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ANO xxiv edição 97 SET 2017

ANO XXIV - Setembro 2017 - Nº 97

Coordenação Editorial:
Vicky Safra
Assistentes de Coordenação:
sinagoga de lancut Clairy Dayan
polônia Fortuna Djmal
Assessora Internacional:
Muriel Sutt Seligson
Supervisão Religiosa:
Rabino Y. David Weitman
Rabino Efraim Laniado
Rabino Avraham Cohen
Jornalista Responsável:
Desirée Nacson Suslick
MTb 13603
Colaboradores especiais:
Jaime Spitzcovsky
Morton Scheinberg
Tev Djmal
Zevi Ghivelder
Revisão e tradução de texto:
Lilia Wachsmann
Consultor:
Marcello Augusto Pinto
Coordenação de Marketing:
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Produção Gráfica:
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Projeto Gráfico:
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Clairy Dayan Fortuna Barbara Djmal
Fortuna Barbara Djmal Dionysios Emmanuil Inglesis
Esther Safra Dayan Hiromiti Mizusaki
Edson Marinelli
Carta ao leitor
Yom Kipur, a data mais conhecida do ano judaico, é celebra o recebimento da Torá, enquanto Yom Kipur
um dia único no calendário de nosso povo. É um dia simboliza sua eternidade, a do Povo Judeu, bem como
que reúne os judeus e, até aqueles que não costumam nosso vínculo com o Todo Poderoso.
frequentar as sinagogas ao longo do ano, fazem questão
de estar presentes nas orações desse dia. Há, ainda, outro evento histórico significativo associado
a Yom Kipur: a construção do Templo Sagrado de
O motivo para esse comparecimento maciço às sinagogas Jerusalém – Morada Divina na Terra – um símbolo da
em Yom Kipur é que esta data constitui uma oportunidade iminência Divina no mundo. A inauguração do primeiro
única para expiarmos nossos erros e transgressões. Beit HaMikdash, construído pelo Rei Salomão, filho do
Rei David, ocorreu nos sete dias que precedem a festa de
Além dessa, há outra razão para Yom Kipur ser o ponto Sucot, entre os quais se inclui o dia de Yom Kipur.
alto do calendário judaico: esse dia é, como ensina o
Talmud, a data em que celebramos a eternidade de Na verdade, há inúmeras razões para que Yom Kipur,
nossa Torá e de nosso pacto com D’us. apesar de ser um dia de jejum, confissão de pecados e
introspecção, seja o dia mais feliz do calendário judaico.
Entretanto a festividade associada ao recebimento da Nossos Sábios nos ensinam que o ser humano precisa
Torá é Shavuot, no 6o e 7º dias do mês de Sivan, data diariamente se arrepender de seu comportamento e suas
em que o Todo Poderoso se revelou ao povo judeu todo, transgressões. Yom Kipur é o dia mais auspicioso para
no Monte Sinai, e pronunciou os Dez Mandamentos fazê-lo porque sendo o dia em que D’us nos perdoou pelo
– Asseret HaDibrot. terrível pecado do bezerro de ouro, podemos ter certeza
de que o poder do perdão Divino desse dia é ilimitado:
Seguiu-se à Revelação Divina a subida de Moshé ao isto nos dá a esperança de que por mais que tenhamos nos
Monte Sinai para receber a Torá. Ele lá permaneceu afastado do Divino, podemos sempre retornar a Ele. Yom
40 dias e 40 noites aprendendo o seu conteúdo Kipur oferece-nos uma oportunidade única de começar de
diretamente de D’us. Ao retornar ao acampamento novo: virar a página e nos libertar das falhas e dos pecados
dos judeus, em 17 do mês de Tamuz, deparou-se com que cometemos contra D’us.
parte do povo adorando um bezerro de ouro. Quebra,
então, as Tábuas do Testemunho sobre as quais Os judeus acorrem às sinagogas em Yom Kipur porque
D’us havia gravado os Dez Mandamentos. esse dia mágico e místico toca o íntimo de nossa alma.
O tema e os eventos históricos que o dia faz recordar
O ato de quebrar as Tábuas significou que o futuro do – o Perdão Divino, a eternidade da Torá e a construção
Povo Judeu e da Torá estavam ameaçados. Para obter do Templo Sagrado, entre outros – reverberam na
o perdão Divino, Moshé sobe o Monte Sinai ainda consciência coletiva do Povo Judeu.
duas outras vezes. Em cada uma destas, passa 40 dias
e 40 noites implorando a D’us ao ponto de colocar sua Yom Kipur é o dia em que, metaforicamente falando,
vida em jogo, para forçar o Todo Poderoso a perdoar D’us estende Sua Mão sobre nós e nos convida a
Seu povo. Até que, em 10 de Tishrei, Moshé retornou fortalecer o vínculo eterno que nos une a Ele. Que neste
ao acampamento com outro conjunto de Tábuas do Yom Kipur possamos todos ser inscritos e selados para
Testemunho – uma indicação do perdão de D’us ao Povo um ano bom e doce com muita paz, saúde e alegrias.
Judeu e de que Ele havia renovado Sua aliança conosco.
Shaná Tová Umetuká!
Como explica Rashi, comentarista clássico da Torá, esta
foi a razão para que Yom Kipur fosse permanentemente
designado de Dia do Perdão. Interessante notar que
o primeiro conjunto de Tábuas da Torá, associados à
festa de Shavuot, foi quebrado, mas o segundo, recebido
em Yom Kipur, permaneceu intacto. A festa de Shavuot
ÍNDICE

22 42

46 52

62 65
03 carta ao leitor 22
destaque
Índia, parceria estratégica
de Israel na Ásia
06 NOSSAS GRANDES FESTAS por JAIME SPITZCOVSKy
O significado dos alimentos
simbólicos de Rosh Hashaná 25 história de Israel
Declaração Balfour

14
NOSSAS leis O centenário de um marco
Algumas leis relacionadas por zevi ghivelder
a Yom Kipur

16 NOSSAS GRANDES FESTAS 33 CAPA


Uma era que se foi:

O duplo júbilo de Sucot
A Sinagoga de Lancut

4
REVISTA MORASHÁ i 97

06

25
36 arte 58
esportes
Em Bezalel nasce a
20ª Macabíadas: atletas judeus
nova arte israelense de 80 países, um só coração
42 educação
62
shoá
Maker Station

Novo espaço na Escola Beit Yaacov Ética médica nazista

46
por dr. morton scheinberg
história
Judiarias portuguesas:

Um reencontro com o passado
65 comunidades
A Polônia

52
israel Da fundação à partilha
Krav Maga:
O sistema de autodefesa de Israel 75 cartas

5 SETEMBRO 2017
NOSSAS GRANDES FESTAS

O significado dos alimentos


simbólicos de Rosh Hashaná
Não é um mero costume, folclore OU superstição servir
alimentos de importância simbólica em Rosh Hashaná. Pelo
contrário, constitui uma prática imbuída de valor místico,
incentivada pelo Talmud e codificada no Shulchan Aruch
– o Código de Lei Judaica.

I
niciamos a refeição festiva nas duas noites de A realidade é que comer os alimentos de importância
Rosh Hashaná fazendo o Kidush com uma taça simbólica em Rosh Hashaná não é mero costume ou
cheia de vinho doce, fazendo a ablução ritual folclore e, muito menos, superstição. Pelo contrário,
das mãos (Netilat Yadayim) e comendo Chalá é uma prática imbuída de valor místico, fortemente
molhada no mel ou açúcar – um pedaço do qual estimulada pelo Talmud, e até codificada no Shulchan
é distribuído a todos os presentes. Antes de ser servido o Aruch, o Código de Lei Judaica.
jantar, é costume comer-se certos alimentos simbólicos
nesta festa. O consumo de cada um deles é precedido por O Talmud não tem o hábito de tentar justificar
uma bênção ou uma pequena oração. Apesar de variarem seus decretos, ensinamentos e recomendações,
entre as diferentes comunidades esses alimentos, o ritual independentemente de quão enigmáticos ou
de Rosh Hashaná é adotado por todo o Povo Judeu. surpreendentes possam ser. Essa obra de Lei e
Sabedoria Divina confia a tarefa a seus grandes
Para um observador casual, esse costume parece uma comentaristas. Um dos maiores dentre eles, Rabi
forma de superstição. Será que o fato de comer certos Menachem ben Shlomo Meiri (1249-1310), revela
alimentos tem, realmente, influência no ano que se uma das razões pelas quais comemos alimentos
inicia? Será que o fato de comer maçã vermelha molhada simbólicos em Rosh Hashaná, dizendo que seu
em mel ou açúcar muda veredictos celestiais? Esse ritual propósito é concentrar nossa atenção na agenda do
de Rosh Hashaná pode até mesmo parecer contrário dia: oração, arrependimento e a decisão de realizar
aos princípios do judaísmo, pois a Torá condena a bons atos. Conta que, a princípio, o costume era
superstição, equiparando-a à idolatria. Como, então, pode apenas olhar ou comer esses alimentos e refletir
o judaísmo estimular essa prática, e como pode todo o sobre seu significado. No entanto, com o tempo, as
Povo Judeu adotá-la, especialmente em Rosh Hashaná, pessoas ficaram mais entretidas na comida do que
o Ano Novo, que é quando D’us preside o julgamento e na introspeção. Para evitar que isso aconteça, as
decide o destino do mundo e de cada criatura para o ano comunidades judaicas adotaram o rito de recitar uma
vindouro? breve oração antes de comer cada um dos alimentos

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REVISTA MORASHÁ i 97

simbólicos. Isso garantiria que a – quando o registro de cada ser explica que, com frequência,
mensagem de cada um deles não se humano está sendo revisto nos acontece de os decretos e bênçãos
perdesse. Céus –, todo pensamento positivo Divinas que D’us concede
pesa a nosso favor. Precisamos ser permanecerem apenas em um
Ao ponderar sobre as preces, muito cuidadosos na maneira como estado potencial, nas esferas
podemos entender sobre o direcionamos nossa mente, pois isso espirituais, até que os seres
que devemos refletir ao comer influenciará todo o nosso ano. humanos realizem um ato físico
tais alimentos. Assim, um dos para concretizar e dar forma física
propósitos do ritual é provocar e Outros comentaristas da Torá vão a esses decretos. Isso significa que
direcionar nossos pensamentos mais além: explicam que o propósito a transição do potencial para o real
e planos para o novo ano. Isso é de se comer alimentos simbólicos no depende, em geral, dos atos físicos
especialmente relevante em Rosh Ano Novo não é apenas concentrar da pessoa.
Hashaná, pois, como ensinam nossos pensamentos. Eles revelam
nossos Sábios, essa festividade de que o ato de comê-los, de fato, Isso explica por que os profetas
dois dias dá o tom para o restante desencadeia bênçãos Divinas. Como geralmente realizavam um ato físico
do ano: aquilo em que pensamos, isso é possível? De que forma comer para simbolizar suas profecias.
o que dizemos e fazemos em maçã vermelha molhada no mel ou Por exemplo, vemos no Livro dos
Rosh Hashaná influenciará todo o no açúcar aumenta nossas chances Reis que o profeta Elisha levou
nosso ano. A Torá nos conta que de ter um ano bom e doce? E como o Rei Yoshiyahu ( Josias) a atirar
não apenas nossos atos e palavras comer as sementes da romã nos uma flecha na direção da terra de
têm poder; nossos pensamentos torna mais merecedores? Aram – o inimigo dos judeus à
também podem exercer influência Rabi Yehudá Lowe, o Maharal época – e pegar uma flecha e bater
sobre o mundo. Em Rosh Hashaná, de Praga, um dos maiores Sábios no chão, explicando que o número
quando o destino de todo o mundo e cabalistas de todos os tempos, de pancadas determinaria a força da
e de cada indivíduo é decidido famoso por ter criado o Golem, vitória de Israel sobre Aram.

7 SETEMBRO 2017
NOSSAS GRANDES FESTAS

O que nos transmite o Maharal (1783-1869) em seu comentário


de Praga é que como vivemos em no Código de Lei Judaica
um mundo físico, é necessário (Chochmat Shlomo, Shulchan Aruch,
direcionar as bênçãos dos Céus Orach Chaim 583). Ele explica que,
por meio de atos físicos. Por essa ao comer tais alimentos, não estamos
razão, precisamos pronunciar nossas apenas rezando, mas expressando
orações com os lábios, enunciando nossa fé em que seremos inscritos
cada palavra, e não meramente para um ano bom e doce. Segundo
pensar nas mesmas, ainda que D’us, ele, isso tem o poder de transformar
que é Onisciente, saiba o que está qualquer decreto negativo
em nossa mente e coração. É essa a em positivo. De fato, as obras
razão pela qual tantos mandamentos cabalísticas, o Talmud e o Livro dos
da Torá são realizados fisicamente. Profetas nos ensinam que D’us
Alguns exemplos: colocamos honra a confiança dos
Tefilin, que são objetos de couro; que verdadeiramente confiam
fazemos o Kidush com vinho; e n’Ele. É especialmente
seguramos as Quatro Espécies importante que cada judeu se
em Sucot. D’us conhece melhor comporte em Rosh Hashaná
do que nós os nossos pensamentos, com alegria, plenamente confiante
necessidades e desejos. Mas, para em que seu veredito Divino será
dar forma física às bênçãos Divinas positivo e que será inscrito para
– para canalizá-las dos domínios bênçãos espirituais e plenitude para um ano bom e doce. Uma das
espirituais ao nosso plano terreno o nosso mundo físico. O Maharal de maneiras de expressar nossa fé é
–, não basta amar e reverenciar a Praga ensina que, no início do ano, comer os alimentos simbólicos de
D’us, meditar e ter pensamentos comemos alimentos que sejam um Rosh Hashaná e recitar as orações
bons e sagrados: com frequência, é bom augúrio, para que os decretos pertinentes, confiante em que D’us
necessário agir e usar de fisicalidade do Todo Poderoso de um bom ano as atenderá.
para cumprir a Vontade Divina. se concretizem em nossa realidade
física. Devemos entender que, ao comê-los,
Comemos alimentos simbólicos não estamos seguindo um costume
em Rosh Hashaná porque, assim, Outra explicação para esse ritual folclórico, nem supersticioso.
estamos ajudando a canalizar foi dada pelo Rabi Shlomo Kluger Portanto, esse rito deve ser encarado
com seriedade. Seu propósito não
é fazer com que os jantares de Rosh
Hashaná sejam mais coloridos e
memoráveis. Eles têm um poder
espiritual e, se bem utilizados,
podem ajudar-nos a alcançar as
inúmeras bênçãos, individuais e
coletivas, pelas quais ansiamos.

Contudo, é importante mencionar


que quem não pode ingerir um ou
vários dos alimentos simbólicos –
por não gostar ou por lhe fazer mal
– deve olhar ou apontar para esses
alimentos ao recitar a oração de “Yehi
Ratzon” correspondente. Mesmo que
não coma o alimento, se ele recitar a
oração correspondente, isso terá um
efeito significativo.

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REVISTA MORASHÁ i 97

Por que comemos também molhados no mel. São Éden tem o aroma de um pomar
maçãs vermelhas em inúmeras as razões para esse de maçãs. De fato, ao analisar a
Rosh Hashaná costume judaico. A mais simples expressão usada por nosso patriarca
delas é que essa fruta tem um belo Itzhak ao descrever seu filho, Yaacov:
Em Rosh Hashaná, temos o costume aspecto, ótima fragrância e gosto. “Veja! O cheiro do meu filho é como
de tomar vinho doce e fazer as É saborosa de qualquer forma que o cheiro do campo que o Eterno
Chalot no feitio redondo, em vez do seja apresentada e extremamente abençoou!” (Gênesis, 27:27), Rashi,
tradicional oval, trançado. O Chatam saudável. E simboliza nossas comentarista clássico da Torá,
Sofer (1762-1839), que foi um de esperanças de que o Ano Novo explica que isso se refere ao aroma
nossos grandes Sábios e cabalistas, nos traga alegria, sucesso, saúde e de um pomar de maçãs – o aroma do
explica o costume como expressão felicidade em todas as áreas da vida. Jardim do Éden.
de que nossas orações e esperanças
sejam abençoadas infinitamente Mas o significado simbólico da maçã Ademais, em seu Cântico dos
durante o ano vindouro, pois o vai além do simples fato de ser uma Cânticos, o Rei Salomão descreve o
círculo é especial por não ter início fruta doce e saborosa. O Arizal (Rabi amor de D’us pelo Povo Judeu por
nem fim. Por isso fazemos os pães Itzhak Luria), maior cabalista de meio da seguinte metáfora: “Debaixo
nesse formato, como símbolo todos os tempos, ensina que há um de uma macieira, despertei teu amor”
de nossa esperança de que D’us profundo significado cabalístico no (Shir HaShirim 8:5). Ao comer
nos conceda bênçãos incontáveis, fato de comê-la nas noites de Rosh pedaços de maçã em Rosh Hashaná,
pessoais e coletivas, no novo ano. Hashaná. O Zohar, obra fundamental estamos nos recordando do amor de
da Cabalá, escrita pelo Rabi Shimon D’us por Seu povo.
Após o Kidush e a lavagem ritual bar Yochai, se refere ao Paraíso como
das mãos (Netilat Yadayim) e comer Chakal Tapuchin Kadishin – “Pomar Uma razão cabalística para esse
um pedaço da Chalá molhada no das Maçãs Sagradas”. As maçãs costume é que, como escreve o Ben
mel ou açúcar, comemos o primeiro simbolizam não só a doçura, mas Ish Chai, essa fruta é associada à
dos alimentos simbólicos da festa, também Gan Eden – o Paraíso. De Sefirá de Tiferet, que é a emanação
que são pedaços de maçã vermelha, acordo com o Midrash, o Jardim do Divina de misericórdia, beleza,

9 SETEMBRO 2017
NOSSAS GRANDES FESTAS

família. Mas é importante observar


que apesar de ambos serem doces,
cada um representa uma forma
diferente de doçura. O açúcar
representa a doçura pura, enquanto
o mel é produzido pelas abelhas –
uma criatura cujo ferrão pode causar
muita dor. Portanto, o mel representa
a doçura resultante de experiências
dolorosas ou difíceis. Em outras
palavras, simboliza bênçãos ocultas.
O Livro dos Juízes relata a seguinte
história, com uma importante
lição universal: o poderoso Sansão,
desarmado, matou um leão que ia
atacá-lo. Quando mais tarde ele
retornou ao mesmo lugar, deparou-
se com “um enxame de abelhas
cheias de mel na barriga do animal.
E Sansão apresenta a seguinte
charada a um grupo de amigos: “Do
comedor saiu comida e do forte saiu
doçura” ( Juízes,14:14). Daí nos vem
o ensinamento de que mesmo uma
situação negativa traz algo positivo.

Muitas pessoas têm o costume


de comer açúcar e mel em Rosh
Hashaná. O açúcar representa a
harmonia e paz. Essa Sefirá também conceitos cabalísticos e, portanto, bondade Divina revelada. O mel,
representa a Torá e é associada com não devem ser menosprezados ou a bondade Divina oculta: bênçãos
o Atributo Divino da Verdade. E é negligenciados. que se apresentam disfarçadas como
particularmente relevante em Rosh se fossem eventos e experiências
Hashaná, pois é nessa festividade que Por que comemos mel difíceis, mas que, posteriormente,
todas as criaturas são julgadas com em Rosh Hashaná revelam-se como tendo sido em
base no Atributo Divino da Verdade nosso benefício. Diferentemente
Absoluta, quando oramos pedindo a Em Rosh Hashaná, enfatizamos o das bênçãos reveladas, as ocultas
Misericórdia Divina. conceito de doçura – pois oramos geralmente causam dor. No entanto,
não apenas por um ano bom, cedo ou tarde, as que vêm disfarçadas
Ainda que muitos não estejam mas que também seja doce – e é, de fantasias assustadoras tendem a se
familiarizados com os ensinamentos portanto, adequado não comer revelar maiores e mais significativas
da Cabalá acerca das Sefirot, o fato alimentos amargos ou azedos nos que as bênçãos reveladas, que tanta
de saber que as maçãs simbolizam a dois dias festivos. alegria nos dão.
Sefirá de Tiferet nos ajuda a perceber
a profundeza e a importância de A razão para molharmos a Chalá Na mesma linha, o Rabi Yosef
cada um dos rituais que cumprimos e os pedaços de maçã vermelha no ben Moshe (Leket Yosher - Séc.
durante os jantares de Rosh Hashaná: mel ou açúcar é para indicar e pedir 14) escreve: “As abelhas têm um
nenhum dos detalhes é irrelevante. que sejamos abençoados com um ferrão dentro delas, e, no entanto,
Ao contrário, há conceitos espirituais ano doce. Alguns têm o costume seu produto é doce. Fazemos
e místicos que sustentam tais rituais. de só usar açúcar, não mel, e cada votos de que o Atributo Divino
Eles se baseiam em profundos pessoa deve seguir a tradição de sua do Julgamento seja temperado

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REVISTA MORASHÁ i 97

por Seu Atributo da Misericórdia, é estranho que em uma festividade pois os arqui-inimigos dos Filhos
produzindo um resultado mais judaica – especialmente a que de Israel, como Hitler e Stalin,
doce”. marca o início de um novo ano – mostraram ser a personificação
estejamos presos a essa negatividade da maldade no mundo. Aqueles
Outra razão para comermos mel e pensando em nossos inimigos. que mostraram ser os líderes mais
em Rosh Hashaná é que nossos Evidentemente, há importantes perversos na história geralmente
Sábios ensinam que “o mel e razões para fazê-lo. começaram escolhendo o Povo
os doces restauram a visão das Nenhum judeu jamais pode Judeu como alvo para depois passar
pessoas”. O Talmud menciona vários esquecer que, ao longo da história, para o restante da humanidade. Seu
“recursos” para auxiliar a memória tivemos muitos inimigos que, sem desaparecimento seria benéfico para
e os comentaristas talmúdicos qualquer razão, perseguiram e todo o mundo.
acrescentam: “Também o mel torna tentaram exterminar nosso povo.
a pessoa sábia” (Talmud Bavli, Como proclamamos na Hagadá de Há, no entanto, uma explicação
Horayot 13b). Pessach: “Em toda geração, eles se mais profunda para rezarmos pela
levantam para aniquilar-nos. E o eliminação de nossos inimigos
Orações pela Santo, Bendito é Ele, nos salva de em Rosh Hashaná. Esses inimigos
eliminação de nossos suas mãos”. Através dos milênios, o não são seres humanos, mas forças
inimigos Povo Judeu tem sido o alvo principal espirituais negativas. Rosh Hashaná
de alguns dos personagens mais é o Dia do Julgamento, quando,
Após comer pedaços de maçã cruéis do mundo. Em Rosh Hashaná, falando metaforicamente, os
molhados no mel ou açúcar, quando D’us decide o destino da “promotores celestiais” apresentam
comemos três alimentos: acelga, humanidade e de cada indivíduo, seus casos perante o Juiz da Verdade.
tâmara e alho-poró ou cebola – e as oramos para que Ele nos livre O Talmud ensina que a Inclinação
preces correspondentes se referem daqueles que nos querem prejudicar. para o Mal – o Yetser Hará ––
a nossos inimigos. Tais orações As orações referentes a nossos seduz o ser humano, instigando-o
contêm um linguajar duro. Pedimos inimigos são recitadas não apenas a pecar e, quando consegue fazê-
que D’us remova, elimine e extirpe em benefício do Povo Judeu, mas de lo, apresenta-se perante o Trono
nossos inimigos. À primeira vista, todas as pessoas de bem no mundo, Celestial para condená-lo. Instigador

11 SETEMBRO 2017
NOSSAS GRANDES FESTAS

e acusador são um só. Em Rosh e disciplina para executar a Sua sonho as romãs estiverem abertas,
Hashaná, Dia do Julgamento, Vontade. Tais súplicas não são se quem sonhou é um estudioso
oramos a D’us para que a Inclinação exclusivas de Rosh Hashaná; nossas da Torá, estudará ainda mais…
para o Mal e todas as forças do mal preces diárias pedem a D’us para enquanto que se não for um
espiritual, que nos fazem sair do depositar nosso coração, nosso estudioso, realizará mais mitzvot”.
caminho do bem para depois nos amor e nossa reverência em Suas Baseando-se em um verso do
acusar perante a Corte Celestial, mãos, para que possamos estudar Cântico dos Cânticos (Shir
sejam removidas, eliminadas e zelosamente a Sua Torá e cumprir HaShirim 4:3), o Talmud conclui
exterminadas, para que assim Seus mandamentos. Mas tal pedido afirmando que “mesmo os judeus
possamos ser inscritos para um ano é enfatizado em Rosh Hashaná, pois mais vazios, também eles estão
bom e doce. é nessa festividade que D’us decide repletos de mitzvot como a romã
não só nossas bênçãos materiais, é carregada de sementes” (Talmud
É interessante notar que, durante os mas também espirituais, para o ano Bavli, Chaguigá 27a).
jantares de Rosh Hashaná, recitamos vindouro.
três orações diferentes acerca de Em Rosh Hashaná, oramos a D’us
nossos inimigos. Um das razões A oração ao comermos a romã – para que Ele nos dê a oportunidade
para serem três e não uma é que, de que nossas mitzvot sejam tão de cumprir muitas mitzvot –
como ensina a Cabalá, nosso mundo numerosas quanto as sementes dessa muitos mandamentos Divinos e
contém três klipot impuras – “cascas” fruta – é bem conhecida. De fato, a boas ações. Então, cabe a pergunta:
– que são a origem de todo o mal. romã é um dos grandes símbolos de por que devemos orar pedindo
Essas três preces expressam nosso Rosh Hashaná. isso? Não cabe exclusivamente
desejo de que essas klipot sejam ao ser humano exercer seu livre
eliminadas do mundo. Isso ocorrerá Essa fruta tem grande destaque na arbítrio e cumprir a Vontade
na Era Messiânica. Essas orações Torá. É uma das Shivat HaMinim – Divina?
são, portanto, um pedido para que Sete Espécies de frutas e grãos que
D’us nos traga a era utópica, que são produtos especiais da Terra de A resposta é que todos
será de paz e prosperidade para toda Israel. Além disso, em uma discussão necessitamos de inspiração e
a humanidade. sobre o significado de ver essa fruta assistência Divina, mesmo se
em sonhos, o Talmud explica que estivermos determinados a cumprir
Orações para termos “quando vemos frutos pequenos, a Vontade de D’us e realizar atos
méritos e praticarmos isso significa que os negócios serão de bondade. Há um conhecido
mitzvot frutíferos como a romã, enquanto ensinamento do Talmud que
que quando vemos os frutos grandes, diz que D’us escolhe as pessoas
As três preces seguintes e seus isso significa que os negócios vão- meritosas para realizar boas ações.
respectivos alimentos compartilham se multiplicar como romãs. Se no Em Rosh Hashaná, rogamos a
um tema comum: méritos e mitzvot D’us para nos escolher como Seus
– ou seja, mandamentos Divinos e agentes da sabedoria, bondade e
boas ações. justiça no mundo: que Ele nos dê
a oportunidade de cumprir Seus
Recitamos essas orações para pedir mandamentos. Esse privilégio
a D’us um veredicto não depende apenas de
totalmente positivo para nosso livre arbítrio, mas
o novo ano. Rogamos a também da Divina
Ele para “apagar” qualquer Providência. Para
decreto Celestial negativo fazer muita Tzedacá,
contra nós e nos julgar precisamos estar
favoravelmente, pesando financeiramente bem. Para
nossos méritos e relevando poder ensinar e disseminar
nossos deméritos. Pedimos a Ele sabedoria e conhecimento,
que nos estimule espiritualmente precisamos ter sucesso
– dando-nos forças, motivação em nossos estudos de

12
REVISTA MORASHÁ i 97

Torá. Para poder realizar muitos


mandamentos Divinos, precisamos
ter boa saúde e tranquilidade. Assim
como oramos por prosperidade
material em Rosh Hashaná,
também precisamos rogar por
saúde espiritual. A romã simboliza
abundância – material e espiritual –,
que, quando bem utilizada, permite
que acumulemos muitos méritos.

Oração para sermos a


cabeça e não a cauda

O último dos alimentos simbólicos


é a língua ou cabeça de um carneiro.
Certas comunidades judaicas usam
outros alimentos em vez desses.
Quando comemos um dos dois,
pedimos que D’us nos abençoe
para que, ao longo do ano recém-
iniciado, possamos ser “a cabeça, principais em Rosh Hashaná: rogamos a D’us para que nos inspire
e não a cauda”. Não se trata de surge, com relevância, na oração de de modo a continuar a promover
uma prece apenas por sucesso, Mussaf e constitui a leitura da Torá o legado e a liderança de nossos
mas também um pedido a D’us do segundo dia da festa. Akedat patriarcas.
para nos dar a oportunidade de Itzhak relembra como pai e filho
sermos forças proativas e efetivas, estavam dispostos a fazer o sacrifício Após o término da cerimônia
no mundo – fontes de sabedoria, supremo para cumprir uma ordem dos alimentos simbólicos de Rosh
liderança e bondade. Pedimos a Divina. Invocamos sua lembrança, Hashaná, que, como vimos, é
D’us que nos dê a oportunidade não apenas pelo fato da menção imbuída de grande significado e
de ter influência positiva sobre os a um Tzadik ser uma fonte de poder místico, seguimos com a
demais, seja como pais, educadores, bênçãos, mas porque o episódio – a refeição festiva. As refeições de Rosh
líderes comunitários, empresários submissão absoluta de Avraham e de Hashaná devem ser muito alegres
ou profissionais. Vivemos em uma seu filho diante da Vontade Divina – e fartas, incluindo comidas doces
geração em que os líderes sábios, é uma fonte de proteção para todas e deliciosas, expressando nossa
verdadeiros e abnegados são raros. as gerações de seus descendentes. confiança em que seremos todos
Oramos pela capacidade de exercer inscritos e confirmados para um
liderança com sabedoria, bondade e A prece por “ser a cabeça e não Shaná Tová Umetucá – um ano bom
eficácia. a cauda” e a história de vida de e doce. Amén, ken yehi ratsón.
Avraham e Itzhak são interligadas.
Outra razão para comer língua ou Avraham introduziu o monoteísmo
cabeça de carneiro é que isso nos faz no mundo. Ele, sozinho, desafiou
lembrar o animal que foi sacrificado um mundo politeísta – rebelou-se BIBLIOGRAFIA
em lugar de nosso patriarca Itzhak. contra a idolatria e dedicou sua vida Rubin,Efraim, “Honey in Jewish Law,
Lore, Tradition, and More. What the
Na verdade, essa última prece a revelar a Verdade e a disseminar o Torah has to say about this Rosh Hashanah
menciona nossos dois primeiros Nome de D’us por toda parte. Foi favorite”. www.chabad.org
patriarcas – Avraham e Itzhak – ao um dos maiores líderes espirituais Zivotofsky, Ari, “What’s the Truth about
se referir ao episódio conhecido de todos os tempos e seu filho, Pomegranate Seeds?”. www.ou.org
como Akedat Itzhak – quando D’us “Special Rosh Hashanah Foods” . www.
Itzhak, pai de nosso patriarca Yaacov, chabad.org
ordenou a Avraham sacrificar seu continuou no caminho que lhe Shurpin,Yehuda, Why All the Symbolic
filho. Esse relato é um dos temas fora ensinado. Em Rosh Hashaná, Rosh Hashanah Foods? www.chabad.org

13 SETEMBRO 2017
NOSSAS LEIS

Algumas leis
relacionadas a Yom Kipur
Neste ano, Yom Kipur se inicia na sexta-feira,
29 de setembro, e termina na noite de sábado,
30 de setembro .

C
ostuma-se fazer caparot – abate de um ou usar o elevador antes do início de Yom Kipur, deverá,
galo, para um homem, e de uma galinha, antes de acender as velas, fazer uma ressalva dizendo
para uma mulher, no dia 9 de Tishrei de que não está recebendo Yom Kipur com o ato de
madrugada, dia 29 de acendimento das velas.
setembro,
por um shochet É, porém, necessário antecipar o
qualificado. Também é possível recebimento de Yom Kipur para
cumprir este costume com dinheiro, antes do pôr-do-sol.
doando-o para tzedacá.
É costume os pais abençoarem os
É proibido jejuar no dia que precede filhos, pedindo que estes sejam
Yom Kipur, mesmo se este jejum for selados no Livro da Vida e que, em
por Taanit Halom. É, ao contrário, seus corações, permaneça sempre o
uma mitzvá fazer uma refeição amor a D’us. Convém também ir à
adicional. A refeição que antecede o sinagoga antes do pôr-do-sol, para
jejum deve ter pão e pratos de fácil poder participar do Kol Nidrei, a
digestão e ser concluída 20 minutos “anulação dos votos”.
antes do pôr-do-sol. Bebidas
alcoólicas são proibidas. Restrições durante
Yom Kipur
As mulheres devem acender as velas
antes de ir à sinagoga, dizendo a Yom Kipur é o Shabat dos Shabatot
bênção “Lehadlik Ner Shel Shabat e, portanto, todo trabalho profano
Veshel Yom HaKipurim”. Se a mulher deve cessar e todas as leis do Shabat
quiser locomover-se de automóvel devem ser respeitadas. Assim como

14
REVISTA MORASHÁ i 97

Seguem-se os horários do início


e término do jejum de Yom Kipur,
em algumas cidades brasileiras.
SEFARIM DA SINAGOGA BEIT YAACOV
Nas demais, sugerimos que sejam
consultadas as sinagogas locais:
no Shabat, é proibido carregar sobre si qualquer
objeto durante Yom Kipur. Além de observar as Recife:
leis do Shabat, em Yom Kipur outras cinco restrições Início às 16:55h n Término às 17:46h
são acrescidas: “Não comer, não beber, não trabalhar,
Salvador:
não se lavar e nem massagear a pele (perfumes,
cremes etc.), não calçar couro, não ter relações Início às 17:10h n Término às 18:01h
conjugais”. Manaus:
Início às 17:34h n Término às 18:25h
O jejum diz respeito tanto aos homens quanto às Belém:
mulheres, mesmo grávidas ou amamentando. Início às 17:48h n Término às 18:38h
Só em caso de doença ou onde haja algum perigo
Rio de Janeiro:
à vida, o jejum pode ser suspenso (consulte seu rabino).
Início às 17:27h n Término às 18:21h
As crianças de 9 a 10 anos podem jejuar algumas
horas, e, a partir dos 11 anos, conforme avaliação dos São Paulo:
pais, podem jejuar o dia todo. Mas o jejum torna-se Início às 17:45h n Término às 18:39h
obrigatório aos 12 anos, para meninas, e aos 13, para Belo Horizonte:
meninos. Início às 17:33h n Término às 18:26 h
Brasília:
O uso de sapato, sandálias ou tênis de couro é proibido Início às 17:48h n Término às 18:40h
tanto para homens como para mulheres.
Curitiba:
As crianças também devem ser orientadas neste sentido.
Início às 17:56h n Término às 18:51h
Ao término de Yom Kipur, a Havdalá deve ser feita sem Porto Alegre:
bessamim, e a Bênção da Luz deve ser feita sobre uma Início às 18:05h n Término às 19:01h
vela que permaneceu acesa desde o dia anterior.

15 SETEMBRO 2017
NOSSAS GRANDES FESTAS

O duplo júbilo de Sucot

A festa de Sucot, que tem a duração de sete dias e se inicia


cinco dias após Yom Kipur, é conhecida por vários nomes,
mas sua descrição no livro de orações é Zman Simchatenu –
“Época de nosso regozijo”. A Torá nos ordena sempre servir a
D’us com alegria, particularmente em ocasiões festivas como
o Shabat e as datas sagradas. Mas também nos impõe estar
especialmente alegres durante a festa de Sucot.

N
o quinto livro da Torá, Deuteronômio, ha-Minim, as “Quatro Espécies”. O outro é habitar em
está escrito o seguinte acerca dessa festa: uma Sucá.
“E te alegrarás na tua festa – tu, teu filho,
tua filha, teu servo, tua serva, o levita, o O mandamento de juntar as Quatro Espécies é
peregrino, o órfão e a viúva, que estão nas mencionado no terceiro livro da Torá, o Levítico. Pois
tuas cidades. Sete dias festejarás a festa do Eterno, teu está escrito: “Contudo, aos 15 dias do sétimo mês,
D’us, no lugar que escolher o Eterno; porque o Eterno, quando recolherdes o produto da terra, celebrareis a
teu D’us, te abençoará em todos os teus produtos e em festa do Eterno por sete dias; no primeiro será dia de
toda obra de tuas mãos, e estarás certamente alegre” descanso solene e, no oitavo, será dia de descanso solene.
(Deuteronômio 16: 14-15). E tomareis para vós, no primeiro dia, o fruto da Árvore
Formosa (Etrog), palmas da palmeira, ramos de murta e
É interessante que o Livro Deuteronômio não mencione de salgueiro de ribeiras, e vos alegrareis diante do Eterno,
o júbilo ao descrever a festa de Pessach, e apenas vosso D’us, por sete dias” (Levítico 23:39-40).
mencione-o uma única vez em relação à festa de Shavuot.
Contudo, no contexto de Sucot, menciona-o duas vezes. Aí está a referência aos Arbaat ha-Minim – as Quatro
Talvez seja isso o que levou nossos Sábios a atribuir a Espécies. A fruta escolhida é o Etrog, o ramo verde
essa festa o epíteto de “Época de nosso regozijo”. E, por é o Lulav, os galhos folhosos são os Hadassim, e o
que o duplo júbilo? Por que razão o conceito de alegria é salgueiro da ribeira são as Aravot. É uma mitzvá – um
mais enfatizado durante Sucot do que nas demais festas? mandamento Divino – juntar essas Quatro Espécies e
sacudi-las em Sucot.
Os dois mandamentos
exclusivos de Sucot Um segundo mandamento da Torá, que também é
exclusivo à festa de Sucot, é a mitzvá de se habitar em
Há dois mandamentos da Torá exclusivos à festa uma Sucá durante os sete dias da festa. Em Sua Torá,
de Sucot. Um é juntar e ter nas mãos as Arbaat D’us ordena ao Povo Judeu “viver em Sucot (cabanas)

16
REVISTA MORASHÁ i 97

“CONSTRUINDO CABANAS PARA SUCOT EM JERUSALEM”, GRAVURA, AUGSBURG, ALEMANHA, SÉC. 18

durante sete dias: “Nas cabanas natureza. Na verdade, esses dois mandamento de habitar em uma
habitareis por sete dias; todo natural mandamentos são aparentemente cabana. A Lei Judaica determina
de Israel habitará nas cabanas. Para contrários entre si. O mandamento que, como a Sucá é uma moradia
que as vossas gerações saibam que das Quatro Espécies e os rituais temporária, seu revestimento não
nas cabanas fiz habitar os Filhos de associados ao mesmo são imbuídos pode ser impermeável: se a chuva
Israel, quando os tirei da terra do de profundo significado e não pode penetrar por seu teto, a
Egito, Eu sou o Eterno, vosso D’us!” misticismo, mas servem, também, Sucá não é válida. E se chover na
(Levítico 23:42-43). a um propósito prático: constituem festa de Sucot – e a chuva for forte
uma súplica por chuvas abundantes. ao ponto de estragar a comida que
Esse mandamento é tão Ao cumprir esse Mandamento está na mesa da cabana –, estaremos
fundamental na festa de Sucot Divino, esperamos que D’us abençoe isentos do mandamento de habitá-
que até empresta seu nome à o novo ano com chuvas, essenciais la. Assim sendo, a chuva é um
mesma. Essa festa é a época anual para a vida e o sustento. Além disso, impedimento para o cumprimento
de recordarmos as Sucot – plural como nos ensina Maimônides, as da mitzvá de Leshev ba-Sucá, isto é,
de Sucá – as moradias temporárias Quatro Espécies eram os produtos “habitar na Sucá” durante os sete dias
e portáteis nas quais os judeus mais disponíveis na Terra de Israel da festividade.
viveram durante sua jornada de – verdadeiros sinais da fertilidade da
40 anos através do deserto, em sua terra. A diferença entre os dois
caminhada para a Terra de Israel. mandamentos exclusivos da festa
Por sua vez, o mandamento de é ainda mais profunda. Por um
É interessante notar que os dois morar sete dias em uma Sucá lado, Sucot é a mais universalista de
mandamentos exclusivos da festa pressupõe a falta de chuva. De fato, todas as festas judaicas. O profeta
– tomar nas mãos as Quatro chover durante a festa de Sucot é Zechariah profetizou que um dia
Espécies e habitar em uma Sucá considerado um mau presságio, essa festa será celebrada por toda
– são muito diferentes em sua pois nos impede de cumprir o a humanidade: “E o Eterno será

17 SETEMBRO 2017
NOSSAS GRANDES FESTAS

O aspecto universal não vier, não transbordará seu rio;


serão atingidos pela praga com que
da festa de Sucot o Eterno há de ferir as nações que
e particularmente não subirem para celebrar a festa de
Sucot” (Zechariah 14:9, 16-17-18).
o mandamento das
Quatro Espécies nos A universalidade de Sucot é
ensinam que nós, evidenciada por outro mandamento
da Torá que também é exclusivo
judeus, não podemos à festa: 70 touros teriam que ser
nos isolar do restante sacrificados no Templo Sagrado
de Jerusalém durante a semana da
do mundo. festividade (Números 29:12-34).
Rei sobre toda a terra; naquele dia Nossos Sábios ensinam que tais
o Eterno será Um e Seu Nome, sacrifícios eram oferecidos em nome
Um... Então, cada uma das nações das setenta principais nações do
dentre as que invadiram Jerusalém, mundo. As 70 oferendas animais
que sobreviver, subirá cada ano serviam para permitir que D’us
para adorar o Rei, o Eterno das abençoasse todas as nações do
Legiões, e celebrar a festa de Sucot mundo. Ensinam, também, com
(Festa dos Tabernáculos). E se base na passagem acima do profeta
alguma das famílias da terra não Zechariah, que, na festa de Sucot,
subir a Jerusalém para adorar o D’us decide assuntos relativos às
Rei, o Eterno das Legiões, não chuvas – se serão abundantes ou
será aquinhoada com chuvas. E não, se serão fonte de bênção ou
se não subir a família do Egito e não, no ano que está por vir. O
Talmud nos diz, no Tratado Rosh
Hashaná 1:2: “Na festa (de Sucot),
o mundo é julgado na questão
da chuva”. Evidentemente, não
há nada especificamente judaico
na necessidade de chuva. Todos
os países, inclusive o Brasil, e
especialmente aqueles do Oriente
Médio, a necessitam. Portanto, ainda
que os mandamentos de tomar nas
mãos as Quatro Espécies e oferecer
os 70 touros no Templo Sagrado
fossem realizados apenas pelo Povo
Judeu, eles têm um significado
universal, já que um de seus muitos
propósitos era levar D’us a decretar
um ano de chuvas abundantes e
prosperidade para o mundo todo.

Sucot é a festa mais universal em


nosso calendário, mas é também a
mais especialmente judaica. Quando
Caixa para guardar o Etrog.
Estados Unidos, 1918 sentamos na Sucá, lembramo-nos
da História Judaica – não apenas os
40 anos vagando pelo deserto em

18
REVISTA MORASHÁ i 97

direção à Terra Prometida, mas


também toda a experiência do
exílio. A Sucá é definida como uma
“moradia temporária”. Ela constitui
um dos símbolos mais fortes da
nossa história porque somos um
povo que, através dos milênios,
tem sido forçado a viver fora de
sua Terra Natal – a Terra de Israel.
A Sucá, o tabernáculo temporário
e frágil, simboliza os muitos lares
transicionais e temporários do
Povo Judeu. Nenhum outro povo
nasceu no deserto. Nenhum outro
povo esteve disperso de forma tão
ampla pelo mundo, emigrando com
frequência ou sendo expulso de
tantos países. Nenhum outro povo
teve condições de sobreviver por
tanto tempo sem sua própria terra.

Fomos expulsos da Antiga Israel


há quase 2.000 anos. O moderno
Estado de Israel foi fundado há
menos de 70 anos. Durante os dois
milênios em que nosso povo viveu
sem um Estado Judeu, sempre Sucot (a Festa dos Tabernáculos) - Moritz Daniel Oppenheim, 1867
ansiamos pelo retorno à Terra
de Israel, nossa Pátria ancestral.
Esse anseio foi fomentado não pois simboliza um povo cuja Os dois ciclos da
apenas pelos inúmeros episódios única proteção ao longo da maior festividade
horrendos que nosso povo suportou parte de sua história foi sua fé
desde a queda da Antiga Israel. nas asas protetoras da Presença As festas bíblicas no calendário
Como a maioria dos judeus e Divina, que, como ensina o judaico representam dois ciclos
cristãos conscienciosos entendem, Zohar, a obra fundamental da diferentes. O primeiro é o ciclo
o retorno do Povo Judeu à Terra de Cabalá, habita dentro de cada conhecido como Shalosh Regalim
Israel, em particular a Jerusalém, Sucá durante a festa de Sucot. Essa (literalmente, “três pernas”): Pessach,
é imperativo para a vinda do moradia temporária nos ensina Shavuot e Sucot. Essas festas levam
Mashiach, e assim, para a redenção que a sobrevivência e segurança esse nome porque todos os homens
não apenas dos Filhos de Israel, do Povo Judeu não dependem de judeus eram obrigados a ir em
mas de toda a Humanidade. paredes fortes, tetos impenetráveis peregrinação a Jerusalém durante
Portanto, independentemente de e altas construções, mas sim, da essas três festas para oferecer
onde vivemos em nossa dispersão Providência e Proteção Divinas. sacrifícios no Templo Sagrado.
– fosse bom e agradável, fôssemos Os Shalosh Regalim nos contam a
recebidos de braços abertos ou Vemos, pois, que Sucot tem história particular do Povo Judeu:
brutalmente perseguidos - sempre um simbolismo duplo, e que Pessach celebra nossa liberdade
estivemos em uma moradia se contradiz. Tem um caráter da escravidão egípcia; Shavuot
temporária, nunca em um destino universal e, ao mesmo tempo, comemora a Revelação Divina no
permanente. Longe de ser especificamente judaico. É quase Monte Sinai, o recebimento da Torá
universalista, o mandamento de como se fossem duas festas. Nisso e o nascimento do Povo Judeu; e
habitar em uma Sucá é particular, está seu caráter único. Sucot rememora a jornada de 40

19 SETEMBRO 2017
NOSSAS GRANDES FESTAS

anos do Povo Judeu no deserto, a No entanto, há um segundo ciclo nos Dias Temíveis, que se iniciam
caminho da Terra Prometida. Essas de festas judaicas – as do mês de em Rosh Hashaná e terminam ao
três festividades revivem o passado Tishrei: Rosh Hashaná, Yom Kipur findar o Yom Kipur, D’us determina
judeu. Celebram o significado de ser e Sucot. (Shemini Atseret, a festa o destino de todos os povos e de
judeu. Ainda que as mensagens que celebrada no dia após o término de cada uma de Suas criaturas para o
as mesmas nos transmitem tenham Sucot, de certa forma é o oitavo dia próximo ano. Bem verdade, são os
inspirado um número inusitado dessa festa). Apesar de Rosh Hashaná judeus que acorrem às sinagogas
de pessoas ao longo da História – e Yom Kipur serem festividades nesses dias e que têm que cumprir
particularmente o tema do Êxodo e judaicas, ambas não dizem o mandamento de ouvir o toque do
o dos Dez Pronunciamentos Divinos respeito unicamente a judeus e ao Shofar em Rosh Hashaná e o de jejuar
(os “Dez Mandamentos”) ouvidos judaísmo. Dizem respeito a D’us, à em Yom Kipur, mas eles agem como
no Monte Sinai –, elas contam Humanidade, a todas as criaturas agentes da Humanidade, mesmo
a história do Povo Judeu. Foram vivas e ao destino do mundo todo. não estando, a quase totalidade do
os judeus os escravos libertados O palavreado das orações é diferente mundo, ciente do que ocorre nesses
do Egito; foi aos judeus que D’us nessas duas festas; é diferente do que dias cruciais. Neles refletimos não
escolheu para Se revelar e a quem nas demais festas judaicas. Em Rosh apenas na condição atual e no futuro
Ele confiou a Sua Torá; e foram Hashaná, proclamamos: “Instila o do Povo Judeu, mas também, na do
os judeus os que viveram nas Sucot Teu assombro sobre todas as Tuas mundo e de todos os seus habitantes.
durante a longa jornada em que obras, e temor a Ti em toda a Tua
foram conduzidos por Moshé a criação”. A liturgia é claramente Tendo identificado esses dois ciclos
caminho da Terra Prometida. universal. O Talmud nos ensina que de festividades, vemos claramente
a singularidade de Sucot, que é ser a
única festa que pertence a ambos os
ciclos. É parte do ciclo da História
Judaica - Pessach, Shavuot e Sucot,
mas também da sequência de
festividades do mês de Tishrei – Rosh
Hashaná, Yom Kipur e Sucot. Daí o
duplo júbilo que lhe é associado. Daí
uma das inúmeras razões para ser
chamada de Zman Simchatenu – a
“Época de nosso regozijo”.

O mandamento das Quatro


Espécies representa o aspecto
universal de Sucot. Os Arbaat ha-
Minim simbolizam algumas das
necessidades comuns a toda a
Humanidade: a natureza, a chuva,
a agricultura, o sustento, o ciclo
das estações e a complexa ecologia
do mundo criado – coisas que
todos os seres humanos necessitam
para sobreviver e florescer. O
mandamento de habitar em uma
Sucá, por outro lado, representa o
caráter singular da História Judaica,
com suas repetidas vivências em
exílio. Essa estrutura temporária
e frágil simboliza a fragilidade
do Povo Judeu na Diáspora – os

20
REVISTA MORASHÁ i 97

As Quatro Espécies: Lulav, Etrog, Hadassim e Aravot

exílios, as expulsões, a assimilação, como indica o Talmud, que exílio trás exílio, e, ainda assim,
as perseguições, os massacres e, até ninguém pode alegar ser superior não apenas sobrevivendo, mas
mesmo, o genocídio. Ao mesmo ao outro. No entanto, cada povo, triunfando. A Sucá pode ser uma
tempo, o mandamento de viver sob civilização e religião são únicos e moradia frágil e temporária, mas
o Sechach, o revestimento da Sucá, diferentes, e essa diversidade é o que pôde manter nosso povo vivo
remete-nos aos versos iniciais do enriquece o mundo. Assim como durante milênios.
Salmo 91: “Quem habita na Morada cada ser humano tem sua própria
do Altíssimo estará sempre sob Sua missão neste mundo, também a tem A Humanidade é formada por
proteção” – e é curioso que o valor cada um dos povos. nossos pontos em comum e nossas
numérico da palavra Sucá é 91. Isso diferenças. Os primeiros nos
nos ensina e nos faz lembrar que O aspecto universal da festa de Sucot recordam que somos todos seres
os Filhos de Israel sobreviveram e particularmente o mandamento humanos, com necessidades, dores
provações e tribulações sem fim das Quatro Espécies nos ensinam e alegrias, esperanças, desejos e
somente porque habitavam à sombra que nós, judeus, não podemos sonhos semelhantes. Mas nossas
da Divina Presença, assegurando sua nos isolar do restante do mundo. diferenças forjam nossa identidade.
perpetuidade. Se devemos ser uma luz entre E a festa de Sucot reúne a nossa
as nações, como ordenado por singularidade como povo e, ao
De maneira diferente de todas as D’us (Isaías 42:6), temos que nos mesmo tempo, nossa participação
demais festividades, Sucot celebra envolver e tentar influenciar a no destino universal da humanidade.
a natureza dupla do judaísmo: humanidade. Contudo, o aspecto Daí, o duplo júbilo de Sucot, a
a universalidade de D’us e a específico de Sucot – em especial o “Época de nosso regozijo”.
particularidade do Povo Judeu. mandamento de habitar em uma
E, como nos ensina a Torá, todos Sucá – nos ensina que o Povo Judeu
os seres humanos foram criados é herdeiro de uma história que não
BIBLIOGRAFIA
por D’us Uno e Único e todos tem igual entre nenhum outro povo:
Sacks, Rabbi Jonathan, “Leviticus:
descendem dos mesmos dois seres em número pequeno, vulneráveis, The Book of Holiness (Covenant &
humanos: Adão e Eva. Isso significa, sofrendo Conversation 3)”, Maggid.

21 SETEMBRO 2017
DESTAQUE

Índia, parceria estratégica


de Israel na Ásia
POR JAIME SPITZCOVSKY

Israel e Índia anunciaram no mês de julho, em meio às


comemorações de 25 anos do estabelecimento de plenas relações
diplomáticas entre os dois países, a criação de uma parceria
estratégica, apoiada na cooperação em tecnologia, agricultura e
defesa, entre outras áreas. A aproximação histórica se consolidou
com a recente visita do primeiro-ministro Narendra Modi, primeiro
chefe de governo indiano a aterrissar em solo israelense.

L
ogo de início, o anfitrião Binyamin comunista chinês Mao Tsetung posavam de líderes do
Netanyahu demonstrou a importância chamado Terceiro Mundo e declaravam, no conflito do
da chegada do visitante estrangeiro. Oriente Médio, apoio ao movimento palestino.
O primeiro-ministro israelense foi
pessoalmente recebê-lo no aeroporto No mundo pós-Guerra Fria, China e Índia se livraram de
Ben Gurion, acompanhado de outros integrantes do amarras ideológicas do passado, optaram pelo caminho
primeiro escalão do governo, em cerimonial reservado do crescimento econômico e encontraram em Israel um
geralmente a presidentes dos Estados Unidos, principal parceiro a oferecer cooperação, por exemplo, no campo da
parceiro político, econômico e militar de Israel. tecnologia. Laços israelenses com os gigantes asiáticos se
expandiram dramaticamente nas últimas décadas.
Netanyahu, seguindo os ventos a moldar o cenário
internacional no século 21, passou a investir na O comércio entre Israel e Índia, em 1992, ano do
aproximação com potências asiáticas, como China e estabelecimento de relações diplomáticas, registrava a
Índia, sem abrir mão do relacionamento estratégico marca de US$ 200 milhões, para alcançar, em 2016,
com os EUA. O dinamismo econômico de Pequim e US$ 4,5 bilhões. Pilares dos laços bilaterais se apoiam nas
Nova Délhi atrai o olhar israelense, afastado daquelas áreas de defesa, agricultura e tecnologia para uso de água.
paragens nos tempos da Guerra Fria devido aos
alinhamentos ideológicos do período encerrado com a A chegada de Narendra Modi a Israel, em julho,
queda do Muro de Berlim, em 1989. representou o capítulo principal de um intenso
calendário de visitas diplomáticas, nos últimos meses.
Foi somente após o desaparecimento do mundo Em 2016, o presidente da Índia, Pranab Mukherjee,
bipolar, dividido em campos norte-americano e transformou-se no primeiro chefe de Estado de seu país
soviético, que Israel estabeleceu laços oficiais com a visitar Israel, enquanto em janeiro passado foi a vez de
China e Índia. Nos tempos da Guerra Fria, dirigentes Reuven Rivlin, presidente de Israel, aterrissar em solo
como o socialista indiano Jawaharlal Nehru e o indiano.

22
REVISTA MORASHÁ i 97

cerimônia de boas-vindas para o primeiro-ministro modi, aeroporto ben gurion

Democracias dinâmicas, Índia unidade de dessalinização de água Os premiês também protagonizaram


e Israel carregam regimes próxima à cidade de Hadera. O tour um momento de descontração ao
parlamentaristas, nos quais a incluiu passeio, com Netanyahu, caminharem pela praia e, sob sol
condução do governo cabe a um em recente invenção israelense: um tórrido do verão de Israel, tirarem
primeiro-ministro, enquanto os veículo desenvolvido para tornar os sapatos e darem alguns passos
presidentes acumulam sobretudo potável a água do mar. nas águas do mar Mediterrâneo.
funções cerimoniais e de Modi e Netanyahu procuraram
representação do Estado. mostrar, ao longo da intensa
iniciativa diplomática, a construção
Primeiro-ministro da Índia desde de laços pessoais, como, ao iniciar
2014, Narendra Modi procura um discurso, o primeiro-ministro
implementar um ambicioso indiano chamar o anfitrião de “yedid
processo de reformas, o que levou hayakar” (caro amigo, em hebraico).
o país a acumular, nos últimos
anos, taxas de crescimento Modi, que já havia visitado Israel em
econômico superiores às da China. 2006, quando governava a província
O governo indiano busca acelerar de Gujarat, também se reuniu com
a industrialização e a urbanização, judeus oriundos da Índia. Houve
pois cerca de 70% dos 1,3 bilhão apresentações de danças típicas num
de habitantes, a segunda maior centro de convenções em Tel Aviv,
população do planeta, ainda vivem decorado com bandeiras israelenses
na zona rural. e indianas.
MOMENTO DE DESCONTRAÇÃO NA PRAIA
A agenda econômica de Modi olga (haifa) SEGUIDOS DE VISITA A UMA
EMPRESA QUE DESENVOLVE TECNOLOGIA
Ainda no campo econômico, Modi
levou-o, por exemplo, a visitar uma PARA DESSALINIZAÇÃO visitou um centro de produção de

23 SETEMBRO 2017
DESTAQUE

1 2 3

1. em visita a Haifa 2. netaniahu e modi em Yad Vashem 3. em visita à fazenda danziger, onde o primeiro-ministro indiano
atribuiu seu nome a uma nova espécie de crisântemos

flores, acompanhado do ministro um quarto da Chabad House, no


israelense da agricultura, Uri Ariel. momento da tragédia.
E a parceria estratégica decolou
com a assinatura de sete acordos Além de Gavriel e Rivka, mais
nas áreas de água, agricultura e quatro pessoas foram assassinadas
pesquisa espacial, além da criação de pelos terroristas na Chabad
um fundo de US$ 40 milhões para House, um dos alvos dos atentados
financiar atividades conjuntas em responsáveis por 166 mortes, em
tecnologia e inovação. Mumbai.

Em um dos momentos mais Sandra Samuel esteve no encontro


emocionantes da intensa agenda, com Modi, em Jerusalém. Ela
Narendra Modi se encontrou com recebeu a cidadania honorária de
Moshe Holtzberg, 10, sobrevivente Israel, passou a viver na capital do
do ataque terrorista em Mumbai, em país, e mantém o hábito de, aos
no encontro com o garoto moshe 2008, que matou seus pais, o rabino domingos, percorrer mais de 90
holtzberg, sobrevivente do ataque
terrorista de 2008, em mumbai Gavriel e Rivka. Então com 2 anos, quilômetros para visitar Moshe, na
Moshe foi salvo pela babá, a indiana casa de seus avós, na cidade de Afula.
Sandra Samuel, que o escondeu em
Narendra Modi também
homenageou as vítimas do
Holocausto, ao visitar o Yad Vashem,
acompanhado de Netanyahu e do
presidente do memorial, Avner
Shalev. O primeiro-ministro indiano
deixou uma mensagem no livro de
visitantes: “No momento em que
enfrentamos conflitos, intolerância,
ódio e terror em nosso tempo, Yad
Vashem serve como um espelho
para a sociedade ao redor do mundo.
Que não esqueçamos as injustiças do
passado e seus custos devastadores
para a humanidade”.

Jaime Spitzcovsky foi editor


internacional e correspondente da
uma sessão de trabalho, em jerusalém Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim

24
HISTÓRIA DE ISRAEL

DECLARAÇÃO BALFOUR
O CENTENÁRIO DE UM MARCO
POR Zevi Ghivelder

Há 100 anos, no dia 2 de junho de 1917, o Ministro das Relações


Exteriores do império britânico, Lord Arthur Balfour, emitiu
um documento que se tornou um marco histórico e que foi
consagrado para a posteridade como Declaração Balfour.
Apesar do nome pomposo, trata-se, na verdade, de uma carta
simples e concisa endereçada ao barão Walter Rothschild,
um dos principais líderes da comunidade judaica da Inglaterra.

E
sta carta transcendeu na medida em que tendo ocupado durante 50 anos uma rara posição de
foi o primeiro passo para a autenticação poder dentro do Partido Conservador britânico.
do sionismo, tal como o objetivo desse
movimento o havia formulado em seu Depois de sua formação em Eton e Cambridge,
primeiro Congresso Mundial, realizado vinte incursionou na política. Bem sucedido, foi Primeiro-
anos antes, na Suíça. ministro de 1902 a 1905 e Chanceler de 1916 a 1919,
um período difícil por causa dos desdobramentos
O texto de Balfour dizia o seguinte: “Caro Lord da Primeira Guerra Mundial. Balfour descendia de
Rothschild. Tenho o prazer de endereçar a V.S., em nome uma família muito rica, recheada de intelectuais e
do governo de Sua Majestade, a seguinte declaração proeminentes homens públicos. Entrou para a política
de simpatia quanto às aspirações sionistas, declaração durante os dois mandatos de Lord Salisbury,
submetida ao gabinete e pelo mesmo aprovada. O governo seu tio, sendo então nomeado Secretário para a
de Sua Majestade encara favoravelmente o estabelecimento na Escócia e depois para a Irlanda, com assento no gabinete.
Palestina de um lar nacional para o povo judeu e empregará Mais tarde foi líder de seu partido na Câmara dos
todos os seus esforços no sentido de facilitar a realização Comuns, onde comandou a oposição durante o mandato
desse objetivo, entendendo-se claramente que nada será de Lord Gladstone.
feito que possa atentar contra os direitos civis e religiosos
das coletividades não judaicas existentes na Palestina, nem Ao buscar a aprovação do Gabinete do governo
contra os direitos e o estatuto político de que gozam os judeus comandado pelo Primeiro-ministro David Lloyd George
em qualquer outro país. Desde já, declaro-me extremamente para a carta que pretendia endereçar a Rothschild, o
grato a V.S. pela gentileza de encaminhar esta declaração ao Chanceler se valeu de diferentes argumentos. Primeiro,
conhecimento da Federação Sionista”. abordou o apoio ao sionismo que se multiplicava,
conforme afirmou, nas comunidades judaicas de todas as
O signatário da carta, Lord Arthur James Balfour, nasceu partes do mundo. Mas, a bem da verdade, os estudiosos
no dia 25 de julho de 1848 em Whittingehame, Escócia, afirmam que o sionismo, naquela época, ainda não

25 SETEMBRO 2017
HISTÓRIA DE ISRAEL

feitas por inúmeros analistas e


historiadores, o fato é que Lord
Balfour compreendia e endossava
os propósitos da causa sionista. Em
suas memórias, Chaim Weizmann
escreve que, num encontro com
Balfour, em 1914, falou-lhe sobre
as agruras sofridas pelos judeus
do Leste europeu, o que deixou
Balfour com lágrimas nos olhos.
Uma sobrinha de Balfour, chamada
Blanche Dugdale, escreveu: “Perto
do fim de seus dias, ele me disse que
considerava o que tinha feito pelos
judeus o momento mais valioso
de sua vida”. Esse sentimento foi
recíproco. Quando Balfour faleceu,
no dia 19 de março de 1930,
sua família recebeu milhares de
mensagens de afeto e conforto de
judeus de todas as partes do mundo.

A emblemática carta de Balfour


foi endereçada a Lionel Walter
Rothschild, segundo Barão
Lord Balfour Rothschild de Tring, nascido em
Londres no dia 8 de fevereiro de
1868, neto de Mayer Amschel
empolgara as massas judaicas. recente revolução russa havia grande Rothschild (1744-1812), o grande
O historiador e jurista americano quantidade de militantes judeus, patriarca da dinastia. Foi o próprio
David Fromkin escreve em um de que, com toda a certeza, seriam Chaim Weizmann, embora
seus trabalhos que, em 1913, apenas membros do governo que Lenin presidente da Federação Sionista
1% do mundo judeu se identificava estava formando. Portanto, seria de da Inglaterra, quem sugeriu que
com o movimento sionista e diz todo interesse da Inglaterra manter Lord Walter fosse o destinatário
ainda que em 1919, ou seja, já depois boas relações com o futuro estado da carta, porque sendo a mesma
da Declaração Balfour, o sionismo soviético. Como se não bastasse essa enviada a um membro da família
atraía uma pequena parcela dos suposição relativa aos bolcheviques, Rothschild, seu conteúdo ganharia
judeus americanos. Isto se devia, também existia nos círculos oficiais maior relevância na percepção
conforme acrescenta, ao repúdio britânicos a noção de que os judeus internacional. Walter começou
da alta classe média judaica a estavam por trás do imperialismo seus estudos de Zoologia na
qualquer forma de nacionalismo, tal na Alemanha e até mesmo nos Universidade de Bonn, na
como doutrinado pelos líderes do bastidores do império otomano, Alemanha, e completou-os em
sionismo. que os aliados da Primeira Guerra Cambridge. Desde adolescente já
Mundial combatiam. possuía uma impressionante coleção
A par disso, Balfour argumentou de insetos e pássaros, que foi sendo
para o Gabinete que a influência O historiador Sydney Zebel escreveu aumentada, ao longo dos anos, na
judaica nos acontecimentos que Balfour exagerava quanto mansão de seu pai, na localidade de
mundiais não podia ser ignorada – à presença judaica na revolução Tring, 50 quilômetros a noroeste de
certamente um exagero, porque essa russa, bem como superestimava Londres. Apesar de sua consagrada
influência era mínima. Para reforçar o poder dos judeus americanos. especialidade na Zoologia, foi
sua tese, discorreu que na então Contudo, apesar das especulações trabalhar no banco do pai, Nathan

26
REVISTA MORASHÁ i 97

Mayer, deixando uma equipe mãe estava sempre grávida, sempre


para cuidar de sua coleção, depois amamentando uma criança. Ela deu
transformada num museu aberto ao à luz 15 filhos. Dizia que era esta
público em 1892. Lord Walter atuou a sua missão como mulher judia.
no Parlamento britânico de 1899 Recordo-me do meu pai conduzindo
a 1910 como membro do Partido as orações na sinagoga. Sua voz
Conservador, ao mesmo tempo em ainda ecoa em minha memória
que se envolveu nas atividades da quando me sinto triste ou solitário”.
comunidade judaica, com ênfase no
movimento sionista. Ele foi membro Quando Weizmann tinha 11 anos
de diversas sociedades científicas de idade, a família se mudou para a
mundo afora e deixou publicados cidade de Pinsk, perto da fronteira
dezenas de trabalhos nos campos Lord Walter Rothschild com a Ucrânia, que, aos olhos do
da Biologia e da Zoologia. O Barão menino, dava a impressão de uma
Walter Rothschild faleceu no dia 2 grande metrópole. Ali fez o Ensino
de agosto de 1937. As casas naquele fim do mundo Médio e, em seguida, com um
eram todas feitas de madeira, mínimo de dinheiro, foi estudar
Por trás do emitente e do recipiente inclusive as duas sinagogas, a nova e Química na Alemanha, depois na
da Declaração Balfour avultava a a velha. A primeira era frequentada Suíça, e por fim com maior extensão
figura de um homem dotado de pelos mais ricos e a segunda pelos na Inglaterra. Weizmann estava em
qualidades extraordinárias, o futuro mais pobres. O pai de Chaim Berlim, em 1896, quando ele e seus
primeiro Presidente do Estado de costumava rezar na velha, mas às amigos tomaram conhecimento da
Israel, Chaim Weizmann. Ele nasceu vezes era convidado para a nova, publicação de um livro com poucas
no dia 27 de novembro de 1874, onde atuava como chazan (cantor páginas, intitulado “O Estado
numa isolada aldeia chamada Motal, litúrgico). Judeu”, da autoria de um jornalista
hoje na Bielorrússia, cuja população de Viena chamado Theodor Herzl.
constava de 500 famílias cristãs e Em sua autobiografia, Weizmann Anos mais tarde escreveu: “A rigor,
200 famílias judaicas. assim se lembra dos pais: “Minha o livro não continha nenhuma

Lord Arthur Balfour em Jerusalém, em 1925

27 setembro 2017
HISTÓRIA DE ISRAEL

novidade para mim e meu grupo. Depois daquele Congresso,


Mas, o efeito produzido pelo livro Weizmann radicou-se em
foi profundo. Não tanto por suas Londres, de onde se deslocou por
ideias, mas pela personalidade de algum tempo para Genebra com
quem havia escrito aquele texto com a finalidade de completar seu
tamanha audácia, clareza e energia”. doutorado em Química. No regresso
a Londres, em agosto de 1914,
Então com 23 anos de idade, a par de suas intensas atividades
Weizmann não pôde comparecer científicas, empenhou-se junto à
ao Primeiro Congresso Mundial comunidade judaica local para dar
Sionista, na Basiléia, por absoluta estrutura à Federação Sionista da
falta de recursos. Só conheceu Herzl Inglaterra. Foi nessa época que
pessoalmente no ano seguinte, por Sir Herbert Samuel, primeiro Alto ofereceu ao Gabinete britânico,
ocasião do Segundo Congresso, Comissário da Inglaterra na Palestina empenhado no esforço de guerra, um
também na Basiléia: “Havia nele projeto para a produção de acetona
uma grande autenticidade e um em 1901, três anos antes da morte através de fermentação bacteriana,
toque de patético. Achei que se de Herzl, ele entrou em acalorada o que já havia conseguido em
propunha realizar uma tarefa de polêmica com o próprio Herzl pequena escala em seu laboratório.
tremenda magnitude, mas sem um e com os delegados que estavam Perguntaram-lhe se poderia fazer o
preparo adequado. Tinha grande propensos a aceitar a implantação mesmo em grande escala. Aceitou
talento e também ótimas relações. de um estado judeu em Uganda. o desafio e apresentou um plano
Porém, isso não bastava. À medida O projeto agradava aos bem mais para a construção de uma usina.
que melhor o fui conhecendo, em velhos porque assim teriam a Assim, seguindo suas instruções,
sucessivos congressos, meu respeito oportunidade de ver um Estado foram erguidas indústrias de acetona
por ele foi-se confirmando e judeu independente enquanto ainda no Canadá, Inglaterra, França e
aprofundando. Era poderoso em sua vivessem. Weizmann se opôs à Estados Unidos. Essa acetona era
crença de que havia sido designado ideia de Uganda e, a esse respeito, fundamental para que a Inglaterra
pelo destino para realizar sua obra deixou uma frase definitiva: “Não há pudesse incrementar sua fabricação
gigantesca”. No Congresso realizado sionismo sem Sion”. de bombas que não expeliam
fumaça e, portanto, essenciais para
a visão dos militares britânicos
nas batalhas navais. No final da
guerra, Weizmann foi chamado
ao Alto Almirantado, comandado
por Winston Churchill, que lhe
disse: “O senhor fez um trabalho
excepcional para nosso país e
pretendo pedir a Sua Majestade que
lhe conceda uma condecoração”.
Weizmann respondeu: “Não quero
nada para mim, mas gostaria de
pedir algo para o meu povo”. Nos
meses seguintes, Weizmann foi
dando pormenores para Churchill e
outros membros do Gabinete sobre
a sua pretensão que consistia em
obter do governo do Império algum
tipo de manifestação favorável
ao sionismo. E esta acabou se
Major James de Rothschild, filho do “Barão”, cercado de recrutas do
concretizando através da Declaração
40o Batalhão de Artilharia Real Balfour.

28
REVISTA MORASHÁ i 97

Arthur Balfour, Walter Rothschild


e Chaim Weizmann: este foi o tripé
que protagonizou a Declaração
Balfour. Mas, junto com esses
homens, houve mais um, Nahum
Sokolow, hoje injustamente
esquecido, que foi fundamental
para o êxito sionista. Ele nasceu
em 1865, na pequena cidade de
Wiszogrod, Polônia. A seu respeito,
Chaim Weizmann, conhecido por
sua cautela nos elogios, escreveu: Nahum Sokolow com os participantes do 1o Congresso Sionista Mundial
“Foi um sionista notável, um gênio, realizado em Israel, na Herschel Farbstein’s House

extraordinariamente versátil, frio sob


pressão, prolífico de forma espantosa Velha Pátria”. Em 1906, passou a Guerra já estava em curso. Naquele
e incansável trabalhador; só lhe trabalhar na Organização Mundial ano, tendo em vista o envolvimento
fazia duas reservas: era um tanto Sionista. Fundou um semanário em otomano na guerra, os sionistas
desorganizado e, talvez, por demais hebraico chamado Haolam e, sete ficaram mais otimistas. Julgavam
conciliador”. A família de Sokolow anos depois, passou a ter um assento que, caso os turcos fossem derrotados
se mudou, quando ele ainda era no Executivo da Organização. Pelas pelos aliados, aumentaria a chance de
pequeno, para a cidade de Plotzk obrigações desse posto, passou a os judeus reivindicarem a Palestina,
onde, desde cedo, ganhou fama de viajar intensamente por diversos subjugada pelo Império Otomano
criança prodígio. Descendente de países da Europa e chegou a Nova desde o início do século 16.
ilustres rabinos, o jovem frequentou York, em 1913, com a missão de
aulas de uma série de talmudistas agitar a militância sionista. Ali Em maio de 1917, numa iniciativa
e, ao mesmo tempo, dedicou-se fez amizade com o judeu Louis audaciosa, Sokolow consegue marcar
ao estudo de Ciências e idiomas. Brandeis, Juiz da Suprema Corte uma audiência no Vaticano com
Adolescente, sabia escrever em americana, e com Henrietta Szold, o Papa Benedito XV, empossado
hebraico, iídiche, alemão, polonês fundadora do movimento sionista havia apenas três anos. Instado
e inglês. Apesar de ter crescido feminino Hadassah. Foi para Londres por Sokolow, o Papa declarou ver
em ambientes rudes, mantinha no ano seguinte, quando a Primeira com grande simpatia o retorno
sempre uma postura elegante e um dos judeus à Terra Santa e pediu
ar de sofisticação. Isto lhe serviria que respeitassem e protegessem os
no futuro para que viesse a se lugares santos cristãos em Jerusalém.
desincumbir como um verdadeiro No fim da audiência perguntou:
diplomata sionista. “O que posso fazer por vocês”?
Sokolow respondeu: “Queremos
Depois do casamento com Regina nada mais do que o seu apoio
Segal, em 1880, o jovem casal foi moral”. Ao que o Papa aduziu:
para Varsóvia, onde Sokolow passou “Sim, creio que seremos bons
a escrever uma coluna no jornal vizinhos”. De volta a Londres,
Ha-Zefirah, publicado em hebraico, tomou conhecimento de que Lord
no qual assumiria a condição de Balfour havia pedido aos líderes
editor-chefe. Foi nessa função sionistas que lhe dessem por escrito
que cobriu o Primeiro Congresso o que os judeus pretendiam do
Mundial Sionista na Basiléia, governo britânico. Coube, então, a
tendo-se tornado um ardente Sokolow redigir o rascunho do que
admirador de Theodor Herzl. Em viria a ser a futura Declaração, com
seguida, dedicou-se a traduzir para o destaque para o fato de ter cunhado
hebraico o romance de Herzl, “Nova Nahum Sokolow uma expressão que, no decorrer de

29 setembro 2017
HISTÓRIA DE ISRAEL

muitos anos, tornou-se um mantra: Hoje se sabe que na primavera


“lar nacional”. Em fevereiro de europeia de 1916, a Inglaterra, a
1919, já extinta a Primeira Guerra, França e a Rússia assinaram um
Sokolow compareceu à Conferência pacto secreto, que tratava da futura
de Paz, em Versalhes, perto de situação geopolítica do Oriente
Paris, na qual fez uma vigorosa Médio caso o Império Otomano
apresentação da causa sionista. Dois viesse a ser derrotado. Essa
anos depois assumiu a posição oficial negociação foi conduzida por Sir
de representante da Organização Mark Sykes, do lado inglês, e pelo
Sionista Mundial na Liga das diplomata François Georges Picot,
Nações. Nos anos seguintes, foi do lado francês, e daí ter entrado
duas vezes à Palestina e continuou para a história como o Acordo
percorrendo diversos países da Sykes-Picot. O pacto abrangia todo
Europa e novamente viajou para os Zeev Jabotinsky com jovens
o território desde o Mediterrâneo até
Estados Unidos. No 17o Congresso uniformizados do Movimento a fronteira oriental da Rússia, à qual
Juvenil Betar
Sionista, realizado mais uma vez na caberia uma vasta porção da Anatólia
Basiléia, em 1931, por causa de uma Mundial. Coube a Sokolow batalhar oriental. Quanto à Palestina, segundo
inconciliável discórdia entre Chaim de forma frenética junto ao governo o Acordo Sykes-Picot, a parte norte
Weizmann e Vladimir Jabotinsky, a britânico para que as restrições da Galiléia seria dada à França;
presidência da Organização Mundial imigratórias para a Palestina fossem os portos de Haifa e de Acre, à
acabou competindo a Sokolow, atenuadas, o que, em parte, acabou Inglaterra; Jerusalém e Jaffa ficariam
que permaneceu nessa posição até conseguindo. Nahum Sokolow sob supervisão internacional, que,
1935. Seu mandato foi turbulento, morreu em Londres no dia 17 de além dos dois maiores vitoriosos,
em função da crescente perseguição maio de 1936, aos 76 anos de idade, incluiria a Itália e a Rússia. A
nazista aos judeus, e ficou ainda vítima de um ataque cardíaco. À liderança judaica não tinha a menor
mais complicado quando Hitler beira de sua sepultura, no cemitério ideia da existência desse pacto e se o
ascendeu ao poder. Por pressão Willesden, o kadish (oração pelos Acordo viesse a ser implementado,
árabe e a despeito da vigência da mortos) foi recitado por Weizmann corresponderia a um sepultamento
Declaração Balfour, os ingleses com Jabotinsky ao seu lado. Desde de suas aspirações. Para sorte do
fecharam as portas da Palestina meados dos anos 50, a sede da movimento sionista, no fim daquele
para os judeus, uma atitude indigna, Associação dos Jornalistas de Israel, ano, o estadista David Lloyd George
reforçada por outra proibição logo em Tel Aviv, recebeu o nome de Beit assumiu o posto de Primeiro-
depois do início da Segunda Guerra Sokolow. ministro do Império britânico. De
imediato, julgou que o Acordo
Sykes-Picot era generoso demais
com a França, porque as mais árduas
batalhas contra os turcos tinham sido
vencidas pela Inglaterra no Sinai
e na Palestina. Mark Sykes tentou
promover uma revisão do Acordo,
mas esbarrou na intransigência de
Picot, que insistia numa divisão meio
a meio.

Foi durante essa turbulenta


controvérsia que Sykes, por assim
dizer, descobriu o sionismo. Ele foi
ao encontro de Sokolow em Londres
e pediu para conhecer a liderança
Balfour discursando na fundação da Universidade Hebraica. Atrás dele
sionista britânica. O encontro
veem-se Chaim Weizmann e o Rabino-Chefe Avraham Kook foi marcado numa residência

30
REVISTA MORASHÁ i 97

particular, em Londres, à qual


compareceram Nahum Sokolow,
Chaim Weizmann, Lord Walter
Rothschild, James de Rothschild
e Herbert Samuel, que viria a ser,
de 1920 a 1925, Alto Comissário
Para a Palestina, nomeado por
Sua Majestade. Durante a reunião,
Sykes, que tinha excelente trânsito
no Gabinete de Lloyd George,
disse que a Inglaterra de fato
devia acolher a causa sionista, mas
apontou que a posição irredutível
de Picot dificultava qualquer Dr. Chaim Weizmann, chefe da Comissão Sionista na Palestina, explica a
alteração no Acordo e, portanto, seu Declaração Balfour aos habitantes de Rishon-LeTsion
convencimento do contrário deveria
caber aos líderes judeus. Estes os franceses a apoiarem o projeto Weizmann, Yehuda Reinharz, julga
argumentaram que não podiam sionista, como também lhes incutir que a declaração de Cambon é mais
se ocupar de uma tarefa que era a noção de que um protetorado assertiva e mais importante do que
exclusiva do governo da Inglaterra. inglês na Palestina seria a solução a Declaração Balfour, embora a
Finalmente, James de Rothschild, mais adequada para aquela região. primeira tenha sumido da história.
quinto filho do patriarca Amschel e No terceiro encontro, em Paris, O historiador Isaiah Friedman
que também viria a receber o título conheceu Jules Cambon, um dos chega ao ponto de afirmar que sem
de barão, insistiu que a pessoa mais mais destacados diplomatas da a carta de Cambon não haveria a
apropriada para a missão era Nahum França, favorável à causa sionista. Declaração Balfour.
Sokolow. Em seu consistente Sokolow ficou temeroso de lhe
ensaio sobre a Declaração Balfour, insinuar qualquer declaração por Os responsáveis pela Organização
o historiador americano Martin escrito porque o francês poderia Sionista sabiam que a Declaração
Kramer reproduz um texto do julgar que se tratava de um pedido geraria uma série de reações
também historiador inglês Harry exorbitante. Além de Picot, os positivas e negativas. O principal
Sacher: “Por que Sokolow? Porque demais negociadores franceses trabalho dos líderes, naquele
ele era o diplomata do movimento presentes ao encontro demonstraram momento, era obter endossos para
sionista, um diplomata ao estilo do apreço pelas palavras de Sokolow. as palavras de Balfour. O apoio
Quai d’Orsay francês, além do que No tocante à revisão do acordo da França se deveu à atuação de
era um homem de bela aparência, secreto, esta só se concretizou Sokolow junto a Pichon, Ministro
modos aristocráticos, fala delicada, quando a Liga das Nações, anos das Relações Exteriores. Em
palavras cautelosas, ternos bem mais tarde, conferiu à Inglaterra o seguida vieram os apoios do Japão
cortados e charmoso monóculo”. mandato sobre a Palestina. Porém, e da Itália, cujo governo declarou
Sykes concordou e respondeu que àquela altura, o mais importante o seguinte: “É nossa intenção
marcaria um encontro de Sokolow foi a carta assinada por Cambon, facilitar a instalação de um Centro
com Picot o mais rapidamente que Sokolow recebeu no regresso Nacional Judaico na Palestina”.
possível. Não resta dúvida que Sykes a Londres e na qual constava o Os Estados Unidos permaneciam
exerceu influência no gabinete em seguinte último parágrafo: “O reticentes em participar dos debates
favor da causa sionista e pode ser governo francês, que entrou na relativos à Palestina, mas, em agosto
apontado como um dos propulsores atual guerra para defender um povo de 1918, o presidente Woodrow
da Declaração Balfour. injustamente atacado e que continua Wilson endereçou uma carta ao
a luta para assegurar a vitória do rabino Stephen Wise, Presidente
Sokolow e Picot se reuniram três direito sobre a força, pode somente do Conselho Sionista Americano,
vezes, duas em Londres e uma em sentir simpatia por sua causa expressando sua “satisfação pelo
Paris. Sua tarefa estava longe de sionista, cujo triunfo está vinculado progresso do movimento sionista
ser fácil. Ele precisava convencer ao dos aliados”. O biografo de desde a Declaração Balfour”.

31 setembro 2017
HISTÓRIA DE ISRAEL

As controvérsias em torno da existir, tal como rotineiramente


Declaração Balfour permaneceram formulado pelos inimigos do Estado
durante 100 anos e assim chegaram Judeu. É assombroso constatar que
até os dias atuais. O escritor judeu depois de 100 anos da Declaração
Arthur Koestler, comunista e Balfour, um tímido primeiro passo
sionista na juventude, e adversário rumo ao sonho da obtenção de
dessas duas causas na maturidade, um lar nacional judaico, Israel seja
disse que “a Declaração Balfour o único país do planeta, dentre
é um dos documentos mais os 190 espalhados por cinco
improváveis de todos os tempos”. continentes, cujo direito à existência
O famoso advogado americano Sol é questionado.
Linowitz escreveu que a Declaração
era impotente porque, quando foi Primeiro Ministro Netanyahu e esposa
emitida, a Inglaterra não detinha admiram o documento da Declaração
Balfour BIBLIOGRAFIA
poder algum sobre a Palestina.
Sanders, Ronald. “The high walls of
Jerusalem: a history of the Balfour
A professora Galia Golan, da fez o seguinte resumo, há 50 anos: Declaration and the birth of the British
Universidade Hebraica, declarou “A Declaração Balfour foi um Mandate in Palestine”. Reinhart&Wilson,
1984, EUA.
num artigo que a Declaração Balfour dos maiores momentos da arte de
Schneer, Jonathan. “The Balfour
não tinha a grande importância governar no século 20”. A verdade Declaration: the origins of the Arab-Israeli
que lhe era atribuída porque a é que a Declaração não foi um conflict”. Random House, 2010, EUA.
legitimação da causa sionista só ato isolado de um país, no caso a Jeffries, J.M.N. “Paalestine, the reality; the
aconteceu na Assembleia Geral das Inglaterra. A Declaração foi emitida inside story of the Balfour Declaration”.
Nações Unidas, em 1947, quando em meio a uma guerra de proporção Olive Branch Press, 2027, EUA.
esta aprovou a partilha da Palestina. mundial e, portanto, o gabinete Kramer, Martin. “The forgotten truth about
the Balfour Declaration!. Internet, site
Já o ex-chanceler de Israel, Abba britânico não teria permitido sua Mosaic, EUA,2017.
Eban, acentuou que “a Declaração emissão sem o consenso de seus Weizmann, Chaim. “Trial and Error, an
Balfour foi uma decisiva vitória aliados no conflito. O centenário autobiography”. Schoken Books, 1966.
diplomática do povo judeu na da Declaração, a ser celebrado em EUA.
história moderna”. O político e novembro de 2017, decerto vai
jornalista inglês Richard Crossman trazer à tona o direito de Israel ZEVI GHIVELDER é escritor E JORNALISTA

32
CAPA

uma era que se foi:


a Sinagoga de Lancut
A magnífica Sinagoga de Lancut, uma das poucas que se
mantÊm até hoje, é um exemplo das sinagogas de quatro
pilares, com majestosas abóbadas, construídas em todas
as terras da Polônia. A sinagoga representa uma era e uma
história sociopolítica e arquitetônica que, em outras partes,
estão totalmente esquecidas.

I
naugurada em 1761 para substituir a sinagoga O prédio dá uma boa ideia da disposição espacial das
de madeira que fora destruída por um sinagogas que têm a Bimá1 como elemento arquitetônico
incêndio, tem seu prédio em pedra talhada, central, sendo construída com oito nichos em torno da
com 18m por 15m. Foi construída ao lado do mesma, e quatro pilares de pedra maciça que apoiam o
vasto terreno onde ficava a residência de uma teto e o telhado. Os quatro nichos, que ficam nos pontos
família da alta nobreza polonesa, dona da cidade, sob cardeais, possuem abóbadas cilíndricas. A Bimá e seus
cuja égide viviam os judeus. pilares permitem que o prédio tenha uma estrutura com
essas dimensões. Ademais, havia espaço suficiente para
A modesta fachada externa não condiz com o rico circulação ou colocação de assentos na direção norte
décor de seu interior. Uma das características mais e sul da Bimá. O interior é ricamente ornamentado
impressionantes do prédio é seu piso, rebaixado com trabalhos em policromia e estuco, com pinturas de
bem abaixo do nível térreo para contornar as rígidas cenas da Torá, dos Chaguim, dos instrumentos musicais
limitações impostas pela Igreja acerca da altura das mencionados nos Salmos e do Zodíaco, executados por
sinagogas. O espaço para as mulheres era acima da artistas judeus poloneses.
entrada e o acesso a essa galeria era feito através
de uma escada externa. Após descer vários degraus A história da comunidade judaica de Lancut teve seu
da entrada, pode-se ver um salão de orações, com início no século 16 quando um número pequeno de
extrema luminosidade. Provavelmente os judeus de judeus lá se estabeleceram, mas a existência de uma
Lancut se sentiam tão seguros da proteção dos nobres Kehilá – uma comunidade judaica organizada – foi
proprietários das terras que se permitiam ter janelas mencionada pela primeira vez em 1563.
mais amplas que o usual.
A cidade teve seu real esplendor no século 17 quando
1
Bimá, a plataforma elevada utilizada para a leitura da Torá o Duque Stanisław Lubomirski se tornou seu
durante os serviços religiosos. Na antiguidade era feita de pedra,
mas atualmente é uma plataforma retangular ou redonda de proprietário. Lubomirski contratou um judeu para fazer
madeira à qual se acede através de poucos degraus. a contabilidade de sua propriedade e estendeu aos judeus

33 SETEMBRO 2017
CAPA

da cidade inúmeros privilégios. formato barroco é, até hoje, uma Após 1760, Lancut se torna um
Entre estes, dedicar-se ao comércio das mais magníficas sinagogas da importante centro do Movimento
– com exceção do comércio de Polônia. O único registro do seu Chassídico e os Chassidim passam
peles – e a vários ofícios, assim como interior original é uma aquarela a ser a força dominante na vida
comprar terras e construir casas pintada após 1786 pelo paisagista religiosa da comunidade. A pequena
na cidade. O número de judeus polonês Zygmunt Vogel (que usava sala de orações da Sinagoga era
que lá viviam começa a aumentar, o pseudônimo de Ptashek; 1764- usada como Corte Rabínica e ponto
chegando a mais de 100 em 1662. 1826). A sinagoga foi restaurada em de encontro para os judeus da cidade
Antes de 1648 havia uma sinagoga 1896 e redecorada em 1909-10. e inúmeros Mestres Chassídicos. No
de madeira e a primeira referência final do século 18, residia em Lancut
a um cemitério judeu data de 1671. Rabi Yaacov-Yitzhak Horowitz,
No século 18 a comunidade já tinha conhecido como o Chozé de Lublin,
sua própria escola, uma mikvê, um o Vidente de Lublin. Um dos mais
local de orações e um hospital. importantes Tzadikim ( Justos)
na história do Chassidismo, Rabi
Em 1716, houve um incêndio na Yaacov-Yitzhak Horowitz, tinha
pequena sinagoga de madeira da uma sala separada na sinagoga,
comunidade, que foi reconstruída, onde fazia suas orações, estudava
mas voltou a pegar fogo. Em 1726, a e ensinava. Rabi Yaacov-Yitzhak
Kehilá decidiu empreender esforços Horowitz acabou mudando-se para
para erguer uma nova sinagoga Czechów e, de lá, em 1784, para
de alvenaria, porém, o projeto era Lublin.
custoso e acabou sendo em grande
parte financiado pelo Duque Após a primeira partilha da Polônia
Stanisław. A nova estrutura em (1772), Lancut passa a ser território

34
REVISTA MORASHÁ i 97

da Áustria, o que, no entanto,


não impediu o crescimento da
comunidade judaica. Em 1870, mais
de mil judeus viviam na cidade,
representando 41% da população
geral. Em 1880, já eram 45 %.
O período entre guerras (1918-
1939) testemunhou um rápido
crescimento da comunidade e de
suas instituições educacionais e
culturais. Em 1921, havia 1.925
judeus na cidade (cerca de 42% da
população total) e 2.753, em 1939.

A cidade foi tomada pelos alemães na cidade, a Prefeitura propôs que se


em 9 de setembro de 1939, e eles destruísse o prédio, mas o
incendiaram a sinagoga – a galeria Dr. Stanislaw Balici persuadiu a
das mulheres, em madeira, assim Câmara de Vereadores a preservar
como as estruturas da janelas e o o prédio como museu e memorial
mobiliário foram destruídos. da comunidade judaica destruída.
O incêndio só foi dominado após a A sinagoga foi reformada em
intercessão de Alfred Potocki, que meados do século 20, passando
fez um apelo às autoridades alemãs. por novas reformas em 1983 e em
A família Potocki era proprietária de 1990. Desde 2009, é propriedade
Lancut desde 1816. de 1942, a maioria dos judeus de da Fundação para a Preservação da
Lancut foram deportados, e os que Herança Judaica na Polônia.
Assim que os nazistas entraram na ainda lá viviam foram levados para
cidade, a maioria dos judeus foram o gueto de Szeniawa, em 17 de Um dos projetos mais importantes
expulsos, grande parte dos quais setembro. Em maio do ano seguinte da Fundação é a “Rota Chassídica”,
para território soviético. No início o gueto de Szeniawa era liquidado. uma rota turística que segue os
de 1940, eram apenas cerca de 900 vestígios das comunidades judaicas
os judeus da cidade. No final do Durante a ocupação nazista e por pelo sudeste da Polônia e oeste
ano, com a chegada dos refugiados alguns anos após a guerra, a sinagoga da Ucrânia. Essa rota inclui a
expulsos de Cracóvia, esse número foi usada para armazenar grãos. Em sinagoga de Lancut e as de Kraśnik,
chegou a 1.300. Em 1º de agosto 1956, não havendo judeus residentes Rymanów e Zamość.

CASTELO DE LANCUT, CIDADE POLONESA CUJA POPULAÇÃO JUDAICA FOI DEPORTADA EM 1942

35 SETEMBRO 2017
ARTE

Em Bezalel nasce
a nova arte israelense
“Então o Senhor disse a Moshé: ‘ Veja, Eu escolhi Bezalel, o
filho de Uri, da tribo de Judá, e Eu o preenchi com o Espírito de
D’us, com sabedoria, compreensão, conhecimento e todas as
ferramentas humanas... para desenvolver todas
as modalidades de arte” (Êxodo 31: 1-5).

E
m 1906, em um edifício alugado na Rua em computação, a Bezalel possui um corpo docente
Abissínia, no centro de Jerusalém, a Escola composto por artistas talentosos. Responsável pela
Bezalel de Artes e Ofícios (Bezalel School formação de centenas de artistas israelenses consagrados,
of Arts and Crafts) iniciava suas atividades, a Escola se tornou o epicentro na vanguarda do cenário
constituindo mais uma das instituições artístico israelense, sendo instrumento essencial na
israelenses criadas antes da fundação do Estado Judeu, formação da identidade cultural nacional.
em 1948. A primeira exclusivamente voltada ao
universo artístico, tornou-se realidade graças à visão e Primeiras influências
determinação de Boris Schatz, escultor e pintor lituano
que morreu em 1932 sem conhecer o sucesso que “sua” Boris Schatz nasceu na cidade de Vorno (atual Lituânia),
instituição alcançara. Começando com um pequeno em 1867. Viveu em Sofia entre 1895 e 1905, onde foi
número de professores e alunos – 30, apenas – a Escola um dos fundadores da Academia de Arte Búlgara, criada
Bezalel cresceu e se desenvolveu tornando-se a mais com o objetivo de desenvolver um senso de unidade e
importante academia de arte em Israel, e uma das mais identidade nacional. Estes objetivos seriam alcançados
prestigiadas do mundo. Na mesma data, foi também através da incorporação de imagens e elementos oriundos
criado o Museu de Arte Bezalel, precursor do Museu de das tradições folclóricas búlgaras e sua integração
Israel, um dos mais importantes do país. com novas tendências artísticas e culturais europeias.
O sucesso e a experiência obtidos nessa empreitada
Uma das principais características da instituição tem contribuíram para fortalecer seu ideal de realizar um
sido sua capacidade de se adaptar às mudanças culturais projeto semelhante em Jerusalém – um centro para a
decorrentes dos vários fluxos imigratórios ao longo nova arte da Terra de Israel que poderia atrair artistas e
da história de Israel e, hoje, aos 110 anos, a Escola estudantes judeus de todo o mundo.
Bezalel é sinônimo de inovação e excelência acadêmica
no país e no exterior. Combinando o conhecimento Manifestações abertamente antissemitas, como o Caso
artístico tradicional com as mais modernas tecnologias Dreyfus na França, em 1894, e os pogroms de Kishinev,

36
REVISTA MORASHÁ i 97

PÁTIO DA ACADEMIA BEZALEL, VENDO-SE boris schatZ, DE PALETÓ ESCURO E CALÇA BRANCA, EM PRIMEIRO PLANO, OLHANDO PARA A MAQUINA

em 1903-1905, aproximaram por ele em homenagem a Bezalel Desde o início, a instituição atraiu
Schatz do Sionismo. Para ele, o Ben Uri, primeiro artesão judeu jovens judeus de todo o mundo
fato mais importante da época foi mencionado na Torá e escolhido por e de todas as regiões da então
o surgimento do mesmo como D’us para supervisionar o projeto e a Palestina. As criações dos primeiros
movimento político, com o objetivo construção do Tabernáculo. professores e alunos, no início dos
central de reconstrução de um Lar anos 1900, são consideradas o ponto
Nacional Judaico e a possibilidade de partida para a trajetória das artes
de se criar uma nova cultura judaica visuais israelenses ao longo de todo
em Eretz Israel. Decidiu, então, o século 20.
apresentar sua ideia a Theodor
Herzl, em 1903. Os debates sobre Os artistas formados pela Escola
qual seria a essência da nova cultura sempre tiveram liberdade para
em Eretz Israel estavam na agenda desenvolver sua imaginação e
das reuniões do Congresso Sionista e fundir diferentes estilos em um
Schatz viu seu plano de implantação mesmo trabalho, combinando
de uma escola de artes em Jerusalém temas e figuras de períodos e
ser aprovado, no Congresso Sionista contextos diversos. A combinação
de 1905. de diferentes técnicas, materiais e
dimensões com a fusão de estilos
Para concretizar seu sonho, Schatz antigos e modernos deu origem a
emigrou para Israel em 1906, uma arte singular e heterogênea.
com um grupo de professores e
estudantes, começando a trabalhar O contexto da Terra de Israel
em Jerusalém. Assim nascia a Escola Schatz, em uma exposição dos
de então permitiu às primeiras
de Artes Bezalel, nome escolhido trabalhos da escola bezalel. lvov, 1910 gerações de alunos e professores

37 SETEMBRO 2017
ARTE

departamento de gravura em madeira, c. 1910

embarcar, por um lado, em novas escola de arte, um complexo para Eisenberg, Jacob Pins, Jacob
aventuras explorando todas as seminários e um museu. Na época Steinhardt e Hermann Struck
suas possibilidades e influências da abertura, a escola e o museu são alguns dos estudantes que se
– local, oriental, exótico e bíblico. funcionavam em dois edifícios na destacaram no cenário artístico do
E, pelo outro, acompanhar a esquina das ruas Bezalel e Shmuel país. Marousia (Miriam) Nissenholt,
estética ocidental, seus valores e a HaNagid. As aulas e os ateliês eram que usava o pseudônimo de Chad
demanda dos mercados. Cores ricas, realizados nos vários departamentos Gadya, era, em 1912, a única mulher
diversidade de formas e materiais, da Escola, divididos de acordo com na Bezalel.
um estilo eclético e um senso de as técnicas e materiais utilizados.
alegria na criação caracterizaram a Obras especiais eram desenvolvidas Os primeiros anos, de 1906 até 1914,
produção de Bezalel, dando-lhe um em conjuntos pelos vários às vésperas da 1a Guerra Mundial,
charme singular. departamentos. foram marcados pelo sucesso: a cada
ano abriam-se novos departamentos
Primeiros anos Na época, além de escultura e e novas tendências artísticas
pintura tradicionais, a Escola eram introduzidas. O número de
Para Schatz, a Escola seria o berço oferecia ateliês onde foram estudantes e professores aumentava
da criação de um estilo de arte que produzidos objetos decorativos em anualmente e seus trabalhos eram
conciliaria a arte clássica judaica prata, couro, latão e tecido. Muitos expostos na região e no exterior.
com as tradições artísticas do dos artesãos eram membros da Como vimos acima, o tema central
Oriente Médio e da Europa. Como comunidade judaica iemenita, que das obras produzidas era a vida na
vimos acima, a primeira sede da mantinham a tradição de trabalhar Terra de Israel. Utilizando uma
Escola foi um edifício alugado na metais preciosos como a prata. ampla gama de materiais – prata,
Rua Abissínia. Mas, já em 1907, A ourivesaria era uma profissão cobre, bronze, marfim, madeira
se mudava para um complexo de tradicional e comum entre os judeus e terracota, entre outros, criaram
edifícios, cercados por um muro no Iêmen. Esta comunidade e seus placas e objetivos decorativos,
de pedras, comprados pelo Fundo hábitos, portanto, eram tema muito filigranas, relevos e objetos
Nacional Judaico (Keren Kaiemet comum nos trabalhos artísticos cerimoniais, combinando a arte
LeIsrael). Nesse campus ele viveu produzidos. oriental e ocidental. Os primeiros
com sua esposa e filhos. trabalhos refletem o empenho em
Meir Gur Aryeh, Ze’ev Raban, criar obras que representassem a
Desde a sua fundação, a Escola Shmuel Ben David, Ya’ackov Terra de Israel e seus vínculos com
estava dividida em três setores: uma Ben-Dov, Zeev Ben-Zvi, Jacob o povo judeu. São essas obras que

38
REVISTA MORASHÁ i 97

fizeram parte da exposição “Crafting “O Museu já funciona como para reabrir a Escola e assumir sua
a Vision: The Bezalel School” (Criando ferramenta de aprendizagem para direção. A nova Escola de Artes
uma Visão: A Escola Bezalel). a Escola Bezalel e seus seminários e Ofícios Bezalel reabre em 1935,
artísticos... Desejamos reunir em atraindo professores e estudantes
Tempos difíceis um único lugar toda a criação da judeus alemães, muitos vindos da
genialidade do Povo Judeu, local esse Escola Bauhaus, na Alemanha, que
A instituição dependia do onde preservaremos esse acervo...” fora fechada pelos nazistas. Com
Conselho de Diretores sediado em o nome de Nova Escola de Artes
Berlim, e isso era um problema, Mas a Grande Depressão que e Ofícios Bezalel, a instituição
pois eles viviam em conflito atingiu o mundo ocidental, em 1929, passa por várias mudanças,
constante com Schatz em relação e a consequente redução, cada vez adotando objetivos e métodos que
à forma de administrar a Escola e, maior, de recursos vindos do exterior se distanciam das metas iniciais.
principalmente, à questão do tipo de levaram ao fechamento da Escola. Budko contratou Jakob Steinhardt
arte que devia ser desenvolvido. Em Schatz, no entanto, não desistiu e, e Mordechai Ardon para lecionar e
função dessas disputas, em 1915, as mesmo doente, visitou várias cidades ambos ocuparam a direção após seu
verbas de Berlim foram suspensas. norte-americanas em busca de afastamento.
Embora a importância da Escola auxílio financeiro. Mas, em março
Bezalel fosse reconhecida e, apesar de 1932, ainda nos Estados Unidos Após a fundação do Estado de
do apoio das associações de amigos e sem ter conseguido seu objetivo, Israel, em 1948, o tema da formação
em Hamburgo, Praga e Varsóvia, faleceu aos 65 anos em um hospital artística entrou na agenda nacional
a maior parte da responsabilidade em Denver, Colorado. e a Escola passa a ser vista como
recaía sobre Schatz. um elemento fundamental para
Depois que Hitler subiu ao poder, a expansão do ensino das artes
Os últimos anos, de 1917 a 1929, na Alemanha, o Conselho de plásticas, no país. Em 1958, a
quando a então Palestina estava Diretores pediu a Josef Budko, instituição recebeu o Prêmio Israel
sob Mandato Britânico, que fugira da Alemanha em 1933, para Pintura e Escultura, sendo
foram instáveis. Schatz lutou a primeira vez em que a láurea
incansavelmente, procurando foi outorgada a uma instituição.
desenvolver atividades que Em 1968, a maioria de seus
impedissem o fechamento da departamentos são transferidos para
Escola, pedindo apoio e suporte a área da Universidade Hebraica
financeiro aos judeus da Diáspora. de Jerusalém, no Monte Scopus
Sem perder a confiança, deu início e, em 1969, seu nome muda para
a uma série de iniciativas para Academia de Artes e Design
arrecadar fundos, entre as quais, a Bezalel, quando passa a receber
realização de novas exposições nos suporte financeiro do governo.
Estados Unidos dos trabalhos Em 1975, foi reconhecida pelo
dos alunos e professores, e Conselho para Educação Superior
a edição de livros de luxo e de Israel como um instituto de
álbuns, além de incentivar uma educação de nível superior.
nova tendência na Terra de
Israel – a pintura de tijolos de Temas, símbolos e
cerâmica, então muito usados personagens
para decorar as casas de Tel Aviv.
Os temas inicialmente presentes
Apesar das dificuldades, em 1925 nas ilustrações e objetos decorativos
foi aprovada pelas autoridades nos trabalhos da Bezalel eram
do Mandato a abertura do Museu baseados na visão de Schatz e em
Nacional Bezalel – precursor do sua tentativa de criar um “novo
Museu de Israel. Antes da abertura, estilo judaico” que combinasse o
foi publicado o seguinte anúncio: glorioso passado bíblico com o

39 SETEMBRO 2017
ARTE

1 2 3

1. monumental pia em cobre e latão, jerusalém, c. 1910. 2. Castiçal de parede, metal fundido e decorado em repuxado,
Jerusalém, c. 1920 3. capa de livro em prata répoussé e filigrana, com pedras semi-preciosas, 1924

ideal sionista de retorno à Terra de A representação dos locais industrializados eram erroneamente
Israel. Heróis bíblicos, líderes do sagrados – Torre de David, Muro confundidos com objetos criados
movimento sionista, como Joseph das Lamentações, símbolos de pelos artistas da Bezalel.
Trumpeldor, eram retratados ao Jerusalém, assim como o Túmulo
lado de personagens do dia-a-dia de Raquel e o Monte Sinai, eram A atual Escola
de Jerusalém nas obras dos seus imagens também muito presentes Bezalel
artistas. Inicialmente, os heróis na produção artística da Terra de
bíblicos eram representados trajando Israel no século 19. Os artistas da Sendo a mais antiga escola de
o vestuário dos judeus iemenitas, Bezalel passam a incluir as paisagens artes do país de nível superior, a
persas e curdos, ou como os árabes que os cercavam e locais como Tel Escola Bezalel conta atualmente
de Jerusalém à época, que serviam Hai, Tel Aviv, Yaffo, Tiberíades, a com mais de dois mil alunos nos
de modelo para os pintores da Universidade Hebraica de Jerusalém vários cursos de graduação, entre
Bezalel. Muitos personagens e cenas dos recém-criados kibutzim outros de Belas Artes, Arquitetura,
eram retratados como exemplo do e moshavim. Na visão artística de Comunicação Visual, Política e
“distante espírito do Oriente”, tão Schatz, os edifícios da própria Teoria das Artes, e Design, em
em moda entre os artistas europeus instituição também serviam de várias modalidades. Atualmente, seu
no início do século 20. modelo, ocupando um status similar campus está localizado no Monte
aos locais sagrados. Scopus, na área da Universidade
As inscrições, no estilo da Art Hebraica de Jerusalém, com exceção
Nouveau ou com arabescos, estão Nos primeiros anos, a produção do Departamento de Arquitetura,
quase sempre presentes nas obras, artística da instituição transforma- que ainda funciona no edifício
algumas vezes como parte central da se em souvenirs, rapidamente histórico no centro da cidade. Seu
decoração, outras ao lado de outros imitados pela indústria de ambiente artístico, cursos, exposições
elementos, ou como legenda de uma lembranças da Terra Santa. Em e seminários têm contribuído
ilustração. Era grande o interesse pouco tempo, artistas e artesãos fortemente para o desenvolvimento
pelo alfabeto hebraico, nos primeiros judeus, muçulmanos e cristãos em espiritual e cultural de Israel.
anos, daí a criação de novas fontes, Jerusalém e Bethlehem começam
experimentos com símbolos e a a criar objetos decorativos com os No decorrer dos anos, os artistas da
combinação de diferentes tipos de mesmos temas. As matérias-primas Bezalel empenharam-se em “criar um
letras hebraicas com o uso de letras usadas incluíam madeira de oliveira, estilo próprio da arte judaica” para a
duplas para criar novas formas, madrepérola, flores secas e também nova nação, retratando temas bíblicos
muitas vezes distantes da palavra betume, conhecido como “pedra e sionistas em um estilo influenciado
original e de seu significado. do Mar Morto”. Tais produtos pelo Jugendstil (Art Nouveau na

40
REVISTA MORASHÁ i 97

Alemanha e Áustria) e a arte persa


e síria tradicionais. O resultado foi
o desenvolvimento de um estilo
próprio, conhecido como a Escola de
Bezalel.

Em junho de 2013 o executivo da


Bezalel anunciou o recebimento
da doação de US$ 25 milhões da
Fundação Jack, Joseph e Morton
Mandel, de Cleveland (Ohio), para o
início da construção do novo campus
da instituição. Com inauguração
prevista para este ano de 2017,
as novas instalações da academia placa em marfim, retratando fiéis em tishá be’av, boris schatz. jerusalém, c. 1925
terão aproximadamente 39 mil m2
e serão executadas pelo escritório
de arquitetura japonês SANAA em – afirmou: “Schatz foi um milhares de artistas que a instituição
parceria com a Nir-Kutz Architects, visionário cujo objetivo era criar, preparou para a vida profissional,
de Israel, vencedores de uma em Jerusalém, um centro cultural nem vivenciou a florescente cultura
concorrência internacional. Em 2015 para o nascimento de uma nova israelense de nossos dias”.
foi colocada a pedra fundamental arte hebraica. (...) Fundada em
para início da construção. 1906, a Academia Bezalel atraiu
estudantes de perto e de longe,
O novo campus no Complexo dos assentamentos sionistas e da BIBLIOGRAFIA

Russo1 foi uma escolha conjunta Diáspora judaica, e continua, até os Early Israeli Arts and Crafts – Bezalel
dias de hoje, a promover o legado e Treasures from the Alan B. Slifka, Collection
do governo de Israel, Prefeitura de in the Israel Museum
Jerusalém e Academia Bezalel, por as crenças de Schatz... Infelizmente,
www.bezalel.ac.il/en/
suas características multiculturais seu fundador não viu o grande
The Bezalel artistic legacy flourishes in
que integram a instituição ao sucesso de sua Bezalel, tampouco Jerusalem, publicado no www.timesofisrael,
ambiente singular e vibrante urbano, viu o Museu de Israel ou os em 22 de novembro de 2014
além de revitalizar a área central
da cidade e atrair as gerações mais
jovens.

Na abertura do evento que marcou


o centenário da instituição, Yigal
Zalmano, curador-chefe do
Museu de Israel e da exposição
comemorativa da data – “Boris
Schatz: Pai da Arte Israelense”

1
Complexo Russo, em hebraico “Migrash
ha-Russim”, é um dos bairros mais
antigos de Jerusalém, fora da Cidade
Velha, do qual fazem parte uma
igreja ortodoxa russa, um hospital e
antigos abrigos de peregrinos, alguns
dos quais são usados como edifícios
governamentais de Israel e o Museu
dos Prisioneiros dos Movimentos
Underground (Haganá, Lehi e Irgun).

41 SETEMBRO 2017
HISTÓRIA

Judiarias portuguesas:
um reencontro com o passado

Portugal está-se reconciliando com seu passado judaico.


Os primeiros passos nessa direção foram dados em 1989, quando
Mário Soares, então presidente da República, pediu perdão,
simbolicamente, pelas perseguições que os judeus sofreram
no país durante os mais de 300 anos de existência do Tribunal
da Inquisição e quase 500 desde o Decreto de Expulsão da
população judaica, de 1496, assinado pelo então rei D. Manuel I.

E
m dezembro de 1996, no Parlamento, em 31 de março de 1821. Durante 285 anos, perseguiu e
durante a Sessão Evocativa desse decreto, condenou aqueles considerados “hereges”, um termo que
foi votada, por unanimidade, a sua acabou incluindo seguidores de outras religiões que não a
revogação simbólica. Virava-se, assim, católica, tendo jurisdição sobre todas as colônias do país.
uma página no relacionamento mútuo e
se iniciava um processo contínuo de reconhecimento Dentro dessa perspectiva de reconciliação, em março
e reconstrução da presença judaica e sua influência no de 2011 foi lançada a Rede de Judiarias de Portugal -
país. No ano 2000, o então cardeal-patriarca de Lisboa, Rotas de Sefarad, uma iniciativa do governo em parceria
Dom José Policarpo, fez o mesmo pedido de perdão com o setor privado, cujo objetivo é a preservação
aos judeus. do patrimônio urbanístico, arquitetônico, histórico e
cultural da herança judaica no país, visando implementar,
Uma “Estrela de David” localizada em frente à Igreja de também, o turismo. Com sede em Belmonte, a Rede
São Domingo, na Praça do Rossio, em Lisboa, chama a congrega 37 municípios, incluindo Lisboa e Porto.
atenção por sua inscrição: “Em memória dos milhares
de judeus, vítimas da intolerância e do fanatismo Mais um fato que reforça a nova postura das autoridades
religioso, assassinados no massacre iniciado em 19 de data de fevereiro de 2015, quando foram aprovadas novas
abril de 1506, neste largo”. O memorial foi inaugurado regras que alteraram o Regulamento da Nacionalidade
em 2008 para lembrar uma das mais trágicas páginas Portuguesa, permitindo a concessão da nacionalidade aos
da história dos judeus em Portugal: o assassinato de descendentes de judeus sefaraditas expulsos. Ao anunciar
mais de dois mil “cristãos-novos” – judeus convertidos a medida, a então ministra da Justiça, Paula Teixeira da
à força, em 1497, por uma ordem real. Durante três Cruz, afirmou que a nova lei era o “reconhecimento de
dias – o massacre começou no domingo de Páscoa um direito”.
– frades dominicanos incitaram ataques aos cristãos-
novos. É importante lembrar que o Tribunal do Santo O decreto foi promulgado pelo então presidente Anibal
Ofício, implantado em Portugal em 1536, foi extinto Cavaco Silva, publicado no Diário da República de

46
REVISTA MORASHÁ i 97

lisboa, bairro do rossio

27 de fevereiro de 2015, entrando em do Museu Judaico, no Largo de São As Judiarias


vigor em 1º de março. Atualmente, Miguel, bairro da Alfama,
cerca de três mil judeus vivem em local que abrigou a mais importante Não há consenso sobre a data
Portugal. Lisboa, Porto e Belmonte comunidade da Lisboa Medieval, na qual os judeus chegaram
são as cidades que concentram maior que chegou a ter três judiarias. em Portugal. Segundo alguns
população judaica, sendo que a maior historiadores, vieram com
sinagoga da Península Ibérica está A atual sinagoga “Shaare Tivká” os primeiros fenícios pelo
instalada no Porto. foi inaugurada em 1904, sendo, Mediterrâneo, no tempo do Rei
atualmente, a sede da Comunidade Salomão. No entanto, as primeiras
De 20 de março a 29 de abril deste Israelita de Lisboa. Durante a referências documentais estão
ano, o Arquivo Nacional da Torre 2ª Guerra Mundial, a capital datadas do século 12, quando
do Tombo, em Lisboa, sediou a portuguesa foi refúgio de milhares precisavam de uma autorização
exposição “Heranças e Vivências de judeus que fugiam do nazismo. emitida pelo bispo do Porto para lá
Judaicas em Portugal”, organizada se instalar.
pela Rede de Judiarias. A partir de
maio, a mostra foi levada a todas as O período entre os séculos 12 e 16
cidades e povoados que integram a foi testemunha da forte presença
Rede, começando por Bragança, na judaica no país. Até final do século
região de Trás-os-Montes, no norte 14 não havia por parte dos monarcas
de Portugal. portugueses a preocupação em
separar geograficamente os cristãos
Mais um fato que confirma o resgate dos judeus. No entanto, a partir
da história da presença judaica no dessa data, nas cidades e vilas
país é a construção e inauguração memorial no rossio ao “massacre
medievais de Portugal, os judeus
nos próximos meses, em Lisboa, de lisboa”, 1506 tornaram-se obrigados a viver em

47 SETEMBRO 2017
HISTÓRIA

as ruas Direita e Fonte da Rosa se


pode ver nos umbrais marcas na
pedra, geralmente pequenas cruzes,
indicando que ali vivia um cristão
novo. Tais casas eram chamadas
“Casas das cruzes”.

Somente em 1989, após um


processo de conversão, os anussim de
Belmonte retornaram efetivamente
ao judaísmo. Importante ressaltar
que, diferentemente de outros
anussim, os conversos de Belmonte
PINTURA DE ROQUE GAMEIRO, REPRESENTANDO A EXPULSÃO DOS JUDEUS DE LISBOA EM
OUTURO DE 1497
tinham comprovadamente casado
entre si durante centenas de anos.
áreas determinadas pela realeza, que história singular. Em 1497, ao Sua volta ao judaísmo foi realizada
passaram a ser conhecidas como recusar-se a sair do reino, tornaram- sob os cuidados do Grão-Rabino
“judiarias”. O objetivo era evitar a se conversos, anussim. Vivendo de Israel, o Rishon Letsiyon Rav
“influência” judaica sobre os cristãos. isolados no povoado, secretamente Mordechai Eliyahu ZT ’L’.
Nelas eles construíam suas casas, se mantiveram fieis ao judaísmo
sinagogas, açougues e procuravam durante mais de cinco séculos. Nessa ocasião foi fundada,
manter suas tradições. A judiaria estendia-se entre as atuais oficialmente, a Comunidade
ruas da Fonte da Rosa e Direita. Judaica de Belmonte. Em 1996, foi
Inúmeras comunidades viram sua O estilo de vida judaica em inaugurada a Sinagoga Beth Eliahu.
população aumentar, a partir de Belmonte e em outras judiarias Um projeto do arquiteto Neves
1492, com o Édito de Expulsão da refletiu-se na arquitetura das Dias, tem nas portas imagens da
Espanha. A maioria dos judeus que residências da comunidade. De Estrela de David, de uma menorá, e
decidiram que era melhor deixar a modo geral, no térreo estava a inscrições em hebraico. Um rabino
Espanha do que se converter foram oficina ou a loja e, no primeiro costuma ir à cidade para a celebração
para Portugal. Tanto eles quanto andar, a moradia, razão pela qual das festas judaicas. Em 2001, foi
mais tarde os conversos que queriam as casas possuíam duas portas com inaugurado o cemitério judaico e, em
fugir do Tribunal da Inquisição acessos separados para cada um 2005, na Rua da Portela, o Museu
espanhol entraram em terras dos andares. As portas e janelas Judaico – atualmente em obras –
portuguesas pelo norte do país. As eram assimétricas. Ao percorrer cujo acervo conta a história dos
judiarias mais importantes estavam
nessa região. Em cidades como
Guarda, Trancoso, Castelo Rodrigo,
Celorico da Beira, Almeida, Foz
Côa, Pinhel, Linhares e Belmonte
muitas casas ainda guardam marcas
e símbolos nos umbrais e janelas,
indicando que ali, um dia, viveram
judeus. Porto, Coimbra, Castelo
de Vide, Tomar e Lisboa também
tiveram suas judiarias, cujos
resquícios ainda podem ser vistos.

Belmonte

Os judeus de Belmonte – terra de


Pedro Álvares Cabral – têm uma Sinagoga Beth Eliahu, belmonte museu judaico, belmonte

48
REVISTA MORASHÁ i 97

judeus portugueses, sua integração


na sociedade medieval, os rituais e
costumes das comunidades. Mais
um fato importante foi a abertura
do primeiro hotel casher de Portugal,
o Belmonte Sinai Hotel, em um
antigo edifício totalmente restaurado
no centro da cidade.

Porto

A história da comunidade judaica no


Porto mescla-se à da própria cidade,
mas atualmente há poucos vestígios
sinagoga kadoorie haim, porto
marcantes do passado judaico. No
entanto, é no Porto que está situada
a maior sinagoga da Península toda a vida comunitária. Sua (a Oeste e Noroeste) e a Rua dos
Ibérica – a Sinagoga Kadoorie Haim, existência é comprovada por uma Caldeireiros (ao Leste).
inaugurada, em 1938, a poucos inscrição encontrada, no século 19,
metros do Colégio Alemão. Foi na parede ocidental das ruínas da O rei D. João I, ao passar pela
assim denominada em homenagem capela do Convento de Monchique. cidade, em 1386, determinou que
à família Kadoorie, natural de O texto faz alusão ao rabino-mor do todos os judeus morassem em uma
Hong Kong, cujos antepassados rei D. Fernando – D. Yehudah ben mesma região, dentro das muralhas.
eram judeus portugueses e foi a Maner (ou D. Yehudah ben Moise Na mesma época, surgiam guetos
responsável pela doação que permitiu Navarro ) – e ao responsável pela em toda a Europa. Segundo as
a finalização da obra. A sinagoga obra, possivelmente o então rabino determinações reais, os judeus não
inclui um museu, uma mikvê, salas de do Porto, D. Joseph ibn Arieh (ou D. poderiam sair, nem cristãos entrar, à
estudos e biblioteca. Joseph ben-Abasis). noite. Os limites da judiaria foram
marcados por altos muros e dois
A cidade teve três judiarias: a No fim do século 14 foi criada a portões de ferro maciço, enfeitados
Judiaria Velha, a Judiaria de Judiaria de Olival, que ocupava cerca por símbolos judaicos – um ao
Monchique e a Judiaria de Nova de 4% da área total da cidade na Norte, o Portão Olival, e outro ao
Olival. Historiadores acreditam, época e ficava entre as atuais Rua de Sul, voltado para as atuais Escadas
pelos indícios encontrados, que Belomente (ao Sul), Rua das Taipas da Vitória, chamadas na época de
Porto chegou a ter quatro sinagogas. Escadas da Esnoga (palavra ainda
A Judiaria Velha localizava-se dentro hoje usada para indicar “sinagoga”
da Muralha Primitiva, no Morro da entre judeus de origem marroquina,
Pena Ventosa ou da Sé. Há indícios muito provavelmente oriundos de
da existência de duas sinagogas Portugal).
nessa área, uma na chamada Rua
da Sinagoga, antiga Rua das Aldas Em 1492, 30 famílias espanholas
e atual Rua da Sant’Ana; e outra, ilustres, lideradas por Rabi Isaac
datada do século 14, na Rua da Aboab II, instalaram-se na
Munhata, ou Minhota, atual Rua do Judiaria Olival por ordem do rei
Comércio do Porto, que funcionava D. João II. Posteriormente, muitas
na loja de um marinheiro judeu. outras famílias vindas da Espanha
encontraram abrigo em terras
A Judiaria de Monchique, localizada portuguesas. Na época
fora da muralha da antiga cidade, era da promulgação do Édito de
a mais importante do Velho Porto Expulsão de Portugal assinado
e arredores. A sinagoga centralizava por D. Manuel I, os judeus

49 SETEMBRO 2017
HISTÓRIA

Tomar

Tomar é considerada uma relíquia


da época dos Templários. Foi
ali que a famosa Ordem dos
Cavalheiros Templários construiu
seu quartel general, enquanto uma
próspera comunidade judaica se
desenvolvia entre os séculos 14
e 15. A judiaria cresceu ao longo
da Rua Dr. Joaquim Jacinto e a
sinagoga daquela época sobreviveu
durante séculos. Atualmente
sedia o Museu Abraham Zacuto,
castelo de vide
declarado monumento nacional
em 1921.
representavam cerca de um quinto A judiaria ainda mantém alguns Ali estão expostos fragmentos
da população do país. elementos característicos do de colunas, textos, documentos e
No Porto, em 2005, por trás de passado: as portas em arcos, tanto objetos relacionados aos diversos
uma parede falsa, no número 9 da para moradias quanto para oficinas aspectos da vida judaica de então.
Rua São Miguel foi descoberto ou lojas (algumas decoradas com Escavações revelaram a existência
um Hechal (como os judeus símbolos das profissões de seus de um sistema de aquecimento
sefaraditas chamam o Aron ha- proprietários), e as velhas calçadas. de água e um espaço para banhos
Kodesh), fato que comprova que, O edifício identificado como rituais, o qual se acredita fosse a
apesar das conversões e do medo, Sinagoga Medieval localiza-se na antiga mikvê.
muitos conversos continuaram a confluência da Rua da Judiaria com
praticar o judaísmo em segredo. a Rua da Fonte. Possui dois níveis A Sinagoga de Tomar encontra-
Feito de granito, o Hechal data – no segundo está o que se acredita se em pleno centro histórico da
aproximadamente, do final do ter sido o local do Hechal, a Arca cidade e é o único exemplo no
século 16 e início do 17. Sagrada. Também na Sinagoga de
Castelo de Vide existe um espaço
Castelo de Vide onde, segundo a tradição popular,
funcionou uma escola. O local
Castelo de Vide é uma parada está aberto à visitação e abriga um
obrigatória para quem tem museu sobre a história dos judeus
interesse na herança judaica em Portugal. O Hechal só foi
portuguesa. Da presença dos redescoberto na década de 1970.
judeus na cidade resta, entre
outros, o edifício onde se acredita No século 18 o espaço foi adaptado
existiu a Sinagoga Medieval. para ser uma residência, mas
A judiaria desenvolveu-se foi reconstruído como sinagoga
principalmente ao longo das ruas em 1972. Na porta de acesso ao
da Fonte, do Mercado, do Arçário, segundo piso há uma pequena
do Mestre Jorge, da Judiaria, da cavidade identificada como “a
Ruinha da Judiaria, da atual Rua marca da mezuzá”. A cidade possui
dos Serralheiros e da Rua Nova. hoje uma pequena comunidade,
Próxima à fronteira espanhola, em sua quase totalidade formada
Castelo de Vide também serviu de por descendentes dos judeus
abrigo para os judeus fugidos da que durante séculos viveram seu
Espanha. judaísmo secretamente. sinagoga de tomar

50
REVISTA MORASHÁ i 97

país da arquitetura judaica da


época. A sala destinada às orações
é quadrada, com piso inferior em
relação à rua. Possui três naves
semelhantes às de outras sinagogas
sefaraditas quatrocentistas. O teto
em abóbada apoia-se em quatro
colunas, com capitéis enfeitados
com motivos geométricos e da
natureza. A disposição desses
elementos encerra um significado
simbólico: as 12 tribos de Israel e
as quatro matriarcas: Sara, Rebeca,
Lea e Raquel.

A origem da comunidade judaica SINAGOGA SHAARE TIKVA, lisboa


de Tomar remonta provavelmente
ao início do século 15. Seu rápido
crescimento demográfico levou armazém. No ano seguinte, o edifício Freixo Espada à Cinta, Fundão,
à criação de uma judiaria, cujas foi classificado como Monumento Gouveia, Guarda, Idanha-A-Nova,
portas se mantinham fechadas Nacional e, em 1923, adquirido pelo Lamego, Leiria, Lisboa, Manteigas,
entre o pôr e o nascer do sol. judeu polonês Samuel Schwarz, que Mêda, Moimenta da Beira,
A Rua da Judiaria, como passou financiou sua restauração. Em 1939, Penamacor, Penedono, Pinhal,
a ser conhecida, ficava nos ele doou o edifício ao Estado, sob Porto, Reguengos de Monsaraz,
cruzamentos das Ruas do Moinho a condição de ali ser instalado um São João da Pesqueira, Sabugal,
e Direita. A população judaica de museu luso-judaico. Seia, Torre de Moncorvo, Torres
Tomar, em meados do século 15, Vedras, Trancoso, Vila Nova Foz
era de 150 a 200 pessoas; após Além das mencionadas neste artigo, Côa e Vila Nova de Paiva. Em
a vinda dos judeus espanhóis a a Rede de Judiarias inclui as cidades cada uma, às vezes mais, às vezes
comunidade passou a representar de Alenquer, Almeida, Bragança, menos visíveis, estão guardadas as
de 30 a 40% do total de habitantes Castelo Branco, Cascais, Covilhã, lembranças da pujante vida judaica
da vila. Elvas, Évora, Figueira de Castelo que floresceu em terras portuguesas
Rodrigo, Fomos de Algodrez, entre os séculos 13 e início do 16.
Com o crescente número de judeus As trevas que envolveram mais
construiu-se, então, uma sinagoga, de 500 anos dessa história estão
por ordem do Infante D. Henrique. desaparecendo para dar lugar a
Em 1496, a judiaria da vila, à uma nova visão sobre o período.
semelhança de todas as outras do Percorrer as ruas das judiarias
reino, foi abolida, sendo é um sem fim de descobertas e
também fechada sua sinagoga. um infinito aprendizado sobre
A rua tornou-se então conhecida um capítulo sombrio da História
como Nova. Muitos cristãos-novos da Humanidade, marcado pela
deixaram o bairro, que passou a ser intolerância, pelo ódio e pela
ocupado pelos cristãos-velhos. violência.
Em 1516 a sinagoga tornou-se a
cadeia pública. Entre os finais do
século 16 e início do 17, o local
BIBLIOGRAFIA
foi reformado e transformado
Silva, César Santos, Na Rota dos Judeus
na Igreja de São Bartolomeu. no Porto, 2014, Editora Cordão da Leitura,
No século 19, foi usada como Portugal
palheiro e, em 1920, como adega e judiaria da guarda www.redejudiariasportugal.com

51 SETEMBRO 2017
ISRAEL

Krav Maga: o sistema de


autodefesa de Israel
Krav Maga é um sistema de autodefesa, adotado pelas Forças
de Defesa de Israel. Não é uma arte marcial, não possui as
tradições milenares das artes marciais orientais e tampouco
surgiu no Oriente. Foi criado na Europa Oriental, em 1930, por
um judeu, Imi Lichtenfeld, para defender os judeus de ataques
fascistas e nazistas.

O
Krav Maga é uma arte de defesa pessoal, é, atualmente, o sistema de luta escolhido por várias
um sistema de combate corpo a corpo, unidades das elites militares e das forças de segurança
com rápidos contra-ataques e técnicas norte-americanas e europeias. É também adotado no
ofensivas que visam impedir que o Brasil para o treinamento de forças militares e policiais.
agressor atinja seu alvo. Atualmente,
os repetidos ataques terroristas a indivíduos, muitos O criador: IMI LICHTENFELD
realizados com facas, tornaram muito recomendado
o seu aprendizado em Israel e na Europa. Na França, Filho de Channa e Samuel Lichtenfeld, Imrich Sde-
por exemplo, desde que a onda de ataques antissemitas Or ou “Imi”, como era conhecido, nasceu em 26 de
e terroristas tomou conta do país, houve um grande maio de 1910, em Budapeste, na época um dos centros
aumento no interesse pelo Krav Maga, que, aliás, está do Império Austro-húngaro; mas cresceu na capital da
sendo ensinado aos alunos de escolas judaicas. Eslováquia, Bratislava.

É bem verdade que seu domínio exige muito Seu pai, um grande atleta, teve suma influência em sua
treinamento tanto em termos das técnicas como do vida. Aos 13 anos, Samuel começou a trabalhar num
condicionamento físico, mas as técnicas básicas do Krav circo como acrobata e, durante duas décadas, treinou
Maga podem ser aprendidas e aplicadas por qualquer inúmeros esportes, inclusive luta-livre e levantamento
pessoa em um curto espaço de tempo. Diferentemente de pesos. Após deixar o circo, ele se mudou para
das demais artes marciais, não leva anos para ser Bratislava. Lá fundou a primeira academia moderna de
dominado. Desde o início, o intuito de Imi Lichtenfeld atividade física da cidade, onde se dedicava à luta livre,
era criar um sistema de autodefesa que pudesse ser boxe e musculação.
posto em prática o mais rapidamente possível. O Krav
Maga dá as ferramentas para que homens, mulheres e Em Bratislava, Samuel trabalhava na força policial;
até crianças, independentemente da idade, possam se tornou-se detetive e ocupou o posto de Inspetor
defender. E, apesar de existir há menos de 100 anos, Chefe. Conquistou a reputação como o policial que

52
REVISTA MORASHÁ i 97

fez a prisão e levou a julgamento judeus de Bratislava tornava-se Os judeus buscavam meios de se
o maior número de criminosos cada dia mais difícil. Os ataques defender, de continuar vivos.
violentos. Como Inspetor Chefe, violentos contra indivíduos e contra
periodicamente treinava seus as comunidades passaram a ser Vendo que algo tinha que ser feito
homens nas técnicas de defesa lugar-comum nas ruas de muitas para proteger sua comunidade,
pessoal. O filho, Imi, estava sempre das cidades da Europa Oriental. Imi organizou um grupo de
ao seu lado. Exímio lutador de jovens judeus para patrulhar o
luta-livre quando jovem, Samuel Bairro Judeu e defender seus
estimulou o filho a participar de uma habitantes contra os ataques. Da
variedade de atividades atléticas. noite para o dia, ele se tornou
o líder incontestado de cerca
Imi logo se tornou um excelente de 100 rapazes da comunidade.
ginasta, boxeador e lutador, entrando Juntos, eles defendiam os judeus
para o Time Nacional de Luta de Bratislava contra as gangues
Livre da Eslováquia. Competia antissemitas e as milícias fascistas.
em campeonatos nacionais e
internacionais, ganhando vários Enquanto lutavam nas ruas, Imi
troféus. No período de 1929 a 1939, rapidamente entendeu que as
foi um dos melhores lutadores da lutas competitivas esportivas eram
Europa. totalmente diferentes das de rua.
Além de serem extremamente
No final da década de 1930, violentas, nas ruas não havia
enquanto o fascismo e o regras e nem árbitros. Ele começa,
antissemitismo varriam todo o então, a desenvolver um sistema
continente europeu, a vida dos imi Lichtenfeld de técnicas de autodefesa para

53 SETEMBRO 2017
ISRAEL

situações de perigo, passando a A maior parte dos sobreviventes do


ensiná-las aos jovens encarregados Pentcho chegou à então Palestina em
da defesa do Bairro Judeu. Seu 1944.
princípio fundamental era usar
os movimentos e reações naturais Segundo um dos amigos, ao chegar
do corpo aliados a um contra- a Alexandria o estado do Imi era
ataque imediato e decisivo. Assim gravíssimo e eles temiam que o
começou o Krav Maga. Entre 1936 amigo não escapasse. No entanto,
e 1940, Imi participou de inúmeros resistiu e, já restabelecido, se alistou
conflitos e lutas de rua. Ele e seus na Legião Checa, à época sob o
companheiros tiveram que conter comando do exército britânico.
grupos antissemitas armados, que Durante ano e meio, ele ocupou
chegavam a centenas de pessoas, vários postos militares no Oriente
em sua tentativa de invadir o Bairro Médio sempre servindo com
Judeu. distinção.
Imi Lichtenfeld
Em 1939 o Estado eslovaco tornou- Em 1942, Imi recebeu um visto
se um Estado fantoche da Alemanha de entrada na então Palestina
nazista e Imi e os judeus de Bratislava saíram em direção à ilha de Creta sob Mandato Britânico. À época,
se viram cada vez mais ameaçados em busca de ajuda. Em virtude muitos de seus amigos que já
pelas milícias fascistas. Ele passou dos fortes ventos, os cinco nunca estavam em Eretz Israel serviam
a ser vigiado, era considerado um chegaram à ilha. No quinto dia, um na Haganá (defesa, em hebraico),
“sério problema” pelas autoridades navio de guerra inglês os encontrou fundada em 1919 para defender
eslovacas e grupos antissemitas. Em vagando pelo mar, e os levou para os assentamentos judeus contra os
18 de maio 1940, Imi deixa a Europa, Alexandria. Após relatarem sobre o árabes.
embarcando naquele que seria o naufrágio do Pentcho, as autoridades
último navio de judeus a conseguir italianas foram alertadas e um navio Imi é muito bem recebido nas
escapar dos nazistas. Sua família não foi enviado para a ilha Kamilonissi fileiras da Haganá, cujos líderes
o acompanhou, e não sobreviveu a para resgatar os refugiados, que perceberam suas aptidões em
Shoá. depois foram levados para Rhodes. combate e sua habilidade em
transmitir as técnicas. Ele ficou
A embarcação se dirigia à Terra encarregado do treinamento das
de Israel. Era um barco usado forças de elite militar no combate
para navegação fluvial, de nome desarmado. Treinou forças da
Pentcho, modificado para transportar Haganá, Palmach (a força de ataque
refugiados judeus da Europa Central. de elite), Palyam (os comandos
A embarcação, adequada para navais), e grupos policiais. Imi passa
transportar 150 pessoas, acabou a treiná-los intensamente em suas
levando, abarrotados, 500 jovens. áreas de especialização: preparação
Durante a travessia, uma caldeira do física e nas técnicas de combate que
Pentcho explode e o barco naufraga estava desenvolvendo, baseado em
na ilha grega Kamilonissi. Imi sua experiência em combate real.
saltou várias vezes n’água para salvar
passageiros e recuperar as escassas Com a fundação do Estado de
sacas com alimentos que haviam Israel, em 1948, todas as diversas
caído no mar. Isso lhe acarretou uma forças judaicas combatentes se
forte infecção no ouvido que quase unem, dando origem às Forças de
lhe custa a vida. Defesa de Israel (FDI). O novo
estilo de combate criado por Imi é
Ele e outros quatro amigos adotado como o estilo oficial das
conseguiram um bote a remo e FDI e da Força Policial de Israel.

54
REVISTA MORASHÁ i 97

É nomeado Instrutor Chefe de Imi Lichtenfeld faleceu em 1998, Israel, escreveu que desde os
Preparação Física na Escola de aos 87 anos. Até os últimos anos de tempos da Haganá e do Palmach,
Preparação para Combates das sua vida, continuou a atuar tanto no incluindo todos os anos no Tzahal
FDI. Ele era o principal instrutor mundo militar, como conselheiro, (FDI), a capacidade de luta e o
de combates corpo a corpo. Nesse quanto no civil supervisionando potencial pessoal de Imi tinham
período, aperfeiçoou ainda mais aulas e treinando equipes de sido os pilares de qualidade
suas técnicas de autodefesa; ele segurança de outras nacionalidades. do combatente israelense, e,
queria que fossem rápidas, eficazes Em uma carta oficial pelo “Galardão ninguém mais responsável por esse
e aplicáveis a cenários modernos. de Mérito”, Itzhak Rabin, então desempenho de excelência do que
Acima de tudo, tinham que Chefe das Forças de Defesa de Imi Lichtenfeld.
ser simples, lógicas e fáceis de
aprender; um método que pudesse
transmitir ao soldado israelense,
em poucas semanas, noções reais
de autodefesa, com as mãos nuas,
contra todo tipo de ataques. Após
a Operação Sinai de 1956, o nome
“Krav Maga” passou a ser utilizado
para o novo estilo de combate, já
tendo um formato pronto para
treinamento e ensino.

Imi serviu nas FDI até 1964.


Nesse período ele foi o responsável
pelo treinamento dos melhores
combatentes das principais
unidades de elite das FDI. Após
se aposentar, abriu dois centros de
treinamento nas cidades de Tel-
Aviv e Netanya. Pela primeira vez Soldados das FDI treinando Krav Maga, Israel
o Krav Maga seria ensinado a civis.
O ensino a civis difere do utilizado
por militares ou agentes de Ainda em vida, recebeu o “Azul e
segurança. Em seu uso civil, o Krav branco”, um título de honra para
Maga ensina como se proteger aqueles que muito se dedicaram a
em situações em que a vítima está seu país.
desarmada e tem que contar apenas
consigo mesma. É um cenário Fundamentos
muito diferente do militar. Nos
anos seguintes, Imi se dedicou a Como vimos acima, o Krav Maga
adaptar as técnicas, modificando-as pretende ser a forma mais eficaz
de acordo com as necessidades da de autodefesa. Em entrevista a
vida civil. Morashá, o faixa preta e professor
de Krav Maga, Uri Aronson, perito
Em 1974, ele fundou a Associação e consultor em segurança pessoal,
Krav Maga, uma organização para empresarial e comunitária, e um dos
o ensino do sistema de autodefesa. primeiros alunos do mestre Kobi
Alguns de seus primeiros alunos no Brasil, explicou os fundamentos
levaram-na aos Estados Unidos e o do combate. “O Krav Maga ensina
mestre Kobi Lichtenstein a trouxe a enfrentar o perigo com uma
ao Brasil. mestre Kobi Lichtenstein estratégia em mente, sem desgaste

55 SETEMBRO 2017
ISRAEL

1 2 3

1. Treino de Krav Maga na praia de Copacabana, Rio de Janeiro 2. Curso de Bastão Tático 3. Entrega de faixa, Rio de Janeiro

físico desnecessário, reservando inclui, de um lado, o aprendizado e equipes da área de segurança de


a energia física para aplicá-la no de incontáveis técnicas que visam multinacionais, costuma enfatizar
momento oportuno. A defesa e o impedir que o agressor atinja o que “a essência do Krav Maga é
contra-ataque devem ser rápidos alvo, do outro lado movimentos que se um de vocês se encontrar em
e eficazes. O aluno de Krav Maga explosivos de contra-ataque. uma situação de perigo, saiba o que
treina para ter a mente clara e Diferentemente de outras artes fazer para voltar para casa com vida.
tranquila para tomar decisões com marciais que tratam os movimentos Procuro transmitir a meus alunos
prontidão, mesmo em uma situação defensivos e ofensivos como ações que o Krav Maga não se restringe
de emergência. Por exemplo, se separadas, no Krav Magá estes ao que é ensinado durante as aulas.
estiver sendo imobilizado e a são simultâneos. A técnica dá Trata-se de um estilo de vida. O
primeira técnica para se libertar não ênfase ao movimento contínuo: mundo moderno exige que se
funcionar, em vez de se desesperar bloqueia-se ao mesmo tempo em tomem decisões rapidamente, ainda
tentando novamente, deve passar a que se contra-ataca rapidamente, mais se a pessoa for um líder ou
aplicar outra técnica”. visando pontos sensíveis do agressor. um executivo, mantendo-se focado
Independentemente de quão grande mesmo em situações turbulentas
Como mencionamos acima, e forte o oponente, algumas áreas e agindo sob pressão com clareza
as técnicas do Krav Maga se do corpo humano são sempre mental. O Krav Maga proporciona
baseiam em princípios simples e vulneráveis. tudo isso e muito mais.”
movimentos instintivos, naturais
ao corpo humano. O treinamento Noções de física, fisiologia e O treinamento que Uri passa a seus
matemática são utilizadas para alunos inclui a “inteligência” por trás
definir as técnicas que devem ser das técnicas. “É necessário visualizar
aplicadas. Em cada tipo de ataque, e analisar uma situação rapidamente
a técnica usada deve levar em conta e apreender como reagir a qualquer
a transferência de peso e a rapidez e tipo de ameaça, sem hesitação. É
força de explosão do contra-ataque, essencial agir de forma segura e
visando a potencialização da ação neutralizar o agressor rapidamente,
independentemente da força física. fazendo o que for preciso”.

Como os confrontos são geralmente Os treinos simulam situações reais.


inesperados e perigosos, os alunos Como Imi descobriu nas ruas da
são treinados a procurar dar um fim Europa, lutar para obter pontos
às situações de perigo, com a maior numa luta esportiva e lutar por
rapidez possível. Quem treina Krav sua vida em um confronto de rua
Maga parte da premissa de que exige uma atitude mental e técnicas
seus atacantes serão maiores e mais totalmente diferentes. No Krav
fortes do que ele, e, possivelmente, Maga o fato de não haver “regras”
que enfrentará múltiplos agressores. em uma luta é muito enfatizado.
Uri Aronson, que treinou centenas Não há katas – padrões detalhados
de alunos de Krav Maga, executivos de coreografia de movimentos

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REVISTA MORASHÁ i 97

– como no caratê e demais artes


marciais. Não dá para se preocupar
com a “etiqueta” da luta quando sua
vida está em risco. Quem aprende
e interioriza os princípios do Krav
Maga consegue enfrentar qualquer
tipo de agressão, e a eficiência das
técnicas em combate real mostra que
eles são atemporais, funcionam em
qualquer realidade.

E, como não há regras nem


restrições, o Krav Maga não realiza
competições. Algumas organizações Rafael Rothier, Alexandre Abla, Prof. Uri Aronson, Mestre Kobi, Rio de Janeiro
adotam faixas coloridas – populares
nas artes marciais – como um
sistema didático que divide o Krav Maga. Um de seus objetivos levamos delegações para Israel, para
aprendizado das técnicas por faixa. é preservá-lo da forma que lhe foi conhecer o berço do Krav Maga,
Quanto maior for a graduação, ensinado por seu mestre, em Israel. para desmistificar as inverdades
mais avançadas serão as técnicas Com sede do Rio de Janeiro, mestre que a mídia mostra, e conhecer
ensinadas. Kobi ensina Krav Maga e qualifica como os israelenses convivem com
instrutores que ensinam no Brasil as diferenças. Os grupos saem do
Antes de 1980, todos os especialistas e na América Latina. Assim como Brasil achando que vão a um país
na técnica viviam em Israel e Imi, ele prepara a próxima geração. violento e voltam entendendo que
treinavam seguindo a Associação “Não formo instrutores, mas violento é o país em que vivemos”.
Israelense de Krav Maga. Na década educadores” declara mestre Kobi.
de 1980, Lichtenfeld começou a “O processo de formação exige anos Com quatro livros lançados
treinar seus alunos mais próximos de treinamento, aulas de anatomia, em português, várias medalhas
para levá-la à arena internacional. fisiologia, primeiros socorros, conferidas pelas autoridades
Hoje, o Krav Maga é disseminado filosofia e a história do Estado brasileiras – Pedro Ernesto,
pelo mundo todo. de Israel. De dois em dois anos, Tiradentes, Mérito Legislativo
e outras, o Krav Maga no Brasil
Krav Maga no Brasil tornou-se referência de defesa
pessoal. O Krav Maga Brasil é
Kobi Lichtenstein, um dos primeiros ativo também no treinamento de
alunos civis de Imi Lichtenfeld, corporações militares e policiais,
começou a treinar ainda menino. como por exemplo, as unidades
Lichtenfeld o indicou para contra o terror que atuaram nas
disseminar o sistema na América últimas Olimpíadas.
do Sul. Em 1990, o aluno, hoje
conhecido como Grão-mestre Kobi, “Além da própria técnica”, declara
o trouxe para o Brasil. O atual Mestre Kobi, “as aulas de Krav
crescimento do Krav Maga no País Maga mostram uma outra forma
se deve muito ao fato de a população de ver a vida, em que não importa
viver refém da violência. Esta técnica o tamanho da ameaça, sempre é
oferece as ferramentas para a pessoa possível se defender, sobreviver à
não viver com tanto medo e poder, ameaça, assim como o Povo Judeu
eventualmente, se defender. sobreviveu, assim como Israel
sobrevive e ainda cresce, com
O Grão-mestre é 8º dan e presidente qualidade de vida e respeito ao
da Federação Sul-Americana de Ioav Lichtenstein e Mestre Kobi próximo”.

57 SETEMBRO 2017
ESPORTES

20ª Macabíadas: atletas judeus


de 80 países, um só coração

Cerca de 10 mil atletas judeus de 80 países participaram,


em Israel, da 20ª edição das Macabíadas, de 6 a 18 de julho
último. Com disputas em 47 modalidades, é o terceiro maior
evento esportivo do mundo. Este ano, a 20ª Macabíada teve um
significado especial, quando Israel comemorou os 50 anos da
reunificação de Jerusalém.

C
inquenta anos após a unificação de nossa lugar em torno do qual os judeus de todo o mundo
Capital Eterna, finalmente devolvemos podem se unir”.
a “Macabiá” ao seu legítimo lugar:
Jerusalém”, disse o prefeito Nir Barkat. O presidente Moshe Rivlin, em sua mensagem,
afirmou: “Hoje estamos aqui, celebrando os jogos
Na noite de abertura, no Estádio Teddy Kollek, em da 20a Macabiá ”, com o tema do 50o aniversário
Jerusalém, mais de 30 mil pessoas, além da presença da libertação de Jerusalém”. Ao saudar os atletas e
dos medalhistas de bronze do judô das Olimpíadas dar-lhes as boas vindas à “Capital Eterna, liberta e
do Rio, os israelenses Ori Sasson e Yarden Gerbi. reconstruída de Israel”, ele declarou: “Queridos atletas,
A emoção tomou conta dos presentes quando os nosso país é seu país; nosso lar é seu lar”.
membros do Movimento Juvenil Sionista Escoteiro
Macabi cercou o estádio carregando bandeiras Seu discurso foi seguido pelo do primeiro-ministro
israelenses, “esquentando” o início do desfile das Bibi Netanyahu, que, após dirigir-se aos atletas, falou
delegações. para todo o Povo Judeu: “Somos, todos, um só povo.
A Macabiá é uma competição em homenagem aos
Após o tradicional desfile das delegações e macabeus e foram eles que libertaram nossa terra
acendimento da tocha, um grande show com artistas enfrentando grandes adversidades. O Povo de Israel
israelenses e mais de 600 dançarinos. Os jogos foram é forte e nosso Estado é forte. Somos, todos nós,
realizados em Jerusalém, Tel Aviv, Ramat Gan, Acre, os descendentes dos macabeus... Sofremos a maior
Natânia, Raanana, no Kineret e em Haifa. tragédia da história da Humanidade. E, ainda assim,
voltamos”, ressaltou.
Na ocasião, afirmou Amir Peled, presidente da
competição: “As Macabíadas são a essência dos Organizadas de quatro em quatro anos pela União
valores em que acredito: sionismo, judaísmo, Mundial Macabi, as Macabíadas são reconhecidas
fraternidade, o povo e os esportes. Este é o melhor pela Federação Mundial de Esportes e pelo Comitê

58
REVISTA MORASHÁ i 97

anos da revolta de Bar Kochba (revolta judaica


contra os romanos no ano de 132 E.C. ). As
Macabíadas foram, então, realizadas pela
primeira vez em 1932 em Eretz Israel, antes
mesmo da criação do Estado.

Este ano, a delegação brasileira contou


Yekutieli foi uma
1 com 500 participantes – 420 atletas e 80 da
figura de destaque equipe técnica, a maior até então, e trouxe na
na organização
israelense bagagem de volta 61 medalhas, além de 3 nas
esportiva Maccabi Paraolimpíadas. Os atletas brasileiros estavam
e nos esportes
do país, em divididos em três categorias: 220 na divisão
geral. Além das
Macabíadas, Olímpico Internacional. Desde a sua criação,
fundou a na década de 1930, esses jogos são uma das
Associação de
Futebol de Israel mais emocionantes manifestações do ideal
e o Comitê sionista e da centralidade de Israel na vida do
Olímpico Povo Judeu.
Israelense. Em
1979, recebeu
a mais alta A ideia dos Jogos Macabeus nasceu com Yosef
condecoração
do país, o Yekutieli1, quando tinha 15 anos, inspirado
Prêmio Israel, nos Jogos Olímpicos de Verão de 1912. Em
por sua especial 1928, ele apresentou seu sonho ao Keren
contribuição à
sociedade e aos Kaiemet LeIsrael, sugerindo que a competição
esportes de Israel. fosse organizada para comemorar os 1.800

59 SETEMBRO 2017
ESPORTES

Este ano, a delegação brasileira contou Sub-18 (para atletas até 18 anos),
120 na categoria Aberta (engloba
com 500 participantes – 420 atletas e todas as idades) e 80 na divisão
80 da equipe técnica, a maior até então, Master (para atletas a partir
dos 35 anos). Os brasileiros
e trouxe na bagagem de volta 61 medalhas, desfilaram na abertura ao som
além de 3 nas Paraolimpíadas. da música “Open Bar”, de Pablo

60
REVISTA MORASHÁ i 97

Vittar, uma versão abrasileirada de A outra, do kidush realizado no


“Lean On”, do Major Lazer. terraço de uma ieshivá enquanto
Para Avi Gelberg, presidente todos juntos cantavam o Hatikva,
da Confederação Brasileira hino que traz acima de tudo uma
Macabi (CBM) e da Hebraica, mensagem de esperança.
as Macabíadas foram “um
verdadeiro sonho”. Os bons As Macabíadas, mais uma vez,
resultados obtidos pelos atletas são, foram encerradas em Latrun,
segundo ele, decorrência do árduo símbolo da vitória de Israel na
trabalho realizado pela diretoria, Guerra dos Seis Dias, tendo como
voluntários, atletas e todos os mestre de cerimônias a modelo
que se empenharam para enviar israelense de renome internacional,
um grande grupo a Israel. Para Bar Rafaeli, com o anfiteatro
Gelberg, além dos 500 membros lotado, em mais uma cerimônia
que integraram a delegação, cerca que celebrou atletismo, judaísmo e
de mais 300 judeus brasileiros sionismo e, este ano, os 50 anos da
acompanharam as várias reunificação de Jerusalém.
competições.

O Shabat no Kotel (Muro das


Lamentações) “continua sendo um
dos momentos mais emocionantes
da jornada esportiva, um momento
a ser guardado para sempre na
lembrança”, diz ele. Em especial,
ele tem duas imagens daquela
sexta-feira, dia 14 de julho, bastante
tensa por causa de um atentado
que ocorrera no Monte do Templo,
naquela manhã, no qual morreram
dois soldados israelenses. Por causa
do ocorrido, a delegação brasileira
teve um esquema de segurança
especial. Uma das imagens é da
multidão bem ao lado do Muro.

61 SETEMBRO 2017
SHOÁ

Ética Médica Nazista


Por Dr. Morton Scheinberg

A medicina na Alemanha de Hitler trouxe consigo tantos


horrores – eugenia, experimentos humanos, esterilização
forçada, eutanásia involuntária, assassinato em massa – que é
comum ouvir-se a afirmação de que “os médicos nazistas não
tinham ética”. Mas esse não é o caso; as atrocidades médicas
cometidas por médicos e pesquisadores nazistas se apoiavam
em princípios bem particulares, que vieram a ser conhecidos
como a “ética médica nazista”. Não havia falta de ética,
mas uma ética terrivelmente distorcida.

O
estudo desses princípios próprios Rudolf Ramm, médico clínico alemão que escrevia sobre
da nova “ética médica” tornou-se leis médicas, era um dos maiores propagadores da ética
obrigatório no currículo das faculdades médica nazista e do movimento contra a miscigenação
de medicina alemãs entre os anos de racial. Ele criticava o crescimento populacional de
1934 a 1945. Essa ética médica deu “elementos inferiores e patógenos”, incluindo nesse
origem a um documento que pregava que os direitos grupo os portadores de doenças hereditárias e os
coletivos da sociedade eram mais importantes do que os judeus. Preconizava, também, que o nazismo trouxera a
direitos humanos individuais. O conceito de eugenia1 “restauração de um elevado nível de ética profissional”.
passou a ser difundido na cultura nazista, em que se Ele exultava o fato de que “a profissão tivesse sido
prezava o sadio “perfeito” e forte. Havia uma falta de amplamente depurada de elementos politicamente não
apreço pelo doente e o fraco. confiáveis, estranhos à nossa raça” (a dizer, médicos
  judeus alemães). Ramm era editor-chefe da revista
Por exemplo, em 1933, foi promulgado um programa da Associação Médica Alemã, Deutsches Ärzteblatt, e
de prevenção de doenças hereditárias, “incentivando” publicou um livro texto, Ärztliche Rechts- Standeskunde
os portadores dessas enfermidades à esterilização (Legislação Médica e Saúde).
involuntária. Em aulas de currículo médico, eram
constantes as noções de “higiene racial”, “eliminação Na ética médica nazista, a força política do partido
de doenças hereditárias da população” e promoção da era o elemento primordial que atropelava os direitos
“raça superior ariana”, em que o coletivo superava o individuais, independentemente do juramento médico.
individual em todos os cenários. Fritz Klein, médico da Artigo recente do médico Florian Bruns, do Hospital
SS, costumava afirmar que assim como um apêndice Charité, da Universitätsmedizin de Berlim, na
inflamado necrosado deveria ser retirado do corpo Alemanha, e Tessa Chelouche, da University of Haifa,
humano para o paciente não ter graves complicações, em Israel, discutiu justamente essa conduta antiética
os judeus, como tal, deveriam ser eliminados da espécie dos médicos durante o período nazista. Em estudo
humana. colaborativo, publicado em Lectures on Inhumanity:

62
REVISTA MORASHÁ i 97

o clínico karl BRANDT, no centro, foi um dos 23 médicos alemães julgados em nuremberg, EM 1946, POR CRIMES DE GUERRA E
crimes CONTRA A HUMANIDADE

Teaching Medical Ethics in German Após o término da guerra, entre 1946 desses médicos mostraram remorso.
Medical Schools Under Nazism, e 1947, diversos médicos nazistas Eles acreditavam estar moralmente
os autores fizeram uma pesquisa que praticavam durante a guerra corretos.
histórica de documentos, por meio foram julgados em Nuremberg,  
da qual foi possível confirmar onde 23 réus foram condenados. Nem todos os médicos da medicina
a presença de aulas obrigatórias Sete deles, à morte. Rudolf Ramm nazista foram condenados. Alguns
sobre ética médica sob a ótica não sobreviveu para ser um dos conseguiram escapar e, entre
nazista, inclusive na prestigiosa réus no famoso “Julgamento dos eles, Hans Reiter, cujo nome é
Faculdade de Medicina de Berlim. Médicos”, em 1947. Havia sido lembrado hoje por dar título a
Essas aulas eram dadas por jovens julgado por um tribunal militar um tipo de artrite – a doença de
médicos filiados ao Partido Nazista, russo, condenado e executado em Reiter. Outro exemplo é a doença
ideologicamente confiáveis aos olhos 1945. Vale a pena frisar que poucos de Wegener, primeiro descrita por
dos dirigentes nazistas. Friedrich Wegener, que teve seu
  nome mudado para Poliangeíte
No artigo, Bruns e Chelouche citam Granulomatosa (GPA) para não
um clínico filiado à medicina nazista, homenagear alguém com tão estreita
que era responsável pelo Grafeneck colaboração com o nazismo. Esse
Castle, centro de tratamento de médico chegou a ser homenageado
doentes mentais. Estima-se que pelo Colégio Americano de Tórax.
mais de 10 mil doentes foram Por seu passado nazista, há pedidos
“tratados” por meio da câmara de de que as doenças mudem de nome,
gás e cremados. Para esse médico, o para que suas histórias como nazistas
quinto mandamento, “Não matarás”, o BLOCO 10 era um bloco de celas, se tornem mais relevantes do que
seria uma ficção judaica e não um no campo de concentração de
auschwitz, onde homens e mulheres
quaisquer descobertas médicas que
mandamento de D’us. eram cobaia na experimentação alemã venham a ter desenvolvido.

63 SETEMBRO 2017
SHOÁ

frágil de prática médica, muito


menos sujeita a influências políticas
e sociais. Foi o que ocorreu na
medicina nazista, em que os direitos
individuais foram manipulados
por meio da “flexibilização”, ou da
total aniquilação da ética médica.
Com o crescente número de novas
escolas médicas no Brasil, atenção
deve ser dada para que o lado
humano da prática médica faça
parte dos novos
currículos, principalmente levando
em consideração a explosão
tecnológica, de forma que os avanços
da ciência médica não fragilizem os
GÊMEOS ERAM submetidos, com frequência, a horrendas experiências nazistas
princípios rígidos da ética. 
 
No ano seguinte ao término do Medical Atrocities”. Seus dois No hospital Charité de Berlim foi
Tribunal internacional Militar livros anteriores foram “Health, criado o projeto “Responsabilidade
de Nuremberg, os britânicos Race and German Politics between na Ciência” (GeDenkOrt Wissenschaft
iniciaram uma onda para que se National Unification and Nazism, in Verantwortung), sob a direção do
procurasse determinar e definir a 1870-1945”, publicado em 1989, e professor Florian Brums. O intuito
regulamentação de crimes de “Epidemics and Genocide in Eastern é justamente chamar atenção para
guerra de natureza médica, Europe”, publicado em 2000. esse tema, a fim de conscientizar
expandida a seguir pelos americanos. médicos e estudantes para a
Os franceses procuraram estabelecer O que ocorreu na Alemanha nazista necessidade de vigilância constante
um segundo tribunal internacional deve servir de advertência. A ética da violação dos princípios éticos e
de crimes médicos de guerra, não é nem deveria ser um elemento direitos individuais do ser humano
mas novamente começou-se a por forças políticas..
observar uma influência do poder
político dos comunistas franceses
da época em cenários de ética Bibliografia

médica – o que levou os americanos Bruns F, Chelouche T. Lectures on


Inhumanity: Teaching Medical Ethics in
a assumir a direção das normativas German Medical Schools Under Nazism.
e ao estabelecimento da cultura Ann Intern Med. 2017 Apr 18;166(8):
do termo de informed consent, ou 591-595. doi: 10.7326/M16-2758.
“consentimento informado”.1 Scheinberg, Morton, Nazi past and changes
in disease names: The Wegener s disease.
Rev. Bras. Reumatol. vol.52 no.2 São Paulo
Paul Weindling, um renomado Mar./Apr. 2012
especialista na história da medicina Wallace D. J., Weisman M., Should a War
nazista, retrata com detalhes Criminal be Rewarded with Eponymous
diferentes aspectos deste sensível Distinction. The Double Life of Hans Reiter.
J Clin Rheumatol 6:49, 2000.
tópico em um dos seus livros,
“An informal Trilogy on German Scheinberg, Morton,  A doença de Reiter.
Morasha edição 33, 2001.

1
Uma das principais regras da norma ética
médica, o “consentimento informado” Morton Scheinberg É Pesquisador,
imersão em água gelada: experiência Clínico e Reumatologista do Hospital
garante ao paciente o direito de decidir comum no campo de concentração Albert Einstein, é doutor pela
sobre o que lhe é apresentado como de DACHAU, realizada pelos doutores Universidade de Boston e professor
forma de tratamento, respeitando a sua prof. ERNST HOLZLöHNER à esq., E livre-docente, da USP (Universidade de
capacidade de autodeterminação. SIGMUND RASCHER à dir. São Paulo)

64
COMUNIDADES

A POLÔNIA
DA FUNDAÇÃO À PARTILHA

Até a Shoá, a maioria dos judeus do mundo podia associar


sua origem a essa região. Durante séculos foi um importante
centro religioso, o berço do Chassidismo e da cultura
judaica iídiche. No início do século 15, era, para os judeus, o
país mais seguro da Europa, e acabou abrigando a maior e mais
importante comunidade judaica no mundo.

D
esde a fundação de um Estado polonês como nação soberana para apenas ressurgir como estado
na Europa Central e do Leste, no independente – a chamada Segunda República Polonesa,
século 10, e sua partilha entre o Império em 1918.
Russo, o Alemão, e a Áustria, em fins
do século 18, suas fronteiras mudaram No decorrer deste artigo, o termo “judeus poloneses”
consideravelmente. Através de conquistas e alianças, a referir-se-á à população judaica que, num determinado
“Polônia da Coroa”1 (Korona), coração do antigo Estado momento da História da nação polonesa, vivia dentro
medieval, expandiu seus territórios de um núcleo das fronteiras do então Estado e sob sua jurisdição.
entre os rios Odra e Vístula, até o Báltico, o Dnieper, A história dos judeus a partir da criação da Segunda
o Mar Negro e os Cárpatos. Em 1386, a Polônia e República, em 1918, constitui um capítulo à parte, mais
o Grão-Ducado da Lituânia se unem e, em 1569, é penoso para vida judaica polonesa, e não será tratado
assinada a União de Lublin, que acabaria por formar nesta matéria.
a Comunidade Polaco-Lituana ou das Duas Nações.
No início do século 17, esta nação era uma potência Desde a fundação do Reino da Polônia, em 1025, até os
internacional, o maior país da Europa, incluindo toda primeiros anos do estabelecimento da união dinástica,
a Polônia pós-1991, Lituânia, Bielorrússia e Letônia, no final do século 14, os governantes poloneses eram
bem como a maior parte da Ucrânia e Estônia. Mas, conhecidos por sua tolerância religiosa. Chamado de o
entre 1772 e 1795, enfraquecida, a Comunidade “paraíso dos judeus”, o Estado polonês tornou-se abrigo
Polaco-Lituana viu todo o seu território ser partilhado para judeus expulsos de outros locais. No final do século
entre as nações vizinhas. A Polônia deixa de existir 17, a comunidade polonesa era a maior, em termos
numéricos, dentre qualquer outro centro populacional
judaico. De modo geral, os judeus prosperaram em terras
1
Coroa do Reino da Polônia (em polonês, Korona Królestwa
Polskiego) ou, simplesmente, a Coroa, é o nome comumente usado polonesas. Gozavam de ampla autonomia e criaram
para as possessões históricas – mas não consolidadas – do rei da instituições de governança comunitária, bem como
Polônia, na Baixa Idade Média. religiosas e educacionais. Desfrutavam de uma rica vida

65 setembro 2017
COMUNIDADES

religiosa, tendo lá surgido líderes sob seu domínio os territórios da de Boleslau I, no final do século
espirituais de renome, e construíram Grande Polônia2, possivelmente 10, sendo muito bem recebidos
lindas sinagogas. Criaram seus incluindo a Mazóvia3. Ao falecer, pelo Rei. As primeiras referências
próprios padrões culturais, daí em 992, as fronteiras do ducado se documentais sobre a presença
nascendo um jargão judaico-polonês, estendiam por uma área semelhante judaica foram encontradas numa
o iídiche. Gavriel ben Yehoshua à atual República da Polônia.  responsa da primeira metade do
Schossburg, cronista judeu daquele século 11, onde há menção a
século, caracterizou a comunidade, Após a cristianização, as já existentes uma decisão da corte rabínica de
em tempos medievais, como ligações comerciais com o Sacro Cracóvia.
“um deleite para todas as terras no Império Romano-Germânico se
Exílio por sua fidelidade à Torá, sua estreitam, dando origem a um No entanto, essa imigração
honra e grandeza” (Petach Teshuvá, aumento no número de mercadores dificilmente teria tido a dimensão
1651 4a). alemães, tanto cristãos quanto que teve não fossem as nefastas
judeus, que se aventuravam em terras circunstâncias que forçaram um
A fundação da nação polonesas. O sucessor de Miecislau, grande número de judeus a buscar
polonesa o duque Boleslau I Chrobry, o refúgio na Polônia. A Primeira
Grande, continuou a expansão Cruzada, em 1096, foi o primeiro
Acredita-se que tribos eslavo- territorial e, no ano 1000, a Polônia catalizador. Em seu “caminho” à
ocidentais tenham chegado à região é reconhecida como Estado pelo Terra Santa os cruzados matavam
que hoje constitui a Polônia nos Sacro Império Romano-Germânico ou convertiam à força as populações
séculos 6 e 7 e que, em meados do (Império Germânico) e por Roma. judaicas. Os massacres, que se
século 10, os Polânios ocupassem as Com a coroação de Boleslau I pouco iniciaram em Rouen, na França,
terras entre os rios Odra e Vístula. antes de sua morte, seu ducado espalharam-se para cidades do
De acordo com a tradição, Piast, torna-se um reino: a Grande Polônia Reno chegando a Praga. Os judeus
o “Forja Rodas” (Piast Kołodziej) (Wielkopolska). da Boêmia decidiram fugir para
uniu diferentes grupos de Polânios a Polônia, apesar da decisão do
formando uma unidade denominada Os limites do reino aumentaram príncipe de confiscar as propriedades
Polska. Piast, que surgiu em torno no início do século 12, quando dos que partiam.
do ano 940 em Giecz, fundou a Bolesłau III subjuga a Pomerânia
dinastia dos Piastos, que reinaria até Ocidental e a região de Gdansk. Tornou-se constante o fluxo de
o século 14. Porém, em 1138, ele comete um judeus das províncias do Reno e
erro que levaria à fragmentação do Danúbio para as terras polonesas.
A maioria dos historiadores data o Estado polonês por quase 150 anos. O número cresceu em consequência
estabelecimento do Estado polonês Em seu testamento, dividiu seus das Cruzadas de 1146-1147 e
somente duas décadas mais tarde, em domínios entregando-os aos filhos. de 1196, e da intensificação das
966, quando o duque Miecislau I se O resultado foi o surgimento de perseguições contra a população
converte ao catolicismo, adotando-o vários principados feudais rivais. judaica, no Império Germânico,
como a religião oficial do Estado. durante os séculos 12 e 13. Vendo
Enquanto a Rússia gravitava em O nascimento da que o poder real era incapaz de
torno do Império Bizantino, a comunidade judaica defendê-los contra a fúria da
Polônia se voltava para o Ocidente multidão cristã fanática ou dos
e para Roma. Miecislau I estabelece Contamos apenas com lendas degradantes cânones da Igreja
sua capital em Gniezno, unificando acerca da presença dos judeus na Católica, grandes levas de judeus
região antes desta se tornar cristã. alemães buscam refúgio nos
Acredita-se que já no século 9 domínios poloneses.
2
A Grande Polônia, que compreende mercadores judeus que viviam nas
grande parte da área banhada pelo rio províncias do Império Germânico Desde o início do século 12 –
Varta e seus afluentes, foi o coração do
antigo Estado medieval polonês, “o berço
comercializassem nas terras às durante o reinado de Boleslau
da Polônia”. margens dos rios Varta e Vístula. III, havia judeus espalhados pela
3
Região histórica e geográfica no leste da Sabe-se que alguns se instalaram Polônia, onde desfrutavam de
Polônia, com sua capital em Varsóvia. na Grande Polônia no reinado considerável paz e liberdade.

66
REVISTA MORASHÁ i 97

Interior da sinagoga de Tykocin

A cultura medieval cristã, imbuída polonês em vários principados terras e propriedades na Grande
de grande intolerância religiosa, feudais, cada governante Polônia, na Cujávia (Kuyavia)
ainda não fincara raízes entre a empenhara-se em atrair imigrantes e na parte polonesa da Silésia.
população eslava. Mas, mesmo após judeus para seus domínios, Havia comunidades organizadas
se estabelecer em terras polonesas, outorgando-lhes consideráveis em Wrocław, Świdnica, Głogów,
os judeus continuaram a manter um privilégios e direitos. De modo Lwówek, Płock, Kalisz, Szczecin,
estreito relacionamento comercial e geral, os governantes medievais Gdańsk e Gniezno.
fortes laços comunitários, espirituais beneficiavam-se com a presença de
e intelectuais com o Império uma ativa comunidade judaica, e Por volta de 1200, a população
Germânico. De suas terras os judeus isto era particularmente verdadeiro judaica atinge um número
poloneses não herdaram apenas o na Polônia onde a economia crítico que tornaria sua presença
idioma, um dialeto alemão, que, ainda era agrícola e primitiva. permanente, do ponto de vista
como vimos, subsequentemente Os judeus, além de ter ampla demográfico, e, significativa, social
se desenvolveu no jargão judaico- experiência financeira, comercial e culturalmente. Essa permanência
polonês, o iídiche, mas também sua e administrativa, atuavam como envolvia aspectos legais e religiosos,
tradição religiosa e sua organização pioneiros na economia, colocando exigindo uma regulamentação tanto
comunitária, incluindo a aceitação seu próprio capital em circulação. por parte das autoridades judaicas
da autoridade rabínica asquenazita comunitárias quanto das polonesas.
alemã no país. No fim do século 12 e início do
13, os judeus administravam a Durante vários séculos a vida
Na segunda metade do século 12, Casa da Moeda da Grande e da e status jurídico dos judeus
após a fragmentação do Reino Pequena Polônia4 e cunhavam foram determinados por forças
moedas. Chegaram até os dias antagônicas. De um lado, a Coroa,
atuais moedas nas quais os nomes os príncipes e a alta nobreza
4
Pequena Polônia, a parte sul do país, em
polonês, Małopolska; em latim, Polonia dos príncipes foram cunhados em que, julgando a presença dos
Minor. letras hebraicas. Eram donos de judeus economicamente benéfica,

67 SETEMBRO 2017
COMUNIDADES

protegiam-nos. Do outro, a Igreja mais elevados do que o cobrado aos denominações protestantes e
Católica, a pequena nobreza, as cristãos, demolir cemitérios judaicos ortodoxas), os judeus e o judaísmo
municipalidades e os comerciantes e e atacar as sinagogas. Seria punido recebiam menos “atenção” das
artesãos cristãos que os viam como o sequestro de crianças judias com o autoridades eclesiásticas do que em
“um grande perigo” a ser afastado. intuito de batizá-las. Proibia, ainda, outros locais do Ocidente.
acusações de assassinato ritual,
A Igreja queria vê-los reduzidos libelos de sangue, apontando que as A volta da unidade
a párias. O 4º Concílio de Latrão bulas papais já haviam declarado tais política
(1216) promulgara decretos acusações sem fundamento.
permeados de ódio contra eles. No século 13, a Europa foi invadida
O judeu era visto como causador O estatuto foi mal recebido pelas pelos mongóis. Na Polônia, os
de “grande dano” à fé, devendo, autoridades eclesiásticas. Em 1279, principados foram devastados
portanto, viver segregado. E, o Conselho de Buda ratificou pelos exércitos mongóis da Horda
como a conversão polonesa ao a determinação que proibia aos Dourada, liderada por Batu-
catolicismo era algo relativamente cristãos “sob pena de excomunhão” Khan, neto de Genghis Khan, em
novo, enviados eclesiásticos eram socializar com judeus, e obrigava 1240, 1259 e 1287. Vencedores, os
despachados por Roma para se o uso do “símbolo judeu”, descrito mongóis levaram consigo milhares
assegurar que os estatutos canônicos como sendo “um anel de tecido de seus habitantes como escravos,
fossem postos em prática. A pequena vermelho costurado na parte inclusive muitos judeus.
ou baixa nobreza, comerciantes e superior de suas vestimentas, no
artesãos cristãos, principalmente os lado esquerdo do peito”. Porém, até Em 1319, o rei Ladislau I, da
de origem germânica, nutriam um o catolicismo assumir o controle em Grande Polônia, inicia a reunificação
forte antagonismo econômico contra terras polonesas, a Igreja não tinha do Estado polonês, alcançada por
os judeus. Os direitos concedidos poderes de infligir sérios danos aos seu filho Casimiro III, o “Grande”.
pelos governantes haviam aberto a judeus. Além disso, até o século 18, Em seu reinado (1333-1370),
estes últimos novas oportunidades e, em virtude do grande número de Casimiro III duplicou o território
à medida que os judeus expandiam religiões “dissidentes” (inúmeras sob seu domínio e incorporou a
suas atividades e prosperavam, a
população cristã ia-se ressentindo da
competição e atiçava, ainda mais, o
anti-judaísmo.

Os governantes, apesar da pressão


para tomarem medidas contra
os judeus, passaram a promulgar
uma série de decretos, Cartas de
Privilégios, para protegê-los. Em
1173, Mechislav III, por exemplo,
proibiu todo tipo de violência contra
judeus e, em particular, os ataques
verbais e físicos efetuados por
religiosos eclesiásticos e monásticos.

Em 1264, o grão-duque Boleslau


de Kalisz, da Grande Polônia,
promulgou um estatuto definindo
os direitos dos judeus em seus
domínios. O Estatuto de Kalisz,
como é conhecido, garantia-lhes
proteção e autonomia legal. Entre
outros, proibia impor impostos Interior da Sinagoga Rymanow, destruída

68
REVISTA MORASHÁ i 97

Galícia, fundando várias cidades e em 1349, outros em Cracóvia,


promovendo o desenvolvimento de Głogów e em várias cidades
sua capital, Cracóvia, localizada na polonesas situadas perto da fronteira
Voivodina (Pequena Polônia). Ele alemã. Porém, a Polônia não é
deu início a importantes reformas mencionada nas crônicas judaicas
e promoveu a atividade econômica. que relataram as perseguições da
Querendo atrair a experiência época; talvez porque a situação
financeira e comercial dos judeus, tenha sido relativamente “mais
Casimiro III incentiva a imigração tranquila” quando comparada com
judaica, principalmente do Império a destruição impiedosa sofrida por
Germânico. Sem ligações ou seus correligionários na Europa
interesses políticos e nacionais, o Ocidental. O que se sabe é que
Rei os considerava mais leais que os grande número de judeus alemães
cristãos. buscaram refúgio em território
polonês.
No segundo ano do seu reinado,
Casimiro III ratificou, ampliou Hannah, óleo sobre tela, A situação da população judaica
e estendeu a todas as províncias Isidor Kaufmann piora no final do século 14 com
do Reino o Estatuto de Kalisz a subida ao trono, em 1382, de
de 1264. Promulgou leis que iam tornar poderosos e politicamente Jadwiga (Edwiges), bisneta de
contra a determinação de Igreja influentes nas cortes. Ladislau I. Quatro anos mais
de isolar a população judaica dos Porém, a situação dos judeus foi tarde, ela se casa com o Grão-
“fiéis”. Determinou que os judeus sendo minada à medida que crescia duque Jogaila, da Lituânia. Essa
não estariam sujeitos a tribunais a influência da Igreja e das vizinhas união dinástica vai ser de extrema
municipais ou eclesiásticos, populações católicas, que passaram a importância na história da região,
concedendo-lhes acesso jurídico ao “exportar” seu ódio ao judeu. pois Edwiges condiciona o
sistema da Corte. Eles passaram a ter casamento à conversão do noivo
direito de livre trânsito e residência Em 1347, o país é palco da primeira ao catolicismo, exigindo o mesmo
em todo o reino, podendo alugar ou acusação de assassinato ritual e, dois de outros nobres lituanos. Jogaila
hipotecar imóveis da nobreza, além anos mais tarde, quando a Peste se converte, assumindo o nome de
de conceder empréstimos. Negra que varreu toda a Europa Wladyslaw Jagiello II, o primeiro
(1348-1349) se espalha pela Polônia, da dinastia dos Jagiello. Até então, os
As inúmeras cartas de direitos traz consigo a nova vertente de anti- lituanos haviam resistido ferozmente
outorgadas ao longo da história judaismo. Na época não se conheciam às tentativas de conversão ao
da Polônia foram fundamentais as causas da peste bubônica que catolicismo, mas como apenas os
para o florescimento de uma dizimou, entre um terço e metade da católicos podiam fazer parte da
vida judaica em uma sociedade população da Europa. Acreditava- cúpula governamental e militar, a
na qual eles sempre foram vistos se que fosse pestis manufacta, uma maior parte da elite lituana acaba se
como estrangeiros. Os direitos doença provocada por uma substância convertendo.
concedidos procuravam assegurar indutora secretamente produzida
às comunidades judaicas autonomia pelos inimigos do cristianismo. Uma rainha dedicada ao
comunitária, segurança física e Os supostos culpados eram os fortalecimento do catolicismo
liberdade religiosa e econômica. judeus, que teriam envenenado os e um rei que se rendera à influência
Procuravam, também, resolver poços, e a Europa foi tomada pela do clero católico eram claros
os interesses conflitantes entre maior onda de antissemitismo desde sinais de que haveria consequências
as comunidades judaicas e os a 1a Cruzada. Milhares de judeus para os judeus. Fortalecida,
municípios, e entre comerciantes e foram assassinados e propriedades a Igreja consegue que fossem
artesãos cristãos e judeus, delineando destruídas. adotados decretos anti-judaicos
os limites da atividade econômica até então raramente postos em
destes últimos. E assim, os judeus Crônicas polonesas da época relatam prática. Os judeus passam a ser
prosperaram, chegando alguns a se ataques contra os judeus em Kalisz, obrigados a viver em bairros

69 SETEMBRO 2017
COMUNIDADES

separados e a usar uma marca o Sejm, o Parlamento. O monarca próspera oferecia a garantia de
distintiva na roupa. Apesar de ainda mantinha as funções de Rei polonês que os empréstimos seriam pagos.
usufruírem de extensa proteção e Grão-duque da Lituânia. Nos A partir da União de Lublin,
das leis, foi crescendo a influência anos seguintes, o Estado polonês os judeus são incentivados a se
da Igreja. Em 1407, em Cracóvia, continuou a se expandir para o estabelecer na Ucrânia, e passam
instigados por padres, os judeus Leste, tornando-se um dos maiores a ter um papel de liderança no
são atacados, suas propriedades e mais populosos da Europa desenvolvimento da Polônia
destruídas, crianças e adultos abrangendo os territórios do que Oriental, do interior da Lituânia e
batizados à força. Muitos morrem, são hoje a Polônia e a Lituânia, a da Ucrânia. O rápido crescimento
outros tantos ficaram feridos. A Bielorrússia e a Letônia, grande da população europeia fora
violência ocorrida em Cracóvia parte da Ucrânia e Estônia, além da acompanhado por uma crescente
se repete em 1464. No entanto, região ocidental da atual Rússia. necessidade de alimentos e a Polônia
apesar do crescente anti-judaísmo era um grande produtor de grãos.
que imperou durante a dinastia dos Atividades econômicas
Jagiello, as terras polonesas pareciam Por volta de 1500, estima-se que
um “paraíso” quando comparadas Na Polônia, os judeus podiam houvesse nos domínios da dinastia
com o crescente anti-judaísmo e a participar de inúmeras atividades Jagiello entre 10 a 30 mil judeus; em
violência sofrida pelos judeus em econômicas, incluindo agricultura 1575, o número salta para 150 mil.
terras alemãs. Isso fez com que e pecuária, artesanato, e comerciais, Judeus vindos de toda a Europa para
um número cada vez maior deles participando do comércio lá se dirigiam.
procurasse refúgio na Polônia. internacional com a Europa, o
Império Otomano e a Rússia. Em sua maioria, estabeleciam-
No decorrer do século 15 e início se nas terras pertencentes à alta
do 16, aprofundara-se o processo de A Coroa, os nobres e as instituições nobreza polonesa. Estes, donos
“polonização” da região sob domínio religiosas, proprietárias de grandes de enormes latifúndios e senhores
das duas Coroas. Este processo é terras, tinham interesse em dos camponeses que neles viviam,
concluído em 1569 com a União promover a segurança dos judeus. passaram a arrendar suas terras a
de Lublin, que transformava o Uma comunidade judaica forte e judeus por vultosas quantias, através
Reino da Polônia e o Grão-Ducado segura trazia benefícios máximos de um sistema chamado “arenda”.
da Lituânia em um único estado, a um custo mínimo. Ademais, É bem verdade que a Igreja era
a Primeira República da Polônia. nesse período há uma redução da profundamente anti-judaica, no
Conhecida, também, como a importância judaica como credores, entanto, inúmeras instituições
Comunidade Polaco-Lituana ou pois se tornam grandes captadores de religiosas eram donas de grandes
das Duas Nações, era governada recursos de prestamistas cristãos e de propriedades de terra e “usavam” os
por um único monarca (eleito pela instituições religiosas para cobrir seus judeus para administrá-las.
nobreza, a szlachta), juntamente com investimentos. Uma comunidade Os latifundiários tinham autoridade
judicial sobre “seus judeus”,
O antigo mercado na cidade de Krzemieniec, na Polônia Oriental
particularmente após 1539, quando
é sancionada uma lei transferindo o
status jurídico e fiscal dos judeus da
Coroa aos donos das propriedades
onde viviam.

Cabia ao arrendatário (o arendarz)


custear a atividade agrícola,
organizar a produção e a
comercialização dos produtos. Pelo
sistema de arenda, as concessões
podiam ser de uma aldeia inteira
ou de uma área de centenas de
quilômetros quadrados. Os judeus

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1. Típico pátio judaico no Séc. 17, em Lublin 2. Sinagoga Suchowla, belo exemplo das sinagogas em madeira, na Polônia
3. Exterior da Antiga Sinagoga Stary, Cracóvia, Polônia

tinham, sempre, que arrendar não administradores judeus e os todos os aspectos de sua vida. A
apenas a terra, mas também todos camponeses cristãos ortodoxos5 profunda religiosidade era fonte de
os ativos fixos, tais como moinhos criava tensões, que eram ainda orgulho e, nos dias tenebrosos, de
e hospedarias, o direito exclusivo de maiores nas relações entre os servos consolo. A sinagoga era uma das
destilar e vender bebidas alcoólicas, e ortodoxos e os judeus. primeiras construções erguidas por
a arrecadação de impostos uma comunidade. Milhares foram
alfandegários. Além disso, havia uma O judeu que arrendava uma construídas, de todos os tamanhos,
transferência total de autoridade do propriedade costumava levar, além algumas em alvenaria, outras
latifundiário para o arrendatário. de sua família, outros judeus que se em madeira. Em cada shtetl, não
tornavam subarrendatários. Surgem importava seu grau de penúria, havia
Em 1594, por exemplo, o Príncipe shtetls6, aldeias e municípios inteiros ao menos um shul, uma sinagoga,
Piotr Zabrzeski arrendou a Efrayim onde a maioria da população era que era o centro da vida religiosa e
de Międzyboż, por 9.000 zloty, judia. Acabou criando-se uma social.
uma soma imensa, todas as suas classe média judaica na zona rural,
propriedades localizadas no distrito e o sistema de arenda tornou-se Era primordial o estudo da Torá,
de Krzemieniec, inclusive “todas as um empreendimento “básico” para do Talmud e de todas as obras
aldeias e assentamentos..., os nobres a comunidade judaica. Cada item sagradas. As crianças aprendiam a
boiardos (membros da aristocracia), do contrato de arrendamento – ler no cheder, a casa de estudos, e os
os burgueses e os servos... todas moinhos, tavernas, arrecadação de mais velhos iam para as ieshivot. A
as suas dívidas, obrigações e impostos alfandegários e assim fama de uma cidade não residia em
privilégios;…tavernas, moinhos por diante – ou cada subunidade sua importância econômica, mas
e seu faturamento,... os dízimos geográfica da propriedade poderia no número de suas ieshivot e na
pagos pelos boiardos, burgueses e ser sublocada para outros. reputação de seus rabinos. Em meio
servos,... bem como todos os demais à população polonesa, na qual 90%
rendimentos...”. Vida comunitária do povo não sabiam nem ler nem
e religiosa escrever, era praticamente nulo o
Os judeus atuavam como analfabetismo entre os judeus.
representantes dos donos junto A vida judaica floresceu na Polônia
aos camponeses, um papel cheio nos século 16 e 17. Historiadores São incontáveis os grandes
de perigos, já que eram eles que, estimam que em meados do século estudiosos, rabinos e líderes
na ausência dos proprietários, 16, cerca de 80% dos judeus do espirituais que viveram em terras
impunham as exigências feudais mundo viviam na Polônia, que se polonesas. Um dos maiores eruditos
e aplicavam a disciplina. O fato tornou o centro cultural e espiritual judeus de todos os tempos foi Rabi
dos nobres serem católicos, os dos judeus asquenazitas. O iídiche Moshé Isserles, conhecido como
era o idioma utilizado por todos os o Rema (ou Remo). Ele nasceu em
judeus, criando uma cultura própria. Cracóvia, em 1520, e sua obra mais
5
A Igreja Ortodoxa Ucraniana está ligada à
história da Igreja Ortodoxa Russa.
conhecida é Mappá (literalmente
6
Shtetl - vilarejo, cidade pequena, em
O cotidiano da população judaica “Toalha de mesa”) – um
iídiche. girava em torno da fé, que dominava comentário sobre o Shulchan Aruch

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(“Mesa posta)”, o Código de Lei a de Cracóvia e Lublin), da Rússia figura de Bohdan Chmielnicki, a
Judaica, escrito por Rabi Yossef Vermelha (a de Lemberg), da Volínia situação sai do controle. Chmielnicki,
Caro. Mappá, que trata dos costumes (as de Ostrog e Kremenetz), e da furioso pela conduta das autoridades
asquenazitas, se tornou o Código de Lituânia (as de Brest e Grodno). polonesas de seu lugar natal, incitou
Lei Judaica da grande maioria das os cossacos ucranianos a se juntarem
comunidades desta origem. Os massacres de à resistência armada. Em 1648,
Chmielnicki (1648-1649) encabeçando cossacos do Dnieper
A instituição judaica básica era a e tártaros da Crimeia, ele inflige
Kehilá, a comunidade, que tinha um O sistema de arenda era um barril de grave derrota ao exército polonês.
status legal autônomo. A peculiar pólvora onde o descontentamento Esta derrota serviu como um sinal
posição ocupada pelos judeus na econômico se entrelaçava com para que se rebelasse toda a região
Polônia fez sua autonomia jurídica o antagonismo entre católicos e nas margens orientais do Dnieper. A
ser possível e necessária. A Coroa e cristãos ortodoxos e principalmente revolta banhada em sangue alastrou-
a população consideravam os judeus o anti-judaísmo. Os camponeses se por todo o território da atual
um corpo social independente. ortodoxos viam os judeus, “infames Ucrânia, Volínia e Podólia. 
A definição de sua autonomia infiéis e estrangeiros” representantes
foi delineada juridicamente em dos nobres poloneses católicos, como Camponeses ortodoxos e ucranianos
1551, em uma carta de privilégios sendo os culpados por lhe impor moradores da cidade juntaram-
concedida por Sigismundo II pesado ônus econômico. se às forças de Chmielnicki que
Augusto, Rei da Polônia e Grão- semeavam o terror e a morte por
Duque da Lituânia. O ódio religioso e o profundo onde passavam. A região se tornou
descontentamento acabaram um grande matadouro. Nobres e
Como resultado dessa autonomia explodindo. O ressentimento dos padres poloneses católicos foram
jurídica, cada cidade ou aldeia camponeses contra o poder polonês imediatamente assassinados.
era governada por dois conselhos veio à tona em várias revoltas, Mas, apesar de os poloneses
independentes, um cristão e outro rapidamente reprimidas. Mas, em católicos serem o principal alvo
judaico. Enquanto os cristãos maio de 1648, quando surge a do descontentamento, foi sobre os
eram governados por um conselho judeus que se abateu toda a sua fúria.
municipal, regidos pela legislação Citando um historiador russo:
do Reino, os judeus o eram por um “Os assassinatos eram acompanhados
conselho comunal composto de por torturas bárbaras (...), no entanto,
rabinos e líderes comunitários, cuja a mais terrível crueldade era exercida
autoridade se baseava nos privilégios sobre os judeus. Ele eram destinados
concedidos pelo rei ou pelos à aniquilação...”.
latifundiários, bem como na Lei e
tradição judaica. Ambos os conselhos Os massacres de 1648 e1649 são
eram, porém, subordinados à conhecidos entre os judeus como
autoridade supervisória do rei ou do Gzeyres tach vetat (Malignos
proprietário. decretos). A literatura judaica
da época relata os ocorridos em
Já no final do século 16, as inúmeras comunidades, como
comunidades judaicas criaram uma Nemirov, Ostrog, Narol e Polonnoye.
federação de kehilot quase autônoma, Em Tulchin, soldados poloneses
o Conselho de Quatro Nações. entregaram, inutilmente, os judeus
Esse Conselho, que representou a em troca de suas próprias vidas;
comunidade judaico-lituana de 1580 em Tarnopol e Dubno, poloneses
até 1764, era formado pelos rabinos impediram que os judeus que viviam
e representantes comunitários nas redondezas entrassem na cidade.
da Grande Polônia (sendo que Em Dubno, dois mil judeus foram
a principal era a de Posen), da Rabino na Sinagoga de madeira de
Jablonów, 1897-1898. Óleo sobre
massacrados. Um dos relatos descreve
Pequena Polônia (as principais eram madeira, Isidor Kaufmann a devastação: “Muitas comunidades

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Sinagoga de madeira em Chodorov. Pintura no teto, Israel Lisnicki, 1714. Reconstituição feita no Beit Hatefutsot, Israel

além do Dnieper, como Pereyaslaw, domínio do governo polonês nas condições normais na vida judaica.
Baryszowka, Piratyn e Boryspolê, regiões onde vivia a maior população Em 1655, os suecos – terceiros
Lubin, Lachowce (...) foram judaica. Mas, os cossacos e os inimigos da Polônia – invadem a
atacadas e os judeus tiveram morte ucranianos ortodoxos continuavam Polônia Ocidental (1655-1658).
cruel e amarga. Alguns foram insatisfeitos. Chmielnicki então Seu rei, Charles Gustav, conquista
esfolados vivos e sua carne atirada entabula negociações com o Czar uma cidade após a outra, inclusive
aos cães; outros tiveram as mãos russo Alexis Michaelovich, buscando Cracóvia e Varsóvia. Grande parte
e membros decepados e seus a incorporação ao Império moscovita da Grande e da Pequena Polônia
corpos atirados na estrada só para – com os direitos de uma província caem em mãos dos suecos.
serem destroçados por carroças e autônoma – da parte ortodoxa da
esmagados pelos cavalos (...). Ucrânia, sob o nome de Pequena No final do século 17 boa parte
O inimigo massacrou mulheres e Rússia. Em 1654, realiza-se essa dos territórios da Comunidade
crianças no colo de suas mães (...). incorporação e, no mesmo ano, os Polaco-Lituana estava ocupada por
Atrocidades semelhantes foram russos marcham sobre a Rússia cossacos, russos e suecos. O exército
perpetradas em todos os lugares por Branca e a Lituânia. É, então, a polonês reorganizado consegue fazer
onde passavam...”. vez dos judeus da região noroeste recuar os invasores, mas a nação se
de padecer do seu quinhão de encontrava em estado caótico e era
Não se sabe ao certo o número sofrimento. A captura das principais grande a deterioração econômica.
de judeus mortos nos massacres, cidades polonesas pelas hostes
de acordo com algumas crônicas unidas dos moscovitas e dos cossacos As perdas infligidas aos judeus
judaicas foram 100 mil, mas há foi acompanhada do extermínio ou poloneses na década de
relatos de que teriam sido 300 mil e expulsão dos judeus... 1648-1658 foram terríveis.
que mais de 300 comunidades foram Nos relatos dos cronistas da época
destruídas. No entanto, apesar da magnitude umas 700 comunidades judias
do desastre, muitos judeus retornam foram vítima de massacres e
A situação se acalmou em agosto à região. No final de 1650, o pilhagem e o número de mortos é
de 1649, quando um tratado foi Conselho das Quatro Terras, estimado em 500 mil, excedendo as
assinado entre Chmielnicki e a reunido em Lublin, redige uma série catástrofes das Cruzadas e da Peste
Coroa Polonesa restabelecendo o de regulamentos para restaurar as Negra.

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COMUNIDADES

sociais. Na época, as comunidades


judaicas se encontravam afundadas
em desespero, com a intensificação
dos pogroms e das acusações de
assassinato ritual. Ademais, graves
dificuldades econômicas e tensões
sociais internas afetavam o dia-
a-dia e sustento das populações
judaicas.

Uma mistura de sofrimento e


debilitante pobreza serviram de
pano de fundo para o surgimento,
no início do século 18, do
Sinagoga de Tykocin
Chassidismo. Seu fundador, Rabi
Israel Ben Eliezer, o Baal Shem Tov
(o Besht), nasceu na Podólia em
Nas cidades situadas na margem (1753), Yampol (1756), Stupnitza 1700.
esquerda do Dnieper, região (1759) e Voislavitza (1760).
povoada por cossacos e nas regiões No século 18, volta à tona o ódio No final do século 18, a Polônia
de Chernigov, Poltava e parte de acumulado pelas massas ortodoxas deixa de existir como país soberano.
Kiev, as comunidades judaicas contra o domínio polonês na região Desaparece do mapa a Comunidade
haviam desaparecido quase por que hoje é a Ucrânia. A desordem Polaco-Lituana, sendo dividido o
completo. E nas localidades na geral e a agitação religiosa levaram seu território entre seus poderosos
margem direita do Dnieper ou na à formação de bandos conhecidos vizinhos, em 1772, 1793 e 1795.
parte polonesa da Ucrânia, bem como Haidamacks, compostos por A Prússia fica com a parte ocidental
como na Volínia e Podólia, onde cossacos da Rússia, Ucrânia e servos até o Mar Báltico, a Áustria com
quer que os cossacos tivessem em fuga. Os Haidamacks atacaram um pedaço central que incluía a
pisado, apenas cerca de um décimo a região em 1734, assassinando Galícia, enquanto à Rússia coube
da população judaica conseguiu grande número de nobres poloneses ficar com a maior parte do território
sobreviver. e milhares de judeus. Mais uma vez, – Ucrânia, Lituânia e Polésia.
os judeus se tornaram o alvo. Doravante a vida dos judeus que
Porém, ainda que dizimada e O comandante das forças viviam nessas regiões iria depender
destituída, a população judaica Haidamacks chegou a proclamar de cada soberano, pois, somente em
polonesa superava numericamente que o objetivo da revolta era 1918 a Polônia ressurgiria como
as populações judaicas de outros “destruir o Povo Judeu para estado soberano. A vida
locais na Europa. A extraordinária proteger o cristianismo”. Bandos de das centenas de milhares de judeus
vitalidade do povo judeu era Haidamacks destroem comunidades que se tornaram súditos indesejáveis
novamente demonstrada – os em Fastov, Granov, Zhivotov, dos czares seria ainda mais
judeus poloneses conseguiram, Tulchin, Dashev e Uman. De sofrida do que a daqueles que
em um relativo espaço de tempo, acordo com o censo oficial de 1764, ficaram sob domínio da Prússia
recuperar-se de suas terríveis viviam 300 mil judeus no território e da Áustria.
perdas. Mas a vida era muito difícil. da atual Ucrânia, estimando-se
que entre 50 mil e 60 mil judeus
O fim do século 17 é marcado tenham sido assassinados. BIBLIOGRAFIA
por inúmeros julgamentos nos Dubnow, Simon Markovich, History of the
quais os judeus eram acusados de Os anos em que a Comunidade Jews in Russia and Poland eBook Kindle
assassinato ritual e profanação dos Polaco-Lituana ficou estraçalhada Palmer, Nigel, Jews Of Poland: Up to 1795
(P Publishing History Series Book 14)
sacramentos da Igreja. Os mais por revoltas internas e invasores eBook Kindle
revoltantes foram os de Dunaigrod externos resultaram em uma Zamoyski, Adam, Poland: A history. eBook
(1748), Pavolochi e Zhytomir deterioração econômica e tensões Kindle

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Agradeço o recebimento da Revista Morashá. Destaque para


a incrível matéria “Mishkan, O Tabernáculo”! Depois de uma
fantástica leitura, viro a página e me deparo com um artigo
exuberante “A essência de D’us, A Divina Providência e os
Mandamentos”. Todos os artigos estão incríveis, como de
costume. Entretanto, “As cores e a magia dos Mercados de
Israel” me fez relembrar um momento especial quando morei
em Israel e ficava horas e horas nos Shuks. Parabéns para
todos que fazem da Morashá uma especial Revista.
Marcio Shmuel Chaim Gomes dos Santos
Rio de Janeiro - RJ

Recebi o exemplar de Morashá com Agradeço pelo excelente número Em nome da Biblioteca do Congresso
o artigo sobre os Judeus da Escócia da Morashá. Magnífico texto, com dos EUA, acuso o recebimento da
e agradeço-lhes por todo o trabalho especial relevo para as matérias Revista “Morashá”, Ano XXIV –
envolvido em torná-la uma Revista referentes à Guerra dos Seis Dias e Junho 2017 – No. 96, e agradeço sua
tão atraente visualmente. Ainda que sua importância para a consolidação valiosa contribuição.
eu não entenda o Português, há muitas histórica do Estado de Israel, com Eva Reyes Cisnero
partes do texto que as pessoas que têm pleno domínio sobre Jerusalém, Bibliotecária, Seção de Aquisições
Depto. Ibéria/Rio, 4213
familiaridade com o Francês capital eterna do Povo Judeu. “Que a Divisão da África, América Latina e
ou Italiano puderam entender. paz desça sobre a Casa de Israel.” Europa Ocidental
Daí eu julgar que vocês fizeram um Inocêncio Coelho,
Biblioteca do Congresso dos EUA

trabalho surpreendente. A própria Procurador da República

Revista, do ponto de vista estético,


Por e-mail Agradecemos sua gentil doação
é maravilhosa. Portanto, para nossa coleção. A edição 95 da
congratulações a todos pelo lindo Recebemos o material enviado a Morashá, abril 2017, Ano XXIV,
trabalho que fazem e, novamente, esta Fundação, em cumprimento contendo o artigo “Os segredos
à legislação vigente de Depósito da captura de Eichmann”, por
nossos agradecimentos pela maneira
Legal. Agradecemos esta importante Zevi Ghivelder, acompanhada do
encantadora como descreveram nossa
contribuição para a preservação suplemento “Seder de Pessach”
comunidade.
e a guarda da Coleção “Memória constitui importante contribuição para
Dr. Kenneth Collins
Nacional”, composta pela produção a nossa biblioteca.
Presidente do Arquivo Central
Judaico Escocês - Escócia intelectual do país. Rachel Cohen
Assistente do Diretor
Alessandra Moraes da Biblioteca Yad Vashem
Sou um assíduo leitor da Revista on Chefe da Divisão de Depósito Legal Jerusalém - Israel
C. de Processamento e Preservação
line. Há anos acesso o site e, a cada Fundação BIBLIOTECA NACIONAL
edição, aprendo mais. Tenho que Ministério da Cultura Durante muitos anos recebemos com
confessar que antes de ler a Morashá Rio de Janeiro - RJ
grande expectativa a Morashá em
meu conhecimento sobre o judaísmo nossa residência, em Belo Horizonte,
e a história de nosso povo era bem Gostaria muito de agradecer pela Atualmente, meus dois filhos e eu
reduzido. Nessa edição adorei o Morashá. No ano passado fui a Israel fizemos aliá e, mesmo vivendo em
artigo sobre o Tabernáculo. Lembro- pela primeira vez e, em menos de um nossa amada Eretz Israel, sentimos
me como se fosse hoje da Guerra ano, retornei, pois me apaixonei muita falta de folhear as bem
dos Seis Dias, o medo e a tensão. por sua história. Apesar de não ser elaboradas e inspiradoras páginas desta
Confesso que fiquei com lágrimas nos judeu, a cada dia me encanto mais importante mídia judaica.
olhos lendo a tomada de Jerusalém em pela cultura, histórias de superação. Sarah Baruch
1967. É uma pena que as informações E encontrei na Revista muitos HaGalil Carmiel - Israel
contidas no artigo não estão sendo textos que estão me acrescentando
divulgadas na mídia que sempre faz conhecimentos sobre os judeus e o Na matéria da Morashá ,“A Batalha por
Jerusalém”, edição XXIV, junho 2017, p. 67,
parecer Israel como sendo o vilão. judaísmo. linha 4 , o correto é “.......Se eu me esquecer
Jader Almeida
de ti, ó Jerusalém...”, escreveu o Rei David
Arnaldo Loewn no salmo 137-5.
Rio de Janeiro - RJ Rio de Janeiro - RJ

75 setembro 2017

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