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Algumas breves características da poética de Manoel de Barros

Gessica Aparecida Botelho dos Santos (UFRJ)

A poética de Manoel de Barros é marcada predominantemente pelo traço da


simplicidade. À exemplo de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, o poeta,
que surge na cena literária brasileira pela primeira vez em 1937, rompe com a temática
elevada característica das escolas de vanguarda até então replicadas no Brasil, conferindo
ao ínfimo e ao banal cotidiano um estatuto, segundo suas próprias escolhas vocabulares, de
“monumento”. É dessa forma que vemos, no poema “Matéria de poesia”, versos como:

As coisas que não levam a nada


têm grande importância

Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo


tem seu lugar
na poesia ou na geral

Pelo trecho anterior, percebemos que Manoel não acredita que os elementos
merecedores de atenção literária (e mais especificamente poética) tenham que levar a algum
lugar ou guardar algum sentido especial, oculto. No mesmo poema, que trata de enumerar
exemplos daquilo que é “matéria de poesia”, aparecem “o homem que possui um pente”,
“uma árvore”, “terreno de 10x20”, “chevrolé gosmento”.
Segundo Santos (2013), para além do conjunto temático, “a poesia de Manoel de
Barros destaca-se, fundamentalmente, por duas grandes características que a demarcam
estética e estilisticamente e que a colocam em movimento: a grande força imagética e a
presença constante da reflexão acerca do ser e do fazer da própria poesia”. É por meio do
jogo de imagens (e de palavras antitéticas) que o poeta fala sobre o que é ser artista, o que é
fazer poesia.

O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.

Por pudor sou impuro.


O branco me corrompe.

Não gosto de palavra acostumada.

A minha diferença é sempre menos.

Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.

Não preciso do fim para chegar.

Do lugar onde estou já fui embora.

Os versos acima, extraídos do poema “Livro sobre nada”, apesar de escorregadios,


tratam do que é ser um artista, o que é compor poesias, e o faz por meio da aproximação
imagética de sentidos distanciados. Assim, por exemplo, Manoel acopla a figura do poeta
ao domínio da natureza, dando ao ofício, simultaneamente, o pertencimento ao universo
que mais valoriza, o do natural, e a carga de ser um “erro”, isto é, um integrante que se
desviou da perfeição das coisas naturais e que, mesmo quando acerta, é, no máximo, um
“erro perfeito”. No mesmo poema, o autor assume ainda a sua característica de provocador
das palavras, numa crença de que a linguagem, dentro do fazer poético, pode assumir outras
e infinitas funções: “não gosto de palavra acostumada” e “palavra poética tem que chegar
ao grau de brinquedo para ser séria”. Desse último verso, extraímos uma outra forte
vertente da poética de Manoel de Barros, a capacidade de transformar as coisas mais sérias
e elevadas em brinquedo, inclusive a própria poesia. É como se escrever poesia misturasse,
ao mesmo tempo, o próprio processo de escritura e uma tentativa, sempre incompleta, de
brincar com os sentidos e com as palavras, criando novos sentidos ainda sem palavras que
lhes nomeie e dando a velhas palavras sentidos não previstos inicialmente. Dessa maneira,
para ele:

Deus deu a forma. Os artistas desformam.


É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as suas naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar — como em Chagall.
(“As lições de R.Q.”, Livro sobre nada, 1996)

Manoel de Barros parece acreditar que a função do artista é justamente a de criar


novos sentidos, deslocar os sentidos originais para a composição de novos quadros,
inesperados, que suscitem sensações também novas. A forma fixa das palavras e das coisas,
seus significados habituais, pertence ao reino do “natural”, é projeto da perfeição de
“Deus”; o poeta, por outro lado, por pertencer à e ser um erro da natureza, vai encarnar a
tarefa de “desformar o mundo”, de “tirar da natureza as suas naturalidades”. Podemos
chegar à conclusão de que o pensamento de Manoel converge para uma ideia de poesia
como zona de experimentação de novos sentidos. Apenas na arte é possível “fazer cavalo
verde” e “fazer noiva camponesa voar”, por exemplo. Santos (2013) nos diz que:

Com um fazer poético que se lança sem resguardo em experimentalismos


linguísticos, rompendo com as ligações convencionais e normativas da
semântica, da morfologia, da pragmática e da sintaxe da língua portuguesa,
Manoel de Barros propõe o ideal de revivificação, de revirgindade da palavra.
E é justamente no êxito do renascimento da palavra que mora a possibilidade
de alcance da origem: para Barros, o exercício poético configura,
ideologicamente, a possibilidade da gênese. O desejo demiúrgico quase
violento que caracteriza sua poesia acaba, assim, por insuflar em seu discurso
poético uma permanente condição de busca. (p. 12-13)

Dessa permanente condição de busca, que representa a valorização do próprio


processo de fazer poético, deriva a associação entre o papel do poeta e a ludicidade da
linguagem infantil que, sem a intenção de ser lúdica, mas de forma espontânea e não
planejada, consegue arrancar das palavras novos sentidos:

O delírio do verbo estava no começo, lá


onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

(Livro das ignorãças, 1993)

Manoel, no trecho acima, equipara o ofício do poeta à condição da criança. O poeta,


que é aquele que deve “fazer nascimentos”, isto é, parir novos sentidos, tem como papel
primordial alcançar novamente a naturalidade com que as crianças arrancam das palavras
significações inesperadas, encaixando-as fora do contexto habitual. É desse modo que
podemos afirmar que a poética de Manoel de Barros está sempre comprometida com esse
retorno à infância, não só pela sua importância temática na já citada esfera da
“simplicidade”, mas pelo que ser criança representa enquanto fase de criação e renovação
de sentidos, de oxigenação das formas preestabelecidas.

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra.


Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros.
Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidade de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvore.
Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas.
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com suas metáforas.
Que os poetas podem pré -coisas, pré-vermes, podem pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto.

(“Despalavra”, Ensaios fotográficos, 2000)

No poema “Despalavra”, do livro Ensaios fotográficos (2000), percebemos um


Manoel que se assume como o poeta que quer chegar ao reino absoluto das imagens,
ultrapassando a condição de poesia forjada na palavra por meio do processo de
“despalavra”. Assim, por fim, notamos mais uma característica da poética barrosiana: a
metalinguagem. É presente em toda a obra do autor a tensão e a ligação inquebrantável
entre a desejo imagético que só se torna possível pelo trabalho de desconstrução dos
sentidos pelas palavras.
Referências bibliográficas

BARROS, Manoel. Livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

______. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996.

______. Matéria de poesia. Rio de Janeiro: Record, 1999.

______. Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SANTOS, Suzel Domini dos. Manoel de Barros e a oficina de transfazer natureza.


Dissertação de mestrado apresentada a Universidade Estadual Paulista, Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas. São José do Rio Preto, 2013.

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