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O MAL: UM DESAFIO A FILOSOFIA E A TEOLOGIA Que a filosofia ¢ « teologia constderam o mal como um desafio sem igual, ox maiores pensadores, em uma ou outra diseiplina, coneordam em eonfes- si-lo, por vezes com grande alarde. © importante nao ¢ esta eonfissio, mas o modo pelo qual a desa- fio, e até mesmo o fracasso, é recebido: seria um convite @ pensar menos ou uma provocagio a pensar mais, ou até mesmo a pensar diferente mente? ‘A questo reside em um modo de pensar sub- metido & exigéneia de coeréneia légiea, isto ¢, a0 mesmo tempo Ge néo-contradigio e de totalidade sistematiea, 2 este modo de pensar que prevalece nos ensaios de teodicéia, na acep¢ao técnica do ter- me, que, por mais diversas que sejam suas respos- tas, concordam em definir o problema em termos aproximadas, tais como estes (como se pode afir- mar conjuntamente, sem contradi¢ao, as trés pro- posigGes seguintes): Deus ¢ todo poderaso, Deus @ absolutamente bom; contudo, o mal existe. A teo- dieéia surge, entéo, como um combate a favor da coeréncia, em resposta & abjecdo segundo a qual vomente duas das proposigées sio compativels, mas nuinea as trés ao mesmo tempo, O que é pressuposto pelo moda de colocar © problema nao é poste em questo, isto é a propria forma proposicional na qual os termos do problema sao expressos, ¢ a regra de coeréncia 4 qual a solucio admite dever satis- fazer. Por outro lado, com efeito, mio se leva em conta que estas proposicces exprimem um estado “onto-teolégico" do pensamento que 86 foi atingido num estigio avancado da especulacdo € sob a con- digdo de uma fusio entre a linguagem confessional da religido e um discurso sobre a origem radical de todas ax coisas, na época da metafisica pré-kantia- na, como o demonstra até A perfeico a teodicéia de Leibniz. Nao se leva em conta também que a ta- refa de pensar — sim, de pensar Deus e de pensar o mal! perante Deus — pode nao estar esgotada através de nosses taciocinios de acordo com a ndo- contradi¢ao ¢ a nessa inclinag&o para a totalizagée sistematica, A fim de mostrar o cardter limitade relative da, posigdo do problema no quadro argumentative da teodicéia, é preciso primeiro tomar a medida da amplitude ¢ da complexidade do problema com os recursos de uma. fenomenologia da experiénela do mal, depois distingulr os nivels do diseurso percor= rides pela especulagao sobre a origem e a ravio de ser do mal, e enfim juntar o trabalho do pensar suscitado pelo enigma do mal as respostas da ago e do sentimento, I — A experiéncia do mal; entre a repreensio ea lamentagio O que fornece o cardter enigmatico ao mal é a nossa posigéo de colocarmos, numa primeira apro- ximagdo, sob um mesmo plano, pelo menos na tra- digo judaico-crista do Ocidente, fenémenos tio dispares como o pecado, o sofrimento ¢ a morte. Pode-se mesino dizer que € na medida em que o soirimento ¢ constantemente tomacio come ponto de referéncia que a questo do mal se distingue da do pecado ¢ da culpabilidade, Antes entdo de dizer @ que, no fenémeno do mal cometido e no do mal sojride, aponta na direcdo de uma enigmatica pro- fundidade comum, é preciso insistir na sua dispa- ridade de prineipio. No rigor do termo, o mal moral — o pecado em linguagem religiosa — designa o que torna a agdo humana objeto de imputacao, de acusagao e de repreensiio. A imputagdo eonsiste em consignar a lum sujeite responsével uma ago suscetivel de apre- cingéo moral, A aeusagio carseteriza a propria agao como violagaio do cédigo ético dominante na comunidade considerada. A repreensio designa 0 Jitizo de condenacao, em virtude do qual o autor da ayio é declarado culpado e merece ser punide, B aqui que o mal moral interfere no sofrimento, na medida em que a punicao ¢ um sofrimento infli- Rido. Tornado também no rigor de seu sentido, o sofrimento distingue-se do pecado por tragos con- ‘nfirios, A imputagio que centralize. o mal moral so- a bre um agente responsivel, o sofrimento sublinha seu cariter essencialmente sofrida: nao a fazemos chegar, ela nos afeta, Dai a surpreendente varie- dade de suas causas: adversidade de natureza fisi- ca, doengas e enfermidades do corpa e do espirito, afligéo produzida pela morte de entes queridos, perspectiva assustadora de mortalidade propria, sentimento de indignidade pessoal, etc.; em oposi- clio & acusacio que denuncia um desvio moral, 0 sofrimento caracteriza-se como puro contrario do prazer, como nfio-prazer, isto é, como diminuigSo de nossa integridade fisiea, psiquica e espiritual. A repreensio, enfim e sobretudo, o sofrimento opoe 8 lamentacao, pois se a falta (0 era) faz 0 homem culpado, o sofrimento o fax vitima: 0 que reclama a lamentagao. Sendo assim, o que é que em detrimento desta, irrecusivel polaridade convida a filosofia e a teo- logia g pensar o mal como raiz comum do pecado e do sofrimento? B, primeiramente, 0 extracrdina- rio eneadeamento destes dois fendmenos; por um lado, a punigfio é um sofrimento ff{sico e moral acrescentado ao mal moral, quer se trate do castigo corporal, de privagdo de liberdade, de vergonha, de remorso; é por isso que se chama a culpabilidade de pena, termo que ultrapassa a fratura entre o mal cometico e o mal sofrido: por outro Indo, uma causa principal de sofrimento é a violéncla exerclda sobre o homem pelo homem: em verdade, fazer mal é sempre, de modo direto ou indireto, prejudicar outrem, logo, é fazé-lo sofrer; na sua estrutura ra- cional — dialégica — o mal cometido por um en- 24 contra sua réplica no mal softido por outro; € neste ponto de interseccdio maior gue o grito da, lamen- taco é mais agudo, quando o homem se sente vitima da maldade do homem; isto testemunham tanto os Salmos de David como a andlise de Marx da alienagao resultante da redugdo do homem ao estado de mereadoria, ‘Somos conduzidos a um gran mais alto, em diregdo a um timico mistério de inigitidade, pelo pressentimento de que pecado, sofrimento e morte exprimem de modo miltiplo a condi¢Zo humana em sua unidade profunda. E certo que atingimos aqui o-ponto onde a fenomenologia do mal é destro- nada pela hermenéutica dos simbolos © dos mits, estes oferecendo a primeira mediagio lingiiistica a uma experiéncia confusa e muda. Dois indicios pertencentes 4 experiéncia do mal apontam em ditecdo a esta unidade profunda. Do lado moral, primeiramente, a incriminagao de um agente res- Ponsdvel isola no Amago tenebroso a zona mais clara da experiéncia da culpabilidade, Esta e1 bre em sua profundidade o sentimento de ter sido redusida por foreas superiores, que o mito nao teria dificuldade em exorcizar. Ista feito, 0 mite sé fark exprimir a sentimento de pertencer a uma histérla do mal, sempre j4 existente para cada um, O efelto mais visivel desta estranha experiéncia de passi- vidade, no cerne mesmo do agit mal, é que-o homem se sente vitima ao mesmo tempo em que ele é culpa- do. A mesma confusio se processa na fronteira entre culpada ¢ vitima, observada partindo de cutro pélo. Se a punigéo é um sofrimento reputado ¢ merecido, quem gabe se todo o sofrimento niio é de 2s um mode ou de outro a punigio de uma falta pessoal ou coletiva conhecida ou desconhecida? Esta interrogag&io que verifiea até em nossas so- ciedades seculares a experiéncia do Into, do qual se falard no fim deste texto, reecke um reforgo da. exorcizacao paralela que fax do sofrimento e do pe- cado a expressfio das mesmas poténciais maléticas, ‘Tal € 0 fundo tenebroso, nunca completamente des- mistificado, que faz da mal um tinico enigma. I — Os niveis de discurso na expeculacio sobre o mal Nao podemos nos inelinar em diregiio as tao célas propriamente ditas, inquietas com a néo- contradicag © a totalizcao sistematica, sem ter pereorride varios niveis de diseurso de onde se ll- berta uma racionalidade crescente. 1. © nivel. do mito Seguramente, o mito é a primeira maior tran- siglo. B sob diversos modos, Em primeiro lugar, a ambivaléncia do sagrado, enquanto tremendum fascinosum, segundo Rudelf ‘Otto, confere ao mito o poder de assumir tanto a lado tenebroso como o lado luminoso da condigiio ‘humana. Em seguida, o mito incorpora a experién- cia fragmentéria do mal nas grandes narrativas da origem. da. contribuic&io césmica, onde a antropo- génese se torna uma parte da cosmogénese, como mostra claramente a obra de Mircea Eliade. Di- 26 wendo como o mundo comegou, o mito dig como a ‘condigo humana, foi gerada, sob sua forma, global- mente miseravel. As grandes religiées guardaram, desta procura de Inteligibilidade global, a funco ideclégica maior, segundo Clifford Geertz, de inte- grar o ethos ¢ o cosmos em uma visio englobante. E por isso que o problema do mal se tornara, nes estagios ulterlores, a maior crise da religifio, Mas a fun¢ao de ordem do mito, ligade segun- de Georges Dumézil & sua contribuigéo césmica, tem por eorokirio e por corretivo a profusio de seus esquemas explicativos. O dominio do mito, como o atestam as literaturas do Oriente Antigo, da India e do Extremo Oriente, revela-se um vasto canteiro de experimentacio, até mesmo de jogo, com as hipé- teses as mais variadas e as mais fantdsticas. Neste imenso laboratério, ndo ha solugao definitivamen- te concebida que ndo tenha sido tentada em rela- cao & ordem das coisas, e, conseqiientemente, na solugao do enigma do mal. Para dominar esta infi- nita variedade, a historia comparada das religides e a antropologia cultural supdem tipologias que distribuem as explicagdes miticas por entre 0 mo- nismo, 0 dualismo-ou solucdes mistas, etc. O carater abstrato destus taxinomias, proveniente de um inevitavel artificia metodolégico, nfo deve masca- rar as ambigilidades ¢ os paradoxes, freqiientemen- te calculades de modo sabio, que a maior parte dos mitos cultivam, precisamente no momento de ex- plicar a origem do mal, tal como testemunba a nar- rative bibliea da peeado original, aberta a outras explicagdes além daquela que prevaleceu no Oci- dente cristio, principalmente nos seguideres de a Santo Agostinho. Estas classificagdes abstratas nia devem mascarar também as grandes oscilagées, no préprio interior do dominio mitico, entre reprosen- tagées, continando a um nivel as narrativas lenda- ras ¢ 0 folelore, e a outro os grandes tratados do pensamento hindu, Todavia, é através de seu lado folelérico que o mito recolhe p lado demoniaco da experiéncia do mal, articwlando-o numa lingua- gem. Inversamente, é por seu lado especulativo que prepara o caminho as teodicéias racionais, acen- twando os problemas de origem. A questiio esté eo- locada parn as filogofias e as teologias: de onde ‘vern o mal? 2. G estdgio da sabedoria Seri que o mito poderia responder de modo integral 4 esperanga dos seres humancs agentes e sefridos? De modo parcial, na medida em que vem 0 encontro de uma interrogaeao contida na pré- pria lamentacdo? “Até quando”; “por qué?" Para que o mito trouxesse somente a consolacio da ordem, substituindo a queixa do suplicante no quadro de um universo imenso, Mas o mito delxava sem resposta uma parte importante da questi; héo somente por gué?, mas por qué eu? Aqui a la- mentagao se torna queixa: pede as contas A divin- dade. No dominio biblico, por exemplo, é uma implieagao importante da Alianca que ela, acres- centa & dimensio da partitha, e do processo", Ora, "'N. da Ts Procena = movimento fratuose que sempre s esti fa: vendo; continaigede de rigvimenia, 28 se o Senhor esté em processo com seu povo, este também esté em proceso com Deus. Rapidamente o mito deve mudar seu registro: torna-se necessirio no sé contar as origens, para explicar como a. condieao humana em geral se tor nou o que ela é, mas argumentando, para explicar por que ela é assim, de modo diferente, para cada ser humano. Eo estégio da sabedoria, A primeira e a mais tenaz das explicages oferecidas pela sabe- doria é a da retribwicdo: todo o sofrimento ¢ mere- cido porque é a punicZo de um pecado individual ou coletiva, conhecicio ou desconhecida. Esta expli- cago tem pelo menos a vantagem de compreender seriamente o sofrimento enquanto tal, como pélo distinto do mal moral. Mas esforea-se logo em anu- ler esta diferenca, fazendo da ordem das coisas uma ordem moral, Neste sentido, a teoria da retribuigao é a primeira das visées morais do mundo, para retomlar uma expressiio que Hegel aplicara a Kant. Ora, a sabedoria, porque argumenta, devia seguir orastro de uma imensa contestacdo consige mesma, até mesmo num dramitico debate de sibios no interior de si préprios A resposta da retribuicéo no era satisfatéria, a partir do momento em que uma certa ordem juridica comeyava a existir, a qual distinguia os bons dos maus e se aplicava a medir @ pena do gtau de culpabilidade de cada. um, Em relagéio a um sentide embore rudimentar de justiga, a repartigao apresenta males e pode parecer arbitraria, indisctiminada, desproporcional: por que este e nio-aquele que morre de cdncer? Por que a morte de criangas? Por que tanto sofrimento, 29 como abuso da capacidade comum de endureci- mento dos simples mortais? Be 0 livre de Job possui na literatura mundial o Tugar que se sabe, é porque primeiramente con- sidera a lamentagao coma queixa, e a queixa con- duzida ao nivel da eontestacio. Tomande como na histéria® @ fraca condigao durn justo sofredor, de um justo sem falhas submetido 4s mals duras provas, conduz ao nivel de um didlogo poderasa- mente argumentado entre Job e seus amigos, 0 debate interno da sabedoria, espicagada pela dis- cordancia entre o mal moral e o mal sofrimento. Mas o livre de Job comove-nos talver ainda mais pelo cariter enigmitico e talver deliberadamente ambiguo de sua conclusio. A teofania final, nia jornecendo,nenhuma resposta direta ao sefrimento pessoal de Job, deixa @ especulacao permanente- mente aberta em varias diregies: a visio de um eriador com desejos insondaveis, de um arquiteta eujas medidas sio incomensuréveis em relagaio &s vicissitudes humanas, pode sugerir ou que & con- solagéo € diferente escatologicamente, ou que a queixa esta colocada fora de propasito, ao olhar de Deus, mestre do bem e do mal (segundo a pala- yrade Jsaias, 45,7: “Bu formo a luz e crio as trevas, eu {ago a felieidade e erio a Infelicidade.”), ou que ‘& queixa em i mesma deve atravessar uma das provas purificadoras que se evocaré na 8* parte: as ‘ltimas palavras de Job nio so: “Também retire minhas palavras, et me arrependo sobre a poeira e sobre as cinsas?” Que arrependimento, sendo um ON. da Te Hintia de 8, arrependimento da propria queixa? E née é em vir- tude deste arrependimento que Job ama a Deus sem razdo (por nada)? Hneontraretnos estas questoes na 3. parte deste ‘texto, ¢ nos limitaremos per um memento a seguir © fio da meada da especulacao, aberta pela sabe- doria, 3. O estigio da gnose e da gnose antigndstica 0 pensamento nao teria passado da sabedoria ‘A teodicéia se a gnose nao tivesse elevado a espe- culacao ao nivel de uma gigantomaquia, onde as forcas do bem sio engajadas num combate sem traguas com os exércitos do mai, tendo em vista a libertagao de todas as parcelas de luz rendidas cati- vas nas trevas da matéria. Ba réplica agostiniana a esta visio tragica — onde todas as figuras de mal so envolvidas em um principio do mal — que cons- tituiu um dos pilares do pensamento ocidental. Nao tratando aqui tematieamente do pecaco e da culpa- bilidade, nos limitaremos ans aspectos da doutrina agostiniana que dizem respeito ao lugar do sotri- mento numa interpretacao global do mal. # a gnose, com efeito, que o pensamente ocidental colocou 0 problema do mal, como uma totalidade problema- tica: Unde malum (de onde vem 0 mal?)? Se Agostinho pode opor a visio trigica da gnose (que se classifica comumente por entre as solugdes dualisias sem levar em conta o nivel epistemologi- co especifico deste dualismo muito particular) & primeiramente porque eie pote empresiar da filo- 3 sofia, do neoplatonismo, um aparelho conceptual capaz de arruinar a aparéneia conceptual do mito racionalizado. Dos filésofos, Agostinho sustenta que o mal no pode ser entendido como substdncia, pois pensar o “ser” é pensar “inteligivelmente”, pensar “uno”, pensar “bem”, Entéio, 0 pensar filo- ‘s6fico exclui todo o fantasma do mal substancial, Por outre lado, nasee uma nova idéia de nada, e do ex nihilo, contida na idéia de uma criagio total e Sem excesso. Ao mesmo tempo, um outro concelte negativo, associado ao precedente, toma o lugar de uma distAneia éntica entre o criador e a criatura que permite falar de deficiéncie daquele que écriado enquanto tal; em virtude desta deficiéncia, torna- se compreensivel que criaturas doladas de livre es- eolha possam “deelinar-se” onge de Deus e “Ineli- nar-se" em diregio ao que tem menos ser, em diregio no nada, ‘Este primeiro traco da doutrina agostiniana merece ser reconhecido como tal, como a conjun- cao entre @ ontologia e a teologia num discurso novo, o da onto-teo-logia, © coroldrio mais importante desta, negaeiio da substancialidade do mal € que a confissio do mal fundamenta sua visio exclusivamente moral, Se & questo unde malum? perde todo o sentido ontold- gico, a questiio que a substitul, unde malum facia mus? (de onde vem e por que fazemos o mal?), balanga todo o problema do mal ne esfera do ato, da vontade, do livre arbitrio. O pecado introduziu um nada de um género distinte, um nihil priva- tioum, de cuja queda é inteiramente responsivel, a2 qualquer que seja, a do homem ou das criaturas mais elevadas, tais come os anjos. Deste nada nao se pode procurar qualquer causa além da. mé von- tade. O Contra Fortunatum extrai desta visio mo- ral do mal a canelusio que aqui mais nos importa, isto ¢, todo mal é, seja peceatum (pecada), seja poena (pena), uma visio puramente moral do mal, ¢ conduz, por seu lado, a uma visio penal da histé- via: nao existe alma injustamente precipitada na infelicidade. © prego a pagar pela coeréncia da doutrina é enorme, e sua magnitude devia aparecer por oca- slo da querela antipelagiana, separada da querela antimaniqueista por varias dezenas de anos. Por dar crédito & idéia de que todo 0 sofrimento, tio injustamente repartide ou tio excessive que seja, 6 uma retribnigao do pecado, é necessério dar a este uma dimensio supra-individual, histérica, até mesmo genérica; é a resposta da doutrina do “pe- eado original” ou “peeade de natureza”. Nio se tragarao aqui as fases de sua constitui¢do (inter pretagao literal do Gen, 3 relegada pela énfase pauliniana do Rom, 5, 12-19, justitieagio do batls- mo das criangas, ete.). Sera notado somente 0 status epistemolégico ou 0 nivel de discurse da pro- posigéio dogmatica sobre o pecado original. Rasen- ejalmente, esta proposicio eondensa um aspecto tundamental da experiéneia do mal, isto 6, a expe~ riéncia ao mesmo tempo individual e comunitaria da impoténeia do homem perante a poténcia de- moniaca de um mal “ja 14”, antes de toda e qual- quer inielativa m4 assinalavel a qualquer intencaio deliberada. Mas esse enigma da poténcia do mal 33 ‘ja 14” 6 eolocade na falsa claridade de uma expli- cagdo de aparéncia racional: confluindo no con- ceito de pecado de natureza, duas nogdes heteragt- neas, ade uma transmissio biolégica por via de geracdo e a de uma imputacdo individual de culpa- hilidade, a nog&o de pecado original surge como um falso conceito que se pode relacionar com uma gnose antignéstica. O contetido da gnose 6 negado, mas a forma do discurso da gnose é reconstituida, isto é, a de um mito racionalizado. & por iéso que Agostinho parece mais profundo que Pelagio, porque percebeu que o nada da priva- go € a0 mesmo tempo uma poténeia superior a cada yontade individual e a cada voli¢éo singular. Por outro lado, Pelagio parece mals veridico, por- que deixa cada ser livre perante sua tinica respon- idade, tal como Jeremias e Ezequiel j4 0 tinharm feito antes, ao negarem que os fiJhos pagavam a falta dos pais De um modo rhais aério, Agostinho e Peligio, oferecendo duas verses opostas de uma visao estri- tamente moral do mal deixam sem resposta o pratesto do sofrimento Injusto, @ primeiro conde- nando-o aa siléncin em nome de uma inculpagdo em massa do género humano, o segundo ignoran- do-o em nome de uma preceupagio altamente ética. da responsabilidade. 4. 0 estdgio da teodicéia S6 se tem o direito de falar em teodicéia quan- do: 8) 0 enunciado do problema do mal repousa. sob M4 proposigdes que visam a univecidade; é o caso das ‘trés assergdes geralmente consideradas: Deus 6 todo-paderoso; sta bondade é infinita; 0 mal existe; ‘b) o fim da argumentagao é claramente apologéti- co; Deus ndo ¢ responsével pelo mal; ¢) os metos empregados devem satisfazer & logiea da ndo-con- tradicao e da totalizagéo sistematica. Ora, estas condigées s6 foram preenchidas no quadro da onto- teologia, jumtande aos termos emprestados do dis- curse religioso, essencislmente Deus, os termos ex- traides da metafisica (por exemplo, platénica ou cartesiana), tais como ser, nada, eausa primeira, finalidade, infinito, finito, ete. A teodicéia, no sen- tido restrito, € 0 florie da onto-tealogia. A este respeito, a Teodicéia de Leibniz perma- nece 0 modelo do génera, Por um lado, todas as formas de mal, ¢ nao somente 0 mal moral (como na tradigao agostiniana), mas também o sofrimen- to @ a morte, so consideradss ¢ colocadas sob a denominagao de mal metafisica, que é 0 defeito fatal de todo o ser criado, se é verdade que Deus s6 saberia criar um outro Deus. For outro lado, pro- duz na légica classica um enriquecimento, a0 acrescentar ao principio da nao-contradigaio a prin- ciplo da razdo suficiente, que se enuncia como principio do melhor, desde que se conceba a cria- cao como proveniente de uma. competicdo no enten- dimento divino, entre uma multiplicidade de mode- los de munds, dos quais um tinico compée © méxi- mo de perfeigdes com o minimo de defeltos. A nogdo de melhor dos mundos poss{vels, tio divulgada pot Voltaire em Candida, depois do desastre do ter- 4s remoto de Lisboa, sé 6 compreendida quando & apreendida através do nervo racional, isto 6 o edlculo de maximo ¢ de minimo, do qual nosso mo- delo de mundo é 0 resultado, E deste modo que o principio da razdo suficlente realiza o abismo entre © possivel 1égieo, isto 6, 0 naa-impossivel, e 0 con- tingente, isto é, 0 que poderia ser de outro moda. O desastre da Teodicéia, no prdprio interior do espago de pensamento delimitado pela onto-teolo- gia, 6 0 resultado de um entendimento finito que, nao podendo aceder aos dadas deste cdleulo gran- dios, junta apenas os signos dispersos do excesso de perfeigdes em relacdo As imperfeigées, na balan- ca. do bem e do mal. E necessario, entGo, um robus- to otimismo humano para afirmar que o balango é ‘na totalidade positive. H camo sempre possuimos unicamente as migalhas do principle do melhor, devemos nos contentar com seu coroldrio estético, em virtude do qual o contraste entre o negativo & © positive concorre para a harmonia do conjunto. Esta pretensao de estabelecer um balango positivo da balanga dos bens ¢ dos males sobre uma base quase estética fracassa, desde o que se é confronta- do a males, a dores, cujo excesso nao parece poder ser compengade por nenhuma perfeigéo conhecida, E ainda mais uma vez a lamentagio, a queixa do justo sofredor que arrufna a nopao de uma com- pensagao do mal pelo bem, como tinha antes arrui- nado a idéia de retribuigao. * ee 36 O golpe mais rude, embora nao fatal, foi dado por Kant contra a prdpria base de discurso onto- ‘teolégico sobre o qual a Teodieéia se tinha edifi- ado, de Agostinho a Leibniz. Conhece-se o impla- efvel desmantelamento da teologia racional opera- do pela Critica da Razdo Pura na sua parte intitu- Jada “Dialética Transcendental”, Privada de seu suparte ontoldgico, a teodieéia integra-se no item de “Tlusdo transcendental”. N&o quer dizer que o problema do mal desapareca da cena filos6fica. Bem ao contrario. Desliga-se unicamente da esfera prdtica, como 9 que nao deve ser e que a agio deve combater. O pensamento encontra-se, assim, numa situagdo comparivel Aquela onde Agostinho o tinha conduzido: ndo se pode mais perguntar de onde vem o mal, mas por que nés o praticamos. Como no tempo de Agostinho, o problema do sofrimento é sacrificado pelo problema do mal moral. No entan- to, com duas diferencas. De um lado, o sofrimento deixa de estar ligado @ esfera da moralidade, entendide como puniga. Distingue-se do juizo feleoldgico da Critica do Juizo, 0 qual, aliés, autoriza uma apreciagao rela- tivamente otimista das disposigées das quais o homem ¢ dotado por natureza, tal como a disposi- gio A sociabilidade e & personalidade, disposigdes que o homem deve cultivar. E em relagio a esta tarefa moral que o sofrimenta é obliquamente en- tendido no nivel individual, mas sobretudo no plano que Kant designa cosmopolita, A origem de mal- sofrimento perdeu assim toda a pertinéncia filo- s6fica, u Por outro lado, a problemétiea do mal radical, sobre a qual se abre a Religito nos limites da simples razdo, rompe francamente com a do pecado original, em detrimento de algumas semelhangas, Nao 86 nenhum recurso a esquemas juridicos ¢ bio- Jégicos confere ao mal radical uma inteligibilidade falaciosa (Kant, neste sentido, seria mais pelagiano que agostiniano), mas o prinefpio do mal niio é de modo nenhum ums origem, no sentido temporal do termo: € somente a maxima suprema que serve de fundamento subjetivo filtimo @ todas as maxi- mas mas de nosso livre-arbitrio; esia maxima su- prema fundamenta a propensdo (Hang) ao malem todo 0 género humano (neste sentido Kant é con- duzido para 9 lado de Agostinho) aa encontro da predisposigéo (Anlage) ao bem, constitutiva da ‘vontadie boa. Mas a razdo de set deste mal radical “ingondavel” (unerforschbar): “niio existe para nds ragiio compreensivel para saber de onde o mal moral pode primeiramente nos vir." Como Karl Jaspers, admire esta wiltima declaragio: como Agostinha, e talvez como o pensamento mitico, compreende-se 0 fundo demonfaco da Mberdade humana, mas com a sobriedade de um pensamento sempre atento & nio-transgressiio dos limites do conhecimento © & preservacao do distanciamenta entre pensar ¢ conhecer atranés do objeto. Contudo, 0 pensamento especulativo néo se desarma perante o problema do mal, Kant ndo ter- minou com o teologia racional: restringiu-a a uti- lizar outros recursos diferentes deste pensamenta — deste Denken — que o limite de conhecimenta por objeto colocava na reserva. Testemunho disto ¢ 38 a extraordinaria foragdo de sistemas na época do idealismo alemao: Fichte, Schelling, Hegel, para nio falar de outros gigantes como Hamann, Jaco- bi, Novalis. O exemplo de Hegel é particularmente notivel do ponte de vista dos niveis de discurso, que € aqui © nosso, pelo papel que nele desempenha o pensa- mento dialético, ¢, dentra da dialética, a negativi- dade que Ihe assegura o dinamismo, A negativida- de é, em tados os niveis, o que constrange cada figura do Espirito a se jogar em seu contrario e a gerar uma nova figura que ao mesmo tempo supri- me e conserva a precedente, segundo o sentido du- plo do Aufhebung hegeliano, A dialética faz assim coincidir, em tadas as coisas, o tragico e o ligieo: é necessirio que alguma coisa mora para que al- guma coisa maior nasa, Neste sentido, a infellei- dade esté em todo o lugar, mas em tode o lugar ultrapessada, na medida em que a reconciliagéo a conduz sempre a uma dilaceraco. Assim Hegel pode retomar o problema da teodicéia de ponto onde Leibniz o tinha deixado, por falta de recursos diferentes do principio da razfo suficiente. Dois textos sfo, a este respeito, muito signifi- cativos. O primeiro, vamos lé-lo no Capitulo VI da Fenomenologia do Espirito ¢ diz respelto & disso- lug&o da visio moral do mundo; é interessante notar que se situa no fim de uma longa secdo intitulada “0 espirito que esta certo de si mesmo” (Der seiner selbst gewisse Geist — ed. Hoffmeuter, p, 423 © ss.) e antes do Capitulo VII, intitulade Reli- gido. Este texto é intitulade “O mal e seu per- dao”. Mostra o espirito dividido no interior de si 7” mesmo entre a “convicgio” (Ueberzeugung), que anima os grandes homens de aco e se encarna ‘nas suas paixdes ("sem o que nada se fax de grande na histéria"!) ea iéncia julgante”, exempll- fieada pela “bela alma”, da qual se dir mais tarde que tem as méos limpas, mas que nfo tem maos. A consciéncia julgante denuncia a violéncia do ho- mem de conviceao, que resulta da particularidade, da contingéncia e do arbitrio de sua inteligéncia, Mas também deve confessar sua prépria finitude (ela, consciéneia), sua partieularidade dissimulada na sua pretensao A uhiversalidade e, fmalmente, a hipocrisia de uma defesa do ideal moral que se re- fugia numa {nica palavra. Nesta unilateralidade, nesta dureza de coraeiio, a consciéncia julgante descobre um mal igual ao da consciéncia agente. Antecipando a Genealogia da moral de Niewwsche, Hegel percebe o mal contide na propria acusagao de onde masce a viséo moral domal. Em que consiste desde entéo o “perdio"? Na desisténcia paralela de dois momentos do espirito, no reconhe- cimento miituo de sua particularidade e na sua reconciliagio, Essa reconciliagdo nio ¢ outra sendo 0 “espirito (enfin) certo de si mesmo”. Tal como em Sao Paulo, a justificacdo nasce da destruigao do juizo de condenagao. Mas, diferentemente de Sao Paulo, o espirito ¢ indistintamente humano e divino, pelo menos neste estigio da dialética. As filtimas palavras do capitulo sio: “O Sim da recon- ciliagdo, no qual os dois cus desistem de seu ser-ld oposto, é 0 ser-ld do eu estendido & dualidade, Eu que permanece igual a si-proprio e que em sua completa alienagio e em seu completo contrario, 0 possuti a certeza de si mesmo; ele 6.0 Deus se mani- festando no meio deles que se afirmam como puro saber.” (Trad, J. Hyppolite, I, p. 200.) A questo €, entao, saber se esta dialética néo reconstitul, com os reeursos Idgicos de que no dis- punha Leibniz, um otimismo proveniente da mesma audicia, mas também de uma hybris racional talvez maior ainda. Que futuro esta reservado, com efeito, ao sofrimento das vitimas numa visao de mundo onde o pantragismo é sempre recuperado no panlogismo? Nosso segundo texto responde mais diretamen- te a esta questo, dissoclando radicalmente a re- cenciliagde da qual se tem falade de toda a consola- co que se dirigiria ao homem enquanto vitima. ‘Trata-se da secaio ben conhecida da Introducdo a Filosofia da Histéria, consagrada a “astitcia da razao”, que constitui talvez, em si prdpria, a tiltima astiicia da teodicéia, Quando noquadro de uma filosofia, da histéria este tema aparece, adverte-nos que o futuro dos individuos é intelramente subor- dinado ao destino do espirite de um povo (Volks- geist) © aa do espirito do mundo (Weltgeist). B mais precisamente no Estado moderne, ainda como estado nascente, que o fim ultimo (Fndzweck) do espirito, a inteira atualizngaio (Verwirklickung) da liberdade, se deixa captar, A asticia da razio con- siste na utilizacio pelo espirito do mundo das palxdes que animam os grandes homens e que fazem a histéria e desdobram uma segunda inten- ¢S0, dissimulada na inteneSo primeira dos fins egoistas que as suas paixdes Ihes fazem perseguir, al ‘Sao os efeitos nfio-pretendidos da agéo individual que servem aos planos do Wellgeist através da con- tribuigaio desta ago, aos fins mais préximos perse- guidos fora de cada “espirite do povo" ¢ enearnadas no Estado correspondente. A tronia da filosofia hegeliana da histéria re- side em supor que fornece um sentide inteligivel 0s grandes movimentos da histéria — questo que nao discutimos aqui — é exatamente na medida em que 8 questiio da felicidade e da infelicidade 6 aba- lida, A histéria, diz-se, “no é 0 lugar da felicidade”. (Trad. Papaionnou, p. 116.) Se os grandes homens da histéria possem uma felicidade frustrada pela histéria que fazem deles, que diver das vitimas ané- homas? Para nos que lemos Hegel depois de todas as eatéstrofes e todos os sofrimentos do século, a dissociacao operada pela filosofia da historia entre cansolagéo € reconciliagdo tornou-se uma grande fonte de perplexidade; quanto mais o sistema pros- Pera, mals as vitimas séo marginalizadas, O éxito do sistema faz 0 seu fracasso, O sofrimento, através da vor da lamentagao, 0 que se exclui do sistema. & preciso ent&o renunciar a pensar o mal? A teodieéia atingiu o primeira degrau com o prinei- pio do melhor de Leibniz e um segundo com a dinlética de Hegel. Nao existirla um outro uso da dialética a nfo ser a dialética totatizante? Esta questo, vamos coloca-la a teologia crista, mais exatamente a uma teclogia que teria rompido com a confusdo do humano e do divino sob 0 Uitulo ambiguo do espirito (Geis!), que teria, por outro Indo rompido com a mistura do discurso religiaso 2 e do discurso filoséfico na ontotelogia, que teria renunciado ao proprio projeto da teodicéia. O exem- plo que seguimos 6 0 de Karl Barth, que nos parece a perfeita réplica a Hegel, tal como Paull Tillieh, em um outro estudo diferente do nosso, sera a réplica a Schelling. 5, O estdgio da dialética “quebrada” No inicio do famoso artigo da Dogmadtiea, in- titulade “Deus e 0 Nada” (Gott und das Nichtige, val, IIT, tomo 8, 850, trad. franc. de F. Ryser, Gené- ve, Labor et Fides, 1963, vol. 14, p. 1-81), Barth afirma que s6 uma teologia “quebrada”, isto é, uma teologia, que teria renunciado & totalizacao siste- matica, pode s¢ engajar na via temivel de pensar o mal. O problema seria. saber se Barth permaneceu fiel até o fim a esta sua declarag&o inicial. Quebrada 6, com efeito, a teclogia que reco- nhece ao mal uma realidade inconcilidvel com a bondade de Deus e¢ com a bondade da criagao, A esta realidade, Barth reserva o nome de des Nich- tige com o fim de distingui-la radicalmente do lado negativo da experiéncia humana, sé levada em eon- ta por Leibniz e Hegel. & preciso pensar num nada hostil a Deus, um nada nao somente de deflelén- cia ¢ privagiio, mas de corrupgao ¢ de destruicéio, ‘Assim faremos justica, ndo somente a intuigao de Kant do cariiter insondivel do mal moral, enten- dido como mal radical, mas também ac protesto do sofrimento humana que recusa se deixar incluir no cielo do mal moral, a titulo de retribuigae, e mesmo B de se deixar enrolar na bandeira da providéncia, outro nome dado & bondade da criagio, Sendo tal © ponte de partida, como pensar mais que as teo- dicéins clissicas? Pensando diferentemente, E eomo pensar diferentemente? Procuranda na cristologia © nero doutrinal, Reeonhece-se af a intransigéneia de Barth: o nada, é que o Cristo o venceu, se ani- quilando 9, si mesmo na Cruz, Voltande do Cristo a Deus, é preciso dizer que em Jesus Cristo, Deus encontrou e combateu o nada, e que desse mado “conhecemas” o nada. Uma nota de esperanca é aqui inclufda: a controvérsia com o nada sendo assunto do proprio Deus, nossos combates contra 0 mal tornam-nos co-beligerantes, Bem mais, se acreditamos que, em Cristo, Deus venceu o mal, de- ‘vemos acreditar também que o mal nao pode mais nos aniquilar: nao é mais permitide falar dele como se ainda tivesse poder, como se a vitéria fosse uni- camente futura. E por isso que o mesmo pensamen- to que atestou a realidade do nada deveria se gra- tificar atestando que ele ja esta vencido. S6 faltaria entéo a plena. manifestagia de sua eliminagio,

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