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Penitieeietiere ees te were wees tartare ripe ne hee Wes. da, que, ao contrario, permanece a flor do tex- Rey rer Metres ier et Ceeascteon Ts cere Ucar nics Cone errant titer aerate n treet apresentados sao preciosos por pelo menos trés ra- Pe eee oet mr wesc tree ans compartilhada, uma vez que nao contamos com ndlise desses quadros na obra de Freud. Em sua reflexao, a autora se dispée a explorar o n= Ritar Cu ethene mCi arene lath t ares Preece Tat steTem ed) seeme TUT inChR trCKs Tr Preeti tace acetate mace Sobretudo, gracas aos relatos da pratica com essas criangas, Jeanne Marie Costa Ribeiro restitusi o real dessa clinica, testemunhando que o desejo do ana- Preece eee eae te ANGELICA BASTOS ut eee Dy my Ces et 8z - AL Herta etree es ese cenee cei 7 Peer | ras a a eine NeemaMNRMESEREReTARIN KO Jeanne Marie de Leers Costa Ribeiro A CRIANGA AUTISTA EM TRABALHO Bdternas] © 2005 Jeanne Marie de Leers Costa Ribeiro Produgio editorial Debora Fleck Isadora Travassos Jorge Viveiros de Caste Marflia Garcia ‘Valeska de Aguirre Revisto José Alan Dias Carneiro cape Cacau (Matiz Designers) Desenho de uma erianga do NAICAP Cip-Brast., Cara.cencho-n-FONTE SINDIGATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R369 Ribeico, Jeanne Marie de Leers Costa ‘Acctanga autista em trabalho / Jeanne Marie de Leets Costa Ribeiro. - Rio de Janeivo: 7Letras, 2005, Inc bibliogefia ISBN 85-757-168.X 1. Ceangas autstas -Tratamento, 2. Pecandlise infantil. 3. Aucismo - Estado decator. 4 Sujeite (Psicandise) LTieul, 05.0275. cpp 6is.s28982 CDU 616.9923-053.2 2005 Viveiros de Castro Editora Lida. Rua Jardim Botinico, 674/ 417 — Jardim Botanico Rio de Janeito ~ RJ ~ cep 2461-000 Tel./Fax: (21) 2540-003712540-0130 Sumdrio AGRADECIMENTOS.. 1 PREFACIO .. IntRopucso Captruto 1 [23] Relendo Kanner... Accrianga autistzem trabalho oe Cartruto 2 [46] © Outeo primordial no “Projeto para uma psicologia cientifica” Do desejo dz mae 2 metéfora paterna: A intervengao do Nome do Pai Acetianga ¢ 0 Outro Fragmentos de dois casos clinicos.. 0 080 Pedr nein 72 0 6880 Jol. er nee 79 Captruto 3 [86] Uma possivel disecio de trabalho .. O tratamento do Outro A “pritica entre virios” ‘Aigumas palavras sobre 0 trabalho com os pais Constperagoes FINALS... Noms . REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS . As criancas do Naicap e a seus pais. AGRADECIMENTOS Este livro € fruto de muitos anes de trabalho, como psica- nalista, com criangas autistas e psicéticas no Niicleo de Arengio Intensiva a Crianga Autista e Psicética (NAICAP), do Institure Philippe Pinel, que resulcou em uma dissertagio de Mestrado aprovada na Pés-Graduacio em Teoria Psicanalitica do Insticu- to de Psicologia da UFRJ em 2003. Neste percurso, muitas pes- soas contribufram, de maneiras diferentes, para que este traba- Iho pudesse ser realizado. Agradeco a Angélica Bastos, por sua orientagio segura e dedicada. Seu rigor teérico, afinado com uma grande sensi dade para as questoes da clinica psicanalitica, foi fundamental paraa realizacio da minha dissertagio de mestrado. A Ana Beatriz Freire, que me acolheu em seu grupo de pesquisa, acreditando em meu trabalho, agradeco pelo scu inestimavel apoio e incen- tivo a esta publicagao. Sou grata aos professores da Teoria Psica- nalitica, que concribufram para o desenvolvimento desta pes- quisa, especialmente a Ana Carolina Lobianco, por suas valiosas indicagées no exame de qualificasio para o mestrado ea Silvia Zornig, por seus comencirios preciosos na banca de defesa da dissertagio. Aos colegas do mestrado, pela amizade e colaboracio. Agradego também a Lucia Luiz Pinto e Verbena Dias, pela constinuigio do acordo entre o Instituto Philippe Pinel ¢ o Ins- tituto de Psicologia da UFRJ, que possibilicou a consolidagéo do grupo de pesquisa psicanalitica no tratamento da psicose € do autismo ¢ a todos que participaram deste grupo de pesquisa, particularmente a Rosa Alba Oliveira e Elisa Oliveira. Oestudo e as discussdes clinicas no Nuicleo de Autismo do Ceppac foram muito imporcantes na minha trajet6ria, sow mui- u to grata a todos que dele participaram. Ao grupo que compde 0 Espago Clinico do ICP da Escola Brasileira de Psicandlise, agra- deco pela valiosa contribuigao. Agradego especialmente a Kitia ‘Alvares de Carvalho, fundadora do NAICAB, que acompanthou asso a passo a eserita ¢ publicagio deste livro. Obrigada & equi- pe do NAICAR, por tudo que aprendemos juntos ¢ aqueles que nao fazem mais parte da equipe, mas deixaram a marca de sua participagio. ‘Aos estagidtios e residentes, agradeco por tudo que me en- sinaram nas supervis6es ¢ grupos de estudo. Obrigada a Monique, Regina, ¢ Claudia, companhciras de tantos anos de trabalho © de vida, que foram incansiveis colaboradoras em todo 0 trajeto que resulrou neste liveo. Sou grata a Maria do Rosario Collier do Rego Barros, pelo entusiasmo com que transmite a psicand- lise ¢ pelo incentivo que sempre me deu. A Maria Inés Lamy, pela amizade e pela interlocugao na elaboragao deste livro. Agra- deco também ao editor Jorge Viveiros de Castro, por apostar em meu trabalho. Monica, Eliane ¢ Tone foram amigas sempre presentes, a quem agradeco 0 apoio nos momentos dificeis. Obrigada a0 Tim pelo laptop, a Lilia, pela ajuda com o computador €a Clara Martins, pela ajuda na revisio do livro. ‘Aos meus irmios, Ghislaine, Sergio, Annah, Carlos, Paulo, Luiz, Yvonne ¢ Martha, que, de varias maneiras, me ajudaram a realizar este trabalho, minha gratidio. ‘Com amor, agradeco a Carlos Antonio, meu marido, € aos meus filhos Joana, Carlos e Luiza pela paciéncia e pelo carinho com que me acompanharam ao longo deste percurso de trabalho. 12 RCE TUS RINE 1 emma IF are 8 PREFACIO Em A erianga autista em trabalho, Jeanne Marie de Leers Costa Ribeiro oferece ac Heitor 0 saldo de um amplo percurso de pesquisa c experiéncia psicanaliticas. Nas paginas que se se- uuem, a autora traga um quadro nao do autismo, mas do traba- Iho empreendido pela crlanga autista. Mais que 0 tratamento do autista, Jeanne documenta 6 trabalho que a crianga por sis6 ja realiza € que vem a ser desenyolvido na companhia de um analista qué a esta se associa. Esse trabalho incide sobre 0 Gor ¢ 0 Outro, epereutinds sobre os pais e sobre aqueles que partici- pam da instituigdo. Assim, a analista leva a sério 0 estatuto sub- jetivo da crianga, mostrando que a pritica psicanaliticamente orentada nao constitu um wacamento do sujelto, mas como O aay Se de inicio assistimos ao desenho da sindrome em toda a sua estranheza, 4 medida que o cexto avanga, ao invés de diluir- se no familiar, o autismo cede lugar & peculiaridade de cada cri- aga em sua resposta 3 presenga da analista, Longe de reificar 0 autismo, 0 aparclho conceitual pac em cena o trabalho necessé- rio a todo sujeito para extrair-se do real indiferenciado. Dee) modo, sindrome se pulveriza ne-diferenca, ganha uina potigio| 2 vicinal_em relagio & psicose, para cntio invocar a constituicao | de qualquer sujeito ¢ suas vicissitudes. Este livro nao se reduz a uma tese académica, nao se poe simplesmente a defender o autista ou o psicético com base num (parti pris, mas aresta que se thes dd voz com um ato, a ser reite- = se thes da voz com um ato, a ser rcite rado e renovado em cade smomento da escuca. A ex aporta Resulerde so erabalho de Formagao que estendeu_ a psicandlise & instituigzo, satide mental ¢ ao servigo 3 piiblico do Rio de Janeiro, concribuindo ativamente para fazer do NAICAP (Niicleo de Atengio Intensiva a Crianga Autista ¢ Psicética) do Instituto Municipal Philippe Pinel, um centro de referéncia para o tratamento de tais quadros clinicos. Nesse sen- [ tido, o texto a seguir narra o trabalho conjunco de profissionais | que encontraram na “pritica entre virios” um dispositivo clini- co propicio ao tratamento institucional com criangas autistas € \psicdcicas. O trajeto seguido pela aurora supera o retorno as origens iticas, ulerapassa as discussdes diagnésticas, para privilegiar 0 caminho trilhado por cada um e, em-especial, as condig6es que | viabilizam uma construgio por parte da crianga em seu esforco = | de produzir-se como sujeito, Em ver de prender-se a0 Outro \ origindrio, a abordagem se desloca para a crianga, sem incorrer, | por conseguinte, na culpabilizagio do Outro parental ou na | vitimizagao dos filhos. © trabalho € tomado em sua acep¢i0 | mais humana, trabalho com a linguagem, irredutivel a um fun- | cionamento mecinico, mesmo nos casos em que as ditas | estereotipias eas reperivies ritualisticas se impem em seu auto- | matismo. Esse trabalho de lastrear 0 gozo na palavra é reconhe- cido pelo analista em meio ao excesso pulsional ea seu transbor- damento, é acolhido onde as produgGes verbais ou apenas sono- ras S40 to escassas que, com um pouco menos, néo haveria nada. ‘Ao assim procedet, a autora evidencia que o sujcito no releva de uma definigao teérica, mas de uma posigdo ¢ que é, portan- to, uma questie de ética O estilo da autora entrelaga teoria e experiéncia, sem que 0 peso dos conceitos sufoque a segunda, que, a0 contrério, per- manece & flor do texto. A escrita, em sua simplicidade e preci- sdo, nos traz 2 crianga autista ao vivo. (Os casos de autismo e psicose na infincia aqui apresenta- dos so preciosos por pelo menos trés raz6es. Eles nos propor: ‘onam uma referéncia a ser compartilhada, uma vez que no con- 4 ‘Rms te ENE NE RE A IN tamos com uma psicandlise desses quadros na obra de Freud Em sua reflexdo, a autora se dispée a explorar 0 ensino de Lacan que nos confronta com alguns coment: ; ios pontuais sobre 0 autismo, varios enigmas um vasto corpo conceitual a ser des- bravado. Sobretudo, gragas aos relaros da pritica com essas crian- 625, Jeanne Marie Costa Ribeiro restitui o real dessa clinica, tes- temunhand jo do analista pode fazer face a ele. Angélica Bustos Psicanalisca Prof. adjunta no Programa de Pés-Graduacao em Teoria Psicanalitica da UFRJ 15 ers Ma Yori An otic. (imams rescuer sonst \Wvo comp amet nt mes InTRopucAo ~~ fy As questes que suscitaram a pesquisa desenvolvida em minha dissertagdo de mestrado, que resultou neste livro, surgi ram na clinica com as criangas ditas autistas do Niicleo de Aten- fo Intensiva & Crianga Autista ¢ Psicética (NAICAP) do Insti tuto Philippe Pinel, 0 Rio de Janeiro. A partir do ttabalho inaugural de Kanner (1997[1943] conads 3 infrc, denominada "Autlsmo Infantll recoce”, a questao do autismo tem sido tema de diferentes pesquisas c de- batez em varios campos de saber. As discusses confrontam po- sigGes que vao das correntes organicistas, que postulam causas metabdlicas ou genéticas para uma deficiéncia vista como inata, a concepgies que consideram o autismo_um déficie cognitivo ‘ou de interagao com o ambiente, propondo terapéuticas comporta- mentais ou cognitivas. Na ditegao oposta & concepgio deficitéria do autismo, 0 discurso psicanalitico vat tomar a crianga autista como sujeito, Isso implica dizer que, mesmo que nao » falem, os autistas siio afetados pelo campo da linguagem. No entanto, ainda que no terreno da psicanitise, 0 autismo continua sendo uma questio em aberto. ‘Muitos psicanalistas se depararam com estas criangas na cli- nica e procuraram sistematizar suas experiéncias através de rela- tos de casos, da construcao de hipéteses para sua causalidade ¢ da apresentagio de propostas de trabalho a partir de diversas orien- tagSes teéricas. Entreanto, dentro de uma mesma orientagao teéri- «a, encontrames pasicoes divergentes. A questo do autismo per- manece, portanto, um campo aberto ao debate e & pesquisa 7 trabalho de pesquisa em psicandlise se constréi a partir da poscura de nao recuar frente aos impasses € obsticulos na clinica, mas de transformd-los em quest6es, fazendo assim avan- cara teoria. A pesquisa em psicanalise €, portanto, indissocidvel o mee (1912) aconselha os analistas a trabalharem cada caso | em sua singularidade, come se fosse o primeiro. Aadverténcia é no | sentido de nio utilizarmos o que recothemos a clinica apenas para \ confirmar o “jé sabido” da teoria, mas para reinventé-laa och casa, \ © encontro com as criangas autistas convoca o analista a este trabalho, j4 que como enigma que clas se apresentam: ndo falam, nao enderegam ao outro nenhum apelo ou demanda. Num primeiro momento, errantes ou alheias, estio ali como se no estivessem. Se_a_psicanilise funda-se a partic da escura da- quele que fala, como trabalhar com eseas criangas que se apre- sentam mudas? Qual o lugar para o analista nesta clinica? Escutar quem nao fala foi a primeira formulagdo que fizc- mos a respeito do caminho a seguir no inicio de nosso trabalho, Mesmo que a fala no se apresente de forma articulada nestas criancas, “nao podemos nos esquecer dc que nada do que diz respeito ao comportamento do ser humano come sujeito, ¢ a0 | que quer que seja no qual cle se realize, no qual simplesmente ele é, nfo pode escapar de ser submetido as leis da fala” (Lacan, | 1985[1955/56]:100). surpresa no encontro com as criangas dias ise solamente, elas =. por exemplo, | algumas palavras, Entretanto, se estamos ocupados com alguma coutra atividade, sao capazes de se aproximar e nos surpreender, falando ou nos dirigindo alguma demanda. Uma cvianga pode | recusar-se a entrar na sala quando chamada, mas, se nos diri mos a outa crianga e nao a ela, prontamente se levanta ¢ nos | acende 18 i i | j 1 i | ‘Testemunhamos, no convivio cotidiano com elas, que to- dos os fendmenos repertoriados por Kanner, em sua descricao da sindrome autistica — como o mutismo, a fala ecoldlica, as estercotipias, 0 desvio do olhar ¢ 0 extremo retraimento — nos apontam uma forma peculiar de resposta ao Outro. ' Bibi, uma menina autista de 8 anos, nos mostrou de forma paradigmdtica que o comportamento extremamente repetitive ¢ ritualizado dos autistas, descrito como estercotipado ¢ sem sentido, revela uma posicdo que estas criancas parecem susten- tar frente ao Outre mac de Bibi nos procurou um dia solicitando que esta fizesse todas as refeigoes no NAICAP jé que, estando seu mari- do desempregado, suas filhas muitas vezes néo tinham 0 que comer em casa. Bibi, que sé se alimentava de iogurte, obedecen- do a.um ritual minuciosamente definido por ela, nem pasando fore aceitou outro tipo de alimento, ou abriu mao de seu ritu- al, A radicalidade de sua posi¢ao nos indicou que seu comporta- ‘mento, aparentementé sem sentido, obedecia a uma espécie de_ frente i demanda do Outro. Fla nos mostrava, assim, que as criangas autiscas no sofrem de uma falta de “humani- za¢io”. Para ela, como para todos 0s sujeitos humanos, comer é muito mais do que saciar a forme. Nao podemos afirmar, a partir desta experincia, que esta crianga jd estd no campo da linguagem, uma vez que a lingua- gem nfo é uma aquisigio, algo que se desenvolve por evolugao natural, mas campo mesmo de onde o sujeito deverd advir? ‘As criangas autistas nos mostram, de forma contundente, o que aprendemos com Freud ¢ Lacan: 0 sujeito nic dado, mas constitui-sea partic do Queso, Nesta clinica, somos levados Do ponto de vista da psicanilise, é do status de objeto que | foi para o Outro que o sujeito terd que emergir e ¢ da configura- fo deste Outro que dependeré a posicdo do suj da produsao do sujeito se coloca” > 6 | Qual a especificidade da sesposta que estas ctiangas parecem | Qual seria, entdo, a configurasio do Qutro no autismo? | | construir Frente ao Outro? Que légica moveria o estranho com- {poramento destas criangas? meiro momento, res 1" Neste liveo procuraremos, num p: ponder & pergunta sobre o estatuto do Outro no autismo, ques- ‘io preliminar a todo raamento possivel das criangas auriseas. Em um segundo momento, busctcmoy cern o ugar doa lisca nesta elfnica e uma possivel diregio de tratamento com ¢3- tas criancas. —Considerando que o autismo se constitui como uma ques- tao aberta, que guarda um enigma a ser decifrado, ela convoca os psicanalistas a desenvalverem propostas inovadoras, de ex- tensio da clinica psicanalitica realizada em seu dispositivo clis- sico, Mas acreditamos que para isso faz-se necessdria a constri- Gio de balizamentos teéricos rigorosos ¢ consistentes que pos- sam sustentar a diregio do tratamento nesta clinica. Este livro é, portanco, fruro de um trabalho clinico cons- truido junto a equipe do NAICAP e rerd, como cixo tedrico, a obra de Freud ¢ 0 ensino de Jacques Lacan. Em alguns momentos de seu ensino, Lacan fez alguns co- mentérios sobre a questéo do autismo, que nos serviram como uma espécie de guia na tentativa de buscarmos respostas as nos- cas perguntas. Apoiamo-nos também nas hipéteses levantadas por Virginio Baio e pela equipe de trabalho de uma instituigio belga que acolhe criangas autistas psicéicas, | ‘Antenne 110. O fio condutor de nosso trabalho foi, antes de tudo, o que apren- demos na clinica com as criangas autistas e seus pais. Fragmen- 08 destes casos serio, portanto, discutidos ao longo deste livro. No primeito capitulo, faremos uma releitura do artigo inau- gural de Kanner (1988[1943)) 2 partir de Freud e do ensino de Lacan, Desta releitura extrairemos alguns pontos para discutir- mos 0 estatuto do Outro no autismo. Chegaremos = 20 @ Outro, paraa.cri te a esse excesso, veremos que as criangas autsusTédlizam um. .a_tentativa de inscrigio significance, de uit lizacao. Nos reportaremos & carta 52 de Freud (1896) ¢ ao seu cléssico exemplo (1920), a respeito da brincadeira de seu neto, conhecido como o jogo do fort-da, para pensarmos este trabalho realizado pelos autistas, No segundo capitulo, procuraremos discernir a fungao do Outro primordial na constituigio do sujeito a partir do que Freud (1895) ird descrever no “Projeto para uma psicologia cientifica” como a “primeira experiéncia de satisfagao”. Veremos quea crian- a precisa estar situada num lugar especial na economia libidinal deuuma mulher, para que esta possa exercer a fungio materna de | introduziro infans no simbélico, 0 que nos levard a interrogar o | lugar da crianga autisea no discurso 2 no fantasma mateo. _/ Ainda neste capitulo, faremos um breve percurso na obra ; de Lacan, no periodo que vai de 1955 2 1958, no que concerne | as suas formulacdes sobre 0 Nome do Pai ¢ 3 sua foraclusio nas psicoses. A seguir, crabalharemos a carta de Lacan a Jenny Aubry, reaqquaiio iuicadsnidie poslgtes pesskede paca cana Bera | a0 Outro, Discutiremos, entéo, qual a particularidade da res- posta das criangas autiscas. 7 : ‘A partir desta discussio ¢ de algumas falas de Lacan (1988[1975]), aproximando o autismo da esquizofrenia, ¢ das contribuigdes de Bruno (1991 ¢ 1993) sobre este tema, atrelare ‘mos 0 autismo a0 campo das psicoses. Apresentaremos, entio, fragmentos de dois casos de criangas atendidas nc NAICAP ¢ indicaremos alguns pontos que particularizam a resposta da cri- anga autista frente ao Outro — em um dos casos, estabelecendo alguns pontos de diferenga com o segundo, em que acreditamos uratar-se de um caso de parandia. No terceiro capitulo, apresentaremos uma possivel directo de tratamento na clinica com as criangas autistas nos reportan- 21 do a fragmentos de um outro caso, Propomos uma diregao de trabalho orientada pela psicandlise. Tal direcio parte da aposta ~ sustentada no desejo do analista — de que ha trabalho no est nho comportamento destas criangas. Se hd trabalho, hé a possi- bilidade de que alguém, um analista, venha a se incluir neste trabalho que a crianga ja realiza para tentar advir como sujeito, Antes de concluir, reservaremos espaco para.algumas palavras sobre o crabalho 22 rE ak amr nt WiscccN nabs Capfruto 1 A nogio de autismo foi introduzida por Bleuler (1998[1916)) € € associada 4 esquizofrenia. Refere-se ao canjunto de opera- ses psiquicas que afetam a percepgao da realidade na esquizofrenia. O autismo € definido como perda de contato com, a realidade acarretando uma impossibilidade ou grande dificul- dade para se comunicar. Mas foi Leo Kanner, psiquiatra austei? aco, quem descreveu pela primeira veza.sindrome denominada “autismo infantil precoce” (Kanner, 1997(1943]). O texto semi- nal de Kanner sobre 0 autismo apresenta tum relato muito preci- so € senstvel do comportamento das criangas por ele observadas em sua pesquisa, assim como da escuta do que delas falam seus pais. Iniciaremos a primeira parte deste capitulo com a releitura deste texto, & luz dos ensinamentos de Freud ¢ Lacan. Da des- crigéo fenoménica do comportamento das criangas obscrvada por Kanner, extrairemos alguns pontos para nos interrogarmos sobre o estat Qutro no autismo. RELENDO KaNNER Kanner (1997{1943}) sealiza a descrigao de 11 casos de crian- gas que, apesar de suas diferencas, apresentavam caracteristicas comuns. A maior parce delas chegou a ele com a suposigio diagnéstica de surdez ow de “fraqueza de espirito”.* No entanto, a partir de uma cuidadosa observacio, realizada ao longo de vé- rios anos, Kanner demonstrou que nio havia deficiéncia auditi- va em nenhum dos casos e que nao se tratava de déficie cognitivo. A capacidade cognitiva dessas criangas estava mascarada pelo transtorno basico de que softiam. Nos 11 casos descritos, Kanner 23 enfatiza 0 fato de nenhum deles revelar anomalia orginica que justificasse a sintomatologia apresentada. Passados mais de 50 anos da observagio de Kanner, qual- quer um que jé tena tido contato com as criangas chamadas autistas pode reconhecé-las na notével descrigio que delas nos faz este autor > Q denominador comum a todas as 11 crian undo as peisoas eas situagoes desde o inicio da vida’ (Kanner, 1997[1943]:155). A histéria dos casos, a partic do relato dos pais, indica desde o inicio da vida “ aurfstica exere- ma, que desdeniha, ignora ¢ exclui tudo o que vem do exterior asé a crianga” (Kanner,1997{1943):156). No discurso dos pais sobre seus filhos sio recorrentes falas como estas: “parecem bastar-sea si mesmos”, “sempre foram auto- suficientes”, “parecem fechados como numa concha’, “agem como se as pessoas nio existissem’” , “mais felizes quando deixadas s6s”, “no choram¢ ni solicitam atengao” etc. Apesar das semelhan- as dos sintomas dessas criangas com os descritos pela literatura psiquidtrica da época para a esquizofrenia infantil, ou deméncia precocissima (negativismo, ecolalia, estereotipias, emboramento emocional, etc.) Kanner ird distinguiro autismo da esquizofrenia, na medida em que nesca tiltima hd um recraimento da participa io no mundo, a partir de uma relagio inicial presente, enquanto no autismo esta rela¢ao inicial nao se fez. O que marca e distingue a sindrome autistica ¢ portanto, este “desde © inicio da vida’, quando a crianga “ignora, desdenha ¢ exclui tudo 0 que vem do exterior até cla”. Nao hé ruptura, desencadeamento, ou este € ex- tremamente precoce. A crianga 4s vezes chega a falar algumas pa~ lavras, mas depois se isola e recusa qualquer contato. (© signo da precocidade desta posico revela-se, segundo Kanner, na falta di xecipacio postural ao ser tomada no colo ¢ na auséncia de um ajustamento do corpo da ctianga 20 Sy Ge el Mande o ¥F a Rp Senda URES a ARE aR REE ROL RL A NTIAR AE corpo daquele que a carrega 20 colo.* Este néo-consentimento a0 “deixar-se” tomar no colo persiste ao longo dos anos. Dos 11 casos citados, sete apresentavam graves distiirbios de alimentagio. Alguns recusavam-se a alimentar-se, chegando ao extremo de precisarem ser alimentados por sonda durante os primeiros meses de vida. Outros vomitavam tudo 0 que comi- am. “Aalimentacao ¢ a primeira intrusao vinda do exterior para acrianca” (Kanner, 1997[1943]:160). ‘Uma outra intrusdo tem origem nos ruidos fortes ¢ objecos, \ento ql Em contrapartida, a prop \ga pode, alegrem. zir um rufdo to, Toss qanasagicl que.teme, ou movimentar objetos, segundo sua propria voncade.. ~~ “Kanner di énfase especial aos fenémenos de linguagem apresentados pela sindrome que descreve. No fallow up dos ca- sos observados, apenas oito adquiriram a capacidade de falar — rrés permaneceram mudas. Masa linguagem, ainda que presen- te, no era utilizada para comunicar-se com outras pessoas. E interessante notar, no entanto, que no caso das trés criangas mudas, hi relatos de que, com algumas pessoas especiais, uma babd ou outras criangas, clas falavam algumas palavras ou mes- “Ouviu-se freqiientemente Virginia, ‘a muda’, dizer ‘chocolate’, ‘mame’, ‘bebé’, como afirmavam os seus colegas de quarto” (Kanner, i997[1943]:159). O autor sublinha o fato de que muitas dessas criangas apre- sentavam excelente meméria, sendo capazes de recitar poemas, lisras enormes de palavras. Eram também capazes de ler desde muito pequenas, no entanto, nio conseguiam interpretar 0 que | liam, repetindo o texto como papagaios. - Um fendmeno de linguagem descrito em quase todos os“) casos é 0 da ecolalia, que consiste na repeticio da fala de outra | pessoa, exatamente como cla é ouvida pela crianga. Muitas ve- | zes, essa repetigio se dé com a mesma entonacéo, com a mesma mo frases. inflexao com que foi proferida. Os pronomes pessoas também sio repetidos como sio ouvidos, de forma que a crianga refere- lizando 0 pronome eu. miner descaca também o “sentido literal” que tém as pa- Javras para estas criancas. Uma delas aprendeu a dizer “sim”, quando © pai a colocou sobre os ombros, com a condigio de que ele dissesse esta palavra. A partir dat “sim” passou a signifi- car “ser colocado nos ombros do pai” ¢ naoum simbolo de as- sentimento. O significado das palavras far-sdlinflexivel{nao sendo conotasio, fora a originalmente utilizado_ em nenki adquirida. Em relagdo as pessoas, no é que no se déem conta de sua presenga, mas estas consam tango quanto objetos, livros ow arqui- vos. Ignoram a presenca das pessoas, nao lhes dirigindo jamais o = preferindo muitas vezes ficar de costas. Nao respondem “agredindo 0 outro ou se auto-agredindo, frente a um olhar, vor ou a alguma demanda de um outro, Barulhos ¢ rufdos mabe que apem.os 08 ‘Ja com os objetos essas criangas coablceriiknasilats snulco pedi ~Podem passar horas concentradas, alheiasa tudo, fazendo os objetos girarem, ou fascinadas com seus movimen- ‘tos. Experimentam em relagdo aos objetos “uma sensagio de “onipoténcia e controle” (Kanner, 1997 (1943]:163). Eazem, também, com 0 proprio corpo, movimentos ritmados e repetitives, sintoma conhecido como estereot ‘Sao considerados estereotipias os movimentos pendulares com 0 corpo de um lado para 0 outro, batimentos ritmados com as maos em objetos, etc. Expressam jtibilo na realizagio dessas ati- vidades ¢ podem chegar ao éxtase, por exemplo, girando em rorno de si mesmas. Veremos mais adiante que estes comporta- Wer Gay ca Garces Ae a iagt et ee, ng Ana But i re tc me rt mentos, descritos como estereoripados pela psiquiatria, revelame: ¢— se, a partir de uma escuta psicanalitica, como extremamente re- levantes para verificarmos que hd lgica nas atitudes repeditivas ¢ aparenremente “estranhas” dessas criangas, 0 que vera giiéncias na direcao do rraramento. Kanner faz referéncia também ao que chama “desejo dec imutabilidade”. Toda a condura dessas crlangas, nos diz, € regida por esse desejo de permanéncia que ninguém pode romper, a no ser a propria crianga, Qualquer alteragao na ordem das ati vidades cotidianas, nas rotinas, pode levé-las a0 desespero. As- sim, para ima crianga, alguns cubos e bastées devem ser manti- dos numa determinada ordem, bem definida por ela, Para ou- tra, 0s objetos devem ser organizados em uma série, por cor ou tamanho; para outras, ainda, na hora da refeigio ou do sono, algumas regras bem rigidas devem ser obedecidas, num ritual que, quando nio realizado, leva a crianca a um estado de pani- co, que 56 cessa quando a ordem é retomada. Ha assim uma monétona repeticao de atos, palavras € rituais que necessitam ser consancemente realizados por elas. Rafim, sudo que € in | previstvel, que aparega como nao conforme a este “desejo de | , € vivido como intrusivo < igador, * “Tudo ¢ ° que é trazido para'a crianca do exterior, ido o que altera seu meio externo ou interno, representa uma intrusio assustadora” | (Kanner, 1997[1943]:160). Esta intrusio € um dos pontos que destacaremos, mais & frente, € que consideramos de grande im- portincia para pensarmos o estatuto do Qutro no caso das crian- as ditas autistas, ~~ Se qualquer alteridade é vivida como intrusiva pelos autis- tas, estas criangas podem, entretanto, “estabelecer graduaimen-| te compromissos estendendo tencéculos em um mundo em que , desde sempre foram estrangeiras” (Kanner, 1997(1943}:169). Elas podem vir a estabelecer contato com algumas pessoas, sob certas condigGes, se estas se apresentarem como podendo 27 satisfazer 4s suas necessidades de colocagio de ordem no mun- “do, respondendo as questées repetitivas, ensinando-Ihes a fazer | alguma coisa. No caso de Virginia, “a muda”, Kanner indica | que, com certas pessoas especiais para ela, Virginia falava al * mas palavras. (O autor descreve com deralhes a atitude e comportamento dos pais em relagio a seus filhos, tendo o cuidado de citar suas falas ¢ opinises, apresentando também trechos de relatérios em que descrever o desenvolvimento de suas criancas: Insiste no Faro de quase todos os pais apresentarem caracteristicas obsessivas ¢ | anerem com seus cOnjugese filhos relagées“fias« formals’: | | Kanner acaba por coneluir pelo inatismo da sindrome, | que o fechamento auristico extremo destas criangas se apresenta | desde o infcio da vida, nfo podendo ser atribuido & influéncia | dos pais. Sua hipérese é de que “estas criangas vieram ao mundo com uma incapacidade inata de estabelecer contato_aferiva”, cenfim, uma incapacidade para rs constnuicamcnnsaraaferve qu ‘seria biologicamente previsto (Kanner,1997{1943]:170) Da releitura do texto de Kanner distinguiremos trés pon- fimeirs} 0 fato dea sindro- ja, © que nos re- tos que nos parecem fundamentais me autistica apresentar-se desde o inicio da mete a questdes que dizem respeito & constituigao do sujeito. O pr do_ponto%é 0 fato de o exterior ser construido como intrusivo, o que nos levaré& pergunta sobre como se constitui 0 campo do Outro para as criancas dias autistas; €oceraiv) ° fato de que, sob algumas condigoes, um outro pode inchuir-se no “mundo” da crianga autista, o que teri importantes conse- qiiéncias para pensarmos uma possivel diregio de traramento \lestas criangas# Sobre 0 primeiro ponto, o autor enfatiza-e-facude nenhu- ma causa orginica cer side enconcrada nos ! 1 casos observados @ descarta também possiveis causas “ambientais”, jd que o retra- imento dessas criangas se dé de forma muito precoce. A intangf- me ee 28 on] pec wan ASE ROL Sach NLA bce is NN: A HbA vel questéo da causalidade da sindrome fica assim mantida em spenso, numa leitura mais atenta, mesmo que Kanner procu- re responde-la, apressadamente, recorrendo a uma “incapacida- de inata”. No encontro com as criangas autistas, na clinica, somos sur-<— preendidos pelo fato de que tudo 0 que se espera encontrar numa crianga, ou seja, que ela brinque, sorria, chore, alimente-se € se aconchegue no colo, dirija 20 outro demandas, nao é encontrado nessas criancas. Elas recusam a alimentacio, ndo consentem em “deixar-se” tomar ao colo, nao compartilham das representacées mais simples e consensuais. E, 0 que nos parece ainda mais des- concertante: mostram-se, pelo menos na aparéncia, totalmente| desinteressadas em estabelecer lagos sociais, recusando-se a falar} ou ignorando por completo a presenga das pessoas. Se admitirmos, de acordo com o paradigma da psicologia, que uma crianca se desenvolve a partir de predisposicdes c tucionais apoiadas por um ambiente favordvel ou desfavorével a0 seu desenvolvimento € que este se dé de forma gradual em direcéo a sua “maturidade” psfquica, 0 autismo sé pode ser visto como um déficit, uma parada num estégio pré-verbal do desen- volvimento, ou mesmo como uma aberragio de causa constitu- cional ou ambiental. ;— Mas a releitura do texto de Kanner evidencia, ¢ a clinica | comas chamadas criangas autistas nos ensina, que fazer-se sujeito no é um proceso que se dé de forma “natural”, mas € uma cons- | srugio que requer trabalho. Na medida em que a estratégia autistica se estabelece com a mesma precocidade da constitui¢ao dita “nor- | mal”, cla nos obriga a pensar a prépria constituigo normal como uma construgio — uma construgio entre outras possiveis. Ji apontamos a dificuldade, implicita no texto de Kanner, cm localizar a causalidade da sindrome no organismo ou no ambiente. Nao se trata aqui de buscarmos a causa do autismo, eniquanto origem, de fazer a psicogénese do autismo. A questo ti ! & Qa sn ieds. he Qa NESS 5 & xO Bd 1% te causildade, para a psicandlise, & de outta ondem € néo pi cratécla aqui. Mas podesios pensar que se hd algu encontra, de fato, nem no organismo, nem no ambiente, ma: no campo do Outro, da linguagem. Desde Freud ¢ Lacan, sabemos que um sujeito nao € dado, ‘mas se constréi a partir de um Outro que Ihe é prévio. Assim, 0 , | simbélico nao é uma aquisicao, uma fungao entre outras a ser ) | adquirida através do desenvolvimento, na interagio com um \ outro visto como meio ambiente, mas é 6 lugar mesmo de onde \o sujeito deverd advir. ‘© segundo ponto que extraimos da releitura de Kanner, ¢ _- que nos chama a atengio no casv do autismo, € 0 fato de a) { iniciativa do Gutro, da qual depende todo ser humano para \ ~ \. sobreviver, ser constituida, para estas criangas, nao Como Fonte | de apelo ede dom, mas como uma intrusio. ‘Ao relermos o texto de Kanner, para além de uma simples descrisio ou inventdrio de sintomas, podemos concluir que qualquer alteridade em relagao a crianga, 0 estatuto mesmo do exterior, para elas, se constrdi como incrusivo. O retraimento a “extrema solidao aucistica”, a recusa em receber o alimento, as | palavras do outro, seu olhar e sua vo7, o fato de, aparentemente, \estarem alheias, nao significa que sejam indiferentes & presenga OV outro. Esse aparente isolamento revela-se como uma estraté-) Ee iia Sears giana Ngee iba een ‘Todos os fendmenos zepertoriados por Kanner referem-se & relacdo dessas criangas com o Outro uma tomada de posicio frente 20 Outro, mesmo que seja uma posigéo de “recusa”, ou \ “isolamento”. Na clinica com estas criancas, festemunhamos que \ nao se trata, no autismo, de um estado de fechamento em que ‘mio haveria relacio ao Outro. _ neat Se tomamos aqui o Outro como lugar da linguagem, nao | podemos dizer que estas criansas, pelo faro de muitas vezes nao \ > crandaQuibo BoM prve Je Hen DOe ridade em relagao ao sujeito que o determina, esta ndo me ef S eurn Serv... - Taare falarem, estcjam fixadas hum perfodo pré-verbal Ao desenvalsis mento. Uma crianga aurista que tapa seus ouvidos frente & voz de um outro, “(..) capa os ouvids, dizem-nos, para qué? A algu- ma coisa que estd sendo falada, jd no est no pés-verbal, visto que é do verbo que ela se provege?”(Lacan, 1967:30).? Citaremos aqui alguns fragmentos clinicos de criancas di- tas autistas reveladores da particular posicéo que sustentam frente a0 Outro, que parece constituir-se como intrusivo.® Jofo tapa os ouvides sempre que um outro Ihe dirige a palavra Perambula ecrante pelos corredores sem fixar-se em nada, fazendio um gesto ritmado com as mios enquanto emite sons como um assobio. ‘André pica papéis e reviscas sempre de costas para o outro, virado para a parede. Se alguém se aproxima, interrompendo seu trabalino, entra em agitagdo, podendo tormar-se muito agressiv. Francisco, ao perceber 0 olhar do outro sobre ele, intertompe imedia- tamente sua atividade, indo isolar-se num canto. ‘Toms é assaltado pelo pinico e horror sempre que um outro se inter ple, impedindo-o de ter acesso 20 que quer. 05 punhos, socando suas préprias costas. A pergunta que nos fazemos é, entio, de que Outro se trata \ no autismo? Por que ele se constitui como intrusivo? Se os sinto- >), mas descritos nesta sindzome podem ser vistos como uma respos- ¢ ta.a este Outro intrusivo, qual € a especificidade desta resposta? Verificamos nesses pequenos fragmentos clinicos, ¢ no re- lato de Kanner, que a iniciativa do Outro se apresenta como inaceitdvel. O olhar e a voz, signos da presenga ¢ do desejo do Outro, qualquer demanda de um outro, podem ter conseqiién- cias devastadoras para essas criangas. Kanner fala que para os autistas as pessoas séo uma “calamidade”. De fato, todo sujelito neurdtico, psicético ou autista tem que se confrontar com esse “inaceitavel” da iniciativa do Outro, sua mancira, na relaco com o Outro itiva Fique do lado do sujeito. O neurdtico, por 31 OF aly Ciltch SLomed efcito da metéfora paterna, dé uma significagio félica ao que a | demanda do outro veicula de desejo enigmatico, construindo uum fantasma que possa situéclo frente ao enigma do desejo do Outro. Na psicose, por falta da metéfora paterna,’ através do | recurso a supiéncia de uma construgao delirante, € possivel en- \ contrar um lugar, um abrigo frente 3 incrusdo, a0 gozo do Ou- | c1o, E os autistas? Os autistas, por falta da metdfora paterna, no 4) | Possuctn a norma filica que Ihes permita uma certa marge de 0) \ manobra em relagio i demanda do Outro. Nao possuem, tam- | pouco, o recurso & supléncia de uma construgao delirance. “Os Jjautistas se apresentam assim como os sujeitos com menos la Jude parr se-destocar no mundo” (Strauss, 199381). Que re- {cursos wiiliaatlany; encio; pare fazer frente ao Outro constituido \como intrusivo? Lacan (1983[1953-54]:84), em seu comentirio sobre 0 caso Dick, de Melanie Klein, refere-se a este como “um sujeito em © estado puro, inconstitufdo, inteirinho na realidade, indiferen- ~ Giado”. Logo adiante, no mesmo seminsrio, sublinha o fato de que, embora cssa crianga nfo fale, “}4 tem sew sistema de lingua- \ gem muito suficientemente. A prova é que brinca cont @le. Ser- | ve-se dela para fazer um jogo de oposigao contra as tentativas de | inerusao* do adulto (...) Quando sua mae lhe propde um nome que € capaz de reproduzir de maneira correta, 0 reproduz de maneira ininteligivel, deformada, que no pode servir para nada” (Lacan, 1983[1953/54]:101). festa passagem, Lacan sublinha o fato de que a crianga jé tem seu sistema de linguagem e utiliza-se dele para fazer face & | intrusio do Outro. Ele nos dé, assim, uma preciosa indicagao © | para avangarmos em nossa tiltima indagacao acerca dos recursos \ _empregados pelas criangas autistas diante do Outro constituido \como intrusivo. Virginio Baio e Kusniereck (1993) constréem a hipétese de que as estereotipias (gestos em ritmos alternados e binrios, 32 PS pecan 2 um tins de 5 er 7e0 ek Lercgcra Lo GBa, ub Bens, o Peters como ligar ¢ desligar a luz, abrir e fechar portas, movimentos! repetitivos com o corpo, bater ritmadamente em objetos) po-, dem ser consideradas como um trabalho que estas criangas rea-| lizam no sentido de barrar a intrusio do Outro. O autismo, deste ponto de vista, nao seria um deserto, um, estado onde nenhuma elzboragao seria exercida. O trabalho que estas criangas realizam seria uma tencativa de introduzir a dife- renga, escans6es num real indiferenciado. Poderia esse trabalho ser visto como uma “tentativa de cura’, no sentido em que Freud (1911) se refere 4 consctrucéo delirante de Schreber? Como pen- sar este trabalho que os autistas realizam sem descanso? OK cge Toe 2 Stet, | ACCRIANGA AUTISTA M TRABALHO. Freud (1895) define trabalho psiquico como trabalho de ligagao. O aparelho psfquico, premido por uma quantidade de tensio vinda de fora, seria colocado em trabalho no sentido de manter a tensio 0 mais baixo possivel evitar 0 desprazer. O escoamento da energia se faria através de uma rede complexa de uilhamentos, caminhos preferenciais mais facilitados do que outros. E pela diferenga entre facilicagies que se vio fazendo marcas, uilhas, cecendo-se assim uma trama, uma cadeia de neurdnios que a energia percorrerd. Podemos articular essa ca- deia de neurénios com o que Freud vai definir como sendo uma cadeia de representagées (Vorsteliungen). Mais tarde, em Inter- presagio dos sonhos, Freud (1900) vai se referit a0 “trabalho” do sonho, que se cealiza através dos mecanismos de condensagio € deslocamento. Relendo Freud, a partir de Lacan, podemos dizer entdo que trabalho psiquico é trabalho do significance, ¢ articu- lacio significante. Retornando aos comentirios de Kanner sobre os fendme- nos de fala observados no autismo, vemos que o fat AAR RAIA AAAS criangas se apresentarem c frente lage O autor Comenta, ainda, que nao havia mui iferenga entre os que falavam ¢ os que eram mudos, & medida que a linguagem dos falantes nao servia para se com com outros, jd que consistia na mera repeticao de palavras ou frases, Nao podemos dizer, entio, que nao haja significantes, mas que estes no se encontram articulados numa cadeia. —“Adefinicéo de significante é a de nio significar nada, nao remeter 4 nenhum objeto ou referente, mas a um outro signifi- cante. “Na medida em que faz parte da linguagem é um sinal que remete a um outro sinal, que é como tal estruturado para significar a auséncia de outro sinal, em outros termos, para se opor a ele num par” (Lacan, 1985{1955/56]:192). Nao ha sig. nificado acoplado a um significante. A significacio s6 € possivel a partir da articulagao entre dois significantes. No exemiplo citado por Kanner — quando a crianga aprende a usar uma palavra e s6 consegue usé-la em sua conotagao original | — podemos deduzir que nao ha deslizamento significante, mas | uma “cola” entre significante e significado, uma espécie de conge- unicarem i \ lamento, que ndo permite a producio de novos sentidos. Ha | significances, mas ndo ha producio de novas significagées, E importante ressaltar a semelhanga do que Kanner diz sobre © fato de os autistas tomarem as palavras em seu “sentido literal’, com 0 comentétio de Freud (1915) de que os esquizofrénicos tratam as palavras como coisas. Lacan, em seus poucos comenté- rigs sobre o autismo, pat é-lo da esquizofrenia: “Tra ta-se de saber por que hi nos aucistas e no chamado esquizotrénico. algo que se congela, poderia dizer-se. Mas vocé no pode dizer que nio falam. Que vocé tenha dificuldade para escuté-los, para dar alcance ao que dizem, nao impede que sc trate, afinal, de personages muito verbosos” (Lacan, 1975:134/135), Mesmo na fala ecolilica, em que verificamos nao haver in- versio da mensagem do Outro, a crianca, entre tantas frases 34 neil Lb NAAN Hom A LR a TOE ouvidas, repete algumas ¢ nao outras. Alguns autistas no che- gam a articular palavra alguima, mas repetem sempre. fonemas. Kanner, alids, comega seu artigo referindo-se as dife- rengas particulares de cada crianga, mesmo que apresentem ca- racteristicas comuns. Podemos pensar que mesmo os autistas 1 pporcan marcas? Se hd incidéncia de significances, como pensé- | ios nao arriculados em uma cadeia? Para discutirmos essa questéo reportemo-nos a carta de Freud a Fliess, datada de 6 de dezembro de 1896, conhecida como carta 52, onde & proposto um esquema do aparelho psi- quico formado por um processo de estratificagao. Este aparelho é um aparelho de meméria, formado por tragos mnémicos, su- jeitos a reordenamentos segundo novas articulagoes. Os rearranjos seriam sucessbes de inscrigdes ¢ retranscrig6es, que se dariam_em varios registros ¢ em varios tempos: “o que hé de cessencialmente novo a respeito de minha teoria é a tese de que a meméria nao se faz presente de uma s6 vez, mas se desdobra em varios tempos, que ela € registrada em diferentes espécies de in- dicagdes" (Freud, 1987 [1896]: 254) Esse modelo nos permite pensar um aparelho psiquico que nio é dado, mas se constréi em varios tempos e em varios niveis de registros, de inscrigdes ¢ ordenamentos de tragos mnémicos, entre os dois pélos: percepgao e consciéncia, As retranscrig6es ¢ remanejamentos do material esto sempre se fazendo; portanto, a constituigéo do aparelho nao é dada e também nao podemos falar de um aparetho ps{quico “acabado”, constituido, Ou seja, a exigéncia de trabalho é a prdpria forma de funcionamento do aparelho. __ Oesquema de Freud, apresentado graficamente na carta, distingue: A percepeao (W), que corresponde as percepgées as quais a consciéncia se liga. Nao conservam nenhum trago do que aconte- cciéncia ¢ a meméria sio mutuamente exclusivas. O aparelho psiquico esta situado entre percepgio e consciénci 35 As percepgies serao inscritas num primeiro registro mné- mico (Wz) ~ signos de perepedo. Essas primeiras ins organizadas de acordo com a associacéo por simultaneidade € so inacessiveis & consciéncia. Q segundo registro (Ub) seria a inconsciéncia. Sio inscr g6es organizadas por relagées de causalidade. Os tragos (Ub) correspondem a lembrangas conceituais ¢ também nao tém acesso a consciéncia. O tercciro registro (Vb) seria a pré-consciéncia. Sio repr sentagées verbais e correspondem ao nosso ego. Podem cornar- se conscientes de acordo com determinadas regras. ‘A passagem de um registro para outro faz-se pela traducio do material psiquico, retranscrigoes que ordenam o material se- gundo novos nexos. Quando no ocorrem retranscrig6es, os tra~ os seguem obedecendo 4s leis de organizagao do extrato anteri- or. O recalcamento seria a recusa a uma tradugo que geraria desprazer. ¢ esquema nos permite menro: um primeiro rempo em qi is organizam por simultaneidade. Lacan (1997(1959-60]) refere- se a esse registro como um sistema primeiro dos significances, com a sincronia primitiva do sistema significance. Nesse pri- meito momento, varios significantes podem se apresentar a0 mesmo tempo ao sujeito. F nesse nfvel que vao se organizar as primeiras oposicées significantes, em que fort é correlativo a0 da. Ea partir dessa sincronia fundamental que serd possivel a organizagao da cadeia significance. Vale ressaltar que essas pri meiras oposigées bindrias so condicao necessiria para se for mar a cadeia, mas nao suficientes. Vimos que a constituisao do primeiro registro nao € dada. Se (Wz) é 0 lugar onde se organiza a simultaneidade, esta pode nao se fazer € 0 par significante pode nao chegar a constituir-se. Freud (1920) descreve a brincadeira de seu neto com um, carretel, no momento da auséncia da mie. O par de oposicao 36 cables Sai ee Neen RRL RRCORE ARRONNSELDES NA ATR UH SE significante pronunciado pela crianga fort e da, acompanhado do ato de jogar um carretel longe para depois trazé-lo puxado por um fio é, na leitura de Lacan, 0 exemplo paradigmitico de uma primeira simbolizacio feita pela crianga. A constituiczo de um primeiro par de oposicao significance: presenga e auséncia. | ‘Mas a simbolizacio primordial pode nao se constituir. Este / nos parece ser 0 caso das criancas ditas autistas, cuja fala, como vimos, pode se reduzir a uma seqtiéncia de $1, que nao se arti culam, nao fazem série. Um S1 que nfo reenvia a um $2.” H: algo que se gela, se petrifica num tinico significante: “o autist: constitui-se num império de $1, que nao faz cadeia, um S1 con- gelado que nio o representa para outro significante, 0 S2"(Vidal) ¢ Vidal, 1995:127). Cabe ressaltar aqui que essas primeiras inscrigdes significan- tes se fazem a partir da interven¢o do Outro. Ao descrever a \ experigncia de satisfacio, Freud (1895) sublinha a importincia da intervencao de um Outro que, comando 0 grito como demanda, converte-o em mensagem ¢ introduz.o infans no simbélico, Vamos nos deter, um pouco mais adiante, na fungio desse primeiro Outro, como “ajuda alheia”, quando discutirmos de forma mais detalhada a experiéncia de satisfagio, descrita por Freud (1895), no “Projero para uma psicologia cientifica”. Por ora, nos perguntaremos como a crianga simboliza 0 real, ou seja, como se fazem essas primeiras inscrigdes, a partir da observagao de Freud (1920) sobre a brincadeira que seu neto realiza com um carretel, na auséncia da mie. Por que Freud tomaria um jogo infantil, como exemplo, | para falar de um “além-do-principio-do-prazer”? Num primei- | 10 momento, pode nos parecer estranho, jé que as brincadeiras |_— das riangas séo em geral acompanhadas de alegria e prazer. Freud | se faz essa pergunta ao longo de todo o texto. Por que as criangas tém prazer com a repeti¢ao, gostam que as histérias sejam sem-| pre contadas da mesma maneira, enquanto para os adultos o| 7 prazer estaria ligado a novidade, a diferenga? Ele nos dé uma primeira indicagao de como vai abordar esta questao, quando diz que ira analisar as brincadeiras infantis do ponto de vista econémico. Qual é a economia de gozo ¢ de prazer implicada no jogo do fort-da? Estamos aqui chamando de gozo 0 que Freud (1920) ird denominar um além-do-princfpio-do-prazer, um ex- cesso. O que se perde ¢ 0 que se ganha nesse jogo? No texto mencionado, Freud refere-se ao jogo do fort-da como sendo a primeira realizagio cultural da crianga, © que implica uma re- niincia pulsional, ou seja, uma perda de gozo. Mas h4 ganho de prazer nessa economia, j4 que a crianga, através do jogo, trans- forma a situacao penosa da partida da mae, em uma brincadeira prazerosa, A experiéncia de ser deixado pela mie, na qual a crianca desempenha um papel passivo, € transformada, através do jogo, em posigao ativa, de dominio em relagio ao objeto que ela faz ir vir. Viver de forma ativa o que foi experimentado passivamen- © te € uma ravio adicional para a repeti¢ao na brincadeira das crian- as. Gostarfamos de sublinhar 0 fato deo jogo set uma resposta da crianga ao excesso traumdtico da experiéncia da auséncia da mac, que vai fazer exigéncia de uabalho ao sujciso. Freud relara que seu neto tinha o habiro de jogar quaisquer objetos que pudesse pegar para fora de seu berso, pronunciando a palavra fort, “embora”. Realizava assim a brincadeira de fazer {ir embora” um objeto, o que era vivido com muito prazer pela crianga, dando trabalho aos adultos que tinham que apanhar os objetos no chao. Freud confirma sus hipétese de que se tratava de um jogo, quando observa a brincadeira da crianga com um carretel, que consistia em fazé-io desaparecer atrés do cortinado, jogando-o para fora do bergo, dizendo fors, para depois fazé-lo reaparecer, puxado por um fio, saudando 0 seu retorno, pro- nunciando dé (aqui). O jogo completo se fazia através do desa- parecimento ¢ retorno do objeto, alterniincia reduplicada pela oposicao significance forr e da, pronunciada pela crianca. Freud 38 sna ca su es) en A PRN I a chama a atengio para o fato de que, embora o jtibilo maior se desse no segundo tempo do jogo (0 retorno), o primeiro tempo (0 desaparecimento) era repetido com mais freqiéncia e tam- bém com prazer. O primeiro tempo nao era uma preparacio para o segundo, para o retorno, havia repeti¢ao e ganho de pra- zer no primeiro tempo em si. Para que ocorra uma primeira articulacao entre dois signi- ficantes (SI ¢ $2) — condigio de possibilidade da constitu da cadeia significance —, faz-se necessdrio uma perda, um objeto | precisa ser “embora”, perdido. A simbolizagao primordial pres- supe a constituiczo do par de oposicao significante ¢ 2 conco- mirante extragdo do objeto. Ao se perguntar por quea crianca repetiria a experiéncia de- sagradével da partida da mie em sua brincadeira, Freud (1920) se refere a0 trabalho de ligagao do excesso pulsional a representan- res. A repeticao se daria para dominar esse excesso—o inassimilvel da experiéncia traumtica da auséncia da mae —e ligi-lo & ia rede de representagbes. Nesse esforco de simbolizacio, algo resta sempre inassimilével, © que relanga 0 sujeito ao trabalho. Hi, portanto, algo que precisa ficar fora da cadeia de representa Bes, um resto inassimilavel, para que a cadeia se constitua. Retornaremos a esse ponto quando tratarmos, mais adiante, do que Freud ird denominar das Ding, no “Projeto”, de onde Lacan partird para claborar o que chamou de objeto “a”. O que € importante retermos, neste momento, éa idéia de que no jogo do fort-da hd um trabalho que se realiza numa ver- rente significante, a constituicao do par de opesigao presencal auséncia, € um tratamento dado a0 objeto, o carretel, no caso, e que essas duas vertentes se articulam entre si. Ou seja, é necessa- | rio um trabalho em torno da perda de um objeto, para que se | instale uma hiaincia e se constitua um intervalo que possibilite « | articulacéo ensxe dois significantes. Com a simbolizacio prit dial, 0 campo do Ousro fica marcado por uma fenda. 39. Em psicandlise, quando falamos em Outro materno, esta- mos nos referindo a uma fungio exercida pela pessoa da mae, ‘ou quem quer que exerca essa fungio junto a crianga. Lacan (1956/57) iré discinguir a funcao materna nos trés registros: real, simbélico ¢ imagindrio. A mae simbélica € aqueia que estabele- ce um ritmo alternado de presengas e auséncias junto & crianga. Mas ela nao esté lé pronta, & espera da crianga. “Ela nao surge como tal desde © inicio, mas a partir desses jogos de dominio sobre o objeto: uma bola, um carretel, poderia ser qualquer coi- sa que ela deixasse cait da beira da cama para apanhar em segui- da’ (Lacan, 1995(1956/57]:67). A mae é chamada quando au- sente ¢ rejeitada quando presente, no registro do apelo, por uma vocalizagio fort e da. E necessirio um trabalho da crianga para consticui-la. Como pensaro campo do Outro, no caso das crian- > cas, dicas autistas, que no construiram essa primeira simbolizagao? ~~ Podemos agora procurar responder a Pergunrer quié fos zemos no inicio deste capitulo: por que 0 Outro no autismo se constituiria como intrusivo, excessivo? Se nao hé simbolizagio primordial, o Outro se apresenca como um Outro macigo, com pleto, que no comporta a escansio presenga/auséncia, nem a concomitante extragio do objeto que 0 descomplecaria, Um \ Outro que € pura presenga e, portanto, intrusivo, ou pura au- séncia, o que também deixa a crianga 4 mercé do excesso, do trauma deixado pela auséncia do Outro materno. Mas esse excesso também faz exigéncia de trabalho e as crian- as autistas realizam um trabalho no sentido de descompletar, esvariar esse Outro excessiva. Por isso nos referimos as criancas autistas como estando “em trabalho” (Baio & Kusniereck, 1993). J& nos referimos ao fato de que os fendmenos, descritos pela psiquiatria como gestos estercotipados, realizados pelos autistas (abrir e fechar portas, esvaziar e encher recipientes, bacimentos em ritmos alternados aplicados nos objetes, ou movimentos rismados com o préprio corpo) padem ser tomados como ten- 40 t screver um $2, de estabelecer um maiseum menos, um fort-da. Mas esses movimentos de ritmo bindrio se fazem no real, ndo passam ao simbdlico, por isso precisam ser repetidos indefinidamente, As criangas ficam, portanto, condenadas a uma espécie de “trabalho forgado no sentido de concatenar significantes” (Bastos, 2003). Em relagao ao objeto, as criangas autistas também realizam um trabalho. Citaremos aqui alguns fragmentos clinicos que revelam, na singularidade de cada caso, diferentes formas de tra- tamento dado aos objeros. Algumas criangas realizam uma tentativa de extracio do objeto, no sentido de furar esse Outro macigo, no prdprio cor- po, como Rodrigo, que num recurso derradeiro, em momentos de terror frente a qualquer demanda do Outro = vivida como. incrusiva ~ se automutila, arrancando tufos do préprio cabelo, ou mordendo-se acé sangrar. Marcflio utiliza-se de forma bastante peculiar do alimento. que come, ou de sua prépria saliva, realizando um estranho movimento de colocé-los para dentro ¢ para fora, num ritmo alrernado. Pode também realizar com suas fezes esse mesmo tra~ balho, que parece ter uma dupla ditesio. Por um lado, é uma tentativa de construir um dentro ¢ um fora, nesse estranho movimento de alternincia com os produtos de seu préprio cor- pos por outro lado, esta pode ser a sua forma de manter 0 outro afastado, jd que se torna assim repulsivo, dificultando a aproxi- magio das pessoas. J& André — que a qualquer aproximagio de um outro era tomado por um panico avassalsdor, passando ao ato, quebran- do © que encontrava pela frente ~ realizava um meticuloso tra- balho de picotar revistas durante horas de seu dia. Escolhia, para rasgar, as paginas de revistas com imagens, figuras ou foros. Era esta_a sua forma de trarar 0 Outro macico, cortando-o em peda- cinhos. Apaziguava-se muito realizando esta atividade e suas re- 41 | | 1 i Q J viscas eram objeto de extremo valor para ele. Nao deixava que ninguém as tocasse. Heitor, um menino autista de 6 anos, conseguia permane- ‘cet em contato com outras criangas ¢ adultos do NAICAP com acondigao de manter em sua mio, bem fechada, um pedacinho de papel que ele mesmo recortava com todo cuidado € muito rigor. Esse objeto parecia ter, para ele, uma fungdo de mediagio entre cle ¢ 0 outro. Se por acaso este Ihe fosse retirado, encrava em crise, mordendo-se ou mordendo os outros, Paulo tem um fascinio especial por anéis, avangando ¢ arran- cando esse objeto da mio do outro, repetindo sempre “tirar ancl, tirar andl”. Nesse caso, Paulo procura extrair um objeto do Outro, ‘mas em outro nivel, jé que ha fala articulada, uma palavra que jé é uma presenca na auséncia, O olhar ¢ a voz do Outro sio vividos geralmente como intrusivos, fazendo com que procurem tampar os ouvidos, ou desviar 0 olhar do olhar do outro. Mas podem também ser re- gulados de forma bastante rigida, como faz Rodrigo, que, em momentos de maior instabilidade, necessita verificar a todo mo- mento 0 olhar do Outro, aproximando-se dos adultos, olhan- do-os bem dentro dos olhos. Acalma-se quando lhe asseguramos que esta tudo bem, com alguma palavra que indique que estamos registrando sua necessidade de verificagZo e que o respeicaremos. (Os objetos que sio demandados pelo Outro, como os ali- mentos ¢ os excrementos, também sfo “tratados” de maneira especial. Assim, algumas criangas s6 comem a partir de determ| nados rituais muito bem definidos por elas. Os alimentos de- \ ‘yem ser servides numa determinada ordem, partidos ou picados em pequenos pedagos. Marcos, por exemplo, necessita para comer que a cadcira fique a uma determinada distancia da mesa, 0 prato dos talhe- res, etc. Essa distancia é medida por ele, milimetricamente, atra- vyés de uma espécic de régua imagindria. S6 depois de realizado todo esse ritual accita o alimento oferecido a ele por um outro. 42 L Matias coloca em série objetos, fazendo longas fileiras de carrinhos, ou bolas, blocos, num incansivel trabalho de classifi- casio e seriagio. A partir desses fragmentos clinicos, podemos nos pergun- tar sobre o tratamento dado aos objetos por estas criancas. Ve- mos que hd nuances, diferengas, varios niveis de elaboraao no trabalho que elas realizam. Qual é a légica que permeia esse trabalho? Haveria alguma relagio entre 0 tratamento dado a0 objeto carretel, no jogo do neto de Freud, e esse tratamento dos objetos feito pelos autistas? Aqui vale a pena citarmos uma passagem de Lacan, referin- do-se ao. ce des (1) 9 jogo do carretel &a resposta do sujeito aquilo que a auséncia da mie veio criar na fronteira de seu dominio ~a borda de seu bergo. isto 4é,um fosso, em torno do qual ele nadz mais tema fazer senio 0 jogo do saito (...) Ecom seu objeto quea crianga sata as fronteiras de seu domi- nio transformado cm pogo € que comesa a encantagéo (Lacan, 1985[1964]:63) Para o jogo do salto é necessitio, de um lado, significantes / que fasam a mediagio entre a crianga ¢ 0 Outro e, de outro, um objeto que constitua um duplo corte: ser destacado do campo do Outro e do corpo prdprio. ~~ No caso das criangas autistas, como nao cair no abismo 5 Ihes falta 0 recurso da simbolizagio ligada a um objeto, que pode ser um carretel que vai € vem ou a pontinha de uma fralda ma- nipulada num ritmo préprio? Nesse mesmo comentérit ‘ore 0 fort-da, Lacan refere-se 20 cartetel como algo que se destaca do corpo da crianga, mas que ela aindz mantém puxado por um fio, como sendo “a auromutilasio a partit da qual a ordem da significancia vai se pr em perspectiva” (Lacan, 1985[1964}:63). J nos referimos & ordem da significincia a parti da pre pria definicao de significante, que é a de nio significar nada, no remeter a nenhum referente, masa um outro significance. Ve- B x } J mos aquia necessidade da extracio de um objeto, da perda do refe- rente, para que se constitua uma primeira articulagao significance. Freud (1905a) refere-se aos jogos de nom sense, realizados pelas criangas pequenas, que consistem no prazer extraido da pura repeticao de significances destigados de qualquer referente. Como exemplo, podemos citar a conhecida brincadeira: “Unidu- nité, salamé, mingiié’ Mas wrepetigio, vivida com prazer pelas criangas ditas neu- réticas, é, para os autistas, uma imposiga0 que vem de fora, como, um excess do qual nao se pode escapar. No trabalho com essas ccriangas, estemunhamos que a dimensio de prazet sé aparece quan- do clas comegam a construir recursos para se subtrair desse excesso. Se a principio © recurso a um objeto concreto, que faga mediacio entre a crianga e 0 Outro, como no caso de Heitor ou ‘André, pode ser um recurso precitio, verificamos, com o tratamen- to, a possibilidade de deslocamentos metonimicos, flexibilizagoes. Matias, por exemplo, parece estar num outro momento de elaboracio em relacio a0 objeco. Ele jd faz série com os objetos, de alguma forma jd significantizados, pois articulam-se uns com 05 outros, metonimicamente, e sio nomeados por ele. Na particularidade de cada caso, vemos que, por fala da simbolizagao primordial, as criangas autistas ucilizam-se de al- ‘guns recursos, apoiando-se em certos objetos, na tentativa de tratar 0 Outro excessivo. Na descrigao de Kanner ¢ nos fragmentos clinicos citados aqui, verificamos que as criangas autistas tomam posigdo frente a0 Outro. Realizam o que Zenoni (1991) chama de tratamento do Outro. Tratam os objecos da demanda do Outro, como os excrementos ¢ a comida; 0s objetos que presentificam 0 desejo do Outro, come 0 olhar ¢ a voz. Tratam as palavras do Outro, repetindo-as, decompondo-as, deformando-as, ¢ também os objetos concretos, através de um trabalho de picar, frrar. Procu- ram intcoduzir diferengas a partir de batimentos, atividades de 44 encher e esvaziar recipientes, etc. ¢ fazem um trabalho de verifi- cago buscando regular esse Ourro intrusivo; estabelecem ricu- ais, repetigoes de atividades que precisam ser mantidas sempre iguais, procurando colocar alguma ordem, consccuir regras, por; vezes extremamente rigidas, para tratar 0 excesso sem barreiras do Outro. Acconstrugio delirante, no-caso da psicose, é um trabalho do sujeito no sentido de barrar esse excesso, a intrusiio do gozo do Outro. Frente & falta da metifora paterna, haveria o recurso A supléncia de uma metéfora delirante, que permitiria ao sujeito no ser inivadido por esse excesso., Vimos neste capitulo que as criangas autistas também realizam-um trabalho para escapar desea intrusdo. Deste ponto de vista, 0 autismo néo seria “uma forta- leza vazia’ 1° As criangas autistas estdo sempre em trabalho, pro-~ curando furar esse Outro completo eadvir como sujeitos. ae dese pressuposto Nao € sem Conseqiiéncias para a clinica. Para pensarmos uma possivel diregio de tratamento, terfamos qué discernis, na particularidade de cada caso, a légica do trabal que cada crianga realiza na tentativa de advir como sujeito pensar como um analista pode vie a incluir-se neste trabalho. ‘Mas, antes de avangarmos na questio de uma posstvel dire- cao de trabalho nesta clinica, tema de nosso terceiro capitulo, prosseguiremos com nossa pergunta sobre o estatuto do Out eeauismmoy questo pollen lontia.valo tratampsstyporsieel dea tas criangas. “Ghs Ltarno d 4 \ oO CapfruLo 2 ‘Vimos no capitulo anterior que, no caso das criangas aut tas, o Outro se apresenta como excessivo, jd que nao hd a cons- tituigio da simbolizagio primordial, ou seja, nao hé a constitu ao de um primeiro par de oposigao significante presenga/au- séncia (SI $2). Janos referimos também ao fato de que na fala dos autistas thé algo que se gela, se petrifica num tinico significance, um SI que nio reenvia a0 $2. No entanto, como sustentamos, os auti tas realizam um trabalho, uma tentativa de inscrever um segun- do significante c ha particularidades, diferencas, neste trabalho que cada crianca realiza. Entre tantas palavras ouvidas, uma cri- anga escolhe algumas, ¢ no outras, para repetir. Enquanto uma crianga passa horas do seu dia picando papéis, outra pode se concentrar por muito tempo fechando ¢ abrindo portas, ou ¢s- vaziando ¢ enchendo um balde de 4gua, por exemplo. — Podemos dizer, entao, que hé marcas que sinigularizam cada crianga. Hi significantes, mesmo que, num primeiro momento, estes possam nio se articular, nao fazendo uma série, uma cadei Estas marcas, primeiras inscrigdes significantes, se fazem na relacio com um Outro. O Outro, “lugar da cadeia signifi- cane que comanda tudo © que vai poder presentificar-se do sujeito” (Lacan,1985{1964]:193), nao sé corresponde ao lugar do tesouro dos significantes, mas também ~ tomando como & feréncia a hist6ria singular de um sujeito — ao campo do discur- so particular que precede o seu nascimento, a forma singular assumida pelas marcas significantes de sua culcura, de sua histéria familiar, 2 constelagio de esperangas, expectativas, identificagies, significagbes que s4o prévias ao nascimento daquele sujeito. 46 preliminar a toda interacdo, a crianga é situ- ada como abjeto do desejo.da Outzo, “E do « tro, de sua configurago que vai depender o modo de ser-objeto do sujeito” (Zenoni, 1991:107). Para pensarmos qual a configuracio do Outro no caso das. criangas autistas e, po = que lugar respondem com seu “autismo” € qual a posigao que sustentam frente a este Outro, emos este capitulo a partir do que Freud (1895) ir des- crever como a “experiencia de satisfacio”, quando iré sublinhar a importincia da interven do Outro na constituigao do apa- relho psiquico. Lacan se referird ao lugar deste primeiro Outro, encarnado numa presenga humana, ou melhor, veiculado através de um personagem humano, como o Outro primordial. O OuTRO PRIMORDIAL NO “PROJETO PARA UMA PSICOLOGIA CIENTIFICA” Ao descrever a experiéncia de satisfagio, experiéncia origi- natia, constituinte do aparelho psiquico, Freud (1895) parte da suposicio de um recém-nascido que, premido por uma situagio de urgéncia como a fome, por exemplo, reagiria a0 excesso de tensao através de uma descarga, como.o chore ou.o-grito. ‘Mas essa descarga ndo produziria um resultado aliviante, jd que a excitagéo nao cessaria, Seria necesséria uma alteracao no meio ambiente, uma “acdo especifica” que s6 pode se realizar através de uma “ajuda alheia” (Fremde hilfe), frente & situagao de desamparo original dos sujeitos humanos que, a principio, nao possuem os recursos necessitios para promover esta modifica- io no ambiente. A agdo espectfica s6 se exerceria quando a aten- io de uma “pessoa experiente” volta-se para o estado de aflicio do bebé, para o grito da crianca. O desamparo dos seres humanos, nos diz 10 que & a expressio do 47 A intervengao de uma pessoa experience permitird ao infans executar, no interior de seu corpo, a atividade necesséria para remover o estimulo endégeno. A totalidade desse evento consti- tui o que Freud chamou de primeira experigncia de satisfagao. No texto freudiano, define-se a importincia do Outro na constituiggo do aparelho psiquico. £ a partir da relacao com esse Outro que se inscreverio as primeiras marcas constituintes do aparelho. Veremos que a ago especifica, promovida pelo Outio, implica bem mais do que a simples satisfagao de uma necessidade. A condigao de desamparo dos seres humanos nao se £ apenas ao fato de sua dependéncia de um outro do ponto de vista da sobrevivéncia fisica, como no caso dos animais, mas traca-se da caréncia de todo ser que, para se constituir como sujeito, cera que se fazer representar no campo do Outro, na linguagem. Os sujeitos humanos precisam articular sua deman- da em palavras-¢, para isso, € necessaria a intervengac Outro que interprereseu | Hi uum Outro que, com suas palavras, suas préprias demandas, ird dar sentido a estas primeiras manifestacdes da crianga, transfor mando o grito em apelo. Para salém do alimento, 0 que esse primeiro Outro i signi Poranc,€o Que que inwodu ifs 9 mundo simi. ‘A interpretagao do grito sera feita a partir do sistema de sig. nificages do primeiro Outro. Veremos portanto, mais adiante, a mportancia de nos perguntarmos que lugar ird ocupar a crianga no desejo e na fantasia desse primeiro Outro, para caso das criancas autistas, que posigio sustentam frente a ele KX primeira experiéncia de satisfagao inscreve marcas no aparelho psiquico, imagens-lembrangas que correspondem & percepsao do objero que causou a satisfacao € 2 descarga decor- rente da agao especifica. Com o reaparecimento do estado de urgéncia, um impulso ps{quico investird essas marcas psiquicas, reativando-as. Esse investimenta ¢ chamado por Freud de im- 48 fere e snsarmos, no RR ee o de desejo, que produziré algo idéntico a uma percepgao — winevitivel €0 d des: lesapon- E, portanto, a falta do objeto que ae ‘a busca da re- peticao da satisfacio obtida nessa primeira experiéncia, através do investimento nos tragos mnémicos, Aqui se delineia uma nogio central na obra freudiana, a idéia do objeto como desde sempre perdido. A falta de objeto éa mola propulsora que colo- cao aparelho psiquico em trabalho. ( objeto encontrado nunca corrésponderd a0 objero proci- rado. A busca do objeto é empreendida a partir das marcas deixa- das pela experiéncia de satisfagao, que formam tilhas, caminhos mais faclitadas.do.qus outros para a descarga « nhos que sero novamente percorridos frente a cada r rigncia de confronto com a auséncia do objeto, Nessa via da busca pelo reencontro do objeto, “nao é cle que reencontramos, suas coordenadas de prazer” (Lacan, 1988(1959/60]:69). Podemos depreender, a partir da descrigéo da primeira ex- periéncia de satisfagio, que a busca pelo reencontro do objeto é sempre marcada pela tensio e pelo conflito, jé que hd sempre defasagem entre o esperado € 0 encontrado. A busca do objeto estd também sempic_ligada a idéia da repeticio, repetigao de uma satisfago sempre procurada,.mas.impossivel-de-se-atingit> Desse ponto de vista, a relagdo do sujeito a0 objeto nao ¢ ui relagio harmoniosa, de complementaridade."” O obscure abjeto do desejo ndo é um objeto da realidade, nao € 0 scio da mde, nem a mie, mas as marcas deixadas pelas, primeiras experiéncias de satisfagao na relagio com 0 Outro, lembrangas das primeiras impresses. Este objeto vai sc situar, portanto, em fungio da trama das representagées, ou scja, do campo da linguagem, Se 0 objeto do 4 lesejo no é um objeto da realidade mas, segundo 0 principio do prazer, um objeto alucinado, como } reconhecé-lo como nio real? Procurando responder a esta ques- | 49 tio, Freud introduz das Ding (a Coisa), nogio privilegiada por Lacan a partir do Semindrio sobre a Etica (1959160) ¢ da poste- rior introdugio do objeto a em seu ensino. ‘Ando-coincidéncia entre ¢ objeto procurado ¢ 0 encontra- do coloca em jogo a atividade de pensamento, a fungio de juizo (que realizar a andlise responsavel pela distingio entre 0 objeto \alucinado e o objeto da percepgio (entre o complexo mnémico de imagens-lembrangas ¢ 0 complexo de imagens perceptivas) Nesse trabalho de andlise, o complexo mnémico é escrito por Freud como a+b ¢ 0 complexo perceptive como arc. A atividade de juizo procurard encontrar a semelhanga, ou seja, 0 reconheci- mento do objewo. Melhor dizendo, 0 reconhecimento do objeto ‘enquanto ausente, jd que se trata de um objero a ser reencontrado. yy Nesta anélise hé urn componente que permanece sempre constante, que Freud denominari neurénio a, das Ding (a Coi- sa); um componente que ser definido como elemento 6, ele- mento varidvel, que pode faltar, uma qualidade ou atributo da Coisa; e um outro elemento, indicado pela letra ¢, que seria a marca da nio-coincidéncia, da diferenga, que colocars o apare- Iho em trabalho na tentativa de encontrar 6. De chega-se a6 acravés das redes de representagies (Vorstellung), da trama de \ conexées € associagdes entre representagbes. Das Ding (a Coisa) é 0 elemento constante que fica fora, exclufdo da rede de representagdes, mas ao mesmo tempo é 0 eixo em torno do qual se organiza essa rede. Valea pena cranscrever aqui um dos comentarios feitos por Lacan (1959/60) soisre das Ding: Daz Ding é 0 que — no ponto inicial, logicamente e da mesma feita jo do mundo no psiquismo ~ se apre- ho, em torno do qual gira todo romno deste das Ding que roda m visto que © ramado (Lacan, cronologicamence, da orga seata, ¢52 isola, como o terme de estra! © movimento da Vorstellung, (..) £ todo este processo adaptativo, do particular no h processo simbélico mostra-se af inextticavelmen 1988{1959/60):76), 50 A Coisa é um elemento nao significante, estranho & cadeia de representagées, que nao se deixa apreender por nenhum atri- buto, mas 40 mesmo tempo possibilita que a cadeia se ‘consti- tua, como veremos mais adiante. E 0 elemento que norteia os processos de juizo ¢ pensamento ¢ é a0 mesmo tempo, 0 que sobra, 0 que resta dos processos judicativos, como inapreensivel, “o que chamamos coisas sio res{duos subtraidos 20 juizo” (Freud, 1987 [1895]:351). Freud (1895) ird referir-se novamente a das Ding ao des- crever 0 que nomeou a experiéncia do Nebenmensch, 0 comple- xo do préximo. E em relagio a seu semelhante, nos diz Freud, que o ser humano aprende a conhecer. Este semelhante, tum outro ser humano, que foi ao mesmo tempo seu “primeiro obje- to satisfasério ¢ mais tarde seu primeiro objeto hostil, além de sua tinica forga auxiliar” (Freud, 1987(1895]:348). A apteensio da realidade, pelo sujeito, se faz a partir desse semelhante, que se apresenta, entretanto, na forma de um Ou- «ro estranho € a0 mesmo tempo familiar. O complexo do seme- thante se divide em dois componentes. Um componente é redutivel aos tragos inscritos no sistema de meméria, € outro permanece inassimilivel, como Coisa, das Ding, ¢ fica fora de todas as associagdes da rede de represencacoes. © Outro aparece assim nao sé em sua dimensio de seme-| Ihante, mas também de alteridade absoluta. E a0 mesmo tempo | © préximo, o intimo € também o estrangeiro, 0 inapreensivel.| Hé assim na relagio do sujeito com © Outro algo que escapa, | que fica fora, come estranho, nao simbolizével. 3 Lacan (1959/60) iré atribuir a este inassimilvel, das Ding, © centro vazio que faz girar todo.o movimen rede sentagdes. Em primeiro exterior em torno do q todo 0 encaminhamento do sujeito. Esse encaminhamento uma referéncia, mas uma referéncia em relagdo a qué? Ao mun- do dos desejos, nos diz Lacan. J4 que 0 objeto € desde sempre 31 | perdido, o sujeito busca 0 Outro, como objeto, mas nao para reencontri-lo. Jamais ele ser reenconcrado: “Reencontramo-lo \no maximo como saudades” (Lacan, 1988{1959/60]:69). No Semindrio 11 (Lacan, 1964), a idéia do Outro, que, por escrutura, é incompleto, seré consolidada a partir da elabo- ragio do objeto a. Seo Outro por estrutura ¢ incomplero, com- pate Be Ge reser dn er jue Outre pira as criangas autistas 3€ COHSETUT Come completo, macico ¢ por- tanto intrusivo. J4 que o Outro, por estructura, comporta uma falca, a questio que se coloca para todo sujeito é como simboli- | zat exta falta no Outro. No caso dos autistas, a perda do objeto; | que seria constieufda pela simbolieagio primordial, nao se fez, 0 \ que compromete o registro mais elementar ca falta. A simboli- \zacio primordial se seguiria, em um outro momento légico, a) \nscrigao da falta em termos de castracio. = | Do DESEJO DA MAE A METAFORA PATERNA: A INTERVENGAO DO NOME DO PAI Para que o Outro marerno possa interpretar o gtito da crian- a, transformando-o em mensagem, é preciso que esteja “atento a0 estado de aflicao da crianga”, nos diz. Freud (1895). Essa aren- ‘io particularizada implica que a crianga esteja situada num lu- gar bastante especial, como objeto de cuidados ¢ de investimen- to libidinal desse primeiro Outro. Que lugar ocupa uma crianga na economia libidinal de uma mulher? E a partir desta pergunta que procuraremos avangar a seguir. Freud (1924a) aponta para a diferenga entre © percurso edipico da menina ¢ do menino. Ha uma dessimetria na Fangio do complexo de castragao, pivé do complexo de Edipo, entre os sujeitos do sexo masculino ¢ os do sexo feminino, O complexo de castragio esté ligado & constaragio da dife- renga sexual, que vem abalar a crenga na premissa universal do 52 | | falo. Este é um momento crucial na constituigao dos sujeitos ¢ terd conseqiiéncias e desenvolvimentos diferentes para 0 meni- no € para a menina. A menina entra no Edipo a partir da constatacao de sua falta de pénis, enquanto que, para 0 menino, o temor de sua perda é que leva a seu declinio. © menino, nesta fase terminal do Edipo, teré que abandonar a mie, como objeto de investi- mento libidinal, e identificar-se com o pai, como portador do falo, colocado, assim, no lugar de Ideal. Esta é a saida para 0 menino que, desde entio, terd “seus titulos de propriedade no bolso” (Lacan, 1999[1957/58]:178) ¢ sé num segundo tempo, na puberdade, poderd fazer uso deles. A menina sabe que no tem ¢, pata ela, quando o pai ter4 que se fazer preferir 4 mae, como portador do falo, ser4 mais admissivel do que para o menino se ver privada do falo, embora isso munca chegue a ser completa- mente atingido e lhe fique sempre “um pequeno amargo na boca, que se dé 0 nome de penisneid’ (Lacan 1999[1957/58):179). Para ambos os sexos, a mie se constitui como o primeiro objeto de amor. Freud (1932) se pergunca o que poria fim & vinculagao tio forte da menina com sua mie, fazendo com que la se volte para o pai c possa abandonar a mic como objeto de investimento amoroso. A hostilidade contra a mae, uma das ra- 26es de seu afastamento, ndo se dé apenas a partir da constata- do de sua propria castracao, mas também da falta de pénis na mac. A menina volta-se, entio, para o pai, esperando receber deste falo que a mie the ceria recusado. © desejo de receber 0 falo do pai ird deslizar pare o desejo de receber deste um filho, conforme a equivaléncia simbélica pénis-bebé. Frente & desilu- sdo imposta pelo complexo de castra¢o na menina, ela esperard receber do pai um substituto do falo que the falea, um bebé. Mais tarde ird desejar ter um filho com um homem. A ctianga se inscreve, assim, na relagio her com sua \ falta, como o falo que viria a preenché-la. “Se a mulher encontra 53

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