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NA PONTA DA LINGUA 1 Bseen b. 1s i6 " 18 ‘Branpirims — guerra em toms da ingua Caries Aero Fareo [or], 4" ed Lingua materna ~ Team, vrigioeensina Mares Bao, Michel Stubbs & Giles Gagné, 3° ed Hist conc da linguic,Babara Weedwond, 5*e ‘Stilngistica ~ wna introduc erica, Lens Jean Cave, ed Hira concise da ria, Cates Higoare, 3 Pra entender alingustica — epiemolga ementar de wna diiphna Robert Marti, 3° Inve a sada etre, Armand Matelat, fei Neve, 2 ed A pragmatice,Prongise Armengaud, 2 iwi conc de smidca, Anne Heénalt, 2 ed A semdntic, Irene Tambs, 2 Linguistic comptaconal — ora & prin (Gabriel de Avil Otero e Seri de Moura Menuze Linguistica Marca — Una introduc a xtadn da histria as inguas, Caos ABerto Frac, 2 Lar com palavras — coo eee, lrandé Antunes, Se Anais de disse — Hise priias, Francine Maire, 2 ed Mas gue & mesmo “radia”, Carls Franchi, 2 ed ‘Anais da covers, principe metas Catherine Kerbat Orion 4s politics Unguistins, Loue-Jean Cavet Pras de lerameto no esi lure, crt dicars, 2 ed Carlos Alberto Fasc, Maria do Raivio Groin, ivan Maller de Olvera, Tél Gimene, Lis Carlos Travia eleva sail da lingua guage eri nna ais Pecval Leme Brito, Marcos Brg, Neiva Mars Jung, Exnéria de Lourdes Sav, Maria Mara Frianeto Tado mundo devia exreve, Georges Par A argumenaco, Chis Plata lrandé Antunes lutar com PALAVRAS coesaéo e coeréncia oro Marcos Marcionlo Gara ¢ mover eadnco: Andria Custédio Contnno twat Ana Sah les (seo) Cores alberto Faroe (UF Epon de Omer Rangel PUCSEL Gian Maller de Our USC pt enague Morteogudo Unw Santapo de Comports ‘anova Rojgopeten Tear) ‘Maros Bago (on). ‘Mana MrtaPerero Scere [FR, Un Rachel Got de Anarade UC SP Saima annus Mucho (PIC?) Stoo Mars Baton card in ‘pane. ccc wa foe Swe ICON 5 ORES tS ee sono 297 ‘uatampeens aoe ce ne Cains ora ba e105. ‘aiyoucninn na nga Sanmstacens npgen nn 2 ini. ne ayia ga Peis te ee als Ne coy cnan wi Deets sree 3 PARABOLA EDFTORIAL Resumen 36 Ip betel a70 Slo Paso $e abe 1 50519269 5061-1522 f(y 061-8075 ome pee: wi paabolaestoracom br ‘erat parboaaparaoliedtoralcombr eae bees gy voname po tga fame ee ISBN 7a a5 5640.6 Sect: a e208 © oto: Ma hand Antunes desta chr Prabal Fao SS Paul, seembro de 005 Para Sara ¢ Daniela, os melhores frutos de todas as coesses € coeréncias de minha vida. A lingua é uma das realidades mais fantésticas da nossa vida. Ela esté presente em todas as nossas atividades; nés vivemos entrelagados (as vezes soterra- dos!) pelas palavras; elas estabelecem todas as nossas relagbes e nossos limites, dizem ou tentam dizer quem somos, quem so os outros, onde estamos, o que vamos fazer, o que fizemos. Nossos sonhos so povoados de palavras; 05 outros se definem por palavras; todas as nossas emogoes € sentimentos se revestem de pala- ‘vras. © mundo inteiro é um magnifico e gigantesco bate-papo, dos chefes de Estado negociando a paz e a guerra as primeias silabas de uma crianga (..). E pela linguagem, afinal, que somos individuos tinicos: somos 0 que somos depois de um proceso de con- quista da nossa palavra, afirmada no meio de milhares de outras palavras ¢ com elas compostas (Parao & Teaea, Prins de texto para alos universities, Feels: Yous, 2002, p 8). SUMARIO Apresentagdo: Tudo o que voce queria saber sobre ‘como construir um bom texto sem se estressar Latis A. Marcusthisennnnnoe PRA COMECO DE CONVERSA. Capitulo 1 — 0 ESTUDO DA LINGUA... 1.1, Em busca de mais qualidade. 1.2. Velhos rumos 13. Gaue 60 proceso de exrever? Capitulo 2 — A COESAO DO TEXTO.... 2.1, O que é a coesio? Capitulo 3 — COMO SE FAZ A COESAO?.... ‘3.1. Relagdes textuais responséveis pela coesio.. 52 Capitulo 4 — PROCEDIMENTOS E RECURSOS 4.2. Recursos da coesao. Capitulo $—~ RECURSOS DA REPETIGAO 62 5.1. A panifrase. 5.2. 0 paralelismo.. 5.3. A repetigdo propriamente dita. Lan com PHLARAS: COESKO E coenENcIA Capitulo 6 — RECURSOS DA SUBSTITUICAO...... 86 6.1. A substituigéo gramatical.. 6.2. A substituido lexical.. 6.3. A retomada por elipse.. soos IIT Capitulo 7 — A COESAO PELA ASSOCIAGAO SEMANTICA ENTRE AS PALAVRAS. ce 125 Capitulo 8 — A COESAO PELA CONEXAO. an. 140 8.1. A.conexio : : 140 8.2,As relagoes semanticas sinalizadas pela COMEXIO ens : so 14S Capitulo 9 — A COBSAO, O LEXICO EA GRAMATICA .. 164 Capitulo 10 — A COESAO E A COERENCIA sow 174 Capitulo 11 - QUE A LUTA NAO SEJA VA. ooo 187 FONTES DOS EXEMPLOS APRESENTADOS...... 194 BIBLIOGRAFIA 195 APRESENTAGAO TUDO O QUE VOCE QUERIA SABER SOBRE COMO CONSTRUIR UM BOM TEXTO SEM SE ESTRESSAR Este trabalho da professora universitéria e pes- quisadora de lingua portuguesa, Irandé Antunes, é ‘mais do que um trabalho sobre a coesio e a coeréncia textuais. E, sobretudo, um exercicio de tradugao, em palavras simples e compreensiveis a0 leigo, daqueles conceitos tedricos e téenicos que aparecem nos sisudos manuais de linguistica textual. E que muitas vezes ppassam, sem qualquer mediagao explicativa, para os livros didsticos, ¢ a professora ou o professor sequer conseguem saber do que se trata. A capacidade de dizer de maneira simples 0 complexo é uma das tantas virtudes da obra que vocé esta comecando a ler. De fato, € comum que as professoras € 08 pro- fessores, no ensino fundamental € médio, e também no nivel universitério, assinalem nas margens de redagées ou de trabalhos de curso expresses como 9 ram COM PALAVRAS:COESKO € COERENCIA “falta coesio” ou “néio tem coeréncia" Mas 0 que esti mesmo faltando neste caso? O que deveria ser feito Para suprir a tal lacuna de coesio e coeréncia? E disso que esta breve e substantiva andlise trata com naturalidade ¢ muita intimidade, como se estivesse ensinando a fazer uma comida gostosa. E tudo isso sem dar receitas simples ou superficiais, além de mos- ‘rar a seguranga de quem tem uma longa experiéncia neste tipo de assunto. Digo isto porque conhego Irandé Antunes e seu trabalho sério de ha muito tempo, desde que se ocu- ava dessas questées no comego da década de 1980, quando escreveu sua dissertagao de mestrado sob minha orientacio, tendo em seguida desenvolvido tese de dou- torado sobre a coesao textual na Universidade Clissica de Lisboa, que acabou se transformando no primeiro livro dedicado exclusivamente a0 assunto no Brasil Esta familiaridade com o tema, aliada a uma enorme experiéncia com professores da rede publica no ensino fundamental ¢ médio, bem como em universidades pliblicas ¢ particulares, dew & autora uma sensibilidade incomum para 0 tom adequado a exposicéo que atinge © leigo e nao enerva o técnico e tedrico exigente, pois ndo € superficial. Essas virtudes vém aqui aliadas a ‘um texto muito bem humorado e escrito com paixdo e carinho, pensando sempre nos leitores. Sob 0 ponto de vista teérico, a autora parte da ideia de que a lingua nao se acha confinada as regras, da gramatica, nem € uma questio de certo ¢ errado, mas é uma atividade social que cria as condigées da interagio € dos processos comunicativos em geral. Além disso, sustenta que “escrever é, como falar, uma 10 = ponesentacho atividade de interagao, de intercambio verbal. Por isso € que nao tem sentido escrever quando nao se esté procurando agir com outro, trocar com alguém alguma informagio, alguma ideia, dizer-Ihe algo, sob algum pretexto”. Escrever é uma atividade que exige um ‘movimento para 0 outro, definindo este outro como ‘seu interlocutor. E é nesta relaco que o proprio autor se constitui. Ninguém escreve sem um destinatério, E claro que, nessa visio, 0 que mais conta nao vai ser a ortografia nem a simples regra de concordancia ¢ sim 0 desenvolvimento das ideias ¢ a distribuicéo dos tépicos, a selecdo lexical, a contextualizagéo, 0 estilo que vio produzindo a adequacao da escrita. Para a autora, “isso equivale a admitir que a coerén- cia do texto é: linguéstica, mas é também contextual, extralinguistica, pragmética, enfim, no sentido de que depende também de outros fatores que néo aqueles puramente internos & lingua”. A lingua enquanto sistema de formas ndo comanda tudo. Baseada nessas premissas, Irandé Antunes, co- mhecida por seus trabalhos sobre lingua portuguesa ‘numa linha inovadora e ligada a linguistica textual ¢ andlise da sociointeraglo, desenvolve uma série de argumentos mostrando como 0s textos séo muito mais do que simples formas. Como apontado, 0 micleo das observagées recai nos processos de coesdo e coerén- cia. Mas 0 que & coesdo? Como observé-la? Que faz 6 aluno quando a professora escreve que seu texto no tem coesio ou Ihe falta coeréncia? Certamente, no se trata de trocar uma palavra, acrescentar ou mudar um conectivo, nem de melhorar o parégrafo fou adequar os tempos verbais ¢ as concordancias " lumaR com paLaveas: coESHO E CoERENCIA verbo-nominais. Lendo 0 livro, ficard claro do que se trata, efetivamente, Esta clareza é dada também por outra caracteristica singular da autora: a farta exem- plificagdo com trechos da literatura, do jornalismo de obras cientificas, Em suma, aqui o leitor encontra uma introdugéo a produgio textual escrita em linguagem acessivel. Se gundo as préprias palavras da autora, ela pretende trazer algumas nogbesbisicas, acerca da propriedade textual da coesio ede sua relago com a overéncia,com o objetivo de Se compreender missinda esas noges eas, desenvolver nossa competéncia para falar, ouvir, lr e escrever textos, com mas relevncia, consisténciae sdequagio. Parece pouco, mas é muito, ¢ talvez seja quase tudo o de que necessitamos para tratar questo tio dificil e a0 mesmo tempo tio decisiva. Neste aff, Trandé trata de “trocar em mitidos” os termos técni- os € as teorias, oferecendo aos leitores comuns uma ferramenta como nao se tinha até agora. Esta é uma obra que sai do pedestal das teorias para chegar a rea- lidade do usudrio que mais necessita, isto é, o aluno, a aluna do ensino fundamental e médio, mas também 0 universitério, bem como o homem e a mulher que J sairam da escola ¢ da universidade e entraram na vida ¢ precisam continuar escrevendo, No se trata de dominar a lingua enquanto uma forma e sim de saber como usé-la de maneira adequada nas mais diversas situagdes da vida didria e nos mais diversos graus de formalidade ou informalidade que se oferecem e nos quais devemos produzir géneros textuais variados. “Escrever é sempre escrever textos”, Jembra com razdo a autora, ¢ por isso ndo é possivel 2 ResenTaghO ‘escapar dessa atividade no uso da lingua. Escrever nao 6 fazer frases isoladas ou combinar formas apenas, ‘mas produzir textos que sejam compreensiveis. Isto significa que escrever também é inaliendvel da leitura: escrever € oferecer algo para ler. Assim, a coesio © a ‘coeréncia tém aspectos voltados tanto para o linguistico ‘quanto para decisGes relativas ao contexto social, cultural € cognitivo, levando em conta o interlocutor visado. Para tanto, ao longo do livro, uma série de mitos é ‘abalada. Por exemplo: nao é verdade que s6 0s dotados pela natureza escrevem bons textos. A rigor, todos, com algum esforgo, podem produzir bons textos. Outro mito € a ideia de que todo texto deve ter elementos coesivos na superficie textual para funcionar. O que ele deve é permitir a compreensio. Constitui, ainda, ‘uma visio distorcida imaginar que a repetigio seja coisa da lingua falada; basta ver a quantidade de re- petigdes encontradas em textos jornalisticos, romances trabalhos de teses, entre outros. A repeti¢do, como mostra Irandé Antunes, € um recurso expressivo de enorme importancia € até necessério em alguns gé- neros textuais. Além desses, muitos outros mitos em relagdo a escrita vdo sendo derrubados com enorme clareza e sedugdo argumentativa. Nao creio que seja minha missdo dizer, numa breve apresentagio, tudo o que a autora trata em obra de tanta densidade e com enorme transparéncia. Numa apresentagdo, tal como o genero exige, deve se criar o gostinho da leitura no leitor. Espero ter atingido este objetivo nestas breves observagées. E assim, para saber mais, remeto vocé, leitora, leitor, 4 leitura atenta. Mas néo poderia finalizar sem citar 18 LIAR com PALAYRAS: COESHO E cOERENCIA aqui o poema que serve de epigrafe ao capitulo 10, “A coesdo e coeréncia”, Eis a magnifica passage Subi a porta ¢ fechei a escada. Tirei minhas oragées ¢ recitei meus sapatos. Desliguei a cama ¢ deitei-me na luz Tudo porque Ele me deu um beijo de boa noite (dvro8 awe) ‘Ap6s introduzir esse poema, a autora se indaga, logo no inicio do capitulo: Seria esse texto incoerente? Epossivel descobrir nele alg 1a ponta de sentido? Melhor dizendo, épossvelrecuperar alguma unidade de sentido ou de intengio? Serve para “dizer alguma coisa? Se serve, como encarar 0 fato de as palavas estarem numa arrumagio linear que resulta sem sentido? A porta sobe? A gente fecha a escada? A gente tira as oraées ¢ recta os saptos? A gente desliga a cama se deta na luz? Nao ¢ dificil concordar com Irandé Antunes: 0 texto tem tudo para ndo dizer nada. Tem tudo para no funcionar, mas, flizmente, como constata a auto- ra, vivemos num mundo em que nossas experiéncias € condigées sociais, culturais e cognitivas permitem saber como se sentem os amantes beijando-se com ardor... Tudo se inverte, e entio é possivel até mesmo recitar sapatos, desligar a cama ou fechar a escada, A. andnima poetisa (creio que ‘o autor’ é uma mulher), foi mais do que coerente: deixou-nos plenamente cientes de como se sentira apés 0 beijo. Como acer- tadamente lembrado por Irandé a este propésito, “ >= pvnesenragno esse texto € coerente no porgue, simplesmente, & um texto poético Ele € coerente poraue se pode, por uma via qualquer, recuperar uma unidade de sentido, uma unidade de intengio. Pois bem, & mais ou menos assim — como a amante de que trata 0 poema acima — que voce, Teitora, leitor, vai se sentir em relagio a coesio € & coeréncia depois de estudar este livro. Vai entender que € possivel ser coerente ¢ coeso sem seguir line- ‘armente € na superficie, vai descobrir que na lingua nem tudo é transparente e que muitas coisas 6 se constroem na relagao com o leitor no ato da escritura voltada para a interagdo. O que se dé igualmente na produgio oral. Enfim, na vida hé muito mais do que formas linguisticas quando lidamos com a lingua em funcionamento. E é deste algo mais que vem a maior parte dos efeitos de sentido que 0s textos provocam em nés, Neste livro voce vai aprender como organizar © aspecto linguistico em consonancia com este algo mais. E 0 mais importante: vocé nao precisa ser um ‘téenico em linguistica para entender do que se trata comecar a agir na sua producdo textual com maior seguranga. Aproveite! Lum AxtOwio Maxcuscut Recife, setembro de 2005 5 PRA COMEGO DE CONVERSA.. ‘A questo da coeséo tem sido, em geral, pouco ou quase nada tratada pelas graméticas e, 86 muito ecentemente, um ou outro livro didatico traz.observa- Ges acerca dessa propriedade textual. Em geral, essas observagies so apresentadas de forma superficial, incompletas e, por vezes, com algumas inconsistencies Assim, pode-se admitir que as questdes da coesio ¢ da coeréncia nao séo exploradas de forma satisfat6ria, nem mesmo nas aulas de Kingua, E comum ouvir-se referéncias muito vagas & coesio © & coeréncia. Essas propriedades do texto Parecem ser, assim, um terreno meio indefinido, vago, impreciso, para onde vamos jogando tudo 0 que nio sabemos explicar bem; sobretudo quando se trata de dificuldades menos superficiais. Diante daquele texto meio ruim, que nio estd muito bem formulado, que nao esté muito claro, cuja dificuldade nao sabemos exa- tamente identificar, recorremos a uma érea geral, sem contornos, onde cabe tudo e tudo se acomoda. B, af, dizemos: falta coesdo; ou 0 texto ndo tem coeréncia. Mas... falta coesio exatamente onde? Falta que tipo de recurso? Se um texto nao tem coeséo é porque Ihe esté feltando 0 qué? 16 RA COMEGD DE CONVERSA A indefinigao é pior ainda quando se trata de ‘coeréncia. Um texto, incoerente? Onde? Por qué? ‘Como disse, joga-se genericamente para o campo da coesio e da coeréncia a razdo de toda dificuldade que nio se consegue definir ou explicar. Na verdade, 0 que nao tem sido muito comum € que saibamos, todos nés, professores, alunos e demais, ‘como € um texto coeso e, paralelamente, como € um texto sem coesio; que recursos concorrem para que um texto seja coeso; o que falta em um texto sem coeséo. Minha pretensio com este trabalho é contribuir para que qualquer leitor interessado na questao possa ter acesso a essas nocdes basicas e possa compreender ‘um pouco mais acerca do que fazer para deixar o texto articulado, encadeado; enfim, coeso ¢ coerente. Para isso, depois de apresentar as fungdes textuais da coesio, fago uma descri¢ao de cada um dos dife- entes recursos que concorrem para esse resultado. ‘Uso de propésito uma linguagem nao demasiada- ‘mente téenica ou académica, evitando, por isso, 0 act- rmulo das nomenclaturas especializadas. Iso nao significa ‘que, alguma ver, teriha abdicado do rigor teérioo das questées, bem como da fidelidade as fontes citadas. Quanto aos exemplos apresentados, decidi tam- bém suprimir parte dos créditos relativos as fontes referidas, Esses exemplos foram, em sua grande maioria, colhidos em livros, jornais e revistas, com 0 ‘cuidado de ser fel ao contetido ¢ a forma das citacoes tomadas, No entanto, alguns poucos foram criados ‘ad hoc, para servirem de ilustragao, embora sejam inteiramente previsiveis nas situagées corriqueiras da interagdo cotidiana, "7 LUTAR CoM PALAVRAS: COESHO € coERENCIA No conjunto do trabalho, posso parecer reite- rativa, ou posso até, num ponto ou noutro, deixar a impressio de redundancia. Preferi correr esse risco, contanto que meu texto cumprisse sua fungdo Principal: a de ser explicativo, a de possibilitar uma exposicéo mais acessivel do fendmeno da coesio, sobretudo para aqueles leitores apenas iniciados nas questées textuais. Quis, afinal, tornar mais clares € mais acessiveis questées, por vezes, complexas e nem sempre bem compreendidas. Esse propésito remonta ao desejo de trazer para © debate priblico questées linguisticas que ultrapas- sem as determinagdes pontuais do certo e do errado, geralmente vistas em frases ¢ sem referéncia a um contexto de uso. De fato, o debate que se tem realizado no Brasil sobre questées linguisticas em diferentes programas de televisio, de radio, ou da imprensa escrita, tem tido uma tinica diregéo: a de reforgar a importancia da gramética normativa, a de reafirmar as nogées de uma suposta norma culta e, consequentemente, a de fixar-se “nas coisas erradas que dizemos”, com as quais “deixamos a lingua portuguesa em franco perigo”” Como pano de fundo desse debate prescritivo, hé o pressuposto geral de que “nés, brasileiros, nao sabemos falar bem a lingua portuguesa”, de que nés a “bagungamos com nossa indisciplina e nosso es- pirito irreverente”: Aliés, corre solto o boato de que “a lingua portuguesa é uma lingua muito dificil” Algo assim imposs{vel de ser aprendida; sé uns poucos superdotados é que conseguem, depois de muita luta. Ou, ainda, 0 outro boato, meio terrorista, de que a 8 i. PRA.COMEGO O€ CONVERSA, tuguesa corre o risco de desaparecer e, para asoobreivenie, pede-se socorro. Em linhas gerais, vai por esses termos a tOnica do debate publico no Brasil em torno das questdes linguisticas. ‘Nao por acaso, em todos esses meios de comuni- ‘cago, qualquer intervencao relacionada a lingua por- tuguesa 86 se ocupa de tirar divides pontuais quanto 40 que € certo € ao que é errado. Normalmente, essas jntervengées giram em torno de questées como, por exemple: O que é certo — entregar em domicitio ou entregar a domicilio? e similares. Questdes pontuais, quer dizer, localizadas, na verdade, em um determi- nado ponto do texto (as vezes, em um pontinho do texto). . Questées que néo requerem uma compreensio mais global de como as pessoas interagem por meio dos mais diferentes géneros de texto. Questdes que nao requerem um conhecimento mais relevante de como fazemos, por exemplo, para organizar um texto em fungéo de: a © defender um ponto de vista, um principio tedrico; orientar uma argumentagao; fazer uma ressalva; apresentar uma justificativa; dar uma explicagao; emitir um parecer; = vender um produto (ou uma ideia) et Coisas que supdem, de fato, uma competéncia flobal, para perceber semelhangas e diferencas, para ordenar, para estabelecer hierarquias, para decidir sobre 0 que € nuclear e o que € periférico, para dis- 19 LUTAR COM PALAMRAS: COESHO E COERENCIA cernir sobre 0 melhor jeito de abordar o outro — se de forma cautelosa, se de forma taxativa; se de vez, se 0s poucos etc. Essas muitissimas outras coisas é que sdo habilidades relevantes que qualquer pessoa deve pode dominar. Com certeza, seriam muito mais titeis socialmente, na vida de cada cidadio, do que saber, por exemplo, se a entrega € a domicitio ou em domiciio, E apoiada na percepedo de que saber atuar ver- balmente é uma condigio de sucesso para o exercicio de nossas atividades sociais que me sinto motivada a trazer aqui uma explicagio um pouco mais acessivel acerca de questées textuais; questées verdadeiramente dlobais, capazes de nos apoiar em nossas tentativas de desenvolver competéncias relevantes para uma atuacdo verbal bem-sucedida. Questdes, enfim, capazes de nos ajudar a, na luta com as palavras, conseguir a coesio e a coeréncia que tornam significativas as coisas ‘que fazemos, quando dizemas. Se aceitarmos a ideia de que existem, “por debai- x0 do pano”, muitas formas de boicotar, de retardar, de impedit 0 acesso de todos as oportunidades do desenvolvimento pleno da pessoa, temos que admitir, também, que a privagdo de uma competéncia textual ¢ comunicativa constitui uma dessas formas de deixar de fora ou de exeluir as pessoas. Em geral, mesmo dentro das escolas, ainda falta chegar a hora de as pessoas acordarem para 0 que significa, socialmente, 0 nao de- senvolvimento de competéncias textuais. No total, os que se privam dessas competéncias nao dao por isso, E 8 responséveis também nao, E quem sai perdendo? Vejo, portanto, como da maior pertinéncia que se instigue 0 piblico em geral para perceber a amplitude 2 PRA COMEGO OE COWERSA das questdes linguisticas; para perceber que uma lin- gua néo é uma coisa que se restringe apenas a um manual de gramdtica, a regras de certo e errado; para ‘perceber que usar a linguagem é uma atividade social, é um ato hist6rico, politico, cultural, que envolve tum complexo conjunto de habilidades (cognitivas, textuais e interativas) e de fatores situacionais. E, além disso, uma prerrogativa do ser humano, que Ihe dé imensos poderes e que retrata os intimeros Jagos que as pessoas criam entre si e com 0 mundo fem que vivem. Vejo, assim, com grande simpatia, ‘qualquer iniciativa de estender 0 debate das questoes Jinguisticas a todas as pessoas que no, apenas, os professores e, mais especificamente, os professores e (08 alunos de lingua portuguesa. ; ‘A lingua é universal. Ter competéncia para saber usé-la adequadamente em textos bem organiza- dos e relevantes é um direito de todos. Direito que, parece, ainda nao chegou “a tados os domicilios” ou, brasileiramente, “emt todos os domiciios”, Pelo menos, naqueles verde-amarelos. s Ferreira Gullar compos um poema que intitulou de Muitas voces. Nele, aparecem os versos: ‘Meu poema um tumulte, a fala que nele fala ‘outras voces arrasta em alarido, Pois é: neste trabalho também se pode ouvir a fala de muita gente. Gente com quem conversei, .a LUTAR Com PALAURAS: COESKO € cOERENCIA com quem troquei ideias, com quem dividi minhas preocupagtes. Por isso, gostaria de agradecer 0 incentivo, 0 apoio que, por muitas conversas e sugestdes, me foram dados néo s6 pelos professores Eduardo Calil € Marcos Bagno, mas também pelas professoras Ana Lima, Beth Marcuschi, Auxiliadora Lustosa, Gléucia Nascimento, Isabel Pinheiro. Me foram muito valiosas também as reflexdes feitas, na UECE, com os alunos do mestrado de linguistica aplicada ¢ com minhas orientandas de iniciagdo cientifica. As professoras Francineide Costa, Alair Geanne, Aparecida Santos e Nara Janaina, de Belém de Sao Francisco, gente que vive “com a mao na massa”, foram o “termémetro” com que pude avaliar o grau de transparéncia de ‘minha linguagem neste trabalho. A elas, agradeco a inestimavel escuta, Agradego, de forma muito especial, & professora Adair Pimentel Palicio e ao professor Luis Antonio Mareuschi, que, por dominios diferentes, me abriram as portas da linguistica. Cada um a seu tempo Parece razodvel admitir que, para os de casa, nio precisa haver agradecimentos. verdade. Mas me deixem dizer aqui quanto me sinto gratificada por poder discutir com Alfredo cada uma das questées aqui tratadas. E uma forma de a gente misturar a filosofia e a linguistica. Dé tudo no mesmo IRaNDE Costa ANTUNES Recife, setembro de 2005 2 CAPITULO 1 © ESTUDO DA LINGUA 1.1. Em busca de mais qualidade Em geral, temos acompanhado o debate acerca das ‘questies ligadas ao estudo do portugués. J4 no causa nenhuma surpresa ouvir falar das imensas dificuldades dos alunos para escreverem, mesmo no final do ensino ‘médio, textos relevantes, adequados e, consequentemen- te, coerentes. Ou, para se expressarem oralmente num registro mais formal. ‘Todos nés conhecemos também as condigées gerais em que esse estudo acontece: sem ‘muito estimulo a leitura e sem tempo para um persis- tente exercicio de se esctever textos que sejam, de fato, representativos da atividade que as pessoas desenvolvem nna comunicagao social do dia a dia ‘As inquietagdes deixadas pela constatagdo de que “como esta nao pode ser” nem sempre trazem muitas pistas de como “deveria ser”. Além disso, faltam livros de orientagdo especifica para professores € alunos do ensino fundamental e médio e, até, para © piiblico que queira conhecer explicitamente certas questées da linguagem. O que se tem escrito acerca dos problemas do ensino da lingua e de suas possiveis 2 LUMAR col PALAVRAS; COESKO E coeRENCIA solugies destina-se, na grande maioria dos casos, a0 proprio publico pesquisador, numa linguagem, quase sempre — como deve ser, na verdade — altamente especializada, de dificil acesso aqueles que apenas se iniciaram numa compreensio cientifica dos fendmenos da lingua e de seu ensino. Dessa forma, faltam orien- tages mais condizentes com as reais possibilidades de apteensio dos grupos menos especializados. Também tém faltado livros que sejam acessiveis aos alunos. Os livros didaticos ainda tém concedido muito pouca aten- fo as questées mais especificamente textuais, sobretudo em relagdo a determinados pontos tedricos. Evidentemente, no esté em causa no momento tentar simplificar essas orientagdes. Nem tampouco reduzi-las a um conjunto de receitas que dispensem a consisténcia teérica e a reflexio critica. Pretendo tra- zer algumas noges bisicas — pra comeco de conversa — acerca da propriedade textual da coesio e de sua relagio com a coeréncia, com o objetivo de compreender mais ainda essas nogdes e, assim, desenvolver nossa competéncia para falar, ouvir, ler e escrever textos, com mais relevancia, consisténcia e adequagao. Minha preocupacao, portanto, neste momento, é atender a uma técita e muitas vezes explicita vontade dos professores, alunos ¢ outros interessados, de sa- bberem como “se estuda a lingua com base no texto” como eles dizem, ou como se faz o estudo das regula- ridades do texto, como digo eu. Muites vezes, tenho constatado que, como jé disse, se tem pouca clareza acerca “do que é mesmo essa histéria de coesio” e, ai, todos aqueles problemas textuais mais complexos, dificeis de definir e de explicar, sio simplesmente 2 rotulados, e de uma forma muito vaga e indefinida, ‘como problemas de coesio. Quero assumir, portanto, aqui, essa tarefa de esclarecimento, de trocar em mitidos, na intencéo de trazer um pouco de luz as salas de aula, para que professores ¢ alunos vejam a lingua numa pers- pectiva bem mais ampla e descubram a maravilhosa aventura da interagdo, da comunicagao, da troca, do intercambio, possibilitados pela atividade verbal. Lé, ‘onde s6 os humanos chegam, pelo menos do jeito ‘que chegam. 1.2. Velhos rumos ‘Ja no causa surpresa 0 fato de se constatar que 08 alunos, até mesmo na universidade, demonstram ter dificuldades significativas na expresso oral, na Teitura e na escrita de determinados géneros mais formais. Deparamo-nos, por vezes, com situagdes diante das quais nos perguntamos: 0 que ficou de, no minimo, onze anos de estudo da lingua? Por que até mesmo nogées € habilidades téo elementares néo foram assimiladas? Nao pretendo, no momento, desenvolver uma explicagdo para as muitas razdes desses resultados. sriste uma farta literatura a respeito. Contento-me ‘em fazer algumas consideracoes, & guisa de introdu- cao. Como se quisesse motivar o leitor para aceitar 0 que vem depois. ‘Tendo em conta as fungGes de ensino que a es- cola assume, comecaria por apontar algumas de suas insuficiéncias, principalmente no que toca ao ensino 25 LUTAR COM PALAVRAS: COESHO € COERENCIA das habilidades de escrever. Embora vé focalizar prin- cipalmente problemas do ensino, espero interessar também os alunos e seus responsdveis. Eles precisam entender 0 que se passa em sala de aula; precisam saber avaliar a relevincia do que esté sendo proposto como ensino e de como este ensino estd sendo feito, Ou seja, na dtica com que falo aqui, os problemas do ensino devem interessar aos professores, aos alunos ©, Por que nio?, a toda a sociedade. Cada um tem seu papel na condugéo desses problemas. ‘Uma primeira insuficiéncia do ensino diz res- Peito ao fato de que hé uma primazia quase absoluta da oralidade em sala de aula, e de uma oralidade, As vezes, quase restrita ao informal. Até mesmo as Notas, 08 resumos, os esquemas para estudo, quando escritos, passam por um trabalho de tradugéo oral do professor “para facilitar”, “para que os alunos entendam melhor’, As oportunidades de escrita sio, quase sempre, reduzidas &s (poucas) aulas de redagio © aos eventuais apontamentos de aula, normalmente copiados do quadro. As atividades de leiture também no chegam a ser significativas Uma outra insuficiéncia poderia ser vista no fato de que, além de escassas, as oportunidades de escrita limitam-se a uma escrita com finalidade escolar apenas; ou seja, uma escrita reduzida aos objetivos imediatos das disciplinas, sem perspectivas sociais ins- piradas nos diferentes usos da lingua fora do ambiente escolar. Por exemplo, a produgéo escrita, no ensino médio, é orientada especificamente para a dissertagdo, com vistas & redacao do vestibular. Dessa forma, € comum a artificialidade das condigdes de produgio 26 (0 esTuD0 OA UiNGUR desses textos, do que resulta uma falsa compreensio do que seja construir textos relevantes e ajustados a um ‘contexto de comunicagao social mais amplo. ‘A essa escrita falseada falta um processo de retorno, pois falta, igualmente, um leitor & vista ou ‘mesmo simulado. Nem mesmo o professor que vai ler (08 textos dos alunos costuma assumir esse papel de Ieitor, atropeladg que é pelo outro papel de corretor. E, dificil, nessas condigées, isto é, sem saber para quem estd escrevendo, alguém tentar ajustar-se as condicbes da interagio. Assim, & escassez. de oportunidades de uma escrita socialmente significativa se soma 0 ‘agravante de uma escrita que é mero treinamento, para nada e para ninguém. E de se ressaltar, ainda, a estreiteza na com- preensio da atividade de escrever um texto um tanto quanto formal. Quase sempre, faltam as providencias para o planejamento do que vai ser dito ¢, mais ainda, falta a revisio cuidadosa do que foi dito. Tudo se reduz a um exercicio mectnico de por no papel no importa o qué; faca ou nao sentido, tenha ou no relevancia 0 que se diz Esse aspecto é mais grave quando se constata que 4 preocupaglo com a reviséo do que foi escrito se limita a corrigir pontos de sua superficie linguis- tica, como ortografia, concordancia verbal, crases ¢ outras questdes gramaticais. [Nao se pode esquecer a situaglo de vida de muitos professores, situacio que dificulta a exigéncia de ele ser ‘um leitor, um “escrevente” assiduo, um pesquisador, um produtor do conhecimento que pretende fazer circular entre os alunos com quem convive, a TAR COM PRLAVRAS: COESKO E COERENCIA De forma suméria, poderiamos dizer que tais insuficiéncias acontecem também quando estio em Jogo atuagdes orais, de cardter mais formal. No en- tanto, no momento presente, queriamos fixar-nos na ‘modalidade escrita da lingua, 1.3. 0 que é 0 processo de eserever? A pergunta poderia ser: O que é 0 processo de cscrever textos? Nao a fiz. nesses termos, por conside- rar isso uma redundancia. Na verdade, sempre que escrevemos socialmente escrevemos textos. Mas por que procurar entender o que é escrever? Por uma razéo muito simples. Da compreensio que temos do que seja escrever vao derivar nossas ativida- des com a prética da escrita. Conforme as concepgées que se tem do que seja escrever, treina-se a escrita de palavras soltas, de frases inventadas, de redagies descontextualizadas, para nada e para ninguém; ou se escrevem textos socialmente relevantes, de um determinado género, com objetivos claros, supondo uum leitor, mesmo simulado. Assim, nunca é€ demais relembrar as nogdes sobre o que caracteriza a atividade de escrever. Vejamos. 1.3.1, Escrever é, como falar, uma atividade de interacao, de intercimbio verbal. Por isso € que néo tem sentido escrever quando nao se esta procurando gir com outro, trocar com alguém alguma informagio, alguma ideia, dizer-the algo, sob algum pretexto. Nao tem sentido o vazio de uma escrita sem destinatério, sem alguém do outro lado da linha, sem uma intengéo particular. Como avaliar a qualidade dessa escrita? 28 ‘com que parimetros fazé-lo, se falta aquilo que es- sencialmente define o ato comunicativo? Desse modo, 0 pparimetro que resta o da ortografia, da concordancia ¢ 0 de outras particularidades da realizagao superficial a escrita, 0s quais sio importantes, ¢ claro, mas nio dispensam o concurso de outras regularidades. 1.3.2. Escrever, na perspectiva da interagao, 56 ‘pode ser uma atividade cooperativa, Uma atividade fem que dois ou mais sujeitos agem conjuntamente para a interpretacao de um sentido (0 que esta sendo dito), de uma intencio (por que esta sendo dito). Dai que se torna muito dificil escrever sem se saber para quem. Como selecionar as informagdes, como escolher a ordem em que as coisas devem ser ditas, como ajustar o grau de formalidade da linguagem, fo nivel do vocabulério e outras particularidades, se no sabemos, mesmo de forma simulada, quem é 0 nosso interlocutor e como avalié-lo? Se repararmos que, com algumas excegdes, essa tem sido a pratica costumeira das escolas, fica fécil entender por que fa escrita fica reduzida a um exercicio mecénico de escrever qualquer coisa, de qualquer jeito, que, fafinal, nao se sabe bem que fim vai ter. Também ‘io fica dificil entender por que tanta averséo dos alunos & atividade de escrever. 1.3.3. Bscrever, a outros ¢ de forma interativa, 6, pois, uma atividade contextualizada. Situada em algum momento, em algum espago, inserida em algum ‘evento cultural. Os valores que, convencionalmente, se atribuem a esses momentos ou espagos determinam certas escolhas linguisticas. Dessa forma, nao se es- Ey LWTAR CoM PALAVRAS: COEEHO E COERENCIA reve da mesma maneira, com os mesmos padrdes, em contextos diferentes. A descrigdo de um apartamento sera diferente, por exemplo, se ela é feita por um corretor, interessado em vendé-lo, se ela é feita por algum comprador interessado em conseguir baixar 0 preco do imével ou se ela é feita por algum arquiteto ‘que pretende fazer o projeto de sua decoragao. O que equivale a dizer que nao hé uma escrita uniforme, uma escrita desvinculada de um propésito, como ingenua- ‘mente se pensa, por vezes. A escrita uniforme, que, na verdade, é mais uma escrita vazia, existe quando se trata da escrita de frases soltas ou da escrita daqueles textos sem destinatérios. Como sfo para ninguém, a forma nao importa, o que se diz néo importa. Como nio varia o interlocutor (que, na verdade, nem exis- te), também nao varia o modo de interagir com ele. E assim se perde o sentido de ser da escrita, Assim € que se pode escrever, em qualquer contexto, “Meu tio viajou.”, mesmo que ndo tenhamos nenhum tio ou que nenhum tio nosso tenha viajado. 1.34, Tal como falar, escrever é wma atividade necessariamente textual. Ninguém fala ou escreve por meio de palavras ou de frases justapostas aleatoria mente, desconectadas, soltas, sem unidade. O que vale dizer: 56 nos comunicamos através de textos. Sejam eles orais ou escritos. Sejam eles grandes, médios ou pequenos. Tenham muitas, poucas, ou uma palavra apenas, Assim, a competéncia comunicativa, aquela que nos distingue como seres verbalmente atuantes, inclui necessariamente a competéncia para formular € entender textos, orais e escritos. 30 __Essa evidéncia parece no prevalecer em muitas das propostas de estudo da lingua, pois ainda persis- tem os exercicios de formar frases, cada uma solta da precedente ou da seguinte, 0 que contraria nossa ‘propria experiéncia de usuérios da lingua, que nunca ‘nos comunicamos formando frases soltas, ou juntando ppalavras, simplesmente porque elas comecam com’ ‘© mesmo som. O que todos nés sabemos é que se juntam palavras conforme seja necessério para que ‘se consiga dizer 0 que precisa ser dito Persiste também 0 uso do texto (as vezes, poe- mas!) apenas para nele se reconhecer a nidade gra- ‘matical em estudo ou dele se retirar uma ocorréncia de tal unidade (muita coisa “se retira do texto”). Pelo fato de ainda persistirem tais préticas, pode-se dizer que a escola nudou muito pouco, pois, agora, 0 mais significativo é que a andlise da classe gramatical da palavra ou a classificagdo das oragées analisadas ja no io feitas a0 acaso ou em frases inventadas na hora da aula, Sao feitas em fragmentos tirados de um texto, © qual, dessa forma, como diz Lajolo (1986, p. 52), serviu apenas de pretexto para 0 ensino do mesmo: reconhecimento das unidades gramaticais e de suas classificagdes. Por esses meios, reduzimos, muito ¢ simplistamente, 0 texto enquanto objeto de estudo. pior € que, com isso, ficamos com a ilusio de ‘que estamos estudando o texto. Na verdade, 0 texto no chega a ser objeto de estudo, pois, como disse, as tarefas continuam as mesmas: as de circular digrafos, as de srifar substantivos, as de distinguir com cruzes oragées substantivas de adverbiais e outras semelhantes. Ainda no se deu, portanto, 0 salto qualitativo esperado pelas 3 LUmaR COM PALAVRAS: COESHO & cOERENCIA propostas da linguistca de texto. Como se diz. jocosa- ‘mente: “sait-se de Guatemala para Guatapior”, uma vez {que se continua excluindo, dos objetivos e programas, 0 estudo das regularidades textuais ou o estudo das regras de como as interagées orais ¢ escritas se produzem e s40 interpretadas, para que servem e 0 que as pessoas fazem ‘com clas no cotidiano de suas relagbes sociais. Se, por tais atividades em torno de frases soltas, escola nio chega ao texto — enquanto condigéo da atividade verbal — também nao chega as propriedades da textualidade e, muito menos, lingua enquanto tota- lidade. Nao chega ao discurso, nem & compreensio do que se faz através dele na reprodugdo e na criagdo das representagdes culturais. E, na exploragio das partes desse corpo desarticulado — sem alma e sem vida —, fica, melancolicamente,o saldo de um estudo que serve muito pouco para além das paredes escolares. Ja fica fundamentada, assim, uma questo, a ser levantada daqui a pouco: por que o texto? Nao se trata, evidentemente, apenas de um modismo a mais, 1.3.5. Bscrever & uma atividade tematicamen- te orientada, Ou seja, em um texto, hé uma ideia central, um t6pico, um tema global que se pretende desenvolver,Um ponto de chegada, para 0 qual cada segmento vai-se encaminhando, vai-se orientando. Assim, como acontece numa caminhada. Nao im- porta se estamos dissertando, contando uma historia, fazendo um relatério, uma carta, ou a descrigao de ‘um aparelho. Nao importa. Hé sempre um ponto em vista. E perdé-to significa romper com a unidade tematica ¢ comprometer a relevancia comunicativa da interagdo. Esse aspecto justifica plenamente a le- 2 imidade de se preferir o texto a frase para ampliar jnossa competéncia comunicativa, 1.36. Escrever € uma atividade intencionalmente Escreve-se para se obter determinado fim, para eumprir determinado objetivo. Na verdade, nenhum dizer é simplesmente um dizer. Todo dizer é, como ppropée a teoria dos atos de fala (cf. Searle, 1981), uma forma de fazer, de agir, de atuar. A desculpa que, as ‘veres, apresentamos — “Falei por falar” — é, quase sempre, uma estratégia de nos eximirmos de uma tes ‘ponssbilidade, de nao assumirmos o que foi dito. ‘Assim, que intengbes, que objetivos visamos, na escola, com nossas propostas de escrever um texto? Nos mesmos, os autores dessas propostas, temos cla- teza quanto ao que pretendemos com elas? Nao seria ‘bem mais eficaz buscar essa clareza e explicitar essas ntengdes? Como outros fatores, as intengOes servem de parametro para muitas das decisdes que precisam ser tomadas no percurso da interagai 1.3.7, Escrever ¢ uma atividade que envelve, além de especificidades lingutsticas, outras, pragmd- ticas'. Creio que j4 se pode perceber como tudo na Jinguagem esté inter-relacionado. De fato, cada um dos pontos que vimos enumerando esta ligado aos ‘outros anteriores e subsequentes. Ou seja, se escrever constitui uma atividade interativa, contextualmente situada e funcionalmente definida, é natural que cada 7 Por ‘speciiidade pragmatic’, refirome aqui a todas as Drtcuaridades que podem acontecer ém um texto por conta das ‘ondigdes do contexto ou da situagio (espacial e cultural) da qual cle faz pare 33 LUTaR com PHLAVRAS: COESHO E COERENCIA texto seja marcado pelas condigées particulares de cada situagio. Isso significa dizer que tudo o que é peculiar aos sujeitos, as suas intengdes, ao contexto de circulagdo do texto vai-se refletir nas escolhas a serem feitas. De fato, so os elementos da situagio — 0 elementos pragmsticas, pois — que determinam as escolhas linguisticas, eno o contrério. A lingua mio existe em fungéo de si mesma. Estamos fartos de ouvir essa afirmacao. Falta Jevé-la em conta quando estamos planejando nossas atividades de estudo da lingua. Fomos orientados durante muito tempo de nossa vida escolar para distinguir 0 certo € o errado, sem nenhuma referéncia a uma situagio qualquer. Pre- cisamos aprender a pensar em: certo, errado? Onde, quando, com quem, para qué? 1.38, Escrever é uma atividade que se manifes- ta em géneros particulares de textos. Isto é, 08 textos ‘néo tém a mesma cara, Nao tém 0 mesmo esquema de sequenciagdo, 0 mesmo conjunto de partes ou a mesma forma de distribuigéo dessas partes. Uma carta, um requetimento, uma ata, uma declaracdo, ‘um comentério, uma noticia, um aviso, por exemplo, no comecam do mesmo jeito, nao se desenvolvem ¢ se fecham sob 0 mesmo modelo, Ha esquemas tipicos para cada um desses géneros; uns mais flexiveis, ou- tros mais rigidos. Por vezes, a criatividade do autor se expressa, exatamente, pela quebra desses esquemas tipicos, 0 que, normalmente, acontece, sobretudo no Ambito da produgio literéria. A verdade é que, fora da linguagem com fungao poética, nao € usual que crie- ‘mos nosso préprio modelo de texto. Como em outros dominios sociais, sujeitamo-nos aos esquemas con- 4 (© EsTVo0 OA Uncua definidos institucionalmente ¢ legitimados recorténcia. Saber usé-los constitui mncia do mundo letrado em que circulemos; mente, essa é a verdadeira competéncia que escola desenvolver. Dai, a conveniéncia de se enciar a entrada na escola de géneros textuais, ntes, levando em consideracio aqueles que, de aparecem socialmente. Se acabaria, assim, com ppratica amorfa de escrever textos que parecem ertencer a nenhum género reconhecivel 139. Escrever é uma atividade que retoma outros 5, isto é, que remonta a outros dizeres. De forma ‘ou menos explicita, estamos sempre voltando @ fontes, (ou a outras “vozes”, como se costuma ), proximas ou remotas. Nunca somos inteiramente is. Nosso discurso vai-se compondo pela ativagao imentos jé adquiridos. Em alguma medida, texto comporta procedimentos de recapitulaglo e eenquadramento de outros que ouvimos ou lemos. emo-nos ¢ fazemo-nos, individualmente, na rede fiva de todos 0s discursos com que entramos em ato, Fizemo-nos e fazemo-nos no convivio social conhecimentos partillados. Nunca entendi por que tos cursinhos estipulam que, numa dissertagdo de fibular, o candidato nao pode citar a palavra de ou- 0. Nao pode, isso sim, preencher a maior parte de seu exto com a palavra alheia. Mas pode, evidentemente, oiar-se nos dizeres de outro ou refuté-los, conforme estratégias adotadas em cada situacdo discursiva. 1.3.10, Por tiltimo, gostaria de lembrar que a eseri- € uma atividade em relacio de interdependéncia com 35

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