualificações  de  nível  superior,  essencialmente 
urbanos e que desenvolvem uma actividade profissional. Neste sentido, 
pretende‐se observar as suas trajectórias para identificar características 
que indiquem diferenças e regularidades na construção dos seus projec‐
tos de vida individuais na relação com a felicidade. O objectivo é analisar 
e  comparar  a  importância  que  dão  à  felicidade,  como  a  percepcionam, 
assim como a forma como a procuram no seu quotidiano e nos seus pro‐
jectos futuros. 
A opção de analisar trajectórias de vida decorre da necessidade de 
conhecer as práticas dos actores sociais na actualidade. Se, por um lado, 
as trajectórias de vida se inscrevem em redes de relações sociais vastas 
que definem os campos de referência do indivíduo (com os constrangi‐
mentos  resultantes  da  sua  participação  na  estrutura  social),  por  outro 
lado,  o  sujeito  tem  autonomia  para  fazer  as  suas  escolhas  perante  as 
várias possibilidades existentes.  
Para  o  objecto  de  estudo,  a  reconstrução  das  trajectórias  de  vida 
permite elucidar sobre os mecanismos de construção social da felicida‐
de, na medida em que esta é experienciada e representada pelos actores 
sociais. 
Através do estudo das trajectórias sociais, pretende‐se perceber se 
as estratégias desenvolvidas – mais pragmáticas ou espirituais, conven‐
cionais ou alternativas –, em relação a diferentes esferas da sua vida, se 
traduzem em significados e valorizações distintos de felicidade.  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 2    BREVES CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS 

A natureza do objecto de estudo obrigou à adopção de uma metodo‐
logia rigorosa – e não a mera aplicação mecânica de métodos e técnicas 
rígidas – mas que permitisse desenvolver uma  estratégia de aproxima‐
ção  sucessiva,  até  ser  possível  observar  atitudes,  valores,  motivações  e 
expectativas  em  relação  a  alguns  actos,  por  vezes  de  ruptura  social  e 
psicológica, dos seus protagonistas.  
O método proposto, e que estrutura a metodologia, articula‐se com 
a  noção  de  construção  social  da  realidade,  que  recusa  o  corte  entre 
objectividade  e  subjectividade,  indivíduo  e  sociedade,  tal  como  propôs 
Corcuff (2001).  
Jean‐Claude  Kaufmann  (2006)  recorre  a  uma  abordagem  com‐
preensiva  que  considera  os  entrevistados  como  informadores,  procu‐
rando descortinar as suas categorias de pensamento, tanto para condu‐
zir  as  entrevistas  eficazmente,  como  para  produzir  hipóteses  explicati‐
vas.  A  compreensão  da  maneira  de  pensar  e  agir  dos  actores  sociais  é 
utilizada para pôr em evidência os processos sociais e desenvolver uma 
explicação  sociológica.  No  mesmo  sentido,  Nobert  Elias  (in  Kaufmann, 
2006)  explica  como  o  indivíduo  pode  ser  considerado  como  um  “con‐
centrado” do mundo social: tem em si, estruturada de forma particular, 
toda a sociedade de uma época. É a base explicativa do carácter extraor‐
dinariamente complexo e contraditório do indivíduo, do “eu múltiplo”. O 
subjectivo  não  se  opõe  ao  objectivo,  é  um  momento  de  construção  da 
realidade. 
Assim,  a  metodologia  desenvolvida  neste  trabalho  organiza‐se  em 
função  dos  diferentes  níveis  de  análise  decorrentes  dos  objectivos  já 
problematizados: uma primeira abordagem de nível macro, com análise 
de dados estatísticos nacionais; num segundo momento, o foco de análi‐
se passa a centrar‐se nos actores sociais concretos, procurando elemen‐
tos  comuns,  estruturadores  e  condicionadores  da  acção  individual;  e, 
por  último,  incide  sobre  os  casos  particulares  e  sobre  os  discursos  dos 
actores sociais. 
A  articulação  destas  diferentes  abordagens  pretende  responder  às 
hipóteses e questões formuladas. A saber: como é que o contexto social 
influencia  as  acções  individuais;  de  que  elementos  sociais  se  revestem 
estas acções individuais; e qual o significado que os actores sociais dão 
às suas acções?  
32  ANA ROQUE DANTAS  

Num  primeiro  momento,  procedeu‐se  à  recolha  de  indicadores 


estatísticos que permitissem uma aproximação mais macro ao fenóme‐
no da felicidade e caracterizar a situação actual e o universo em estudo, 
bem  como  apontar  algumas  pistas  a  explorar.  Num  segundo  momento, 
as entrevistas biográficas aprofundadas revelam vivências de felicidade 
e desvendam tanto os valores como as práticas a ela associadas. Possibi‐
litam  ainda  conhecer  como  diferentes  actores  sociais  formalizam  e 
vivem a ideia de felicidade e de que modo na sua trajectória biográfica 
ela esteve presente como condicionante da acção social.  
As  entrevistas  foram  analisadas  com  recurso  a  diferentes  técnicas 
de análise de conteúdo1. Ao associar diferentes técnicas de análise, pre‐
tende‐se  ampliar  as  possibilidades  de  interpretação  e  compreensão  do 
sentimento de felicidade, conjugando “… o rigor da objectividade com a 
riqueza da subjectividade…” (Pais, 1999: 15).  
Por um lado, identificaram‐se as dimensões mais significativas nos 
discursos  e  procedeu‐se  à  sua  quantificação  estatística.  Da  mesma  for‐
ma,  partindo  das  respostas  dos  actores  sociais,  procurou‐se  conhecer 
quais  os  valores  e  representações  subjacentes  às  suas  práticas  sociais, 
considerando  que  os  indivíduos  têm  diferentes  graus  de  reflexividade 
em relação a estes elementos. Esta análise permitiu a compreensão das 
relações  desenvolvidas  entre  as  várias  dimensões  consideradas.  Por 
outro  lado,  o  material  recolhido  foi  sujeito  a  uma  análise  de  conteúdo 
qualitativa,  procurando  interpretar  e comparar os discursos dos entre‐
vistados e os significados que estes dão às suas acções.  
A  análise  quantitativa  teve  como  objectivo  conhecer  as  relações 
entre  os  valores  que  estão  subjacentes  às  práticas  dos  entrevistados. 
Foram definidas 12 categorias para classificação dos textos das entrevis‐
tas2:  valor  do  tempo,  valor  do  colectivo,  hedonismo,  família,  trabalho, 
espiritualidade,  felicidade,  amizade,  viver,  adiar,  ter  e  ser/fazer.  O  tema 
foi a unidade de registo escolhida e o parágrafo a unidade de contexto. A 
unidade  de  contagem  aplicada  é  a  presença/ausência  e,  em  algumas 
categorias, a direcção (dimensão qualitativa), de forma a permitir a aná‐
lise da sua frequência, bem como da relação entre categorias.  
Das  16  entrevistas  realizadas,  foi  possível  obter  1817  unidades  de 
contexto válidas para realizar análise estatística.  

                                                             
1  Os nomes aqui apresentados são fictícios para preservar o anonimato dos entre‐
vistados. 
2  Para  conhecer  com  mais  detalhe  a  metodologia  seguida  consultar:  Dantas,  Ana 
Roque (2007). Que vida viver? para uma análise sociológica da felicidade enquan‐
to projecto de vida, Dissertação de Mestrado apresentada à FCSH/UNL. 
 

 3   O CONTEXTO ECONÓMICO E SOCIAL DA FELICIDADE 

A  felicidade  tem  sido  medida  recorrendo  a  indicadores  como  a 


satisfação  com  a  vida  que  resultam  da  avaliação,  numa  escala,  que  os 
indivíduos fazem da sua vida tomando em consideração todos os aspec‐
tos possíveis. Este instrumento de observação tem sido alvo de diversas 
críticas, nomeadamente, acerca da sua validade por não medir o que se 
propõe: a felicidade dos indivíduos mas a sua satisfação com a vida num 
determinado  momento.  Felicidade,  satisfação  com  a  vida,  qualidade  de 
vida, são termos utilizados por vezes indistintamente.  
E,  mesmo  considerando  que  este  instrumento  pode  servir  de  refe‐
rencial  para  medir  a  felicidade  (num  determinado  momento),  não  per‐
mite  perceber  a  sua  importância  para  os  actores  sociais,  nem  a  forma 
como influencia a acção individual. 
O  Eurobarómetro  publica  resultados  de  satisfação  com  a  vida  nos 
países  europeus,  bem  como  as  expectativas  face  ao  futuro.  Ora,  já  em 
1996  a  população  portuguesa  se  encontrava  entre  as  menos  satisfeitas 
da Europa (só a Grécia registava valores superiores1) com cerca de 31% 
dos inquiridos a revelar‐se insatisfeito com a vida. E, em 2006, os resul‐
tados apontam para cerca de 44% de insatisfeitos com a vida2.  
A  análise  da  evolução  da  satisfação  com  a  vida  em  Portugal,  entre 
1999  e  2008,  mostra  que  o  peso  dos  insatisfeitos  cresce  neste  período 
temporal, a par da diminuição dos que se declaram razoavelmente satis‐
feitos com a sua vida.  
Face aos dados analisados, Portugal encontra‐se entre os países da 
Europa cuja população tem as avaliações mais negativas, tanto na apre‐
ciação da vida, como nas suas expectativas face ao futuro. 
Assim, questionamos que factores podem concorrer para esta insa­
tisfação com a vida?  

                                                             
1  Entre os países mais satisfeitos, em 2006, destaca‐se a Dinamarca (97%), a Holan‐
da (95%) e a Suécia e Finlândia (94%). 
2  Os indicadores utilizados são o grau de satisfação com a vida. Fonte: Eurobaróme‐
tro in http://ec.europa.eu/public_opinion/index_en.htm.  
34  ANA ROQUE DANTAS  

As  condições  existentes  num  determinado  momento  e  para  uma 


determinada sociedade influenciam as opções (pessoais e profissionais), 
bem como os estilos de vida dos indivíduos, nomeadamente, na impor‐
tância que atribuem à felicidade e, igualmente, a estruturação dos seus 
projectos de vida e expectativas futuras.  
As  mudanças  sociais  ocorridas  em  Portugal  nos  últimos  40  anos 
transformaram  de  forma  inequívoca  toda  a  sociedade  portuguesa, 
influenciando, primeiramente, a geração que a elas assiste (e promove) 
e  a  geração  seguinte  (a  dos  seus  filhos).  A  eles  colocam‐se  novas  preo‐
cupações  em  relação  às  suas  vidas.  Liberdade  de  expressão,  eleições  e 
democracia são realidades instituídas. O acesso a cuidados de saúde ou à 
educação estão  assegurados, como  muitas outras  conquistas,  alterando 
preocupações e também projectos e expectativas. 
Anália  Torres  (2004c)  lembra  que  tanto  os  efeitos  de  estrutura 
como os posicionais interferem na definição de um campo de possibili‐
dades de ser e agir. Um estudo sobre a transição para a vida adulta refe‐
re a modificação dos modos de vida dos jovens que sentem falta de des‐
tinos adultos definidos. Este sentimento de incerteza decorre das trans‐
formações económicas e tecnológicas que constantemente redefinem as 
oportunidades em termos de carreira (Roberts e Parsell, 1990). 
Também  Beck  e  Beck‐Gernsheim  (2005)  defendem  que,  entre  as 
gerações  mais  jovens,  novos  modelos  estão  a  ser  interiorizados  sob  a 
forma de novas auto‐imagens e novos projectos de vida. Lembram que, 
apesar  da  introdução  de  novos  modelos,  as  estruturas  antigas  conti‐
nuam  a  existir  justapostas  e  em  simultaneidade  com  as  novas,  produ‐
zindo efeitos biográficos. 
Como é que a referida simultaneidade se traduz nas práticas e com‐
portamentos dos actores sociais e  mais especificamente  na sua relação 
com a felicidade? 

3.1  Características  socioculturais  da  faixa  etária:  30­45 


anos 

Procura‐se  aqui  fazer  uma  primeira  caracterização,  partindo  de 


indicadores  disponíveis  nas  estatísticas  oficiais,  do  universo  escolhido 
para análise (na faixa etária entre 30 e 45 anos). 
Assim,  de  acordo  com  o  Recenseamento  Geral  da  População  de 
2001,  a  população  residente  em  Portugal  é  de  10  356  117  habitantes, 
onde a faixa etária dos 30 aos 45 anos representa 21,8%. Destes, cerca 
de 46,6% são mulheres e 53,4% são homens. Este grupo etário constitui 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   35 

45,3%  da  população  com  actividade  económica,  44,5%  da  população 


empregada e 1,7% dos desempregados. 
A análise da faixa etária revela que esta é maioritariamente consti‐
tuída por casados (com registo 74,5% e sem registo 6,7%), seguida dos 
solteiros  (13,3%),  dos  divorciados  (3,4%)  e  dos  separados  (1,3%)3. 
Quanto aos níveis de instrução, verifica‐se que 66,3% tem o ensino bási‐
co, 15,2% o secundário e 12% o universitário. 
Perante uma faixa etária plenamente inserida na vida activa, maio‐
ritariamente  casada,  com  responsabilidades  profissionais  e  familiares, 
questionamos como é utilizado e valorizado o tempo nas suas vidas. Que 
influência tem o tempo sobre a felicidade? Que diferenças e semelhanças 
podemos  identificar  nas  rotinas  e  vivências  do  quotidiano  e  como  se 
relacionam estas com a procura de bem‐estar e felicidade?  
O Inquérito à Ocupação do Tempo (INE, 1999) revela que, num dia 
médio, o trabalho/escola ocupa cerca de 7h e meia e as deslocações gas‐
tam  cerca  de  1h  (variando  consoante  o  meio  de  transporte  utilizado). 
Quanto se analisa a duração média das actividades realizadas pela popu‐
lação  empregada,  verifica‐se  que  a  que  ocupa  mais  tempo  às  pessoas 
relaciona‐se com cuidados pessoais (aproximadamente 10h), mas, nesta, 
o sono preenche a maior parte do tempo (8h). As actividades domésticas 
e cuidados à família consomem cerca de 3h do dia. 
Se pensarmos que, num dia médio, uma pessoa ocupa cerca de 8h a 
dormir,  7h  e  meia  a  trabalhar,  1h  em  deslocações  e  3h  em  actividades 
domésticas e familiares, sobra muito pouco tempo para outras activida‐
des. 
Quanto analisamos as actividades de lazer, verificamos que é a lei­
tura  e  meios  audiovisuais  (onde  se  inclui  a  TV  com  2h)  que  preenchem 
mais tempo (2h e meia). Segue‐se a prática de desporto, à qual é dedica‐
da  cerca  de  1h  e  50m  e  a  vida  social  e  entretenimento  (1h  e  46m).  As 
actividades  realizadas  no  tempo  livre  deixado  pelas  obrigações  profis­
sionais, familiares e voluntariado/participação cívica são essencialmente 
ocupadas em casa (ler, ver TV).  
Ruut Veenhoven (2003b; 2003c) num trabalho que foca as relações 
entre  a  felicidade  e  os  tempos  livres,  destaca  uma  associação  positiva 

                                                             
3  Fonte: População Activa, Recenseamento Geral da População, 2001. 
  Num  contexto  em  que  a  taxa  bruta  de  divórcio  continua  a  aumentar  (de  0,9  em 
1990 para 2,2 em 2004) e, inversamente, a taxa de nupcialidade a descer (de 7,2 
em 1990 para 5,1 em 2004) (INE, Anuários estatísticos). 
36  ANA ROQUE DANTAS  

entre  países  em  que  as  pessoas  se  declaram  mais  “felizes”  e  o  tempo 
dedicado ao lazer (actividades sociais e culturais)4. 
Mas, em Portugal, as despesas dos agregados familiares (2000) são 
sobretudo  relativas  a  produtos  alimentares  (19%),  habitação  (20%)  e 
transportes (15%). Os gastos com lazer, cultura e entretenimento repre‐
sentam apenas 5% das despesas anuais.  
A  análise  das  actividades  desenvolvidas  num  dia  médio  varia  em 
função do rendimento: os escalões mais baixos dedicam mais tempo ao 
sono,  trabalhos  domésticos,  gestão  da  casa  e  trabalho  profissional,  os 
intermédios  ao trabalho  profissional, higiene  e  cuidados  pessoais  e  ensi­
nar crianças e os mais elevados ao trabalho profissional e refeições.  
A  diferenciação  pelo  rendimento  também  pode  ser  observada  nas 
actividades de lazer: a menores rendimentos correspondem o desporto e 
TV, enquanto nos escalões de rendimento mais elevado se destacam os 
passatempos e jogos, o entretenimento e cultura e a leitura de jornais. Há 
igualmente  diferenças  nas  actividades  desenvolvidas  segundo  o  estado 
civil. Os casados dedicam mais tempo aos trabalhos domésticos e cuida­
dos à família, ao convívio, leitura e em deslocações, enquanto nos soltei‐
ros  se  destaca  o  tempo  dedicado  ao  trabalho  profissional,  ao  estudo,  à 
vida social, ao entretenimento e ao desporto. 
Num  cenário  de  vidas  intensamente  ocupadas  com  actividades 
obrigatórias  e  com  pouco  tempo  deixado  ao  lazer,  questionamos  como 
os indivíduos percepcionam o seu dia‐a‐dia. 
O Inquérito à Ocupação do Tempo (1999) contempla questões rela‐
tivas à percepção do tempo. Os resultados mostram que cerca de metade 
da  população  com  15  ou  mais  anos  (54%)  sente  que  anda  apressada. 
Curiosamente,  55,7%  dos  que  se  sentem  apressados  são  mulheres  e, 
entre estas, 57,3% sente‐se apressada.  
Quanto  à  frequência  que  o  sentimento  de  falta  de  tempo  assume, 
37% dos homens e 42% das mulheres declara que anda apressado todos 
os dias e 31% dos homens e 31% das mulheres com frequência. 
São  os  empregados  que  mais  dizem  sentir  que  andam  apressados 
todos os dias (44%), sendo as mulheres empregadas que mais o decla‐
ram (48%). Até no que concerne à vida particular, a percepção de falta 
de tempo é notória, com 23% dos inquiridos a revelar que não tem tem‐

                                                             
4  Num artigo dedicado à relação entre hedonismo e felicidade, Veenhoven (2003b) 
explora a importância do tempo dedicado ao lazer para a felicidade e os resulta‐
dos apontam para uma maior felicidade das pessoas em países que dedicam mais 
tempo aos tempos livres. 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   37 

po  para  realizar  todas  as  tarefas  todos  os  dias  e  29%  com  frequência. 
Apenas 7% declara que nunca sente falta de tempo. Mais uma vez, a falta 
de  tempo  na  vida  particular  é  percepcionada  principalmente  pelas 
mulheres  (26%  não  tem  tempo  para  realizar  todas  as  tarefas  todos  os 
dias e 27% com frequência).  
Quanto à percepção de tempo no trabalho, cerca de 29% dos inqui‐
ridos  refere  que  só  algumas  vezes  é  que  não  tem  tempo  para  realizar 
todas as tarefas. Ao contrário do que se passa na vida particular, a per‐
cepção  de  falta  de  tempo  no  trabalho  atinge  mais  os  homens  que  as 
mulheres.  
Beck  e  Beck‐Gernsheim  (1995  e  2005)  sugerem  que  homens  e 
mulheres têm percepções diferentes das suas vidas. Se, cada vez mais, o 
processo de construção de biografias se faz através do mercado de tra‐
balho, para as mulheres a esfera familiar participa mais intensamente na 
estruturação das suas trajectórias de vida. Esta distinção introduz a pos‐
sibilidade  das  percepções  do  tempo  serem  diferenciadas  pelo  género  e 
de existir (para as mulheres) uma distinção entre o tempo pertencente 
ao  emprego  e  o  seu  tempo  pessoal.  Interrogamos  como  é  vivida  e  per‐
cepcionada esta separação entre as esferas da vida privada e profissio‐
nal. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 4   CONFIGURAÇÕES COLECTIVAS: CONDUTAS, ATITUDES 
E VALORES ASSOCIADOS À FELICIDADE 

Neste  capítulo,  analisam‐se  as  práticas  quotidianas  de  diferentes 


actores  sociais,  partindo  da  identificação  dos  valores  e  normas  que 
orientam a sua acção na procura de felicidade. 
Importa relembrar que este trabalho não pretende avaliar se os indi‐
víduos se consideram ou não felizes mas se nos seus discursos está pre‐
sente  uma  preocupação  com  a  felicidade.  Para  tal,  foca‐se  a  análise  nas 
condicionantes  sociais  e  nos  valores  culturais  emergentes  dos  discursos 
que podem estar associados às condutas dos actores sociais no sentido da 
procura  da  felicidade.  Recordamos  que  os  estilos  de  vida,  os  valores,  as 
convicções  e as motivações dos indivíduos,  associados às suas  oportuni‐
dades  de  vida,  definem  os  seus  quadros  de  referência  e  influenciam  os 
seus processos de avaliação e percepção (Veenhoven, 1991).  
Vários autores destacam a multiplicação das opções de escolha dis‐
poníveis aos actores sociais, permitindo‐lhes a adopção e construção de 
estilos de vida próprios. Se Bourdieu (1986) se preocupou com o modo 
como as escolhas quotidianas dos indivíduos se ajustam  às suas condi‐
ções  de  existência  (posições  e  trajectórias  sociais),  já  Giddens  (1991) 
defende que as escolhas tendem a cristalizar estilos de vida próprios de 
determinados grupos sociais, que adquirem relevo na definição das prá‐
ticas  diárias  e  na  construção  das  identidades  pessoais  que  quotidiana‐
mente são (re)criadas pelas actividades e opções dos indivíduos.  
Da mesma forma, os valores (tal como as normas) são critérios de 
referência  e  apreciação  interiorizados  pelas  pessoas  através  das  expe‐
riências de vida e processos de socialização, que se manifestam sobre as 
condutas  individuais.  No  mesmo  sentido,  lembramos  que  também  a 
forma  de  sentir  é  o  resultado  de  uma  construção  social  que  orienta  e 
condiciona as práticas e modelos de interpretação. E sendo os modelos 
sociais,  acções  ou  pensamentos  ou  sentimentos  com  significado  social 
partilhados  por  uma  pluralidade  de  pessoas,  questionamos  de  que  for‐
ma  as  configurações  sociais1  determinam  a  criação  de  significados 
sociais em torno da felicidade. 

                                                             
1  As  configurações  sociais  são  aqui  entendidas  como  os  envolvimentos,  jogos  e 
interacções existentes entre pessoas, tal como o defende Norbert Elias (2004). 
40  ANA ROQUE DANTAS  

Para  responder  às  questões  colocadas,  procedeu‐se  a  uma  análise 


de  conteúdo  das  entrevistas  em  profundidade  realizadas  a  dezasseis 
indivíduos,  sete  homens  e  nove  mulheres,  com  idades  compreendidas 
entre os 29 e os 43 anos, com diferentes percursos profissionais, e das 
quais  resultaram  1817  unidades  de  contexto.  A  análise  que  agora  se 
apresenta  procura  detectar  se  as  variáveis  e  indicadores  inerentes  às 
práticas,  valores  e  percepções  destes  actores  se  organizam  de  acordo 
com a tipologia de perfis propostos no modelo teórico que foi formulado 
anteriormente. 
Assim,  partindo  das  entrevistas,  procurou‐se  conhecer  os  valores 
que  emergem  dos  discursos  (para  além  dos  decorrentes  da  resposta 
directa),  de  modo  a  chegar  a  uma  visão  de  conjunto  das  normas  que 
orientam as vidas destes entrevistados. 
O discurso dos entrevistados revela que, subjacente a cada um dos 
perfis propostos (pragmático, espiritual, convencional e ruptura), existe 
um  mundo  social2  específico,  composto  de  condutas,  valores,  represen‐
tações, incorporação prática de normas, percepções e expectativas que, 
inscrevendo‐se em trajectórias de vida de várias décadas, são fortemen‐
te condicionadores da acção destes actores sociais. 
Os  resultados  obtidos  através  da  Análise  das  Correspondências 
Múltiplas  validam  a  hipótese  central  deste  trabalho  –  quanto  à  impor‐
tância da felicidade na acção destes actores sociais – bem como a opção 
teórica e epistemológica, de construir um novo modelo de análise socio‐
lógico de felicidade que possa ser observado empiricamente. 
O  gráfico  factorial  apresentado  a  seguir,  representa  as  aproxima‐
ções  e  distanciamentos  entre  as  variáveis  e  indicadores  considerados, 
ou  seja,  entre  os  valores  e  práticas  associados  aos  quatro  perfis‐tipo 
propostos. 

                                                             
2  O conceito de mundo social reflecte as condutas individuais e os significados atri‐
buídos  à  acção,  bem  como  as  relações  relativamente  padronizadas  que  surgem 
nas  interacções  que  são  coordenadas  por  práticas  comuns  e  convenções,  forne‐
cendo um elo entre diferentes níveis de análise. 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   41 

Gráfico factorial n.º 1: Características dos perfis  

Legenda: 
ESP – Perfil espiritual  VT1 – Valor do tempo  
RUPT – Perfil ruptura  VIVE – Viver  
PRAG – Perfil pragmático  ADIA – Adiar 
CONV – Perfil convencional  TER1 – Ter  
H – Homens  S/F – Ser/Fazer  
M – Mulheres  OUT1 – Valor do colectivo  
<=35 – Idade igual ou inferior a 35 anos  HED – Hedonismo  
>35 – Idade superior a 35 anos  FAM – Família  
0FIL – Sem filhos  TRA – Trabalho  
1­2F – 1 a 2 filhos  E/R – Espiritualidade  
 
 
No  gráfico  factorial,  o  perfil  pragmático  surge  associado  à  impor‐
tância  da  posse  (ter),  valor  do  tempo  e  pelo  adiar  de  muitas  das  suas 
vivências.  Caracteriza‐se  também  pela  proximidade  às  mulheres,  aos 
mais jovens (<=35 anos), sem filhos e solteiros.  
Perante  estes  resultados,  podemos  questionar:  adiar  o  quê?  ter 
marido,  ter  filhos,  ter  uma  família?  Ou  simplesmente  concentrar‐se  no 
quotidiano e na gestão das questões materiais e instrumentais? 
42  ANA ROQUE DANTAS  

A propósito deste perfil, e no que se refere à sua maior relação com 
as mulheres jovens, relembramos Jean‐Claude Kaufmann (2000) quando 
diz que a crescente presença das mulheres no mercado de trabalho e em 
empregos cada vez mais qualificados está directamente relacionada com 
“… as sequências de vida solitária, sobretudo na faixa dos 25/35 anos…” 
(2000:  107),  pois  o  sucesso  escolar  incita  à  autonomia  e  o  prazer  da 
eficácia  faz  passar  para  segundo  plano  a  tentativa  de  formação  de  um 
casal. Assim, a “… vida a solo começa frequentemente de um modo mui‐
to  pragmático,  sem  ter  sido  decidida…”  (2000:  35).  O  autor  refere‐se 
ainda, a uma “… fome insaciável de futuro…” (2000: 164) hipotecando a 
vivência do quotidiano.  
Sabemos por diversos estudos (Vianello e Moore, Lipovetsky, Kauf‐
mann) que quanto mais as mulheres investem na sua vida profissional, 
maior  é  a  probabilidade  de  terem  uma  vida  a  solo,  o  que  pode  revelar 
uma conflitualidade entre modelos contraditórios de vida  familiar e de 
investimento profissional. 
Por sua vez, em torno do perfil convencional, destacam‐se os valo‐
res  familiares  e  do  trabalho,  bem  como  o  valor  do  tempo.  Associa‐se 
também à categoria adiar e à importância do ter. Quanto às característi‐
cas biográficas, este perfil destaca‐se entre os que têm filhos (1‐2), são 
homens, são casados e têm 35 ou mais anos.  
Podemos ensaiar uma explicação para a relação entre as dimensões 
que se destacam neste perfil. Tudo aquilo que se deseja ter3: casa, carro, 
viagens, sensações (de liberdade, de prazer, de satisfação…) é um objec‐
tivo  a  concretizar,  adiado  para  o  momento  possível.  O  consumo,  tanto 
material  como  de  sensações  ou  vivências,  traduz  o  imaginário  de  uma 
vida de bem‐estar (Lipovetsky, 2006) 4. 
Neste  sentido,  prefigura‐se  uma  vida  de  investimento  no  futuro  – 
primeiro, na educação, formação e, depois, na carreira – em que a segu‐
rança e a estabilidade (especialmente financeiras) são valorizadas, a par 
de  valores  familiares  e  reconhecimento  social.  Aliás,  a  manutenção  do 
estatuto social é uma forte motivação para a aquisição de prazeres asso‐
ciados ao consumo, em que as rotinas do quotidiano são quebradas com 

                                                             
3  Baudelot e Gollac (2003) indicam que a representação de felicidade associada ao 
ter está presente em todos os grupos sociais embora assumindo importância dife‐
renciada. 
4  O consumo de sensações tem cada vez mais procura. Como exemplo disso temos a 
comercialização e publicitação de um número crescente de “produtos” e experiên‐
cias que prometem bem‐estar e sensações inesquecíveis. 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   43 

férias,  recurso  a  terapias  de  bem‐estar  e  outros  consumos  materiais  e 


sensoriais. 
O  perfil  espiritual  valoriza  o  ser/fazer,  a  importância  do  viver,  o 
hedonismo, a par da importância consagrada aos outros e aos valores da 
espiritualidade. Partilha com o perfil pragmático algumas características 
biográficas,  nomeadamente,  o  facto  de  serem  sobretudo  mulheres,  sol‐
teiras, sem filhos e com idades inferiores a 35 anos.  
Beck e  Beck‐Gernsheim  (2005) lembram‐nos as  mudanças rápidas 
que  ocorreram  no  contexto  de  vida  das  mulheres,  especialmente  nas 
últimas  duas  décadas.  As  biografias  femininas  passaram  por  processos 
de afastamento da esfera familiar, por novas oportunidades e pela liga‐
ção  a  novas  esferas  de  acção  e  decisão.  As  mulheres  já  não  dependem 
tanto da vida familiar e dos homens, mas “ainda” têm mais responsabili‐
dades nas tarefas domésticas e uma situação desprotegida no mercado 
de trabalho. A ambivalência e contradição na vida das mulheres exige às 
mais jovens que elaborem os seus projectos acerca do futuro com pouco 
ou nenhum suporte de modelos ou tradição. 
Lígia Amâncio (1994) refere a dificuldade das mulheres, e em espe‐
cial das que trabalham, em construírem uma imagem de si próprias que 
não  traduza  nem  a  representação  feminina  que  os  homens  têm  delas, 
nem  a  representação  masculinizada  que  elas  têm  de  outras  mulheres 
que trabalham.  
Este  perfil  espiritual  combina  modelos  novos  e  imagens  tradicio‐
nais. Todavia, os actores que o protagonizam preparam um projecto de 
vida  com  sentido  próprio,  centrado  na  realização  e  desenvolvimento 
pessoal, prazer no que faz e na procura constante de bem‐estar5. Contu‐
do, resta a dúvida: em que medida  este quadro de vida “encobre” tam‐
bém conflitos e incertezas? Por vezes, não estaremos perante um imagi‐
nário de satisfação com a sublimação de angústias normais, não alteran‐
do nada de substancial e apenas colorindo e diferenciando a superficia‐
lidade mas mantendo o conteúdo igual? Aliás, a análise estatística biva‐
riada não revelou uma associação entre este perfil e a categoria felicida­
de.  
Outros trabalhos reforçam esta hipótese explicativa ao retratar uma 
sociedade  de  hiperconsumismo  caracterizada  por  uma  procura  expo‐
nencial  de  bem‐estar  e  equilíbrio,  harmonia,  técnicas  para  desenvolvi‐

                                                             
5  Robert Lane (2000) define desenvolvimento pessoal como complexidade cognitiva, 
autonomia, auto‐estima e controlo sobre a própria vida. 
44  ANA ROQUE DANTAS  

mento pessoal, novidades espirituais, guias para felicidade (Lipovetsky, 
2006), em que esta é encarada como um dever, como a “ideologia domi‐
nante” nas palavras de Pascal Bruckner (2003), criando o que este autor 
designou de paradoxo moderno: somos infelizes porque não somos feli‐
zes, porque vivemos obcecados com a obrigatoriedade de sermos felizes. 
Lipovetsky (2006) defende ainda que a mudança de significação social e 
individual do universo de consumo acompanha o processo de individua‐
lização das nossas sociedades.  
O perfil de ruptura distingue‐se pela valorização do viver, ser/fazer 
e hedonismo. Ocorre mais frequentemente em homens, com mais de 35 
anos, casados ou divorciados. 
A proximidade entre as dimensões hedonistas, o viver e o ser/fazer 
sugere, por um lado, estilos de vida em que o prazer adquire um papel 
importante  e  funciona  como  uma  forte  motivação  à  acção  e,  por  outro, 
que a satisfação decorre do próprio processo de realização. 
Face  a  este  perfil,  lembramos  a  proposta  de  Baudelot  e  Gollac 
(2003) acerca da concepção de felicidade ser produzida por uma acção 
ou disposição para a acção. Nestes casos, a realização é a maior motiva‐
ção. Podemos encontrar esta ideia em Aristóteles, que sugeria uma for‐
ma  superior  de  felicidade  associada  ao  agir,  em  oposição  a  concepções 
de felicidade associadas à posse, no seu entender ilusórias. Por sua vez, 
Lipovetsky (2006) fala‐nos numa passagem de uma valorização do bem‐
‐estar material para um enaltecimento da qualidade de vida, da expres‐
são de si e preocupações relativas ao sentido da vida, a par do desejo de 
viver  melhor,  gozar  dos  prazeres  da  vida  enquanto  comportamentos 
legítimos e mesmo finalidades em si.  
Se  neste  perfil  se  destacam  o  desejo  de  liberdade,  autonomia  e 
independência, destacam‐se também o gosto por fazer, em que o ser se 
define  pela  acção,  segundo  uma  ideia  de  work­in­progress  que  tem  de 
dar prazer e satisfação. 
Face  à  ruptura  –  e  porque  a  ruptura  é  dolorosa  –  é  necessário 
encontrar  um  projecto  de  vida,  se  não  centrado  no  prazer,  pelo  menos 
evitando o sofrimento. Aliás, os dados recolhidos sugerem uma associa‐
ção entre o perfil de ruptura e as categorias felicidade e hedonismo. 

4.1  Dimensão relacional dos perfis 

A  Análise  das  Correspondências  Múltiplas  sugere  igualmente  uma 


dimensão relacional dos perfis encontrados. 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   45 

Verifica‐se uma aproximação (definida pelas características biográ‐
ficas) entre os perfis pragmático e espiritual (mulheres) e entre o perfil 
convencional e ruptura (homens). Ao mesmo tempo, verifica‐se a parti‐
lha de valores entre os perfis espiritual e de ruptura (fazer e viver), bem 
como entre o pragmático e o convencional (ter e adiar). 
A representação gráfica propõe biografias distintas para homens e 
mulheres. As mulheres situam‐se entre o perfil pragmático, privilegian‐
do a autonomia e o investimento profissional e adiando a vida familiar, e 
o perfil espiritual, focado na realização e desenvolvimento pessoal, mui‐
tas vezes sustentado por valores espirituais que excluem compromissos 
familiares e valorizam o indivíduo. 
A rápida transformação das biografias das mulheres e dos modelos 
tradicionais  referida  por  Beck  e  Beck‐Gernsheim  (2005),  conduz  ao 
esbatimento  das  referências,  obrigando  à  criação  de  novas  soluções  e 
formas  de  comportamento.  Os  mesmos  autores  referem  ainda  que  um 
número crescente de mulheres expressa insatisfação porque não se sen‐
te preparada para aceitar como normais ou naturais situações de desi‐
gualdade. A divisão do trabalho doméstico tornou‐se uma fonte de ten‐
são frequente e, por vezes, de conflito nas relações. A família ainda tem 
um papel importante, mas ao mesmo tempo, o emprego e a carreira tor‐
naram‐se parte dos projectos de vida das mulheres, porque “prometem” 
reconhecimento, autonomia  financeira e justiça  nas relações. As expec‐
tativas de igualdade são interiorizadas e contribuem para a formação da 
sua  auto‐imagem  mas  contradizem  as  experiências  de  desigualdade  no 
trabalho e na vida privada. 
Para  os  homens,  destaca‐se  a  relação  com  o  perfil  convencional 
(com adequação a modelos tradicionais de família e papéis de género) e 
o  perfil  de  ruptura  (contrariando  esta  conformidade).  Estes  resultados 
sugerem  que,  para  aqueles  que  de  alguma  forma  não  se  adequam  ao 
perfil  tradicional,  resta  romper  e  procurar  formas  de  vida  distintas,  tal 
como  foi  sugerido  anteriormente.  Podemos  perguntar:  porquê  os 
homens? Como hipótese, sugerimos que se deva à sua maior autonomia 
financeira  e  melhor  inserção  profissional;  estarem  libertos  de  obriga‐
ções  domésticas  e  mesmo  familiares;  terem  papéis  sociais  de  género 
historicamente  associados  à  iniciativa  e  à  acção,  à  esfera  pública;  e  os 
seus  modelos  serem  mais  claros  e  estáveis,  menos  contraditórios  e 
sujeitos a mudanças.  
Os resultados de Lígia Amâncio (1994) mostram bem a importância 
da  categorização  baseada  no  sexo  como  factor  estruturante  de  auto‐
‐imagens. O masculino aparece associado à dominação e instrumentali‐
dade  e  o  feminino  à  submissão  e  expressividade.  “Assim,  a  análise  dos 
46  ANA ROQUE DANTAS  

significados  sociais associados às categorias sexuais mostra que  a dife‐


renciação entre elas não se resume a um fenómeno meramente percep‐
tivo, mas exprime uma hierarquização entre os sexos em relação ao uni‐
verso  simbólico  comum  de  pessoa  adulta  que  coloca  o  sexo  masculino 
em  posição  dominante  e  o  feminino  numa  posição  dominada.  A  defini‐
ção  social  da  categoria  masculina  reúne  competências  no  contexto  de 
trabalho, no domínio sobre os outros e sobre as situações e constitui‐se 
em modelo referencial ... Pelo contrário, a definição da categoria femini‐
na apresenta um âmbito de competência social que se limita ao contexto 
privado das relações afectivas.” (Amâncio, 1994: 68). 
A partir da diferença de sexo entre mulheres e homens, constrói‐se 
uma  identidade  social  de  género  que  influencia  e  orienta  as  condutas 
sociais. O papel feminino tem sido associado a comportamentos afáveis 
e emocionais, e o masculino à força, energia e racionalidade (Lipovetsky, 
1997)6. A associação entre o masculino e a esfera pública, a acção visível 
e  directa  e  o  exercício  do  poder,  permite‐nos  perceber  a  solidez  social 
dos homens que os apoia na realização de rupturas.  
Por outro lado, em todos os gráficos factoriais ensaiados, as catego‐
rias ter – ser e viver – adiar surgem explicadas pelo mesmo factor e com 
posição  oposta  na  representação  gráfica,  indicando  a  sua  polarização  e 
sugerindo dois grupos7: os pragmáticos e os convencionais que organi‐
zam as suas vidas em torno de um futuro, adiado ou projectado, e privi‐
legiam a posse; e os espirituais e de ruptura que valorizam o ser/fazer e 
a realização quotidiana. 
Ao mesmo tempo, as características biográficas sugerem‐nos 2 con‐
juntos distintos: os mais novos, sem filhos, solteiros e principalmente de 
sexo  feminino;  e  os  mais  velhos  com  filhos,  casados/união  de  facto  ou 
divorciados  e  de  sexo  masculino.  Se  os  primeiros  encontram  maior 
expressão  junto  dos  perfis  pragmático  e  espiritual,  os  segundos  reve‐
lam‐se  no  convencional  e  de  ruptura.  Poder‐se‐á  daí  concluir  que  cada 
um dos sexos tem duas trajectórias possíveis, dois modelos de vivência?  

                                                             
6  Os  resultados  de  um  estudo  sobre  a  participação  das  mulheres  em  lugares  de 
decisão em Portugal sugerem uma diferenciação de esferas de poder e influência 
segundo o sexo: as mulheres ligadas a cargos de apoio à decisão; os homens asso‐
ciados  ao  exercício  de  poder.  Reproduzindo  uma  estrutura  de  papéis  de  género, 
que tende a associar o feminino ao suporte da decisão e o masculino ao estratégi‐
co, à iniciativa e à acção. (Lisboa, Frias, Roque e Cerejo, 2006). 
7  Os resultados da análise estatística bivariada sustentam igualmente esta hipótese. 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   47 

Estas interrogações podem sugerir um esgotamento de quadros de 
vida  convencionais,  desencadeando  rupturas  e  daí  a  procura  de  novos 
caminhos (aspectos partilhados pelo grupo dos mais velhos e homens). 
Tal como Beck e Beck‐Gernsheim (1995) explicam, quanto mais depen‐
dentes são as pessoas de instituições e decisões oficiais (família, legisla‐
ção, impostos,…), mais as suas biografias se tornam susceptíveis de crise 
e ruptura. 
Também  Claude  Dubar  (2000)  mostra  que  a  distância  aos  papéis 
sociais (só por si marca de consciência reflexiva) é uma condição para a 
construção  de  uma  identidade  alternativa;  e  é  um  recurso  importante 
para  reconstruir  novos  projectos,  para  reinterpretar  a  história  de  vida 
passada e se envolver subjectivamente numa história pessoal, reinven‐
tada  diariamente  e  que  não  se  reduza  a  uma  mera  trajectória  social 
objectivada. 
Por  outro  lado,  o  perfil  pragmático  opõe‐se  ao  espiritual  nos  seus 
valores estruturadores, destacando‐se ambos no grupo dos mais novos e 
mulheres  e  sugerindo  dois  caminhos  possíveis:  viver  e  ser  versus  ter  e 
adiar. Se, no grupo dos mais velhos e homens (convencional e ruptura), 
a característica que os distingue é a necessidade de mudança, no segun‐
do (dos mais novos e mulheres), a espiritualidade e as outras dimensões 
associadas  a  este  perfil  parecem  funcionar  como  uma  tentativa  de 
ensaiar novos modelos ou alternativas. 
Assim,  os  resultados  da  Análise  das  Correspondências  Múltiplas 
mostram claramente que os tipos de felicidade considerados no modelo 
elaborado correspondem a práticas e representações de actores sociais 
com características biográficas distintas, bem como surgem associados a 
diferentes modelos de felicidade. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 5   A FELICIDADE EM CONSTRUÇÃO: PRÁTICAS E DINÂMICAS 
SOCIAIS 

Apresenta‐se  agora  a  análise  compreensiva  das  entrevistas.  Esta 


permite  aceder  ao  entendimento  dos  processos  sociais  que  estão  asso‐
ciados à construção da ideia de felicidade dos actores sociais. Neste sen‐
tido, procura‐se compreender tais processos de uma forma dinâmica, ao 
longo  do  tempo,  através  da  reconstrução  das  trajectórias  sociais  dos 
entrevistados, focando tanto as dinâmicas sociais inscritas nas suas his‐
tórias de vida como o significado dado às suas acções. 
Retomando o que foi dito anteriormente, a felicidade é influenciada 
por  várias  dimensões,  expressa‐se  por  diferentes  comportamentos  e 
tem natureza dinâmica. Encarando‐a como um sentimento, socialmente 
condicionado e que influencia a acção, a proposta de análise centrou‐se 
sobre  as  suas  percepções  e  representações;  sobre  a  sua  influência  nas 
práticas e condutas; e sobre os contextos sociais em que se criam dife‐
rentes formas de sentir e expressar o sentimento. 
Para dar resposta à problemática apresentada, serão abordados os 
seguintes aspectos1:  
As histórias de vida: permitem que os indivíduos expliquem as suas 
experiências de vida, enquadrando‐as em mudanças sociais mais vastas 
e nos seus contextos sócio‐históricos.  
As  relações  interpessoais:  são  uma  dimensão  identificada  por 
diversos autores como condicionadora da felicidade. 
O  trabalho:  é  uma  das  dimensões  que  influencia  a  felicidade  e 
assume uma dimensão estruturadora dos projectos de vida.  
Os valores orientadores de práticas e condutas: para conhecer quais 
os  valores  (emergentes  nos  discursos)  que  estão  subjacentes  às  suas 
práticas sociais e que determinam as suas representações sociais. 
Os  projectos  de  vida:  para  avaliar  como  a  felicidade  se  insere  e 
organiza no quadro de vida dos entrevistados. 

                                                             
1  A  análise  compreensiva  das  entrevistas  é,  em  algumas  situações,  reforçada  com 
análise  estatística.  As  principais  tabelas  que  suportam  esta  análise  podem  ser 
consultadas em anexo.  
50  ANA ROQUE DANTAS  

Os  indicadores  escolhidos  para  análise  das  entrevistas  remetem 


para um nível de aproximação ao contexto das representações e vivên‐
cias da felicidade dos entrevistados, recorrendo à investigação biográfi‐
ca e à utilização das suas histórias para compreender a vida individual 
no seu contexto social (Roberts, 2002)2. Esta técnica permite a explora‐
ção e compreensão da forma como os indivíduos explicam e interpretam 
as suas  experiências de vida e  enquadrá‐las em  mudanças sociais mais 
vastas. Assenta na visão dos indivíduos enquanto criadores de significa‐
do da sua vida, uma vez que estes agem de acordo com os significados 
através dos quais dão sentido à sua existência social. 
Assim, pretende‐se analisar de forma compreensiva as histórias de 
vida  dos  entrevistados  no  significado  que  estes  lhes  dão  e  também, 
enquanto trajectórias que se inserem em processos sociais mais vastos, 
que as condicionam mas que são igualmente por elas influenciados.  

5.1  Os percursos de vida e a construção da felicidade 

A reconstituição das trajectórias dos actores sociais permite aceder 
à compreensão dos processos sociais subjacentes à construção da ideia 
de felicidade, captar os valores transversais a cada uma das dimensões 
de  análise  propostas  e  conhecer  as  expectativas,  sentimentos  e  signifi‐
cados que orientam a acção no sentido da procura de felicidade. 
De um ponto de vista sociológico, as biografias devem ser entendi‐
das  como  a  história  singular  do  indivíduo  e  como  a  interpretação  de 
uma  trajectória  social  objectiva  (Dubar,  1998).  Também  Beck  e  Beck‐
‐Gernsheim  (2005)  defendem  a  importância  de  investigar  os  motivos 
das pessoas envolvidas, os seus desejos, objectivos e concepções de vida.  
São  dezasseis  entrevistados,  nove  mulheres  e  sete  homens,  com 
idades compreendidas entre 29 e 43 anos, com diferentes estados civis, 
com  e  sem  filhos  e  profissões  variadas:  secretária,  designer  gráfico, 
director  marketing,  professora,  formador,  astrólogo(a),  administrador, 
gerente  livraria,  doméstica,  director  criativo,  quadro  directivo  banco, 

                                                             
2  A  pesquisa  biográfica  trata  da  interpretação  subjectiva  da  trajectória  de  vida  do 
indivíduo e foca não apenas os acontecimentos,  mas  também a opinião, os moti‐
vos, os planos para o futuro, assim como a percepção e interpretação do passado. 
O  estudo  biográfico  fornece  uma  representação  do  que  se  é,  donde  se  está  e  do 
que poderá vir a ser e permite, por isso, um contexto de compreensão dos aconte‐
cimentos (Rimé, 2005). 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   51 

terapeuta  shiatsu,  copy,  naturalogista/animador,  webdesigner/  desig‐


ner gráfico. 
Em seguida destacam‐se alguns aspectos que caracterizam os perfis 
analisados. 
Começando  pelo  perfil  pragmático,  a  análise  do  conteúdo  das 
entrevistas mostra que, entre os entrevistados deste perfil‐tipo, se des‐
taca a valorização do trabalho. Nestes discursos, sobressai o papel estru‐
turador do trabalho, quando defendem os hábitos de trabalho e a impor‐
tância das rotinas para a estabilidade individual. Aliás, a estabilidade e o 
controlo são aspectos muito referidos entre estes entrevistados. O fim‐
‐de‐semana é valorizado enquanto quebra às rotinas semanais. 
Para os entrevistados de perfil convencional, a segurança económi‐
ca adquire especial importância. Nestes discursos, sobressai uma valori‐
zação da acumulação financeira e da defesa do património, do prazer do 
consumo e das referências à qualidade de vida. Outro aspecto que tam‐
bém é comum a estes discursos é a importância da família e dos valores 
familiares. 
A  análise  compreensiva  dos  discursos  dos  entrevistados  de  perfil 
espiritual revela que os valores espirituais, de desenvolvimento pessoal 
e autoconhecimento são comuns entre eles. Destaca‐se também a parti‐
cipação em associações voluntárias de ajuda e apoio. Outro aspecto que 
caracteriza os entrevistados é que todos eles passaram por uma mudan‐
ça de rumo nas suas vidas (principalmente profissional) mas que ocor‐
reu sem rupturas. 
Quanto ao perfil de ruptura, o aspecto que caracteriza estes entre‐
vistados  é  o  terem  passado  por  um  processo  de  ruptura  (profissional 
e/ou  pessoal)  que  altera  radicalmente  as  suas  vidas.  Mas  é  possível 
encontrar outras características comuns. Em todos estes discursos, des‐
taca‐se  uma  maximização  ou  intensificação  das  vivências,  ou  seja,  per‐
cebe‐se que há uma urgência em viver todas as dimensões da vida, não 
adiando nem aspectos bons nem maus. O holismo ou procura de equilí‐
brio entre as várias dimensões caracteriza o dia‐a‐dia destes entrevista‐
dos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
52  ANA ROQUE DANTAS  

5.2  Os contextos da felicidade  

5.2.1 As relações interpessoais 

A vida familiar é apontada por Argyle (2001) como uma importante 
fonte de felicidade dos indivíduos. Diz‐nos o autor que a importância das 
relações  familiares  (pais,  amigos  e  cônjuge)  varia  consoante  a  fase  da 
vida e que a satisfação retirada das relações familiares deriva da ajuda 
instrumental, do apoio emocional e do companheirismo e intimidade.  
Neste  trabalho,  questionamos  a  importância  que  as  relações  inter‐
pessoais (incluindo a família e/ou modelos familiares) assumem para a 
felicidade  destes  actores  sociais.  Nomeadamente,  que  tipo  de  relações 
interpessoais estabelecem e de que forma lhes influência as vivências e 
a procura de felicidade.  
Lembramos  Beck  e  Beck‐Gernsheim  (2005)  quando  defendem  que 
já não é possível explicar de forma inequívoca o que significa família. Tal 
como  casamento  ou  maternidade,  sexualidade  ou  amor,  família  é  um 
conceito  que  varia  na  sua  substância,  tem  excepções,  depende  de  nor‐
mas sociais, bem como da moralidade dos indivíduos3. Os autores rela‐
tam uma nova tendência relativamente à constituição de família que se 
apresenta  como  uma  estratégia  preventiva,  evitando  o  modelo  de  vida 
familiar  tradicional  e  procurando  alternativas  com  menos  trabalho  e 
responsabilidades domésticas, contornando assim os conflitos em torno 
das  divisões  do  trabalho.  Face  a  estas  mutações,  questionamos  se  as 
relações  interpessoais  são  percepcionadas  pelos  entrevistados  como 
espaço ou fonte de felicidade e de que forma. 
Na  categoria  família,  analisam‐se  todas  as  referências  directas  que 
lhe  foram  feitas  no  decurso  das  entrevistas,  bem  como  os  condiciona‐
lismos,  as  influências  e  os  valores  associados.  Nos  dados  analisados,  a 
família está presente em 16,4% dos discursos, reforçando a sua centra‐
lidade nos esquemas de vida dos entrevistados. Esta categoria destaca‐
‐se entre os perfis pragmático e convencional (37,6% e 27,5% das ocor‐
rências),  e  ao  contrário,  tem  menos  expressão  entre  os  entrevistados 
espirituais  e  de  ruptura  (17,  8%  e  17,1%,  respectivamente).  A  análise 

                                                             
3  Também  Claude  Dubar  (2000)  lembra  que  o  modelo  de  instalação  na  vida,  da 
família “estável” e dos papéis imutáveis está em crise. Explica que estas mudanças 
acompanham o processo de emancipação das mulheres que transformou profun‐
damente a instituição familiar.  
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   53 

revela também que os valores de família estão mais presentes entre os 
entrevistados  com  35  ou  menos  anos,  casados  ou  em  união  de  facto  e 
com  filhos.  Recorde‐se  que  os  resultados  do  Inquérito  à  Ocupação  do 
Tempo  apresentados  apontam  para  diferenças  na  utilização  do  tempo 
relacionadas com o estado civil (os casados dedicam mais tempo a tra‐
balhos domésticos e cuidados à família). 
Os resultados indicam uma forte associação positiva desta categoria 
com o perfil pragmático e negativa com os perfis espiritual e de ruptura. 
Mostram  ainda  que  a  categoria  família  está  também  relacionada  com 
valores de posse (ter), explicados pela necessidade de segurança e esta‐
bilidade  económica  que  a  constituição  de  família  acarreta.  Estão  tam‐
bém  associados  à  família,  a  valorização  do  tempo  e  a  categoria  adiar, 
revelando vidas em que os compromissos familiares consomem tempo, 
obrigando ao adiamento das vivências4.  
Assim sendo, a família tem um papel importante mas surge a par de 
outros valores, como a autonomia, independência e espaço pessoal que 
também ocupam o discurso dos entrevistados.  
Propomos  analisar  três  dimensões  da  família:  na  relação  com  os 
pais, na conjugalidade e com os filhos. A primeira dimensão em análise 
procura  perceber  como  a  relação  com  os  pais  é  percepcionada  pelos 
entrevistados, nomeadamente enquanto fonte de felicidade. Assenta na 
hipótese de que diferentes socializações e investimentos dos pais podem 
conduzir a percepções e vivências de felicidade diferenciadas. Quanto à 
conjugalidade,  questionamos  de  que  forma  esta  contribui  para  a  felici‐
dade dos entrevistados e, ao mesmo tempo, como a vivem e idealizam: 
reforçando  a  sua  individualidade  e  seguindo  novas  alternativas  ou 
reproduzindo  o  modelo  idealizado.  Que  recompensas  procuram  nas 
relações:  afectivas  ou  materiais;  partilha  ou  oficialização?  Igualmente, 
procura‐se  perceber  como  são  percepcionados  os  filhos:  como  se 
enquadram  no  quadro  de  vida  definido  e  de  que  forma  condicionam 
e/ou contribuem para a felicidade dos entrevistados. 

                                                             
4  O cruzamento da categoria família com o valor ter apresenta valores que indicam 
uma associação entre as duas categorias. Ao contrário, a família associa‐se negati‐
vamente com valores de ser/fazer. Igualmente, família associa‐se positivamente à 
categoria adiar e negativamente a viver e hedonismo. Estes resultados podem ser 
consultados  em  DANTAS,  Ana  Roque  (2007).  Que  vida  viver?  Para  uma  análise 
sociológica da felicidade enquanto projecto de vida. Dissertação de Mestrado apre‐
sentada à FCSH/UNL. 
54  ANA ROQUE DANTAS  

5.2.1.1  Os pais 
O  foco  de  análise  nos  pais  deve‐se  ao  seu  papel  fundamental 
enquanto agentes de socialização. O objectivo deste ponto é procurar as 
manifestações que tal processo teve sobre a forma como os entrevista‐
dos encaram a felicidade.  
A  análise  compreensiva  dos  discursos  revela  que  os  entrevistados 
sentem que os seus pais os apoiaram e que tal contribui para a sua feli‐
cidade. Mas este apoio assume, ora formas mais instrumentais, ora mais 
emocionais.  Nos  discursos,  a  imagem  dos  pais  surge  umas  vezes  asso‐
ciada  à  percepção  de  uma  enorme  liberdade  e  respeito  pelas  opções, 
noutras procurando orientar e/ou condicionar o caminho dos filhos, no 
sentido de que estes cumpram as suas expectativas. 
Vejamos como exprimem a relação entre o investimento dos pais e 
a sua procura e vivência de felicidade. 

“…  apoio  total…  não  tanto  de  sucesso,  eu  tenho  uma  mãe…  muito 
especial nesse sentido, ela sempre… me incitou a eu ser eu própria.” 
(Mónica) 
“… sinto que fui muito apoiada, fui muito respeitada nos meus gos‐
tos, nos meus valores… sempre [me] respeitaram por mais estranhos 
que fossem os meus gostos. Sinto que tive muita liberdade.” (Marga‐
rida) 
“Bem, quanto à minha mãe foi excepcional, sempre fez de tudo para 
me  dar  a  melhor  formação,  deu‐me  sempre  liberdade  para  eu  esco‐
lher aquilo que eu gostava,… e ela sempre me deu total liberdade: tu, é 
que sabes, tu é que hás­de descobrir o teu caminho.” (Andreia) 
“… sempre puseram tudo ao meu dispor para fazer o que quisesse. 
Sempre  tive  essa  vantagem.  Mas  agora  condições,  mesmo,  não  me 
condicionaram nada, fiz sempre o que quis.” (António) 

A análise dos discursos revela que algumas ousadias nas escolhas e 
opções  de  vida  são  possíveis  pelo  suporte  emocional  e  financeiro  dos 
pais;  o  que  esclarece  a  importância  que  o  apoio  dos  pais  pode  assumir 
na concretização de projectos de vida.  
Por  outro  lado,  nem  sempre  as  opções  de  vida  vão  de  encontro  às 
expectativas dos pais; a não coincidência entre os percursos dos entre‐
vistados e os planos dos pais, assume momentos de tensão e conflito. 

“… o investimento dos meus pais era para que eu fosse sempre uma 
pessoa  que  tivesse  a  sua  estabilidade  assegurada,  porque  para  eles 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   55 

isso é importante e é importante no dia‐a‐dia, como a questão normal 
ou  banal  de  ter  as  contas  pagas  ao  fim  do  mês  e  eu  fui‐me  derivan‐
do…” (Afonso) 

“…  apesar  deles  a  partir  de  certa  altura  da  minha  vida  não  com‐
preenderem – agora se calhar já compreendem melhor – mas de não 
aceitarem  muito  as  escolhas  que  eu  fiz…  se  calhar  para  eles  eu  não 
estava  a investir… A investir no caminho certo, a investir num  futu‐
ro… houve alturas que só faltava tentarem abrir‐me a cabeça para me 
dizer que eu estava errado nas minhas decisões…” (Zé) 

“Pois,  os  meus  pais  não  foram  muito  perspicazes…  portanto,  não 
tive nunca alguém por trás a segurar‐me, mesmo quando eu precisa‐
va,  quando  podia  cair  ou  qualquer  coisa,  não  tinha  alguém  a  dizer‐
‐me: Boa! Força, etc, etc... Tive a grande sorte de  viver  grande parte 
da minha vida em muita liberdade…” (Rui) 

Mas é também possível perceber que alguns entrevistados sentiram 
que  os  pais  não  os  pressionaram  ou  influenciaram  porque  estavam 
satisfeitos, porque os filhos não davam “problemas” (nomeadamente, de 
sucesso escolar).  

“… não sei avaliar, porque eu sempre me saí bem, com facilidade… 
E, de certa forma, a partir do momento em que eles estavam satisfei‐
tos…” (Leonor) 

 “Eu acho que, sobretudo, aquilo que eles se pautavam sempre, era 
na  parte  da  educação.  Aquilo  era  assim:  Este  é  o  teu  trabalho,  não  é 
outra coisa. Portanto, foi banalizar: Não fizeste mais do que a tua obri­
gação. Mas aquilo que eles fomentaram sempre foi a educação… nun‐
ca me “exigiram” Ai tens que ganhar o teu próprio dinheiro, se queres 
ser assim, se queres ser assado, se quiseres ter mais qualquer coisa, não, 
quer dizer, pelo contrário, os estudos sempre em primeiro lugar. Foi 
sempre essa a base deles.” (Alexandra) 

A  preocupação  dos  pais  com  o  sucesso  escolar  destaca‐se  mais  do 


que  o  apoio  à  formação  ou  acompanhamento  emocional  dos  filhos.  A 
atenção dos pais centra‐se essencialmente na actividade escolar. 

“De  facto,  apoiaram‐me  com  explicações  para  eu  poder  estar  mais 
bem preparada para o exame… mas eu tinha notas regulares, médias, 
altas,  talvez  por  isso  eles  nunca  se  preocuparam  muito  mais.  Mas 
também, de facto, não foram pessoas  que eu sentisse que me acom‐
panhassem muito, nem que puxassem por mim…” (Sofia) 
56  ANA ROQUE DANTAS  

“Claro que o facto de não ser bom aluno – eu sou muito distraído –… 
não me ajudava muito, mas não me chatearam muito na minha vida… 
mais  as  minhas  opções  na  altura  …  obviamente  não  agradavam...  E 
lembro‐me perfeitamente da conversa do Não vás para a universidade 
tirar esse curso porque não serve para nada, tira lá antes Engenharia 
ou coisa assim do género.” (Tiago) 

 “…  nunca  foram  muito  exigentes  em  relação  aos  nossos  estudos. 
Nem  muito  nem  pouco,  acho  que  não  foram  nada  exigentes.  Foram 
até muito despreocupados.” (Constança) 

A  análise  das  entrevistas  permite  perceber  que  os  discursos  dos 


entrevistados com educações menos rígidas e apoio dos pais estão asso‐
ciados a uma margem de escolha mais alargada na definição dos projec‐
tos  de  vida  e  procura  de  felicidade.  Esta  característica  sobressai  nos 
discursos dos entrevistados de perfil espiritual. 
Depreende‐se  igualmente,  que  alguns  indivíduos  tiveram  necessi‐
dade  de  ir  “contra”  os  pais,  fazendo  uma  ruptura,  e  construindo  um 
caminho  ou  projecto  de  vida  orientado  pela  procura  de  felicidade.  A 
ruptura caracteriza estes entrevistados. 
Ao contrário, entre os entrevistados que apresentam discursos mais 
convencionais e pragmáticos, destaca‐se a referência à importância que 
os pais deram à educação e ao diploma escolar enquanto base de sociali‐
zação e construção de um futuro. 

5.2.1.2  A conjugalidade e o casamento 
Procurámos  saber  em  que  medida  as  estratégias  preventivas  face 
ao modelo de família tradicional (como o viver só, viver juntos, separa‐
damente, aumento da idade no casamento, adiar o ter filhos ou decidir 
não  ter  filhos),  identificadas  por  Beck  e  Beck‐Gernsheim  (2005),  bem 
como  a  procura  de  outras  alternativas,  estão  presentes  nos  discursos 
analisados e como se relacionam com a procura de felicidade.  
Neste contexto, questionamos de que forma os entrevistados vivem 
e  idealizam  a  conjugalidade:  enquanto  partilha  de  sentimentos  e  emo‐
ções, ou como a oficialização de um compromisso em que o “ter alguém” 
completa uma vida idealizada. 
Vimos anteriormente que os discursos dos entrevistados se polari‐
zam em torno de diferentes tipos de vivência e relação com a felicidade. 
A  análise  compreensiva  dos  discursos  reforça  as  diferenças  entre  os 
vários  perfis‐tipo  considerados. Entre  os  entrevistados  de  perfil  espiri‐
tual, a análise revela a importância dada à vivência da relação e dos sen‐
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   57 

timentos. Ao contrário, nos discursos mais convencionais e pragmáticos, 
o casamento é assumido como um fim, um objectivo a cumprir. 

“…  eu  tenho  neste  momento  uma  relação  muito  importante  à  dis‐
tância… e eu estou a pensar ir viver em comunidade… Para mim casar 
não é uma sociedade.” (Mónica) 
“À conjugalidade atribuo importância, ao casamento no sentido ofi‐
cial, institucional, não atribuo importância…” (Afonso) 
“Bem, ao casamento, pouca,… Mas à relação, imensa. … E, de repen‐
te,  surgiu  esta  mulher  e  acho  que  me  apaixonei  pela  primeira  vez.” 
(Rui) 
“Ao casamento não atribuo nenhuma [importância] porque senão já 
o tinha feito.” (Constança) 

Estes excertos revelam a importância que os sentimentos e a parti‐
lha de emoções assumem para os entrevistados enquanto manutenção e 
construção  da  sua  própria  identidade  e  individualidade.  A  relação  ou, 
mais especificamente, a partilha de emoções, é assumida como um com‐
plemento ao indivíduo, do seu projecto de vida.  
Vários autores (Veenhoven, 1984; Argyle, 2001) consideram a qua‐
lidade das redes íntimas determinantes para a felicidade do indivíduo. E 
Beck e Beck‐Gernsheim (2005) sugerem que a vida familiar com concen‐
tração de sentimentos e compromissos contrapõe e compensa as incer‐
tezas sociais. Nesta perspectiva, as relações íntimas  e de confiança dão 
protecção emocional. E se a estabilidade emocional e mental depende do 
apoio próximo de outros, então o amor adquire um significado especial. 
Também  Aboim  (2006)  defende  que  o  amor  é  um  dos  meios  de  que  o 
indivíduo dispõe para afirmar a sua unicidade e individualidade. 

“É  uma  dimensão  da  vida,  é  uma  dimensão  importante.  Para  mim 
não é A dimensão, ou seja, não é um objectivo de vida estar casado e 
ter filhos não é, mas acho que é algo…, apesar de não ser o objectivo 
da vida, faz parte da vida.” (Marta) 
 “Sou solteiríssima … é uma área em que eu sou muito liberal, eu sou 
muito  open  minded,  talvez  demais.  Nunca  atribuí,  nunca  atribuí 
importância a apegos, tento trabalhar sempre os desapegos, eu tenho, 
pronto  eu  tenho  de  me  considerar  uma  pessoa  que  estou  a  tentar 
incutir  em mim  a  viver  um  caminho  espiritual.  E  o  que  é  que  é este 
caminho  espiritual?  É  usufruir  sem  apegos.  E  tento  na  minha  vida 
fazer  isso  em  tudo,  em  todas  as  áreas,  mental,  emocional,  física  e 
espiritual. E claro que o casamento para mim é um apego…. E eu acho 
58  ANA ROQUE DANTAS  

que  os  relacionamentos  servem  para  as  pessoas  se  encontrarem  e 


aprenderem umas com as outras. E quando já aprendemos aquilo que 
temos a aprender com aquela pessoa temos de andar para a frente.” 
(Margarida) 

A propósito dos desapegos, Machado Pais (2006) retoma Scott Lash 
para lembrar que o processo de protecção da intimidade levanta barrei‐
ras às emoções e à incómoda exibição de sentimentos ou de símbolos de 
sentimentalidade, salvaguardando uma imagem e reputação.  
Encontramos  também  outros  discursos  em  que  a  conjugalidade 
apresenta formas mais convencionais. A ideia de que o casamento é um 
fim  está  ainda  bem  patente  nalguns  entrevistados  (principalmente  de 
sexo feminino e estado civil solteiro).  
No livro de  Kaufmann (2000) sobre a vida a solo (de  mulheres), o 
autor  apresenta  os  condicionalismos  a  que  as  mulheres  estão  sujeitas, 
nomeadamente, a suspeita de defeitos ou desumanidades que se cria em 
torno da mulher só. 
Os  discursos  aqui  trabalhados  reflectem  também  uma  imagem 
socialmente idealizada, onde o quadro de vida só fica completo seguindo 
o modelo de casamento, casa, filhos.  

“Estive praticamente para me casar, não é? Tinha já adquirido casa, 
carro,  essas  coisas  todas…  O  passo  seguinte  seria  esse…  Continua  a 
ser um objectivo, mas… continuo  a viver com os meus pais …” (Ale‐
xandra) 
“…  constituir  uma  família,  sem  dúvida,  é  um  sonho…  dou  muito 
valor…  gostava  que  acontecesse  e  gostava  de  acreditar  que  pudesse 
ser real e … perfeito … estar bem e ter filhos.” (Andreia) 
 “Tentei  toda  a  minha  vida  constituir  família,  portanto,  casamento, 
família  e  já  vim  de  dois  casamentos  e  vou  para  o  terceiro  agora.” 
(Filipe) 

A análise revela também posições em que o casamento é assumido 
enquanto  oficialização  de  um  compromisso  (amoroso,  financeiro,…). 
Nestes excertos, a conjugalidade adopta claramente uma finalidade ins‐
trumental,  de  resolução  de  um  constrangimento  social:  o  passo  certo  a 
dar. Sobressai a importância formal da relação, num padrão de conjuga‐
lidade “perfeita” e de difícil concretização. Nesta perspectiva, a felicida‐
de assume a dimensão de ideal, uma imagem a que é possível chegar se 
cumprirmos  algumas  das  regras  ou  condições  necessárias.  Na  imagem 
perfeita, existe amor perfeito, companheirismo, paixão, entendimento e 
também  felicidade  e  realização.  O  que  fazer  quando  a  realidade  fica 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   59 

aquém das expectativas? Beck e Beck‐Gernsheim (1995) vão mais longe 
ao afirmar que as pessoas procuram uma perspectiva de felicidade, não 
objectivos de vida comum, mas o(a) parceiro(a) “certo(a)” e perfeito(a). 

“O que é que me levou a casar? Oh pá, eu tive um casamento muito 
longo  –  15  anos  –  portanto  tive  uma  relação  muito  longa  e  foi  uma 
relação  que  teve  tantas  facetas  que  só  me  faltava  casar,  tás  a  ver… 
tínhamos  vivido  juntos,  separados,  separados/juntos,  casas…  acho 
que já tínhamos mais ou menos percorrido todos os padrões, enfim, 
assim  possíveis  de  conjugalidade  que  só  faltava  um,  que  era  um 
casamento tal e qual e pronto casámos.” (Marta) 

“Neste  momento  já  estou  casado.  Tivemos  um  filho,  entretanto. 


Mais tarde decidimos casar. Por acaso, sempre achei que era uma coi‐
sa que não tinha interesse nenhum, é só papéis e não sei o quê. Mas 
casei‐me. Primeiro, por ela, porque eu sabia que isso era importante 
para  ela;  segundo,  pelas  famílias…  Não  achei  que  o  acto  em  si  do 
casamento fosse necessário, mas…, digamos que não é o papel, mas o 
acto  simbólico  que  ajuda  a  criar  esse  conceito  de  família  sólido.” 
(António) 

Kaufmann  (2000)  lembra  que  as  novas  tendências  ou  alternativas 


que deveriam enfraquecer o modelo tradicional e o continuam a deses‐
tabilizar desaguam numa contradição: viver intensamente a dois e ser o 
mais autêntico possível enquanto indivíduo. “Por vezes, a aura emocio‐
nal é tão forte que a escolha do parceiro é dificilmente perceptível; por 
vezes é tão ténue que a decisão surge sob a luz crua de um consumismo 
conjugal.  Mas  o  sentimento  é  sempre  associado  à  reflexividade,  ao  ine‐
xorável aumento da individualização, do domínio da vida pessoal, o que 
teoricamente  parece  oposto  a  um  compromisso  a  longo  termo  numa 
vida a dois.” (Kaufmann, 2000: 58)  
Beck e Beck‐Gernsheim (2005) dizem‐nos que nas relações amoro‐
sas  procuramos  a  história  das  nossas  vidas,  tentando  a  reconciliação 
com as  nossas dores e desapontamentos, mas também planear objecti‐
vos e partilhar esperanças. Espelhamo‐nos nos outros e a nossa imagem 
do outro é uma imagem idealizada de nós próprios. 
Assim, a conjugalidade, com a valorização dos seus aspectos senti‐
mentais, sociais ou instrumentais, está presente nos discursos revelando 
a sua importância para a felicidade dos entrevistados. E, mesmo perante 
novas  alternativas  ou  soluções,  algumas  características  convencionais 
continuam presentes e a estruturar as vidas dos mesmos.  
60  ANA ROQUE DANTAS  

5.2.1.3  Os filhos 
A  análise  das  entrevistas  revela  a  importância  da  maternidade  e 
paternidade na procura de felicidade.  
Lembramos a tese de Phillipe Ariés (1981) sobre a concentração da 
família na criança. Segundo este autor, os filhos absorvem progressiva‐
mente  o  casal  e  cristalizam  a  vida  familiar.  Da  mesma  forma,  Aboim 
(2006)  refere  a  diferença  que  a  existência  de  filhos  marca  na  situação 
face ao casamento: por um lado, a fase do casal sem filhos, mais permeá‐
vel à informalidade do vínculo conjugal e, por outro lado, a fase do casal 
com  filhos,  mais  propensa  à  institucionalização  do  laço.  Vimos  ante‐
riormente  que  uma  das  características  diferenciadoras  dos  entrevista‐
dos  era  a  existência  de  filhos.  Neste  contexto,  questionamos  como  os 
entrevistados vivem e interpretam a maternidade/paternidade, nomea‐
damente, se os filhos são sentidos como fonte de felicidade. 
Os  dados  do  conteúdo  das  entrevistas  mostram  que  existe  uma 
relação  entre  a  idade  dos  entrevistados  (os  mais  velhos)  e  a  existência 
de filhos. É também mais comum entre os solteiros ou divorciados não 
existirem  filhos  e  os  casados  ou  em  união  de  facto  terem  filhos,  o  que 
vem  reforçar  a  tese  apresentada.  Os  filhos  completam  a  imagem  ideal: 
casar e ter filhos, cumprindo o modelo, como fica traduzido nos discur‐
sos.  

“Eu  hoje  sei,  sei  perfeitamente,  que  para  mim,  [a  felicidade]  se 
calhar … passa por ter filhos ou coisa assim do género.” (Alexandra) 

Os  resultados  indicam  uma  associação  estatística  entre  não  ter 


filhos  e  valores  de  realização  (ser),  colectivo,  espiritualidade  e  também 
amizade e felicidade. 

“É assim, neste momento não tenho filhos, se não os tive é porque 
não os tive e se os vou ter logo se verá,… porque eu sempre achei que 
os filhos não são um objectivo em si…” (Marta) 
“Não penso nisso… e tento trabalhar sempre os desapegos…” (Mar‐
garida) 
“Não tenho filhos. Não pretendo ter filhos… porque sinto que a nível 
das  minhas  prioridades  de  desenvolvimento  pessoal  e  sobretudo  de 
expressão  social  …  eu  julgo  que  não  me  darão  energia  e  tempo,  ou 
melhor,  serão  um  projecto  muito  importante  mas  que  ao  qual  teria 
tendência a dedicar‐me muito e acho, tenho a percepção de que não 
conseguiria… criar filhos seria um bocado incompatível. À partida é a 
minha percepção.” (Afonso) 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   61 

Estas posições são reveladoras da existência de barreiras à presen‐
ça de filhos e decorrem de um desejo de ter uma vida só para si. Não há 
da parte destes entrevistados uma “rejeição” a crianças, mas um desejo 
de desenvolvimento pessoal que, associado a uma crescente  e exigente 
responsabilização  dos  pais  em  relação  aos  seus  filhos,  torna  cada  vez 
mais difícil a decisão de ser pai. 
Sabemos que, actualmente, ter um filho é algo que necessita de uma 
atenção  especial  e  dedicação  adequada.  Deixou  de  ser  um  acto  natural 
para passar a ser uma decisão reflectida, planeada, “monitorizada”. E se 
todos os que consideram ter filhos vivem a ansiedade de tomar as deci‐
sões  certas  pelas  razões  certas,  procuram  também  optimizar  as  suas 
circunstâncias e planear a sua chegada. Deixou de ser um acto espontâ‐
neo, pois é necessário ter e criar condições financeiras – para pagar as 
escolas, actividades desportivas, extracurriculares, férias – profissionais 
(estabilidade, boa posição), bem como disponibilidade emocional (Beck, 
Beck‐Gernsheim, 1995). 
Também Claude Dubar (2000) fala nas crises identitárias decorren‐
tes  da  multiplicidade  de  papéis:  mãe,  pai,  filho,  estatuto  profissional, 
dificuldades na conquista e inserção no mercado de trabalho. 
Os excertos que se seguem revelam o aumento das responsabilida‐
des associadas à maternidade/paternidade e a alteração das prioridades 
e  objectivos  de  vida,  obrigando  a  um  descentramento  de  si  para  os 
filhos. 

“Antigamente  não  tinha  que  ter  horas  para  nada,  podia  combinar 
tudo o que quisesse com os meus amigos, podia sair à noite sempre 
que  me  apetecesse,  não  tinha  a  responsabilidade  que  tenho  hoje… 
que eu sinto que tenho hoje.” (António) 

“… só comecei a trabalhar quando o mais venho tinha quatro anos. 
Depois  deixei  de  trabalhar  quando  tive  a  minha  terceira  filha,  exac‐
tamente  para  viver…  não  para  viver  em  função  deles,  mas  porque 
acho que é importante estar com eles.” (Constança) 

Pelo  contrário,  surgem‐nos  soluções  diferenciadas,  como  a  que  a 


seguir  se  apresenta,  sugerindo  alternativas  ao  convencional  e  transfor‐
mações das relações familiares e sexuais.  

“Vou  ter  [filhos],  não  com  a  minha  namorada,  com  outra  mulher, 
vou engravidá‐la… ela, mais a parceira dela é que irão assumir toda a 
parentidade, digamos assim…” (Rui) 
62  ANA ROQUE DANTAS  

Apesar  da  maioria  dos  entrevistados  não  ter  filhos  (11),  a  análise 
compreensiva  revela  que  estes  assumem  uma  grande  importância  nos 
discursos:  enquanto  ideal  a  atingir  (perfil  pragmático)  ou  assumindo 
uma  posição  mais  individualista  (perfil  espiritual).  Entre  os  entrevista‐
dos que já têm filhos (5), destaca‐se a intensificação dos sentimentos a 
par da alteração de hábitos, sentimentos, rotinas, prioridades e de todo 
o quadro de vida. 

5.2.1.4  As relações de amizade  
A  amizade  e  as  relações  interpessoais  são  apontadas  por  Argyle 
(1992),  Veenhoven  (1984)  e  Myers  (1993)  como  dimensões  importan‐
tes para a construção da felicidade dos indivíduos. Aliás, Argyle explica 
que  as  pessoas  são  mais  felizes  com  amigos  devido  a  uma  necessidade 
de intimidade, companheirismo e afiliação, a par de outras necessidades 
sociais como a ajuda instrumental e apoio emocional. Diz‐nos este autor 
da Psicologia que as relações sociais afectam todos os aspectos do bem‐
‐estar e que a amizade é uma fonte de satisfação, porque induz “humo‐
res positivos”.  
A  categoria  amizade  está  presente  em  6,8%  dos  1817  parágrafos 
analisados.  Mas  o  que  representam  as  relações  de  amizade  para  os 
entrevistados?  
Em alguns discursos, a amizade assume uma grande importância e 
é  realçado  o  apoio  dos  amigos.  Noutros,  as  relações  de  amizade  são 
caracterizadas  pela  mudança,  com  o  afastamento  dos  antigos  amigos  e 
as novas amizades. Mas podemos também encontrar discursos a desva‐
lorizar a importância da amizade ou a situá‐la meramente no plano pro‐
fissional. 
Verifica‐se uma relação entre a amizade e o perfil pragmático e, ao 
contrário, a menor presença desta categoria entre os entrevistados con­
vencionais.  A  categoria amizade  relaciona‐se  ainda  com  as  mulheres,  os 
solteiros e sem filhos. Também Anthony Giddens no seu trabalho dedica‐
do à intimidade, destaca a relação entre a intimidade e o sexo feminino, 
referindo  a  dificuldade  que  os  homens  têm  em  nomear  um  amigo  ínti‐
mo: “O que os homens tendem a reprimir e a repetir, não é a capacidade 
para amar, mas uma autonomia emocional importante para a manuten‐
ção da intimidade.” (1995: 87). 
Kaufmann lembra que, quando o indivíduo se inscreve numa reali‐
dade familiar forte, esta contribui para a revelação do eu, mas se a inser‐
ção familiar é mais ligeira, descobrem‐se substitutos à família em grupos 
de referência: os amigos. “Os grupos de amigas de hoje em dia … incluem 
uma acção muito moderna de apoio identitário. Na sua origem o grupo 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   63 

constitui‐se segundo circunstâncias ocasionais, a partir de uma vivência 
colectiva… o trabalho de amizade consiste em reduzir as diferenças… e 
reconhecer os pontos comuns.” (Kaufmann, 2000: 45‐46). 
O  papel  de  apoio,  companheirismo  e  enquanto  referência  identitá‐
ria  dos  amigos  é  bem  claro  nos  discursos,  mas  adopta  contornos  dife‐
renciados. Por vezes, surge enquanto suporte incondicional e inquestio‐
nável, acompanhando os indivíduos no seus percursos. 

“Os  meus  amigos  também  são  uma  das  minhas  plataformas  de 
apoio…” (Mónica) 

“Os amigos para mim são importantíssimos e têm um peso brutal.” 
(Andreia) 

Ou,  ainda,  enquanto  relação  que  cresce,  evolui  e  muda.  Porque 


mudamos, os amigos também mudam e, perante alterações nos quadros 
de vida – rupturas, nascimento de filhos –, por vezes, torna‐se necessá‐
rio avançar e construir novas amizades.  

“… os amigos são uma estranha alteração na minha vida, porque há 
muitas coisas que quando se muda uma coisa, muda‐se tudo, é verda‐
de  e  …  assim  amigos  daqueles  que  eu  tinha,  …  tenho  poucos,  tenho 
muito poucos … isto tem sido um processo, porque tenho conhecido 
pessoas novas e diferentes, … e é uma forma de encarar a vida e de 
estar  na  vida  que  muda,  e  as  amizades  mudam  também,  ou  pelo 
menos  a  proximidade  com  algumas  amizades  muda,  às  vezes  não  o 
deixar  de  ser  amigo  ou  não,  é  a  intensidade  e  a  proximidade  …  e 
demora muito tempo até surgirem…” (Marta)  

“Dou  imensa  importância  à  amizade  porque  acho  que  é  das  coisas 


que nos dá mais força e acho que as amizades servem para nós espe‐
lharmos aquilo que temos de aprender e conhecer…” (Margarida) 

“Naturalmente, há pessoas que me pareceram que eram muito ami‐
gas e depois percebi que não… Mas eu entendo isso com muita natu‐
ralidade, porque eu sei que as pessoas têm fases diferentes das suas 
vidas e, às vezes, o facto de eu ter agora uma família … nem me con‐
vidam. E, portanto é natural que os caminhos se separem.” (António) 

“É uma característica, de facto, da minha vida. E mesmo hoje em dia 
que já tenho mais alguma maturidade, já sou um adulto, vejo que não 
é  da  minha  natureza  ter…  [amigos].  Ter  laços…  profundos  e,  muito 
menos, ter redes, networks… Tenho dois ou três amigos que quando 
eu preciso de celebrar alguma coisa, quando tenho um grande insu‐
64  ANA ROQUE DANTAS  

cesso, quando estou triste, tenho duas ou três pessoas espectaculares, 
que me preenchem profundamente já há muitos anos…” (Rui) 

Argyle  (2001)  explica  que  a  razão  porque  as  relações  com  pais, 
amigos e cônjuges assumem diferentes importâncias nas diversas fases 
da  vida  se  deve  ao  crescimento  e  evolução  dos  indivíduos.  Os  amigos 
têm  um  papel  fundamental  na  construção  identitária  e  no  processo  da 
juventude,  mas  iniciada  a  inserção  no  mercado  de  trabalho,  a  saída  de 
casa dos pais, a construção de uma família, facilmente se percebe a difi‐
culdade  em  alimentar  relações  de  amizade.  Os  acontecimentos  da  vida 
também não acontecem em paralelo a todo um grupo de amigos, provo‐
cando  inevitáveis  afastamentos  e  redução  de  investimento.  Mas,  inde‐
pendentemente  da  natureza  das  relações  de  amizade,  os  entrevistados 
assumem que os amigos têm importância na sua vida. 

5.3  A felicidade na relação com o trabalho  

O valor social do trabalho adquire uma particular importância com 
o desenvolvimento do capitalismo industrial. Diversos autores lembram 
o seu papel na organização social e na estruturação da vida dos indiví‐
duos  (Whitehead,  2002),  bem  como  a  influência  que  tem  na  felicidade 
(Veenhoven, 1984, Baudelot e Gollac, 2003).  
O  estudo  das  relações  entre  trabalho  e  felicidade  não  é  recente  e 
centra‐se na procura de  associações  entre o  estar ocupado e o ser feliz, 
exaltando  as  virtudes  do  trabalho  enquanto  disciplina  de  vida.  A  sua 
existência  ou  ausência,  assim  como,  o  tipo  é  identificado  como  um  dos 
factores  que  influencia  e  determina  a  felicidade  dos  indivíduos  (Veen‐
nhoven, 1984; Frey e Stutzer, 2002).  
Também Whitehead (2002) lembra que, nas sociedades ocidentais, 
o trabalho remunerado é mais do que uma simples forma de obter con‐
forto  material;  é  também  um  veículo  importante  para  a  construção  do 
self  e  para  a  localização  no  mundo  social.  No  mesmo  sentido,  Claude 
Dubar  (1998)  explica  que,  nas  sociedades  contemporâneas,  a  trilogia 
formação/emprego/trabalho  é  a  mais  estruturante  dos  "espaços‐
‐tempos"  individuais  e  da  maneira  segundo  a  qual  os  actores  sociais  – 
especialmente  os  homens  –  "narram  a  sua  vida"  e  categorizam  as  suas 
situações sucessivas quando solicitadas para fins de pesquisa.  
Baudelot  e Gollac (2003) estudam  as  relações  entre o trabalho e a 
felicidade e defendem que o primeiro ocupa uma posição central na vida 
social, tanto pela sua utilidade económica, como pelas suas capacidades 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   65 

morais. Os seus resultados destacam um elevado investimento no traba‐
lho  e  na  actividade  profissional,  a  par  de  diferentes  formas  de  relação 
com o trabalho – dependendo do estrato social, do tipo de trabalho e do 
perfil  sociocultural  do  indivíduo  –  e  de  graus  diferenciados  de  empe‐
nhamento  pessoal.  O  tipo  de  investimento  parece  derivar  do  estatuto 
social e das características objectivas da actividade, fazendo correspon‐
der  a  categorias  com  capitais  económicos  e  culturais  mais  elevados,  a 
procura de satisfação e a categorias mais baixas, a resolução de questões 
económicas.  O  mesmo  estudo  revela  ainda  uma  distinção  de  género:  o 
trabalho  assume  um  papel  estruturador  para  os  homens,  ao  passo  que 
as mulheres privilegiam mais as dimensões afectivas e familiares. Apon‐
ta  ainda  para  as  diferentes  considerações  que  mulheres  e  homens  têm 
do  trabalho  (dependendo  também  das  suas  trajectórias  sociais):  entre 
as  mulheres  destaca‐se  maior  satisfação,  bem  como  a  valorização  da 
realização pessoal e importância da execução.  
Os resultados alcançados mostram o posicionamento transversal da 
categoria  trabalho  nos  gráficos  factoriais  realizados,  o  que  claramente 
revela  a  sua  importância  para  todos  os  perfis  considerados.  Da mesma 
forma, o trabalho está presente em 29,1% das 1817 unidades de contex‐
to  analisadas.  A  análise  dos  resultados  destaca  uma  associação  entre 
trabalho e o perfil convencional e, ao contrário, uma menor importância 
desta categoria entre os entrevistados de perfil de ruptura e espiritual. 
Face  aos  resultados  referidos,  e  considerando  que  o  trabalho  é 
estruturador  de  estilos  e  projectos  de  vida  dos  entrevistados,  questio‐
namos  se  a  sua  importância  está  ligada  ao  que  este  permite  obter  e 
alcançar,  ou  ao  que  permite  ser,  definindo‐se  o  indivíduo  pelas  suas 
acções e pelo prazer que delas retira.  
São várias as profissões ou actividades existentes neste universo de 
entrevistados,  associadas  também  a  diferentes  percursos,  formações, 
motivações e investimentos. Neste sentido, a análise das situações pro‐
fissionais  é  conjugada  com  a  das  disposições  dos  actores  sociais  face  à 
actividade que desempenham e posições ocupadas. A questão que estru‐
tura a análise prende‐se com a compreensão da forma como o trabalho 
pode condicionar a felicidade dos indivíduos, bem como com a tentativa 
de  decifrar  o  significado  que  adquire  na  vida  dos  entrevistados.  O  seu 
valor assume destaque em todas as entrevistas realizadas, aspecto reve‐
lado tanto pela análise estatística como pela análise compreensiva. 

“O  trabalho  é  mesmo  muito  importante!  Eu  acho  que  o  trabalho 


dignifica a pessoa, o que quer que seja, o que quer que seja que a pes‐
soa faça. E para mim o trabalhar é importante.” (Alexandra) 
66  ANA ROQUE DANTAS  

Para  Kaufmann  (2000),  o  trabalho  dá  uma  disciplina  de  vida,  um 
quadro de socialização, um universo vivo e fechado que envolve e man‐
tém. À falta de outros pólos de identificação, o essencial concentra‐se no 
trabalho. 
Mas  os  resultados  da  análise  estatística  apontam  para  duas  posi‐
ções  distintas  face  ao  trabalho5:  lógica  instrumental  (carreira,  posição, 
prestígio, sucesso) e enquanto forma de realização pessoal.  
Assim, os resultados mostram uma clara e forte associação estatís‐
tica entre a categoria trabalho e valores de posse, bem como, e ainda de 
forma mais vincada, com valores de realização e acção (ser).  
Uma análise aprofundada das entrevistas mostra que o discurso em 
torno  da  importância  da  realização  pessoal  penetrou  as  expectativas 
profissionais  dos  entrevistados.  Por  um  lado,  encontramos  entrevista‐
dos para quem o trabalho tem uma função assumidamente instrumental 
e enquanto condição necessária para obter outros bens essenciais, como 
um  meio  para  atingir  outros  fins.  Mas  aqui  também  está  presente  a 
importância  da  realização  pessoal.  Distingue‐se  porque  a  realização  se 
associa à posse e ao reconhecimento social. Por outro lado, temos entre‐
vistados que procuram intensamente a realização pessoal, no que fazem 
e no que são. Esta valorização da acção obrigou, em alguns casos, a rup‐
turas profissionais a que também se associam conflitos ou tensões fami‐
liares e pessoais.  
Como hipótese explicativa, sugerimos que o significado da activida‐
de e a capacidade de encontrar novos significados, possam ser factores 
distintivos  entre  os  entrevistados,  para  além  da  procura  de  realização 
no trabalho que está presente em todos os discursos6. O prazer na exe‐
cução do seu trabalho e a procura de realização profissional surge mes‐
mo em perfis marcados pela continuidade e estabilidade, nomeadamen‐
te financeira. 

                                                             
5  Esta diferença na relação com o trabalho tem sido apresentada por outros autores 
(Baudelot e Gollac, 2003; Torres, 2004c). 
6  Frey e Stutzer (2002) distinguem factores intrínsecos e extrínsecos de satisfação 
com  o  trabalho.  Os  primeiros  são  decorrentes  da  oportunidade  de  controlo  pes‐
soal, da possibilidade de utilizar capacidades, variedade de tarefas, supervisão de 
controlo ou apoio e oportunidade para contactos pessoais. Os extrínsecos relacio‐
nam‐se  com  as  remunerações,  incluindo  benefícios,  as  condições  de  trabalho,  a 
segurança no trabalho, a segurança física e o status ou prestígio social associado à 
actividade. 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   67 

“O que é que me motiva? Não sei… ser professor é… quando se gosta 
daquilo que se faz, eu costumo dizer, quando há uma boa relação com 
os grupos todos, com diferentes perfis, se consegue dar bem com eles, 
é muito gratificante … gosto mesmo de dar aulas.” (Leonor) 
“Eu sou designer gráfica e web designer. É tentar fazer o trabalho o 
melhor possível, lançar desafios a mim própria  e ao  produto final e, 
obviamente, ser recompensada por isso, porque é assim que me sus‐
tento. Portanto, há um misto de compromisso nesses objectivos… Eu 
chego à conclusão que, realmente, gosto daquilo que faço…” (Sofia) 

A análise das entrevistas revela alguns percursos profissionais con‐
turbados, entre uma multiplicidade de actividades e empresas, em que a 
incerteza  face  ao  futuro  parece  facilitar  rupturas  e  a  procura  de  novos 
estímulos  e  significados.  Claude  Dubar  (1995)  lembra  que  assistimos  à 
crescente  diversificação  das  formas  de  emprego,  das  organizações  de 
trabalho  e  dos  conteúdos  das  actividades.  Refere  igualmente,  a  recom‐
posição dos ciclos da vida profissional com o alongamento do período de 
inserção,  a  multiplicação  das  actividades,  a  mudança  de  actividade  no 
curso de vida activa que também diminui a sua duração e tem um esta‐
tuto mais incerto e ambivalente.  

“… eu sempre trabalhei desde os 13 anos, nas férias para ter o meu 
dinheiro,  para  ter  a  minha  independência…  depois  enquanto  fiz  a 
Universidade trabalhei em part­time como operadora de Call Center, 
depois acabei o curso e fui estagiar… Depois tive uma empresa… e foi 
uma  prisão  para  mim...  [actualmente]  sou  coach,…  o  coach  incita  as 
pessoas… a descobrirem talentos que têm…” (Mónica) 
“Estou  a  desempenhar  a  função  de  designer  gráfico  num  gabinete 
de comunicação, sou criativa… dou imensa importância [ao trabalho] 
até porque como eu disse quando fui para Londres as coisas não cor‐
rerem muito bem e eu… tive que me desenrascar,… e acabas por dar 
muito valor àquilo que realmente gostas de fazer… neste momento eu 
estou  bem  por  isso,  porque  é  isto  que  eu  gosto  de  fazer…  portanto 
neste momento estou a 100%. É isto que me dá prazer”. (Andreia) 
“…Portanto, saí de casa dos meus pais,… as coisas não estavam a ser 
fáceis,  pedi  um  empréstimo  de  25.000  Euros…  era  para  investir  na 
empresa  e  depois  acabei  por  viajar  e  isso  ajudou‐me  a  poder  fazer 
essas viagens, a formar‐me, a fazer  aquilo que eu gosto, porque  não 
tinha que me preocupar em ter que pagar as contas ao final do mês. 
Alguns  meses  até  conseguia,  outros  ia  à  conta  buscar  o  dinheiro, 
quando  dei  por  mim,  o  dinheiro  acabou.  Mas  nessa  altura  do  cam‐
peonato,  já  eu  estava  tão  bom  naquilo  que  eu  estava  a  fazer,  que  já 
68  ANA ROQUE DANTAS  

estava  a  conseguir  trabalhar  e  ganhar  dinheiro  para  me  sustentar  e 


pagar a dívida. Que é o que tem acontecido até agora…” (Rui) 

Este padrão de ruptura está presente em diversas entrevistas, reve‐
lando que para alguns dos entrevistados, o prazer de execução, a procu‐
ra de significado e o estímulo que daí decorre se sobrepõem às necessi‐
dades materiais e à procura de estabilidade profissional. 

“Comecei a trabalhar como terapeuta… há quatro anos… adorei tra‐
balhar em publicidade no tempo que trabalhei, adorei ter feito o per‐
curso que fiz a nível das agências… cheguei onde eu acho que é o meu 
limite…  onde  curti  sempre,  diverti‐me  sempre  e  pronto.  E  depois, 
porque  eu  acho  que  isso  aí  tem  que  ser  denominador,  ter  prazer  e 
paixão pelo que se faz…” (Marta) 
“Porque deixou de ser uma coisa profunda, passou a ser uma coisa 
muito  superficial,  porque  nós  organizávamos  eventos  e…  deixou  de 
fazer  sentido,  já  não  me  puxava,  já  não  me  incentivava,  já  não  me 
estimulava.” (Margarida) 
“Bem,  fiz  o  12.º  como  toda  a  gente  e  tal.  Entrei  na  Faculdade…  e 
depois estive até ao segundo ano em Economia, até depois perceber 
que a minha vida não era por ali. Também não sabia por onde é que 
seria…  não  é  que  eu  não  sentisse  facilidade  em  aprender,  até  tive 
boas  notas,  não  era  por  aí…  Neste  momento…  eu  vivo  a  vida,  tento 
viver  o  presente  e  tenho  consciência  que  se  eu  quisesse  poderia  ter 
uma  vida  muito  mais  acelerada,  podia  ter  um  emprego  fixo,…  Mas, 
como eu te disse, eu gosto de ter tempo para mim…” (Zé) 

As  rupturas  relatadas  não  decorrem  de  dificuldades  na  realização 


das actividades, mas da existência de insatisfação que leva os entrevis‐
tados a procurarem actividades que, embora por vezes com menor pres‐
tígio social e remuneração ou possibilidade de remuneração, permitam 
ter tempo para si próprios e, sobretudo, cuja execução dê prazer. Estas 
rupturas decorrem de uma certeza que é renunciar ao que não se gosta, 
mesmo optando por trajectórias incertas. 

“Quando  desisti  do  curso  [Economia]  comecei  a  trabalhar  não  é? 


Então,  nessa  fase  estive  a  fazer  produção  de  espectáculos,  portanto, 
teatro,  concertos,  fogos  de  artifício,  fiz  tudo!  …  Entretanto,  quando 
acabei  a  tourné  …  percebi  que  também  não  era  teatro…  Foi  uma 
experiência  muito  boa  na  minha  vida  …  Não  me  arrependo  nada  de 
ter feito, antes pelo contrário. Mas, pronto, não queria fazer aquilo o 
resto da minha vida, queria fazer outra coisa … E foi aí que também 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   69 

comecei a estudar Publicidade… É um estímulo constante para mim. 
É um desafio e um estímulo constante.” (António) 

Assim,  o  trabalho  é  uma  das  dimensões  estruturantes  da  vida  dos 


entrevistados,  seja  pela  sua  função  instrumental  –  de  sustento  e  inde‐
pendência  económica  –  seja  enquanto  factor  de  realização  pessoal  e 
criação  de  um  significado.  Aliás,  este  último  aspecto  ganha  relevância 
nos discursos, traduzindo‐se em rupturas e descontinuidades no trajec‐
to profissional iniciado e procurando alternativas em que o mais impor‐
tante  é  o  prazer,  sacrificando  por  vezes  as  recompensas  materiais  e  o 
prestígio ou reconhecimento social.  
À partida, poderíamos pensar que este comportamento estaria pre‐
sente nos perfis de ruptura e espiritual, mas ele surge também junto de 
alguns convencionais e pragmáticos, revelando diferentes posturas face 
ao trabalho e à actividade profissional.  
Fazendo  parte  da  vida  –  e  assegurado  um  nível  de  bem‐estar  eco‐
nómico – torna‐se importante gostar do que se faz, sentir que essa acti‐
vidade  tem  um  sentido  e  que  esse  sentido  faz  parte  de  uma  forma  de 
estar  na  vida.  Talvez  o  traço  distintivo  resida  no  nível  de  bem‐estar  e 
estabilidade económica que cada um necessita. 
O  trabalho  é  assumido  como  uma  das  dimensões  do  projecto  de 
vida,  confundindo‐se  mesmo,  em  alguns  casos,  com  o  projecto  de  vida. 
Este aspecto é mais visível nos homens – a não distinção entre a esfera 
profissional e pessoal –, ao contrário das mulheres que fazem uma sepa‐
ração entre o projecto pessoal e o profissional. Mais uma vez, o contri‐
buto  de  Beck  e  Beck‐Gernsheim  (2005)  ajuda  à  interpretação.  Estes 
autores  defendem  a  existência  de  dois  padrões  de  vida  e  expectativas 
contraditórias  face  ao  trabalho.  Tanto  os  homens  como  as  mulheres 
querem ser  economicamente independentes, objectivo difícil de atingir 
enquanto as estruturas e instituições sociais se basearem e organizarem 
em  função  da  família  nuclear  tradicional.  Esta  organização  pressupõe 
que  os  sexos  têm  papéis  diferentes,  sobrecarregando  claramente  as 
mulheres  com  actividades domésticas e  familiares. Se, durante séculos, 
os papéis dos homens estiveram confinados ao espaço público e à esfera 
profissional, as mulheres dedicaram‐se em exclusivo ao espaço domésti‐
co  e  familiar.  Actualmente,  as  mulheres  ganharam  um  novo  espaço  –  o 
pessoal  –,  que  não  querem  perder.  Como  resultado,  repartem  os  seus 
objectivos, motivações, acções e significados por diferentes dimensões – 
pessoal, familiar e profissional – como se de várias vidas se tratasse. 
70  ANA ROQUE DANTAS  

5.4  Os valores orientadores das práticas e condutas 

Em  seguida,  procuram‐se  indícios  da  produção  de  um  sentido 


comum para a ideia de felicidade, através da análise dos valores orien‐
tadores  das  práticas  e  condutas  dos  actores  sociais.  Veenhoven  (1984) 
elencou  diversos  factores  com  influência  sobre  a  felicidade,  tanto  ao 
nível  das  condições  estruturais,  como  sociais  e  individuais.  Este  autor 
considera que os valores têm efeito sobre a felicidade dos actores sociais 
por  contribuírem  para  procuras  que  influenciam  os  processos  de  per‐
cepção e avaliação. 
Anteriormente, foi apresentada a análise da estatística multivariada 
que  permitiu  identificar  os  valores  que  emergem  dos  discursos  dos 
entrevistados,  assim  como  conhecer  as  relações  entre  eles.  Face  aos 
resultados,  em  seguida,  analisam‐se  os  vários  padrões  de  valores  com 
influência sobre as práticas e condutas dos entrevistados: valor do colec­
tivo, espiritualidade, hedonismo, ter ou ser, materialidade e felicidade. 
Pretende‐se  analisar  compreensivamente  os  discursos,  focando  os 
significados que os entrevistados dão às suas acções, nomeadamente, a 
importância  que  estes  valores  adquirem  para  a  sua  felicidade.  Mais 
especificamente, pretende‐se perceber: 
Se  o  valor  do  colectivo,  enquanto  desenvolvimento  e  expressão  de 
si, é factor de felicidade;  
Que papel assume a valorização do prazer e do hedonismo na vida 
dos entrevistados;  
Se as concepções de felicidade dos entrevistados são balizadas por 
convicções espirituais;  
Se  a  presença  de  diferentes  tipos  de  valores  (posse  ou  execução) 
está associada a diferentes perspectivas de felicidade; 
De que forma a relação com as condições materiais influencia a pro‐
cura de felicidade; 
Que importância adquire a felicidade para a construção dos projec‐
tos de vida dos entrevistados. 

5.4.1 O colectivo e o individual  

Qual  a  importância  atribuída  à  preocupação  com  os  outros  como 


factor  de  felicidade?  Pensar  em  si  e  nos  outros  ao  mesmo  tempo  tem 
sido  considerado  contraditório,  mas  “ser  um  indivíduo”  não  exclui  o 
cuidado aos outros. De facto, para Beck e Beck‐Gernsheim (2005), viver 
numa  cultura  individualizada  significa  ser  socialmente  sensível,  ter  a 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   71 

capacidade  de  relacionamento  com  os  outros,  obrigando‐se  a  gerir  e 


organizar o quotidiano. 
Por  hipótese,  sugerimos  que  o  facto  dos  indivíduos  integrarem 
valores  de  cooperação  e  respeito  ou  ajuda  pelo  outro  e  daí  retirarem 
algum prazer pode indicar uma forma de procura ou vivência de felici‐
dade, em que a valorização do colectivo surge como expressão de indi‐
vidualidade.  David  Myers  (1993)  destaca  que  o  facto  dos  indivíduos  se 
descentrarem de si próprios reforça a sua felicidade. No mesmo sentido, 
a  análise  estatística  realizada  sugere  uma  associação  entre  o  valor  do 
colectivo  e  a  presença  da  categoria  felicidade.  Aponta  também  para  a 
associação desta categoria ao perfil  mais espiritual, a valores de vivên‐
cia,  espiritualidade  e  acção  (ser/fazer).  Refira‐se  ainda  que  é  entre  as 
mulheres  mais  jovens,  solteiras  e  sem  filhos  que  se  notam  mais  estes 
valores. 
Questionamos  se  a  importância  dada  aos  outros  resulta  numa 
alternativa, numa procura de realização fora do convencional. Uma ten‐
tativa de expressar a individualidade através da valorização do outro, do 
colectivo. 
Tal como Claude Dubar (2000) explica, alguns “nós” não são comu‐
nidades; são, sim, associações voluntárias de pessoas que escolhem, por 
um espaço de tempo, desenvolver uma cooperação umas com as outras 
– associações desportivas, profissionais, organização humanitária. Estas 
ligações podem ser emocionais, afectivas ou éticas e desenvolvem rela‐
ções sociais das quais se retira prazer e satisfação. 
Assim,  o  colectivo  é  aqui  entendido  como  a  importância  que  os 
outros  indivíduos  assumem  para  os  entrevistados,  como  relações  de 
cooperação ou troca, compromissos ou envolvimentos que se estabele‐
cem,  mas  que  pressupõem  complementaridade.  Esta  categoria  aparece 
representada em 5,6% dos 1817 parágrafos analisados. E apesar da sua 
frequência  não  ser  elevada,  cristaliza  posições  muito  específicas.  Os 
resultados permitem perceber a associação entre o valor do colectivo e o 
perfil  espiritual.  Revelam  igualmente  uma  associação  negativa  entre 
este valor e os perfis convencional e pragmático. 
Com o foco de análise nos discursos, explora‐se os significados que 
os  próprios  actores  sociais  atribuem  a  estas  associações.  Por  vezes,  o 
envolvimento e apoio aos outros está relacionado com a procura de um 
sentido  para  a  vida.  E  que  se  expressa  pela  participação  em  acções 
humanitárias, voluntariado na Igreja ou noutras associações que procu‐
ram o bem‐estar. 

 “…vi um anúncio no jornal e dizia assim: Africa needs you, e eu cho‐
rei baba e ranho durante um dia, porque eu tomei a decisão e nessa 
72  ANA ROQUE DANTAS  

altura é obvio que mais uma vez a minha vida mudou. E fui… e adorei. 
Tem muito a ver comigo. … E foi basicamente isso, passar do pensa‐
mento à acção, … já tinha acabado o curso, estava em início de carrei‐
ra  e  estava  tudo  a  encaminhar‐se,  mas  não  fazia  sentido,  eu  tinha 
tudo,  aquela  ideia  de  sucesso,  de  carreira,  …  Faltava  algo,  havia  um 
vazio.  Talvez  essa  consciência  de  que  …,  OK,  vais  viver  uma  vida  de 
plástico,  mas  há  tanta  coisa  aí  a  acontecer  pelo  mundo,  não  podes 
ficar só aqui… E sou voluntária em várias associações…” (Mónica) 
“Para  mim  a  parte  de  voluntariado  sempre  foi  uma  parte  muito 
importante,  eu  sinto‐me  uma  pessoa  inútil  se  não  tiver  a  fazer  algo 
pelos outros. É uma componente que eu acho que, se calhar foi atra‐
vés  um  bocadinho  dos  escuteiros  que  fomentou  isso…  todas  estive‐
ram  ligadas  um  bocado  à  Igreja.  Pronto,  é  sempre  um  meio  primor‐
dial,  quer  dizer  a  gente  pensa  sempre  que  está  associado  ao  bem‐
‐estar também dos outros, não é?” (Alexandra) 

Mas,  para  alguns  entrevistados,  o  envolvimento  é  ainda  mais  pro‐


fundo. Fizeram do apoio aos outros uma forma de estar na vida. A soli‐
dariedade e o compromisso com os outros são assumidos como parte do 
processo de construção identitário e estruturador do projecto de vida. 

“… acções comunitárias basicamente é o [meu] trabalho…” (Afonso) 
“[Tenho] várias áreas de trabalho, uma delas é social e comunitária, 
que é esta da [associação], actualmente. Mas já há dez anos que traba‐
lho  na  área  social.  Já  trabalhei  com  miúdos  …  toxicodependentes,  já 
trabalhei com deficientes, graves, mentais, cegos, surdos, já trabalhei 
com  grávidas  adolescentes…  públicos‐alvo  muito  distintos,  directa‐
mente  com  as  pessoas  durante  muitos  anos.  E  já  trabalhei  também 
com públicos banais, jovens quaisquer ou adultos quaisquer, etc, mas 
na área social.” (Rui) 
“[Esta é] a primeira associação a surgir na área de desenvolvimento 
pessoal em Portugal. Associação, porquê? Porque é não lucrativa, por‐
que  o  que  nós  estamos  a  tentar  fazer  é  oferecer  à  sociedade  portu‐
guesa um desafio, que é: se ser feliz é uma decisão ou não. Se não é, 
ok. (Rui) 

De  facto,  ser  um  indivíduo  não  exclui  o  apoio  aos  outros.  Viver 
numa cultura altamente individualizada significa ter de ser socialmente 
sensível  e,  simultaneamente,  ter  capacidade  de  se  relacionar  com  os 
outros,  de  forma  a  gerir  e  organizar  o  quotidiano.  Pensar  em  si  e  nos 
outros  ao  mesmo  tempo  foi  considerado  contraditório  mas  revela  uma 
conexão interna substantiva, defendem Beck e Beck‐Gernsheim (2005). 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   73 

Esta nova ética combina a liberdade pessoal com o compromisso com os 
outros num individualismo altruísta e cooperativo. 

5.4.2 Espiritualidade 

Relembramos a hipótese anteriormente formulada das concepções 
de  felicidade  poderem  estar  balizadas  por  valores  religiosos  ou  espiri‐
tuais. Por exemplo, Layard (2005) questiona em que medida a felicidade 
é hoje mais valorizada pela ausência de normatividade religiosa.  
Por  outro  lado,  para  Machado  Pais,  “…os  indivíduos  desenvolvem 
formas de reelaboração dos símbolos religiosos que lhes são fornecidos 
pela religião institucionalizada, dando‐lhes sentidos mais alinhados com 
os seus interesses. Os significados das representações religiosas cada vez 
mais radicam no modo  personalizado como são interpretados e valori‐
zados. Por exemplo, a representação de sacralidade é ampliada para que 
nela tenham cabimento não apenas os santinhos ou os curandeiros, mas 
também os astrólogos…”. Sobre esta “religiosidade fluida”, o autor assi‐
nala uma “… religiosidade intimista, centrada no indivíduo, talvez mais 
espiritualidade que religiosidade…” (Pais, 2006: 235).  
Na  dimensão  espiritualidade,  integramos  todas  as  menções  espiri‐
tuais ou religiosas contidas nos discursos e podemos verificar que esta 
categoria ocupa cerca de 6,4% dos 1817 parágrafos considerados. Con‐
tudo, é importante referir que esta categoria não está presente em todos 
os entrevistados. Destaca‐se entre os de perfil espiritual mas existe tam‐
bém  noutros discursos enquanto valor orientador de práticas e condu‐
tas. Assim, a espiritualidade enquanto valor, aparece associada ao perfil 
espiritual e ao de ruptura, mas tem uma expressão quase nula no perfil 
convencional.  É  também  significativa  a  sua  presença  entre  os  mais 
novos, os solteiros e as mulheres.  
Encontramos também diferentes sentidos nos discursos sobre espi‐
ritualidade. Ora assumem formas mais próximas da religiosidade fluida 
de  que  nos  fala  Machado  Pais,  ora  adquirem  contornos  mais  religiosos 
ou tradicionais.  
Uns apresentam a sua espiritualidade como forma de autoconheci‐
mento, vivida através da meditação e da procura de equilíbrio entre as 
várias dimensões da vida. Este tipo de espiritualidade está mais centra‐
da no indivíduo.  

“Eu sou uma pessoa muito espiritual… estou numa fase de mudan‐
ça, porque eu indo viver para a comunidade, vou estar muito mais em 
contacto com o meu lado espiritual… o que é que nós queremos real­
mente  ser,  o  que  é  que  nos  dá  verdadeiro  prazer  na  vida,  o  que  é  que 
74  ANA ROQUE DANTAS  

nós queremos, o que é que andamos aqui a fazer,… É o que eu acredito 
e  é  o  que  eu  sinto,  sobretudo!  É  eu  estar  bem,  eu  estar  no  caminho 
certo,  ter  uma  visão  alargada  das  coisas,  ver  o  que  é  que  se  passa, 
seguir a minha intuição…” (Mónica) 

Noutros  entrevistados,  surge  sob  formas  de  orientação  em  que  a 


Igreja ou outras entidades espirituais guiam as acções. Para estes, a reli‐
gião é associada ao bem‐estar, do próprio e dos outros. 

“… eu tenho de me considerar uma pessoa que estou a tentar incutir 
em mim a viver um caminho espiritual … faço uma actividade religio‐
sa  se  é  que  se  pode  chamar  ou  um  retiro,  ou  por  exemplo,  os  cami‐
nhos de Santiago tirar dias de meditação e retiro, ir para a natureza 
fazer várias actividades ligadas à natureza” (Margarida) 
“… é mesmo uma força interior, tem de ser uma força interior. Creio 
que  em  todas  as  acções  que  tive,  sim…  que  todas  estiveram  ligadas 
um bocado à Igreja… é sempre um meio primordial, quer dizer, a gen‐
te  pensa  sempre  que  está  sempre  associado  ao  bem‐estar  também 
dos outros, não é. Temos um bocado essa ideia e para mim é impor‐
tante,  porque  senão  não  me  sinto  bem  comigo  própria,  é  mesmo.” 
(Alexandra) 
“… estou inspirado no Osho, também poderia dizer que estou inspi‐
rado em Jesus ou em Buda, são, de facto, seres espirituais, de luz, não 
é.  Portanto,  falam  do  coração  e  falam  de  uma  sabedoria  espiritual 
muito profunda.” (Rui) 

O que é comum é a valorização da espiritualidade enquanto sentido 
de  vida,  procura  de  desenvolvimento  pessoal  e  autoconhecimento  que 
permita harmonia e equilíbrio entre as diferentes dimensões da vida. 

“… então comecei a desenvolver uma parte mais de cuidado com a 
alimentação,  o  gosto  também  por  coisas  que  poderiam  ajudar  na 
manutenção do meu equilíbrio físico, psicológico, emocional, etc. Mas 
acho  que  foi  mais  aí  que  eu  comecei  a  desenvolver  um  gosto  pelo 
corpo e pelo mundo que é o tu conheceres‐te a ti mesmo, o teu corpo. 
Bem,  isto  leva  a  outras  vertentes  mais  espirituais,  também…  do 
domínio espiritual.” (Zé) 
“Tranquilamente,  mas  em  paz  com  toda  a  gente…  digamos  que  há 
um lado meu que é muito mais espiritual do que material. Mas é que é 
mesmo. Mas não é ao nível do pensamento, como eu vejo as pessoas, 
têm  teses,  têm  grandes  ideologias,  não  tem  nada  a  ver  com  isso.  É 
mesmo uma maneira de estar, de viver. E muito desligada de acumu‐
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   75 

lar  muitas  coisas,  de  querer  ter  coisas.  Pronto,  o  que  é  visível,  mas 
que é muito… não me diz grande coisa: ter muito dinheiro, ter  mui‐
to…” (Leonor) 

Retomando  a  hipótese  de  Layard  (2005)  com  que  iniciamos  esta 


análise, de que a actual valorização da felicidade se pode ficar a dever à 
ausência de normatividade religiosa, o que os discursos parecem indicar 
é  que  a  par  da  importância  da  felicidade,  surgem  valores  orientadores 
de natureza espiritual que cada indivíduo apropria e modifica segundo a 
sua individualidade. 

5.4.3 Hedonismo 

A procura de uma relação entre hedonismo e felicidade não é recen‐
te. Desde  a  Antiguidade  que se discute se  o hedonismo conduz à felici‐
dade ou se, pelo contrário, pode levar ao “desespero”7. Estudos recentes 
apresentam resultados indicativos da importância que o prazer tem em 
algumas  formas  e  estilos  de  vida.  Utilizando  as  actividades  de  lazer 
como  indicadoras  do  hedonismo,  concluem  que  nos  “países  felizes”,  os 
indivíduos  gozam  de  maior  número  de  programas  sociais  e  culturais, 
bem como de tempo dedicado aos amigos (Veenhoven, 2003b).  
Nesta análise, o hedonismo inclui as referências aos prazeres – físi‐
cos e sensoriais –, ao bem‐estar, à harmonia e à tranquilidade ou paz. No 
nosso estudo, foi possível encontrar referências hedonísticas em 17,9% 
(um dos valores que tem maior prevalência) dos discursos dos entrevis‐
tados,  mostrando  a  importância  que  esta  dimensão  assume  nas  suas 
vidas, particularmente importante entre os entrevistados que revelaram 
perfis de ruptura e espiritual. Está também associada de forma intensa 
às categorias felicidade e viver. 
A  análise  dos  discursos  sugere  estilos  de  vida  em  que  a  busca  de 
prazer é uma constante, através de pequenos gestos quotidianos, procu‐
rando  equilíbrio  e  bem‐estar  sensorial  e  físico  e  acreditando  que  uma 
vida com prazer é uma vida preenchida, com objectivos e sentido. 

“… eu faço questão de ter essas duas horas para mim, para sair… o 
objectivo é sempre… descobrirmo‐nos a nós próprios.” (Mónica) 

                                                             
7  Lembramos  que  hedonismo  é  uma  doutrina  filosófica  que  afirma  ser  o  prazer  o 
supremo bem da vida humana. 
76  ANA ROQUE DANTAS  

No mesmo sentido, destaca‐se a valorização do prazer nas rotinas e 
nas actividades desenvolvidas; gostar do que se faz e ter liberdade para 
agir.  Noutro  plano,  encontramos  também  entrevistados  que  tendem  a 
associar prazer a trabalho.  

“… tento passar pelo menos metade do dia na natureza, a fazer uma 
caminhada…  pronto  estar  na  natureza  que  é  uma  coisa  que  me  dá 
muita força e me dá imenso prazer…” (Margarida) 
“…  cheguei,  onde  eu  acho  que  é  o  meu  limite…  onde  curti  sempre, 
diverti‐me sempre e pronto. E depois, porque eu acho que isso aí tem 
que  ser  denominador,  ter  prazer  e  paixão  mesmo  pelo  que  se  faz…” 
(Marta) 
“A minha vida são autenticamente umas férias. Eh pá! E depois faço 
aquilo  que  me  apetece…  É  das  maiores  vantagens  no  meu  estilo  de 
vida, é a liberdade que eu tenho a todos os níveis.” (Rui) 
“… depois começo a pensar: “Mas porque é que eu hei­de me privar 
de ir a um bom restaurante ou de umas boas férias?…” (Tiago) 
“É um bocado o que me dá prazer… Porque trabalhar para mim dá‐
‐me prazer…” (Alexandra) 
“… passados tantos meses de sacrifício consegui finalmente arranjar 
um trabalho na minha área e naquilo que eu gosto de fazer, portanto 
neste momento estou a 100%... É isto que me dá prazer.” (Andreia) 

Destacam‐se posições diferenciadas face ao prazer. Embora presen‐
te em quase todos os discursos, assume, por vezes, estilos e projectos de 
vida mais hedonistas, no sentido em que a vida deve ser um prazer em 
todas  as  suas  dimensões  e  momentos.  Para  outros,  a  existência  de 
momentos de prazer surgem sob a forma de escape ou reequilíbrio, ou 
ainda, centrando‐se apenas na dimensão profissional. 
O tema do prazer surge nas entrevistas a par dos momentos em que 
se fala de felicidade, reforçando a importância que tem na vida dos acto‐
res sociais. 

5.4.4 Ter ou ser 

Anteriormente  questionámos  se  as  motivações  dos  actores  sociais 


estariam mais balizadas pela importância do ter ou do ser. 
Partindo  dos  resultados  de  Baudelot  e  Gollac  (2003)  que  indicam 
uma distinção entre duas perspectivas de felicidade: o ter e possuir, ou o 
ser e fazer – propomos este binómio como categoria analítica. 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   77 

A  categoria  ter  polariza  respostas  que  indicam  que  a  felicidade  se 


pode  adquirir  através  do  possuir:  ter  trabalho,  ter  saúde,  ter  uma  boa 
situação social, ter casa, ter marido, ter mulher, ter filhos, ter uma família, 
ter  um  lar…  Incluem‐se  ainda  nesta  categoria  todas  as  referências  a  ter 
responsabilidades,  ter  obrigações,  ter  segurança,  ter  estabilidade,  ter 
prestígio.  Em  termos  da  sua  operacionalização,  considerámos  também  a 
conotação positiva ou negativa que tais expressões assumem no discurso. 
A importância do ter está presente em 32,1% dos parágrafos (mos‐
trando  claramente  a  importância  que  adquire  para  os  entrevistados), 
sendo  que,  em  23,3%  dos  casos  assume  um  sentido  positivo,  com  uma 
valorização  da  posse  e,  em  8,9%,  destaca‐se  a  importância  do  não  ter, 
enquanto renúncia à posse. Esta categoria está particularmente associa‐
da  aos  perfis  convencional  e  pragmático.  Associa‐se  igualmente  a  valo‐
res de família e trabalho.  
O estado de não ter pode definir uma fronteira a alcançar, um objec‐
tivo a atingir. O consumo e a posse dão o sentimento da conexão com a 
sociedade; aquilo que consumimos indica‐nos onde estamos localizados 
no  mapa  social,  explica  Rosenblatt  (1999).  Neste  caso,  a  posse  é  uma 
disposição  para  a  acção.  Refere‐se  também  ao  fosso  aspiracional  (aspi­
rational gap) entre o que se quer ter e o que se pode possuir. Questiona 
o que acontece quando se deixa de ter coisas para possuir: ficamos sem 
coisas para querer? 
Ou, ainda, como nos diz Machado Pais (2006: 100), “… o espírito do 
consumismo  moderno  é  o  do  «hedonismo  ilusório»  feito  de  fantasias, 
sonhos e ilusões. Quando se procura realizar a fantasia de posse através 
do consumo, o provável é que aconteça a decepção…”. Assim, para este 
autor,  o  “…  desafio  sociológico  é  desvendar  as  motivações  individuais 
que,  entrelaçadas  com  condicionantes  sociais,  fazem  com  que  um  acto 
individual seja também social… ” (2006: 109). 
Gilles  Lipovetsky  (2006)  reforça  esta  ideia  ao  considerar  que  os 
países  economicamente  desenvolvidos  vivem  em  sociedades  de  hiper­
consumismo, com o imaginário de uma vida melhor, de maior equilíbrio 
e mesmo de maior felicidade, com a expansão de novos mercados para 
além dos materiais: mercados da alma e da sua transformação, do equi‐
líbrio e da auto‐estima. Também aqui o consumo surge como imaginário 
de satisfação. 
Quando analisamos os discursos, o ter assume uma dimensão rele‐
vante (mesmo entre aqueles que se consideram pouco materialistas ou 
consumistas),  não  só  pela  necessidade  de  consumo  e  diferenciação 
material,  mas  também  pela  importância  que  é  dada  à  segurança  mate‐
rial, à estabilidade e à constituição de família.  
78  ANA ROQUE DANTAS  

“… eu não sou nada, creio que materialista… consumista… acho que 
zero … cada vez menos… eu acho que sempre fui uma pessoa muito 
controlada … Eu acho que sou do estilo Tio Patinhas, eu gosto de ver 
o dinheiro a crescer… É, eu sou assim estilo ratinho que guardo tudo, 
tudo,  tudo,  tudo,  se  calhar  tenho  mais  prazer  nisto  do  que  propria‐
mente  em  ter  coisas  e  em  gastá‐lo…  Eu  gosto  dessa  estabilidade.” 
(Alexandra) 

“… não faço grandes planos a nível futuro… vou levando a vida dia à 
dia…  [mas]…  é  muito  importante  fazer  aquilo  que  gosto  e  a  nível 
emocional, pessoal, ter alguém… constituir uma família sem dúvida é 
um sonho… gostava que acontecesse e gostava de acreditar que pode 
ser  real  e  que  é  possível  porque  dou  muito  valor  à  família  portanto 
obviamente  gostava  de  constituir  uma….  estar  bem  e  ter  filhos.” 
(Andreia) 

Pelo  contrário,  em  alguns  discursos,  transparece  a  importância  do 


ter em detrimento do ser, tanto sob a forma de posse de bens materiais, 
como do consumo. 

“É  assim,  eu  tenho  uma  qualidade  de  vida  extraordinária  aqui, 
esquecendo  a  parte  profissional,…  eu  tenho  uma  qualidade  de  vida 
extraordinária.” (Cristina) 

“…  nunca  foi  a  preocupação  de  juntar  dinheiro…  acho  que  é 


melhor,…  comprar…  ou  gastá‐lo,  vivê‐lo,  ou  se  a  pessoa  quiser  ter 
uma poupança que a tenha, pelo menos, de uma forma material, num 
imóvel, qualquer coisa que… e não dinheiro, não é. O dinheiro é a pior 
coisa que há.” (Filipe) 

Por sua vez, a categoria ser/fazer refere‐se a uma concepção de feli‐
cidade ligada a um estado interior, produzida por uma acção, ou dispo‐
sição  para  a  acção,  associando‐se  assim  à  realização  enquanto  motiva‐
ção (fazer o que dá prazer).  
No  corpus  analisado,  esta  categoria  expressa‐se  por  referências  à 
importância  do  autoconhecimento,  do  desenvolvimento  e  realização 
pessoal, da aprendizagem, do bem‐estar, do gostar do que se faz, da des‐
crição de como se é, e em saber o que não se quer fazer; ou seja, por pro‐
cura de adequação entre as disposições interiores e o modo de vida.  
Quanto  à  sua  frequência,  a  categoria  ser/fazer  destaca‐se  em  28% 
dos casos, reforçando a importância que os entrevistados dão à acção e à 
concretização. Esta categoria está fortemente associada aos perfis espi‐
ritual e ruptura. Está também relacionada com as categorias viver, traba­
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   79 

lho, hedonismo, colectivo, espiritualidade e felicidade. Destaca‐se entre os 
homens de estado civil união de facto. 
Alguns autores da área económica, como Bruno Frey e Alois Stutzer 
(2003),  defendem  a  importância  do  estudo  do  bem‐estar  para  a  com‐
preensão das preferências subjacentes a diferentes modelos de compor‐
tamento.  Lembram‐nos  que  os  indivíduos  valorizam  não  só  os  resulta‐
dos, mas também as condições e os processos que conduzem aos resul‐
tados. Propõem o conceito de procedural utility, para distinguir os pra‐
zeres  não  instrumentais  dos  processos,  aqueles  que  se  obtêm  por  se 
retirar  satisfação  da  realização  e  não  apenas  da  concretização  de 
objectivos.  Ou  seja,  este  conceito  procura  incluir  aspectos  motivacio‐
nais  associados  à  prossecução  e  não  apenas  à  materialização  de  um 
objectivo.  
Neste sentido, encontrámos discursos em que a realização está afas‐
tada  de  todo  o  tipo  de  posses  e  centrada  no  prazer  da  acção.  Estas 
expressam  posições,  formas  de  estar  na  vida  ligadas  ao  autoconheci‐
mento  e  desenvolvimento  pessoal  e  projectos  de  vida  centrados  no 
fazer.  

“… eu tinha Visa e deixei de ter, tinha uma série de coisas supérfluas 
na minha vida e estou a tirar ao máximo… porque eu tomei a decisão 
e  nessa  altura  é  obvio  que  mais  uma  vez  a  minha  vida  mudou…” 
(Mónica) 
“… tem a ver com as fases da vida, não é, agora estou a pensar, estes 
dois últimos anos estou muito mais desligada” (Margarida) 
“É  mesmo  uma  maneira  de  estar,  de  viver…  muito  desligada  de 
acumular muitas coisas, de querer ter coisas. Pronto, o que é visível… 
não me diz grande coisa: ter muito dinheiro, ter muito…” (Leonor) 
 “... eu vivo a vida, tento viver o presente…” (Zé) 

Noutras entrevistas, percebe‐se claramente a importância da reali‐
zação  pessoal,  mas  que  deve  ser  acompanhada  pela  recompensa  mate‐
rial, misturando o prazer da acção com a necessidade de reconhecimen‐
to social e profissional.  

“Eu sou muito meticuloso com tudo. E, portanto, não gosto de fazer 
coisas más ou mais ou menos. Quero fazer coisas sempre boas! É um 
desafio e um estímulo constante. Não só que capte a atenção das pes‐
soas,  mas  também  que  transmita  alguma  coisa,  tenha  um  conceito 
agarrado, um conceito criativo.” (António) 
80  ANA ROQUE DANTAS  

São  vários  os  autores  (Myers,  1993;  Layard,  2005)  que  nos  lem‐
bram que a felicidade decorre menos dos grandes objectivos planeados 
e alcançados e mais das vivências quotidianas, dos prazeres dos proces‐
sos.  Na  literatura  económica,  surgem  referências  a  um  paradoxo  resul‐
tante da desadequação  entre o  elevado número  de horas de  trabalho e 
investimento  no  bem‐estar  material  e  a  falta  de  tempo  para  dele  usu‐
fruir.  Igualmente,  segundo  o  princípio  da  felicidade  máxima  proposto 
por Layard (2005), não somos felizes por procurar a felicidade mas por 
desenvolvermos actividades que nos satisfaçam.  

5.4.5 Materialidade 

Neste  ponto  questiona‐se  em  que  medida  as  condições  materiais 


dos  entrevistados  lhes  condicionam  os  projectos  de  vida  e  a  procura  e 
vivência de felicidade. Uma das hipóteses a que se procura responder é 
em  que  medida  é  importante  a  segurança  ou  estabilidade  financeira 
para a construção dos seus projectos de vida8.  
Propomos  que  esta  dimensão  seja  analisada  através  da  percepção 
que  os  entrevistados  têm  dos  seus  equilíbrios  financeiros  e  da  impor‐
tância  que  as  condições  materiais  assumem  nas  suas  vidas.  Mais  uma 
vez,  podemos  distinguir  diferentes  posturas  entre  os  entrevistados.  A 
par  de  discursos  realçando  a  importância  do  conforto  económico,  sur‐
gem  outros  onde  se  destaca  alguma  instabilidade  financeira9.  Assim, 
percebe‐se claramente a relevância que a materialidade e a estabilidade 
económica  assume  para  alguns  destes  actores  sociais  seguindo  uma 
lógica de poupança e acumulação. 

“… há sempre um espírito de aumentar património e empreender e 
passar isso às crianças, que é importante.” (Constança) 

“… a minha forma de poupar é investindo … Também sei que tenho 
coisas para herdar, tenho… quer dizer, isso também dá um conforto.” 
(Filipe) 

“…  digamos  que  é  eu  ser  muito  conservadora  no  que  respeita  ao 
dinheiro é uma característica minha, não é. E depois acabo por impor, 

                                                             
8  Lembramos Layard (2005) e o patamar a partir do qual o aumento dos rendimen‐
tos deixa de contribuir para o aumento da felicidade dos actores sociais. 
9  É importante referir que, no decorrer das entrevistas, não foi possível perceber se 
algum dos entrevistados vive dificuldades financeiras.  
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   81 

não é, estratégias em casa que acabam por convergir para isso [pou‐
par].” (Leonor) 
“… eu acho que sempre fui uma pessoa muito controlada… eu acho 
que sou uma pessoa bastante correcta… a verdade é que se eu não me 
sentisse equilibrada financeiramente estava mal. Aí estaria mal. Não 
me gosto de ver sem dinheiro. Essa sensação de não ter faz‐me muita 
confusão…  faz‐me  confusão  as  pessoas  que  andam  sempre  com  a 
corda  ao  pescoço.  Não,  porque  nunca  senti  isso,  nunca  passei  por 
isso… acho que tenho a noção que nós temos sempre de poupar, tam‐
bém um bocado fruto da educação que tive, também.” (Alexandra) 
“Eu  tenho  uma  casa  de  empréstimo…  É  minha.  É  do  banco.  É 
emprestada!  Eu  não  faço  grandes  investimentos,  não  gosto  de  viver 
na corda bamba… pois! É o meu handycap. Geralmente não costumo 
guardar, mas quando preciso tenho sempre, porque realmente tenho 
sempre objectivos de aprender mais qualquer coisa…” (Margarida) 

Por um lado, temos discursos que realçam a importância do equilí‐
brio financeiro nas suas vidas e, por outro lado, temos posturas de vida 
em que se vive no limite das condições materiais, usufruindo de tudo o 
que o dinheiro permite consumir. 

 “… num equilíbrio muito instável… mas vivo tranquilo. Mas sinto a 
importância…  [que]  a  parte  material  tem…  É  uma  parte  que  eu  dou 
valor. Ou seja, eu não faço… para mim não faz muito sentido, actual‐
mente  como  estão  as  coisas,  ter  dinheiro  no  banco  a  render  num 
depósito a prazo… vamos ter uma maquia de parte, justamente, para 
poder aguentar‐me seis meses, se for despedido… independentemen‐
te  de  estar  a  receber  por  ser  despedido,  subsídio  de  desemprego, 
tinha lá aquele dinheirinho para aguentar a minha família seis meses 
tranquilamente.  Portanto,  é  esse  o  objectivo.  Agora,  poupanças,  não 
vamos fazer mais nada.” (António) 
“Visas, American Express, tenho tudo!… digamos que não vivo acima 
das minhas possibilidades, por vezes vou um bocadinho abaixo, mas 
sei que recupero passados dois meses, portanto, não tenho é grandes 
poupanças,  isso  não  tenho…  Oh  pá!  E  eu  sinto  que  tem  que  haver 
outras  coisas,  sabes?  Então  …  se  me  apetecer  ir  passar  um  fim‐de‐
‐semana a Londres, vou.” (Tiago) 
“… Eu sou muito pragmática, muito racional, gosto de ter as coisas 
resolvidas e gosto de ter o controlo das situações, … não faço grandes 
projectos  para  o  futuro,  gosto  de  o  gastar  num  bom  jantar  com  os 
amigos, oferecer alguma coisa à minha mãe, de comprar alguma coisa 
82  ANA ROQUE DANTAS  

para mim, não faço grandes planos a nível futuro por isso, se calhar é 
porque  não  junto,  porque  não  me  preocupo  muito  com  isso,  vou 
levando a vida dia‐a‐dia.” (Andreia) 

Encontramos ainda discursos em que transparece a importância da 
segurança económica, pois é esta que permite perseguir objectivos, e ter 
a liberdade de fazer o que se gosta, como se gosta. 

“… tinha alguma segurança quando decidi fazer isto. Tinha alguma 
segurança  e  algum  dinheiro  de  parte  e  isso  tudo…  É  assim,  não  vivo 
disto!” (Cristina) 
“Só devo a hipoteca da casa para já… eu não consigo propriamente 
poupar  porque  sou  freelancer  e,  apesar  de  também  trabalhar  num 
part­time, mas para já ainda tudo depende muito de mim em termos 
de fase de arranque e de fase de angariação. Portanto, o meu objecti‐
vo  no  futuro  é,  realmente,  tentar  estabelecer  uma  base  mais  sólida, 
não  é.  Mas  neste  momento  sinto  que  tenho  o  suficiente  para  poder 
pagar as minhas contas, o que já é quase muito bom, mas quero evo‐
luir um pouco mais.” (Sofia) 
“… eu ganhava imenso dinheiro porque trabalhava num meio onde 
se devia ganhar dinheiro…” (Marta) 

Alguns  entrevistados  partilham  posturas  de  vida  em  que  o  impor‐


tante  não  é  ter  segurança  económica,  mas  seguir  um  projecto  de  vida 
que dê prazer, mesmo que com maior instabilidade económica. 

“[empréstimos?]  nunca!  Poderia  estar  melhor  mas  nesta  fase  está 


óptimo,  porque  eu  às  vezes,  há  alturas  em  que  eu  não  trabalho,  e 
depois aí tenho de viver um pouco daquilo que venho a amealhar… E 
cortei  muito.  Eu  tinha  coisas  muito  supérfluas  e  agora...  passo  bem 
sem elas. Cheguei a essa  conclusão. Algumas ainda as tenho mas sei 
que passo bem sem elas, não preciso delas para nada.” (Mónica) 
“A própria atitude perante a vida material tive de reformulá‐la bas‐
tante e chegar a um ponto onde que tive de arriscar e dizer: Estou­me 
nas  tintas,  seja  o  que  Deus  quiser  e  pronto  e  desde  esse  momento 
tenho sido muito mais feliz. Tenho empréstimos, tenho sobretudo um 
empréstimo  bancário  para  pagar…  vivo  num  equilíbrio  muito  instá‐
vel, ou seja, vivo numa corda bamba basicamente. Não consigo pou‐
par nada.” (Afonso) 

Esta  instabilidade  aparece  também  relacionada  com  o  reequacio‐


namento das necessidades de cada um e com a diminuição do consumo. 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   83 

“Por isso, neste momento, a minha prioridade não é poupar dinhei‐
ro…  não  é  propriamente  a  ideia  de  poupar  dinheiro  que  as  pessoas 
têm para um futuro, para não sei quê.” (Zé) 

“Nunca  quis  ter  casa,  nem  tenho,  e  o  meu  carro  é  sempre  o  mais 
barato que há no jornal, para ir de A a B, mas nada de empréstimos. 
Um desequilíbrio total! Como é que me organizo? Bem, eu não sei se 
organizo  é  a  palavra  ideal,  porque  eu  não  me  organizo.  Como  é  que 
sobrevivo?” (Rui) 

Os discursos apresentados permitem conhecer posturas diferencia‐
das  face  ao  papel  que  as  condições  materiais  assumem  na  vida  dos 
entrevistados. Fica bem  expressa a importância  que  a segurança finan‐
ceira  assume  para  alguns  entrevistados,  bem  como  o  objectivo  de  acu‐
mulação  de  riqueza.  Temos  ainda  posições  em  que  o  consumo  de  bens 
se  associa  à  ideia  de  recompensa:  eu  mereço!  Percebemos  igualmente 
que, para outros entrevistados, o objectivo hipotético de segurança eco‐
nómica é deixado de lado, para viver o projecto em que se acredita (pelo 
menos enquanto este não permitir sustentabilidade). 

5.4.6 Felicidade  

Sendo a felicidade o tema central do trabalho, procuramos conhecer 
como esta dimensão transparece nos discursos dos entrevistados. Con‐
sideramos que, tal como defendem Baudelot e Gollac (2003), a felicidade 
é  um  sentimento  penetrado  por  normas  sociais  e  pelas  representações 
das  suas  formas  legítimas  e,  desta  forma,  com  óbvios  reflexos  sobre  a 
forma como os actores sociais organizam as suas vidas e o seu quotidia‐
no, assim como, com consequências para a organização da sociedade.  
Jack Barbalet (1998) defende que as emoções constituem a base da 
acção  porque  têm  um  papel  na  constituição  de  relações,  instituições  e 
processos sociais. Para este autor, os padrões das experiências emocio‐
nais diferem em sociedades distintas e assim a emoção pode ser consi‐
derada um resultado ou um efeito de processos sociais10.  
Interessa estudar os sentimentos para entender os próprios princí‐
pios  do  comportamento  social,  uma  vez  que  são  as  interacções  sociais 
que determinam as expectativas emocionais e as experiências particula‐
                                                             
10  A relação entre sentimentos e emoções foi discutida no primeiro capítulo deste 
trabalho, mas lembramos que, apesar de diferentes, estão associadas e não exis‐
tem separadamente. 
84  ANA ROQUE DANTAS  

res que, por sua vez, determinam a inclinação para determinados rumos 
da acção, integrando a construção das histórias individuais.  
As emoções e os sentimentos participam activamente na construção 
identitária,  na  medida  em  que  os  sujeitos  emocionais  se  entendem  e 
produzem reflexões sobre eles mesmos com base nessas emoções e sen‐
timentos. Os significados e os valores não são estáveis e fixos; estão num 
constante processo de mudança e modificação, de tal forma que as pes‐
soas podem não ter ideias claras sobre a forma como mudam, mas sen‐
tem‐nas  nas  suas  relações  sociais  (Barros,  2006).  Assim,  as  estruturas 
de sentimento adquirem relevância como orientadoras da acção no con‐
texto das relações sociais. 
A análise das entrevistas revela que 4,8% dos 1817 parágrafos ana‐
lisados  tem  menções  directas  à  felicidade11,  apesar  das  práticas  dos 
actores sociais serem orientadas para a mesma. 
A análise estatística realizada mostra que a categoria felicidade tem 
uma relação com o perfil ruptura. Parece‐nos compreensível que sejam 
os entrevistados de perfil de ruptura que mais falam de felicidade, uma 
vez que a sua acção de “ruptura” e de procura de novas formas de vida 
decorre da formalização racional da importância de serem felizes, facili‐
tando a verbalização da ideia de felicidade. Aliás, os resultados da análi‐
se  estatística  mostram  claramente  associações  entre  a  categoria  felici­
dade  e  o  viver,  ser,  valorizar  o  colectivo  e  hedonismo.  Refira‐se  também 
que  as  menções  à  felicidade  são  mais  comuns  entre  as  mulheres  e  sem 
filhos.  
Quando  focamos  os  discursos,  encontramos  algumas  semelhanças 
na expressão da felicidade. Para alguns entrevistados, é um ideal a atin‐
gir  ou  uma  meta  a  alcançar.  Ao  contrário,  noutros  discursos, ressalta  a 
ideia de que felicidade é aproveitar a vida no seu dia‐a‐dia, intensamen‐
te, fazer o que se gosta, viver em tranquilidade, equilibrar as diferentes 
dimensões da vida. Neste sentido, vemos que a principal semelhança nos 
discursos reside na importância do sentimento de felicidade para a sua 
acção, condicionando as práticas e comportamentos dos actores sociais 
entrevistados. 

                                                             
11  Embora contrariando  as indicações dos manuais de investigação sociológica, os 
entrevistados  não  foram  previamente  informados  de  que  o  tema  da  entrevista 
era  a  felicidade.  O  que  se  pretendia  era  conhecer  a  importância  da  felicidade 
enquanto impulsionadora da acção e no decorrer da entrevista procurou‐se per‐
ceber  como  a  questão  da  felicidade  se  relacionava  com  as  opções,  projectos  e 
expectativas dos entrevistados.  
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   85 

“… eu por regra quando não estou feliz … ou quando não estou bem 
numa situação, seja ela qual for, pessoal ou profissional, eu abandono 
e  vou  à  procura  de  outra  coisa,  à  procura  dessa  tal  felicidade,  mas 
nunca me acomodo e deixo estar quando não estou bem. Eu diria que 
a felicidade para mim é a essência e há‐de ser sempre o meu ponto de 
referência.” (Andreia) 
 “… eu acho que a felicidade é tão efémera. Eu acho que a felicidade, 
sobretudo,  é  feita  de  alguns  momentos…  é  feita  de  momentos  …  Eu 
hoje sei, sei perfeitamente, que para mim, se calhar está em ter crian‐
ças ou coisa assim … E, se calhar, passa por ter filhos ou coisa assim 
do género… já tomei decisões que me fizeram infeliz e que me custa‐
ram, mas sabia que o plano a seguir iria ser melhor… não era aquilo… 
era uma felicidade medíocre… ou pelo menos, tapada, mascarada… E, 
então, querer ir mais além. Então, decidir eu, eu própria, indo contra 
tudo  e  contra  todos.  E  isso  eu  sei  que  sou  capaz  de  fazer,  mas  isso 
depende muito da motivação interior  e da  pessoa  querer fazer! Não 
sei o que nos faz o clique, mas é… clique.” (Alexandra) 
“…  tomei  decisões  com  vista  à  felicidade  e  tive  a  sorte  de  ter  logo 
muitos sinais a partir do momento em que eu tomei coragem… para 
ter  cortado  com  a  pseudoestabilidade  financeira  mas  tive  logo 
recompensas dias a seguir, grandes recompensas e de modo que não 
me arrependo depois do que aconteceu a seguir…” (Afonso) 
“… eu sempre senti essa coisa, eu sempre senti essa ansiedade, essa 
necessidade de mudar. Isso é algo que essencial na minha vida. Traz a 
minha felicidade mudar… Não fui atrás de nada… nunca fiz nada para 
ser  feliz,  a  não  ser  mudar.  Quer  dizer,  fiz  por  querer  mudar  e  senti 
necessidade de mudar. Se isso é para ser feliz, então foi isso.” (Antó‐
nio) 
“… eu acho que a felicidade foi… sempre o meu guia,… tu sabes que 
está certo para ti, não é, há um código em ti, há um código físico tam‐
bém, e este código físico pode vir por sonhos, pode vir por uma série 
de coisas, não é … podes acordar e dizes isto não está certo!, isto que 
eu estou a fazer não está certo e no entanto o facto de tu teres pensa‐
do  naquilo  naquele  minuto,  o  processo  não  foi  naquele  minuto,  ele 
ganha  ali  uma  expressão  e  uma  forma,  mas  tu  andaste  ali  num  pro‐
cesso, pronto.” (Marta) 
“Foi  porque  eu  não  estive  disposto  a  negociar  a  minha  felicidade 
que  tomei  todas  as  opções  de  vida  que  tomei.  Todas,  todas.  Quase 
todas,  que  ainda  me  lembre.  Portanto,  estudei  Economia  até  ao 
3.º ano, depois apercebi‐me: “Isto  é  uma  merda!  Não  estou  feliz.” E a 
partir desse dia, nunca mais.” (Rui) 
86  ANA ROQUE DANTAS  

Uma  das  hipóteses  estruturadoras  deste  trabalho  centrou‐se  na 


importância da felicidade enquanto orientadora da acção social. A ideia 
que  transparece  destes  excertos  é  clara  e  inequívoca:  mudar  para  ser 
feliz. A felicidade é assumida como um sentimento que condiciona práti‐
cas  e  comportamentos  que  se  reflecte  em  mudanças  e  desbravar  de 
novos caminhos e novas estratégias. Mas o que significa felicidade para 
estes actores sociais? 

“… é viver em paz. Para mim o ideal de vida é viver… Tranquilamen‐
te, mas em paz com toda a gente… É mesmo uma maneira de estar, de 
viver.” (Leonor) 
“E eu, para mim acho que aquilo que eu faço neste momento é aqui‐
lo que me dá maior prazer, é total, … é a disponibilidade total, que é 
uma  experiência  muito  interessante,  tu  estares  disponível  para 
alguém e não contares com um retorno por aí além e dar sensações e 
formas de estar realmente inacreditáveis … e estás a contribuir para 
um bem, não estás a lixar alguém, não estás a chatear ninguém, é uma 
coisa de útil. …” (Marta) 
“… a base da felicidade somos nós, portanto, o fundamental sou eu e 
eu estar equilibrada, utilizando uma palavra mais espiritual, conecta­
da, a partir daí as coisas acontecem naturalmente. É o que eu acredito 
e  é  o  que  eu  sinto,  sobretudo!  É  eu  estar  bem,  eu  estar  no  caminho 
certo,  ter  uma  visão  alargada  das  coisas,  ver  o  que  é  que  se  passa, 
seguir  a  minha  intuição…  então,  acho  que  dá  para  perceber,  não  é? 
Sou uma pessoa livre. Eu  posso fazer aquilo que eu queira, para  ser 
feliz!” (Mónica) 
 “… a liberdade… a vários níveis, não é. A nível de fazer aquilo que 
gosto, a nível de estar aberto à novidade, de ter disponibilidade para 
os outros  e de ser feliz. Isso para mim é que é o mais importante, é 
ser feliz. E essa felicidade advém, imperativamente, de ter disponibi‐
lidade para os outros também, de estar em comunhão com a nature‐
za, estar a fazer aquilo que gosto, acho é por aí.” (Zé) 
“Para a minha felicidade, a partilha, a partilha de tudo, de experiên‐
cias, a partilha… o abrir o coração, o estar com as pessoas e elas abri‐
rem o coração, serem honestas… é: sermos flexíveis, aceitarmos aquilo 
que nos vai acontecendo, porque acontece, há sempre uma razão maior 
e trabalharmos o nosso auto conhecimento. A felicidade? Eu acho que 
a felicidade sempre esteve lá. Eu acho que a felicidade sempre esteve 
lá, a busca e a procura e o que me fazia vibrar nessas situações e que 
me dava força era a necessidade que eu tinha de ir mais fundo e mais 
longe e de me conhecer melhor era sempre uma descoberta maior de 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   87 

mim própria e das minhas capacidades e de conseguir perceber se eu 
conseguia lidar com aquela situação é quase como se fossem metas e 
objectivos,  a  felicidade  está  sempre  lá,  eu  sou  feliz  a  partir  do 
momento que eu fizer a minha disciplina interior…” (Margarida) 
“…  bem,  eu  espero  …  uma  resposta  diferente  a  isso  todos  os  dias, 
isso já seria muito brutal. Liberdade é muito importante, sem dúvida 
nenhuma, muito importante. Ah… cada vez estar melhor comigo pró‐
prio, gostar de mim e conhecer‐me, oh pá! Atingir o meu potencial, oh 
pá!  Que  é  tremendo,  é  imenso!  E  quanto  mais  trabalho  com  as  pes‐
soas eu percebo que todos nós temos um potencial catastroficamente, 
incrivelmente enorme!!!! E andamos feitos mongos, às vezes, a viver 
uma vida a 2%, nem digo 10%. E, então, faz‐me ficar feliz quando me 
apercebo que estou a pôr o meu potencial em acção.” (Rui) 

A  expressão  da  felicidade  está  bem  presente  em  todos  os  excertos 
enquanto  referência  real,  concretizada  e  construída  todos  os  dias  e 
transmitindo a ideia de que é preciso viver para ser feliz. Estes resulta‐
dos assemelham‐se aos de outros estudos. Martin Seligman (2004) iden‐
tificou três componentes de felicidade: tirar prazer da vida, ter envolvi‐
mento no que se faz e procurar o significado das actividades. O conceito 
de  fluxo  referido  anteriormente  também  remete  para  a  importância  da 
vivência e do prazer, envolvimento e significado dessa vivência.  
Já William James (in McMahon, 2006) declarava que a felicidade tal‐
vez seja, terá sido e será, o objectivo final de todos os tempos e espaços.  

5.5  Projectos de vida 

António  Damásio  em  Ao  encontro  de  Espinosa,  diz  que  “…  o  indiví‐
duo  deve  procurar  viver  de  tal  maneira  que  a  perfeição  da  alegria  seja 
atingida com frequência e faça, por isso, com que a vida que valha a pena 
ser vivida” (Damásio, 2003: 309).  
Partindo  desta  ideia,  sugerimos  por  hipótese,  que  a  concretização 
dos  projectos  de  vida  dos  entrevistados  pode  ser  vivida  com  diferente 
intensidade e que tal pode ter influência sobre a felicidade. Neste senti‐
do, questionamos como se estruturam os discursos dos mesmos em tor‐
no da urgência em viver a vida e que práticas se revelam entre os pólos 
de possibilidades de viver ou adiar e, também, como é valorizado o tem‐
po nas suas vidas. 
De  acordo  com  Bernard  Rimé  (2005),  o  esquema  de  vida  fornece 
uma representação do que se é, donde se está e do que se poderá vir a 
88  ANA ROQUE DANTAS  

ser. Igualmente, dota o indivíduo da compreensão do contexto dos acon‐
tecimentos  que  lhe  permite  inferir  sobre  as  consequências  dos  seus 
actos.  Este  esquema  ou  projecto  dá  ao  indivíduo  a  apreensão  da  sua 
finalidade, da sua razão de ser e quando as alterações de sentido o afec‐
tam,  modifica‐se  o  significado  e  a  estrutura  da  existência  em  si,  com  a 
reorganização das prioridades, mudança da visão do eu e da vida. Tam‐
bém  Machado  Pais  (2006)  nos  diz  que  os  quadros  de  vida  escrevem  e 
inscrevem  gestos,  sentimentos  e  expectativas  que  corporizam  modos  e 
projectos de vida.  
Nesta perspectiva, interrogamos como é que a procura de felicidade 
se insere e organiza nos projectos de vida dos entrevistados?  

5.5.1 A importância do tempo 

O tempo e o espaço são dimensões fundamentais da constituição de 
todas  as  interacções  sociais  (Giddens,  1991).  Desde  Durkheim  que  o 
tempo  é  entendido  como  construção  social,  no  sentido  em  que  cada 
sociedade (e dentro dela cada segmento social), constrói o seu tempo.  
Uma  das  hipóteses  deste  trabalho  propõe  caracterizar  o  aparente 
paradoxo  dos  usos  do  tempo  na  sua  relação  com  a  felicidade.  É  nesse 
sentido que questionamos como os entrevistados expressam a sua utili‐
zação do tempo; como é que o tempo é valorizado? 
Garhammer  (2003)  diz‐nos  que  os  indivíduos  mais  felizes  são  os 
que gozam de mais tempo e que os novos conceitos de qualidade de vida 
incluem indicadores de usos de tempo. Os que têm tempo para tudo são 
“certamente”  mais  organizados  e  mais  competentes.  No  entanto,  tam‐
bém  o  não  ter  tempo  pode  ser  visto  como  um  símbolo  de  status,  pois, 
quem tem o tempo preenchido, está ocupado e tem uma vida social mais 
intensa.  
Também  Beck  e  Beck‐Gernsheim  lembram  que  o  controlo  sobre  o 
próprio tempo pessoal é cada vez mais valorizado e que “… everyday life 
is  concerned  primarily  with:  the  temporal  order  of  things…”  (2005:  6). 
Igualmente,  David  Myers  (1993)  destaca  a  importância  do  controlo  do 
tempo para a felicidade dos indivíduos. Assim, o tempo é uma dimensão 
fundamental  na  estruturação  das  sociedades  modernas  e  da  acção  dos 
seus actores sociais. Esta ideia é corroborada por Brian Roberts (2006) 
ao considerá‐lo uma parte fundamental da existência humana e que con‐
tribui para a criação do seu significado.  
Sendo  as  opções  de  vida  dos  actores  sociais  marcadas  por  esta 
dimensão, interessava conhecer o significado e o sentido que lhe é atri‐
buído.  
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   89 

A  referência  a  esta  categoria  está  presente  em  cerca  de  8,9%  dos 
parágrafos  analisados  e  a  sua  referência  é  mais  frequente  entre  os 
entrevistados  de  perfil  pragmático  (29,6%  das  ocorrências)  e  menor 
entre os de perfil espiritual (19,1%). Esta categoria está associada com 
hedonismo.  Note‐se  ainda  que  encontramos  mais  referências  ao  tempo 
entre as mulheres e com 3 ou mais filhos.  
É importante referir que o tempo adquire sentidos diferenciados: a 
sua  valorização  ocupa  5,9%  dos  parágrafos,  enquanto  a  falta  de  tempo 
emerge em 2,6% dos casos. As associações que estabelecem com outras 
categorias são também diferenciadas. Há também uma associação esta‐
tística  entre  a  valorização  do  tempo  e  a  presença  de  hedonismo.  Uma 
explicação possível será a de que ter tempo é um prazer. 
Já quando analisamos as menções ao tempo com conotação negati‐
va, percebemos que se destaca entre os entrevistados mais jovens, com 2 
filhos e a par de associações estatísticas com valores familiares. 
A análise compreensiva dos discursos reforça esta diferente valori‐
zação do tempo e sugere diferentes utilizações do tempo. Por um lado, 
encontramos rotinas organizadas em torno do trabalho e da família, com 
a  valorização  do  tempo  livre  do  fim‐de‐semana  para  as  actividades  de 
lazer  enquanto  “escape”  para  semanas  demasiado  longas  ou  intensas. 
Por outro lado, os discursos revelam vivências que articulam a medita‐
ção,  o  relaxamento,  o  aproveitamento  do  tempo  livre  e  de  trabalho 
numa procura de equilíbrio holístico.  

“O que é que eu faço? … há dias em que eu faço meditação matinal, 
… vou trabalhar, tenho 2 horas de almoço, geralmente, e vou almoçar 
fora,  gosto  muito,  isso  é  muito  importante  para  mim  ...  Segundas  e 
quartas  tenho  teatro  …  eventualmente  vou  jantar  com  amigos  ou 
venho  para  aqui  porque  também  é  importante  ter  o  meu  espaço… 
relaxar, ouvir música, não vejo televisão. Leio, estudo, … tenho Yoga… 
vou  para  a  natação  às  8h30…  às  sextas‐feiras,  geralmente  é  espaço 
livre à noite, ou vou sair ou fico também aqui ou então parto de fim‐
‐de‐semana. Eu vou passar muitos fins‐de‐semana fora.” (Mónica) 
“Levanto‐me de manhã,… vou à ginástica… chego a casa, faço medi‐
tação  durante  uma  hora,  depois  cozinho  o  meu  almoço,  vou  para  as 
consultas…  chego  a  casa…  como  e  preparo  o  dia  seguinte  ou  então 
deito‐me. É mais ou menos isto… geralmente tiro a 5.ª ou 6.ª feira e 
esse dia que eu tiro, tento passar pelo menos metade do dia na natu‐
reza, a fazer uma caminhada … pronto, estar na natureza que é uma 
coisa que me dá muita força e me dá imenso prazer mas pronto estu‐
do muito também e também tiro muitas horas para estudar…” (Mar‐
garida) 
90  ANA ROQUE DANTAS  

“De  manhã  faço  uma  introspecção…  cerca  de  uma  hora….  Depois, 
provavelmente, dependendo dos dias,… ou venho para aqui [jardim] 
relaxar  um  bocadinho,  ou  ler  ou…  outros  dias  tenho  consultas  para 
fazer…” (Zé) 
“… leio, descontraio muito, tenho muitos momentos de relaxamen‐
to, em que não faço nada, meditação ou dormir, ou relax. Não tenho 
televisão e coisas assim, portanto, não é por aí … Deitar‐me na relva 
no jardim, quando me lembro… faço aquilo que me apetece.” (Rui) 

Nestes  entrevistados  percebe‐se  claramente  a  importância  que  o 


aproveitamento  do  tempo  tem  para  o  seu  bem‐estar.  Neste  contexto,  e 
face  à  associação  estatística  encontrada  entre  tempo  e  hedonismo, 
relembramos Veenhoven quando afirma que estilos de vida mais activos 
e hedonistas têm implicações sobre a felicidade.  
Ao contrário, os discursos seguintes revelam algum constrangimen‐
to na relação com o tempo e na organização das rotinas do dia‐a‐dia. 

“Ah, saio daqui, vou para casa, chego a casa, tento jantar (o que não 
é fácil por causa do trânsito) com os miúdos. Gosto de fazer o quê? Ou 
vou à Internet ou vejo televisão. Mas eu, para mim, o ver televisão é 
tipo  para  desligar, é tipo  quase  hipnótico, aquilo não é que eu esteja 
ali a olhar muito para o que é que eu estou a fazer. No fim‐de‐semana 
o que eu gosto é estar em casa… eu se  pudesse ficava no sofá a  não 
fazer nada!” (Tiago) 
“… essa parte tem estado um bocado desorganizada, também estou 
há  pouco  tempo  aqui  …  e  então  está  ainda  meio  baralhado.  Nunca 
perdi  tempo  a  deslocar‐me  para  trabalho  e  faz‐me  confusão  agora 
uma hora ou quase só com estas coisas de… pronto. Depois, o dia de 
trabalho.” (Manuel) 
“… acordo bastante cedo,  não é… pronto, depois é arranjar‐me, vir 
para  o  trabalho,  chegar  a  casa.  …  E  gosto  muito  dos  horários.  Sim, 
gosto,  gosto…  essa  sensação  é  boa  pronto,  …  É  uma  coisa  que  me 
seduz  muito  é  estar  a  ler  nos  transportes…  Ter  tempo  para  isso,  é 
bom. E, sobretudo, tempo mental, eu acho.” (Alexandra) 
“Levanto‐me de manhã, tomo um pequeno‐almoço antes de sair de 
casa, … apanho o autocarro, venho para o meu trabalho, para o meu 
emprego,  passo  o  dia  basicamente  no  emprego,  ao  fim  do  dia  vou 
para  casa,  geralmente  estou  muito  cansada  para  fazer  outro  tipo  de 
programa, portanto geralmente fico mesmo em casa. …” (Andreia) 
“E,  pronto,  e  fico  a  trabalhar  normalmente  até  às  sete  da  tarde. 
Normalmente.  Porque  acontece  frequentemente  ficar  até  bastante 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   91 

mais tarde. E depois vou para casa, vou jantar com a família ou vou 
jantar e é isso.” (António) 

São diferentes valorizações e utilizações do tempo que nos sugerem 
diferentes vivências e intensidades de procura de felicidade. 

5.5.2 Viver ou Adiar 

Em seguida, focalizamo‐nos na análise das práticas dos entrevista‐
dos em torno do pólo de possibilidades, viver ou adiar. Pensamos que a 
intensidade com que se vive o quotidiano pode ser um bom indicador da 
forma como os actores sociais condicionam as suas vivências em torno 
da felicidade.  
A categoria viver traduz rupturas, fortes sentidos de vida, bem como 
procura e vivência de liberdade. Ao contrário, a categoria adiar remete 
para projectos de vida protelados, para vivências preenchidas com com‐
promissos  que  se  podem  ir  adiando,  rotinas  esmagadoras  fortemente 
condicionadas. Tal como a categoria viver, indica um projecto, no entan‐
to este distingue‐se pela urgência de concretização que assume. Ou seja, 
por  um  lado,  temos  projectos  vividos  imediatamente,  por  outro,  temos 
vidas projectadas. Assim, viver e adiar resultam do grau de urgência que 
os actores sociais põem  na sua vivência do quotidiano e na concretiza‐
ção dos seus projectos de vida. 
A  análise  dos  resultados  revela  que  as  referências  que  cabem  na 
categoria  viver  representam  cerca  de  21,1%  do  material  analisado, 
enquanto a categoria adiar ocupa 6,2% dos 1817 parágrafos considera‐
dos. Face à sua importância no discurso dos entrevistados, surge a ques‐
tão:  será  que  estes  valores  traduzem  diferentes  vivências  ou,  talvez, 
procuras de felicidade diferenciadas?  
Verifica‐se ainda uma maior probabilidade dos discursos de ruptu‐
ra e espiritual terem referências à categoria viver. Esta categoria desta‐
ca‐se entre os entrevistados solteiros e sem filhos. 
A  categoria  viver  está  também  fortemente  associada  a  valores  de 
acção, de hedonismo (45,6% das ocorrências) e de felicidade. Estabelece 
ainda uma relação estatística com espiritualidade e valores de colectivo. 
A expressão desta urgência em viver a vida é individual, mas nestes 
discursos é comum a vontade de viver experiências novas, ter liberdade 
para gozar a vida e as múltiplas possibilidades que esta oferece. 

“Eu há dois anos morava com uma pessoa… morava na casa dele e 
nós tínhamos uma relação espectacular e eu decidi que queria viver a 
minha vida, já não queria morar com ele, já não queria viver… numa 
92  ANA ROQUE DANTAS  

relação… E foi uma decisão, eu sinto que foi uma decisão muito forte, 
muito  importante  e…  é  quase  como  se  eu  tenho  dentro  de  mim  um 
bichinho a obrigar‐me a viver experiências novas, e o facto de eu ter 
montado a minha casa, ter começado a viver sozinha, mesmo sozinha, 
a  construir  as  minhas  coisas,  a  fazer  as  minhas  conquistas,  fez‐me 
acreditar  mais  em  mim,  ganhei  uma  força  muito  grande  nestes  dois 
anos…” (Margarida) 
“É das maiores vantagens no meu estilo de vida, é a liberdade que 
eu  tenho  a  todos  os  níveis.  Só  por  isto  não  mudava,  só  por  isto  não 
mudava. E é liberdade a todos os níveis, a todos os níveis.” (Rui) 
“…  o  facto  de  ter  podido  viajar  muito,  ...  fartei‐me  de  viajar  pelo 
mundo inteiro, foi óptimo porque abri a cabeça de uma maneira, que 
até aí não tinha tido possibilidade de abrir. Aquele tipo de experiên‐
cias foi fantástico. Conheci muitos artistas, muita gente com um pen‐
samento totalmente diferente…” (António) 
“… quando eu larguei a Economia, há muitos anos atrás, … na ver‐
dade, eu não procurava nada eu só sabia – isto aconteceu‐me várias 
vezes  no  meu  percurso  –  que  é  não  saber  aquilo  que  queria,  mas 
sabia  aquilo  que  não  queria.  Agora  a  questão  passava  por  outros 
lados que era o aprender a pensar por mim próprio.” (Zé) 
“Eu não tenho problemas com a incerteza, eu tenho mais problemas 
com a certeza, porque para mim, a certeza, é quatro paredes. E eu não 
consigo! Então é um quadro com muitas flores!” (Mónica) 

A par destes discursos em que se destaca a importância da vivência 
diária  para  ser  feliz,  surgem  outros  que  revelam  a  idealização  de  um 
futuro hipotético. 
Assim, quando analisamos a categoria adiar, verificamos a sua asso‐
ciação estatística com os perfis pragmático e convencional. 
Em  torno  da  categoria  adiar  estabelecem‐se  algumas  associações 
específicas. A sua presença surge a par de valores de posse (categoria ter 
com 56,3% das ocorrências), familiares (26,8%), de trabalho (43,5%) e 
também de felicidade. Uma hipótese explicativa para estas relações esta‐
tísticas poderá ser o facto de que a importância da posse e os constran‐
gimentos da família e trabalho obriguem a adiamentos tendo em vista a 
felicidade.  Os  discursos  apontam  nesse  sentido.  Falam‐nos  da  necessi‐
dade  de  reunir  as  condições  ideais  para  se  ser  feliz.  E  o  que  são  essas 
condições ideais? Família, emprego, ultrapassar situações dolorosas… 

“Estive  praticamente  para  me  casar,  não  é?  Tinha  já  adquirido 
casa,  carro,  essas  coisas  todas,  contudo…  O  passo  seguinte  seria 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   93 

esse… Agora, se calhar, a minha insatisfação, que possa existir, não 
tem  a  ver  com  isto,  tem  a  ver  com  uma  insatisfação  interior.  Se 
calhar,  é  aquela  parte  do  casamento  e  isso  tudo,  sobretudo  os 
filhos.” (Alexandra) 
“… não vejo que seja assim o marco da minha vida, ... não foi assim 
uma coisa de repente: “Ai, tenho que mudar de vida!”, quase tipo a sal‐
vação. Acho que as pessoas são todas um bocado hoje muito drásticas 
e fatalistas, não é. Pronto, eu não vejo nada disso nesse sentido, acho 
que foram uma série de circunstâncias que se juntaram e que propor‐
cionaram  isso…  Não  estava  à  espera  de  encontrar  assim  nada  tipo 
diferente e que fosse não sei quê...” (Cristina) 
“… eu houve uma altura em que acho que aplicava as minhas forças 
no sobreviver, não é, no dia‐a‐dia, é um facto, mas pronto, isso era da 
fragilidade.  Neste  momento,  acho  que  já  estou  numa  fase,  que  acho 
que  é  “boa”,  entre  aspas,  …  tenho  de  reestruturar  algumas  coisas, 
balizar  determinadas  coisas,  acho  que  basicamente  é  isto.  Tenho  de 
pôr alguns pontos nos iis de algumas coisas, compreender‐me e des‐
culpar‐me de algumas coisas, acho eu. … o grande problema é que a 
gente  autoflagela‐se  constantemente.  Eu,  pelo  menos,  sempre  fui 
muito assim…” (Alexandra) 
“…  eu  tento  ver  as  coisas  pelo  lado  positivo  e  dessas  experiências 
que  marcam  negativamente  tento  sempre  tirar  o  positivo  e  tento 
sempre  crescer  e  passar  um  bocadinho  por  cima,  não  pensar,  não 
ficar com mágoas, não estar a pensar muito nas coisas é andar para a 
frente.” (Andreia) 
“Neste momento, a felicidade dos meus filhos; dos meus filhos e da 
família, evidentemente… E ultimamente ando muito aqui, na rotina…” 
(António) 
“Eu diria que a felicidade para mim é a essência e há‐de ser sempre 
o meu ponto de referência… neste momento ainda estou a estruturá‐
‐la, portanto para mim é complicado estar a avaliar o estado da minha 
vida,… a nível de emprego, estou a começar mas estou a gostar muito, 
a nível pessoal nem por isso, porque estou num ambiente novo ainda 
estou a descobrir muita coisa, não será tão bom, [mas] melhor do que 
estava à seis meses atrás, não estava nada feliz, estou muito melhor.” 
(Andreia) 

Assim, por um lado, encontramos posturas de vida abertas à  novi‐
dade, à experiência e à mudança, e mais do que isso, desejosas de viver 
as suas possibilidades. Por outro, deparamos com algumas posições que 
idealizam  e  esperam  um  futuro  melhor  e  esperam  o  desenrolar  dos 
94  ANA ROQUE DANTAS  

acontecimentos  da  vida.  O  que  nos  leva  a  questionar  a  forma  como  os 
entrevistados  constroem  os  seus  projectos  de  vida:  se  em  torno  da 
necessidade de concretização ou segundo promessas adiadas de realiza‐
ção. 
A análise das entrevistas permite perceber que, para uns, o projecto 
de  vida  constitui‐se  por  planos  e  reestruturações,  pequenas  mudanças 
que permitem continuar e, ao contrário, para outros, significa a abertura 
a  novas  experiências,  prazer  na  realização  e  acção,  equilíbrio  entre  as 
várias dimensões da vida e sentido para a vida. 

“…  eu  sou,  sou  feliz.  Gosto  da  minha  vida.  Sempre  fui  bastante… 
positivo.  Tenho  fases,  tenho  tipo  um  dia  ou  meio  dia  em  que  estou 
deprimido  e  depois  no  dia  a  seguir  já  estou  novo!  Espectáculo!” 
(António) 
“…  uma  necessidade  imensa  de  ir  procurar  mais  qualquer  coisa, 
viver outras experiências … e lá está, tento encontrar uma disciplina 
que me faz sentir forte e bem para eu depois poder lidar com outras 
coisas que gosto menos…” (Margarida) 
“…  o  meu  projecto  de  vida  é  um  projecto,  alucinado…  em  muitos 
aspectos de risco e ao mesmo tempo com cabeça, na minha opinião, e 
que  eu  sinto  que  eu  sinto  que  estou  no  projecto  correcto,  não  sinto 
que devia estar a fazer outra coisa, sinto que estou no caminho certo.” 
(Afonso) 
“[projecto de vida?] Em trânsito! … sem dúvida que me interessam 
projectos com pessoas e interessa‐me ensinar, interessa‐me aprender 
mas  interessa‐me  ensinar,  mas  interessa‐me  este  processo  todo,  é 
muito interessante porque é assim, aquilo que eu fazia em publicida‐
de continua a ser aquilo eu faço aqui, só que com outra matiz… com 
outra  vida,  com  outras  ferramentas,  com  outra  intenção,…  mas  esta 
coisa mágica das pessoas e das ligações, continua a ser aquilo que me 
move, que são as pessoas nas várias vertentes que elas têm… que é o 
amor ao fim ao cabo, que é um estado de amor, isso sem dúvida é o 
que me move. É, os vários níveis de leitura do amor, é o mais impor‐
tante.” (Marta) 
“Portanto, eu divido a vida em quatro dimensões: físico, emocional, 
mental e espiritual. … há um grande equilíbrio, sinto‐me muito bem. 
Há uns meses atrás não poderia dizer isso, a nível emocional, hoje em 
dia,  sinto  uma  grande  vida  interior,  porque  apaixonei‐me  profunda‐
mente, e eu não tinha permitido que isso acontecesse até agora. … Eu 
acho  que  há  doze  áreas  de  vida:  dinheiro,  emprego,  saúde,  família, 
amigos,  relação  amorosa,  tempo  livre,  desenvolvimento  pessoal, 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   95 

aprendizagem,  tempo  só/meditação,  propósito  de  vida  e  voluntaria‐


do/contribuição.  Têm  uma  ordem,  sim.  Portanto,  os  primeiros  três 
são do elemento terra, os segundos três são do elemento água, os ter‐
ceiros  do  elemento  ar  e  os  quartos  do  elemento  fogo.  Eu  tenho  a 
minha ordem de importância. Claro, há ali coisas que não têm tanta 
importância como outras. Mas isso depois agora depende dos valores 
de cada um. … certamente uma reflexão sobre elas e perceber quais é 
que são mesmo importantes para mim ajuda muito. E olhar para ela e 
perceber  que  neste  momento  da  minha  vida  o  quão  satisfeito  estou 
com cada área e o que é que eu gostava de mudar nos próximos seis 
meses nessas áreas. Isto ajuda muito”. (Rui) 

Em síntese, o projecto de vida faz‐se vivendo: equilibrando as várias 
dimensões da vida segundo as prioridades individuais. A felicidade não 
é o resultado entre o somatório de alegrias subtraindo os maus aconte‐
cimentos. A felicidade vai e vem, defende Pascal Bruckner (2003).  
António  Damásio  (2003)  explica  que  qualquer  projecto  capaz  de 
tornar  uma  vida  examinada  numa  vida  feliz  deve  incluir  meios  para 
resistir  à  angústia  causada  pelo  sofrimento  e  pela  morte,  meios  para 
suprimir  a  tristeza  e  para  a  fazer  substituir  pela  alegria.  “Não  parece 
haver aqui qualquer equívoco: devemos procurar a alegria, por decreto 
assente  na  razão,  mesmo  que  a  procura  pareça  tola  e  pouco  realista.” 
(Damásio, 2003:303). 
Assim, um projecto de vida deve estar equilibrado, ser significativo 
e,  mais  do  que  isso,  vivido,  reflectido  e  permanentemente  negociado  e 
reavaliado.  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 6   CONCLUSÃO 

A felicidade é entendida enquanto sentimento, sujeito a evoluções, 
transformações e flutuações e que está relacionado e condicionado pelas 
várias  dimensões  da  vida  dos  actores  sociais.  Estas  dimensões  são  as 
relações familiares, o trabalho, a situação financeira, os amigos e os esti‐
los de vida, assim como outras de natureza biológica e psicológica, e que 
não entraram neste trabalho; depende igualmente da apreciação e refle‐
xividade  que  os  actores  sociais fazem  das  suas  condições  e  circunstân‐
cias  de  vida.  A  análise  destas  várias  dimensões  nas  trajectórias  sociais 
dos actores sociais permitiu captar os valores transversais a cada uma, 
assim como as expectativas individuais e os sentimentos que constituem 
os seus projectos de vida na sua relação com a felicidade. 
As  trajectórias  sociais  analisadas  apresentam  percursos  em  que  a 
importância da felicidade se situa entre dois extremos: ideal e real. É a 
partir  desta  polarização  que  se  criam  diferentes  estruturações  que 
caracterizam  os  quatro  perfis‐tipo  sugeridos:  pragmático,  espiritual, 
convencional  e  ruptura.  Os  resultados  reforçam  o  modelo  proposto  e 
revelam  uma  tipologia  relacional  de  valores  e  práticas,  aproximando  e 
afastando diferentes perfis e destacando as características mais estrutu‐
radoras destas proximidades e oposições. 
O perfil pragmático caracteriza‐se pela importância da posse (ter), 
valor do tempo e pelo adiar das suas vivências. Distingue‐se pela lógica 
instrumental do trabalho, embora o valor da realização pessoal este‐
ja  presente  nos  discursos.  Ter  e  possuir  assumem  um  importante 
significado:  ter  saúde,  ter  emprego,  ter  família.  A  felicidade  é  uma 
imagem que se pretende atingir. Este perfil é particularmente visível 
entre as mulheres, mais jovens, sem filhos e de estado civil solteiro.  
O  perfil  espiritual  valoriza  a  acção  (ser/fazer),  a  importância  do 
viver, hedonismo, valores de espiritualidade e de cooperação e apoio aos 
outros. São actores sociais que encaram  a  vida  com  ideais  espirituais, 
de procura  de um sentido para  a  vida, procurando  a realização pes‐
soal  em  todas  as  dimensões  da  vida,  que  é  estruturada  em  torno  da 
procura  de  equilíbrio  e  bem‐estar  ou  prazer.  Partilha  algumas  caracte‐
rísticas  com  o  perfil  pragmático,  nomeadamente  destacar‐se  entre  os 
solteiros, sem filhos, com idades inferiores a 35 anos e as mulheres. 
98  ANA ROQUE DANTAS  

Por sua vez, no perfil convencional destacam‐se os valores familia­
res, do trabalho, bem como o valor do tempo. Este perfil liga‐se também 
à  categoria  adiar  e  à  importância  do  ter:  ter  um  bom  emprego,  ter  um 
bom ordenado, ter uma carreira, ter uma  família  e ter felicidade. Surge 
entre  os entrevistados com  filhos, homens, com  mais de 35  anos, casa‐
dos ou a viver em união de facto.  
Ao  contrário,  o  perfil  de  ruptura  distingue‐se  pela  valorização  do 
viver, da acção e do hedonismo. Está presente entre os homens, com ida‐
des  superiores  a  35  anos,  casados  ou  divorciados.  Estas  associações 
sugerem  vivências  intensas,  com  urgência  de  concretização,  indicando 
vidas em que o prazer é uma motivação à acção. São pessoas para quem 
a  ruptura  (largar  tudo  e  começar  de  novo)  impulsionou  ou  permitiu 
novas opções de vida. Aqui a questão da posse é secundária, assumindo 
a acção um papel estruturador da vivência: viver a vida imediatamente.  
Se,  para  uns  “ter  felicidade”  é  um  objectivo,  para  outros  “viver  a 
felicidade” estrutura um quadro de vida expresso pelo gostar do que se 
faz e ter tempo e disponibilidade para si e para os outros. Assim, por um 
lado, encontramos actores sociais a organizar as suas vidas em torno do 
futuro, adiado ou projectado, que privilegiam a posse; e outros, a valori‐
zar o ser/fazer e a realização quotidiana. 
Deste modo, os resultados reforçam a hipótese de análise que estru‐
turou este trabalho e organizam‐se em pólos vivenciais: viver ou adiar e 
ter ou ser, indicativos da forma como os indivíduos idealizam e vivem as 
suas vidas.  
A  reconstrução  das  trajectórias  de  vida  facilitou  a  análise  com‐
preensiva dos mecanismos da construção social da felicidade, na medida 
em  que  esta  é  experienciada  e  representada  pelos  actores  sociais,  e 
permitiu ao mesmo tempo, identificar regularidades na construção dos 
seus projectos de vida individuais na relação com a felicidade.  
Os  actores  sociais  observados  desenvolvem  diferentes  graus  de 
reflexividade  sobre  a  felicidade.  A  felicidade  adquire  diferentes  signifi‐
cados  sociais  e  traduz‐se  em  diferentes  necessidades  de  concretização. 
Em  relação  ao  primeiro  aspecto,  se,  para  alguns  actores  sociais,  é  uma 
dimensão estruturadora da sua vida, para outros, é um objectivo a atin‐
gir.  Quanto  à  sua  prática,  uns  optam  por  viver  uma  vida  “feliz”,  outros 
esperam ou planeiam o dia em que serão “felizes”. 
No  mesmo  sentido,  a  análise  do  conteúdo  das  entrevistas,  através 
das práticas, valores e dinâmicas dos actores sociais, revela claramente 
que a representação de felicidade e a forma como ela condiciona a acção 
é  produto  de  uma  construção  social,  diferenciada  em  função  do  sexo, 
idade, processos de socialização e trajectórias sociais, e revelando dife‐
rentes graus de reflexividade da ideia de felicidade. 
 

ANEXOS 

Quadro n.º 1: Unidades de contexto 
N.º Entrevista  Unidades de Contexto 
1  145 
2  172 
3  95 
4  129 
5  62 
6  80 
7  159 
8  113 
9  131 
10  117 
11  68 
12  43 
13  66 
14  201 
15  155 
16  81 
Total Unidades de Contexto  1817 
 

Quadro n.º 2: Distribuição das unidades de contexto segundo o perfil‐tipo 
  Valores  %  % Válida  % Acumulada 
Observados 
Espiritual  446  24,5  24,5  24,5 
Ruptura  441  24,3  24,3  48,8 
Pragmático  333  18,3  18,3  67,1 
Convencional  597  32,9  32,9  100 
Total   1817  100  100    

 
 
100  ANA ROQUE DANTAS  

Quadro n.º 3: Características biográficas 
N.º  Nome  PERFIL  SEXO  IDADE ESTADO CIVIL  PROFISSÃO  FILHOS 
2  Alexandra  Pragmático  Feminino  33  Solteiro(a)  Secretária  0 
3  Andreia  Pragmático  Feminino  30  Solteiro(a)  Designer gráfico  0 
15  Manuel  Pragmático  Masculino  32  União de facto  Director marketing  2 
13  Leonor  Pragmático  Feminino  39  Casado(a)  Professora  1 
1  Mónica  Espiritual  Feminino  32  Solteiro(a)  Formador  0 
5  Margarida  Espiritual  Feminino  32  Solteiro(a)  Astróloga  0 
6  Afonso  Espiritual  Masculino  30  União de facto  Astrólogo  0 
7  Rui  Espiritual  Masculino  29  União de facto  Formador/administrador  0 
10  Cristina  Convencional  Feminino  32  Divorciada  Gerente livraria  1 
12  Constança  Convencional  Feminino  34  União de facto  Doméstica  3 
14  Tiago  Convencional  Masculino  42  União de facto  Director criativo  2 
16  Filipe  Convencional  Masculino  43  Divorciado  Quadro directivo banco  0 

4  Marta  Ruptura  Feminino  40  Divorciada  Teraupeuta shiatsu  0 


8  António  Ruptura  Masculino  32  Casado(a)  Copy  2 
9  Zé  Ruptura  Masculino  30  Solteiro(a)  Naturalogista/animador  0 
11  Sofia  Ruptura  Feminino  40  Divorciada  Webdesigner/des. gráfico  0 

Quadro n.º 4: Família 

PERFIL 
  ESPIRITUAL RUPTURA  PRAGMÁTICO CONVENCIONAL  Total 
Família  Presente  N  53  51  112  82  298 
% linha  17,8%  17,1%  37,6%  27,5%  100,0% 
% coluna  11,9%  11,6%  23,0%  18,6%  16,4% 
Res. Aj. St.  ‐3,0  ‐3,2  4,6  1,4    
Ausente  N  393  390  376  360  1.519 
% linha  25,9%  25,7%  24,8%  23,7%  100,0% 
% coluna  88,1%  88,4%  77,0%  81,4%  83,6% 
Res. Aj. St.  3,0  3,2  ‐4,6  ‐1,4    
Total  N  446  441  488  442  1.817 
% linha  24,5%  24,3%  26,9%  24,3%  100,0% 
% coluna  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 

 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   101 

Quadro n.º 5: Amizade 

PERFIL 
  ESPIRITUAL  RUPTURA  PRAGMÁTICO CONVENCIONAL  Total 
Amizade  Presente  N  29  31  46  18  124 
% linha  23,4%  25,0%  37,1%  14,5%  100,0% 
% coluna  6,5%  7,0%  9,4%  4,1%  6,8% 
Res. Aj. St.  ‐0,3  0,2  2,7  ‐2,6    
Ausente  N  417  410  442  424  1.693 
% linha  24,6%  24,2%  26,1%  25,0%  100,0% 
% coluna  93,5%  93,0%  90,6%  95,9%  93,2% 
Res. Aj. St.  0,3  ‐0,2  ‐2,7  2,6    
Total  N  446  441  488  442  1.817 
% linha  24,5%  24,3%  26,9%  24,3%  100,0% 
% coluna  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 

 
 
 
 

Quadro n.º 6: Trabalho 

PERFIL 
  ESPIRITUAL  RUPTURA  PRAGMÁTICO CONVENCIONAL  Total 
Trabalho  Presente  N  110  124  128  166  528 
% linha  20,8%  23,5%  24,2%  31,4%  100,0% 
% coluna  24,7%  28,1%  26,2%  37,6%  29,1% 
Res. Aj. St.  ‐2,4  ‐0,5  ‐1,6  4,5    
Ausente  N  336  317  360  276  1.289 
% linha  26,1%  24,6%  27,9%  21,4%  100,0% 
% coluna  75,3%  71,9%  73,8%  62,4%  70,9% 
Res. Aj. St.  2,4  0,5  1,6  ‐4,5    
Total  N  446  441  488  442  1.817 
% linha  24,5%  24,3%  26,9%  24,3%  100,0% 
% coluna  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 

 
102  ANA ROQUE DANTAS  

Quadro n.º 7: Importância dos outros 

PERFIL 
  ESPIRITUAL  RUPTURA  PRAGMÁTICO  CONVENCIONAL  Total 
Colectivo  Presente  N  60  20  18  4  102 
% linha  58,8%  19,6%  17,6%  3,9%  100,0% 
% coluna  13,5%  4,5%  3,7%  0,9%  5,6% 
Res. Aj. e St.   8,3  ‐1,1  ‐2,2  ‐4,9    
Ausente  N  386  421  470  438  1.715 
% linha  22,5%  24,5%  27,4%  25,5%  100,0% 
% coluna  86,5%  95,5%  96,3%  99,1%  94,4% 
Res. Aj. e St.  ‐8,3  1,1  2,2  4,9    
Total  N  446  441  488  442  1.817 
% linha  24,5%  24,3%  26,9%  24,3%  100,0% 
% coluna  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 

 
 
 
 

Quadro n.º 8: Espiritualidade 

PERFIL 
  ESPIRITUAL RUPTURA  PRAGMÁTICO  CONVENCIONAL  Total 
Espiritualidade  Presente N  67  37  11  1  116 
% linha  57,8%  31,9%  9,5%  0,9%  100,0% 
% coluna  15,0%  8,4%  2,3%  0,2%  6,4% 
 Res. Aj. St.  8,6  2,0  ‐4,4  ‐6,1    
Ausente  N  379  404  477  441  1.701 
% linha  22,3%  23,8%  28,0%  25,9%  100,0% 
% coluna  85,0%  91,6%  97,7%  99,8%  93,6% 
Res. Aj. St.  ‐8,6  ‐2,0  4,4  6,1    
Total  N  446  441  488  442  1.817 
% linha  24,5%  24,3%  26,9%  24,3%  100,0% 
% coluna  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 

 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   103 

Quadro n.º 9: Hedonismo 

PERFIL 
  ESPIRITUAL  RUPTURA  PRAGMÁTICO CONVENCIONAL  Total 
Hedonismo  Presente N  109  114  52  50  325 
% linha  33,5%  35,1%  16,0%  15,4%  100,0% 
% coluna  24,4%  25,9%  10,7%  11,3%  17,9% 
Res. Aj. St.  4,2  5,0  ‐4,9  ‐4,1    
Ausente  N  337  327  436  392  1.492 
% linha  22,6%  21,9%  29,2%  26,3%  100,0% 
% coluna  75,6%  74,1%  89,3%  88,7%  82,1% 
Res. Aj. St.  ‐4,2  ‐5,0  4,9  4,1    
Total  N  446  441  488  442  1.817 
% linha  24,5%  24,3%  26,9%  24,3%  100,0% 
% coluna  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 

 
 
 
 

Quadro n.º 10: Ter 

PERFIL 
  ESPIRITUAL  RUPTURA  PRAGMÁTICO  CONVENCIONAL  Total 
TER  Presente  N  126  106  180  172  584 
% linha  21,6%  18,2%  30,8%  29,5%  100,0% 
% coluna  28,3%  24,0%  36,9%  38,9%  32,1% 
Res. Aj. St.  ‐2,0  ‐4,2  2,6  3,5    
Ausente  N  320  335  308  270  1.233 
% linha  26,0%  27,2%  25,0%  21,9%  100,0% 
% coluna  71,7%  76,0%  63,1%  61,1%  67,9% 
Res. Aj. St.  2,0  4,2  ‐2,6  ‐3,5    
Total  N  446  441  488  442  1.817 
% linha  24,5%  24,3%  26,9%  24,3%  100,0% 
% coluna  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 

 
104  ANA ROQUE DANTAS  

Quadro n.º 11: Ser 

PERFIL 
  ESPIRITUAL  RUPTURA  PRAGMÁTICO CONVENCIONAL  Total 
SER/Fazer  Presente  N  192  165  65  86  508 
% linha  37,8%  32,5%  12,8%  16,9%  100,0% 
% coluna  43,0%  37,4%  13,3%  19,5%  28,0% 
Res. Aj. St.  8,2  5,1  ‐8,4  ‐4,6    
Ausente  N  254  276  423  356  1.309 
% linha  19,4%  21,1%  32,3%  27,2%  100,0% 
% coluna  57,0%  62,6%  86,7%  80,5%  72,0% 
Res. Aj. St.  ‐8,2  ‐5,1  8,4  4,6    
Total  N  446  441  488  442  1.817 
% linha  24,5%  24,3%  26,9%  24,3%  100,0% 
% coluna  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 

 
 
 
 

Quadro n.º 12: Felicidade 

PERFIL 
  ESPIRITUAL  RUPTURA  PRAGMÁTICO CONVENCIONAL  Total 
Felicidade  Presente  N  26  32  20  10  88 
% linha  29,5%  36,4%  22,7%  11,4%  100,0% 
% coluna  5,8%  7,3%  4,1%  2,3%  4,8% 
Res. Aj. St.  1,1  2,7  ‐0,9  ‐2,9    
Ausente  N  420  409  468  432  1.729 
% linha  24,3%  23,7%  27,1%  25,0%  100,0% 
% coluna  94,2%  92,7%  95,9%  97,7%  95,2% 
Res. Aj. St.  ‐1,1  ‐2,7  0,9  2,9    
Total  N  446  441  488  442  1.817 
% linha  24,5%  24,3%  26,9%  24,3%  100,0% 
% coluna  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 

 
  A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA FELICIDADE   105 

Quadro n.º 13: Valor do tempo 

PERFIL 
  ESPIRITUAL  RUPTURA  PRAGMÁTICO  CONVENCIONAL  Total 
Valor  do  Presente  N  31  41  48  42  162 
Tempo  % linha  19,1%  25,3%  29,6%  25,9%  100,0% 
% coluna  7,0%  9,3%  9,8%  9,5%  8,9% 
Res. Aj. St.  ‐1,7  0,3  0,8  0,5    
Ausente  N  415  400  440  400  1.655 
% linha  25,1%  24,2%  26,6%  24,2%  100,0% 
% coluna  93,0%  90,7%  90,2%  90,5%  91,1% 
Res. Aj. St.  1,7  ‐0,3  ‐0,8  ‐0,5    
Total  N  446  446  441  488  442 
% linha  24,5%  24,5%  24,3%  26,9%  24,3% 
% coluna  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 

 
 
 
 

Quadro n.º 14: Viver 

PERFIL 
  ESPIRITUAL  RUPTURA  PRAGMÁTICO CONVENCIONAL  Total 
Viver  Presente  N  140  153  53  38  384 
% linha  36,5%  39,8%  13,8%  9,9%  100,0% 
% coluna  31,4%  34,7%  10,9%  8,6%  21,1% 
Res. Aj. St.  6,1  8,0  ‐6,5  ‐7,4    
Ausente  N  306  288  435  404  1.433 
% linha  21,4%  20,1%  30,4%  28,2%  100,0% 
% coluna  68,6%  65,3%  89,1%  91,4%  78,9% 
Res. Aj. St.  ‐6,1  ‐8,0  6,5  7,4    
Total  N  446  441  488  442  1.817 
% linha  24,5%  24,3%  26,9%  24,3%  100,0% 
% coluna  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 

 
106  ANA ROQUE DANTAS  

Quadro n.º 15: Adiar 

PERFIL 
  ESPIRITUAL  RUPTURA  PRAGMÁTICO CONVENCIONAL  Total 
Adiar  Presente  N  11  8  57  36  112 
% linha  9,8%  7,1%  50,9%  32,1%  100,0% 
% coluna  2,5%  1,8%  11,7%  8,1%  6,2% 
Res. Aj. St.  ‐3,7  ‐4,4  5,9  2,0    
Ausente  N  435  433  431  406  1.705 
% linha  25,5%  25,4%  25,3%  23,8%  100,0% 
% coluna  97,5%  98,2%  88,3%  91,9%  93,8% 
Res. Aj. St.  3,7  4,4  ‐5,9  ‐2,0    
Total  N  446  441  488  442  1.817 
% linha  24,5%  24,3%  26,9%  24,3%  100,0% 
% coluna  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 

 
 

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