Você está na página 1de 5

Apenas uma vida humana!

Na Schõnhauser Allee n.54, no dia 26 do mês anterior


'
o comerciante Wilhelm Histermann, de 38 anos, matou
suas filhas, Margarete e Erna, de 8 e 6 anos de idade, e
em seguida se enforcou. Em uma carta, que deixou
sobre a mesa, afirma que a carestia e a invalidez em
virtude da crescente cegueira o obrigariam a abrir mão
deste mundo, que ele esperava encontrar um mundo
melhor, e que levaria as crianças para um além melhor,
para não impor a ninguém o fardo de seu sustento. -
Os corpos foram levados do instituto médico-legal
[Schauhaus] , a carta passou da custódia
policial para o tribunal.
Noticiário local berlinense

1 Título original: Nur ein M enschenleben!. Publicado origin.almente em L~ipziger Volk~~i~ung,


n.101, 4 maio 1899, identificado com uma âncora. Em carta de 5 de maio de 1899 dmg1da a
Leo Jogiches, Rosa comenta que este artigo de sua ~utoria foi p~blicado com tal desenho (\'er
Luxemburgo, R óza Luksemburg: L isty do L eor,a]oguhua-Tyszlu, v.l, p.451).
ttis unrn vez cai u um daqudcs para quem vale O que re%a urn
. 1 l ·
t 1tt ~h.H> 1o on ·s: att· que o s
'<>l nas,·a
· T , o orva1ho nos co111c os olhos.
No 1not1\(.'nto t.·111 que e le. Iu t·•1va com '' L ideia da morte e d>e as-
_
~as~inato, chcg.tva-lhc pela janela aberta um v ivaz coro desencontra-
lo dr vozes hu1nanas. Lá embaixo, no p átio, 0 moleque do senhor
~t·g undo- tcncntc batia o tapete enquanto flertava e~>~ ª doméstica de
bo ·hc ·has v rn1clhas do senhor da casa. N a casa vizinha, o funileiro
n1.ntdava. ritn1ado co1110 um pica-pau, um claro som metálico. Um rc-
~ lejo iniçiava a ária do brinde da Traviata e, de rep ente, interrompeu-a
após un1a advertência ríspida do porteiro. Da rua, entrava no quarto o
barulho do bonde puxado por cavalos que passava. Em volta, a vida da
·idade grande hiava e zumbia. Na mesma cidade, na mesma rua, na
me n1a casa, separadas pela mesma parede, apenas a um passo umas
das outras, as pessoas passavam, ocupavam-se diligentemente de seus
afazeres diários, cada uma seguindo seu caminho, e nenhuma alma
se preocupava con1 essa vida humana que lutava com o crime, com a
morte, ninguém lançava um olhar sobre a miséria, sobre a queda de
três seres vivos. Apenas uma parede fina, apenas alguns passos separa-
vam o infeliz de seus próximos e, no entanto, havia entre eles um abis-
1no intransponível. Tratava-se das mesmas pessoas, falavam a mesma
língua, eram do mesmo país e, ainda assim, se fossem de outra região
do mundo, de outra raça, se viessem da Lua, ele n ão poderia ser-lhes
mais estranho, mais indiferente, mais desconhecido. A "sociedade",
a junção de indivíduos em uma "unidade superior", 0 "todo orgânico"
era, naquele momento, uma mentira insolente, um fantasma, ela não
existia, "a sociedade"; a vida humana que se extinguia com seu sacrifí-
cio terrível tremia sozinha, ligada a ninguém, sem estar compreendida
em nenhum todo, articulada e associada a ning ué1n, separada e aban-
donada por todos, remetida a si mesma, em m eio ao tumulto humano
como alguém que se afoga no oceano distante, como o pó que voa no
espaço. Um estilhaço separado de toda a humanidade, ele lutava na
solidão, na escuridão espiritual e corporal, e morri a desamparado crn
sua ilimitada "liberdade individual', caía, "um homem livre'' na luta
pela existência, sucumbia um grande senhor, um h on1e1n de cultura,
em iieU c:sp.iç,rJ 1lli:tc-iftl,
~ . -~ como um ó., ~ püf" ~ múftt
,,_,.,,--, ·,uun:: um monte de lao..
E~
~ •
quando o ta 1:•W'g
~ ÃJ:-_
UCUID Cootn ~ tuturtt.a.., QU:m.:l~ O .l:~ - .. -
natt> Ct'l:aDÇa e o míe:ídio '""'---
,_..,.,_4U.U _3.l.•~
> .~J _ i_. ~
..:.~ - -

-1C em ff1dadc, ~ fx:ção em rcalwbdc lli se 2nrnnmou oom ~nxi-


dadc .1 ""toócdade- .- . -r~ ...
. .' ,, com s.aln e unítonnc polml d.1 ta nltt ú seu
dittito como ..todõ como •ww--.:.1_
J
.J _
UIUl.l"AlC
• •
: ~
••
,~

r ~ 0 dr.una Uõil
fl"nff~ . L --=..L
nu.a -r~---.w, em tres ,,.l!- e
_,,,,._.~ . .
:ou um~
Um:st~ para pofair u m ~ sobre o delito ororrido.
Qyando o mrigo escnM), pn:g.Klo ru cruz pdo dono, '"'\)Oturci.t-se
m.un sacríficío íodesc1it:m:1, quando o sen~~,, · o ch~--ote ~,
aparaz ou sob o fardo do tnbalho e da misiérU.. pdo ~~ ~ ~ --.n-
c.arava o crime de um ser humano contr-~ outro. ~ so.:.ie<l~ \..'\.)tltr.l
indivíduo - índi\iduo estt: exposto, rerrfrd em .::w. nudtt.. d~and(
aos céus em sua bnrt21icbde O escravo cruc:ifiado, o senu tortu
morria com uma paga nos libios, e seu olhar que ~ ~.,_,,_repleto
de ódio, anuncÍ2.ndO ~ aúa sobre seus ~ -
Foi somente a socieda<ie burguesa que espalhou o,~ da invi ·i-
bílidade sobre seus crimes. Somente ela implodiu ~ '- · l et,~
os seres humanos e deixou cada um ao sa1 destino_ à , u~ miséri~ e ;i
sua ruína,. para somente depois de te-lo de:,""UIDaniudo - iritu 1..'u
corporalmente, pelo ~sinato ou pelo suicídio - kmbr.ir-~e dd .
Somente ela obrigou o ser humano a suici<b.r-se e a mat.u :ua~ filha: -
à clara luz do sol, em meio à baru}hent:l praça do men:ado. en, meio
ao zunido e ao barulho monóton0 e letirgico do cotidi~ que nl,
para um segundo sequer junto ao morto, que não digna um olhar que
seja a seu corpo. Apenas a sociedade burguesa é que ~tirou o horror
do gmocídio por tê-lo tornado cotidiano, embru~~ndo o: ~ enridos
tanto das vitimas quanto dos verdugos, cobrindo º~ dnma da exis~n-
cia humana com a trivialidad~ o grito de um náutrago fom ~\ ári.A do
real · de um morto em combate com o pó da àdade grande-,
qo, 0 corpo d d• IA • • ' •
9

E nós mesmos não sobrevoamo a ca a 1a not1c1.1s ,-nnas na


penúltima página de nosso jornal diário ~m um ~-ar en&donh • e~~t
grande depósito de lixo, 00 qual os deJC da soe 1edadt burguesa -
r,-rl • ,., r,•' ,,,,,,. ,,.t i
li ~ ~," l l ' ' "',., t'

. . ~,d· - ~ão diariamente descarregad~?


~u '
~ ho "''1,,mato, ,ut(
. . .
'°• ª"·idcntc b Ih -
·alma letárgica ao tra a o e do trabalho
~ào no~ d1ng1mnc. n1m um.1 e . . . .
.. L• . t ' , 111 cntc não acrcdatamn"- - pois o cahele1reiro
para a la.ma~ ,. 1t1 un" ,
. , 1 . voz anasalada, do a~salto a casa cm frentt
no, conta 1mp:a ave • lOm · .. . . '
1_ ... ~m c·om rra-ul ridadc mccanica pela rua, as arvores
pm~ o, honocs pas~ •~r,- .
. íl
d ao t ruta~ e oresc
enl n<>s· parques como se tudo cst1ve5se na mais
hcla ordcnl, a c~da noite na ópera o espetáculo inicia calmamente-,
· acred·-mos
ora, nao h•
no's mesmos
,
intimamente que a história ainda
poderia continuar por algum tempo nes~e ritmo, qu~ nada ~ional
aconteceria e que, cm todo caso, nós ainda podenamos temunar de
beber a nossa caneca com toda a calma?
E, ainda a sim, a todo momento, em algum lugar perto de nós, cai
uma vítima inocente, impotente, abandonada, guardando um horren-
do enigma no coração, com uma pergunta terrível nos lábios, com um
olhar urpreso, desesperançoso, dirigido a essa entidade de milhões
de cabeças que, ainda assim, não tem cabeça, com milhões de cora-
ções batendo e, ainda assim, sem coração, compreendendo milhões
de pe oas e, ainda assim, um monstro desumano, surdo, cego - a
sociedade burguesa!
Há uma sinistra saga popular eslava a respeito de Wij, que diz o
seguinte: era uma vez um lugar habitado por seres humanos, em que
maus espíritos haviam se infiltrado. Invisíveis, eles apenas deslizayam
como sombras leves entre os humanos, pregavam suas peças, violaYam,
matavam e bebiam sangue humano. Incontáveis e horrendos eram o
seus delitos, tão horrendos, que ninguém ousava contá-los, e a quem
aos cochichos se relatassem os feitos, os cabelos embranqueciam de
pavor, e eles mesmos ficavam velhos. E não havia nenhuma medida,
nenhuma
~
salvação contra os maus esp1ntos,
, · .
visto - se pod1·a
que nao
ve-los nem encontrá-los - a· d e , · 1
in a que 1osse poss1vel senti-los em vo ta,
bem como seu voo medonh0 , · do
, seu toque ternvel. Então foi anuncia
que apenas uma coisa pode · b d ,. , _
.. na ater o po er dos maus esp1ntos: quan
do V\/11, o homem deferro
_ ·,
· · f d
. que vivia escondido na terra mais pro un a,
com palpebr~~ compridas que iam até o chão, enxergasse e mostrasse
os maus esp1ntos Foi-se W" o
· procurar lJ, encontraram-no e levaram
homem impl I com pa. o pc ado e olho, fcchado4' té a mora-
dia do mal. • nt m minhas lp braa", di1 Wij, e a ~ua v,,,, era
como o rangido de 1netal nfi rrujado. om e forço levantaram-lhe
as P·-.r-..-r de ferro, que chegavam até os pé , de olhou e aponte 1,
com os dedos de ferro, para o bando de maus espíritos, que se torna~
ram visivci no mesmo momento e caíram partid no chão, batendo
dcsespc damente as asas.
O ·homem de ferro", o homem dos músculos férreos, do arado de
ferro da roda de ferro - o homem do trahalho foi encontrado, ele \'eio
da terra escura, onde a sociedade o baniu, para a superficie ensolarada.
Ba ta apenas levantar-lhe as pálpebras pesadas, de modo que ele veja
e e tique sua mão de ferro, para que os maus espíritos invisíveis, que
há. milhares de anos atormentam a humanidade, caiam desmaiados
no chão.

Leipzig, 4 de maio

Você também pode gostar