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VIDE “Anencefalia fetal e doação de órgãos”, in Boletim Juízes para a Democracia, Ano 4, n.º
13, outubro-dezembro/1998, p. 08.
VIDE “Um bom começo”, in Boletim IBCCrim n.º 143, Outubro/2004, p. 02, Alberto
Silva Franco.
VIDE “O aborto legal”, in Ivete Senise Ferreira, Tese de Doutoramento, São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1982.
VIDE “Os dilemas envolvidos no aborto”, in Revista Veja, Edição n.º 2186,
09/10/2010, pp. 68/70.
STF julga prejudicado Habeas Corpus a favor de antecipação de parto de feto com
anomalia
RELATÓRIO
“EMENTA
HABEAS CORPUS. PENAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA A PRÁTICA DE
ABORTO. NASCITURO ACOMETIDO DE ANENCEFALIA. INDEFERIMENTO. APELAÇÃO.
DECISÃO LIMINAR DA RELATORA RATIFICADA PELO COLEGIADO DEFERINDO O
PEDIDO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IDONEIDADE DO WRIT PARA A DEFESA
DO NASCITURO.
1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código
Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se
falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a
defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do
nascituro.
2. Mesmo tendo a instância de origem se manifestando, formalmente, apenas da
decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem
qualquer possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento
definitivo do mérito. Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não
deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal.
3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido,
tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar conta
ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco
analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesses casos, o princípio da reserva legal.
4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto,
previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que
podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do
Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de
forma propositada pelo Legislador.
5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo,
desautorizando o aborto; outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada
a apelação interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da
Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental.”
“A insurgência não procede. Com efeito, o habeas corpus é a via idônea para
alcançar a tutela jurídica ora pleiteada. A eventual ocorrência de abortamento fora das
hipóteses no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão
pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se
presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à
preservação da vida do nascituro.”
No mesmo sentido: HC 30.299, rel. min. Gilson Dipp; HC 27.659, rel. min. Paulo
Medina, e HC 27.504, rel. min. Francisco Falcão.
Note-se, por fim, que a ministra relatora daquele feito tinha plena ciência de que se
opunha a firme entendimento desta e daquela Corte quando deu seguimento à impetração,
conforme consta do despacho da liminar concedida (grifo nosso):
“Nessas condições, nós julgamos que o direito à vida privada inclui a decisão de abortar, mas
que esse direito não é ilimitado, devendo ser visto à luz do relevante interesse que o Estado
tem em regulamentá-lo.”
“Proibir o aborto não é a mesma coisa que tomar decisões coercitivas no campo do
zoneamento urbano ou da proteção de espécies em perigo. O impacto em certas pessoas
(mulheres grávidas) é bem maior. Uma mulher que é obrigada a levar adiante uma gravidez em
razão da pressão da sua comunidade não tem mais o controle do seu corpo. Isto é uma
escravidão parcial, uma privação de liberdade muito mais séria do que os ônus sofridos pelos
cidadãos em razão do poder de polícia do Estado em matéria urbana! Ter um filho pode
significar a destruição da vida de uma mulher!”
Já o segundo aspecto que gostaria de enfocar diz respeito ao possível cometimento de crime
de aborto (Código Penal, art. 124), caso a gestante assim decida proceder.
O acórdão prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça, acerca da possível conduta abortiva da
paciente, encontra-se fundamentado nos seguintes termos:
“Contudo, é fato inarredável que a situação posta nos autos não está expressa na
Lei Penal deste País como hipótese em que o aborto é autorizado.
(...) A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e
consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite
atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva,
tampouco analogia in malam partem.
(...) O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta nos
autos originários é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que
se lhe acrescente mais uma hipótese que, insisto, fora excluída de forma propositada pelo
Legislador.”
Vê-se, assim, que são dois os argumentos do Superior Tribunal de Justiça, quais
sejam: (i) de que a vida do nascituro, no caso concreto, é protegida pelo Direito Penal e (ii) de
que o aborto eugênico não se encaixa nas hipóteses de excludente de ilicitude, previstas no
art. 128 do Código Penal.
Com relação ao primeiro argumento, faço a seguinte indagação: quando, em razão
de anencefalia, a vida extra-uterina do nascituro é inviável, deve o direito garantir a essa vida o
mesmo grau de proteção?
Entendo que não. Explico.
A tutela da vida humana experimenta graus diferenciados. As diversas fases do
ciclo vital, desde a fecundação do óvulo, com a posterior gestação, o nascimento, o
desenvolvimento e, finalmente, a morte do ser humano, recebem do ordenamento regimes
jurídicos diferenciados.
Não é por outra razão que a lei distingue (inclusive com penas diversas) os crimes
de aborto, de infanticídio e de homicídio.
Ora, se o feto ainda se encontra no ventre da mãe, é evidente que sua situação
jurídica, penal inclusive, é diversa da das pessoas já existentes.
Limitando-me ao problema concreto, ou seja, de feto que, por ser portador de
anencefalia, não irá sobreviver muito tempo após o parto, devemos nos ater a qual é o objeto
jurídico tutelado pelos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal.
Creio que seja, de um lado, a preservação de uma vida potencial e, por outro, a
incolumidade da gestação.
Daí por que há de se separar a situação em que o feto se encontra em
desenvolvimento das situações em que ele está biologicamente morto e, ainda, da situação em
que ele está biologicamente vivo, mas juridicamente morto.
Apenas a primeira hipótese é abraçada pelo Direito Penal, uma vez que não se
visa a proteger situações moralmente controversas, mas apenas aquelas em que exista algum
obstáculo durante a gestação a impedir a transformação de vida potencial em um novo ser
humano.
Por essa razão, o feto anencefálico, mesmo estando biologicamente vivo (porque
feito de células e tecidos vivos), não tem proteção jurídica.
Sobre o tema, e com orientação idêntica à nossa, o professor Claus Roxin, em
recente visita ao Brasil, proferiu a palestra “A proteção da vida humana através do Direito
Penal”, oportunidade em que salientou (i) que a vida vegetativa não é suficiente para fazer de
algo um homem e (ii) que com a morte encefálica termina a proteção à vida. A transcrição da
referida palestra pode ser obtida no seguinte
sítio:http://wwww.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto_Roxin.htm (consultado
em 03.03.2004).
A própria lei de transplante de órgãos (Lei 9.434/1997), ao fixar como momento da
morte do ser humano o da morte encefálica[5], reforça esse argumento.
Concluo. O feto, desde sua concepção até o momento em que se constatou
clinicamente a irreversibilidade da anencefalia, era merecedor de tutela penal. Mas, a partir do
momento em que se comprovou a sua inviabilidade, embora biologicamente vivo, deixou de ser
amparado pelo art. 124 do Código Penal.
Por fim, com relação ao argumento de que o aborto eugênico não se encontra
incluído no rol de excludentes de ilicitude previsto no art. 128 do Código Penal, tenho que,
sendo o comportamento atípico, a questão fica prejudicada.
De fato, se a conduta não é típica, sequer há de se cogitar de ilícito penal.
No entanto, importante frisar que há uma razão histórica para o aborto eugênico
não ser considerado lícito. Quando da promulgação do Código Penal, em 1940, não havia
tecnologia médica apta a diagnosticar, com certeza, a inviabilidade do desenvolvimento do
nascituro pós-parto[6].
Nesse aspecto, é importante lembrar que os estudos referentes à medicina fetal e
à terapia neonatal datam da década de 1950, somente vindo a alcançar a sofisticação hoje
conhecida há pouco mais de dez anos. Explica-se, assim, a lacuna do Código Penal. O que
não se explica é o argumento fundamentalisticamente positivista utilizado pelo Superior
Tribunal de Justiça.
Ante o exposto, concedo parcialmente a ordem, para cassar a decisão do Superior
Tribunal de Justiça, assegurando à paciente GABRIELA OLIVEIRA CORDEIRO o direito de,
assistida por médico, tomar, caso seja essa sua vontade, a decisão de interromper a gravidez,
desde que isso ainda seja viável do ponto de vista médico, visto haver indícios de que a
gravidez já esteja em estágio avançado. Estendo igualmente a ordem a todo o corpo médico e
paramédico que eventualmente venha a se envolver no possível evento hospitalar.
CNTS pede ao STF que antecipação do parto de feto sem cérebro não seja caracterizada
como aborto
Médica com doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP),
a professora Maria Lucia Penna, de 51 anos, ensina a seus alunos na Uerj, no Estado do Rio
de Janeiro, conceitos de interesse da sociedade. Sobre a polêmica da interrupção da gestação
de fetos anencéfalos (sem cérebro), ela traz à tona uma reflexão: se os transplantes de órgãos
são autorizados quando constatada a morte cerebral, é uma contradição não aceitar o aborto
de um feto sem cérebro e que não tem nenhuma chance de vida. O debate está no Supremo
Tribunal Federal, que decidirá sobre ação movida pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Saúde. A CNTS pede permissão para a interrupção da gravidez de fetos
anencéfalos sem a necessidade de autorização judicial. Enquanto o STF não julga o mérito, é
preciso entrar na Justiça e pedir uma autorização - o que nem sempre acontece.
ÉPOCA - A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) diz, em seu
site, que a morte cerebral é aceitável por ser irreversível e que o desligamento da
máquina somente fará com que o coração pare. Adverte que não cabe paralelo com fetos
sem cérebro porque, mesmo sem expectativa de vida, eles têm tronco encefálico e o
coração bate. Como a Medicina vê esses conceitos?
Maria Lucia Penna - É uma contradição. Na verdade, a mãe funciona como a
máquina, porque carrega um feto sem a menor possibilidade de vida fora do útero. Ele está
aparentemente vivo, mas só tem o batimento cardíaco. A situação se compara exatamente à de
um caso de morte cerebral em que, diante do diagnóstico, retiram-se órgãos da pessoa para
doação. Claramente, os órgãos são extraídos antes que o coração pare.
ÉPOCA - Então, falta definir o que é vida?
Maria Lucia - O coração é a morte clássica. Parada cardíaca. O conceito de morte
encefálica foi gerado diante do grande problema de manter uma vida vegetativa, que não se
assemelha ao que a gente chama de humanidade. É onerosa e dolorosa para a família, uma
vez mantida por longos períodos. O transplante veio colocar a discussão. Há possibilidade de
salvar outras vidas. E, em Saúde Pública, nós precisamos de certa homogeneidade biológica
quando falamos em conceitos diferentes. O fato é que, na doação de órgãos, não se vê um
crime. Sabe-se que eles vão salvar. Sabe-se que quem está no centro cirúrgico tendo um
fígado, órgão vital, retirado não tem mais como viver além de determinados procedimentos de
manutenção por aparelhos. O mesmo ocorre com o anencéfalo. Ele não tem chance de vida
fora do útero materno.
ÉPOCA - A senhora falou que a parada cardíaca é a morte clássica. Mas o
coração bate tanto em quem tem morte cerebral quanto no anencéfalo...
Maria Lucia - É o tal negócio. Acreditamos que esse indivíduo levado para a
retirada de órgãos vitais deixaria de ter o coração batendo imediatamente após o desligamento
do respirador. Mas eu não posso garantir que isso aconteceria logo. Não é porque ele está
morto no sentido encefálico que o coração vai parar na hora em que se desligar o aparelho.
Pode durar uns minutos mais... A lógica da morte cerebral definitivamente não é essa.
ÉPOCA - E quanto ao argumento de que, havendo tronco encefálico, como
têm os anencéfalos, há vida e não se deve interrompê-la?
Maria Lucia - O tronco encefálico é responsável pela manutenção autônoma de
partes vitais, como respiração, pressão arterial etc. A lesão no tronco é que não permite a vida.
Mas a própria palavra anencefalia diz que não há encéfalo. Não existe possibilidade de vida
inteligente, de ser uma pessoa como a gente concebe uma pessoa. Ela é inviável do ponto de
vista médico. No caso do feto anencéfalo, quem é o ser vivo é a mãe.
ÉPOCA - A senhora comparou a mãe de um anencéfalo à máquina usada
para manter vivos, até a retirada de órgãos, aqueles cuja morte cerebral foi constatada.
Mas e quanto à alma, ao espírito?
Maria Lucia - Vejo uma situação análoga à da morte cerebral em todos os
sentidos. Do ponto de vista biológico, e da alma e do espírito também.
ÉPOCA - Em geral, as religiões são contra a interrupção da gravidez de um
feto inviável e pressionam o STF, que está para julgar o mérito da ação que autoriza o
aborto de anencéfalos. Como a senhora vê essa postura?
Maria Lucia - Precisávamos voltar a discutir a separação entre Igreja e Estado.
Religião é uma opção pessoal e deve ser respeitada. Existe liberdade religiosa nas sociedades
democráticas. Portanto, as leis não podem ter bases religiosas, porque há diferenças entre as
religiões. Há casos de gêmeos siameses em que os pais, por questões religiosas, não fazem
intervenção alguma. Por outro lado, a sociedade tem de ter uma coerência, pelo menos
técnica. Ou a gente acaba como na Arábia Saudita, discutindo se fotografia é moral ou imoral.
ÉPOCA - A senhora tem religião?
Maria Lucia - Não.
ÉPOCA - Então, sua visão é pelo lado biológico, técnico, não atenta às
questões da alma e do espírito...
Maria Lucia - Acho que tenho certa espiritualidade. Não tenho a religião, porque
não pratico nenhuma religião formalmente.
ÉPOCA - A senhora acredita em Deus?
Maria Lucia - Acredito. E cito a Bíblia aos que acharem que não atento para alma
e espírito. Deus não disse 'conheça as minhas palavras'. Ele disse 'conheça a mim'. Você tem
de conhecer a Deus. E não sair pregando a Bíblia ao pé da letra. A busca do conhecimento de
Deus é completamente diferente desse fundamentalismo religioso atual.
ÉPOCA - A senhora acha que falta uma discussão maior envolvendo a
sociedade, médicos e religiosos sobre o conceito de vida?
Maria Lucia - Sim, até porque é preciso, do ponto de vista médico, seguir uma
citada coerência biológica. Do ponto de vista social, há certa tendência a avaliar as
conseqüências. Do tipo aceitar a morte cerebral porque a doação de órgãos que advém daí é
um gesto do bem. Ou aceitar a fecundação in vitro, que gera embriões, alguns depois
descartados, porque se pensa: 'Ah, são mulheres desejando ter filhos'. Aí, não se vê crime.
Pelo que se propaga, a alma e o espírito também estão com os fetos fecundados in vitro. Mas
não se pode nem falar que é morte cerebral quando uma mãe não deseja manter a gestação
de uma criança que será inviável. Isso porque a mãe evitará o sofrimento dela. Mesmo que o
feto não tenha a mínima condição de vida, como os que não têm cérebro. Falta, antes de mais
nada, a discussão para superar o temor de, por discutirmos o tema, irmos para o inferno. Não.
Vamos discutir exatamente para evitar o inferno, que é o obscurantismo, a falta de
luz. (FONTE: Revista Época, Edição 340, 22/11/2004)
A menina sem estrela
O drama de Marcela de Jesus, que há quase nove meses resiste a uma cruel
anomalia congênita: a ausência de cérebro
Direito de escolha
Supremo retoma debate sobre fetos sem cérebro este mês
por Marina Ito
"É a vida que faz o Direito e não o Direito que faz a vida. A ausência de lei
expressa não significa que o Judiciário não possa autorizar a interrupção da gravidez quando a
vida fora do útero se mostra absolutamente inviável e constitui risco à saúde da gestante.
Afrontaria elementar bom senso exigir que a mulher prossiga agasalhando em seu ventre feto
absolutamente inviável. Permitir a interrupção da gravidez, em casos assim, exalta a
prevalência dos valores da dignidade humana, da liberdade, da autonomia e da saúde, em
absoluta consonância com os parâmetros constitucionais."
Esses foram os termos do fundamento dado pela 13ª Câmara Criminal do Tribunal
de Justiça de São Paulo para autorizar a interrupção de gravidez de uma mulher que estava na
16ª semana de gestação. A autorização para o aborto foi dada por votação unânime diante da
comprovação de que o feto era anencéfalo. C.L.A. entrou com recurso contra sentença da 2ª
Vara do Júri do Foro de Santana, na capital paulista, negando seu pedido. O juiz argumentou
que o aborto não encontra amparo legal.
Insatisfeita com a negativa do juiz de primeiro grau, a mulher bateu às portas do
Tribunal de Justiça. A turma julgadora determinou imediatamente a realização do aborto. “Em
face do mal extraordinário e grave como também o potencial perigo que corre a gestante,
circundado por sua atual situação angustiante e doença psicológica, que sem dúvida se verá
acometida, outra não deve ser a conduta, se não interromper o sofrimento”, afirmou o relator do
recurso.
O Código Penal só permite o aborto quando não há outro meio de salvar a vida da
gestante, ou se a gravidez for resultado de estupro. No primeiro caso, o médico não precisa de
autorização judicial. Quando a gravidez é resultante de abuso sexual, o aborto só pode ser feito
com consentimento da mulher e permissão de um juiz. Em outros casos, o aborto pode ser
punido com pena de um a três anos de prisão para a gestante, e de um a quatro anos de
reclusão para o médico.
A anencefalia é uma malformação fetal congênita e irreversível, conhecida como
ausência de cérebro, que leva a criança à morte poucas horas depois do parto. Em 65% dos
casos, a morte do feto é registrada ainda no útero. No caso apreciado pelo tribunal paulista, a
defesa da gestante sustentou que a interrupção da gravidez era medida de urgência porque a
continuidade da gestação colocava em risco a vida da mulher, além de ser inviável a
concepção do feto.
Amadurecimento jurisprudencial
Essa não é a primeira vez que a Justiça de São Paulo determina a interrupção de
gravidez em caso de malformação de feto. Em maio de 2009, o desembargador Amado de
Faria, então atuando na 3ª Câmara Criminal, capitaneou divergência que determinou a medida
por maioria de votos. Amado de Faria foi apoiado pelo voto do desembargador Geraldo
Wohlers.
Sobre a matéria, a doutrina e a jurisprudência oscilam em aceitar ou não a
interrupção da gravidez. Parte da jurisprudência entende que esse tipo de aborto tem por
fundamento o interesse social na qualidade de vida e é independente de todo ser humano.
Segundo essa tese, não importa o interesse em garantir a existência da vida em quaisquer
circunstâncias. Ainda que sem expressa previsão legal, a interrupção da gravidez por má
formação congênita do feto tem sido admitida pelo Judiciário paulista por meio de Mandado de
Segurança.
Na primeira instância paulista, o pioneiro nesse entendimento foi o então juiz
Geraldo Pinheiro Franco, hoje desembargador da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça.
“Impossível a sobrevida do feto, deve ser autorizado o aborto”, sentenciou Pinheiro Franco, em
1993, quando atuava como juiz do Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo).
O desembargador Francisco Galvão Bruno, da 9ª Câmara Criminal, quando ainda
juiz, enfrentou a questão. Ele seguiu a mesma trilha de seu colega Pinheiro Franco autorizando
a interrupção de gravidez num caso de Síndrome de Edwards. A mesma posição foi tomada
pela juíza Maria Cristina Cotrofe, quando titular da 2ª Vara do Tribunal do Júri da Capital.
“Não há nenhuma possibilidade de tratamento intra ou extra-uterino nos casos de
trissomia do cromossomo 18 ou Síndrome de Edwards”, afirmou Galvão Bruno, quando era juiz
em primeira instância ao apreciar um caso que envolvia a doença. “E a sobrevida, se houver,
além de vegetativa não ultrapassará semanas”, completou.
O TJ paulista também tem precedente como a decisão capitaneada pelo
desembargador Ribeiro dos Santos, que autorizou o aborto de um feto com Síndorme de
Edwards, ou ainda a que foi determinada pelo desembargador David Haddad. Este mandou o
Hospital das Clínicas da USP fazer o aborto de um feto com falta de cérebro e olhos. Também
tomara a mesma posição dos desembargadores Marco Zanuzzi e Teodomiro Mendez.
A questão é tão complexa que o Supremo Tribunal Federal vem adiando decisão
sobre o tema. A corte ainda não julgou a ação movida pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde (CNTS) para permitir a interrupção da gravidez em caso de
anencefalia fetal, hoje considerada crime. A ação, protocolada em junho de 2004, contrapõe
ciência e religião, mas sobretudo joga luz na discussão sobre o direito da mulher de
interromper a gestação quando o diagnóstico revela anencefalia.
O ministro Marco Aurélio Mello, relator da ação, diz que vai manter sua posição de
que, em caso de anencefalia fetal, a interrupção da gravidez não pode ser considerada aborto.
“O aborto é quando o feto tem possibilidade de vida. No caso da anencefalia, não há cérebro.
E, se não há cérebro, não há vida”, disse ele, explicando que a doação de órgãos é autorizada
a partir da morte cerebral.
A CNTS quer que o Supremo declare que a interrupção da gravidez em caso de
anencefalia não pode ser punida como se fosse aborto. O argumento é que a permanência do
feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa em função do elevado índice de
mortes ainda durante a gestação, o que empresta à gravidez um caráter de risco. (Revista
Consultor Jurídico, 24 de fevereiro de 2011).