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ABORTO - ANENCEFALIA - DIREITO DO NASCITURO À VIDA - HABEAS CORPUS - PRÓS

E CONTRAS - ABORTO EUGÊNICO OU EUGENÉSICO - ABORTO LEGAL: TESE DE


DOUTORAMENTO DE IVETE SENISE FERREIRA - REPORTAGEM - A INSUSTENTÁVEL
EXIGÊNCIA DE BOLETIM DE OCORRÊNCIA NOS CASOS DE ABORTO LEGAL -
CONCESSÃO DE ALVARÁ JUDICIAL PARA AUTORIZAR ABORTO EUGÊNICO - O
HABEAS CORPUS É ADEQUADO PARA CONSEGUIR AUTORIZAÇÃO PARA ABORTO NO
CASO DE INDEFERIMENTO EM PRIMEIRO GRAU

VIDE “Abortamento provocado na gestação de feto anencéfalo”, in Boletim


IBCCrim n.º 24, p. 08.

VIDE “Autorização para o abortamento”, in Boletim IBCCrim n.º 46, p. 02.

VIDE “Impossível a sobrevida do feto, deve ser autorizado o aborto”, in Boletim


IBCCrim n.º 11, p. 01.

VIDE “Anencefalia fetal e doação de órgãos”, in Boletim Juízes para a Democracia, Ano 4, n.º
13, outubro-dezembro/1998, p. 08.

VIDE “A liminar do STF sobre o aborto em casos de anencefalia: onde estamos e


para onde deveríamos ir?”, in Boletim IBCCrim n.º 141, agosto/2004, pp. 09/10, Thomaz Rafael
Gollop.

VIDE “Um bom começo”, in Boletim IBCCrim n.º 143, Outubro/2004, p. 02, Alberto
Silva Franco.

VIDE “Aborto de Anencéfalo: Decisão Jurídica ou Cristã?”, in Boletim IBCCrim n.º


149, Abril/2005, pp. 10/11, Gleuton Brito Freire.

VIDE “Sobre a Atipicidade da Interrupção da Gestação de Feto


Anencéfalo”, in Boletim IBCCrim n.º 152, Julho/2005, p. 13, Domingos Barroso da Costa.

VIDE “Parecer do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária a Favor


de Aborto de Feto Anencefálico”, in Boletim IBCCrim n.º 160, Março/2006, pp. 09/10, Ana Sofia
Schmidt de Oliveira.

VIDE “O aborto legal”, in Ivete Senise Ferreira, Tese de Doutoramento, São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1982.

VIDE “Aborto inseguro: é necessário reduzir riscos”, in Revista Brasileira de


Ciências Criminais n.º 68, José Henrique Rodrigues Torres, setembro-outubro/2007, pp. 27/68.

VIDE “A Insustentável Exigência de B.O. nos Casos de Aborto Legal”, in Boletim


IBCCrim n.º 149, Abril/2005, p. 02, Silvia Pimentel e Juliana Belloque.
VIDE Sentença lavrada pelo Dr. Marcelo Matias Pereira, da 1.ª Vara do Júri da
Comarca da Capital, nos autos do Processo n.º 052.05.003211-0, constante da pasta artigos
jurídicos relevantes.

VIDE “Os dilemas envolvidos no aborto”, in Revista Veja, Edição n.º 2186,
09/10/2010, pp. 68/70.

VIDE “Liminar em mandado de segurança contra ato jurisdicional penal.


Interrupção da gravidez. Anencefalia. Autorização judicial”, in Boletim IBCCrim n.º 220,
Março/2011, p. 1441, caderrno de jurisprudência.

PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ -


FETO QUE APRESENTA SÍNDROME DE PATAU - DOCUMENTOS MÉDICOS
COMPROBATÓRIOS - DIFÍCIL POSSIBILIDADE DE VIDA EXTRA-UTERINA - NESSE
CASO, OLIGOFRENIA ACENTUADA E FREQÜENTES CONVULSÕES - EXCLUSÃO DA
ILICITUDE - APLICAÇÃO DO ART. 128, I, DO CP, POR ANALOGIA IN BONAM
PARTEM. “Considerando-se que, por ocasião da promulgação do vigente CódigoPenal, em
1940, não existiam os recursos técnicos que hoje permitem a detecção de malformações e
outras anomalias fetais, inclusive com a certeza de morte ou de deficiência física ou mental do
nascituro, e que, portanto, a lei não poderia incluir o aborto eugênico entre as causas de
exclusão da ilicitude do aborto, impõe-se uma atualização do pensamento em torno da matéria,
uma vez que o Direito não se esgota na lei, nem está estagnado no tempo, indiferente aos
avanços tecnológicos e à evolução social. Ademais, a jurisprudência atual tem feito uma
interpretação extensiva do art. 128, I, daquele diploma, admitindo a exclusão da ilicitude do
aborto, não só quando é feito para salvar a vida da gestante, mas quando é necessário para
preservar-lhe a saúde, inclusive psíquica. Diante da moléstia apontada no feto, que
provavelmente lhe causará a morte e, em caso de sobrevivência, provocará oligofrenia
acentuada e freqüentes convulsões, e da circunstância de que o casal de requerentes já possui
um filho com retardo mental e dificuldade motora, pode-se vislumbrar na continuação da
gestação sério risco para a saúde mental da primeira apelante, o que inclui a situação na
hipótese de aborto terapêutico previsto naquele dispositivo. Apelo provido, por maioria” (TJRS -
1ª Câm. Criminal; ACr nº 70006088 090-Porto Alegre-RS; Rel. Des. Manuel José Martinez
Lucas; j. 2/4/2003; maioria de votos).

Habeas Corpus - Pedido de gestante para interrupção de gravidez por ser o


feto portador da Síndrome de Edwards - Liminar concedida - Inviabilidade de sobrevida
ao feto - Riscos de saúde e possível dano psicológico à gestante. Abortamento terapêutico.
Manutenção da concessão em definitivo. Necessidade. Impossibilidade ao Poder Judiciário de
fazer juízo moral, devendo ater-se à legalidade ou não da conduta. Ordem concedida em
definitivo (TJSP - 16ª Câm. de Direito Criminal; HC nº 990.10.046549-0-São Paulo-SP; Rel.
Des. Edison Brandão; j. 8/6/2010; v.u.).

Quinta Turma do STJ concede habeas-corpus para impedir aborto


Em decisão unânime, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
concedeu habeas-corpus a um nascituro. A decisão impede o aborto que havia sido
autorizado pela Justiça do Rio de Janeiro porque a criança é portadora de anencefalia. É a
primeira vez que o Tribunal julga o mérito de um habeas-corpus sobre o tema.
A defensoria pública do Rio de janeiro ingressou na Justiça com uma ação
requerendo autorização para a realização de uma intervenção para interromper a gestação de
G.O.C., diante da inviabilidade de vida após o nascimento da criança. Segundo exames
realizados, constatou-se que o nascituro (criança ainda no útero da mãe) padece de
anencefalia (cabeça fetal com ausência de calota craniana e cérebro rudimentar). Informações
médicas traduzem anencefalia como um defeito de fechamento da porção anterior do tubo
neural, levando à não formação adequada do encéfalo e da calota craniana. É uma condição
incompatível com a vida em 100% dos casos, levando à morte intra-uterina ou no período
neonatal precoce.
Em primeiro grau, o juiz indeferiu o pedido, mas em apelação o tribunal estadual
autorizou a realização do aborto. A decisão levou um advogado a impetrar habeas-corpus no
STJ. Alegou, para tanto, afronta aos artigos 3º, 5º e 227 da Constituição Federal e ao artigo
segundo do Código Civil. Para o impetrante, o aborto em questão não se enquadra nas
hipóteses dos incisos do artigo 128 do Código Penal (segundo o qual, não se pune o aborto
praticado por médico se não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário) e
se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou,
quando incapaz, de seu representante legal).
Em dezembro do ano passado, a ministra Laurita Vaz, relatora do processo,
deferiu liminar para sustar a decisão do Tribunal de Justiça até a apreciação final pela Turma. A
ministra entendeu ser patente o periculum in mora (perigo da demora), diante da possibilidade
de realização da intervenção cirúrgica e conseqüente perda do objeto (vida), bem como o
fumus boni iuris (pretensão razoável), consubstanciado na ausência de previsão da hipótese no
art. 128 do Código Penal.
Ao apreciar o mérito do pedido, primeiramente, a ministra relatora entendeu ser
possível o uso dohabeas-corpus para se pleitear o impedimento do aborto. "A eventual
ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a aplicação
de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não se há falar em impropriedade da via
eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que,
evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro", afirmou.
A ministra considerou que a legislação penal e a Constituição tutelam a vida como
bem maior a ser preservado. E o caso em questão, a de nascituro com anencefalia, não se
inclui no rol em que o aborto é autorizado. "O máximo que podem os defensores da conduta
proposta nos atos originários é lamentar a omissão, ma nunca exigir do magistrado, intérprete
da lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que, insisto, fora excluída de forma
propositada pelo legislador", destacou. "Deve-se deixar a discussão acerca da correção ou
incorreção das normas que devem viger no país para o foro adequado para debate e
deliberação sobre o tema, qual seja, o Parlamento".
Dessa forma, concedeu o habeas-corpus, confirmando a liminar, para reformar a
decisão do TJ, desautorizando o aborto. Os demais ministros acompanharam a relatora em
razão de a gestação já se encontrar em torno do oitavo mês. (Sistema Push de Notícias do
STJ, 18/02/2004).

STF julga prejudicado Habeas Corpus a favor de antecipação de parto de feto com
anomalia

HABEAS CORPUS 84.025-6 RIO DE JANEIRO

RELATOR : MIN. JOAQUIM BARBOSA


PACIENTE(S) : GABRIELA OLIVEIRA CORDEIRO
IMPETRANTE(S) : FABIANA PARANHOS E OUTRO(A/S)
COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (Relator): Trata-se de habeas


corpus em favor de GABRIELA OLIVEIRA CORDEIRO, com a alegação de que a paciente
estaria sofrendo constrangimento ilegal por parte da Quinta Turma do Superior Tribunal de
Justiça, que concedeu a ordem no HC 32.159 em favor do feto de que é gestante.
A paciente, de 18 anos, residente em Teresópolis-RJ, por intermédio da Defensoria
Pública do Estado do Rio de Janeiro, entrou, perante o juízo criminal de direito de Teresópolis,
com pedido de autorização judicial para realização de aborto, tendo em vista a constatação por
exames médicos de que o feto era portador de grave anomalia (anencefalia, ausência da calota
craniana e cérebro rudimentar).
O juiz de direito de Teresópolis, em 06 de novembro de 2003, indeferiu
liminarmente o pedido, alegando falta de previsão legal, uma vez que a postulação não se
encaixaria no rol das hipóteses de exclusão de ilicitude previstas no art. 128 do Código Penal.
Dessa decisão recorreu o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, em
apelação que foi distribuída à Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça daquele estado.
Distribuído o recurso à relatoria da ilustre desembargadora Gizelda Leitão Teixeira,
esta houve por bem, em 19 de novembro de 2003, conceder medida liminar autorizando a
realização da intervenção cirúrgica destinada a promover a interrupção da gravidez. A decisão
da desembargadora ficou assim vazada:

“Trata-se de apelação interposta contra sentença proferida em primeiro grau de


jurisdição, onde o julgador indeferiu pedido formulado pela combativa Defensoria Pública, no
sentido de ser expedido alvará de autorização para que GABRIELA OLIVEIRA CORDEIRO
interrompesse inviável gravidez, eis que, realizados exames, constatou-se padecer o feto de
anencefalia, o que torna inviável a vida pós-natal.
A inicial do requerimento (fls. 02 a 09) veio instruída pelos documentos de fls. 10 a
22.
Inconformados com a extinção do feito, as partes requerentes interpuseram
recurso de apelação (fls. 23), sustentando nas razões de fls. 24 a 27 que se trata de hipótese
excepcional, pelo que urge a concessão liminarmente de autorização para que a gestante
tenha interrompida a gravidez, ante à inviabilidade de vida pós-natal do feto, conforme
fartamente demonstrado nos autos.
O Ministério Público, em contra-razões da lavra da Promotora de Justiça, Dra
Soraya Taveira Gaya, manifestou-se favoravelmente à pretensão trazida nestes autos,
juntando ela própria documentação (inclusive fotogramas) sobre a anomalia de que padece o
feto, na hipótese tratada nos autos.
A Procuradoria de Justiça (fls. 39 vº e 40), formulou pedido de diligências.
É o relatório.
DECISÃO
A hipótese trazida nestes autos não é de fácil solução, eis que, trata-se de uma
vida que está em curso, mas, registre-se, fadada, inexoravelmente, ao óbito logo após o parto.
A notícia da vinda de um filho é motivo de imensa alegria. Incontáveis projetos
começam a ser traçados, imaginando-se um futuro repleto de alegria e realizações para a
família que começa a se formar.
Mas, sobrevindo a notícia de que o feto padece de patologia irreversível e
incontornável, fácil imaginar-se o desespero, a tristeza que toma conta dos pais. Saber que se
traz no ventre um ser tão amado, mas fadado à morte tão logo nasça.
Louve-se a iniciativa do casal que, ao invés de recorrer à ilegalidade, buscou junto
ao Judiciário obter a interrupção da gravidez.
Não se pode ficar insensível ao sofrimento desta mãe. Mais do que qualquer outra
pessoa, a apelante busca um fim ao seu sofrimento, positivado cabalmente nos autos às fls. 12
pelo atestado médico que refere-se a ‘estado emocional abalado, necessitando de cuidados
especiais’.
A anencefalia do feto é atestada pelo documento juntado às fls. 13, que
‘apresentando feto com malformação grave do sistema nervoso central (cabeça fetal)
com ausência de calota craniana e cérebro rudimentar’, concluindo que ‘é incompatível
com a vida pós-natal.’
A vida é bem a ser preservada a qualquer custo. Mas e quando a vida torna-se
inviável, pois é certo que o bebê em gestação não sobreviverá após o parto?
É justo condenar-se a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero,
quando, desde logo, já se sabe que o feto está condenado de forma irremediável ao óbito, logo
após o parto?
Não se trata de doença, mas de um embrião sem cérebro.
Desesperados, os pais vêm às portas do Judiciário buscar uma solução legal para
o sofrimento que sobre eles se abateu. Buscam a legalidade, o que demonstra nobreza de
sentimentos e obediência à ordem jurídica vigente. Nada de agir às margens da lei, porque
nada têm a esconder: tornam público o drama que sobre eles se abateu e clamam por uma
solução que ponha fim ao sofrimento e à angústia.
Louve-se a sensibilidade da Promotora Dra Soraya Taveira Gaya que, com lucidez
e desassombro, manifestou-se favoravelmente ao pedido formulado pelo casal, ilustrando sua
manifestação com fotos e texto informativos sobre o doloroso tema da anencefalia. São de
Promotores assim, dotados deste espírito público que a sociedade necessita. Atuam sem
alarde, mas lucidamente opinam como lhes parece correto, sem preocupação com as
eventuais críticas que possam advir pelo desassombro. Promovem verdadeiramente a Justiça!
Não se pode impor à gestante o insuportável fardo de, ao longo de meses,
prosseguir na gravidez já fadada ao insucesso. A morte do feto, logo após o parto, é
inquestionável. Logo, infelizmente nada se pode fazer para salvar o ser em formação.
Assim, nossa preocupação deve ser para com o casal, em especial com a mãe,
que padece de sérios problemas de ordem emocional ante o difícil momento porque passa.
Ante o exposto, ao entendimento de que é perfeitamente viável o pedido trazido
pela combativa DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO, liminarmente (conforme requerido no recurso de apelação - fls. 27 e referendado
pelo Ministério Público - fls. 32) autorizo a Sra GABRIELA OLIVEIRA CORDEIRO
(qualificada às fls. 02 destes autos) a submeter-se ao aborto, conforme pleiteado,
interrompendo-se a gravidez em curso.
Embora se trate de uma LIMINAR SATISFATIVA, enviem-se os autos, após as
providências cartorárias pertinentes ao imediato cumprimento desta decisão, à Procuradoria de
Justiça, para ciência e manifestação.”

Ao tomarem conhecimento da decisão concessiva de liminar da desembargadora,


por matéria jornalística publicada no jornal O Globo de 20 de novembro de 2003, os
senhores CARLOS BRAZIL, desembargador aposentado do TJRJ, e PAULO SILVEIRA
MARTINS LEÃO JUNIOR, ambos na qualidade de advogado, interpuseram agravo regimental
à Segunda Câmara Criminal. Por seu turno, o presidente da Segunda Câmara Criminal, em
21.11.2003, suspendeu “si et in quantum” a decisão de sua Colega de Turma. Processado o
agravo regimental, veio este a ser desprovido pelo Colegiado em 25.11.2003, mantida,
portanto, a decisão da desembargadora que autorizara a realização do aborto eugênico.
Ocorre que, em 21 de novembro de 2003, isto é, antes da decisão da Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça carioca que julgara o agravo regimental, o padre LUIZ CARLOS
LODI DA CRUZ, residente em Anápolis-GO, sacerdote e presidente da Associação Pró-Vida
sediada naquela cidade, impetrou ao Superior Tribunal de Justiça um habeas corpus visando
a desconstituir a decisão monocrática da desembargadora, que viria a ser confirmada quatro
dias depois.
Distribuído o feito à ministra Laurita Vaz, Sua Excelência, em despacho datado de
25.11.2003, concedeu liminar para “sustar a decisão do Tribunal de origem que autorizou a
realização do abortamento do nascituro, até a apreciação final deste writ pela Egrégia Quinta
Turma desta Corte”.
Solicitadas as informações ao Tribunal de Justiça, estas foram prestadas em 18 de
dezembro de 2003. O Superior Tribunal de Justiça, em vez de julgar imediatamente o feito, em
face da manifesta urgência que o caso requer, resolveu, às vésperas do recesso judiciário,
requerer diligências ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, tendo ficado vencida a ilustre
relatora.
Em 18 de fevereiro de 2004 foi finalmente julgado o habeas corpus, tendo o
Superior Tribunal de Justiça decidido nos seguintes termos:

“EMENTA
HABEAS CORPUS. PENAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA A PRÁTICA DE
ABORTO. NASCITURO ACOMETIDO DE ANENCEFALIA. INDEFERIMENTO. APELAÇÃO.
DECISÃO LIMINAR DA RELATORA RATIFICADA PELO COLEGIADO DEFERINDO O
PEDIDO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IDONEIDADE DO WRIT PARA A DEFESA
DO NASCITURO.
1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código
Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se
falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a
defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do
nascituro.
2. Mesmo tendo a instância de origem se manifestando, formalmente, apenas da
decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem
qualquer possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento
definitivo do mérito. Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não
deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal.
3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido,
tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar conta
ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco
analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesses casos, o princípio da reserva legal.
4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto,
previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que
podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do
Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de
forma propositada pelo Legislador.
5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo,
desautorizando o aborto; outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada
a apelação interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da
Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental.”

Diante desse acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, FABIANA


PARANHOS; ANIS: INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO; THEMIS:
ASSESSORIA JURÍDICA e ESTUDOS DE GÊNERO, CIDADANIA E DESENVOLVIMENTO
impetraram ao Supremo Tribunal Federal o presente habeas corpus, em que alegam (i) a
coação da liberdade por proibição de antecipação do parto, (ii) a inocorrência do crime de
aborto, (iii) a necessidade de tutela à saúde física e mental da paciente e (iv) o desrespeito ao
princípio da dignidade da pessoa humana.
Em conseqüência, pedem a cassação do acórdão do Superior Tribunal de Justiça,
para autorizar a paciente a realizar a antecipação do parto.
Distribuído o feito a meu Gabinete na tarde de sexta-feira, 27 de fevereiro de 2004,
despachei imediatamente, solicitando por fax as informações ao Superior Tribunal de Justiça,
que enviou cópia do processo na segunda-feira, somente tendo chegado o voto da relatora no
dia 02 deste mês.
A Procuradoria-Geral da República opinou pelo não-conhecimento da impetração
e, no mérito, por sua denegação (fls. 17-20).
É o relatório. Distribuam-se cópias aos gabinetes dos demais ministros.
VOTO

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (Relator): Sr. Presidente, trago


este habeas corpus na data de hoje tendo em vista a urgência da tutela jurisdicional pleiteada,
bem como as possíveis implicações que o caso apresenta.
Preliminarmente, há que se discutir se esta Casa tem ou não tem competência
para julgar a impetração.
Os impetrantes atacam acórdão do Superior Tribunal de Justiça que concedeu a
ordem em favor do feto e cassou a decisão da Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro que autorizara o aborto. É importante salientar, porém, que em nenhum momento se
cogitou de eventuais direitos da gestante, isto é, da paciente. Toda a discussão levada a efeito
no âmbito do Superior Tribunal de Justiça diz respeito aos direitos do nascituro, sem qualquer
alusão a eventuais direitos da gestante, como se esses direitos, constitucionalmente
protegidos, não estivessem intimamente entrelaçados, ou seja, como se a proteção ao
nascituro tivesse o condão de excluir completamente a proteção aos direitos da gestante.
Entendo, contudo, que a continuidade da gestação, por força da ordem de habeas
corpusconcedida pelo Superior Tribunal de Justiça, tem o efeito imediato de causar restrição à
liberdade da paciente.
Aliás, não foi por outra razão que a própria ministra relatora no Superior Tribunal
de Justiça, ao proceder ao exame do cabimento da impetração naquela Corte,
argumentou, verbis:

“A insurgência não procede. Com efeito, o habeas corpus é a via idônea para
alcançar a tutela jurídica ora pleiteada. A eventual ocorrência de abortamento fora das
hipóteses no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão
pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se
presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à
preservação da vida do nascituro.”

Assim, tendo em vista o entrelaçamento dos direitos do nascituro, cuja


sobrevivência guarda total dependência em relação à gestante, com os direitos desta, os quais
a Constituição igualmente protege, não há como negar que ela sofreu constrangimento em
virtude do acórdão ora atacado, cujo processo tramitou em Brasília, inteiramente à larga, isto é,
sem o seu conhecimento. E não se trata simplesmente de um constrangimento: a própria vida
da paciente encontra-se em risco, na medida em que, diante de uma gravidez potencialmente
problemática como a sua, caso surja a necessidade de uma intervenção cirúrgica de
emergência, pesará sobre a paciente e sobre o médico que vier a assisti-la a ameaça da
persecução criminal decorrente da vedação consubstanciada na decisão do Superior Tribunal
de Justiça.
Daí por que entendo que a hipótese se encaixa no permissivo constitucional do
art. 102, I, i, tratando-se, pois, de competência originária deste Tribunal, e não, como se
poderia pensar, de competência recursal.
Essa hipótese, e isso importa esclarecer, é diversa daquela em que um dos
sujeitos processuais, aparentemente prejudicado por decisão que favorece a outra parte,
impetra habeas corpus (ou mandado de segurança) visando a eliminar a situação que crê lhe
prejudicar. É o caso, por exemplo, da vítima que se vale de habeas corpus contra o
trancamento da ação penal em favor do réu. Sobre esse tema, o Supremo Tribunal Federal tem
entendido que é incabível o habeas corpus, na medida em que não há violação de direito
próprio (Precedentes: HC 83.941 e HC 83.942, dos quais fui relator, e MS 22.486, rel. min.
Celso de Mello).
Não quero dizer com isso que, em processos objetivos, como o habeas corpus e
o mandado de segurança, seja sempre possível a impetração por quem, reflexamente, tem um
direito constrangido pela decisão judicial em favor de terceiro.
No caso em exame, e com isso concluo este tópico, a situação da vida e a
situação jurídica encontram-se de tal forma imbricadas que a ordem concedida em favor quer
do feto, quer da paciente implica obrigatoriamente restrição da liberdade do outro. Daí por que
se justifica o conhecimento do presente habeas corpus.
A Procuradoria-Geral suscita o óbice de que “a impetrante, na verdade, não está
a representar o interesse real de Gabriela Oliveira Carneiro. Desenvolve tese pessoal, por
via processual cabalmente inadequada.”
Tenho que tal circunstância, seja ela verdadeira ou falsa (o que não se pode inferir
do material existente nos autos), é irrelevante para fins de impetração do habeas corpus. Isso
porque a legitimação para impetrar o writ deve ser interpretada de forma ampla, sem que as
tradicionais condições da ação obstaculizem a efetividade da tutela do direito de ir e vir.
Conheço, portanto, da impetração.
Superada a questão preliminar, antes mesmo de discutir o tema do aborto de feto
com vida extra-uterina inviável, tenho que o acórdão prolatado pela Quinta Turma do Superior
Tribunal de Justiça é nulo.
Abro aqui um pequeno parêntese para mais vez tentar deixar explícita a forma
como tramitou a apelação interposta pela paciente ao Tribunal de Justiça carioca. Parece-me
evidente que nenhuma dessas peripécias processuais exóticas teriam ocorrido se
estivéssemos diante de questão desprovida de paixões, de convicções filosóficas, morais e
políticas arraigadas.
Pois bem. Ao receber o recurso de apelação da paciente, a desembargadora
relatora deferiu a liminar, autorizando a paciente a realizar o aborto.
Inconformados com a decisão monocrática, CARLOS BRAZIL e PAULO SILVEIRA
MARTINS LEÃO JÚNIOR, advogados, estranhos ao processo, interpuseram agravo regimental,
mesmo sendo partes ilegítimas e não tendo qualquer interesse jurídico na demanda, e apenas
invocando o direito constitucional de petição e o art. 5º, XXXV, da Constituição. O presidente da
Câmara Criminal do Tribunal de Justiça conheceu do recurso e, violando o princípio do juiz
natural, cassou liminarmente a decisão da desembargadora relatora da apelação. Ao final, a
Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro negou
provimento ao agravo regimental, confirmando a decisão monocrática da desembargadora
relatora.
Destaco, para fins de elucidação desta esdrúxula situação, um trecho do voto da
desembargadora quando do julgamento do agravo regimental:
“Sem que a decisão fosse publicada no Diário Oficial, com base em reportagens
publicadas em jornais, os agravantes interpuseram este agravo regimental, dirigido à esta
relatora, em obediência ao previsto no Regimento Interno deste Tribunal (art. 200 § 2 o),
requerendo a reconsideração da decisão agravada e, submetida ao Colegiado fosse
reformada, invocando o argumento de defesa da vida.
(...) No mesmo dia (fl. 80), outro Desembargador desta Câmara, ao argumento de
que o único presente era seu Presidente, suspendeu a autorização concedida por esta
relatora, mas determinando o envio dos autos à relatora, mesmo de férias, para apreciar a
hipótese de julgamento.
(...) Logo, resta incompreensível a invasão de competência perpetrada nestes
autos, eis que não há hierarquia entre Desembargadores da mesma Câmara; um não
pode revogar a decisão do outro e, para quem leu nos jornais a notícia da revogação da
decisão de um Desembargador por outro, ficou a falsa impressão de que há hierarquia entre os
Desembargadores e que o Presidente da Câmara tudo pode.”

Concomitantemente, LUIZ CARLOS LODI DA CRUZ, sacerdote da Igreja Católica


e presidente da ONG Pró-Vida, com sede em Anápolis-GO, impetrou, também contra a
concessão da liminar pela relatora,habeas corpus ao Superior Tribunal de Justiça.
A impetração do habeas corpus naquela corte visava, portanto, a atacar decisão
monocrática da desembargadora do Tribunal de Justiça carioca que concedera a liminar em
favor da ora paciente.
A sucessão dos fatos, portanto é a seguinte: a liminar na apelação, concedida em
19 de novembro do ano passado, foi agravada regimentalmente no dia 21 daquele mês; na
mesma data, foi deferida pelo presidente da Turma a liminar requerida no agravo, bem como foi
impetrado o habeas corpus ao Superior Tribunal de Justiça. No dia 25 de novembro, a
Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro negou
provimento ao agravo regimental interposto pelos mencionados advogados. No mesmo dia,
aqui em Brasília, a relatora do habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, ministra Laurita
Vaz, concedeu, sem fazer qualquer menção à decisão colegiada do Tribunal de Justiça carioca,
a liminar, para suspender a decisão monocrática que autorizara a realização do aborto.
Posteriormente, quando do julgamento do mérito do writ, a Quinta Turma do
Superior Tribunal de Justiça procurou sustentar sua competência ao afirmar que o objeto da
impetração não mais seria a decisão monocrática, mas sim o acórdão que rejeitou o agravo
regimental.
De qualquer forma, ao rejeitar o agravo regimental, que não deveria sequer ter
sido conhecido, a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça restabeleceu a decisão monocrática
da desembargadora, que permaneceu, portanto, hígida.
Ora, ainda que se discuta acerca da possibilidade ou impossibilidade da
concessão, em caráter liminar, de provimento satisfativo, o Superior Tribunal de Justiça não
poderia ter julgado o writ, na medida em que não detinha competência para apreciar a matéria.
A questão, creio eu, é puramente de forma, e não de conteúdo: enquanto não
exaurida a função jurisdicional do tribunal a quo, o tribunal ad quem não pode avocar a matéria,
pouco importando se é, juridicamente, correta ou incorreta a decisão monocrática.
Sobre o assunto, há inclusive a recém-editada Súmula 691, cujo teor é o seguinte:
“Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas
corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal
superior, indefere a liminar.”

A orientação do Superior Tribunal de Justiça é idêntica ao excluir de sua competência


o writ impetrado contra decisão monocrática de desembargador que concede liminar. Confira-
se a seguinte ementa, do HC 26.107,relatado pela própria ministra Laurita Vaz:

“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE


ENTORPECENTES. SENTENÇA QUE NEGA AO CONDENADO A POSSIBILIDADE DE
APELAR EM LIBERDADE. DENEGAÇÃO DE LIMINAR EM WRIT IMPETRADO NO
TRIBUNAL A QUO, CUJO MÉRITO AINDA NÃO FOI ANALISADO. IMPETRAÇÃO
DE HABEAS CORPUS NO STJ. AUSÊNCIA DE FLAGRANTE
ILEGALIDADE. INCOMPETÊNCIA. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. PRECEDENTES. WRIT
NÃOCONHECIDO.
1. É entendimento pacificado desta Corte, bem como do Supremo Tribunal
Federal, de que não cabe habeas corpus contra indeferimento de liminar em feito da mesma
natureza, uma vez que eventual decisão antes do pronunciamento do Tribunal de origem pode
ensejar indevida supressão de instância. Tal entendimento só comporta exceção quando a
negativa da liminar constituir-se em manifesta ilegalidade, o que não ocorre na espécie.
2. Writ não conhecido.”

No mesmo sentido: HC 30.299, rel. min. Gilson Dipp; HC 27.659, rel. min. Paulo
Medina, e HC 27.504, rel. min. Francisco Falcão.
Note-se, por fim, que a ministra relatora daquele feito tinha plena ciência de que se
opunha a firme entendimento desta e daquela Corte quando deu seguimento à impetração,
conforme consta do despacho da liminar concedida (grifo nosso):

“De início, cumpre ressaltar que, na esteira da remansosa jurisprudência dos


Tribunais Superiores, não se admite habeas corpus contra decisão proferida em sede de
liminar pelo relator dowrit na instância de origem, sob pena de indevida supressão de
instância, salvo situações absolutamente excepcionais, onde restar claramente evidenciada a
ilegalidade do ato coator.
Embora a decisão da Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
não tenha sido prolatada em sede habeas corpus, a hipótese, de modo análogo, também
enseja a apreciação por esta Corte, diante da flagrante excepcionalidade e urgência do caso.
É que, in casu, a autorização para a realização do aborto foi concedida,
liminarmente, através de decisão monocrática proferida em sede de recurso de apelação,
tendo, pois, caráter eminentemente satisfativo.”

Em síntese, considerando a incompetência absoluta do Superior Tribunal de Justiça para


apreciar o habeas corpus lá impetrado, tenho que é nulo o acórdão atacado.
Com relação ao próprio mérito da impetração, tenho que a questão deva ser analisada por dois
ângulos. O primeiro diz respeito à liberdade individual, da qual a autodeterminação da gestante
é uma manifestação. Já o segundo refere-se aos diferentes graus de tutela penal da vida
humana.
Em primeiro lugar, ressalto que, neste caso concreto, estamos diante de uma situação peculiar
em que estão em flagrante contraposição o direito à vida, num sentido amplo, e o direito à
liberdade, à intimidade e à autonomia privada da mulher, num sentido estrito.
Em outras palavras, busca-se, no presente habeas corpus, a tutela da liberdade de opção da
mulher em dispor de seu próprio corpo no caso específico em que traz em seu ventre um feto
cuja vida independente extra-uterina é absolutamente inviável.
Portanto, é importante frisar, não se discute nos presentes autos a ampla possibilidade de se
interromper a gravidez. A questão aqui é bem diferente, pois se refere à interrupção de uma
gravidez que está fadada ao fracasso, pois seu resultado, ainda que venham a ser envidados
todos os esforços possíveis, será, invariavelmente, a morte do feto.
Segundo a literatura médica especializada, o bebê não viverá mais do que alguns dias porque
é portador de uma anomalia gravíssima: a anencefalia ou ausência de cérebro. Não é preciso
ser um especialista no assunto para entender que sem o órgão vital que comanda as funções
básicas do corpo humano e também os sentimentos e as emoções, é absolutamente
impossível a vida extra-uterina independente.
Por outro lado, os estudos multidisciplinares indicam que as reações emocionais dos pais após
o diagnóstico de malformação fetal abrangem, conjuntamente ou não, os seguintes
sentimentos: ambivalência, culpa, impotência, perda do objeto amado, choque, raiva, tristeza e
frustração[1]. É facilmente perceptível a enorme dificuldade de se enfrentar um diagnóstico de
malformação fetal. E é possível imaginar a quantidade de sentimentos dolorosos por que
passam aqueles que de súbito se vêem diante do dilema moral de interromper uma
gestação, unicamente porque nada se pode fazer para salvar a vida do feto. Seria reprovável
uma decisão pela interrupção da gestação nesse caso?
Neste momento, a tarefa desta Corte é justamente esta: é preciso fornecer uma resposta
rápida e precisa para essa mãe, a fim de que, a par de todo seu sofrimento pessoal, não tenha
ela de se preocupar com a possível criminalidade de sua conduta.
Assim, analisando o que a lei penal prescreve sobre o tema, verifica-se que o legislador optou,
em regra, pela punição do aborto, qualquer que seja o momento de sua realização (art. 124 do
Código Penal), mas não se preocupou em conceituá-lo.
Segundo Alberto Silva Franco, “a expressão ‘aborto’ corresponde a um elemento normativo do
tipo e, portanto, a um elemento necessitado de valoração por parte do juiz ou do intérprete. É
evidente que o preenchimento da área de significado desse dado compositivo da figura típica
deve ser buscado em campo extra-penal, na medicina, ou mais especificamente, na biologia,
na parte em que cuida do processo de formação da vida e de suas causas de interrupção.”[2]
A doutrina, de um modo geral, conceitua o aborto como “a solução de continuidade, artificial ou
dolosamente provocada, do curso fisiológico da vida intra-uterina”[3].
Nesse sentido, portanto, o ato que interrompe a gestação configurará o crime de aborto
descrito no art. 124 do Código Penal quando tiver como resultado prático a subtração da vida
do feto, sendo este elemento (morte do feto) indissociável do delito ali tipificado.
Contudo, o legislador, no campo da exclusão de ilicitude, trouxe duas exceções a essa regra do
art. 124 do Código Penal. No primeiro caso, quando a vida da mãe estiver em perigo - aborto
necessário (art. 128, I). No segundo caso, quando a honra da mãe for violada de tal forma que
torne insustentável para ela a manutenção da gravidez - aborto sentimental (art. 128, II). Em
ambos os casos, é preciso ressaltar, a lei apenas exclui a ilicitude da conduta. Ou seja, a
norma permite que a mãe decida se quer continuar com a gestação, não punindo sua conduta
caso ela opte pela interrupção da gravidez. É certo que, no caso de risco de vida para a mãe,
muitas vezes não há tempo hábil para ela fazer tal escolha, mas isso não vem ao caso neste
momento. O que é imprescindível repisar é que a lei preserva o direito de escolha da mulher,
não atentando para a viabilidade ou inviabilidade do feto. Estamos diante, portanto, de uma
tutela jurídica expressa da liberdade e da autonomia privada da mulher.
Veja-se: a lei não determina que nesse ou naquele caso o aborto deva necessariamente
ocorrer. A norma penal chancela a liberdade da mulher de optar pela continuidade ou pela
interrupção da gestação. E, neste caso, não incrimina sua conduta.
Em se tratando de feto com vida extra-uterina inviável, a questão que se coloca é: não há
possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer
que seja o momento do parto ou a qualquer momento em que se interrompa a gestação, o
resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê. A antecipação desse
evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da
dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia
privada? Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia ser
considerada crime? Entendo que não, Sr. Presidente. Isso porque, ao proceder à ponderação
entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extra-uterina inviável e a liberdade e
autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da
mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa
seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal.
Na verdade, e valendo-me das palavras de Daniel Sarmento, entendo que “a autonomia
privada representa um dos componentes primordiais da liberdade, tal como vista pelo
pensamento jurídico-político moderno. Esta autonomia significa o poder do sujeito de auto-
regulamentar seus próprios interesses, de ‘autogoverno de uma esfera jurídica’, e tem como
matriz a concepção de ser humano como agente moral, dotado de razão, capaz de decidir o
que é bom ou ruim para si, e que deve ter liberdade para guiar-se de acordo com estas
escolhas, desde que elas não perturbem os direitos de terceiros nem violem outros valores
relevantes da comunidade. Ela importa o reconhecimento que cabe a cada pessoa, e não ao
Estado ou a qualquer outra instituição pública ou privada, o poder de decidir os rumos de sua
própria vida, desde que isto não implique em lesão a direitos alheios. Esta é uma idéia
essencial ao princípio da dignidade da pessoa humana, que, na expressão de Canotilho,
baseia-se no ‘princípio antrópico que acolhe a idéia pré-moderna e moderna da dignitas-
hominis(pico della Mirandola) ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida
segundo o seu próprio projecto espiritual’”[4].
Isso porque, em casos de malformação fetal que leve à impossibilidade de vida extra-uterina,
uma interpretação que tipifique a conduta como aborto (art. 124 do Código Penal) estará sendo
flagrantemente desproporcional em comparação com a tutela legal da autonomia privada da
mulher, consubstanciada na possibilidade de escolha de manter ou de interromper a gravidez,
nos casos previstos no Código Penal. Em outras palavras, dizer-se criminosa a conduta
abortiva, para a hipótese em tela, leva ao entendimento de que a gestante cujo feto seja
portador de anomalia grave e incompatível com a vida extra-uterina está obrigada a manter a
gestação. Esse entendimento não me parece razoável em comparação com as hipóteses já
elencadas na legislação como excludente de ilicitude de aborto, especialmente porque estas se
referem à interrupção da gestação de feto cuja vida extra-uterina é plenamente viável.
Seria um contra-senso chancelar a liberdade e a autonomia privada da mulher no caso do
aborto sentimental, permitido nos casos de gravidez resultante de estupro, em que o bem
jurídico tutelado é a liberdade sexual da mulher, e vedar o direito a essa liberdade nos casos de
malformação fetal gravíssima, como a anencefalia, em que não existe um real conflito entre
bens jurídicos detentores de idêntico grau de proteção jurídica. Há, na verdade, a legítima
pretensão da mulher em ver respeitada a sua vontade de dar prosseguimento à gestação ou de
interrompê-la, cabendo ao direito permitir essa escolha, respeitando o princípio da liberdade, da
intimidade e da autonomia privada da mulher.
Nesse ponto, portanto, cumpre ressaltar que a procriação, a gestação, enfim os direitos
reprodutivos, são componentes indissociáveis do direito fundamental à liberdade e do princípio
da autodeterminação pessoal, particularmente da mulher, razão por que, no presente caso,
ainda com maior acerto, cumpre a esta Corte garantir seu legítimo exercício, nos limites ora
esposados.
Lembro que invariavelmente essa concepção fundada no princípio da autonomia ou liberdade
individual da mulher é a que tem prevalecido nas cortes constitucionais e supremas que já se
debruçaram sobre o tema. Cito, para ilustrar, trecho do voto do juiz Harry Blackmun, da Corte
Suprema dos Estados Unidos, no famosoleading case Roe v. Wade, de 1973. Sustentou
Blackmun:

“Este direito de privacidade, fundado no conceito de liberdade pessoal da 14 a Emenda ou nas


restrições à atuação do Estado, como nós o entendemos, ou nos direitos reservados ao
povo, como entendeu a Corte distrital, é amplo o suficiente para incluir a decisão de uma
mulher de interromper ou não a gravidez. Os prejuízos que o Estado causa a uma mulher ao
recusar-lhe esta escolha é manifesto. Podem envolver danos específicos e diretos,
medicalmente diagnosticáveis até mesmo no início da gravidez. Uma maternidade, ou filhos
indesejados, podem conduzir uma mulher a uma situação ou a um futuro de miséria. Danos
psicológicos podem ser iminentes. A educação de uma criança pode afetar a saúde mental e
psíquica da mãe. Há, também, para todas as pessoas envolvidas, o problema do stress
(distress) associado à criança não desejada, bem como o problema de se criar uma criança
em uma família desprovida de meios, tanto no plano psicológico como em qualquer outro
plano”

E prossegue a corte de Washington, mais adiante:

“Nessas condições, nós julgamos que o direito à vida privada inclui a decisão de abortar, mas
que esse direito não é ilimitado, devendo ser visto à luz do relevante interesse que o Estado
tem em regulamentá-lo.”

Na França, igualmente, a decisão de interromper a gravidez é vista como algo inerente à


autonomia privada, à liberdade da mulher, fazendo parte daquilo que o professor Jacques
Robert caracteriza como “lê droit de disposer de son corps”.
Trago igualmente à reflexão a percuciente observação do filósofo norte-americano Ronald
Dworkin, que, em sua obra Freedom’s Law, sob o epíteto “CONFORMIDADE e COERÇÃO”,
sustenta o seguinte:

“Proibir o aborto não é a mesma coisa que tomar decisões coercitivas no campo do
zoneamento urbano ou da proteção de espécies em perigo. O impacto em certas pessoas
(mulheres grávidas) é bem maior. Uma mulher que é obrigada a levar adiante uma gravidez em
razão da pressão da sua comunidade não tem mais o controle do seu corpo. Isto é uma
escravidão parcial, uma privação de liberdade muito mais séria do que os ônus sofridos pelos
cidadãos em razão do poder de polícia do Estado em matéria urbana! Ter um filho pode
significar a destruição da vida de uma mulher!”
Já o segundo aspecto que gostaria de enfocar diz respeito ao possível cometimento de crime
de aborto (Código Penal, art. 124), caso a gestante assim decida proceder.
O acórdão prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça, acerca da possível conduta abortiva da
paciente, encontra-se fundamentado nos seguintes termos:

“Contudo, é fato inarredável que a situação posta nos autos não está expressa na
Lei Penal deste País como hipótese em que o aborto é autorizado.
(...) A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e
consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite
atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva,
tampouco analogia in malam partem.
(...) O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta nos
autos originários é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que
se lhe acrescente mais uma hipótese que, insisto, fora excluída de forma propositada pelo
Legislador.”

Vê-se, assim, que são dois os argumentos do Superior Tribunal de Justiça, quais
sejam: (i) de que a vida do nascituro, no caso concreto, é protegida pelo Direito Penal e (ii) de
que o aborto eugênico não se encaixa nas hipóteses de excludente de ilicitude, previstas no
art. 128 do Código Penal.
Com relação ao primeiro argumento, faço a seguinte indagação: quando, em razão
de anencefalia, a vida extra-uterina do nascituro é inviável, deve o direito garantir a essa vida o
mesmo grau de proteção?
Entendo que não. Explico.
A tutela da vida humana experimenta graus diferenciados. As diversas fases do
ciclo vital, desde a fecundação do óvulo, com a posterior gestação, o nascimento, o
desenvolvimento e, finalmente, a morte do ser humano, recebem do ordenamento regimes
jurídicos diferenciados.
Não é por outra razão que a lei distingue (inclusive com penas diversas) os crimes
de aborto, de infanticídio e de homicídio.
Ora, se o feto ainda se encontra no ventre da mãe, é evidente que sua situação
jurídica, penal inclusive, é diversa da das pessoas já existentes.
Limitando-me ao problema concreto, ou seja, de feto que, por ser portador de
anencefalia, não irá sobreviver muito tempo após o parto, devemos nos ater a qual é o objeto
jurídico tutelado pelos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal.
Creio que seja, de um lado, a preservação de uma vida potencial e, por outro, a
incolumidade da gestação.
Daí por que há de se separar a situação em que o feto se encontra em
desenvolvimento das situações em que ele está biologicamente morto e, ainda, da situação em
que ele está biologicamente vivo, mas juridicamente morto.
Apenas a primeira hipótese é abraçada pelo Direito Penal, uma vez que não se
visa a proteger situações moralmente controversas, mas apenas aquelas em que exista algum
obstáculo durante a gestação a impedir a transformação de vida potencial em um novo ser
humano.
Por essa razão, o feto anencefálico, mesmo estando biologicamente vivo (porque
feito de células e tecidos vivos), não tem proteção jurídica.
Sobre o tema, e com orientação idêntica à nossa, o professor Claus Roxin, em
recente visita ao Brasil, proferiu a palestra “A proteção da vida humana através do Direito
Penal”, oportunidade em que salientou (i) que a vida vegetativa não é suficiente para fazer de
algo um homem e (ii) que com a morte encefálica termina a proteção à vida. A transcrição da
referida palestra pode ser obtida no seguinte
sítio:http://wwww.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto_Roxin.htm (consultado
em 03.03.2004).
A própria lei de transplante de órgãos (Lei 9.434/1997), ao fixar como momento da
morte do ser humano o da morte encefálica[5], reforça esse argumento.
Concluo. O feto, desde sua concepção até o momento em que se constatou
clinicamente a irreversibilidade da anencefalia, era merecedor de tutela penal. Mas, a partir do
momento em que se comprovou a sua inviabilidade, embora biologicamente vivo, deixou de ser
amparado pelo art. 124 do Código Penal.
Por fim, com relação ao argumento de que o aborto eugênico não se encontra
incluído no rol de excludentes de ilicitude previsto no art. 128 do Código Penal, tenho que,
sendo o comportamento atípico, a questão fica prejudicada.
De fato, se a conduta não é típica, sequer há de se cogitar de ilícito penal.
No entanto, importante frisar que há uma razão histórica para o aborto eugênico
não ser considerado lícito. Quando da promulgação do Código Penal, em 1940, não havia
tecnologia médica apta a diagnosticar, com certeza, a inviabilidade do desenvolvimento do
nascituro pós-parto[6].
Nesse aspecto, é importante lembrar que os estudos referentes à medicina fetal e
à terapia neonatal datam da década de 1950, somente vindo a alcançar a sofisticação hoje
conhecida há pouco mais de dez anos. Explica-se, assim, a lacuna do Código Penal. O que
não se explica é o argumento fundamentalisticamente positivista utilizado pelo Superior
Tribunal de Justiça.
Ante o exposto, concedo parcialmente a ordem, para cassar a decisão do Superior
Tribunal de Justiça, assegurando à paciente GABRIELA OLIVEIRA CORDEIRO o direito de,
assistida por médico, tomar, caso seja essa sua vontade, a decisão de interromper a gravidez,
desde que isso ainda seja viável do ponto de vista médico, visto haver indícios de que a
gravidez já esteja em estágio avançado. Estendo igualmente a ordem a todo o corpo médico e
paramédico que eventualmente venha a se envolver no possível evento hospitalar.

CNTS pede ao STF que antecipação do parto de feto sem cérebro não seja caracterizada
como aborto

A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) quer que o


Supremo Tribunal Federal (STF) fixe entendimento de que antecipação terapêutica de parto de
feto anencefálico (ausência de cérebro) não é aborto e permita que gestantes em tal situação
tenham o direito de interromper a gravidez sem a necessidade de autorização judicial ou
qualquer outra forma de permissão específica do Estado. Na Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF 54) ajuizada na Corte, com pedido de liminar, a entidade sustenta
que “o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal tornou-se indispensável na matéria”.
A entidade registra que o Judiciário vinha firmando jurisprudência, por meio de
decisões proferidas em todo o país, reconhecendo o direito das gestantes de se submeterem à
antecipação terapêutica do parto nesses casos, mas que decisões em sentido inverso
desequilibraram essa jurisprudência.
Segundo a CNTS, a anencefalia é uma má formação fetal congênita incompatível
com a vida intra-uterina e fatal em 100% dos casos. A entidade sustenta que um exame de
ecografia detecta a anomalia com índice de erro praticamente nulo e que não existe
possibilidade de tratamento ou reversão do problema. Afirma que não há controvérsia sobre o
tema na literatura científica ou na experiência médica.
Por outro lado, diz a CNTS, “a permanência do feto anômalo no útero da mãe é
potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em
razão do alto índice de óbitos intra-uterinos desses fetos”. A entidade alega que “a antecipação
do parto nessa hipótese constitui indicação terapêutica médica: a única possível e eficaz para o
tratamento da gestante, já que para reverter a inviabilidade do feto não há solução”.
Com esses argumentos, a CNTS sustenta que a antecipação desses partos não
caracteriza o crime de aborto tipificado no Código Penal. Isso porque, diz a entidade, no caso
de aborto, “a morte do feto deve ser resultado direto dos meios abortivos, sendo imprescindível
tanto a comprovação da relação causal como a potencialidade de vida extra-uterina do feto”, o
que inexiste nos casos de fetos com anencefalia. “Não há potencial de vida a ser protegido, de
modo que falta à hipótese o suporte fático exigido pela norma. Apenas o feto com capacidade
potencial de ser pessoa pode ser passivo de aborto”, sustenta.
Para a CNTS, nessas situações, “o foco da atenção há de voltar-se para o estado
da gestante” e o reconhecimento desses direitos não causam lesão a bem ou ao direito à vida
do feto. “A gestante portadora de feto anencefálico que opte pela antecipação terapêutica do
parto está protegida por direitos constitucionais que imunizam a sua conduta da incidência da
legislação ordinária repressiva”, alega a entidade, que aponta a violação de três direitos
básicos da mulher impedida de interromper esse tipo gravidez. O direito da dignidade da
pessoa humana, da legalidade, liberdade e autonomia da vontade, e do direito à saúde.
A CNTS pede que o Supremo reconheça o descumprimento desses preceitos
fundamentais em relação à mulher, nos casos em que as normas penais são interpretadas de
forma a impedir a antecipação terapêutica de partos de fetos anencefálicos. E que seja dada
interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código
Penal, para declarar inconstitucional, com eficácia erga omnes (para todos) e efeito vinculante,
a aplicação desses dispositivos para impedir a intervenção nos casos em que a anomalia é
diagnosticada por médico habilitado.
Requer, também, a concessão de liminar para suspender o andamento de
processos ou anular os efeitos de decisões judiciais que pretendam aplicar ou tenham aplicado
os dispositivos do Código Penal para caracterizar como aborto a interrupção desses tipos de
gravidez. O relator da ação é o ministro Marco Aurélio. (Sistema Push de Notícias do STF,
18/06/2004).

Dois pesos, duas medidas


Especialista em Saúde Pública diz que casos de anencefalia equivalem aos de morte
cerebral, em que o desligamento das máquinas é plenamente aceito
VALÉRIA BLANC

Médica com doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP),
a professora Maria Lucia Penna, de 51 anos, ensina a seus alunos na Uerj, no Estado do Rio
de Janeiro, conceitos de interesse da sociedade. Sobre a polêmica da interrupção da gestação
de fetos anencéfalos (sem cérebro), ela traz à tona uma reflexão: se os transplantes de órgãos
são autorizados quando constatada a morte cerebral, é uma contradição não aceitar o aborto
de um feto sem cérebro e que não tem nenhuma chance de vida. O debate está no Supremo
Tribunal Federal, que decidirá sobre ação movida pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Saúde. A CNTS pede permissão para a interrupção da gravidez de fetos
anencéfalos sem a necessidade de autorização judicial. Enquanto o STF não julga o mérito, é
preciso entrar na Justiça e pedir uma autorização - o que nem sempre acontece.
ÉPOCA - A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) diz, em seu
site, que a morte cerebral é aceitável por ser irreversível e que o desligamento da
máquina somente fará com que o coração pare. Adverte que não cabe paralelo com fetos
sem cérebro porque, mesmo sem expectativa de vida, eles têm tronco encefálico e o
coração bate. Como a Medicina vê esses conceitos?
Maria Lucia Penna - É uma contradição. Na verdade, a mãe funciona como a
máquina, porque carrega um feto sem a menor possibilidade de vida fora do útero. Ele está
aparentemente vivo, mas só tem o batimento cardíaco. A situação se compara exatamente à de
um caso de morte cerebral em que, diante do diagnóstico, retiram-se órgãos da pessoa para
doação. Claramente, os órgãos são extraídos antes que o coração pare.
ÉPOCA - Então, falta definir o que é vida?
Maria Lucia - O coração é a morte clássica. Parada cardíaca. O conceito de morte
encefálica foi gerado diante do grande problema de manter uma vida vegetativa, que não se
assemelha ao que a gente chama de humanidade. É onerosa e dolorosa para a família, uma
vez mantida por longos períodos. O transplante veio colocar a discussão. Há possibilidade de
salvar outras vidas. E, em Saúde Pública, nós precisamos de certa homogeneidade biológica
quando falamos em conceitos diferentes. O fato é que, na doação de órgãos, não se vê um
crime. Sabe-se que eles vão salvar. Sabe-se que quem está no centro cirúrgico tendo um
fígado, órgão vital, retirado não tem mais como viver além de determinados procedimentos de
manutenção por aparelhos. O mesmo ocorre com o anencéfalo. Ele não tem chance de vida
fora do útero materno.
ÉPOCA - A senhora falou que a parada cardíaca é a morte clássica. Mas o
coração bate tanto em quem tem morte cerebral quanto no anencéfalo...
Maria Lucia - É o tal negócio. Acreditamos que esse indivíduo levado para a
retirada de órgãos vitais deixaria de ter o coração batendo imediatamente após o desligamento
do respirador. Mas eu não posso garantir que isso aconteceria logo. Não é porque ele está
morto no sentido encefálico que o coração vai parar na hora em que se desligar o aparelho.
Pode durar uns minutos mais... A lógica da morte cerebral definitivamente não é essa.
ÉPOCA - E quanto ao argumento de que, havendo tronco encefálico, como
têm os anencéfalos, há vida e não se deve interrompê-la?
Maria Lucia - O tronco encefálico é responsável pela manutenção autônoma de
partes vitais, como respiração, pressão arterial etc. A lesão no tronco é que não permite a vida.
Mas a própria palavra anencefalia diz que não há encéfalo. Não existe possibilidade de vida
inteligente, de ser uma pessoa como a gente concebe uma pessoa. Ela é inviável do ponto de
vista médico. No caso do feto anencéfalo, quem é o ser vivo é a mãe.
ÉPOCA - A senhora comparou a mãe de um anencéfalo à máquina usada
para manter vivos, até a retirada de órgãos, aqueles cuja morte cerebral foi constatada.
Mas e quanto à alma, ao espírito?
Maria Lucia - Vejo uma situação análoga à da morte cerebral em todos os
sentidos. Do ponto de vista biológico, e da alma e do espírito também.
ÉPOCA - Em geral, as religiões são contra a interrupção da gravidez de um
feto inviável e pressionam o STF, que está para julgar o mérito da ação que autoriza o
aborto de anencéfalos. Como a senhora vê essa postura?
Maria Lucia - Precisávamos voltar a discutir a separação entre Igreja e Estado.
Religião é uma opção pessoal e deve ser respeitada. Existe liberdade religiosa nas sociedades
democráticas. Portanto, as leis não podem ter bases religiosas, porque há diferenças entre as
religiões. Há casos de gêmeos siameses em que os pais, por questões religiosas, não fazem
intervenção alguma. Por outro lado, a sociedade tem de ter uma coerência, pelo menos
técnica. Ou a gente acaba como na Arábia Saudita, discutindo se fotografia é moral ou imoral.
ÉPOCA - A senhora tem religião?
Maria Lucia - Não.
ÉPOCA - Então, sua visão é pelo lado biológico, técnico, não atenta às
questões da alma e do espírito...
Maria Lucia - Acho que tenho certa espiritualidade. Não tenho a religião, porque
não pratico nenhuma religião formalmente.
ÉPOCA - A senhora acredita em Deus?
Maria Lucia - Acredito. E cito a Bíblia aos que acharem que não atento para alma
e espírito. Deus não disse 'conheça as minhas palavras'. Ele disse 'conheça a mim'. Você tem
de conhecer a Deus. E não sair pregando a Bíblia ao pé da letra. A busca do conhecimento de
Deus é completamente diferente desse fundamentalismo religioso atual.
ÉPOCA - A senhora acha que falta uma discussão maior envolvendo a
sociedade, médicos e religiosos sobre o conceito de vida?
Maria Lucia - Sim, até porque é preciso, do ponto de vista médico, seguir uma
citada coerência biológica. Do ponto de vista social, há certa tendência a avaliar as
conseqüências. Do tipo aceitar a morte cerebral porque a doação de órgãos que advém daí é
um gesto do bem. Ou aceitar a fecundação in vitro, que gera embriões, alguns depois
descartados, porque se pensa: 'Ah, são mulheres desejando ter filhos'. Aí, não se vê crime.
Pelo que se propaga, a alma e o espírito também estão com os fetos fecundados in vitro. Mas
não se pode nem falar que é morte cerebral quando uma mãe não deseja manter a gestação
de uma criança que será inviável. Isso porque a mãe evitará o sofrimento dela. Mesmo que o
feto não tenha a mínima condição de vida, como os que não têm cérebro. Falta, antes de mais
nada, a discussão para superar o temor de, por discutirmos o tema, irmos para o inferno. Não.
Vamos discutir exatamente para evitar o inferno, que é o obscurantismo, a falta de
luz. (FONTE: Revista Época, Edição 340, 22/11/2004)
A menina sem estrela
O drama de Marcela de Jesus, que há quase nove meses resiste a uma cruel
anomalia congênita: a ausência de cérebro

Marcela de Jesus Galante Ferreira vai completar 9 meses na próxima semana


sem jamais ter sentido o toque das mãos de sua mãe. A menina nunca ouviu um único som e
não sabe o que é sentir dor física ou emocional. Desconhece o cheiro e o sabor de qualquer
alimento. Sobrevive no mais absoluto vazio. Portadora de uma anomalia congênita cruel -
anencefalia, ou ausência de cérebro -, a garotinha resiste graças às funções básicas mantidas
pelo tronco encefálico, a única estrutura do sistema nervoso de que dispõe. Composto de fibras
nervosas, o tronco encefálico garante os batimentos cardíacos, a respiração e alguns
movimentos de sucção. Nada mais. Os bebês anencéfalos, em geral, não duram mais do que
três semanas. Marcela é um caso raro na medicina.
Para a Igreja, os nove meses de sobrevida, ainda que vegetativa, são um milagre
divino. Marcela foi, inclusive, o símbolo de uma passeata antiaborto organizada em São Paulo,
em março passado, que reuniu 5.000 fiéis católicos, espíritas e evangélicos. Para a medicina,
Marcela é apenas uma exceção. "É impossível prever quanto o corpo da garotinha vai resistir.
Mas é certo que a sua deformidade é absolutamente letal e, contra ela, não há escapatória",
diz o geneticista Thomaz Gollop, especialista em medicina fetal do Hospital Albert Einstein.
Os pais da menina, Cacilda e Dionísio, lavradores da minúscula Patrocínio
Paulista, cidadezinha no interior de São Paulo, nunca haviam sequer ouvido falar de tal
problema congênito. Foi durante um ultra-som de rotina, no quarto mês de gestação, que
souberam da anomalia. Os médicos lhes deram uma semana para pensar sobre o que fazer - a
permissão do aborto de anencéfalos não está prevista no Código Penal, mas a maioria dos
juízes hoje concede alvarás para a interrupção desse tipo de gestação. "Entendi no ato o que
eles queriam dizer com aquele tempo que me deram. Respondi que não precisava de nem um
minuto a mais para saber que eu levaria a gravidez adiante", diz Cacilda. Com a resignação
própria de católicos fervorosos, os pais decidiram acrescentar o "de Jesus" ao nome da filha. "A
partir daquele momento, ela nunca mais foi minha. Foi entregue a Deus", diz a mãe. Desde o
nascimento de Marcela, o pai só fica na cidade com a mulher aos domingos. Nos outros dias, a
fim de poder arcar com o aumento das despesas, ele permanece na roça. As filhas mais velhas
- Débora, de 18 anos, e Dirlene, de 15 - passam a metade da semana com Dionísio, ajudando
a plantar milho, feijão e verduras. Cacilda parou de trabalhar e deixou de ir à missa aos
domingos para cuidar do bebê. É ela quem controla a alimentação de Marcela por sonda.
Também aprendeu a perceber o momento exato de colocá-la no concentrador de oxigênio, um
aparelho elétrico em forma de capacete que aumenta a oferta de ar quando a criança tem
dificuldade de respirar - e que fez a conta de luz da casa saltar de 30 para 200 reais por mês.
A família Ferreira age como se Marcela não fosse diferente dos outros bebês de
sua idade. A menina está em dia com a carteira de vacinação do Ministério da Saúde. Toma
ferro e vitaminas, como qualquer criança da mesma faixa etária. Apesar dos olhos cegos
projetados para fora e de a parte superior da cabeça ser disforme, a garotinha tem fotos feitas
pela família. Nelas, aparece usando um gorro, simplesmente. "Minha filha é muito carinhosa.
As pessoas ficam tão encantadas com ela que não ligam para o formato de sua cabecinha", diz
Cacilda. As reações esporádicas de Marcela aos afagos da mãe, como um meio sorriso que
esboça vez por outra, são resultado de reflexos involuntários que não precisam
necessariamente passar pelo cérebro.
Marcela não viverá muito mais. A causa provável de sua morte será uma infecção
nas vias respiratórias. Casos como o de Marcela costumam dividir opiniões: quem é capaz de
determinar se uma criança nessas condições merece ou não viver, e por quanto tempo? Na
Holanda, uma história similar mexeu com a opinião pública do país no início dos anos 2000:
uma menina batizada de Anna nasceu com graves malformações do cérebro e da coluna
vertebral. Quando tinha 4 semanas, os pais pediram aos médicos que a vida dela fosse
interrompida. Depois de um acalorado debate nacional, houve uma mudança de legislação: a
eutanásia neonatal passou a ser permitida. "Casos como o de Marcela certamente seriam
incluídos nos protocolos de eutanásia na Holanda", diz o pediatra alemão Roberto Wüsthof.
"Não faz sentido ser diferente. É como se ela fosse um computador sem processador." Isso não
importa para Cacilda e Dionísio. (Revista Veja, Edição 2021, 15/08/2007).

Direito de escolha
Supremo retoma debate sobre fetos sem cérebro este mês
por Marina Ito

Depois de discutir a constitucionalidade de pesquisas com células-tronco


embrionárias, o Supremo Tribunal Federal vai começar a debater, neste mês, a Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental 54, que trata da interrupção da gravidez em casos
de fetos anencefálicos, ou seja, de bebês sem formação cerebral. Os ministros vão ouvir
especialistas e entidades, em audiências públicas, nos próximos dias 26, 27 e 28 de agosto.
Os debates, assim como na ação em que se discutiu a pesquisa com células-
tronco, prometem pelas teses defendidas. Quem acompanhou a palestra Direito à vida e
direitos sexuais e reprodutivos, na X Conferência Estadual dos Advogados, da OAB do Rio,
teve a oportunidade de conferir uma paleta do que deve acontecer nas audiências públicas.
O ex-procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, o constitucionalista Luis
Roberto Barroso e a professora da Universidade de Brasília (UnB), Débora Diniz, discursaram
para uma platéia de cerca de 600 pessoas como se estivessem diante de ministros. Débora
Diniz apresentou trechos de um documentário em que uma mulher de Pernambuco, Severina,
descobriu que o filho sofria de anencefalia e não pôde interromper a gravidez no começo da
gestação. No dia marcado para fazer isso, a liminar dada pelo ministro Marco Aurélio, na ADPF
54, foi revogada pelo Plenário do Supremo. O vídeo apresentado emocionou os presentes.
Débora e Barroso explicaram que a interrupção da gravidez em caso de
anencefalia não pode ser interligada ao aborto. No aborto, explicou Débora, a mulher não é
uma futura mãe, simplesmente porque não deseja o bebê. Para Barroso, equiparar a
interrupção no caso de anecefalia e o aborto é “golpe de retórica”.
Hoje, a mulher que descobre ter um filho anencefálico, se quiser interromper a
gravidez, depende de uma autorização judicial. Segundo Barroso, que advoga na ADPF 54, o
que se busca é uma resposta do STF que valha para todo o país.
Barroso explicou as teses defendidas na ação. A primeira é de que a interrupção
nos casos de anencefalia não pode se enquadrar em crime de aborto, pois, neste último, há
vida potencial. Já no caso de anencefalia, os especialistas asseguram que não é possível viver
sem cérebro.
De acordo com o constitucionalista, o Código Penal não disciplinou a questão
porque, na época em que foi formulado, em 1940, não era possível fazer o diagnóstico. Por fim,
o advogado defende que obrigar uma mulher a seguir com a gestação, na hipótese, viola a
dignidade da pessoa. O parto, constata, passa a ser um ritual de morte e não uma celebração
da vida.
No dia 1º de julho de 2004, o ministro Marco Aurélio concedeu, monocraticamente,
liminar na ADPF 54, em que suspendia a criminalização da interrupção de gravidez em caso de
fetos anencefálicos. Em outubro do mesmo ano, a questão foi levada a Plenário. Por maioria, a
liminar foi revogada.
Para Barroso, há situações em que os avanços devem ser feitos através do
Judiciário a fim de assegurar a efetividade da Constituição Federal. “Se o Judiciário americano
não tivesse regulamentado a proibição da segregação racial, o Congresso daquele país não
teria feito isso nunca”, afirmou.
Questão de valores
Para o ex-procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, o que está em jogo
são os valores e a sociedade que se pretende construir. A vida, explica, não se mede pelo
tempo que a pessoa vive. “A vida pode dar vida a outra vida”, afirmou.
Segundo Fonteles, em março de 2007, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa), mudou os critérios de doação de órgãos. Em caso de anencefalia, a morte não pode
ser constatada pelo cérebro. Tem de ser pela atividade cardíaca.
Fonteles citou a própria experiência pessoal. Ele contou que já passou por
situação semelhante. Teve uma filha que tinha insuficiência cardíaca e viveu apenas 15 dias.
“Não me fale em sofrimento. Dores todos nós temos”, afirmou.
O ex-procurador também disse que falta uma política de saúde pública promovida
pelo Estado. Segundo Fonteles, uma dieta adequada de ácido fólico evita a anencefalia.
“Acontece porque as pessoas não sabem disso”, constata.
Fonteles também citou o caso da menina Marcela, do interior de São Paulo, que
viveu um ano e oito meses. Segundo ele, a médica que tratou da criança informou que era
caso de anencefalia e que Marcela expressava emoções e não apenas reações.
Com críticas à imprensa, Fonteles repudiou as acusações de que a Ação Direta de
Inconstitucionalidade 3.510, que tratou das pesquisas com células-tronco embrionárias, tivesse
a ver com convicção religiosa. “A vida é que está em jogo”, afirma. Fonteles explicou que se
fosse apenas questão religiosa, o STF não conheceria a ação.
Questionado, Fonteles afirmou que não defende a mudança do Código Penal. Ele
respeita a decisão da mulher em caso de violência. Quanto ao risco à gestante, ele entende
que a hipótese já é exceção. (Revista Consultor Jurídico, 11 de agosto de 2008).

Aborto: A realidade dos consultórios


Enquanto as questões éticas, religiosas e científicas ficam sem resposta, mais médicos
brasileiros optam por ajudar suas pacientes decididas a interromper uma gravidez
indesejada
Em um mundo ideal, o aumento da eficiência, a diminuição do custo e a facilidade
de acesso aos métodos anticoncepcionais femininos e masculinos poderiam ter reduzido o
aborto no Brasil a sua dimensão puramente médica. Ele seria praticado apenas para salvar a
vida da mãe ou na circunstância de o feto que ela carrega no útero ter sido gerado por estupro
ou ser inviável, por um defeito grave de formação. Mas não existe o mundo ideal. O aborto
continua sendo um dilema social, humano, jurídico e um risco para a saúde de quase 1 milhão
de mulheres brasileiras todos os anos. Essa questão, sem solução unânime no campo religioso
(quando o feto passa a ter alma?) e no científico (quando a vida começa?), vem sendo
encarada no dia-a-dia dos consultórios. Tem crescido o número de médicos que, diante da
irredutibilidade das pacientes em abortar, consideram seu dever profissional ajudá-las a
enfrentar da melhor maneira possível as consequências da decisão. Essa atitude deriva da
filosofia da redução de danos já adotada antes em alguns países para proteger a vida de
usuários de drogas pesadas que não conseguem se livrar do vício. Diz o obstetra Osmar
Ribeiro Colás, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp): "Não posso interromper uma
gestação, mas tenho o dever ético de explicar a minha paciente quais são os métodos
abortivos e, depois, se necessário, acudi-la".
O Brasil tem cerca de 18.000 ginecologistas. São pouco confiáveis as estatísticas
de quantos se tornaram adeptos da filosofia de redução de danos para pacientes dispostas a
desafiar a lei brasileira e se submeter a um aborto. O certo é que há vinte anos era raro achar
um médico que discutisse essa questão e impossível encontrar outro que admitisse essa
abordagem em sua prática médica. Hoje não só se debate livremente a questão do ponto de
vista teórico como muitos, a exemplo do doutor Osmar Colás, admitem publicamente que não
deixariam sem assistência uma paciente apenas porque ela decidiu abortar.
Sem muita precisão, os especialistas acreditam que chegue a 1 milhão o número
de abortos realizados anualmente no Brasil de modo clandestino. As complicações decorrentes
de abortos malfeitos, sem condições de higiene ou segurança, representam a quarta causa de
morte materna, atingindo cerca de 200 mulheres. O cenário foi bem pior em um passado não
muito distante. Na década de 80, os abortos clandestinos podem ter chegado a 4 milhões por
ano. Vários fatores se combinaram para reduzir esse número. Os mais efetivos foram o
aperfeiçoamento dos métodos anticoncepcionais e a disseminação no país de políticas de
planejamento familiar. Desde 2002, o Ministério da Saúde distribui por sua rede capilar de
atendimento a chamada "pílula do dia seguinte" – que contém uma substância capaz de
impedir a fixação do óvulo no útero, provocando, consequentemente, sua expulsão pelo
organismo feminino. Só a pílula do dia seguinte pode ter diminuído em 30% o número de
abortos clandestinos no Brasil. A adoção da redução de danos por um número maior de
médicos poderia derrubar ainda mais essa curva nos próximos anos.
Tal conduta prevê basicamente a adoção de duas medidas. O médico indica à sua
paciente uma clínica clandestina onde ela pode fazer o aborto ou ele mesmo a orienta sobre
como usar as pílulas abortivas. O medicamento mais utilizado para esse fim é o misoprostol,
vendido sob o nome comercial de Cytotec. Lançado inicialmente na década de 80 para o
tratamento de úlcera, descobriu-se logo que o Cytotec provoca contrações uterinas. Pelo risco
que oferece às grávidas, no Brasil o misoprostol só pode ser usado por hospitais credenciados.
Nem os médicos nem, menos ainda, suas pacientes podem, portanto, ter acesso legal à
substância. "Há inúmeros sites na internet que vendem o remédio", diz o médico Colás. Um
dos meios mais utilizados pelas brasileiras é a compra do misoprostol por intermédio da ONG
holandesa Women on Web. Feito o pedido, a pílula é entregue em até três semanas pelo
correio, por 70 euros. O site tem instruções em sete idiomas, incluindo o português. A maioria
dos ginecologistas recomenda a internação da mulher ao primeiro sinal de sangramento. Ela dá
entrada no pronto-socorro como se fosse vítima de um aborto espontâneo e a partir daí recebe
atendimento. Quando a paciente não quer ser hospitalizada, os médicos sugerem que a mulher
se submeta a um exame de ultrassom para se certificar de que todo o material embrionário foi
expelido. Pela letra fria da lei brasileira, todo o procedimento narrado neste parágrafo pode ser
descrito como criminoso. Ele seria visto como pecado ao juízo das convicções religiosas de
muitas pessoas. O espantoso, nesse caso, é que, apesar das imposições legais e das
restrições ético-religiosas, médicos e pacientes se sintam eticamente autorizados a discutir e a
praticar procedimentos que levem ao aborto.
A fonoaudióloga mineira Larissa P., de 28 anos, e seu médico não tiveram muitas
dúvidas quando colocados diante dessa questão. Larissa engravidou durante uma relação
casual há dois anos. Como sua menstruação sempre foi muito irregular, só se deu conta da
gravidez indesejada dois meses depois. Lembra ela: "Logo que descobri, procurei meu médico,
e ele me sugeriu o Cytotec. Como sempre tive horror a hospital, preferi usar a pílula em casa".
O médico explicou-lhe como seriam os sintomas, e ela controlou bem a ansiedade: "Foi tudo
sem nenhum susto, exatamente como meu ginecologista havia descrito. Em seis horas, estava
tudo resolvido. No dia seguinte fui ao consultório fazer um ultrassom para ter certeza de que
estava tudo bem".
A filosofia da redução de danos para o aborto surgiu no início dos anos 2000, no
Uruguai, país com leis tão rígidas quanto as do Brasil. A medida é incentivada pelo governo
federal uruguaio. Diz o ginecologista Aníbal Faúndes, do Centro de Pesquisas em Saúde
Reprodutiva, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): "Antes da adoção do
programa, o aborto ilegal era responsável por 35% das mortes maternas no Uruguai. Hoje, a
taxa de mortalidade em decorrência de abortos malfeitos é de 20%". Há um mês, Campinas se
transformou na primeira cidade brasileira a aprovar um projeto de redução de danos nos postos
de saúde e hospitais municipais. Existe uma diferença crucial entre o programa uruguaio e o de
Campinas. O médico brasileiro só está autorizado a orientar as pacientes em "processo de
abortamento" ou depois de o aborto ter sido concluído. Existem basicamente dois motivos para
a mudança de comportamento dos médicos em favor da redução de danos. O assunto saiu da
sombra. O ministro da Saúde, José Temporão, já defendeu inúmeras vezes a necessidade de
um debate público sobre a legalização da prática. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal
(STF) deu início aos debates sobre a legalização da interrupção da gravidez de fetos
anencéfalos e, pouco mais de um mês atrás, o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia,
aprovou a criação da CPI do Aborto com o objetivo de investigar as práticas ilegais de
interrupção da gravidez no Brasil. Os parlamentares não familiarizados com a realidade vão se
espantar com a extensão do fenômeno e, se forem fundo na investigação, poderão deparar
com algumas surpresas – entre elas, o fato de que muitas das clínicas são bem aparelhadas,
com pessoal médico multidisciplinar e bem treinado. A administradora de empresas Denise
Silva, de 43 anos, valeu-se dos serviços de uma dessas clínicas em 2002, quando, por
descuido, engravidou do namorado (hoje, marido). Conta ela: "Foi tudo muito rápido e simples".
No Poder Judiciário, a questão começa aos poucos a ser discutida com mais
desassombro. Nos últimos cinco anos, foram concedidos 3.000 alvarás judiciários para
suspensão da gravidez em casos de má-formação fetal, especialmente anencefalia. É o dobro
das liberações no mesmo período no início da década de 90 e representa 80% de todas as
gestações de fetos anencéfalos. Em 26 de novembro de 2006, a operadora de telemarketing
Adriane Caldeira, de 21 anos, foi uma das beneficiadas dos alvarás. Diz ela: "Não tive o menor
problema em conseguir a autorização. O problema mesmo foi decidir abortar, pois era uma
gravidez planejada – o nosso primeiro filho". Mas Adriane sabia que seu filho não teria
nenhuma chance de sobrevivência e, apesar do sofrimento, interrompeu a gravidez. Por mais
que a mulher esteja determinada e certa de sua decisão, optar por um aborto é sempre
devastador. Ninguém que já tenha vivido a situação relata a experiência com a tranquilidade de
quem acabou de dar um passeio no shopping. Não é simples nem nos casos em que a
gravidez é resultado de uma agressão, como aconteceu com Luciane L., de 25 anos. Vítima de
um estupro no ano passado, depois de vários meses de terapia ela aprendeu a lidar com a
lembrança da violência, mas não consegue apagar da memória a confusão emocional que
sentiu quando acordou da anestesia, depois do aborto.
Por mais que os médicos se rendam às demandas de suas pacientes e por mais
que a legislação avance, a interrupção do processo de criação de uma vida humana nunca
será de fácil compreensão intelectual ou emocionalmente simples. O médico Yaron Hameiry,
ginecologista do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, reflete bem essa situação: "Não
posso ser juiz de uma vida que vai se formar. Seja qual for a circunstância em que o feto foi
concebido, eu não posso ser juiz da vida alheia". Esse é um dilema que o ginecologista Jorge
Andalaft, da Casa de Saúde da Mulher, da Unifesp, enfrentou em cada um dos 400 abortos
legais que já fez, prática da qual é pioneiro no Brasil. Diz ele: "Todas as vezes, sem exceção,
sinto uma pequena angústia de imaginar que estou tirando uma vida em potencial. Mas não
cabe a mim julgar; a decisão foi da paciente, e ela deve ser respeitada".
A discussão de quando se inicia a vida é interminável. Mesmo que a ciência
consiga um dia definir esse momento com precisão, os debates não cessarão. Parece óbvio e
natural que, a partir do momento em que um óvulo é fecundado por um espermatozoide, uma
vida em potencial começa a se desenvolver. Mas que potencial existe caso esse óvulo
fertilizado não venha sequer a se fixar no útero? "Essa polêmica é infrutífera, pois o aborto
sempre existirá, independentemente de qualquer conclusão científica, dogma religioso ou
convicção ética. O aborto é acima de tudo uma questão de foro íntimo, uma decisão
exclusivamente pessoal da mulher", teoriza Thomaz Gollop, ginecologista e professor de
genética médica da Universidade de São Paulo. Aos 46 anos, a empresária e modelo Luiza
Brunet não consegue esquecer o aborto feito aos 17 anos. Era o início de sua carreira, de seu
primeiro casamento, e ela não se sentia preparada para ter um filho. Luiza diz que é "contra o
aborto". Seu caso ilustra a imensa complexidade da questão. Ser simples, acessível, seguro e
legal não torna o aborto mais aceitável para as pessoas que o rejeitam. Ao contrário, torna-o
ainda mais monstruoso ao juízo delas. Prova disso é o fato de que as discussões nos países
onde a prática foi liberada nunca serenam – a cada dia elas são mais violentas. Coloque-se na
pele de uma pessoa que acha o aborto, em qualquer fase da gestação e por qualquer motivo,
igual a matar alguém, e uma visão do abismo que separa as convicções opostas nesse assunto
começará a se abrir sob seus pés. (Revista Veja, Edição n.º 2097, 28/01/2009).
TJ paulista autoriza aborto de fetos com má formação

O Tribunal de Justiça de São Paulo autorizou a interrupção da gravidez de uma


enfermeira de 31 anos. A mulher está com mais de seis meses de gestação de gêmeos
xipófagos, unidos pelo abdômen e bacia. A perícia médica constatou que os fetos têm
anomalias graves e que não há chances de sobrevida para eles fora da barriga da mãe. A
decisão, por maioria de votos, é da 3ª Câmara Criminal.
O julgamento envolveu caso que é conhecido pela doutrina e jurisprudência como
aborto eugênico (quando o feto é portador de anomalia grave e sem cura), figura jurídica que
não encontra previsão legal. O Código Penal só permite aborto em duas situações: quando não
há outro meio para salvar a vida da gestante ou quando a gravidez é resultado de estupro.
Em primeira instância, o juiz Gioia Perini, da 2ª Vara Criminal de Mogi das Cruzes
(SP), indeferiu o pedido da gestante. O magistrado argumentou que o aborto eugênico não
encontra amparo legal. “Tão somente o fato de evitar-se sofrimento físico e psicológico da mãe
e dos familiares não serve como fundamento para a autorização [do aborto]”, sustentou o juiz.
Insatisfeita, a grávida pediu Mandado de Segurança ao Tribunal de Justiça
alegando que direito líquido e certo para fazer o aborto com autorização judicial. Disse que o
juiz estava errado nos fundamentos que embasaram a decisão, negando o alvará e que o ato
do magistrado foi ilegal.
Os advogados da gestante sustentaram ainda que interrupção da gravidez é
medida de urgência porque a continuidade da gestação coloca em risco a vida da gestante,
além de ser inviável a concepção dos fetos. A defesa esclareceu que o relatório médico dava
conta de que além de unidos pelas paredes abdominais e pélvicas, os fetos só tinham um
fígado e num deles não havia formação dos membros inferiores.
O relator, desembargador Luiz Pantaleão, votou contra a concessão de alvará
para o aborto. Ele entendeu que o Judiciário não pode contrariar a garantia constitucional do
direito à vida, autorizando a morte dos gêmeos pelo aborto. “Considerando-se que existe
garantia constitucional à inviolabilidade da vida em qualquer dos seus estágios, a interrupção
da gravidez diante da malformação dos fetos é juridicamente impossível”, argumentou
Pantaleão.
O desembargador também demoliu o argumento da defesa de que a interrupção
da gravidez era uma medida de urgência para acabar com o risco de vida da gestante.
Segundo Pantaleão, nesse caso não basta a existência de risco, mas é preciso comprovação
do efetivo perigo de vida e que o aborto é o único meio para salvar a mulher.
O desembargador Amado de Faria abriu divergência. Para ele, diante da grave
deformidade dos fetos, como do potencial perigo que corre a gestante, outra conduta não
poderia ter a Justiça que não fosse mandar interromper a gravidez, pondo fim ao sofrimento da
gestante. O entendimento foi seguido pelo terceiro juiz, o desembargador Geraldo Wohlers.
A maioria da turma julgadora entendeu que o juiz não pode ficar preso à letra fria
da lei. Para o grupo vencedor, o apego a formalidades não resolve um problema angustiante e
relevante como aquele que estava colocado em julgamento.
Jurisprudência
O aborto eugênico, por não ter previsão legal, ainda encontra resistência entre juízes e
desembargadores. A doutrina e a jurisprudência oscilam em aceitar ou não a interrupção da
gravidez nesses casos. Parte da jurisprudência entende que esse tipo de aborto tem por
fundamento o interesse social na qualidade de vida e é independente de todo ser humano.
Segundo essa tese, não importa o interesse em garantir a existência da vida em quaisquer
circunstâncias. Ainda que sem expressa previsão legal, a interrupção da gravidez por má
formação congênita do feto tem sido admitida pelo Judiciário paulista por meio de Mandado de
Segurança.
Na primeira instância paulista, o pioneiro nesse entendimento foi o então juiz
Geraldo Pinheiro Franco, hoje desembargador da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça.
“Impossível a sobrevida do feto, deve ser autorizado o aborto”, sentenciou Pinheiro Franco, em
1993, quando atuava como juiz do Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo).
O juiz Francisco Galvão Bruno, hoje desembargador da 9ª Câmara Criminal,
seguiu a mesma trilha autorizando a interrupção de gravidez num caso de Síndrome de
Edwards. A mesma posição foi tomada pela juíza Maria Cristina Cotrofe, quando titular da 2ª
Vara do Tribunal do Júri da Capital.
“Não há nenhuma possibilidade de tratamento intra ou extra-uterino nos casos de
trissomia do cromossomo 18 ou Síndrome de Edwards”, afirmou Galvão Bruno, quando era juiz
em primeira instância. “E a sobrevida, se houver, além de vegetativa não ultrapassará
semanas”, completou.
O TJ paulista também tem precedente como a decisão capitaneada pelo
desembargador Ribeiro dos Santos que autorizou o aborto de um feto com Síndorme de
Edwards, ou a que foi determinada pelo desembargador David Haddad. Este mandou o
Hospital das Clínicas da USP a fazer o aborto de um feto com falta de cérebro e olhos.
O desafio no caso de gravidez de fetos com má formação já foi bateu às portas do
Supremo, que deve julgar ação sobre aborto de fetos anencéfalos. (Revista Consultor
Jurídico, 16 de junho de 2009).

Parecer da PGR é favorável à antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia

Chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), nesta segunda-feira (6), parecer da


Procuradoria Geral da República (PGR) a favor da constitucionalidade da interrupção voluntária
da gravidez no caso de anencefalia fetal. A matéria é discutida na Corte por meio da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, relatada pelo ministro Marco Aurélio.
A procuradora-geral da República Deborah Duprat, que assina o documento,
revela seu entendimento no sentido de que se a doença for diagnosticada por médico
habilitado, deve ser reconhecido à gestante o direito de se submeter a esse procedimento, sem
a necessidade de prévia autorização judicial.
Direito fundamental
A proibição de antecipar a gravidez de fetos com anencefalia vai contra o direito à
liberdade, à privacidade e à autonomia reprodutiva, além de ferir o princípio da dignidade da
pessoa humana e o direito à saúde, salienta a procuradora. Para ela, a antecipação terapêutica
do parto não reflete uma violação do direito à vida. A interrupção desse tipo de gravidez é
direito fundamental da gestante, além de não lesar o bem jurídico tutelado pelos artigos 124 a
128 do Código Penal, no caso, a vida potencial do feto, conclui Débora Duprat.
“A antecipação terapêutica do parto na anencefalia constitui exercício de direito
fundamental da gestante. A escolha sobre o que fazer, nesta difícil situação, tem de competir à
gestante, que deve julgar de acordo com os seus valores e a sua consciência, e não ao Estado.
A este, cabe apenas garantir os meios materiais necessários para que a vontade livre da
mulher possa ser cumprida, num ou noutro sentido”, revela a procuradora-geral.
Diagnóstico seguro
Ao tipificar o aborto, o Código Penal excluiu a sanção criminal nas hipóteses de
gestação que enseje risco de vida para a gestante, e de gravidez resultante de estupro (art.
128 do CP). “O legislador do passado não contemplou a hipótese de interrupção da gravidez
decorrente de grave anomalia fetal impeditiva de vida extrauterina porque não podia adivinhar
que futuros avanços tecnológicos possibilitassem um diagnóstico seguro em tais casos.
O parecer sugere que o STF dê interpretação conforme a Constituição Federal aos
artigos 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, para declarar que tais dispositivos não
criminalizam ou não impedem a interrupção voluntária da gravidez em caso de anencefalia
fetal. (Sistema Push de Notícias do STF, 06/07/2009).

Aborto anencefálico: Direito não é religião

Anencefalia significa má-formação (total ou parcial) do cérebro ou da calota


craniana. De cada 10.000 nascimentos no Brasil, 8 são anencéfalos. A ciência médica afirma
que em se tratando de um verdadeiro caso de anencefalia a vida do feto resulta totalmente
inviabilizada. Não há que se falar em delito, portanto, no caso de aborto anencefálico. Não se
trata de uma morte arbitrária (ou seja: não se trata de um resultado jurídico desarrazoado ou
intolerável). Daí a conclusão de que esse fato é materialmente atípico.
O pressuposto cardeal desse aborto centra-se, evidentemente, na constatação da
anencefalia, que deve (deveria) ser confirmada por uma junta médica ou, no mínimo, por dois
médicos (de modo indiscutível). Se o legislador viesse a cuidar desse tema, naturalmente faria
previsão dessa exigência. Não se pode conceber um aborto sem a verificação certa e
indiscutível da inviabilidade vital do feto. Sublinhe-se que, na atualidade, o diagnóstico é 100%
seguro, consoante opinião de H. Petterson (da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal - Folha
de S. Paulo de 29.08.08, p. C5).
Sem certeza científica, claro que não se deve admitir o aborto. Mas havendo
certeza científica, não há dúvida que convicções ou crenças religiosas não constituem razões
suficientes para se negar a possibilidade desse incomum aborto. O STF, em sua decisão sobre
o assunto, certamente apoiará (por voto de maioria) o aborto anencefálico, condicionando-o
(entretanto) à imprescindibilidade de que se trata efetivamente de um feto anencefálico, com
perspectiva vital inviabilizada (ou seja: deve ser exigida a constatação médica fidedigna de
duas coisas: feto anencefálico e inviabilidade da vida). Pois somente nessas circunstâncias
justifica-se o abortamento, isto é, nessas circunstâncias a morte não é desarrazoada
(arbitrária). Não se pode, destarte, falar em violação ao art. 4º da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos.
No caso Marcela (que sobreviveu por um ano e oito meses) chegou-se à
conclusão de que não se tratava de uma verdadeira anencefalia (nesse sentido: Heverton
Petterson, Thomaz Gollop, Jorge Andalaft Neto etc. - Folha de S. Paulo de 29.08.08, p. C5; O
Estado de S. Paulo de 26.08.08, p. A18). Logo, o caso Marcela não pode ser invocado como
um "milagre divino" que falaria "por si só" contra o aborto anencefálico. A merocrania (caso
Marcela) não se confunde com a anencefalia.
Não se pode confundir Direito com religião. Direito é Direito, religião é religião
(como bem sublinhou o Iluminismo). Ciência é ciência, crença é crença. Razão é razão,
tradição é tradição. Delito é delito, pecado é pecado (Beccaria). A religião não pode contaminar
o Direito. As crenças não podem ditar regras superiores à ciência. Do Renascimento até o
Iluminismo, de Erasmo a Rousseau, consolidou-se (entre os séculos XVII e XIX) a absoluta
separação das instituições do Estado frente às tradições religiosas. O Estado tornou-se laico
(ou secular). A Justiça e o Direito, desse modo, também são seculares (laicos).
Um pouco mais de um terço dos pedidos de aborto anencefálico (de 2001 a 2006)
foram negados e a fundamentação foi, em regra, religiosa (O Estado de S. Paulo de 01.09.08,
p. A16). Em pleno terceiro milênio, porém, não nos parece correto conceber que um juiz (que é
"juiz de direito") possa ditar sentenças "segundo a dogmática cristã", "de acordo com suas
convicções religiosas" etc.
Nenhum juiz ou jurista está autorizado a repristinar o decreto do Imperador
Constantino, do século IV, que impôs o cristianismo como religião do Estado. Alma é alma,
corpo é corpo. Para a religião cristã a alma deve comandar o corpo; a Igreja deve dominar a
alma e o corpo. Impõe-se desfazer essa confusão (e tradição). A separação do Estado frente à
Igreja não prega o ateísmo. Cada um é livre para professar sua religião e ter suas crenças (ou
não acreditar em absolutamente nada). Só não se pode conceber, em pleno século XXI,
qualquer tipo de confusão entre religião e Direito.
De 2001 a 2006 foram protocolados 46 pedidos de aborto anencefálico no Brasil:
54% deferidos, contra 35% indeferidos (alguns casos ficaram prejudicados) (O Estado de S.
Paulo de 01.09.08, p. A16). Essa divergência jurisprudencial, por si só, já impõe uma tomada
de posição pelo STF, o único capaz de nos trazer, em relação ao tema, uma certa segurança
jurídica.
O Brasil, de qualquer modo, será um dos últimos países que irá reconhecer a
possibilidade de aborto anencefálico, que é autorizado nos países da América do Norte, Europa
e parte da Ásia. Também na Argentina não há impedimento. A proibição perdura nos países
muçulmanos, parte da África e em alguns países da América Latina (diz relatório da OMS:
Organização Mundial da Saúde).
O não reconhecimento do aborto anencefálico é um atraso civilizatório
incomensurável, que se deve à sobreposição das tradições sobre a ciência, das crenças sobre
a dignidade humana. Temos que recuperar as Luzes do século XVIII. A OMS reconhece a
anencefalia (verdadeira) como doença incompatível com a vida. Conclusão: o aborto
anencefálico não é uma eutanásia pré-natal arbitrária, não ofende o princípio da dignidade
humana (do feto). Ofensa à dignidade (da gestante) existe quando ele não é permitido.
Não se pede ao STF que reconheça mais uma hipótese de aborto no Brasil (além
das duas já previstas na lei: CP, art. 128). O que se deseja é que o STF admita que esse aborto
não é antinormativo (não contraria nenhuma norma, materialmente falando). Ele não é,
portanto, nem moralmente nem juridicamente contra o Direito. Ao contrário, é por respeito à
dignidade da gestante que ele deve ser admitido. O aborto anencefálico, quando se trata de
uma verdadeira anencefalia, não conflita com as normas jurídicas dos arts. 124 e ss. do CP.
Esse é o fundamento jurídico para sua exclusão do Direito penal (exclusão da tipicidade
material).
Nunca, entretanto, esse aborto poderá ser imposto, porque ninguém é obrigado a
abortar. Toda gestante tem liberdade para fazê-lo ou não (de acordo com suas convicções
pessoais e religiosas). Mas a que delibera sua realização não pode jamais ficar sujeita a
qualquer tipo de sanção (ou se reprovação). Obrigar mulheres "a sustentar a gestação de um
feto anencefálico é prática institucionalizada de tortura, já que a criança, com vida simbólica e
psicológica, não existirá" (Samantha Buglione, Folha de S. Paulo de 26.08.08, p. C7). (Jornal
Carta Forense, quinta-feira, 2 de outubro de 2008, Luiz Flávio GomesProfessor Doutor
em Direito penal pela Universidade de Madri e Diretor-Presidente da Rede de Ensino
LFG).

Pedido de autorização judicial para interrupção da gravidez - Feto anencéfalo.


Documentos médicos comprobatórios. Difícil possibilidade de vida extra-uterina. Exclusão da
ilicitude. Aplicação do art. 128, inciso I, do CP, por analogia in bonam partem. Considerando-se
que, por ocasião da promulgação do vigente Código Penal, em 1940, não existiam os recursos
técnicos que hoje permitem a detecção de malformações e outras anomalias fetais, inclusive
com a certeza de morte do nascituro, e que, portanto, a lei não poderia incluir o aborto
eugênico entre as causas de exclusão da ilicitude do aborto, impõe-se uma atualização do
pensamento em torno da matéria, uma vez que o Direito não se esgota na lei, nem está
estagnado no tempo, indiferente aos avanços tecnológicos e à evolução social. Ademais, a
jurisprudência atual tem feito uma interpretação extensiva do art. 128, inciso I, daquele diploma,
admitindo a exclusão da ilicitude do aborto, não só quando é feito para salvar a vida da
gestante, mas quando é necessário para preservar-lhe a saúde, inclusive psíquica. Diante da
moléstia apontada no feto, pode-se vislumbrar na continuação da gestação sério risco para a
saúde mental da gestante, o que inclui a situação na hipótese de aborto terapêutico previsto
naquele dispositivo. Apelo Ministerial improvido, por maioria (TJRS - 1ª Câm. Criminal; ACr nº
70021944020-Santa Maria-RS; Rel. Des. Marco Antônio Ribeiro de Oliveira; j. 28/11/2007;
m.v.).

TJ mineiro autoriza aborto de feto anencéfalo


Por considerar desumana a continuidade de gravidez em que feto é portador de
anencefalia, a 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais autorizou, nesta
quinta-feira (17/6), que uma gestante faça um aborto. A interrupção da gravidez havia sido
negada pelo juiz Marco Antônio Feital Leite, auxiliar da 1ª Vara Cível de Belo Horizonte. Os
desembargadores Alberto Henrique (relator), Luiz Carlos Gomes da Mata e Francisco
Kupidlowski determinaram a expedição imediata de alvará para a realização do procedimento.
O presidente da Câmara, desembargador Francisco Kupidlowski, ressaltou a
urgência do caso e sua repercussão diante da sociedade e da imprensa nacional. O
desembargador Alberto Henrique, relator do processo, destacou que o pedido de interrupção
de gravidez foi instruído com pareceres médicos, todos recomendando o procedimento.
O relator enfatizou que a anencefalia é uma patologia sem cura e que o feto com a
doença “não possui nenhuma expectativa de vida fora do útero materno”. Para ele, “não é justo
que à mãe seja imposta a obrigação de continuar com essa gravidez-sacrifício” e que seria um
martírio levá-la às últimas consequências. Nesse caso, “as convicções religiosas devem ser
deixadas de lado”, defendeu.
Para o desembargador Luiz Carlos Gomes da Mata, o tema é tormentoso,
envolvendo o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. Para ele, “diante da absoluta
ausência de perspectiva de vida do feto, não há como negar o pedido de autorização para a
prática terapêutica recomendada pelos médicos que acompanham a gestante”. Segundo o
desembargador, trata-se de um “fardo” que não se pode impor à mesma.
“Como a morte do feto logo após o parto já está prognosticada, não dispondo a
medicina de meios para salvá-lo, toda preocupação deve ser voltada ao casal, que de forma
corajosa, destemida e exemplar, bate às portas do Poder Judiciário em busca de uma solução
jurídica”, finalizou.
O desembargador Francisco Kupidlowski, ponderou que, diante da comprovação
por laudo médico de que o feto não possui calota crânio-encefálica e, portanto, sem expectativa
de vida após o parto, seria desumana a manutenção da gestação. Com informação da
Assessoria de Imprensa do TJ-MG. (Revista Consultor Jurídico, 18 de junho de 2010).

Grávida de oito meses é autorizada a abortar

O juiz substituto Luiz Carlos da Costa, de Cuiabá, autorizou o aborto de uma


grávida de 32 semanas cujo feto tinha má-formação, com anomalia complexa da parede
corporal e membros. De acordo com a decisão, o voto do ministro Carlos Ayres Britto, Supremo
Tribunal Federal, sobre feto anencéfalo é “perfeitamente aplicável no caso analisado, porque a
probabilidade de vida fora do útero se evidencia, a luz da ciência, ausente”. O voto do ministro
se deu no julgamento em que o Plenário do Supremo cassou a liminar concedida na ADPF 54.
O quadro do feto, conforme a decisão, é um “anomalia complexa de parede
corporal e membros (limb-body wall complex) compreendida por ausência de parede abdominal
anterior, agenesia de coluna lombar e sacral, pé torto a esquerda, amputação da perna a direita
com pé do mesmo lado malformado, tórax hipoplásico e artéria umbilical única”. Por conta
disso, o juiz alegou que o problema é seguramente incompatível com a vida extra uterina.
“Caso a gestação venha a prosseguir, todos os dados da literatura médica apontam para a
morte do recém-nascido após o parto dentro de algumas horas ou dias de vida”, afirmou o juiz.
Na argumentação, ele questiona se o aborto deve ser autorizado somente nos
casos de risco de vida para a gestante ou decorrente de estupro fixado limite temporal,
conforme o Código Penal (artigo 128, I e II). Para ele, a resposta é não. "A Constituição Federal
não pode ser interpretada com a viseira da lei infraconstitucional."
O juiz entende que o princípio da dignidade humana garante o direito do não-
sofrimento inútil. Diante disso, “obrigar uma mulher a levar a termo gravidez sem qualquer
prognóstico de sobrevivência do feto é impor a ela fardo maior do que a sua capacidade de
suportar, o que traduz em lancinante dor moral que tangencia à própria tortura”.
Diz ainda na decisão que “na hipótese de aborto autorizado pela legislação
infraconstitucional não há limite temporal, por mais forte razão não se pode impor, quando ele
decorre com base em fundamento constitucional”.
O pedido
A defesa da autora da ação alegou que “diante da gravíssima má-formação fetal
incompatível com a vida extra uterina, estar-se-á diante de um ser considerado morto desde a
constatação de sua anormalidade, a primeira argumentação, conclui-se que inexiste afronta ao
direito à vida, pois apesar de o feto ser, nestes casos, biologicamente vivo, a verdade é que é
juridicamente morto dada as condições apontadas pelos médicos. Não há que se falar em
direito à vida do feto em contraposição aos direitos da gestante, já que ele não sobreviverá fora
do útero materno”.
Outro argumento usado pela defesa é que se é possível a doação de órgãos de
uma pessoa declarada encefalicamente morta, “por qual razão não haveria de permitir a
antecipação do parto quando já se sabe que a vida do feto é inviável fora do útero?”. (Revista
Consultor Jurídico, 03 de agosto de 2010).

Justiça autoriza aborto de gêmeos siameses

A permissão para interrupção de uma gravidez indesejada no Brasil só é


concedida em dois casos. Primeiro: quando é resultado de estupro. Segundo: se a gestante
corre risco de vida. E foi a segunda situação que levou os desembargadores da 3ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo aautorizar o aborto de gêmeos xifópagos sem
chance de sobreviver após o nascimento. Além da impossibilidade de vida deles, a gestação de
sete meses era considerada de risco para a mãe.
O desembargador Amado Faria, relator do caso, destacou que o assunto é
espinhoso até mesmo para os operadores do Direito. Isso porque pode ser analisado sob
diferentes aspectos. “O tema penetra nos meandros da Filosofia, pontilhando aspectos
relacionados à ética, à moral, aos preceitos da Cultura Brasileira inserta na esfera da influência
dos povos nascidos no seio da Civilização ocidental”, diz. E completa: “irretorquíveis, ainda, os
aspectos espiritual religioso que o presente julgamento suscita, somando-se à vivencia de cada
julgador, ao que a Vida lhe trouxe como conhecimento pessoal, experimentado de modo
individual e particular”. Segundo ele, a “única certeza é a de que o cerne da pretensão
deduzida envolve incertezas e dúvidas”.
Amado Faria ressaltou, no entanto, que mesmo diante de um tema tão complexo,
não há como se esquivar de tomar uma decisão. “Ao juiz não é dado se eximir do ônus de
decidir. Não pode desabrir da obrigação mesmo em face da complexidade da questão, nem
pode fugir da tormentosa escolha a ser feita, ou seja, julgar procedente o pedido a ele
submetido”, asseverou.
Segundo ele, “o direito à vida é tutelado pela Constituição da República. Somente
não há nenhuma definição, constitucional ou legal, do que seja vida e quais seriam os limites
de seu início e fim”. Ele afirmou que “é a vida que faz o Direito e não o direito que faz a vida”.
Para conceder o Mandado de Segurança, o desembargador analisou o relatório da
Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. O médico alertou para os
riscos que a gestante estaria sujeita caso não haja a interrupção da gravidez. Ele apontou a
possibilidade de rompimento da bolsa e vazamento de líquido amniótico antes do término da
gestação. E ainda: a possibilidade de hemorragia, o que poderia levar a gestante a morte.
“Mantida a gestação, apesar da inviabilidade fetal provocada pelas patologias
incompatíveis com a vida extra-uterina, haverá aumento da morbidade e mortabilidade materna
devido à hiperdistensão uterina a acrescer o risco de rotula prematura de membranas ovulares
e eventual infecção, descolamento prematuro da placenta, coagulopatia materna, além de
atonia uterina e eventual hemorragia pós-parto”, descreveu o relatório. Somado ao risco de
morte da gestante, os gêmeos não há chance de qualquer sobrevida fora do útero, de acordo
com o mesmo relatório médico.
“A gestação gemelar monocoriônica, com dois fetos unidos pela parede abdominal
e pela parede pélvica, apresenta alterações e má formação de órgãos que tornam impossível a
sobrevida pós parto”, explicou o médico. Além disso, os dois fetos compartilham um único
fígado, uma megabexiga, rins multicisticos e apenas dois membros inferiores. O relatório diz,
também, que um exame de ultrassonografia revela anomalias de ordem cardiovascular.
O relator entendeu que a explicação científica já sustenta a decisão de permitir o
aborto. Ele ressaltou, ainda, que a gestante poderia ter recorrido a um aborto clandestino, mas
não o fez e “preferiu a isto percorrer o longo, demorado e complexo caminho pelas normas
legais”.
Amado Faria lembrou que o assunto está sendo discutido no Supremo Tribunal
Federal, ainda sem solução definitiva, em ação que trata de aborto de fetos anencéfalos.
Entretanto, ele ressaltou que a vida da mãe que está no sétimo mês de gestação não pode
aguardar a orientação do Supremo. Por fim, ele concedeu a autorização à mãe como medida
de máxima urgência. (Revista Consultor Jurídico, 08 de agosto de 2010).

TJ-SP autoriza aborto de feto anencéfalo

"É a vida que faz o Direito e não o Direito que faz a vida. A ausência de lei
expressa não significa que o Judiciário não possa autorizar a interrupção da gravidez quando a
vida fora do útero se mostra absolutamente inviável e constitui risco à saúde da gestante.
Afrontaria elementar bom senso exigir que a mulher prossiga agasalhando em seu ventre feto
absolutamente inviável. Permitir a interrupção da gravidez, em casos assim, exalta a
prevalência dos valores da dignidade humana, da liberdade, da autonomia e da saúde, em
absoluta consonância com os parâmetros constitucionais."
Esses foram os termos do fundamento dado pela 13ª Câmara Criminal do Tribunal
de Justiça de São Paulo para autorizar a interrupção de gravidez de uma mulher que estava na
16ª semana de gestação. A autorização para o aborto foi dada por votação unânime diante da
comprovação de que o feto era anencéfalo. C.L.A. entrou com recurso contra sentença da 2ª
Vara do Júri do Foro de Santana, na capital paulista, negando seu pedido. O juiz argumentou
que o aborto não encontra amparo legal.
Insatisfeita com a negativa do juiz de primeiro grau, a mulher bateu às portas do
Tribunal de Justiça. A turma julgadora determinou imediatamente a realização do aborto. “Em
face do mal extraordinário e grave como também o potencial perigo que corre a gestante,
circundado por sua atual situação angustiante e doença psicológica, que sem dúvida se verá
acometida, outra não deve ser a conduta, se não interromper o sofrimento”, afirmou o relator do
recurso.
O Código Penal só permite o aborto quando não há outro meio de salvar a vida da
gestante, ou se a gravidez for resultado de estupro. No primeiro caso, o médico não precisa de
autorização judicial. Quando a gravidez é resultante de abuso sexual, o aborto só pode ser feito
com consentimento da mulher e permissão de um juiz. Em outros casos, o aborto pode ser
punido com pena de um a três anos de prisão para a gestante, e de um a quatro anos de
reclusão para o médico.
A anencefalia é uma malformação fetal congênita e irreversível, conhecida como
ausência de cérebro, que leva a criança à morte poucas horas depois do parto. Em 65% dos
casos, a morte do feto é registrada ainda no útero. No caso apreciado pelo tribunal paulista, a
defesa da gestante sustentou que a interrupção da gravidez era medida de urgência porque a
continuidade da gestação colocava em risco a vida da mulher, além de ser inviável a
concepção do feto.
Amadurecimento jurisprudencial
Essa não é a primeira vez que a Justiça de São Paulo determina a interrupção de
gravidez em caso de malformação de feto. Em maio de 2009, o desembargador Amado de
Faria, então atuando na 3ª Câmara Criminal, capitaneou divergência que determinou a medida
por maioria de votos. Amado de Faria foi apoiado pelo voto do desembargador Geraldo
Wohlers.
Sobre a matéria, a doutrina e a jurisprudência oscilam em aceitar ou não a
interrupção da gravidez. Parte da jurisprudência entende que esse tipo de aborto tem por
fundamento o interesse social na qualidade de vida e é independente de todo ser humano.
Segundo essa tese, não importa o interesse em garantir a existência da vida em quaisquer
circunstâncias. Ainda que sem expressa previsão legal, a interrupção da gravidez por má
formação congênita do feto tem sido admitida pelo Judiciário paulista por meio de Mandado de
Segurança.
Na primeira instância paulista, o pioneiro nesse entendimento foi o então juiz
Geraldo Pinheiro Franco, hoje desembargador da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça.
“Impossível a sobrevida do feto, deve ser autorizado o aborto”, sentenciou Pinheiro Franco, em
1993, quando atuava como juiz do Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo).
O desembargador Francisco Galvão Bruno, da 9ª Câmara Criminal, quando ainda
juiz, enfrentou a questão. Ele seguiu a mesma trilha de seu colega Pinheiro Franco autorizando
a interrupção de gravidez num caso de Síndrome de Edwards. A mesma posição foi tomada
pela juíza Maria Cristina Cotrofe, quando titular da 2ª Vara do Tribunal do Júri da Capital.
“Não há nenhuma possibilidade de tratamento intra ou extra-uterino nos casos de
trissomia do cromossomo 18 ou Síndrome de Edwards”, afirmou Galvão Bruno, quando era juiz
em primeira instância ao apreciar um caso que envolvia a doença. “E a sobrevida, se houver,
além de vegetativa não ultrapassará semanas”, completou.
O TJ paulista também tem precedente como a decisão capitaneada pelo
desembargador Ribeiro dos Santos, que autorizou o aborto de um feto com Síndorme de
Edwards, ou ainda a que foi determinada pelo desembargador David Haddad. Este mandou o
Hospital das Clínicas da USP fazer o aborto de um feto com falta de cérebro e olhos. Também
tomara a mesma posição dos desembargadores Marco Zanuzzi e Teodomiro Mendez.
A questão é tão complexa que o Supremo Tribunal Federal vem adiando decisão
sobre o tema. A corte ainda não julgou a ação movida pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde (CNTS) para permitir a interrupção da gravidez em caso de
anencefalia fetal, hoje considerada crime. A ação, protocolada em junho de 2004, contrapõe
ciência e religião, mas sobretudo joga luz na discussão sobre o direito da mulher de
interromper a gestação quando o diagnóstico revela anencefalia.
O ministro Marco Aurélio Mello, relator da ação, diz que vai manter sua posição de
que, em caso de anencefalia fetal, a interrupção da gravidez não pode ser considerada aborto.
“O aborto é quando o feto tem possibilidade de vida. No caso da anencefalia, não há cérebro.
E, se não há cérebro, não há vida”, disse ele, explicando que a doação de órgãos é autorizada
a partir da morte cerebral.
A CNTS quer que o Supremo declare que a interrupção da gravidez em caso de
anencefalia não pode ser punida como se fosse aborto. O argumento é que a permanência do
feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa em função do elevado índice de
mortes ainda durante a gestação, o que empresta à gravidez um caráter de risco. (Revista
Consultor Jurídico, 24 de fevereiro de 2011).

Juiz autoriza interrupção de gravidez de feto sem crânio

O juiz José Pedro de Oliveira Eckert, da 2ª Vara Criminal e Infância e Juventude


de Alvorada, na Grande Porto Alegre, em julgamento nesta segunda-feira (15/8), autorizou a
interrupção de gestação de feto sem calota craniana. Para o juiz gaúcho, como não há
possibilidade de vida fora do útero para o feto, deve-se preservar a saúde da gestante,
inclusive a psíquica. Cabe recurso da decisão.
A anomalia caracteriza-se pela ausência de calota craniana, fazendo com que o
encéfalo (constituído pelo cérebro, cerebelo e tronco cerebral) fique em contato direto com o
líquido amniótico. Na ação ajuizada no Foro de Alvorada, a gestante (no terceiro mês da
gravidez) e seu marido defenderam a diferença entre o aborto (realizado nos casos em que há
expectativa de vida do feto) e a interrupção terapêutica de gestação de feto, quando não há
possibilidade de vida fora do útero, caso dos fetos acranianos.
Ao conceder a autorização para antecipação do parto, o juiz Eckert destacou que
"considerando que o quadro de anencefalia é incompatível com a vida extrauterina, há de se
preservar a saúde da gestante, inclusive psíquica, observado o seu avançado período de
gravidez". Citou jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul concedendo a
autorização em casos semelhantes.
Em parecer, o Ministério Público defendeu que o processo deveria ser
redistribuído à Vara do Tribunal do Júri, o que foi negado pelo juiz. Adotando a teoria de José
Carlos Moreira Alves, de que não há direito do nascituro, entendeu que "não se está aqui
diante do cometimento de um crime doloso contra a vida, pois, em que pese haja vida já
durante a concepção, não é reconhecida a personalidade civil ao nascituro".Portanto, concluiu
o juiz Eckert, a demanda não é competência do Tribunal de Júri. Com informações da
Assessoria de Imprensa do TJ-RS. (Revista Consultor Jurídico, 16 de agosto de 2011).

[1] FRIGÉRIO, Marcos Valentin. “Aspectos bioéticos, médicos e


jurídicos do abortamento por anomalia fetal grave no Brasil”,
in: Revista Brasileira de CIências Criminais, 41, jan/mar 2003. p.
291.
[2] FRANCO, Alberto Silva. “Aborto por Indicação Eugênica”, in Estudos
Jurídicos em Homenagem a Manoel Pedro Pimentel. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1992. p. 90.
[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo:
Saraiva, 2002. p. 427.
[4] SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio
de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 188.
[5] Art. 3º. A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do
corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser
precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada
por dois médicos não participantes das equipes de remoção e
transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e
tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
[6] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro:
Forense, 1977. 5ª ed. v. 5. p. 313: “Consiste esta [referindo-se à
idéia de eugenia] num amontoado de hipóteses e conjecturas, sem
nenhuma sólida base científica. Nenhuma prova irrefutável pode ela
fornecer no sentido da previsão de que um feto será, fatalmente, um
produto degenerado.”

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