- DA LAMA À FAMA-
Leadbel/y B.B. King
Muddy
Waters
Lightnin'
Hopkins Bessie
Smith
Ma Rainey
Howlin'
Blind Wolf
Lemon
Robert
Jeffer:son
T-Bone Johnson
Walker
Leroy
Carr John Lee Hooker
Willie Dixon
Big Bill
Broonzy
Sonny Boy
ed itorall34 Williamson
Lonnie Johnson
"Os blues são as raízes e as outras mú-
sicas são os frutos. É bom manter as raízes
vivas, porque isso significa melhores frutos
para o futuro" . Sábias palavras de Willie D i-
xon, que além de baixista, arranjador e com-
positor de clássicos da espécie como Hoochie
coochie man, Back doar man, Little red
rooster, Spoonful e I can't quit you foi um
dos principais produtores do ramo.
A seu trabalho pode ser creditada parte
importante da revalorização do gênero, a par-
tir da redescoberta tardia de lendários blues-
men como Howlin' Wolf, Muddy Waters e
Lightnin' Hopkins por fundadores do rock
como Eric Clapton, Paul McCartney, Keith
Richards ou Jimmy Page. Garotos brancos
ingleses cuja maior ambição era tocar e can-
tar como os negros dos campos de algodão
do Mississippi.
O jornalista, escritor e saxofonista Ro-
berto Muggiati, autor dos livros Rock: o gri-
to e o mito (Vozes, 1973), O que é jazz (Bra-
siliense, 1983), Rock: do sonho ao pesadelo
(L&PM, 1984) decupa esta saga com rique-
za de acordes.
Das origens geopolíticas, musicais, à poe-
sia do estilo, passando pelas divas (Bessie
Smith, Ma Raney) e ícones (de Robert John-
son a Robert Cray), além dos troncos e ga-
lhos brotados das raízes adubadas pela lama
do Delta. Que tanto levam ao jazz de Charlie
Parker e Wynton Marsalis, quanto ao rock
de Elvis Presley e Bill Haley e ao sou! de Ray
Charles e Aretha Franklin. De Stevie Wonder
e Michael Jackson a Miles Davis e Bob Dy-
lan, todos tem alguma dívida com cegos len-
dários como Blind Lemon Jeffe rson ou mar-
ginais desbravadores como Leadbelly.
"Gosto de sair andando por um blues e
ver até onde ele nos leva'', ciceroneava Jim
Morrison, o crepitante líder dos Doors. "Des-
de o d ia em que comecei a cantar para valer,
só cantei blues", sentenciava em carne viva
]anis Joplin.
Diretor-editor da revista Manchete, Mug-
giati, que trabalhou na BBC de Londres e cur-
sou como bolsista o Centre de Formation des
Journalistes, de Paris, rastreia as pegadas -
16 3 2 13
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4 15 14 1
SFSC
YIUllARIAH
Coleção Ouvido Musical
Roberto Muggiati
BLUES
DA LAMA À FAMA
editora•34
EDITORA 34
Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (011) 816-6777 editora34@uol.com.br
ISBN 85·85490-66·7
CDD - 784.53
95-0708 CDU - 784.4
BLUES
DA LAMA À FAMA
DA LAMA À FAMA
Bibliografia............................................................................................................. 217
Discografia.............................................................................................................. 219
Vídeos ......................................................................................................................... 221
GREAT B~ GUITARISTS
. STRING DAZZLERS
Blues 9
But the Bible and Jesus
Made a slave of the nigger.
("O branco usa o chicote / O branco usa o gatilho /Mas a
Bíblia e Jesus/ Fizeram do negro um escravo.")
Esta rebeldia era já um germe do blues. Mas a sua voz mais autênti-
ca vinha do grito original. Os berros negros eram expressões tão pessoais
que identificavam imediatamente quem os emitia. "Aí vem o Sam", co-
mentava a namorada ou o amigo. "Will Jackson está chegando." Ou,
ainda: "Acabo de ouvir Archie dobrando a esquina." Os gritos eram uma
forma de comunicação nos campos do Sul e muitas canções evoluíram a
partir deles. Eram ouvidos também nas ruas das cidades, onde vendedo-
res ambulantes negros anunciavam seus produtos ou serviços através de
um pungente canto rítmico, expressão semimusical de rara beleza. Alguns
destes gritos foram gravados nas ruas de Charleston, Carolina do Sul, no
início do século, e preservados em disco. (No LP da Riverside A History
of Classical Jazz.) George Gershwin- que absorveu muito do blues em
sua música - incluiu alguns refrões de vendedores da rua em sua ópera
de 1935 Porgy and Bess, como Strawberry Woman, Honey Mane Crab
Man, ou seja, os gritos da mulher dos morangos, do vendedor de mel e
do vendedor de caranguejos. Havia ainda os negros que anunciavam a
chegada e a partida dos trens nas estações, autênticos artistas do grito.
Esta marca individual se projetou também no blues. Existiam blues de
Blind Lemon, blues de Willie Johnson, e assim por diante. O bluesman
Son House especulava, em 1965:
10 Roberto Muggiati
numa cabana do Delta, um cantor que conhecia as melodias e
os versos improvisados das work-songs do Mississippi decidiu
cantá-las de uma maneira nova e assim nasceu o blues."
Blues 11
"À meia-noite fui acordado por uma forte gargalhada e,
olhando pela janela, vi que o bando de carregadores negros ti-
nha feito uma fogueira e estava desfrutando um alegre repasto.
Subitamente, um deles emitiu um som que eu nunca ouvira an-
tes; um grito longo, forte e musical, subindo e descendo, trans-
formando-se em falsete, sua voz atravessando a mata e cortan-
do o ar límpido e gelado da noite como um toque de clarim.
Quando terminou, a melodia foi continuada por um outro e, em
seguida, por vários, em coro ... "
Este som único do grito que veio da África reflete características cul-
turais típicas que têm desafiado análises segundo os padrões convencio-
nais da musicologia ocidental. A célula básica do blues é a chamada blue
note - a nota blue, que ocorre na terceira e na sétima (querem alguns
também na quinta) notas da escala européia. Ou seja, na tonalidade de
Dó maior, o Mi e o Si eram bemolizados, isto é, diminuídos de meio tom:
12 Roberto Muggiati
tos de sopro - como trompete, clarineta e saxofone - ou de corda, como
violão e banjo, que possuem tonalidades fixas. Mas, na prática, podem
ser tocadas em qualquer instrumento, com exceção dos xilofones e dos
teclados. Mesmo assim, o piano se adaptou admiravelmente ao blues e
criou um de seus mais importantes derivados, o boogie-woogie. O violão
resolveu o problema, inspirado nas técnicas da guitarra havaiana, com o
estilo slide (de "deslizar") ou bottleneck ("gargalo de garrafa"): o músi-
co dobrava as notas correndo ao longo das cordas um pedaço de metal,
como uma faca, ou um gargalo de garrafa enfiado no dedo.
Alguns chamaram as blue notes - chocantes para ouvidos não-ini-
ciados - de notas "rebeldes". Muitas vezes, no jargão dos músicos, elas
eram dirty notes, "notas sujas". Comentou o chefe de orquestra Rudy
Vallee, ídolo da classe média americana, em 1930: "Tenho tocado uma
certa nota meio bárbara no meu saxofone e observado o seu efeito sobre
as platéias, a agitação dos pés e das pernas jovens." Vallee talvez nem
oubesse, mas tinha descoberto a blue note. Já o francês Darius Milhaud
e o americano George Gershwin foram os primeiros a botar casaca nas
blue notes e a levá-las para as salas de concerto eruditas com La Création
du Monde (1923) e Rhapsody in Blue (1924) . Outros públicos, além do
negro, começavam a tomar conhecimento do blues.
Estruturalmente, o blues acabou se fixando numa forma bastante
rigorosa, quase clássica: 12 compassos, divididos em três partes iguais,
no esquema A-A-B, com um acorde diferente sublinhando cada parte. O
egundo verso invariavelmente repete o primeiro:
lues 13
A origem da estrofe do blues pode estar nas antigas baladas anglo-
saxônicas - as ballits que os negros aprenderam na América. Misturan-
do o seu grito primai com as canções de trabalho e com as canções de ninar,
com a harmonia dos hinos religiosos e com a estrutura das baladas, o negro
americano chegou ao blues, sua principal forma de expressão. Nada me-
lhor do que um professor de literatura e historiador do jazz, Marshall
Stearns, para definir a estrofe do blues:
14 Roberto Muggiati
Mas, como destaca Paul Oliver em seu estudo The story of the Blues,
nenhum instrumento possuía a flexibilidade do violão para acompanhar
a música fundamentalmente vocal do blues:
15
também é usada com esta conotação: "Ele concluiu sua arenga com um
suspiro e eu vi que ainda estava sob a influência de toda uma legião dos
blues." O próprio Thomas Jefferson-quem diria? - escreveu em 1810:
"Nós somos assaltados às vezes por algo dos blue devils. " Nos anos 1830
ou 1840, dizer que a pessoa tinha os blues significava que estava aborre-
cida; em 1860, já significava infelicidade. Um dos primeiros registros es-
critos da palavra está no diário de Charlotte Forten, uma negra que nas-
ceu livre no Norte e foi trabalhar como professora de escravos na Caro-
lina do Sul. Em 14 de dezembro de 1862, ela anotou no seu diário: "Não
tinha dormido mais do que dez minutos quando fui acordada pelo que
me pareciam gritos terríveis vindos dos alojamentos dos escravos. " Os
gritos a perturbaram de tal maneira que no dia seguinte, um domingo,
ao voltar da igreja, ela anotou no diário: "Ouase todo mundo estava ale-
gre e feliz; eu, no entanto, voltei para casa com os blues. Joguei-me na
cama e, pela primeira vez desde que aqui cheguei, m e senti muito solitá-
ria e lamentei minha sorte." Pouco depois, em 1886, em Vida no Exérci-
to, de um tal de Gregg, aparece o desabafo: "Foi muito bom para mim
aquele dia em que pude enxergar o lado mais iluminado do caso e evitar
um severo ataque dos blues... "
Se a origem da palavra está cercada de mistérios, a trajetória da música,
em compensação, se amarra a algumas datas-chave. O pianista e band leader
de Nova Orleans Ferdinandjoseph La Menthe, mais conhecido como Jelly
Roll Morton, que se intitulava "o inventor do jazz em 1902", também se
atribuía a paternidade do blues. Ele teria composto em 1905 The ]elly Roll
Blues, mas só o publicou em 1915 em Chicago. Ironicamente foi um vio-
linista branco de uma orquestra de dança de Oklahoma City, Hart Wand,
quem publicou pela primeira vez a palavra blues numa canção, em março
de 1912: The Dallas Blues, que não era tecnicamente um blues. Ó primei-
ro blues de verdade foi publicado poucos meses depois, ainda em 1912,
por W.C. Handy, que se intitularia "O Pai do Blues": era uma nova ver-
são de uma canção chamada Mister Crump, que Handy tinha composto
para a campanha eleitoral do prefeito Edward H. "Boss" Crump e fizera
sucesso não só em Memphis, mas em outras cidades. Com o título de The
Memphis Blues, ela passou para a história como o primeiro de todos os
blues. O mais famoso deles viria logo a seguir. Em 1913, a companhia de
música de Handy publicou jogo Blues, que teria sido composto - ou pelo
menos interpretado - por um pianista local. Não foi um grande sucesso,
mas, um ano depois, Handy lhe acrescentou um ou dois toques e nasceu
assim o clássico de todos os tempos, St. Louis Blues.
16 Roberto Muggiati
Joe Moms Music Co.
l ~99 Br.u J>l'l "
:çJ<_,I,.,.
_- - - - - - - - - - - ·
I'm tired of this fim Crow, gonna leave this fim Crow town.
Doggone my black soul, I'm sweet Chicago bound.
("Estou cansado deste racismo, vou deixar esta cidade ra-
cista. /Aos diabos minha negra alma, estou a caminho da doce
Chicago.")
18 Roberto Muggiati
TERRA DO BLUES
19
branca poderia ser acusado de "estupro". Se um negro ia pedir a um bran-
co um dinheiro que este lhe devia e por acaso tinha no bolso um pequeno
canivete, ainda que fechado, podia ser acusado de "roubo à mão armada".
E isso, no Mississippi, podia valer ao negro a prisão perpétua. Quando o
branco precisava construir uma estrada ou erguer um dique contra as en-
chentes, o negro era a mão-de-obra eleita. Principalmente porque saía de
graça. O branco recorria ao trabalho dos presidiários. E, quando faltávam
trabalhadores, era fácil fazer presidiários: se o negro bobeava e saía de casa
sem documentos, era preso por vadiagem; se retrucava ao branco, tinha a
pena aumentada por desacato à autoridade. Acabava vestindo o pijama
listrado e, com as bolas de ferro presas aos pés por meio de alças e corren-
tes de ferro - as famosas ball and chains tão cantadas pelos blues - , ia
trabalhar de sol a sol sem nenhuma paga. Muitos morriam nas fugas de-
sesperadas das penitenciárias. Outros recorriam aos blues. Nas penitenciá-
rias do Mississippi foram descobertos alguns dos melhores cantores de blues;
outros, tiveram atrás das grades o seu aprendizado musical.
Na atmosfera opressiva do Delta, era natural que os o negros se
voltassem para o blues. Ali vivia uma densa população afro-americana,
pobre e isolada, forçada a criar suas próprias diversões. Ainda neste sé-
culo, foi no Mississippi que etnólogos encontraram vestígios de música
africana no repertório de bandas de pífanos e tambores. Foi também no
Mississippi que o compositor W.C. Handy ouviu pela primeira vez a mú-
sica que chamou de "primitiva", um trio instrumental de blues; e foi lá
que surgiu um dos primeiros blues, Yellow Dog Blues, alusão à ferrovia
Yazoo & Delta, conhecida localmente por Yellow Dog. Neste cenário,
nasceram figuras lendárias do blues, como Ike Zinnerman, que buscava
inspiração tocando seu violão num boneyard ("canteiro de ossos"): num
cemitério, à meia-noite, sentado sobre uma sepultura qualquer.
O palco destes primeiros gigantes do blues eram as modestas jook
joints, também conhecidas como barrelhouses - barracos de madeira que
abrigavam uma mistura tosca de sala de concerto, salão de dança e bar.
A palavra vem da África Ocidental, de joog, que significa "agitar" ou
"sacudir"; e/ou do dialeto Vili do Congo, de yuka, que quer dizer "fazer
barulho, golpear, bater". Até as menores cidades do Delta tinham uma
ou duas jooks, situadas o mais longe possível da igreja local. Representa-
vam a contrapartida da missa de domingo: era nas jooks que corriam os
embalos de sábado à noite. Nestes estabelecimentos, rolava a bebida clan-
destina da Lei Seca (os proprietários pagavam à Polícia para fechar os
olhos) e os drinques eram servidos em copos de lata. Não se usavam co-
20 Roberto Muggiati
JO ou canecas de vidro. Segundo o bluesman John Shines, "as pessoas
iam aprontar confusão e abrir a cabeça das outras com aquelas cane-
-- - - eram Lugares violentos."
Ironicamente, as jooks deram o nome à máquina que acabaria com
: as jukeboxes, nas quais bastava enfiar uma moeda para tocar um disco
....2. escolha do freguês. Na terra das jook joints, as jukeboxes eram mais
21
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i; - : ; ' • : '
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23
de "dobrar" as notas do violão através do estilo slide. Corre uma versão,
beirando a lenda, de que a técnica surgiu quando um pente de bolso de
um músico havaiano caiu justamente em cima do violão, criando o som
novo ao deslizar sobre as cordas de aço. Lenda ou não, foi Joseph Kekuku,
do grupo do dançarino exótico do Havaí Toots Paka, quem gravou slide
pela primeira vez, para a gravadora de Thomas Edison em Nova Iorque
em 1909. Mas estudiosos da música afro-americana argumentam que o
slide evoluiu a partir do one string, instrumento rudimentar de uma cor-
da só, aparentado do berimbau. Um dos primeiros a fazer referência à
técnica do slide foi o compositor W.C. Handy, relatando uma viagem ao
Delta em 1903:
24 Roberto Muggiati
ruas gravações de 1929 e, embora não fosse um gênio, gravou com
-- - morte do cantor em 1934. Certa vez, durante uma briga, Bertha
o uma faca de açougueiro e cortou a garganta de Charley. O casal
- utiu o incidente, mas Patton levou para o resto da vida aquela
- - o seu pescoço. O repertório de Patton era mais amplo do que o
~"iro no Mississippi: além do autêntico blues do Delta, ele tocava
-""-'"'--"LJ- e canções folclóricas, covers de canções populares e até alguns
25
NEWS &THE BLUES ·
TELLING IT LIKE IT IS
ues 27
Um intelectual negro, o escritor Ralph Ellison, autor de O Homem
Invisível, diz que "o blues é um impulso para manter vivos na consciên-
cia dolorida da gente os detalhes penosos e os episódios de uma experiência
brutal, para ferir as mãos nestas arestas de vidro e transcender tudo ar-
rancando com os dedos um lirismo quase-trágico, quase-cômico."
Os cantores de blues, mais objetivos, dizem, como T-Bone Walker,
que para tocar o blues "é preciso viver os blues". Cada músico de blues
viveu, em maior ou menor grau, os blues. Mas ninguém os viveu como
Blind Willie Johnson, nascido em 1902 em Marlin, Texas, numa fazenda
perto do rio Brazos. Eram muitos os cantores de blues cegos que acres-
centavam o título Blind ao nome; havia até alguns falsos cegos, aos quais
o título dava status e ajudava a ganhar a vida. Willie Johnson era cego
mesmo, desde os sete anos, quando a madrasta lhe jogou ácido nos olhos
para se vingar do marido depois de uma surra. Willie cantava blues de
exaltação religiosa (Motherless Children Have a Hard Time, Lord, I ]ust
Can't Keep from Cryin') nas pequenas cidades algodoeiras do sul do Texas.
Aos 25 anos foi para Dallas, onde conheceu sua mulher e parceira de canto
Angeline. Descoberto por caçadores de talentos, Blind Willie fez algumas
gravações e tornou-se um dos grandes sucessos do disco no Sul durante
muitos anos. Quando sua gravadora faliu, em 1932, ele sumiu e nunca
mais fez um disco. Em 1949, Blind Willie e Angeline foram acordados por
um incêndio em sua casa em Beaumont, Texas. Conseguiram apagar as
chamas com baldes de água e, sem dinheiro, não tendo para onde ir, dei-
taram-se na cama carbonizada e ensopada para dormir. Willie pegou uma
pneumonia, agravada porque continuou a cantar nas ruas geladas. Final-
mente, procurou um hospital, onde se recusaram a atendê-lo porque era
cego. Blind Willie Johnson, autor da canção Jesus Make Up My Dying
Bed, voltou para casa arrasado, deitou-se na cama molhada cobrindo-se
com jornais velhos e morreu em poucos dias.
Mas o blues nem sempre é totalmente trágico. Às vezes, ri de si mes-
mo, como nesta canção de Blind Blake:
28 Roberto Muggiati
ili blues que traçam a interseção perfeita entre o coletivo e o individual:
If your house catch on fire and there ain't no water round (bis)
Throw your gal out the window and let the shack burn down.
("Se tua casa pega fogo e não existe água à mão/ Jogue a
z4/her pela janela e deixe o barraco queimar.")
It's too late, too late, too late, too late (bis)
I'm on may way to Denver and mama must I hesitate
Mmmmmmmmmm mmmmmm the T.B. is killing me (bis)
_1y mama I'm, like a prisoner. I'm always a-working the
_ ching ali over I believe I've got the pneumonia this time (bis)
~.\Jid
it's all on account of that low down gal of mine.
-com dor no corpo inteiro, acho que desta vez peguei pneu-
- E tudo por causa daquela miserável da minha mulher.")
29
zer riding the blinds, "cavalgando" nos cargueiros ou trens postais. Alguns,
mais ousados, praticavam o riding the rods: para escapar dos vigias, que
procuravam clandestinos no ·t opo dos vagões, eles viajavam pendurados nos
rods, barras metálicas que serviam de reforço debaixo dos vagões. Não era
um esporte para mulheres. Como dizia o blues de Cow Cow Davenport:
Got the travelin' blues, gonna catch a train and ride (bis)
When I ain't ridin', I ain't satisfied
I'm a ramblin' woman. I've gota ramblin mind (bis)
I'm gonna buy me a ticket and ease on down the fine.
('Estou com os blues da viagem, vou pegar um trem e ro-
dar I Quando não estou rodando não estou satisfeita/ Sou uma
mulher da estrada, tenho a cabeça na estrada/ Vou comprar uma
passagem e rolar por estes trilhos.")
30 Roberto Muggiati
a musical de mimetizar um trem, tão bem sucedida quanto o Pacific 231
"' Honneger.
a música de Robert Johnson o trem aparece com lirismo intenso,
autêntica metáfora da vida. O chamado da estrada aparece em Ramb-
'7 on my Mind: "Runnin' down to the station catch the first mail train
31
Muitos blues cantaram o ferry que levava músicos de Friars Point, no Mis-
sissippi, para West Helena, no Arkansas, onde a venda de bebidas era le-
gal. Havia um barco-bordel no Mississippi, o Katy Adams: as prostitutas
a bordo levantavam as saias e sacudiam a sacola de dinheiro pendurada
sobre o sexo para atrair a clientela. Nos anos 30, quando compositores de
standards como Gershwin e Cole Porter começavam a incorporar o avião
em suas letras, o blues também já voltava suas vistas para o ar. Em 1930,
Mother McCollurn grava em Chicago Jesus Is My Air-o-Plane: "Oh, Jesus
is my air-o-plane. / He rides over us ali, He don't ever fali/ Jesus is my air-
o-plane. " Aviões costumavam cortar os céus do Delta lançando panfletos
para anunciar discos e espetáculos. Urna destas felipetas da época diz:
32 Roberto Muggiati
rea Blues e (Eisenhower) I'm in Korea. Em 1965, Lenoir faz um pode-
depoimento musical sobre os direitos civis no LP Alabama Blues. Em
~ - ele morre aos 38 anos num acidente de carro. Imediatamente, o blue-
- britânico John Mayall lhe presta uma homenagem em forma de blues,
Death of].B. Lenoir. E, num álbum de 1969, Mayall - que também
na Coréia - dedica outra música "a J.B. Lenoir, cujo talento ainda
- .:oi devidamente reconhecido", I'm Gonna Fight Four You ].B..
O naufrágio do Titanic, a travessia do Atlântico por Lindbergh, o
- da Bolsa em 1929, o desemprego e a depresssão dos anos 30, as
do pugilista Joe Louis, o ataque japonês a Pearl Harbor e o lan-
,...._____..._-o da bomba atômica - todos estes temas acabaram em blues. Mas
ro maior do blues, aquele que não só ocupa a maior quantidade
_ ~ ioneiro, mas elevou também o blues ao seu mais alto grau de
•.,......_""4de foi o amor e o sexo.
_ - o há espaço no blues para o romantismo adolescente das canções
média branca, daqueles que rimam Moon com]une. O amor no
e ser infeliz - o que acontece na maioria das vezes - mas tam-
-~ e e positivo, geralmente quando o cantor ou a cantora exaltam
='or erótico valendo-se de imagens domésticas ou culinárias. ]elly-
; ·e de pão doce ou rocambole, entrou para a gíria já no final do
~como representativo de "vagina", "ato sexual", "amante", "ta-
. Amor e sexo no blues são sempre maduros e diretos. Mui-
hocantemente diretos, como em Copulatin' Blues, de Howard
- ohnson:
~ lues que diz: "J used to lave you, but oh, God damn now!"
- amava, mas, ora, vá pro raio que te parta!").
:é um blues de Frank 'Son' Seals intitulado Your Lave Is Like
aginaram Frank Sinatra chegando ao topo da parada de
uma canção que proclama "teu amor é como um câncer"?
enente de blues que canta amores malsucedidos baseada
,.,......---"""-'..,,....-·..... Alguém colocou um "mau olhado" ou "rogou um pra-
maldições e as defesas contra elas são agenciadas atra-
....._,,•..._....- . . ,- e amuletos, os mojos tão freqüentemente citados nas le-
33
tras de blues. Mas isto já faz parte da magia ancestral que veio da Áfri-
ca. No confronto com a realidade concreta do século 20 na América, o
cantor de blues se exprime, em relação ao sexo e ao amor, com admirá-
vel lucidez e lirismo. Como diz o historiador de literatura e de música
Marshall Stearns, "a linguagem do blues é enganosamente simples. Por
trás de tudo há um ceticismo agudo que penetra na fachada florida de
nossa cultura como uma faca."
34 Roberto Muggiati
LUES NA ESTRADA
35
Huddie Leadbelly: o favorito da polícia
ano de cadeia, no condado de Harrison, mas no terceiro dia saltou
e fugiu para a liberdade através de uma plantação. Em outro
;:isando o nome falso de Walter Boyd e intitulando-se "O Rei dos
e Violão de 12 Cordas do Mundo", Leadbelly atravessava com
anheiros a parte rasa de um rio na confluência dos Estados de
sas e Oklahoma. Um deles falou que Huddie havia visto algo
o outro. Este puxou o revólver - os três estavam armados -
~,._,_...,._lly foi mais rápido e deu-lhe um tiro na testa. No dia 13 de
e 1917, foi condenado a 30 anos de prisão na penitenciária
.,. haw. Tentou fugir, tentou afogar-se num lago - não conse-
·olta por cima: tornou-se o chefe do melhor grupo de traba-
- :ia prisão e o artista preferido dos presos. Um dia, a prisão rece-
-- do governador do Texas, Pat Neff, com a Primeira Dama e
eadbelly cantou, tocou, dançou e improvisou até uma canção
· perdão ao governador. Neff era famoso por nunca ter per-
-.;:, ém. Prometeu a Leadbelly: "Vou libertá-lo um dia, mas ago-
e tocar para mim." Um dia antes de terminar o mandato, em
- _ ºeff deu ordens para que Leadbelly fosse solto. Ele passara seis
. , . . :neses e oito dias na prisão.
-é e azar continuava. Em 1930, Leadbellyvoltou à prisão, desta
enda Estadual de Louisiana, em Angola, com a sentença de dez
- - ·er esfaqueado seis homens que queriam tomar a sua marmita
~v....:u uísque nela ... Mas a sorte finalmente chegou. John e Alan
111mnn.... - - e filho, eram obcecados caçadores-de-sons e percorriam as trilhas
Escadas Unidos com o seu gravador tentando recolher música
.::e rodo tipo. Encontraram Leadbelly na penitenciária de Ango-
ou outro apelo de perdão, desta vez endereçado ao governa-
iana, O.K. Allen. No outro lado do disco, feito em alumínio,
-eg:i trava um de seus clássicos, Goodnight Irene. Um ano de-
xava as grades e tornava-se motorista de John Lomax, condu-
-:isões, plantações, jook joints, igrejas, bordéis e o que fosse. Além
Lomax em sua pesquisa de campo, Leadbelly era introduzido
~ circuito universitário, em palestras sobre folclore seguidas de
~g>es musicais. A presença daquele negro tição em meio a um públi-
l"J!"'!;C::Si!zan· o branco chocava, principalmente quando ele, num tom muito
endava: "Nunca matem mulheres, isto será o seu fim."
- o de mulher, Leadbelly resolveu se aquietar um pouco. Em
- e com Martha Ledbetter, em Connecticut. A esta altura, ele
o casamento muito sério, na área profissional. O trabalho
IUUW: 37
dos Lomax adquiria uma importância extraordinária e tudo o que eles
faziam contava com o apoio do governo e se destinava aos arquivos da
Biblioteca do Congresso em Washington. E foi em Connecticut, no chalé
da folclorista Mary Elizabeth Barnicle, que aconteceram as principais
gravações do repertório de blues, baladas, hollers, quadrilhas, canções de
trabalho e de cabaré feitas por Leadbelly. Além de tudo isso, os Lomax
começaram a trabalhar numa biografia de Huddie.
A carreira do ex-marginal de repente entrou em alta. En Nova Iorque,
Leadbelly tocava para universitários e em clubes, fazia programas de rá-
dio e engajava-se em causas políticas trabalhistas de esquerda.
Agradava, apesar de não fazer concessões: "Nunca um branco foi
capaz de fazer um blues, porque não tem nada com que se preocupar, não
tem problemas do tamanho do nossos."
Uma coisa Leadbelly sempre admitiu: a influência de Blind Lemon
Jefferson. Os cantores de blues cegos são uma tradição. Jefferson era uma
lenda. Leadbelly diz que o conheceu em Dallas em 1904; que o conheceu
durante 18 anos. O que se sabe é que por um tempo Leadbelly e Lemon
cantaram nos bares de Dallas e nas escadarias das estações ferroviárias
do Texas. Às vezes viajavam até Silver City, terra de dinheiro (e mulher)
fácil. "Gostamos de mulheres por aqui", dizia Huddie, "porque quando
tem mulher os homens trazem dinheiro. E com homens, mulher e dinhei-
ro rolando, a gente quebra tudo com aquelas guitarras ... "
Ele evoca, em sua linguagem colorida, a vida na estrada com Blind
Lemon:
38 Roberto M uggiati
Leadbelly: da prisão à eternidade
velho Lemon e eu nos sentávamos no meio daquele vagão ra-
cista com todo mundo de pé à nossa volta, ouvindo e batendo
palmas. E nós viajávamos naqueles violões, cantando e berran-
do o caminho todo até Silver City ou qualquer outro lugar. E
enquanto Lemon trabalhava um verso, eu me intrometia, ber-
rando: 'Blind Lemon era um cego!' E o velho Lemon devolvia
o berro: 'Leadbelly era gente fina!"'
40 Roberto Muggiati
LeYivido pelos jovens da canção folk que faziam música inspirados
es como ele e no branco de Oklahoma, W oody Guthrie. Em 19 8 8,
- do um disco, A Vision Shared, espécie de tributo dos músicos jovens
- :ie e Leadbelly. As gerações passam, mas a força da música de Huddie
__......._,.._._.: permanece, com a mesma vitalidade e urgência dos tempos he-
~o blues na estrada.
11111111111: 41
Blind Lemon Jefferson: o homem que enxergava com os dedos
D LEMON JEFFERSON
CEGO NA ESQUINA DO BLUES
uem nascia cego no Sul, só tinha uma saída: cantar os blues. Nas
as, com uma latinha presa à guitarra por arame para recolher as
as eles cantavam e se acompanhavam, sob o sol escaldante do ve-
com os dedos endurecidos pelo vento cortante do inverno. A his-
do blues está cheia de seus nomes: Blind Willie Johnson, Blind Blake,
Boy Fuller, Blind James Brewer, Blind Arvella Gray, Blind John
_ Walker, Blind Columbus Williams, BlindJoe Taggart, Blind Archie
n e o mais famoso de todos, Blind Lemon Jefferson. Lemon, nome
eiro, porque nasceu gordinho como um limão, em 1897, na cida-
de Wortham, no Texas, um dos sete filhos do casamento de seu
uma viúva que tinha dois filhos do marido anterior. Cego de
ça Blind Lemon era muito esperto e, de certa forma, compensava
--ncia. Conseguia brincar com os irmãos, correr com eles e até atra-
rio, atrás deles, pelos estrados de troncos. Era bom também em
-e e tinha a vantagem da sua corpulência. Já aos 14 anos, era tão
o os pais e começava a cantar e tocar violão. Gordo, de óculos,
a tardes sentado à porta de um armazém na rua principal de
. cantando por alguns trocados. Ainda adolescente, Blind Lemon
-_requisitado para tocar em bailes e festas nas fazendas da região.
-- aos 20 anos, deu adeus a pai e mãe e pegou um trem para Dallas,
·a 120 quilômetros ao norte de Wortham.
- ;neço na grande cidade foi duro. Na fazenda, Blind Lemon sem-
ama e mesa garantidas. Em Dallas, precisava batalhar para
ão, como conta literalmente num de seus blues:
43
dos exóticos e, pesando 120 quilos, acabava sem se machucar muito. Com
o tempo, foi fazendo contatos e acabou tocando na zona - no chamado
red-light district. Conseguia o suficiente para a bebida e, no fim da noite,
o violão cuidadosamente colocado debaixo da cadeira para que ninguém
pisasse nele, terminava sempre com uma das garotas no colo.
Lemon tinha integrado à sua música os sons mais primitivos do cam-
po. Agora, ele absorvia a música da cidade. Possuía uma capacidade in-
crível para assimilar e traduzir tudo o que ouvia numa linguagem alta-
mente pessoal. Paul Oliver, um dos maiores pesquisadores do blues, de-
fine o estilo de Blind Lemon Jefferson:
44 Roberto Muggiar::
-;olta dos ombros quando as noites esfriavam, a partir de setem-
. d Lemon Jefferson já era, a esta altura, uma lenda viva.
demorou para que as gravadoras partissem no seu encalço. Di-
um de seus primeiros registros fonográficos aconteceu na seção
de um loja de departamentos de Dallas. A companhia que lan-
rimeiros discos foi a Paramount, sediada em Chicago. Ele pode
...- o testes em Dallas, mas suas primeiras gravações foram produ-
Chicago, na primavera de 1925: Beggin' Back e Old Rounder's
rndutor não ficou muito contente e o disco só foi lançado no
1926. Em fevereiro de 1926, Lemon gravava pela segunda vez e
a Paramount anunciava seu primeiro disco:
45
A inseparável guitarra foi encontrada ao lado do corpo. A Paramount
contratou um pianista boêmio para levar o corpo de Lemon até Dallas. Ami-
gos conduziram o caixão até a igreja em Wortham. Os pais e centenas de
vizinhos e amigos acompanharam o enterro. O corpo de Blind Lemon foi
sepultado no campo aberto, nos arredores de Wortham. Até algum tempo
atrás, sua sepultura jazia, coberta pelo capim e sem marca alguma, entre a
de sua mãe e a de sua irmã.
Morto, Blind Lemon virou herói instantâneo. O reverendo Emmett
Dickinson, num sermão gravado em disco, pela Paramount, Death ofBlind
Lemon, falou:
Aching ali over, I believe I've got the pneumonia this time
(bis)
And it's ali on account of that low down gal of mine.
("Me dói o corpo todo, acho que peguei a pneumonia des-
ta vez/ Tudo por causa daquela miserável da minha garota.")
46 Roberto Muggiati
("Apostei meu dinheiro e perdi, meu Deus, oh que sorte
errível a minha / Prometo nunca mais apostar neste jogo de
dos, nunca mais.")
Ili 47
Big Bill Broonzy: das plantações à grande cidade
L BROONZY
-1 SIPPI A CHICAGO
49
Ele tentava aprender alguma coisa ouvindo discos de outros cantores, como
Blind Lemon, Leroy Carr e Lonnie Johnson. Para ganhar a vida, traba-
lhou numa venda de legumes. Gravou para outros selos, como Gennett,
Champion e ARC. Começou também a tocar nos bares do South Side de
Chicago. Em 1934, gravando para a Bluebird (uma subsidiária da RCA),
tudo mudou: Big Bill começou finalmente a ter sucesso. Passou a usar
acompanhamento de piano e, em certas gravações, sax e trompete. Tinha
finalmente encontrado o seu estilo e fazia um blues ritmicamente esper-
to, precursor do rock 'n' roll dos anos 50. Seu Flat Foot Susie With Her
Flat Yes Yes (pronunciado "iê-iê" por Big Bill) antecipa os rocks de Chuck
Berry e Little Richard.
O blues de Big Bill, com um pé fincado na lama do Mississippi, apóia-
se no rural para se projetar no urbano e no futuro. Já em fins dos anos
30 ele adota a guitarra elétrica. Ainda em 1930, nos discos que gravou
com os Hokum Boys (hokum, na gíria da música americana, equivale à
nossa "pilantragem"), Big Bill, à pergunta do parceiro em Brownskin
Shuffle, responde: "Boy, these blues ain't supposed to be sung, they're
supposed to be barrelhoused!" (Cara, estes blues não devem ser canta-
dos, eles devem ser estraçalhados!")
Já no início de 1937, Big Bill gravava com bateria e depois, como o
seu amigo Tampa Red, tornava-se um pioneiro da guitarra elétrica. Em-
bora os temas tivessem sempre alguma inspiração rural, o som e a instru-
mentação antecipavam o rhythm & blues dos anos 40, que desemboca-
ria no rock 'n' roll dos anos 50. Em seus anos de maior atividade, Broonz.
assinou mais de 300 blues. Receber os direitos autorais destas canções era
outra história. Ironicamente, um dos blues que ficou mais fortemente
associado à imagem de Big Bill não era de sua autoria, mas de um amig
íntimo, o cantor Casey Bill Weldon. A interpretação de I'm Gonna Mov
to the Outskirts of Town por Broonzy é um retrato patético do maridc
traído e dependente da mulher:
50 Roberto Muggia-
-- s gonna stop that grocery boy,
J • that's gonna keep him away ...
- look funny,
:;...i_
llÍl'\~I 51
do também a Bélgica e a Inglaterra. Foi em Londres que ele publicou, em
1955, sua autobiografia, Big Bill's Blues. O mundo estava mudando e
os jovens músicos negros começavam a contestar a arte de Big Bill. Ele
se punha numa posição defensiva: "Até os jovens do Sul estão partindo
para uma música rápida, eles gostam do jump e do jitterbug, mas se eu
tivesse que parar de tocar o velho blues lento, não sei o que aconteceria
com ele." E tem mais:
"... quando escreverem sobre mim, por favor não digam que
sou um músico de jazz. Não digam que sou um músico, ou um
guitarrista - escrevam apenas que Big Bill foi conhecido can-
tor e tocador de blues e que gravou 260 blues e canções de 1925
52 Roberto Muggiati
-é 1952; foi um homem feliz quando estava bêbado e brincan-
·o com mulheres; foi apreciado por todos os cantores de blues,
- guns ficavam um pouco enciumados às vezes, mas Big Bill
-omprava uma garrafa de uísque e todos começavam a rir e tocar
.:e novo. Big Bill acabava ficando bêbado e saía de fino da fes-
- e ia para casa dormir ... "
53
Lonnie Johnson: elegância na vida e na música
~i:. JOHNSON
-- DO BLUES
55
toa nascera em Nova Orleans. Apesar desta sofisticação, Lonnie falava
de temas que tocavam fundo nas populações do Sul. Só sobre as inunda-
ções, escreveu oito blues. Como este:
56 Roberto Muggia
O ano de 1932 foi de uma busca frenética de discos "vendáveis".
::!.Uie passou a gravar mais e mais blues de apelo sexual do tipo I Got
_ Best ]elly Roll in Town. Compondo sob pressão, ele se via obrigado
ü: -:egar algumas palavras, experimentar com o violão e ver se as pessoas
-.u:n. Se a reação é boa, você tem um blues. Gravei 125 canções com
" - mos acordes." Com a Depressão, a vida de Lonnie passou a copiar
a: - as dos seus blues. Ele trabalhou em minas de carvão, estradas de
, _ e iderúrgicas até retomar sua carreira no showbiz. Em 1937, rece-
"11 ..:Jl convite para tocar no clube Three Deuces de Chicago, com o
ra Baby Dodds, das gravações dos anos 20 com Louis Armstrong.
ou a gravar de novo, para a Decca e depois para a Bluebird, da RCA.
- ~ cedeu à nova moda e aderiu à guitarra elétrica. Muitos acham
aí que perdeu o seu estilo. Em 1952, Lonnie viajou até a Inglater-
uma série de concertos. A redescoberta do folk e do blues na vi-
- anos 50 / 60 o trouxe de novo à tona. Em 1960, promoveram
111111m ~ontro de Johnson com Duke Ellington no Town Hall de Nova
_ ew York Daily News enfatizou as fortunas contrastantes dos
ca com esta manchete: O Faxineiro Encontra-se com o Du-
7 is de centenas de gravações, Lonnie Johnson foi morrer em
~ o Canadá, em 1970. Pouco antes, em conversa com a jorna-
Valerie Wilmer, falou:
57
Leroy Carr: sexo, bebida & blues
Y CARR
59
Standing at the station, watch my baby leaving town.
Feeling disgusted, nowhere she could be found
How long, how long, baby how long.
I can hear the whistle blowing, but I cannot see no train,
And it's deep down in my heart, baby, that I have an aching
pain.
For how long, how long, baby how long.
Sometimes I feel so disgusted and I feel so blue.
That I hardly know what in the world just to do.
For how long, how long, baby, how long...
("Há quanto tempo, há quanto tempo, aquele trem notur-
no se foi?/ Há quanto tempo, mulher, há quanto tempo?/ Pa-
rado na estação, vendo minha mulher deixar a cidade. /Deses-
perado, em nenhum lugar a encontrei. /Há quanto tempo, mu-
lher, há quanto tempo. /Posso ouvir o apito, mas não consigo
ver nenhum trem, / E lá no fundo do coração, mulher, é onde
dói a dor. / Há quanto tempo, há quanto tempo, mulher, há
quanto tempo. /Às vezes me sinto na pior e me sinto triste. /Que
mal sei o que fazer no mundo,/ Há quanto tempo, há quanto
tempo mulher há quanto tempo ... ")
60 Roberto Muggia-
- .a do estúdio. O que Leroy gravou sem ele foi de péssima quali-
epois das gravações houve uma festa no clube onde Tampa Red
::J.Iltando, mas Leroy não compareceu. Mais tarde, souberam que
fazendo shows no Sul. E então veio a notícia de que havia mor-
erculose em Memphis. A notícia chocou todos os amigos. Cor-
_:são de que Carr passou dias seguidos bebendo num bordel de
- - e morreu de pneumonia. Outros dizem que alguém "botou ara-
-eu uísque", uma alusão de que teria sido envenenado, antecipando
enário do fim de Robert Johnson.
rte de Leroy Carr virou notícia e acabou em blues. Bumble Bee
u The Death of Leroy Carr e Little Bill Gaither The Life of Leroy
:;o faltou também o tributo do parceiro Scrapper Blackwell, My
;J -ues. Canta Scrapper a certa altura:
61
Robert Johnson: o estilo acima de tudo
111 ,, , - JOH SON
_ E CRUZILHADA
63
rava anoitecer, saía às escondidas de casa e ia procurar a jook em que
estavam tocando seus ídolos, Son House e Willie Brown. Willie, depois
de ensinar alguns truques a Robert, começa a aprender muita coisa com
ele. (Willie Brown inspirou o personagem interpretado por Joe Seneca no
filme Crossroads, a história de um garoto que pede a ajuda de um velho
bluesman para localizar uma hipotética 30ª canção de Robert Johnson. )
Perfeccionista na sua música, Robert era também muito cuidadoso
com sua aparência e fazia sucesso com as mulheres. John Shines, que via-
jou algum tempo com ele, conta:
64 Roberto Muggiati
=nrra a hipótese de um pacto diabólico, ótima idéia para um fil-
..., Greenberg, que trabalhou seis anos como assistente do cineasta
erner Herzog, publicou em livro o seu roteiro para um filme
rt J ohnson, Lave in Vain / The Life and the Legend of Robert
_ cena do pacto com o demônio corre assim:
•zgo de uma estrada vazia. Numa encruzilhada escura vemos
·nson dedilhando seu violão nervosamente. Está desafinado.
~ então passos na estrada. O demônio aproxima-se e surge na
-·olha para Robert, só olha para o violão. Apanha o instrumen-
·ra-se de lado e improvisa um solo incrível. Devolve o violão e
caminho.
~epois, Robert volta a se encontrar com Son House e Willie
um blues como eles nunca o viram tocar antes. A partir deste
interpretaria o blues com a magia de Robert Johnson. Al-
músicas citam explicitamente o demônio, como Preaching
-P Jumped the Devi[), Hellhound on My Trai[ e este Me and
65
Nesta época, caçadores-de-talento procuravam por todo o Sul dos Estados
Unidos cantores de blues para abastecer o mercado dos race records. É estra-
nho que Robert tenha ficado tanto tempo ignorado. Ele só foi fazer suas pri-
meiras gravações aos 25 anos. E foi descoberto quase por acaso. H .C. Speir
caçava músicos de talento para várias gravadoras e tinha um pequeno estúdio
em sua loja de música em Jackson. O problema é que ele só recebia sua co-
missão quando o disco era lançado no mercado. Tinha colaborado na gra-
vação de 180 lados de discos para a AmericanRecord Company, mas a com-
panhia só acabou colocando nas lojas 40 lados. Quando Robert se apresentou
à loja de Speir, este, já desanimado com o negócios, limitou-se a anotar seu
nome e passá-lo para outro agente. Por sorte, ele indicou Robert Johnson
a Ernie Oertle, um dos mais eficientes vendedores da ARC no Meio-Sul. Uma
audição bastou. Oertle convidou Robert para gravar em San Antonio, Texas.
A primeira gravação aconteceu em 23 de novembro de 1936, num estú-
dio improvisado num quarto de hotel. Robert sentou-se diante de um mi-
crofone, com uma garrafa de uísque de milho a seus pés, cortesia da pro-
dução. A sistemática destas gravações foi detalhada por Frank Walker, um
produtor da Columbia que fez muitos discos de blues nos anos 20:
66 Roberto Muggia
\1111 Dissertou sobre os microfones escolhidos, mais adequados às con-
111111.,. -, de temperatura e umidade do Texas. Explicou o timing da grava-
músico devia começar quando a luz azul fosse acesa. Três minutos
-. a luz vermelha indicava a hora de parar. O músico tinha de saber
- uar os seus três minutos e compactar neles o máximo de técnica
oção. Johnson era novato e tocava balançando a cabeça. Muitas
- gravações sofrem desta irregularidade, com a voz afastando-se às
:: microfone. Mas todas as deficiências técnicas são superadas pela
111."1. - ... Já na primeira sessão, em que grava oito canções, Robert faz o
67
Apesar das fichas de gravação detalhadas da American Recording
Company (ARC), corre a lenda de que as primeiras gravações de Robert
Johnson teriam sido feitas num salão de bilhar e que, a certa altura, es-
tourou uma briga feia no local. Alguém teria jogado uma bola de bilhar
no engenheiro de som e acertado nas matrizes. As fichas de gravação da
ARC só assinalam um registro na segunda sessão, de quinta-feira, 26 de
novembro (dois takes de 32-20 Blues), o que dá uma certa credibilidade
à história.
Terraplane Blues saiu pela Vocalion e foi o disco de Robert Johnson
que mais vendeu. A esta altura, ele já tinha largado sua coroa Calletta,
era um franco-atirador com as mulheres. Era também assolado pelo
Wanderlust - na linguagem do blues, era um rambler - e botava de
novo o pé na estrada. Pegou a Rodovia 51 com dois amigos e passou por
St. Louis, Chicago, Detroit, Windsor (Ontário, no Canadá), Nova Iorque
e Nova Jersey. Em 19 e 20 de junho de 1937, um sábado e um domin-
go, Robert Johnson fez as suas últimas gravações, em Dallas, Texas.
Em agosto de 1938, o seu carma demoníaco o atraía de novo para
a pequena Robinsonville e suas jook joints. O musicólogo, colecionador,
fotógrafo e iconógrafo que se tornou o maior especialista em Robert
Johnson, Stephen C. La Vere, comenta:
68 Roberto Muggiati
ebida. Veio uma segunda garrafa, também com o lacre aberto, e
:::-ert emborcou. O dono da birosca, o marido traído, tinha colocado
"'-- ::nina no uísque de Robert. Mesmo sentindo-se mal, Johnson atraves-
a noite tocando e cantando. Depois, foi levado para a casa de um
.:,O, contraiu pneumonia e morreu no dia 16 de agosto. Uma densa
a de mistério cercou durante décadas a morte de Robert Johnson.
uito tempo acreditou-se que tivesse morrido apunhalado por uma
~er ciumenta. Mais recentemente, a versão do envenenamento foi
:mada até mesmo por uma entrevista dada pelo marido traído. Nin-
abe quem foi o homem que acudiu o agonizante Robert. Falam de
m chamado "Tush Hogg", ou "Tushogg". Muitos apostam que foi
o. A família insistiu que Robert havia entregue sua alma a Cristo,
do a assinar sua conversão num retalho de linho .
. -o final de 1938, o produtor John Hammond (descobridor de Count
e Billie Holiday) tentava reunir talentos para o seu pioneiro concerto
-ruals to Swing" no Carnegie Hall de Nova Iorque e pediu a Don
e convocasse Robert Johnson. Law saiu em campo e acabou des-
-do que Robert Johnson estava morto há alguns meses e fora enter-
-um caixão de madeira doado pela municipalidade no cemitério de
· :..2!1 City, Mississippi. E o blues acabou representado no Carnegie Hall
_ Bill Broonzy.
homem Robert Johnson permanece até hoje uma incógnita. Al-
oisas, com o passar dos anos, se descobriram sobre ele. Costu-
e··ar sempre consigo uma pequena agenda de capa preta, em que
idéias para canções e letras de blues. A agenda era uma suges-
amigo Ike Zinnerman, o blueseiro que adorava tocar nos cemité-
...,..,eia-noite. Robert usava um violão Gibson para suas apresenta-
escolhia uma Kalamazoo para ocasiões especiais. A ascensão
erador Hailé Selassié e a invasão da Etiópia pelos italianos em
aram um grande interesse entre os afro-americanos. Segundo
,.•.,.,.=-·-.an John Shines, Robert Johnson mostrava grande preocupação
pia e a colocava num contexto bíblico - uma preocupação que
:raria a ideologia e a música dos rastafarianos da Jamaica e do
e Bob Marley. Passando para o terreno das amenidades, Robert
rodos os americanos que queriam exorcizar a Depressão -
muito de ir ao cinema e era fã de westerns e de Clark Gable.
- cicia alarmante para os fãs ortodoxos: Robert, influenciado por
- -by, teria pensado em formar um grupo de guitarra elétrica para
-:ões como Blue Heaven e Yes, Sir, That's My Baby.
69
A imagem de Robert Johnson se perde na névoa dos _tempos. Mas
sua influência está viva. Ele marcou toda a escola de Chicago - a segun-
da geração do blues - e se tornou o pai espiritual da terceira geração, os
roqueiros britânicos dos anos 60. Como diz o guitarrista Eric Clapton:
Keith Richards, dos Rolling Stones, conta que ouviu pela primeirn
vez um disco de Johnson no apartamento do guitarrista Brian Jones. E
perguntou: "'Quem é o outro cara que está tocando com ele?' Porque e;
estava ouvindo duas guitarras e levou muito tempo até que percebess
como é que ele conseguia fazer aquilo tudo sozinho."
Robert Johnson sintetizou o estilo do Delta, tocando peças percussiva
com bottleneck e usando figuras de baixo que evocavam os duetos vio-
lão /piano de Leroy Carr e Scrapper Blackwell. Os que o viram tocar cL-
zem que tinha "dedos de aranha". Robert não foi apenas a resposta
urbanização do blues ao velho estilo rural. Pode-se dizer que foi o primeir
músico a compor o "blues de autor".
Meio século depois de morto, ele conquistou um disco de ouro e u=
Grammy, com o álbum Robert ]ohnson / The Complete Recordings.:
estão, além das 29 canções conhecidas, 12 alternate takes, num total
41 faixas. Um universo poético que fala de perdas e danos - mais em
cionais do que materiais - de medo e magia, sexo e religião e, principa.
mente, de amor e desamor. Uma Divina Comédia e Comédia Humana
blues. As letras de Robert Johnson são sintéticas e rigorosas, concre
como as imagens de um filme. Admirem esta, de Lave in Vain, que
Rolling Stones gravaram em 1969, e que poderia ficar como epitáfio
tístico do velho Robert:
70 Roberto Mugg
When the train rolled up the station I looked her in the eye
ell, the blue light was my blues and the red light was my
á l my love's in vain
u hou ou ou ou hoo, Willie Mae
1'J oh oh oh oh hey hoo, Willie Mae
71
Sonny Boy Williamson: a esfinge de chapéu de coco
- BOY WILLIAMSON
DA HARMÔNICA
-de.")
cena Sonny Boy II, uma figura enigmática que evitava sem-
73
pre falar do seu passado. Willie ou Rice Miller - o novo Sonny Bo.
Williamson - nasceu em Glendora, no Mississippi, em 1897. Começa a
vida mudando de nomes. Filho ilegítimo de Millie Ford, é batizado Alex
e depois assume o nome de seu padrasto Jim Miller, recebendo ainda crian-
ça o apelido de "Rice". Com um cinturão de gaitas Hohner amarradas
em bandoleira sobre o peito, faz a estrada com o nome de Little Boy Blue
Outro apelido, Footsie, vem do hábito de cortar buracos no couro do
sapatos para arejar os pés. E no fim da vida, Goat, de "goatee" - cava-
nhaque. Muito antes dos roqueiros, este Sonny Boy já jogava espertamente
com o visual. O crítico francês Phillippe Bas-Raberin assim o descreve nc
livro Le Blues Moderne Depuis 1945:
74 Roberto Muggiati
_Jr. / Sim, há tanto tempo o tapete está colado ao chão./ Se
- _ ltar para mim não vou deixar sair nunca mais.")
75
Bessie Smith: o blues é uma mulher
.::. SIE SMITH
_1PERA TRIZ DO BLUES
um 77
partir da qual se prensavam os discos pretos de goma-laca vendidos ao
público, nos quais o processo era revertido: uma agulha percorria os sul-
cos e transmitia os sons através de um fone de forma cônica.
Estes discos tinham um limite de tempo - não deviam ultrapassar
os três minutos. Em 1920, ano em que as americanas ganharam direito
de voto, a gravação de Crazy Blues por Mamie Smith - no dia de São
Valentim - abriu às gravadoras um mercado novo: o dos race records
destinados à população negra. Com uma faixa de cada lado, os discos
custavam 7 5 centavos, eram vendidos nos bairros negros das grandes ci-
dades e, pelo correio, para os consumidores rurais. Em junho de 1923, já
com 18 canções gravadas, Bessie fazia sua primeira excursão promocional
pelo Sul e Meio-Oeste. Ela viajava com uma réplica do equipamento de
gravação, explicava didaticamente à platéia como eram feitos os discos e
cantava como se estivesse em estúdio. Nestas turnês, o repertório era
composto pelas canções lançadas em disco por Bessie, que faziam um
grande sucesso de vendas. O primeiro blues que ela gravou, em 16 de
fevereiro de 1923, fora um sucesso no ano anterior, pela cantora Alberta
Hunter, compositora do tema em parceria com a pianista Lovie Austin:
Down Hearted Blues. Mas a interpretação de Bessie era tão nova e arre-
batadora que o disco chegou a vender 800 mil cópias
Anos mais tarde, Alberta Hunter falou: "Nunca houve ninguém como
Bessie, nem haverá mais. Era rouca e cantava alto, mas tinha uma espé-
cie de lamento - não, não era lamento, havia miséria no que ela fazia.
Era algo que tinha de arrancar do peito e botar para fora."
Frank Walker, considerado o homem que a descobriu, diz que uma
única frase de Down Hearted Blues bastou para consagrar Bessie: "Got
the world in a jug, got the stopper in my hand". ("Tenho o mundo numa
botija e a rolha em minha mão.") Walker, nomeado chefe da divisão de
race records da Columbia em 1923, lembrou-se de ter ouvido Bessie can-
tar num botequim de Selma, Alabama, em 1927, e mandou o pianista Cla-
rence Williams à procura dela. Começava assim uma das mais ricas car-
reiras fonográficas, com 180 faixas gravadas ao longo de dez anos, todas
nos estúdios da Columbia em Nova Iorque. Sobreviveram 160 faixas.
Elizabeth 'Bessie' Smith nasceu em 15 de abril de 1894 no gueto negro
de Chattanooga, Tennessee, um dos sete filhos de um pastor batista. O
irmão mais velho morreu antes de Bessie nascer; o pai, pouco tempo de-
pois; e a mãe, quando Bessie tinha apenas oito anos. A irmã mais velha,
Viola- a quem um estranho de passagem pela cidade "presenteara" com
um bebê - teve de cuidar do que sobrou da família num barraco de um
78 Roberto Muggiati
ó quarto em que - Bessie contaria mais tarde - os ratos eram mais nu-
erosos que os Smiths. Aos nove, Bessie já cantava nas esquinas em tro-
ca de vinténs. Nesta idade, apresentou-se num concurso de calouros no
vory Theater, onde ganhou oito dólares, que gastou num par de patins.
esde cedo, gastar dinheiro era com ela. Cultivava também uma certa
·tomania e dizia ter ganho os patins no campeonato estadual do Ten-
essee. Foi o seu irmão, Clarence Smith - dançarino e comediante que
_eixara Chattanooga para tentar a sorte no vaudeville - quem conseguiu
primeiro teste para Bessie. Aprovada, ela passou a integrar a trupe iti-
-erante de Moses Stokes. A história de que saiu de Chattanooga raptada
-or Ma Rainey, a Mãe dos Blues, não passa de uma lenda. Bessie citava,
.:omo uma de sua principais inspiradoras, Cora Fisher, um das empresá-
s do grupo de Stokes.
Era 1912. Bessie tinha 18 anos e o aspecto de uma rainha africana:
-a corpulenta, a pele bem negra - negra até demais para aqueles tem-
de racismo explícito. Ela passaria dez anos excursionando no circui-
- chamado TOBA, sigla de Theater's Owners Booking Association, que
- artistas negros apelidaram de Tough on Black Artists, ou Asses.
Viajou com grupos como os Rabbit Foot Minstrels e os Florida Cot-
Blossoms. Depois resolveu sossegar. Morava em Filadélfia - onde
apresentava a noite toda num cabaré - quando foi localizada por
ence Williams e levada para a Columbia. Seu primeiro disco, Down
~ ~~rted Blues, gravado em fevereiro, só foi para as lojas em 7 de junho
- 1923, data que Bessie marcou também para o seu casamento com Jack
falam de um casamento anterior dela, mas não há registros). Jack
rigia noturno em Filadélfia e sonhava entrar para a polícia, mas não
a eito. Profissionalmente, acabaria mesmo como "o marido de Bessie
- ili". Nesta capacidade, até que tentou ajudar, no começo. Arranjou
- eiro para que ela comprasse roupas novas quando foi fazer a primei-
.: avação na Columbia. Jack descobriu ainda uma cláusula marota no
- aro que o pianista Clarence Smith fizera Bessie assinar, cedendo a
_ Clarence, 50% de seus ganhos. Mas Jack não era páreo para as ra-
da indústria fonográfica: ao combinar com Frank Walker um novo
:rato, não reparou que a Columbia garantia à cantora um mínimo de
dólares anuais, mas omitia astutamente a cláusula dos royalties sobre
endas de seus discos. Assim, a maior fabricante de hits dos anos 20
·enada de qualquer participação nos lucros das suas gravações- urna
-~aridade que causaria confusão até nos anos 70, quando seus dis-
= ram relançados maciçamente. Correu até a história de que foram
79
as vendas colossais dos discos de Bessie Smith que salvaram a Columbia
da falência na década de 20. Antes de assinar com a Columbia, Bessie teria
feito testes para a Black Swan, mas foi demitida no meio da primeira gra-
vação, que interrompeu alegando: "Agüenta aí que eu preciso cuspir!" Iro-
nicamente, meses depois, quando os discos de Bessie na Columbia
começavam a vender, a Black Swan ia à falência.
A vida de Bessie era igual às suas canções. Uma, particularmente,
composta por seu pianista Porter Grainger, era o seu hino de guerra: Tain't
Nobody's Bizness If I Do, que entraria para o repertório de cantoras de
jazz como Billie Holiday e Dinah Washington:
80 Roberto Muggiati
ernate takes de Bessie mostram que ela era muito precisa e articulada
. oncepção de cada tema. As diferenças estão mais no acompanhamento
ue na interpretação da cantora.
O dinheiro de Bessie foi também a sua desgraça. Billie Holiday, que
ou o caminho da música através dos discos de Bessie Smith (fazia a
- a de recados nos bordéis de Baltimore para poder ouvir Bessie na
-ola da madame) certamente pensava na Imperatriz dos Blues quando
pôs God Bless The Chi/d:
Para comprar o vestido com que Bessie foi fazer suas primeiras gra-
--:Jes na Columbia, Jack empenhara o uniforme e o relógio de vigia
:.uno. Ruby comenta:
~..\lém dos presentes para Jack, Bessie comprava para si mesma rou-
caras e casacos de pele. Comprou também um apartamento em Fila-
81
délfia, mas era apenas um pouso provisório entre turnês. A vida de Bessie
era mesmo a estrada. Ruby Walker conta:
Dois incidentes, em níveis sociais opostos, dão uma idéia de seu tem-
peramento. Em 1925, de volta a Chattanooga, ja consagrada, Bessie ini-
ciou uma temporada no Liberty Theater com casa lotada. Depois, de to-
dos os convites que recebeu para comemorar a estréia, ela escolheu uma
pigfoot party - espécie de pagode - na casa de um velho amigo num
bairro distante e perigoso. Ao chegar no local - que rescendia a comida,
bebida, fumo e suor, ao som de um pianista de blues que tentava romper
a cortina de conversa e gargalhadas de uma sala cheia - Bessie gritou:
"The funk is flyin '!" (Algo como "A zorra está rolando!" Reparem no
uso pioneiro da palavra funk, hoje tão comum nas periferias do mundo. )
No calor da festa, um penetra atacou uma das garotas de Bessie e foi
rechaçado pela cantora com um direto no queixo. O agressor fugiu, mas
ficou à espreita numa esquina escura. Alta madrugada, quando Bessie
voltava para o hotel, o homem enfiou-lhe uma faca nos costados. Com a
faca cravada no corpo, Bessie ainda correu alguns quarteirões atrás do
homem. Quando uma das meninas retirou a faca, o sangue - segundo
testemunhas - esguichou alguns metros. O médico recomendou a Bessie
três dias de repouso. Tudo isso aconteceu às quatro da manhã. Às duas
da tarde, Bessie cantava os seus blues, inigualável, na matinê do Liberty.
E, com seu incrível senso de marketing, passou para os jornais uma his-
82 Roberto Muggiati
Bessie Smith: o carisma da Imperatriz
tória bem diferente, acrescentando glamour à sua· figura. O Chicago De-
fender publicava, na edição de 7 de março de 1925:
84 Roberto Muggiati
em me dar um beijo de despedida .. .. " Bessie repeliu o abraço da anfitriã
_ m um empurrão que mandou ao chão a ex-bailarina e berrou: "Me lar-
"" e, nunca vi merda maior!"
A arte de Bessie superou o vexame. Carl Van Vechten lembra a oca-
º assim:
"Estou seguro de que ninguém presente àquela noite jamais
esquecerá. Não era uma atriz. Nem uma imitadora da tragédia
feminina. Não havia fingimento algum. Era a verdade: uma mu-
lher rasgando o seu coração com uma faca e mostrando a to-
dos nós- fazendo com que sofrêssemos o que ela sofria. Para
mim, foi a maior atuação de Bessie."
es 85
se deprimir com os blues. Três dias depois, no mesmo estúdio, usando três
músicos das últimas gravações de Bessie - Benny Goodman (clarineta),
Jack Teagarden (trombone) e Buck Washington (piano) - , John Ham-
mond produzia os primeiros discos de Bilhe Holiday. Nascia a era das
cantoras de jazz e o blues mergulhava nas trevas do passado.
O resgate de 160 das 180 canções gravadas por Bessie para a Columbia
foi um verdadeiro trabalho de detetive, estimulado por John Hammond e
realizado pelo crítico de jazz dinamarquês (nascido na Groenlândia) Chris
Albertson. Entre outras coisas, descobriu-se que ela teria gravado um dis-
co (dois lados) sob o nome de Rosa Emerson, em 1921, pelo selo Emer-
son. Na sua edição de 12 de fevereiro de 1921, o Chicago Defender noti-
ciava que Bessie ia fazer discos para a Emerson Record Company. O pri-
meiro lançamento estava previsto para 10 de março de 1921, mas ninguém
sabe o que aconteceu com as matrizes, ou sequer se elas existiram.
Em 1924, uma curiosidade histórica: Bessie fez um teste para o selo
Edison. O presidente da primeira gravadora do mundo, o inventor do
fonógrafo em pessoa, Thomas Alva Edison, reprovou-a e anotou em sua
ficha: "Voice n.g. 21/4/24." Ou seja, "voz não boa {no good)".
Em 1970, quando a Columbia resolveu relançar Bessie Smith em LP,
descobriu que, das 180 gravações listadas, 20 nunca haviam sido publi-
cadas e tiveram as matrizes destruídas. E mais: das 160 lançadas, só 57
matrizes foram encontradas, muitas sem a menor condição de reprodu-
ção. A maioria das canções teve de ser recuperada a partir de discos de
colecionadores, alguns em uso há mais de 40 anos. Em certos casos, qua-
tro diferentes discos de cada canção foram usados até se obter uma ver-
são satisfatória. Ao todo, 450 lados foram transferidos para fita até se
chegar às 160 faixas que comporiam os cinco álbuns duplos lançados a
partir de 1970. O resultado é um tributo a Bessie Smith e à arte do blues.
Chris Albertson descreve o trabalho de depuração sonora dos velhos dis-
cos, com a ajuda da nova tecnologia:
86 Roberto Muggiati
rior, foi similarmente abandonada em função da maior pureza
de som. O ruído superficial, até então minimizado pelo uso de
filtros (que também alteram o som do sinal gravado), foi virtu-
almente eliminado através de um novo sistema, aperfeiçoado
pelo engenheiro Larry Hiller durante os primeiros estágios des-
te projeto. A vantagem deste sistema é eliminar a maioria dos
sons estranhos sem afetar o som da música. O resultado de to-
das estas técnicas nos permite ouvir os discos de Bessie Smith
com uma clareza e presença sem precedentes."
ues 87
da necessidade de projetar sua voz, sem auxílio do microfone,
até as últimas filas das platéias em circos e teatros e, no caso de
Bessie, não induzia à monotonia (... ) Bessie tinha um bom al-
cance, quase duas oitavas, do fá grave ao mi agudo, mas traba-
lhava mais criativamente na oitava em que o seu possante fá mé-
dio marcava o centro tonal. (... ) Como os melhores instrumen-
tistas, Bessie podia criar um solo envolvente a partir de um mí-
nimo de matéria-prima musical e, novamente, como a maioria
dos jazzistas, era muitas vezes forçada a fazer isto."
88 Roberto Muggiati
Richard Hadlock escreveu, com inspiração, que "acompanhar os
· rimos dias da vida de Bessie Smith não é muito diferente de tentar fazer
crônica dos espasmos mortais de uma baleia. Ocasionalmente ela vem
tona para registrar sua agonia, mas a maior parte do processo acontece
ebaixo d'água e fora da nossa visão."
Nos anos 30, Bessie caíra no esquecimento. Bebia cada vez mais e, por
oincidência, casou-se com Richard Morgan, um ex-fabricante de bebida
landestina na Chicago dos anos 20. Foi em Chicago que Morgan conhe-
:eu Bessie, por quem tinha grande admiração. Reencontrou-a em 1930,
- olveu se separar da mulher a juntou-se com a cantora. Morgan era tio
~ vibrafonista Lionel Hampton, que lembra: "Não havia nada que ele não
.izesse por ela."
George Hoefer anota:
nes 89
bateu com o lado do passageiro contra o caminhão. Bessie, que dormia
com o braço do lado de fora da janela, teve o membro esmagado à altu-
ra do cotovelo. O acidente ocorreu nos arredores do Coahoma, uma ci-
dadezinha que sequer tinha hospital. Por acaso, um cirurgião de Memphis
chegou ao local do acidente poucos minutos depois. Haviam chamado
uma ambulância, mas o médico, sentindo que Bessie corria o perigo de
sangrar até morrer, tentou colocá-la na traseira do seu carro. Tentava
fazê-lo, com imensa dificuldade (Bessie pesava na época uns 90 quilos),
quando outro carro bateu contra a traseira do seu, destruindo-a comple-
tamente. Cinco minutos depois, chegou a ambulância e levou Bessie às
pressas para o hospital mais próximo, em Clarksdale, Mississippi, onde
na Enfermaria Negra um dos melhores cirurgiões amputou-lhe o braço.
Ela morreu ao meio-dia e quinze, oito horas e meia depois do acidente.
O relatório médico atribuiu a morte mais a ferimentos internos do que
à perda de sangue.
Muito tempo depois, pesquisadores acharam uma entrevista de Bessie
a um jornal em 1936. Ela se dizia otimista em relação ao futuro e sentia-
se à véspera de novos sucessos. Professava sua adoração por diamantes,
casacos de pele e eventos esportivos, mas confessava que sua ambição era
se aposentar em 1960 e ir descansar com seus animais de estimação numa
fazenda bem longe.
Os grandes jornais - e até mesmo os jornais locais - não deram
muita importância à morte de Bessie Smith. Quem levantou toda a polê-
mica foi o diletante engajado John Hammond (afinal, eram os tempos da
Guerra da Espanha). Num artigo para a revista especializada em música
downbeat, Hammond perguntava, no título: BESSIE SMITH SANGROU ATÉ
MORRER ENQUANTO ESPERAVA POR SOCORRO MÉDICO? E escrevia: "Quando ela
chegou finalmente ao hospital recusaram-se a atendê-la porque era negra
e ela sangrou até morrer. .. "
A história acabou esquecida, restrita a uns poucos .círculos intelec-
tuais. Mas, nos politizados anos 60, voltou com força total. Virou até peça
de teatro pelo autor de Quem Tem Medo de Virginia Woolf? - Edward
Albee - , que teatralizou A Morte de Bessie Smith.
O túmulo de Bessie, num pequeno cemitério de Filadélfia, ficou sem
lápide até 1970, quando Juanita Smith - uma enfermeira que trabalhou
para ela-, John Hammond e a cantora Janis Joplin juntaram 500 dóla-
res para pagar a pedra com a inscrição "BESSIE SMITH, 18 94-19 3 7. A MAIOR
CANTORA DE BLUES DO MUNDO JAMAIS DEIXARÁ DE CANTAR".
E Bessie continua cantando através de seus discos. Da sua forte pre-
90 Roberto Muggiati
-ença ao vivo, alguns depoimentos contam milagres, como o do pianista
de jazz Art Hodes:
"Se você tinha alguma ligação com a Igreja, como eu, que
vinha do Sul, você reconheceria uma semelhança entre o que ela
azia e o que aqueles pregadores evangelistas de lá faziam para
m exer com as pessoas. O Sul tinha fabulosos pregadores e evan-
gelistas. Alguns ficavam nas esquinas e juntavam verdadeiras
91
multidões. Bessie fazia a mesma coisa no palco. De certa for-
ma, ela era como os Billy Graham de hoje. Podia hipnotizar as
massas. Quando cantava, você podia ouvir um alfinete cair."
92 Roberto Muggiati
. IA E AS MENINAS
CANTORAS DO BLUES CLÁSSICO
93
anos ela se exibia num show de jovens talentos, The Bunch of Blackberries,
na Springer Opera House de Columbus. Em 1902, quando tinha 16 anos,
Gertrude ouviu uma mulher cantando uma canção sobre o homem que
tinha perdido. Era um som tão pungente que ela decorou a canção e a in-
corporou a seu repertório. Muito antes da publicação do primeiro blues
-Memphis Blues, de W.C. Handy, em 1912 - Gertrude costumava fe-
char seus espetáculos com aquela canção que ela chamava "the blues".
Aos 16 anos, casou-se com um dançarino e comediante muitos anos
mais velho, William Pa Rainey. Dizem as más linguas que a diferença de
idade era compensada pela feiúra de Gertrude. Conta o pianista-cantor
de blues Champion Jack Dupree: "Ela era realmente feia ... Mas, quando
abria a boca, arrasava! A gente esquecia tudo. Ela sabia como cantar
aqueles blues e tocar no fundo do nosso coração. Oue personalidade ti-
nha aquela mulher!"
Ma Rainey era baixa e encorpada e foi uma das primeiras a colocar
ouro nos dentes da frente. Gostava de homens geralmente mais jovens -
era ela quem tomava a iniciativa - e dizem também que gostava de mu-
lheres. Ma chamava a atenção sobre a sua figura usando cabelos desgre-
nhados, colares de ouro e diamantes, laços na cabeça, brincos descomunais,
tiaras, boás de plumas em volta do pescoço, vestidos e mantos exóticos.
Mais do que. as aparências, a música de Ma Rainey transformou os
blues. Num de seus clássicos, Bo-Weavil Blues, ela infunde ao blues a sim-
plicidade de um haicai:
I went downtown
I got me a hat
I brought it back home
I laid it on the shelf
I looked at my bed
I'm gettin' tired sleepin' by myself
("Fui à cidade I Comprei um chapéu I Trouxe-o para casa
I Coloquei-o no armário I Olhei para minha cama I Estou ficando
cansada de dormir sozinha ... ")
94 Roberto Muggiati
Ma Rainey: a mulher que inventou o blues
Ma é acompanhada por instrumentistas ilustres do jazz como Louis Arms-
trong (trompete), ColemanHawkins (saxofone),Joe Smith (corneta), Charlie
Green e Kid Ory (trombone) e Georgia "Tom" Dorsey (piano). Com o crack
da Bolsa em 1929, a era das cantoras do blues clássico chegou ao fim. Já
em 1928 a Paramount não renovava o contrato de Ma Rainey, alegando
que o seu "material tinha saído de moda". Ma continuou na estrada, com-
prou uma casa para a família na Georgia e um apartamento em Chicago.
Entre 1914 e 1916, Ma e Pa mantinham um show com o curioso nome de
Rainey & Rainey, Assassinators of the Blues. No início dos anos 30, ela
voltou a correr a estrada com a Arkansas Swift Foot Review. Eficiente nos
negócios, Ma Rainey era proprietária de dois teatros em Columbus - o
Lyric e o Airdrome - e participava nas atividades da sua igreja. Em 1939,
aos 43 anos, Ma Rainey sofreu um ataque do coração e morreu no City
Hospital de Columbus. O crítico de jazz Charles Edward Smith escreveu
o seu epitáfio: "Ela era a voz do Sul, cantando do Sul para o Sul."
Smith, o mais comum dos sobrenomes norte-americanos, designou
uma verdadeira dinastia no blues: além de Bessie, havia outras cinco -
nenhuma delas aparentada - , Clara, Trixie, Mamie, Laura e Hazel. Foi
Mamie Smith quem detonou o nascimento da indústria do blues, ao gra-
var Crazy Blues, em 1920. Nascida no gueto de Cincinnati, 1883, Mamie
começou a excursionar como dançarina aos dez anos de idade. Aos 30
anos, em 1913, Mamie conquistava o Harlem com seu marido, também
cantor, Willie Smith. A primeira gravação de Mamie foi arranjada por um
editor de música negra, apesar dos grupos de pressão que se opunham às
gravações de cantoras negras. A última hora, a cantora branca Sophie
Tucker adoeceu e o editor, Perry Bradford, conseguiu que Mamie a substi-
tuísse, acompanhada de uma banda branca. O resultado foi tão bom que,
seis meses depois - no dia de São Valentim, 14 de fevereiro de 1920 -
, ela voltava ao estúdio com uma orquestra negra. O pianista Willie the
Lion Smith ensinou aos músicos as partes de piano trazidas por Mamie.
Cada um ganhou 25 dólares pela sessão, sem previsão de royalties, e só
recebeu o dinheiro dois meses depois.
Com o sucesso de Crazy Blues, Mamie Smith tornou-se a artista ne-
gra mais bem paga da época. Por uma noite na Virginia recebeu dois mil
dólares. Usava uma capa de penas de avestruz de três mil dólares e dizem
que seu apartamento de Nova Iorque tinha um piano em cada quarto. No
auge da carreira, nos anos 20, Mamie, segundo escreveram Leonard Kunstadt
e Bob Colton, "era sinônimo da palavra 'sucesso'. Suas peles, suas jóias, seus
apartamentos, as brigas com os amantes e as ameaças de tiro ganhavam muita
96 Roberto Muggiati
otoriedade. O anúncio de uma nova gravação por Mamie Smith era motivo
::uficiente para se declarar feriado nos bairros negros do país."
Em 1931, já no terceiro casamento, Mamie fez as últimas de suas 80
41'.avações. Embora continuasse a se apresentar na Flórida, em Nova Iorque
=na Europa, sua carreira entrou em declínio. Um produtor de discos da
= oca diz: "Acho que houve algum complô do mundo dos negócios con-
a ela. Era inteligente demais para os negócios de então. E, na época, as
ulheres não deviam ser assim." Mamie Smith atuou em alguns filmes B
-os anos 40 e morreu sem um tostão num hospital do Harlem em 1946,
.:: pois de uma longa doença, sendo enterrada como indigente num cerni-
-mode Staten Island. Em 1964, um fã alemão coletou dinheiro para uma
ide; músicos americanos fizeram até um concerto para levantar dinhei-
- , mas entraves burocráticos deixaram tudo na mesma. Até hoje Mamie
·th não recebeu a merecida lápide com a inscrição A PRIMEIRA DAMA DO
:ES AMERICANO.
Clara Smith, conhecida como Queen of the Moaners (Rainha das Cho-
as ), gravou um total de 123 canções. Muito poucas foram relançadas
LP e CD, entre elas duas com Bessie Smith. Clara nasceu em Spartanburg,
olina do Sul, em 1894. Em 1918 já era um dos grandes nomes do cir-
to TOBA; em 1923, começou a gravar para a Paramount. Seu primeiro
·-o foi Every Woman's Blues. Naquele ano, ela se instalou em Nova Iorque
--·o u o Clube Teatral Clara Smith. Considerada uma das mais bem-ves-
cantoras de blues, Clara fazia piadas maliciosas aos maridos das pri-
as filas de seus espetáculos, para constrangimento das mulheres. Quanto
fortes as suas interpretações, mais as platéias gostavam. Como can-
-a de blues, Carl Van Vechten a descreveu: "Sua voz é ora potente, ora
'ancólica. Faz o coração da gente sangrar."
Apesar da fidelidade de seu público e da quantidade de discos gra-
·os, Clara Smith foi atingida pela Depressão. O trombonista Clyde
mhardt lembra da mulher mais elegante do blues, em 1932, usando um
·<linho preto e um gorro, "ganhando 35 dólares por semana e dan-
-:::e por muito feliz." Clara Smith morreu do coração em 1935, aos 41
e foi enterrada num cemitério do condado de Macomb no Michigan.
~uitas destas cantoras viveram dramas piores que os dos blues que
.-.avam. Outras caíram no mais completo esquecimento. Quem iria a uma
hoje pedir um disco de Rosa Henderson? E, no entanto, Rosa gravou
, .- 100 canções, entre 1923e1931, na companhia de músicos famosos
o Fletcher Henderson, Coleman Hawkins e James P. Johnson. Nasci-
em Henderson, Kentucky, em 1896, Rosa começou a cantar blues aos
97
13 anos no show itinerante de um tio. Aos 22 anos, deixou o tio e foi cantar
no vaudeville de Nova Orleans com o marido, o comediante Slim Hender-
son. A morte súbita do marido em 192 7 abateu o ânimo de Rosa. Aos pou-
cos, foi deixando a cena e em 1939 fez sua última gravação para a Columbia,
acompanhada por James P. Johnson ao piano. Foi trabalhar então numa
loja de departamentos de Nova Iorque para garantir o sustento da famí-
lia. No início dos anos 50, um pesquisador interessado em trazê-la de volta
aos palcos foi informado de sua morte. Só 15 anos depois, ele descobriu
que Rosa Henderson ainda estava muito viva e organizou algumas apre-
sentações dela em concertos beneficentes. Rosa Henderson morreu final-
mente em maio de 1968 - quando o mundo pegava fogo - aos 71 anos.
O blues é também a arte dos sobreviventes. Ida Cox, por exemplo,
eficiente na arte e nos negócios, conseguiu manter uma carreira de sucesso
durante quase 40 anos. Nascida em Cedartown, Geórgia, em 1889, Ida
Prather fugiu de casa aos 14 anos com um grupo itinerante, os White and
Clark Minstrels. Durante algum tempo, ela e o marido, Adler Cox, cuida-
vam de um hotel em Macon, Geórgia, ao lado de um teatro, e hospeda-
vam cantoras famosas como Bessie Smith e Ma Rainey. Ao fugir de casa
Ida teve de se esconder no lavatório do trem, que a mãe fizera revistar de
cabo a rabo pela polícia. Quando a mãe morreu em 1920, Ida mudou-se
para Atlanta e recomeçou a carreira, do alto: cantando, acompanhada pelo
pianista Jelly Roll Morton,Jelly Rol! Blues, que se tornou o seu grande hit.
Em 1923, Ida foi a primeira cantora de blues a gravar para a Paramount
Records, sediada em Chicago, seis meses antes de Ma Rainey. De 1923 até
1929, gravou 88 canções, com músicos como a pianista Lovie Austin e o
trompetista Tommy Ladnier. Um de seus números clássicos chamava-se
Wild Women Don't Have the Blues. Um tema comum no blues, a supers-
tição, se torna uma obra-prima na interpretação que Ida fez de Fogyism,
em Chicago, 1928, acompanhada apenas de Joe 'King' Oliver (corneta),
Arthur Campbell (piano) e de um banjo desconhecido:
98 Roberto Muggiati
When your man comes home evil, tell you you are gettin'
old (bis)
That's a true sign he's got someone else bakin' his jelly rol/."
("Por que as pessoas acreditam neste tipo de velharia?/ Se
a coruja uiva, alguém está seguramente morrendo. /Alguns que-
bram um espelho e esperam sete anos de azar. /E se um gato
preto cruza o seu caminho, deitam logo a chorar. /Sonhar com
água suja, tem problema à sua porta. / Seu homem a está dei-
xando para nunca mais voltar. / Quando seu homem chega em
casa brabo, diz que você está ficando velha. /É sinal seguro de
que ele tem outra dona cuidando da comida dele.")
es 99
certo do Carnegie. Ida Cox foi uma das convidadas. Continuou em turnês
até 1944, quando sofreu um derrame. Aposentou-se então no Tennessee.
Em 1961, John Hammond a redescobriu, após algum trabalho de inves-
tigação. Chris Albertson convenceu-a a gravar para a Riversidade em Nova
Iorque, com o saxofonista Coleman Hawkins e o trompetista Roy Eldridge.
Mesmo afastada há décadas, Ida lembrava-se das letras, de cada vírgula.
"Posso ter esquecido de todo o resto - as pessoas e as coisas que fiz na
minha vida - as letras, não." E Ida Cox voltou para casa, em Knoxville,
onde morreu de câncer em 1967.
Outra que gravou com o lendário King Oliver foi Sara Martin, das
cantoras de blues talvez a de estilo mais aproximado ao de Bessie Smith
(gravou até os mesmos temas, como Kitchen Man}. Dos registros de Sara
com Oliver, inserido na orquestra de Clarence Williams - feitos no ven-
tre da besta, Nova Iorque em 1929, o ano do crack - , destaca-se um blues
trágico falando de amor mal resolvido, carregado de pathos, Death Sting
Me Blues. É um exemplo admirável do blues clássico feminino:
"Eu era uma garota selvagem aos sete anos. Era má, lide-
rava a gangue da rua nos furtos e nas confusões. Naquela ida-
de já sabia tudo de sexo e da vida. Xingava melhor que qual-
quer estivador e sentia um prazer sádico em chocar as pessoas."
Ethel começou a cantar cedo. Aos cinco anos já era anunciada como
-by Star numa igreja de Filadélfia. Aos oito, cantava no vaudeville. Ca-
-se aos 13, separou-se aos 14. Trabalhou como doméstica, faxinei-
lavadora de pratos e garçonete. Aos 17 anos, estreou como cantora
.::ma festa de Halloween. Iniciando sua carreira no vaudeville, tornou-
ª primeira mulher - e a segunda pessoa - a cantar St. Louis Blues
..:.m cenário profissional. Era a canção que ficaria fortemente associa-
- a o repertório de Bessie Smith. Estilísticamente, Ethel era a antípoda
Bessie. Ela conta que, numa época em que o seu público exigia que
a masse blues, apresentando-se num programa duplo com Bessie, o
resário desta exigiu que Ethel interpretasse outro gênero de canções.
o fim da temporada, Bessie comentou para ela: "Você não é tão ruim.
' nunca imaginei que alguém pudesse fazer isto comigo em m eu pró-
território e com o meu próprio povo."
Eventualmente, Ethel - que fez sucesso em 1921 com sua grava-
- de Down Home Blues - afastou-se dos blues e passou a interpre-
- standards. Depois de My Mane He's Funny That Way, gravou Dinah,
101
que se tornou um hit. Quando os autores lhe apresentaram esta canção,
Ethel achou o andamento muito rápido e brega. Cantando com seu pró-
prio pianista, ralentou o tempo e acrescentou uma parte improvisada.
Tinha um dom fabuloso de escolher o tratamento adequado para cada
canção. Não à toa, em 1933 recebia um prêmio da Associação da Can-
ção Popular por ter introduzido no mercado 50 canções que se torna-
ram hits. O musicólogo Gene Davis a saúda como "a figura-chave de
transição entre blues rural e o pop urbano." E a cantora popular e de
jazz Lena Horne diz: "Ethel Waters foi a mãe de todas nós."
Ethel ingressou no circuito do beautiful people, conhecendo escri-
tores como Eugene O'Neill, Sinclair Lewis, Somerset Maugham e com-
positores como Cole Porter e Noel Coward. Nos anos em que gravou
para a Columbia, foi acompanhada por músicos como Benny Goodman,
Tommy Dorsey, Jack Teagarden e Gene Krupa. Ainda nos anos 30, Ethel
Waters passou a investir em sua carreira de atriz. Além de vários papéis
na Broadway, foi parar em Hollywood, onde apareceu em vários filmes.
O mais notável foi The Member of the W edding (Cruel Desengano), di-
rigido por Fred Zinnemann, baseado numa história da escritora Carson
McCullers, que virou peça na Broadway em 1950, com Ethel e Julie Har-
ris. Na verdade, a carreira cinematográfica de Ethel começara muito
antes, em 1929, quando ela trabalhou no filme O n With the Show, em
que cantou Am I Blue. Daryl Zanuck pagava a ela US$ 5.000 por mês.
O poeta negro Langston Hughes resumiu o trabalho de Ethel:
1 es 103
foi um dos retornos mais notáveis na história do showbiz. O Príncipe de Gales
era seu fã. Em Londres, ela estrelou ao lado de Paul Robeson no musical
Showboat. Em Paris, atuou com Josephine Baker nos anos de ouro do music
hall. Na Segunda Guerra, fez parceria com Noel Coward em apresentações
no front aliado e cantou para generais como Eisenhower, Montgomery e
Zhukov. Mas o forte em Alberta Hunter sempre foi o blues. Nascida em
Memphis, Tennessee, em 1895, filha de uma cozinheira de bordel e de um
bagageiro dos trens Pullrnan, Alberta fugiu de casa adolescente para can-
tar num cabaré de gângsteres em Chicago. Além de cantar, Alberta com-
punha, mesmo sem ler música. "Se uma nota soava bem ao lado de outra,
eu as deixava juntas. Depois, acrescentava uma terceira e, se a coisa dava
certo, seguia em frente." Em 1920, ela cantava no Dreamland, um clube que
ficou famoso por apresentar, na época, Louis e Lil Hardin Armstrong e King
Oliver. O salário era só de 30 dólares por semana, mas as generosas gorje-
tas dos gângsteres faziam com que nunca voltasse para casa com menos de
500 dólares na bolsa. Conhecida como a Namorada do South Side (o gueto
e bairro de música negra de Chicago), Alberta foi fazer suas primeiras gra-
vações em Nova Iorque em 1921. Com o seu modo intuitivo de compor,
fez Down Hearted Blues. A pianista Lovie Austin colocou a música na par-
titura e ganhou o crédito de co-autora. Alberta gravou a canção em 1922
para a Paramount, mas foi em 1923, na interpretação de Bessie Smith, que
o disco de Down Hearted Blues vendeu em menos de um ano quase um mi-
lhão de cópias.
Em 1927, com um breve casamento terminado (ela alega que não podia
conciliar carreira e marido), Alberta partiu de férias para a Europa. E lá
ficou por muitos anos. Na década de 30, com um repertório inteiramente
mudado, ela se especializa nos standards americanos e ingleses, como Miss
Otis Regrets, Stars Fell on Alabama e I Travei Alone. Fazendo a ponte entre
os Estados Unidos e a Europa, Alberta visita ainda o Oriente Médio e a
África, mantém um show radiofônico na NBC e estrela seu próprio pro-
grama de televisão em 1939, uma experiência da NBC durante a Feira
Mundial. Ela comenta: "Só consigo me lembrar de todas aquelas luzes
quentes. Claro, ninguém tinha aparelho de TV na época, por isso minha
estréia na televisão foi quase um segredo. "
Durante a Segunda Guerra, ela fez shows para as tropas na Alema-
nha, na China, na Birmânia e na Índia. Em 1954, quando a mãe morreu,
Alberta resolveu parar de cantar, fez um curso na Associação Cristã de
Moças de Nova Iorque e foi trabalhar como enfermeira nos 20 anos se-
guintes. Gravou esporadicamente, em 1961 (com Lovie Austin) e em 1962
s 105
Lightnin' Hopkins: a ferramenta e o combustível
13 .
LIGHTNIN' HOPKINS
0 RELÂMPAGO DO TEXAS
es 107
On your dinner time.
("Sabe, recebi um telegrama esta manhã/ Dizendo sua mu-
lher morreu / Mostrei ao Sr. Moore, ele disse / Vá em frente,
negro, você tem que arar um sulco / Aquele branco falou que
está chovendo/ Sim, senhor, estou atrasado. /Posso deixar você
enterrar aquela mulher/ Na sua hora do jantar.")
Suas relações com as gravadoras não eram fáceis. Depois de rodar por
umas doze etiquetas durante dez anos, ele gravou em Chicago para a Mer-
cury, em 1951, um blues engajado sobre a Guerra Fria, Sad News From
Korea, e festejou a paz em 1953 num disco para a Decca, The War Is Over.
Havia uma distância enorme dos blues rurais voltados para a sobrevivên-
cia quase animal a canções filosóficas como esta de Lightnin' Hopkins:
111
Chester Burnett: o lobo de cara limpa
14.
H OWLIN' WOLF
0 LOBO SOLITÁRIO
s 113
Inicialmente, ele gravava souvenirs de todo tipo, de casamentos, festas de
aniversários, funerais e eventos cívicos. Foi assim que Sam descobriu Elvi
Presley, um caminhoneiro que entrou um dia no seu estúdio para gravar
uma canção em homenagem ao aniversário da mãe. Mas, em 1951, Sam
Phillips ainda não encontrara a sua maravilha branca com alma de negra
de um milhão de dólares. O bluesman uivante que ele levara para o estú-
dio chamava-se Howlin' Wolf e Phillips, começando a garimpar no terri-
tório da música negra, exultou:
Foi de Charley Patton a primeira música que Wolf tocou, "uma can-
so bre amarrar o meu pônei e selar a minha égua preta" (Saddle My
ney) . Foi de Patton que Wolf tirou também clássicos do blues como
"Oonful e Red Rooster. Sua figura inspirava respeito. Com lm90 de al-
-a e 120 quilos, fazia jus aos apelidos de Buli Cow e Big Foot Chester.
o que colou mesmo foi Howlin' Wolf, derivado, segundo ele, não
-error que incutia nos oponentes, mas da mais tenra infância, quando
·ô o sentava no colo e contava histórias do lobo mau, para colocar na
a o menino que, desde cedo, era encapetado. Ao contrário dos canto-
e blues do Delta - que pegavam a estrada e corriam pelo país-,
_, -lin' Wolf alternava sua atividade musical com o trabalho na lavou-
Em 1941, depois do ataque japonês a Pearl Harbor, foi convocado pelo
115
exército e serviu em Seattle até 1945, tocando para as tropas. Não guar-
da boas lembranças da vida de caserna: "Eu não gostava do exército. Eles
nos matam com exercícios e acabei com um colapso nervoso."
O ano da grande mudança na vida de Chester foi 1948, quando já
contava 38 anos de idade. Ele decidiu mudar-se para Memphis, Tennessee,
um importante centro musical:
Oh-ohh
Smokestack lightnin'
Shinin'
]ust like gold
Oh, don't you hear me cryin':
W00000-000000
W000-0000-0000
Wooooooo.
es 119
Muddy Waters: o velho blues de roupa nova
15.
M UDDY WATERS
O BRUX O DO D ELTA
Assim como definiu Howlin' Wolf em Back Doar Man, o genial Willie
Dixon pintou o retrato perfeito de Muddy Waters na letra de Hoochie
Coochie Man. O nascimento desta canção é lenda pura: Dixon encurra-
1ou Muddy no banheiro dos homens no intervalo de uma apresentação
em Chicago e lhe ensinou a música quase à força. Hoochie Coochie caiu
~orno uma luva no estilo e na interpretação de Muddy Waters e lançou
os dois, Muddy e Willie Dixon, para a fama.
Nada mau para um garoto nascido em 1915 em Rolling Fork, M is-
issippi, e criado em Clarksdale, a cidade onde Bessie Smith morreu quan-
do ele tinha 22 anos. Seu nome verdadeiro parecia inventado, McKinley
:\.1organfield, filho de um criador de porcos, galinhas e melancias. Já aos
:rês anos, com a morte da mãe, foi para debaixo da saia da avó. O apelido
pegou cedo, porque gostava de brincar num riacho. Mas há outras versões,
da gíria de músico, de que costumava vender peixe e tocar ao mesmo tem-
po. Ele mesmo explica: "Eu tocava onde podia. Todo mundo fritava pei-
"te e se divertia à beça. Eu trabalhava a noite toda, tocando até o amanhe-
~r por cinqüenta centavos e um sanduíche. E feliz da vida!"
Como muitos cantores de blues, Muddy Waters começou na gaita-
e-boca. Só pegou no violão aos 17 anos. A esta altura, já estava casa-
lues 121
do. Quase pensou em desistir quando ouviu dois cobras, Son House e
Robert Johnson. Muddy sentia-se oprimido pela atmosfera do Sul. Em
1940, foi até St. Louis, "só para farejar o pedaço". No verão de 1941,
o caçador-de-sons Alan Lomax o descobriu numa plantação nos arredo-
res de Clarksdale e fez uma gravação com ele, que levou para os arqui-
vos da Biblioteca do Congresso em Washington: Country Blues (o títu-
lo foi dado por Lomax) era basicamente o Walking Blues de Son House,
que recomendara Muddy a Lomax. Muitas décadas depois, o pesquisa-
dor lembrava que o cantor de blues de 26 anos que ele encontrara na
plantação não tinha guitarra nem sapatos. Em 1943, aos 28 anos, Muddy
pegou um trem para Chicago e nunca mais olhou para trás. Ele não sa-
bia, mas estava fazendo nascer o rhythm & blues.
Chicago, para ele, não era lá estas coisas. Muddy trabalhava como
chofer de caminhão de dia e de noite tocava em festinhas - as house rent
parties, espécie de pagodes para pagar o aluguel de amigos - e em infer-
ninhos, sendo pago em uísque e fazendo aos poucos o seu nome. Mas es-
tava cheio de ambição:
Esta canção, entre outras coisas, teria inspirado o nome da mais fa-
mosa banda de rock da Inglaterra (o guitarrista Brian Jorres, um dos fun-
dadores do grupo, era ligadíssimo em Muddy Waters e ensinou tudo a
.Ylick Jagger) . O próprio Muddy lembra que o sucesso não chegou fácil:
ues 123
Muddy Waters: pedras que rolam não criam musgo
nunca foi uma estrela, tinha um talento incrível para fazer canções de
sucesso para estrelas como Howlin' Wolf e Muddy Waters. Seu retrato
e Muddy em Hootchie Coochie tomou emprestado o começo de Rolling
Stone, mas o mérito é todo de Dixon ao emplacar esta canção e outras
~orno ]ust Make Love to Me e I'm Ready.
Em 1958, Muddy Waters tornou-se um dos primeiros bluesmen a
~vadir a praia britânica. Ele mesmo comenta:
es 125
últimas apresentações, no Festival de Blues de Chicago em 1981, regis-
trada para sempre em vídeo. E seu enterro, depois de ser fulminado por
um ataque do coração em 30 de abril de 1983 em Chicago, mobilizou uma
verdadeira multidão e provou, como diz a canção, que pedras que rolam
não criam musgo. A música de Muddy Waters é ouvida até hoje, com o
mesmo sabor de novidade. E assim será, por muitos e muitos anos.
Blues 127
Caston, que, com seu violão, costumava fazer hora na academia de boxe
onde Dixon treinava. Caston tinha um bom faro e empurrou Willie Dixor:
para um caminho sem retorno: a carreira musical.
Na verdade, o caminho já estava traçado desde cedo. Dixon - que
nasceu em Vicksburg, Mississippi, em 1915 -tinha uma mãe, Daisy, que
falava tudo em rimas e escreveu vários livros de poemas religiosos. Já do
pai, Willie - que tinha 13 irmãos - recebeu outro tipo de influência. " Às
vezes eu o via, às vezes ele desaparecia. Meu pai era o tipo de sujeito que
chamavam de marginal. E meu padrastro também." Aos sete anos, o
menino fascinado corria pelas ruas de Vicksburg atrás de um caminhão
que conduzia a banda do pianista Little Brother Montgomery. Na ado-
lescência, Dixon aprendeu músicas nas duas melhores escolas: o blues, na
penitênciária rural; e o gospel, na igreja. Um amigo carpinteiro ensinou-
lhe harmonia e o colocou num quarteto gospel, os Union Jubilee Singers,
atração semanal num programa da rádio WQBC de Vicksburg. Além de
cantar, Willie- seguindo o talento da mãe com as palavras - começou
a adaptar para a música poemas que havia escrito anos antes. Mas os ho-
rizontes de Vicksburg eram muito estreitos para ele. Em 1936, aos 21 anos
se mandou para tentar a sorte em Chicago. Depois da breve temporada
como boxeador, foi fazer música nas ruas e botequins da Windy City com
o amigo "Baby Doo". Os dois ajudaram a formar o grupo Five Breezes
em 1939. A esta altura, Dixon já tinha um baixo de verdade, cortesia de
Jim Martin, político de Chicago que contratou o grupo para tocar em seu
clube noturno. Foi com os Breezes que Dixon gravou seus primeiros dis-
co, oito canções para a Bluebird, em novembro de 1940.
A vida começava a melhorar para Willie Dixon quando os japone-
ses aprontaram aquela confusão toda em Pearl Harbor. Franklin Roosevelt
batizou o "Dia da Infâmia" e botou os Estados Unidos na guerra. A grande
massa dos primeiros chamados - adivinhem - foram os negros. E Willie
Dixon, convocado na base da ignorância, antecipou em vinte anos a de-
sobediência civil de um Muhamed Ali e dos jovens pacifistas dos anos 60 .
Nas suas próprias palavras:
_es 131
Willie Dixon: a insustentável leveza do blues
de três a quatro semanas de concertos produzida por uma organização
alemã. A esta altura, o rock inglês explodia e os Stones colocavam nas
paradas o Little Red Rooster de Dixon. Quando Mick Jagger & Cia. fo-
ram visitá-lo em Chicago, Dixon diz que não pode recebê-los em sua casa,
de tanta gente - fãs, imprensa, bicões - que vinha atrás dos rapazes. O
sucesso do Led Zepellin se deve, em grande parte, ao uso que fez de Dixon:
com suas covers das canções You Shook Me e I Can't Quit You, Baby e
com o plágio de You Need Love, sob o nome de Whole Lotta Love.
Em 1969, Leonard Chess morreu e, com ele, a gravadora Chess.
Dixon seguiu seu caminho formando uma banda de turnês, a Chicago Ali
Stars. Em 1970, a Columbia lançou um álbum com Willie interpretando
nove de suas mais famosas canções. Em 1977, sofrendo de diabetes, Willie
teve um pé amputado. Mesmo assim prosseguiu na luta. Neste mesmo ano,
conseguiu um acordo sobre royalties que lhe permitiu finalmente ter uma
paga justa por um dos mais criativos songbooks dos blues.
O repouso do guerreiro chegou em 1983. Com a mulher Marie e 13
filhos, Willie deixou a gélida Chicago pela ensolarada Califórnia. Repouso
elativo, é claro. Próximo dos estúdios de Hollywood, ele se viu logo muito
olicitado. Participou das trilhas de A Cor do Dinheiro e La Bamba. Em
. ez de consumir o dinheiro ganho, o engajado Willie iniciou um nova
:::ausa. Criou a Blues Heaven Foundation, uma organização não-lucrati-
a para corrigir injustiças passadas e estimular as vocações, mantendo vivos
- memória e o futuro do blues. Em 1987, o Led Zeppelin finalmente con-
-ordou em indenizar Dixon pela apropriação indevida de sua música.
De paz com a vida, Willie Dixon morreu de um ataque cardíaco pro-
ocado pelo diabetes em janeiro de 1992 em Burbank, Califórnia. Para o
terra, Dixon voltou a Chicago, onde tudo começou. A despedida foi
_ movente, como relatou O Estado de São Paulo de 7 de fevereiro de 1992:
133
caminharam juntos no compasso do blues enquanto morado-
res da vizinhança acenavam de suas sacadas e seguravam posters
com o rosto sorridente de Dixon, (... ) Andrea Denham, funcio -
nária da Administração da Universidade de Chicago, faltou ao
serviço e fez o marido imitá-la para acompanhar o féretro. 'As-
sim podemos ser parte da história,' disse."
Ele já gravou uma trilha sonora com Miles Davis, cantou com Bob
Dylan no Village, trabalhou com John Belushi no filme Os Irmãos Caras-
de-Pau, gravou com roqueiros americanos como Johnny Winter, George
Thorogood e o Canned Heat e ingleses como .John Mayall e Eric Clapton.
Aos 74 anos, tem uma bela casa nas colinas dos arredores de San Francis-
co. Tem ainda outras casas: uma na área da baía de San Francisco, outra
em Detroit e está comprando outra no Sul da Califórnia. Na frente de sua
:asa, tem vários carros de luxo. Depois de 55 anos de música, dá-se o luxo
e só tocar quando quer; depois de muitas mulheres (eram três, mas outro
dia lembrou-se de um quarto casamento), vive uma vida simples, com ca-
:horro, guarda-costas e motorista. Ele, que sempre apreciou as mulheres
e as usou como inspiração para suas músicas, hoje se mostra um pouco cético
em relação ao casamento: "Elas querem impedir você de fazer música. Dizem
_ue querem se casar e quando você se casa elas começam a mandar em você."
Este é o retrato em miniatura de John Lee Hooker, uma lenda viva do
lues, o último grande músico da tradição do Delta do Mississippi. Nem
-udo foi assim tão fácil para ele. Nasceu em agosto de 1920 em Clarksdale,
.::dade que se celebrizou como local da morte de Bessie Smith, embora
-enham saído dali bluesmen com Hooker e Muddy Waters. Seus pais traba-
avam na lavoura, tinham 11 filhos e atuavam na igreja, o pai como pas-
- r. Hook tocou pela primeira vez em serviços na igreja, mas estava embe-
ido da tradição pagã do blues do Delta. Seu primeiro instrumento foi um
:.ibo esticado junto à porta do celeiro. Seu padrasto Will Moore costuma-
ª receber visitas de cobras do blues como Blind Lemon Jefferson, Blind
ke e Charley Patton. O próprio Hook lembra: "Comecei a tocar violão
·os 13 anos. Aprendi com meu padrasto, Willy Moore. O estilo que eu toco
-aje, ele tocava na época. Pena que ele não tenha ido adiante."
Corre 1934, a América está mergulhada na Depressão, e o garoto John
ee, de 14 anos, foge de casa para tentar a sorte em Memphis. Mais tarde
_ e explicaria: "Sabia que não conseguiria nada no Mississippi, então co-
.ecei a fazer o meu caminho para o Norte." Em Memphis, John Lee tra-
.tlhou em house parties - espécie de pagodes de blue - e em juke houses,
ues 135
botequins com música. Para sobreviver, empregou-se como lanterninha num
cinema da Beale Street, o W.C. Handy Theater, nome em homenagem ao
Pai do Blues - com uniforme vermelho e lanterna na mão, como manda-
va o figurino. Depois de três anos em Memphis, Hook foi um pouco para
o norte - Cincinnati e Knoxville, trabalhando até com grupos de gospel.
Diz ele: "Eu fazia aquelas irmãs pularem em cima dos bancos da igreja e
elas diziam: 'O garoto sabe cantar, vejam só!"'
Em 1942, John Lee chegou à Motor Town, Detroit. Trabalhou como
porteiro e depois foi parar na linha de montagem da Ford. Continuava
trabalhando à noite em bares e festas, fazendo a sua música. Tentando
chegar às gravadoras, John Lee fez um disco de demonstração e o levou
para um produtor independente chamado Beinard Besman. Era novem-
bro, fazia muito frio e Besman lembra:
ues 137
rhythm & blues e o rock 'n' roll começavam a tirar público dos homens do
blues. Lembra Hooker: "Nós continuávamos dando o nosso recado, mas
não acontecia nada." De repente, o céu clareou e o sol voltou a brilhar.
Estimulados pela contracultura beat, os jovens da América descobriram a
força e a pureza da arte marginal do velho blues e das canções folk . No
final dos anos 50, John Lee cantou num clube do Greenwich Village - o
Gerde's Folk City - na companhia de Bob Dylan, que em pouco se torna-
ria a grande estrela da canção de protesto nos Estados Unidos e no resto
do mundo. Hook começa também a se apresentar nos festivais america-
nos e europeus, onde é recebido com o maior carinho e respeito. Em vez
de se acomodar, aperfeiçoa cada vez mais o seu trabalho:
A atividade de John Lee pode ter diminuído nos anos 90, mas ele
tem mostrado um incrível ecumenismo musical. Apresentou-se no Brasil
no Free Jazz Festival de 1990 e fez o maior sucesso. Participou da trilha
sonora de The Hot Spot, um film noir de Dennis Hopper, ao lado de
Miles Davis e Taj Mahal. Gravou em 1987 um clássico de Robert John-
son, Terraplane Blues, acompanhado por seu discípulo, o guitarrista Roy
es 141
T-Bone Walker: o mago endiabrado da guitarra
18.
T-BONE WALKER
O PAI DO RHYTHM & BLUES
Afinal, onde foi que nasceu o rhythm & blues? Nove entre dez fãs
responderão: em Chicago. Será? Nos anos 40, o êxodo de muitos sulistas
pobres não era mais para o Grande Norte, mas para o promissor Oeste.
Com a Segunda Guerra, a indústria bélica e os campos de petróleo ofere-
ciam muitos empregos na Califórnia. Os japoneses de Los Angeles foram
removidos para campos de concentração e o bairro próximo da Central
Avenue conhecido como Little Tokyo em pouco tempo passava a se cha-
mar Little Harlem. Por volta de 1950, os negros de Los Angeles soma-
vam cerca de 200.000. E haja música para essa gente! Música geralmen-
e feita por negros. Todo tipo de som rolava em LA nesta época, do revo-
lucionário bebop (até Charlie Parker deixou sua marca por lá) ao mais
rimitivo blues. Foi neste ambiente que T-Bone Walker fez o seu nome.
O nome, aliás, não era este. Ele nasceu Aaron Thibeaux Walker em
Dallas, em 1910. A música estava no sangue e o garoto dançava e passava
chapéu nas apresentações da orquestra de cordas do padrasto. Aos 12
.mos, ganhou um banjo da mãe. Foi guia de cego - e que cego!-, Blind
:..emonJefferson de quem aprendeu muita coisa. Grudou também em Hu-
die Leadbelly para melhorar o seu blues. Aos 16 anos já havia gravado
_ois discos com o nome de Oak-Cliff T-Bone. Acompanhou as cantoras
_ia Rainey e Ida Cox e exibia uma bela técnica quando aportou na Cos-
·..a Oeste em 1936. Antes disso, fez muito laboratório instrumental. Foi
uno de Chuck Richardson em Oklahoma City. (Outro aluno de Chuck,
~- adie Christian, tornou-se o criador da sintaxe moderna da guitarra de
izz.) O estilo dos dois- Walker e Christian - era muito parecido com
de um instrumento de sopro como o trompete ou o saxofone.
Não se sabe muito bem quando Walker aderiu à guitarra elétrica. Já
1932, Rickenbacker colocou à venda sua Electro Spanish Guitar, mas
- ucos exemplares foram vendidos. Por volta de 1936, quando Walker
egava a Los Angeles, o mercado oferecia a guitarra elétrica Gibson
150, conhecida como "o modelo Charlie Christian". Havia lama nas
de Watts - o gueto de LA- quando Walker começou a trabalhar
o dançarino na banda do saxofonista Big Jim Wynn. Em pouco tem-
143
po, ele cantava e tocava a guitarra, impressionando não só com o seu de-
sempenho sonoro mas com toda uma acrobacia que incluía tocar o ins-
trumento atrás de suas costas e exibir alguns passos coreográficos. Seu
virtuosismo chamou a atenção do band-leader Les Hite, que o contratou
em 1939 e foi recompensado, no ano seguinte, com uma nota na revista
de jazz downbeat, chamando Walker de "nova estrela da banda".
Por esta época tem início a transição do blues lento (que Walker sabia
tocar) para o andamento mais rápido, chamado jump, do qual ele era um
mestre. O crítico Samuel Charters escreveu que Walker
es 145
B.B. King: canto e guitarra em close
19 .
B.B. KING
O REI DO BLUES
- .ues 147
três acordes. King comenta: "Quer saber de uma coisa? Estou tocando
aqueles acordes até hoje ... "
Mas as mãos de King, aos 15 anos, se ocupavam mais com a lavou-
ra. A família se mudou para uma grande plantação em Indianola e ora-
paz "picava algodão, dirigia um trator e servia de motorista para opa-
trão por 22 dólares por semana." Em 1944, aos 18 anos, King foi convo-
cado pelo exército para o exame médico em Camp Shelby. O patrão não
queria perder os seus serviços e apelou para um dispositivo - uma tal de
"dispensa ocupacional" - , alegando à junta de alistamento que King era
um trabalhador indispensável. Esperando a resposta do exército, o patrão
disse a King que ele aumentaria suas chances de não ir à guerra se seca-
sasse. King imediatamente se casou com a namorada, Martha Denton. Sua
dispensa foi concedida, como trabalhador numa atividade essencial para
o esforço de guerra. A dispensa obrigava King a ficar atrelado à lavoura
enquanto durasse a guerra. Ele se sentia praticamente um escravo. Oca-
samento também não foi um mar de rosas. "Durou seis anos", conta King.
"Os filhos daquele casamento morreram muito pequenos. Nunca tivemos
sorte com crianças."
King pediu emprestado 15 dólares ao patrão e comprou seu primeiro
violão. "Eu praticava o tempo todo aqueles três acordes e acabei apren-
dendo sozinho o blues. Nos sábados em que havia menos trabalho na
plantação, eu tocava nas esquinas de Indianola e fazia o dobro do dinhei-
ro que ganhava numa semana inteira de lavoura." O coração de Riley
King estava voltado para Memphis, 200 quilômetros ao norte de In-
dianola. A música negra que ouvia pelas estações de rádio de Memphis
lhe causava arrepios na espinha. Tentou convencer os cantores do seu
grupo, o St. John's Gospel, a deixarem Indianola em busca de fama e
fortuna. Não toparam a aventura. Ele sim. Em 1946 deixou para trás a
mulher e a fazenda e, pegando carona, chegou a Memphis apenas com
a guitarra debaixo do braço. Seu plano era ericontrar o primo Bukka
White, um bluesman de alguma reputação, mas King não tinha sequer
certeza de que Bukka vivia ainda em Memphis. Começou a procura pela
Beale Street, a grande artéria da música, imortalizada por uma canção
do Pai do Blues, W .C. Handy. Uma noite, Riley dormia num vagão de
trem; a noite seguinte, numa casa de jogo. Depois de alguns dias de an-
danças, acabou achando o primo Booker T . Washington (Bukka) White,
um excepcional músico de blues e um homem que sabia muito da vida.
Quando jovem, suspeito de um assassinato - que não cometeu - numa
birosca do Mississippi, Bukka fugiu para Chicago. Estava diante de um
Bl ues 149
Williamson - que anunciava o fortificante Hadacol na KWEM - ao fazer
um programa de dez minutos na WDIA patrocinado por outro tônico, o
Pepticon. Blues Boy tornou-se até, então, o Pepticon Boy. As apresenta-
ções em rádio e ao vivo dispersavam-se no ar. A imortalidade estava nos
discos e B.B. King teve a sua primeira oportunidade em 1949, com o selo
Bullet, de Nashville, para o qual gravou Miss Martha King, fazendo mé-
dia com a mulher e inovando na instrumentação, com uma banda de rhythm
& blues que incluía trompete, trombone e dois saxofones. E aqui vai uma
trívia de gravadora independente: os irmão Bihari, em Los Angeles, gosta-
ram do disco e encomendaram uma gravação para o seu selo RPM, a ser
feita em Memphis por Sam Phillips, que inaugurava assim, com B.B. King,
o seu Memphis Recording Service. (Passariam depois por Sam Phillips outros
bluesmen famosos e roqueiros como Elvis Presley, Jerry Lee Lewis e Carl
Perkins.) Além do autobiográfico B.B. Blues e de Three O' Clock Blues -
seu primeiro hit, em 1950 - , King gravou She's Dynamite, que prenuncia
já o novo blues, com o pé na lama do Delta e a cabeça voltada para a fama
nos cartazes da Broadway e nas luzes de Hollywood e Las Vegas.
Well, she's a boogie woogie woman, she boogies ali the time
(bis)
Well, now if she keeps on boogein', she's bound to lose her
mind.
("Ela é uma mulher do boogie woogie, faz boogie o tem-
po todo /Se continuar fazendo boogie, vai acabar perdendo a
cabeça.")
153
qualquer nacionalidade, se desejar, pode tocar qualquer tipo de
música, de todas as maneiras. E acho que já vêm fazendo isso
bem. Já andei por muitos lugares. No japão, por exemplo, es-
cutei certa noite uma banda que tocava blues muito bem. Che-
guei perto e disse hello e eles responderam em japonês. Não
falavam uma palavra de inglês, mas não precisavam, para to-
car o blues. Qualquer um pode tocar. Existe música feita por
negros que não consigo ouvir, não me agrada. Não é o fato de
ser negro que fará de alguém um grande intérprete do blues."
--a:
155
emprego para os pianistas do que em qualquer outra parte do
mundo. Os bordéis de Storyville precisavam de 'professores' e
nós os tínhamos, em muitos estilos diferentes ... "
Blues 157
especial em 1934, quando a acordaram no meio da madrugada batendo
à sua janela. Era o saxofonista Ben Webster convocando-a para tocar numa
jam session em que todos os pianistas já haviam desmaiado. Coleman
Hawkins desafiava os tenores locais - ases como Webster, Hershel Evans
e Lester Young. Os músicos improvisavam sobre standards e sobre blues
e Mary Lou conta que, quando chegou ao clube, viu Coleman Hawkins
O jazz de Kansas City era todo energia e os blues, brigando com o volu-
me de som das big bands, tiveram que se tornar mais resistentes. Os canto-
res competiam com os instrumentos não só em volume de som mas até em
capacidade de improvisação. Nasceu daí a tradição dos blues shouters -
os berradores de blues - , que cultivavam um canto mais rápido, usando a
letra mais como uma base sonora do que como depoimento poético. Frases
como" I !ove my baby, I'm aliar ifI say don't" e "Nobody !oves me, nobody
seems to care" aparecem com freqüência nos blues de K.C., tratadas quase
como riffs instrumentais. As interpretações de St. Louis Blues à maneira clás-
sica por Bessie Smith e à moda de K.C. por (Big) Joe Turner evidenciam o
abismo entre as duas escolas. Além de Turner, outro famoso shouter foi
Jimmy Rushing. Durante 15 anos, a partir de 1935, Mr. Five by Five, esta
figura imensa de 115 quilos, cantou na orquestra de Count Basie, fazendo
praticamente o papel de instrumento solista, com blues rítmicos como este:
Bl ues 159
vibrafone /baixo / bateria), que abriu toda uma nova avenida para oca-
samento do jazz com o barroco através de grupos com os Swingle Singers
e do pianista Claude Bolling, autor das Suítes para Jazz-Piano Trio e Flauta
(com Jean-Pierre Rampal); e Violão (com Alexandre Lagoya); e Violino
(com Pinchas Zuckerman).
Discípulo de Parker nos anos 40, o trompetista Miles Davis virou o
bop do avesso e soube adaptar o blues a um contexto introspectivo; aliás,
o próprio Parker antecipara esta tendência em seu Cool Blues. Miles Davis
dizia em 1957:
I wonder
My little darlin'
Where can you be
Again tonight
While the moon
Is shinin' bright
I wonder.
("Eu me pergunto/ Minha querida/ Onde está você/ De
novo nesta noite/ Enquanto a Lua/ Brilha como nunca,/ Eu
me pergunto.")
Blues 165
sou a empregar o termo da RCA e o estilo ficou conhecido, daí em diante,
como rhythm & blues.
O rhythm & blues na verdade era uma forma de blues urbano mais
rápido, usando guitarras e eventualmente baixos eletrificados. Abria tam-
bém sua instrumentação para saxofones estridentes e roucos, imitando
gritos e - contrariando a índole melódica do instrumento - ajudando a
marcar o ritmo frenético da nova música.
O nome rock 'n' rol/ - que definiu o som mais marcante do século
- veio da letra de um velho blues de 1922, regravado depois da guerra
por Big Joe Turner: "My baby she rocks me with a steady rol!."
Quem batizou o novo estilo em 1951 foi Alan Freed, um admirador
ferrenho de Beethoven e Wagner que produzia um programa noturno de
música clássica para uma rádio de Cleveland, Ohio. Um dia, um amigo o
levou quase à força para visitar uma loja de discos freqüentada pela juven-
tude local. Freed teve um verdadeiro choque cultural quando viu jovens
casais dançando energicamente ao som de uma música que ele não só sempre
ouvira mal, como até ignorara: o rhythm & blues.
Foi do blues que veio a primeira canção do rock 'n' roll a vender um
milhão de discos. Todos pensam que foi Rock Around the Clock, por Bill
Haley & His Comets. Haley, um branco de Detroit, começou tocando
música country. Em 1948, já gravava com um grupo chamado Four Aces
of Western Swing. Em 1949, mudava o nome da banda para The Saddle-
men. Em 1952, deu uma guinada: voltou-se para o rhythm & blues e
batizou o grupo de Bill Haley & His Comets, uma irreverente alusão ao
cometa Halley. Apesar do visual caucasiano, dos ternos bem-comporta-
dos e gravatinhas-borboleta e do pega-rapaz nos cabelos louros do líder,
o grupo incendiou o público jovem. No dia 12 de abril de 1954, Haley e
seus rapazes entraram no estúdio Pythian Temple da Decca, em Nova
Iorque, para fazer uma gravação histórica: (We're Gonna) Rock Around
the Clock. (Nada de tocar e dançar em volta de algum hipotético relógio,
como querem muitos tradutores de filmes dublados para a TV; a expres-
são idiomática "around the clock" quer dizer "sem parar".) O disco ven-
deu de saída 75 mil cópias. Mas o grand hit surgiria na gravação seguin-
te dos Comets, em 7 de junho. Haley escolheu um blues-novidade grava-
do naquele mesmo ano por Big Joe Turner, Shake, Rattle and Roll. O
crítico Charlie Gillett analisa:
Shake, Rattle and Rol! por Bill Haley & His Comets ficou 12 sema-
na entre os Top 20 (20 mais vendidos) e tornou-se o primeiro disco de
Blues 167
rock 'n' roll a vender um milhão de cópias. (Rock Around the Clock vol-
tou à cena em 1955, ao figurar como carro-chefe da trilha sonora do fil-
me Sementes da Violência, e acabaria vendendo mais de 20 milhões de
cópias.) Uma das influências importantes da música de Bill Haley veio de
outra vertente do blues: o jump, também conhecido como jive ou ainda
jump and jive ou shuffle. Curiosamente, como o termo " jazz", "jive" e
jump também significavam, na gíria negra, "fazer sexo" .
Se o padrinho do jump é Cab Calloway, o pai é Louis Thomas Jordan,
nascido em 1908 numa família de músicos do Arkansas. Cantando e to-
cando clarineta e saxofone, Jordan começou garoto como sapateador nos
Rabbit Foot Minstrels, o mesmo grupo que deu também a primeira chan-
ce a Bessie Smith. Excursionou depois com a Rainha do Blues, Ma Rainey,
e foi parar em Nova Iorque na orquestra de Chick Webb, que tinha como
vocalista a jovem Ella Fitzgerald. Webb era o rei do Savoy, uma das mais
importantes pistas de dança do Harlem. O esperto Jordan aprendeu tudo
o que tinha a aprender com esta escola - do blues clássico de Ma Rainey
ao swing de Chick Webb - e seguiu em frente com sua própria banda. Com
o Louis Jordan and his Timpany Five, formado em 1939, ele começa a gravar
na Decca, e já em 1941 um de seus discos (Knock Me a Kiss e, do lado B,
l'm Gonna to the Outskirts ofTown) vende meio milhão de cópias. Jordan
atinge a marca de um milhão com Choo-Choo Ch'Boogie e Saturday Night
Fish Fry, gravando ainda sucessos como Let The Good Times Roll, Baby,
It's Cold Outside, Stone Cold Dead in the Market (com Ella Fitzgerald),
Your Socks Don't Match (com Bing Crosby). O cinema também acolhe Louis
Jordan e ele assina a trilha de um desenho de Tom & Jerry (Smitten Kitten)
e estrela uma série de soundies, filmetes de três minutos que são os precur-
sores do videoclip e são apresentados com estardalhaço nos cinemas ao lado
dos últimos longa-metragens de Hollywood, até duas ou três vezes por ses-
são, a pedido do público.
Tudo isso traz fama e dinheiro para Louis Jordan, mas os historiadores
do blues e do rock ainda estão lhe devendo. Não é o caso dos ingleses Roy
Carr, Brian Case e Fred Dellar, que o colocam nas alturas no livro The Hip:
Blues 171
Tinha em seu elenco grupos como The Moonglows e lançou ases do rock
'n' roll como Bobby Charles e Chuck Berry. Em 1953, os irmãos Chess
abriram uma etiqueta subsidiária, a Checker, que incluía entre seus ar-
tistas de rhythm & blues o lendário Sonny Boy Williamson, Little Mil-
ton, Little Walter e Lowell Fulson.
Um artista que fez história na Chess foi Bo Diddley, talvez o músico
mais característico da fusão do blues com o rock 'n' roll. Foi mais um
bluesman de nome a nascer na cidade onde Bessie Smith morreu em 1937,
Clarksdale, Mississippi. Aliás, quando Bessie morreu, Bo tinha cinco anos
e mudava-se com a madrastra para Chicago. Seu nome original, Elias Bates,
passou para Elias MacDaniel, do sobrenome de uma prima de sua mãe, e
passou depois a Bo Diddley, apelido dos tempos do colégio. ("Bow did-
dley" era um dos nomes dados ao violão rudimentar de uma corda, de
origem africana, o equivalente do nosso berimbau. ) Seu primeiro disco, Bo
Diddley, com toda a sua carga de afirmação individual, foi seguido por outro
manifesto de virilidade, I'm a Man. Tudo isso aconteceu em 1955 e desde
então o blues, ou rhythm & blues ou rock 'n' roll ou seja lá o que for, nunca
mais foi o mesmo. Batizando o "Bo Diddley Beat", ou "Bo Diddley Sound",
Elias McDaniel influenciou roqueiros dos dois lados do Atlântico - de Elvis
a Eric Burdon, de Hendrix aos Stones - e reinjetou na música afro-ame-
ricana dos anos 50 o vigor da herança primai.
O historiador de jazz alemão Joachim E. Berendt assinala, com cla-
reza, a revolução que Bo Diddley e outros músicos da tradição do blues
provocaram na cultura do nosso século:
Blues 173
embutido na idéia da democracia e na luta pelos direitos civis. Não por acaso
o ano em que estourou o rock 'n' roll, 1954, foi o mesmo em que o Supre-
·m o Tribunal dos Estados Unidos adotou a decisão histórica de proibir a
segregação racial nas escolas públicas. Estas aspirações " brancas", segun-
do alguns sóciomusicólogos, teriam levado a um "embranquecimento" da
música negra. A resposta a este dilema foi a sou/ music, ainda de sotaque
negróide, mas com as arestas aparadas, uma mutação mais suave do som
afro-americano. As blue notes, é claro, continuavam entrando na receita,
mas o soul evitava o tom cru e direto do blues e se inspirava no som reli-
gioso dos spirituals e do gospel. Aliás, a fronteira sempre foi bastante tê-
nue. O cantor Bobby Bland dizia que o blues e o spiritual são a mesma coisa,
basta cantar "baby" num e "Lord" no outro ...
Já a partir de 1953, o rock nascente competia com um tipo mais sua-
ve de música vocal, tipificada por sucessos como Crying in the Chapei
(Orioles), Pretender e Only You (The Platters). Surgia o estilo de riffs vocais
chamado onomatopaicamente de doo-wop. (O roqueiro iconoclasta Frank
Zappa gravaria em 1967 uma bem-humorada paródia de doo-wop no LP
Cruising with Ruben and the Jets, não escondendo uma certa afeição pelo
gênero.) O rock 'n' roll teve o seu apogeu entre 1956e1958. Surgiu então
uma série de novas danças e novos ritmos: Harry Belafonte introduziu o
calypso caribenho, Chubby Checker fez todo mundo se sacudir no balan-
ço do twist - e quem se lembra do jerk, do Madison, do Watusi ou do
hully-gully? O território estava aberto para a invasão da sou/music e ela
foi concebida e lançada virtualmente como um produto industrial. Ex-
boxeador, músico nas horas vagas, Berry Gordy Jr., 29 anos, ganhava 85
dólares por semana em 1959 trabalhando na linha de montagem da Ford,
em Detroit. A cidade, além de ser a maior concentração mundial da indús-
tria automobilística, era a quarta maior população negra dos Estados Uni-
dos, depois de Nova Iorque, Chicago e Filadélfia. Berry, que tivera tam-
bém uma loja de discos de jazz, tomou 800 dólares emprestados da irmã
e resolveu começar a gravar e distribuir discos. Queria apenas se livrar do
trabalho da fábrica, nada mais. O que a princípio parecia empreitada modes-
ta, quase uma aventura sem futuro, transformou-se de repente num negó-
cio de proporções gigantescas. Gordy acertou na mosca. E o sucesso não
veio por acaso. Ele possuía um raro talento para detectar as sutilezas do
mercado de disco e uma grande habilidade para produzir discos e lidar com
os artistas. Deu à sua gravadora o nome de Motown, em homenagem ao
apelido de Detroit, Motor Town. Em pouco tempo a Motown era desdo-
brada em várias etiquetas e firmas subsidiárias: Tamla, Gordy, depois Soul
Alheio a críticas, Berry Gordy Jr. foi em frente. Seu primeiro suces-
so, lançado em novembro de 1959, já dizia tudo: Money (That's What I
Want), pelo cantor Barrett Strong. (A canção foi gravada depois por John
Lennon, pelos Rolling Stones e Pretenders.) No sobrado do 2648 West
Grand Boulevard em Detroit, a sede da Motown, ele ergueu uma imen-
sa placa com os dizeres HITSVILLE, USA. E a Motown se tornou realmente
uma fábrica de hits: dos quase 600 compactos que lançou entre 1960 e
1970, mais de dois terços foram sucessos de venda. Tudo isso não acon-
teceu à toa. Gordy, além de workaholic, mantinha um rigoroso contro-
le de qualidade sobre os seus produtos: só autorizava o lançamento de
uma dentre 70 faixas gravadas.
"Em 16 anos ganhei 367 milhões de dólares. Devia estar fazendo a
coisa certa", disse Berry Gordy Jr. ao vender a Motown em 1988 para
a MCA e o grupo de investimentos Boston Ventures por 61 milhões de
dólares. Gordy não se aposentou, continuou administrando a Jobete
Music Publishing, a editora que detém os direitos sobre quase todos os
hits da Motown. Entre os talentos que revelou estão Diana Ross (do gru-
po Supremes), Stevie Wonder, Marvin Gaye, Lionel Ritchie e Michael
Jackson e o Jackson Five. (Em 1973, o grupo - com exceção de Jermaine
Jackson, que se casou com a filha de Berry Gordy - pagou a multa de
600 mil dólares para se emancipar da Motown.)
Berry Gordy, Diana Ross, Michael Jackson - o showbiz criou sua
aristocracia negra. E ainda: as últimas listas dos entertainers mais bem
pagos dos Estados Unidos, feitas pelas revistas Forbes e Fortune, são
Blues 175
encabeçadas por negros como Bill Cosby, Eddie Murphy, Richard Pryor,
Oprah Winfrey e Whoopi Goldberg. De repente, os negros adotaram o
lema do beautiful people dos anos 20 de que "viver bem é a melhor vin-
gança". O fenômeno foi até analisado por um livro em 1988, Repeal of
the Blues (Rejeição do Blues), de Alan Pomerance, que mostra o artista
negro fugindo da "tristeza" (blues) e do padrão de desgraça tipificado
pelo cantor de blues.
Entre estas estrelas da música negra estão cantores que sofreram uma
forte influência do jazz e do blues. Ray Charles Robinson (cortou o so-
brenome para não ser confundido com o boxeador 'Sugar' Ray Robinson)
nasceu em 1930 em Albany, Geórgia, e aos seis anos sofreu de glaucoma
e ficou cego. Como tinha queda para a música, começou a estudar desde
cedo. Em sua autobiografia, Brother Ray, de 1978, ele lembra:
Se Ray Charles guardou pelo menos alguma memória das coisas que
viu até os seis anos, Stevie Wonder já nasceu cego. Como Ray, ele se in-
sere na tradição do músico que, por ser cego, tem realçadas as suas capa-
cidades auditivas (pelo menos é o que reza o folclore ... ). Steveland Morris
nasceu em Saginaw, Michigan, em 1950, e aos oito anos já dominava uma
quantidade de instrumentos, doados por parentes e vizinhos: piano, gai-
ta-de-boca, bongos, bateria. Stevie acabou recomendado para Berry Gotdy
Jr. e, aos 13 anos, conseguia o feito de emplacar um single e um LP no
primeiro lugar das paradas. Ficou conhecido como Little Stevie Wonder.
Cresceu, deixou o Little de lado, e como Stevie Wonder passou a fazer
uma música cada vez mais rica e complexa, ampliando os seus horizon-
tes em álbuns conceituais como Songs in the Key of Life (1976) e ]ourney
through the Secret Life of Plants (1979). Stevie conquistou o mundo da
música pop com canções com My Cherie Amoure Isn't She Lovely, mas
cada frase de suas composições, antes de chegar ao topo das paradas, foi
banhada na tradição do blues.
Outra que ouviu muito blues até se tornar a Rainha do Soul foi Aretha
Franklin. Nascida em 1942 num dos pontos focais do blues - Memphis,
Tennessee - começou a ouvir música e a cantar na igreja. O pai era pas-
tor e teve 70 álbuns de sermõ,es lançados pela gravadora de blues Chess.
Quando a família se mudou para Detroit, ele passou a dirigir o coro da
igreja New Bethel. Dotada de uma voz que impressionou a todos desde
cedo, Aretha ainda pequena cantava e tocava piano, acompanhando o pai
em turnês. Encorajada pelo cantor Sam Cooke, amigo da família, gravou
uma série de fitas demos com a ajuda do baixista de jazz Major Holley.
Mais uma vez, coube ao todo-poderoso produtor da Columbia, John
Hammond, descobrir e lançar uma nova estrela. Já em 1961- a canto-
ra tinha apenas 19 anos - saía seu primeiro LP pela grande gravadora
que lançara Bessie Smith nos anos 20. Mas o repertório, quase todo de
standards, não fazia jus à voz de Aretha. Foram necessários alguns anos
- e o talento do produtor Jerry Wexler- para colocá-la no caminho cer-
to. Em sua recente autobiografia, Rhythm and Blues, Wexler conta que,
depois de sete anos na Columbia, Aretha estava profundamente frustra-
da. Era um prodígio do gospel, tinha a melhor voz do país, mas seu po-
tencial se perdia com o repertório errado e os arranjos inadequados, às
Blues 177
vezes usando até orquestras de cordas. Wexler levou-a para gravar em
Muscle Shoals, Alabama, não muito longe da Memphis natal de Aretha.
Lá, sentada ao piano e acompanhada de órgão, metais, saxofones, seção
rítmica e vocais de fundo, ela gravou I Never Loved a Man (The Way I
Lave You) e Do Right Woman - Do Right Man. O compacto resultan-
te virou ouro pouco depois de sair e o mesmo aconteceu com o LP, ter-
minado em Nova Iorque. No verão de 1967, Aretha Franklin era a nova
sensação da música pop americana. Com a fabulosa voz gospel - lem-
brava a de sua tia Clara Ward, ou a de Mahalia Jackson - ela atacava
um repertório profano de canções de amor ao embalo do rhythm & blues.
Um dos hits de Aretha era Respect, assinado por Otis Redding, ou-
tro que se tornaria superstar no verão de 1967. Tivesse surgido em outra
época, Redding tomaria certamente o rumo do blues. Ele nasceu em 1941
em Dawson, e mudou-se depois para a vizinha Macon, na Geórgia, ambas
no Blue Belt - o Cinturão Azul do blues. Como Aretha e muitos outros,
Otis começou a cantar no coro da igreja e da escola. Em pouco tempo
pegava a estrada, como roadie e cantor substituto da banda Johnny Jenkins
and the Pinetops. Um dia, em 1962, quando Jenkins gravava no estúdio
da Stax em Memphis, Redding aproveitou uma sobra no tempo de estú-
dio e gravou duas composições suas, These Arms of Mine e Hey Hey Baby.
O chefão da Stax ficou impressionado: contratou Otis na hora e lançou
These Arms of Mine num compacto. O single teve boa colocação nas
paradas e abriu caminho para o primeiro álbum de Redding, Pain in My
Heart. Mas, mesmo gravando regularmente desde 1962, Otis enfrentava
problema idêntico ao de Aretha: o público americano ainda não o desco-
brira. Era até mais apreciado na Europa, em particular na Grã-Bretanha.
Redding participou de várias turnês do elenco da Stax-Volt entre 1964
e 1967, liderando a excursão de 1965 à Europa. Sua grande oportunidade
chegou afinal com o festival Monterey Pop, onde se tornou estrela da noite
para o dia, como Jimi Hendrix e]anis] oplin. Otis Redding não teve muito
tempo para desfrutar o seu sucesso. Morreu em 10 de dezembro de 1967
com quatro membros da banda que o acompanhava, os Bar-Kays, quando
seu avião caiu no lago Monona, perto de Madison, Wisconsin. Três dias
antes, Otis gravara sua última canção (Sittin' On) The Dock of the Bay,
uma espécie de hino soul à cidade mais cantada daqueles anos, San Fran-
cisco. Lançada no final de janeiro de 1968, Dock of the Bay logo chega-
va ao número um nas paradas dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha.
Havia uma certa atmosfera sinistra neste hit póstumo, realçada pela sono-
plastia de gaivotas e ondas que evocavam o fim do cantor no fundo das
Blues 179
Budd::J Guy & Juniot WeHs
Buddy Guy & Junior Wells: o blues vai bem e manda lembranças
mundo do rock porque certa vez Jimi Hendrix cancelou uma apresenta-
ção só para ir ao seu camarim dizer a Guy que tinha roubado muitas de
suas idéias na guitarra. Adorado por roqueiros como Eric Clapton, Jeff Beck
e Mark Knopfler - com os quais já gravou - , Buddy foi homenageado
pela fábrica Fender com um modelo especial de guitarra, a Buddy Guy
Signature Stratocaster. Ainda com gosto da estrada, mas hoje no circuito
do blues chie, Buddy, quando volta a Chicago, toca - a guitarra e os ne-
gócios - na sua casa de blues, o Legend's Bar.
Buddy pertence ao elenco da Alligator, a gravadora especializada que
vem mantendo acesa a chama do blues desde 1970, quando começou, na
base da aventura. Em fevereiro daquele ano, um pequeno grupo de jovens
brancos apaixonados por blues se reunia no apartamento de Bruce Iglauer
para lançar a revista Living Blues. Foram necessários sete anos para es-
gotar os cinco mil exemplares do vol. 1. Com o fracasso do fanzine, Iglauer,
que trabalhava na gravadora Delmark, decidiu iniciar o seu próprio selo,
Alligator Records. Para o primeiro disco, recrutou um dinossauro do blues,
o veterano Hound Dog Taylor, que tocava com sua banda, the House-
Rockers, nas piores espeluncas do South Side de Chicago por 45 dólares
a noite (para ele e toda a banda ... ). Hound Dog era daqueles blueseiros
do Delta que levavam o piano numa carroça puxada a mula para se apre-
sentar nas biroscas de peixe frito nas noites de sábado. Em 1942, aos 27
anos, deixou Mississippi para tentar a sorte em Chicago. Não aconteceu
grande coisa, mas Hound foi levando, morando no gueto com uma irmã,
trabalhando de dia na cozinha de um restaurante. Em 1957, Hound Dog
perdeu o emprego numa fábrica de carcaças de aparelhos de TV e voltou
a ganhar a vida como músico. Numa atmosfera informal, sem nenhum
aparato hi-tech, Iglauer reproduziu no estúdio as condições de uma apre-
sentação ao vivo, com garrafas de uísque ao pé dos músicos e um punha-
do de amigos servindo de platéia, e gravou assim o primeiro álbum da
Alligator. A Alligator deu sorte a Hound Dog - e vice-versa. O primeiro
disco, lançado em agosto de 1971 com apenas mil cópias - a maioria
das quais oferecidas grátis como material de divulgação-, acabou cha-
mando atenção sobre Hound Dog Taylor and the House Rockers. Eles
receberam convites para excursionar pelo Meio-Oeste dos Estados Uni-
dos, entraram no circuito universitário da Nova Inglaterra, saltaram para
as salas de concerto de Nova Iorque e acabaram viajando até a Austrália
e Nova Zelândia. Hound Dog não teve muito tempo para saborear seu
sucesso. Morreu em 1975, deixando quatro álbuns cheios de belos blues.
A esta altura, a Alligator já impunha respeito no mercado.
Blues 181
Com 120 títulos no seu catálogo exclusivo de blues, já ganhou dois
Grammies (o Oscar do disco, para o qual teve 24 indicações) e 44 W.C.
Handy Awards, o prêmio máximo do blues. Em 1991, Bruce Iglauer pre-
viu que faturaria um milhão de dólares a mais no ano do que em 1990. O
elenco da Alligator é uma amostra da vitalidade do blues atual. Reúne negros
e brancos, jovens e veteranos, e aventura-se por território exótico, ao lan-
çar um grupo só de mulheres, o Saffire - formado por uma negra, uma judia
e uma Cherokee - ou ao investir em Katie Webster, cantora e tecladista,
que, em The Swamp Boogie Queen, injeta cacos de Debussy e Thelonious
Monk em suas inflamadas interpretações. Não tão fortes como a Alligator,
mas igualmente sérios, outros selos levam adiante a mensagem do blues, como
a Malaco Records, de Jackson, Mississippi; a High Tone, da Califórnia; e
a Antone, de Austin, Texas.
Em sua crise da meia-idade, o blues foi cortejado também por jovens
brancos baby-boomers, como os irmãos Winter. Albinos, nascidos no Mis-
sissippi em 1944 e 1946, e criados no Texas, Johnny e Edgar Winter se en-
cantaram desde cedo pela música negra. Depois de formar com o irmão al-
gumas bandas que não deram em nada, Johnny trabalhou como acompa-
nhante de um bluesman de sua cidade, Beaumont, e começou a gravar para
selos regionais. Antes que pudesse apresentar seu material para as grandes
gravadoras, foi descoberto por um empresário de Nova Iorque - que leu
um artigo sobre ele na revista Rolling Stone- e tornou-se uma atração ins-
tantânea na Grande Maçã, onde, já no final de 1968, consagrava-se no templo
de Bill Graham (não o pastor, mas o empresário), a sala de rock Fillmore
East. O sucesso levou Johnny a um contrato com a gigante do disco, a Co-
lumbia, onde gravou com o irmão Edgar, num estúdio de Nashville em 1969.
Edgar acabou seguindo o caminho do jazz e Johnny, com seu estilo de vida
barra-pesada, passou a ter problemas pessoais e profissionais. Voltou em
grande forma em 1973 e, em 1977, tocou com Muddy Waters e produziu
o álbum que marcava o retorno do lendário bluesman. De lá para cá, o en-
volvimento de Johnny Winter com o blues tem sido total, em festivais, turnês
e gravações. Pertence também, atualmente, ao elenco da Alligator, onde
gravou um LP com os lendários Sonny Terry e Willie Dixon.
Branco sempre paga pedágio na estrada do blues. Os irmãos Duane e
Gregg Allman nasceram, em 1946 e 1947, em Nashville, Tennessee. Nos
anos 60 já empunhavam guitarras depois de terem ouvido muito blues pelo
rádio, e saíam pela Geórgia, Flórida e Alabama com os Allman Joys. Sua
fama chegou até a Califórnia, onde foram contratados para acompanhar
estrelas negras do porte de Wilson Pickett, Aretha Franklin e Clarence Carter.
" Você pode ser um pigmeu do Congo tocando flau ta" na-
sal - sim, soprando o instrumento pela narina - , e se você gra-
var o disco certo você vai estar no ar imediatamente nesta cida-
de (Los Angeles) e nas paradas de sucesso na semana seguinte,
É a democracia em ação ... "
Blues 183
Outro caso interessante é o de John Hammond. O nome é o mesmo
do todo-poderoso chefão da Columbia que lançou Billie Holiday, Count Basie
e Bob Dylan, que produziu o concerto de jazz no Carnegie Hall e foi durante
décadas um ditador do gosto musical americano. Os pais de Hammond se
divorciaram quando ele tinha apenas seis anos, mas o acesso à coleção de
discos do velho John continuou aberto. "Me tornei um fã do blues aos 12
anos de idade, ouvindo músicos como ]osh White, Sonny Terry, Brownie
McGhee, Howlin' Wolf e John Lee Hooker." O som de Hammond é negróide
como poucos e alguns o consideram um continuador da obra de Jimi Hendrix,
embora não possua a chama de Hendrix. Hammond, que nasceu no mes-
mo ano em que Hendrix, formou uma banda com ele em 1966 no Café Au
Go Go de Nova Iorque. Ele pode não ter o mesmo carisma dos seus ídolos,
mas faz uma música honesta e consistente. Como disse numa recente visita
ao Brasil: "O blues é o sangue vivo da música norte-americana. Cada ge-
ração trará sua colheita de novos intérpretes de blues."
Ainda na faixa do blues trágico, há o caso de Stevie Ray Vaughan, outro
fabuloso bottlenecker, espécie de duplicata de Duane Allman. Também
formou banda com um irmão, Jimmy, os Vaughan Brothers. E também
morreu associado a Eric Clapton (devemos chamá-lo de Slowhand ou Cold
Foot?) Depois de um concerto em agosto de 1990 para 7.000 pessoas na
estação de esqui de Alpine Valley, no Wisconsin (mesmo Estado em que
morreu Otis Redding) -concerto em que tocou ao lado de Clapton, Robert
Cray e Buddy Guy - , Stevie Ray embarcou num helicóptero com destino
a Chicago. O helicóptero chocou-se com uma montanha artificial para a
prática de esqui, a 1.500 metros do auditório do concerto que promovia
o novo disco de Clapton. Os corpos ficaram irreconhecíveis e correram ru-
mores de que Clapton, que havia tomado outro helicóptero, teria morri-
do. Mas os mortos foram três membros da equipe de Clapton (o empresá-
rio, o segurança e um assistente) e Stevie Ray, uma das maiores esperan-
ças brancas do blues, desaparecida aos 35 anos. O veterano John Lee Hooker
conhecido com Mr. Cool, confessou: "Eu raramente choro, mas ao saber
da morte de Stevie sentei na cama e chorei como uma criança."
Com tanto branco invadindo a praia do blues, o que sobra para o
negro, dono desta arte? Além dos muitos veteranos -que vão do "dinos-
sauro" John Lee Hooker, 74 anos, aos sempre ativos B.B. King e Buddy
Guy - , tem sangue novo na praça. O nome dele é Robert Cray, nascido
em 1953 em Columbus, Geórgia, onde o pai, militar, estava postado. De
base em base, o pequeno Cray rodou da Califórnia à Alemanha e à Virgí-
nia, antes de ancorar com a família em Tacoma, no Estado de Washing-
Branco é branco, preto é preto, mas o blues é o blues e a cor não faz
mais diferença. Corno diria Marshall McLuhan, o blues ingressou na al-
deia global. E Mary Katherine Aldin assinala num livro recente:
O blues pode estar numa encruzilhada criativa, mas pelo menos com
a certeza de que é uma forma de arte franca e direta, que fala sem ro-
deios da condição humana. Jimi Hendrix definiu o impasse melhor do
que ninguém:
Blues 187
Celso Blues Boy: aumenta que isso aí é roquenrol - digo, blues ...
23.
BRAZIL BLUES
Blues 189
danças são propositalmente dadas com tais glissandos e porta-
mentos, com tão prodigiosa indecisão melódica, que não é pos-
sível grafar estes recitativos. Na realidade, a impressão que se
tem é que existe um tema, exclusivamente virtual, que é impos-
sível por isso determinar com exatidão, sobre o qual os can-
tadores variam sempre em quartos de tom, desafinações vo-
luntárias, nasalações sonoramente indiscerníveis, arrastados e
portamentos de voz. Tudo isso pela sua própria pobreza deixa
cantador e ouvinte numa indecisão pasmosa, completamente
desnorteado e tonto: porque esse é realmente o processo de tor-
nar mais forte, mais eficaz, o poder hipnótico da música."
Blues 191
Magic Slim, John Hammond, The Kinsey Report & Big Daddy Kinsey. E
o marketing entrou na jogada em maio de 1994 com o festival Nescafé &
Blues, que trouxe a São Paulo, entre outros, além do blueseiro (ex-roquei-
ro) britânico Eric Burdon, cobras como Robert Cray, Otis Clay, Coco Mon-
toya, Robben Ford ê Lonnie Brooks.
O promotor de todos estes festivais, Cesar Castanho, foi também o
responsável por uma série de apresentações de blues no 150 Club do hotel
Maksoud Plaza, em São Paulo. Em 1983, ele conseguiu o feito de trazer
ao Brasil uma das maiores lendas vivas do blues, a cantora Alberta Hunter.
Ela mostrou que "ainda há uma porção de boas canções neste velho violi-
no". Alberta gostou tanto que voltou no ano seguinte, em junho de 1984:
"O povo e as frutas que vocês têm, honey, são os melhores do mundo.
Quando apareceu este convite, larguei tudo para voltar. E vou voltar
sempre, baby, pode escrever aí. " A esta altura, com 89 anos, a frágil Al-
berta passava o dia inteiro deitada no quarto do hotel, comendo caqui, e
depois era conduzida ao palco numa cadeira de rodas, oculta do público.
O público só a via já de pé, quando as luzes do palco se acendiam, can-
tando, gesticulando e dando o máximo de sua energia. Ao se despedir do
Brasil em 1984, Alberta prometeu voltar no ano seguinte para festejar seus
noventa anos no 150 Club, com um bolo cheio de velinhas. Mas ela morreu
antes, em outubro de 1984. O famoso crítico do Village Voice, Stanley
Crouch, confirma:
Blues 193
uma apresentação no Garage, dividindo o programa com Celso Blues Boy
e a banda da casa, Mr. Blues.
A Lost Ballantynes, segunda banda colocada no festival, faz blues na
Baixada Fluminense. O gaitista /vocalista Osema Xavier e o baixo Ricardo
Infante se conheceram no Colégio Salesiano, do bairro de Rocha Miranda
e fundaram a banda em 1988. Ganham a vida como digitador e técnico
em química, mas estão sempre tocando em bares à margem dos trilhos
da Central do Brasil, um lance bem Delta blues.
Vinícius Rocha e sua Mr. Blues são de Niterói e ensaiam três vezes
por semana num estúdio alugado. Seus componentes são um advogado
trabalhista, um biólogo, um programador visual, dois músicos profissio-
nais que tocam e dão aulas (guitarra e baixo) e Vinícius, também empre-
sário e produtor da banda. Vinícius é ainda sócio da Garage, com Fábio
Costa, um torneiro mecânico de 33 anos, pai de três filhos, que trocou a
profissão pelo blues. Fábio começou como discotecário de rock em bai-
les de subúrbio e acha que o momento é este: "Estamos aqui, desde 1990,
e só agora o blues veio se juntar às outras tribos - e talvez seja a mais
underground de todas."
Os Ballantynes são um estranho no ninho da Baixada: conseguiram
invadir o espaço do pagode, da axé musice do funk em Duque de Caxias,
Nova Iguaçu e São João de Meriti, cantando em inglês, embora precisem
da ajuda de um tradutor para compor suas letras. Já o Carinha da Gaita
acha que dá para cantar blues em português. É o que pensa também um
dos papas do blues nativo, Celso Blues Boy: "Somos brasileiros e deve-
mos cantar na nossa língua.
Celso Ricardo Furtado de Carvalho, 37 anos, tirou o seu "Blues
Boy" do nome do ídolo B.B. King e considera cantar o blues "uma mis-
são que devo cumprir até o fim de meus dias." Nascido no Rio, morou
em Blumenau, Santa Catarina, dos 6 aos 14 anos. Começou na guitarra
aos nove, aprendendo com o pai ("ele só tocava três acordes, acho que
foi o primeiro punk do mundo" ). Primeiro, Celso acompanhava a irmã
pianista tocando Bach Uesus, Alegria dos Homens ). Desencaminhado por
um tio, mergulhou nos discos de rock e blues. Depois de tocar em alguns
bailes em Blumenau, rompeu com a família e pegou a estrada - um
autêntico rambler. Aos 17, acompanhava Sá & Guarabira, depois Raul
Seixas ("O diabo é o pai do rock" ) e em 1976, aos 19, formou o Legião
Estrangeira. Veio então a fase da pesada, os tempos do Appaloosa, um
clube de blues na Barata Ribeiro, em Copacabana. O Appaloosa era
praticamente a casa de Celso. Um dia, depois de beber com amigos, foi
Blues 195
King emprestou-lhe sua guitarra, a famosa Lucille, que Celso dedilhou com
carinho e competência. B.B. convidou-o para visitá-lo em Indianapolis e
talvez até gravar com ele lá. Celso acabou não indo.
Algumas cantoras brasileiras se aproximaram do blues, como a pau-
lista Rosa Maria. Elis Regina tinha uma sensibilidade blueseira, mas não
aprofundou. Cida Moreira, que lançou um álbum chamado Abolerado
Blues, encara sempre o repertório de cabaré e blues. Angela Rô Rô tam-
bém é chegada: "Sessenta e nove foi o ano em que saí de casa. Fui morar
com uns hippies internacionais numa casa lá na ladeira Saint Romain, aqui
no Rio, já estava com a minha cabecinha para os rocks, para os blues,
cantarolando aqui e ali."
Outro nesta trilha, misturando MPB, pop & blues, é Edvaldo Santana,
39 anos, do subúrbio de São Miguel Paulista, que lançou em 1993 seu
primeiro álbum solo, Lobo Solitário. Edvaldo foi louvado pelo poeta
Haroldo Campos (" ... é um ferroqueiro brutalista, pedras cantantes na
garganta, capaz de rock e rocha") e pelo ex-Titã Arnaldo Antunes ("her-
deiro da malandragem que não vê obstáculo algum na senda que vai do
samba ao blues ... "). Em seu álbum, acompanhado da banda Swing-Blues,
Edvaldo canta até um The Bluesman. Ele conta: "Eu vivia como vaga-
bundo, jogando futebol e tocando violão. Foi quando comecei a juntar o
suíngue brasileiro e a melancolia do blues."
O Rio de Janeiro é solo fértil para o blues. Houve até, em junho de
1994, um tributo a RobertJohnson no Circo Voador. Em agosto rolou no
Jazzmania o Top Cat Blues Festival, com músicos como Charlie Mussel-
white, Roy Roggers e Duke Robillard. Existem dinossauros como o Atlân-
tico Blues, formado em 1977 no Rio, fazendo ramal com Carlitos da Chess
Carlitos Discos. Uma Jimmy Shields Blues Band, de um americano, apre-
sentou-se no Blues & Rock Fest no ginásio do Fluminense. O bairro do Méier
tem o Suburblues. Há bandas sólidas como Big Allanbick, fundada no co-
meço de 1992; o Baseado em Blues; o Overblues, que vai de Willie Dixon
a Robben Ford; Os Srs., do ex-roqueiro Affonso Jr., tocando Willie Dixon
e Carl Perkins. O Zé da Gaita, o Blues Session e outras mais.
O Blues Etílicos, com oito anos de vida, cinco álbuns, já dividiu o
palco com celebridades como Buddy Guy, Junior Wells e Albert Collins.
Entre seus componentes está um americano do Mississippi, Greg Wilson
(vocais e guitarra), e um brasileiro, Flávio Guimarães (gaita e vocais), que
já tocou em Chicago. Além de composições originais, o Blues Etílicos
interpreta blues de RobertJohnson, Charlie Musselwhite e Son House. E
incorpora o toque brasileiro: no último disco, Salamandra, que usou o
Blues 197
"A primeira vez que ouvi estes caras foi bastante indigesta
para mim, era tão mal gravado e esquisito. Senti medo de How-
lin' Wolf, aquela voz parecia a voz de todos os pesadelos, algo
assombroso, demoníaco. Mas adorava o som das guitarras. Com
o tempo, não queria mais ouvir outra coisa... "
O pai de André (a família era espírita) queria que ele tocasse música
erudita. Um episódio meio místico mudou tudo. O próprio André rela-
tou, numa entrevista ao Estadão em 1989:
Outro lance meio do Além. Aos 20 anos, o pai de André morre e ele
vende a casa que herdou e parte para os Estados Unidos. Vai estudar no
Guitar Institute of Technology (parece até coisa da NASA... ) de Los An-
geles, onde conheceu o baixista Dan Duran {ex-Aretha Franklin). Duran
torna-se o seu guru. Todo dia faz André ouvir discos de velhos bluesmen
e cobra o dever de casa no manhã seguinte, obrigando André a tocar cer-
tas passagens. Duran tinha uma loja de guitarras antigas onde André cos-
tumava passar o dia inteiro. Foi lá que topou com o bluesman Albert Collins
e se tornou seu roadie. Fez também amizade com Buddy Guy. Quando
Buddy esteve no Brasil, foi André quem lhe emprestou o equipamento para
tocar. Em retribuição, Buddy o convidou a apresentar-se na sua casa de
blues de Chicago, o Legend's Bar. Mas isto ficaria para muitos anos de-
pois. Em 1974, André tinha formado o power trio Fickle Pickle. Rodou o
mundo (morou em Los Angeles, Nova Iorque, Lisboa, Paris e Londres) e
voltou ao Brasil em 1985, formando o Heróis do Brasil com Kid Vinil.
Em 1989, André mostrou que era um dos raros bluesmen nativos ca-
pazes de traduzir para o português o espírito do blues, no LP Mandinga.
Como na faixa Genuíno Pedaço de Cristo:
Blues 199
Bo Diddley: a ponte entre o blues e o rock
24.
DA LAMA À FAMA
O acesso dos jovens ingleses à música nos anos 50 ainda era muito
restrito. Devido a problemas com a distribuição de discos (os britânicos
preferiam privilegiar os seus produtos) e com a programação radiofônica
(estatal e estática, dominada pela BBC), o rock 'n' roll levaria alguns anos
para atravessar o Atlântico. Sem urna infra-estrutura que divulgasse a nova
música (rádios, disc-jóqueis, concertos, etc.), os jovens ingleses só podiam
Blues 201
contar com os discos - mesmo assim editados com atraso - ou então,
era o caso de muitos, sequer lançados no mercado britânico.
Este vazio foi preenchido nos anos 50 pela onda musical do skiffle,
que tomou conta da Grã-Bretanha. Era uma espécie de imitação tosca,
meio caricata, da música rural do Sul do Estados Unidos, do velho blues
feito com instrumentos de fabricação caseira, tinas e tábuas de lavar rou-
pa, pente com papel de seda, gaitinha-de-boca, banjo de caixa de charu-
to e arame, contrabaixo de caixa de sabão e cabo de vassoura. Mas foi o
skiffle que deu ao rock britânico sua rica e sólida base de blues, através
de pioneiros como Alexis Korner e John Mayall (nascidos em 1928 e 1933 ).
Korner tinha sangue de rambler e vida de cigano. Nasceu em Paris,
de pai austríaco e mãe greco-turca. Passou a infância rodando pela Europa
ai:é que os pais decidiram se fixar na Inglaterra em meados dos anos 30.
Começou a aprender piano e teoria musical aos cinco anos. O pai era oficial
de cavalaria durante a Primeira Guerra e queria que o filho fosse diplomata.
Aos 12 anos, Alexis se envolveu com uma gangue de rua que costumava
roubar discos na feira de camelôs de Shepherd's Bush, em Londres. O pri-
meiro disco que roubou foi um boogie de Jimmy Yancey. A partir daí só
queria tocar blues e jazz. Servindo na Alemanha em 1947, começou a to-
car em bandas locais e, ao voltar a Londres, entrou para a orquestra de Chris
Barber, um dos mais respeitados jazzeiros do estilo tradicional na Inglaterra.
Entre 1956e1960, segundo Korner, Barber cometeu um autêntico suicídio
cultural, introduzindo em seus shows um grupo de rhythm & blues (do qual
Alexis participava) e trazendo para a Inglaterra bluesmen americanos como
John Lee Hooker, Muddy Waters e Otis Spann. O Blues Incorporated (era
o nome do grupo) tornou-se lenda a partir de suas primeiras apresentações
no Ealing Rhythm & Blues Club de Londres, em março de 1962, formado
por Cyril Davies (harmônica, vocais), Alexis Korner (guitarra), Charlie
Watts (bateria) e Art Wood (vocais). Entre futuros astros do rock, toca-
ram e cantaram com Korner: Mick Jagger, Keith Richards, Brian Jones,
Charlie Watts (quatro dos cinco Rolling Stones originais); Eric Clapton,
Jack Bruce e Ginger Baker (a totalidade do Cream); Eric Burdon (dos Ani-
mals); Paul Jones (do grupo de Manfred Mann) e os futuros jazzistas John
McLaughlin e John Surman. Fiel à tradição do blues do Delta, Alexis Korner
- que ganhou o título de Pai do Blues Inglês - permaneceu à sombra, uma
figura cult perdida nas névoas do tempo. Morreu de câncer num hospital
de Londres, em 1ºde janeiro de 1984, um domingo, aos 55 anos.
John Mayall se defendeu melhor. Nascido em Manchester, interessou-
se pelo blues aos 13 anos, morou numa casa em cima de uma árvore, serviu
Blues 203
empréstimos) e que se tornaria uma empreitada milionária, a Life da Ge-
ração de Woodstock. O blues deu nome a outras bandas, como a ameri-
cana Canned Heat, da canção de Tommy Johnson exaltando a beberagem
infernal que o endoidava. Fiel à vocação, o Canned Heat foi um dos primei-
ros grupos a gravar com blueseiros - o excepcional álbum duplo de 1971
Hooker 'n Heat, com John Lee Hooker - e, na área da tragédia, enfren-
tou a morte prematura do seu guitarrista Al "Blind Owl" Wilson em 1970,
aos 27 anos. A banda inglesa Badfinger tirou seu nome de um blues cha-
mado Badfinger Boogie. Metade do nome do The Lovin' Spoonful vem de
um título de blues e o grupo foi batizado numa época em que o cantor John
Sebatian atuava com o bluesman MississippiJohn Hurt. Outras bandas com
atmosfera de blues no nome: a inglesa Moody Blues, a escocesa Bay City
Rollers, a irlandesa Boomtown Rats e a americana Grand Funk Railroad.
E o pai da space opera, o Pink Floyd - quem diria? - , criou sua marca
engenhosamente a partir dos nomes de dois bluesmen desconhecidos da
Geórgia: Pink Anderson e Floyd Council. Ouçam com atenção: até mesmo
o rock etéreo e aparentemente techno do Pink Floyd está carregado de blues,
na guitarra em câmara lenta de Dave Gilmour e nos teclados de Rick Wright.
A música de RobertJohnson e de ElmoreJames inflamou também a
imaginação de outro guitarrista da geração dos Beatles e dos Stones, Eric
Clapton. Nascido em 1945 em Surrey, ao sul de Londres, Clapton come-
çou copiando Chuck Berry. Ele contou depois à revista Rolling Stone:
Depois de uma temporada nos Yardbirds, Eric fez o seu PhD de blues
na banda de John Mayall, os Bluesbreakers. A partir da primavera de 1965,
passou dois anos trancado num quartinho da casa de Mayall, vivendo só
para a guitarra. É a esta altura que começa a ser chamado de God, Deus,
em vez do apelido Slowhand, que ganhara nos anos do clube Crawdaddy,
pela maneira especial e blueseira de tanger a guitarra. Em 1966, Clapton
forma o Cream, com o baixista Jack Bruce e o baterista Ginger Baker. Este
supergrupo compacto - apenas um trio -ganha as paradas cantando blues
Blues 205
Estados Unidos. Ele trazia discos de suas viagens, desde Bill
Haley (isso foi antes da explosão dos Beatles) até Dave Brubeck.
Entre estes dois extremos, havia canções estranhas gravadas por
gente de nomes estranhos como Fats Domino, Robert Johnson,
Big Maybelle. Os primeiros discos que realmente me fissuraram
foram Don't Roll Those Bloodshot Eyes at Me, de Wynonie
Harris, e Sam Jones Done Snagged His Braces, de Louis Jordan.
Senti então que um dia tentaria cantar daquele jeito ...
Comecei a colecionar coisas - fotografias, artigos de jornal,
recortes de revistas - para descobrir por que os negros eram
maltratados, às vezes brutalmente. Aos 17 anos me apaixonei
loucamente por uma garota africana e pretendia levá-la comigo
para a América. Mas, quando conheci a América e vi como eram
as relações entre as raças, falei para mim mesmo: 'Deixa pra lá... "'
Jim pensava em formar uma banda, já tinha até o nome, The Doors,
tirado de uma citação do poeta visionário William Blake: "Se as portas
Blues 207
da percepção fossem lavadas, tudo pareceria ao homem como verdadeira-
mente é: infinito." Há quem diga que o título da banda veio de Blake
via Aldous Huxley, que descreveu no livro As Portas da Percepção os efei-
tos psicológicos da experiência das drogas. Jim encontrou o parceiro ideal
no tecladista Ray Manzarek. Os dois tinham estudado cinema na UCLA,
famosa por acolher professores como Jean Renoir, Josef von Sternberg
e Stanley Kramer. Um de seus colegas era Francis Ford Coppola, que anos
depois homenagearia os Doors usando música sua na trilha de Apo-
calypse Now. Jim e Ray viraram drop outs, caíram fora. Em 1965, vol-
taram a se encontrar por acaso na praia de Venice, em Los Angeles. Ray
perguntou o que fazia, Jim disse que compunha umas canções. "Então
vamos formar uma banda e ganhar um milhão de dólares'', disse Ray.
E Jim completou: "É isso aí, era exatamente o que eu estava pensando ... "
Os Doors ganharam em pouco tempo seu milhão de dólares e outros
mais. Ray, como Jim, era ligado nos blues. Já aos 12 anos ouvia rhythm
and blues de Chicago e formara um grupo com dois irmãos, Rick and
the Ravens, em que ele aparecia com o nome blueseiro de Screamin' Ray
Daniels. Como os irmãos não gostavam muito de blues, acabaram ce-
dendo seu lugar no grupo ao guitarrista Robby Krieger e ao baterista
John Densmore, que apreciavam, como Jim e Ray, a música negra. Os
blues faziam parte do repertório dos Doors. Gravaram - e freqüente-
mente tocavam em suas apresentações - os clássicos de Willie Dixon
Back Door Mane Little Red Rooster, logomarcas musicais que Dixon
criou para Howlin' Wolf, e Who Do You Lave?, de Bo Diddley. Mas os
milhões de dólares não fizeram nenhum bem a Jim Morrison. Afastou-
se do grupo e morreu aos 2 7 anos, em condições misteriosas, num apar-
tamento que alugara perto da Place des Vosges, em Paris. Foi Paris, mas
podia ser em qualquer lugar do Texas, a morte prematura de mais um
bluesman estradeiro e pobre.
História parecida foi a de Janis Lyn Joplin, nascida também em 1943
em Port Arthur, Texas. Era uma cidade de 70 mil habitantes que vivia do
petróleo, e o pai trabalhava na Texaco. Janis era uma garota sensível que
destoava dos colegas. Um dos passatempos dos garotos texanos, que po-
diam dirigir a partir dos 14 anos, era sair nos carrões dos pais e, com uma
tábua grossa, derrubar os negros que passavam de bicicleta pelo acosta-
mento das estradas. Janis não conseguia hostilizar os negros. Era até cha-
mada de nigger lover ("amante de crioulos") porque se interessava pela cul-
tura negra, que conhecera através da leitura de autores beats como Jack
Kerouac e Allen Ginsberg. Daí para os blues foi um passo:
Janis não era religiosa mas ia à igreja com a família e chegou a can-
tar no coro. Só se imaginou como cantora depois que começou a ouvir
os blues. Contam que uma noite, numa festa, tocaram um disco de Bessie
Smith (ou de Odetta, segundo outras versões) e Janis falou: "Também
posso cantar assim!" E diante de uma platéia cética soltou o vozeirão
incrível pela primeira vez. Janis havia descoberto a sua "outra voz" - a
negra que lhe dava o sentimento de libertação total que sempre buscara.
Anos mais tarde, ele confessou: "Desde o dia em que comecei a cantar
pra valer, nunca mais cantei outra coisa - só o blues."
Janis alcançou o sucesso de repente, através de uma única música,
no Primeiro Festival Internacional Pop de Monterey. Quando começou a
cantar - para uma platéia que incluía o stone Brian Jones e Mama Cass
Elliott, do grupo The Mamas and the Papas - era uma superstar. A can-
ção era (Lave Is Like a) Bali and Chain, até então exclusivamente asso-
ciada à cantora negra Big Mama Willie Mae Thornton.
Rica e famosa, Janis Joplin seguiu cantando seus blues (o segundo
álbum chamou-se I Got Dem OI' Kozmic Blues Again, Mama), trocan-
do de bandas e de amantes. Em 1970, depois de um louco Carnaval no
Brasil - só cantou num bordel da Bahia, onde se hospedou por três dias
- , Janis formou uma nova banda, a Full-Tilt Boogie, e embarcou num
novo som, que catalogou de "loud electric funky country blues". No dia
4 de outubro, foi encontrada morta de overdose de heroína num quarto
de hotel em Los Angeles. Uma das últimas coisas que Janis fez foi man-
dar construir um túmulo de mármore negro para Bessie Smith sobre a
cova rasa em que estava enterrada a Imperatriz do Blues no cemitério de
Filadélfia. E mandou inscrever na lápide: "BESSIE SMITH, 1894-1937. A
MAJOR CANTORA DE BLUES DO MUNDO JAMA1S DEIXARÁ DE CANTAR". B.B. King
dizia: "Janis Joplin canta os blues com tanto sentimento como se fosse
negra." Janis respondia, agressiva: "Canto música negra para tirar di-
nheiro dos brancos." Outra frase em que Janis expressou o dilema da sua
condição: "Um dia ainda vou compor uma canção que descreva o que é
Bl ues 209
fazer amor com 25 mil pessoas num concerto e depois voltar para casa
sozinha." Fiel ao espírito boêmio do blues, ]anis Joplin, que tinha o ape-
lido de "Pérola" (Pearl foi o título de seu último álbum, póstumo), deixou
em seu testamento 2.500 dólares para uma festa fúnebre que aconteceu
tempos depois, numa boate de San Anselmo. "As bebidas são por conta
de Pearl", dizia o convite. E umas duzentas pessoas atenderam ao cha-
mado, bebendo os venenos prediletos de Janis - Southern Comfort,
Kahlua, tequila, vodca e um ponche de Pina Colada - ao som de gru-
pos de rock como o Grateful Dead. Uma ironia afinal: a última faixa do
álbum Pearl ficou apenas instrumental, não houve tempo de gravar a voz
de Janis. O título da canção era Buried Alive in the Blues, "Enterrada
Viva nos Blues".
Jim e Janis morreram com 27 anos. Jimi Hendrix, com 28. Uma pe-
quena diferença em três vidas (e mortes) incrivelmente semelhantes: Jimi
Hendrix era negro. Mas, no auge da sua carreira - aqueles anos admirá-
veis entre 1967 a 1970-, existiu uma cultura em que branco e preto, mascu-
lino e feminino, político e poético se fundiam numa única entidade. Hendrix,
nativo de Seattle - a terra do grunge-, precisou ir até a Inglaterrra e se
fantasiar de dândi psicodélico para conquistar a América. O guitarrista dos
Rolling Stones, BrianJones (que morreria misteriosamente no ano seguin-
te), viajou da Inglaterra até Monterey só para anunciar o espetáculo de Jimi,
no mesmo festival que revelou }anis. Jimi fez uma apresentação inesque-
cível, culminando com a queima ritual de sua guitarra sobre o palco. James
Marshall Hendrix foi um dos primeiros war babies americanos: nasceu em
1942, ano em que os Estados Unidos entraram efetivamente na Segunda
Guerra Mundial. Seu pai era um jardineiro negro; sua mãe, filha de uina
índia Cherokee. Jimi estudou gaita-de-boca, depois violino. Aos 11 anos,
ganhou uma guitarra. Aos 14 - cabelos gomalinados, gravata-borboleta
e summer jacket - animava bailes nas noites de sábado com The Rocking
Kings. Seus professores eram os discos de cantores de blues como B.B. King
e Muddy Waters e do roqueiro Chuck Berry.
O disco que saiu em 1994, Blues, mostrando a ligação de Jimi com
o gênero, traz incríveis revelações. Nas extensas notas de capa, Michael
J. Fairchild afirma que Jimi Hendrix teria tido uma iniciação de vodu e
blues em Macon, na Geórgia, aos 13 anos, em 1956. Para justificar sua
tese, Fairchild cita Michael Ventura em Whole Earth Review, 1987:
Blues 211
lhou no Festival de Woodstock em 1969, fez um concerto pela paz no
Madison Square Garden de Nova Iorque, uma filmagem meio maluca no
Havaí (Rainbow Brigde) e uma apresentação frustrante no Festival da
Ilha de Wight, em 1970. Na noite de 16 de setembro, em Londres, Jimi
foi ver o show do amigo Eric Burdon no clube de jazz de Ronnie Scott e
deu uma canja. Tocou pela última vez e tocou blues. No dia 18, foi en-
contrado inconsciente no quarto do hotel e chegou ao hospital morto.
O patologista registrou "morte por sufocação causada pela inalação de
vômito após a intoxicação por barbitúricos".
Jimi foi outro enterrado vivo pelos blues. Chegou a gravar alguns
deles, como Rock Me, Baby, de B.B. King, e Bleeding Heart, de Elmore
James. E toda a sua música estava impregnada de blues, uma espécie de
tradução para a Era do Homem na Lua da velha tradição do Delta, um
casamento perfeito das raízes com a alta tecnologia. Na sua última en-
trevista à imprensa, depois do Festival da Ilha de Wight, Hendrix falou
sobre a corrente sonora do futuro:
A febre do blues não parou nos anos 60. O grupo que abriu com
estardalhaço os anos 70 - o britânico Led Zeppelin - também era chega-
do ao som do Delta. Na biografia da banda, Hammer of the Gods, Stephen
Davis mostra esta conexão à luz do perfil protometaleiro do Zeppelin:
No início dos anos 60, o futuro guitarrista do Led Zep, Jimmy Page,
participava das jam sessions do clube Marquee, em Londres, ao lado de
guitarristas como Jeff Beck e Eric Clapton. E o futuro vocalista da banda,
Robert Plant, abandonava a casa dos pais nos subúrbios de Birmingham
e pegava a estrada como cantor de blues ambulante. Certa vez, quando o
veterano Sonny Boy Williamson deu um concerto em Birmingham, Plant
esgueirou-se pelos bastidores e furtou uma gaita-de-boca, fetiche que o apro-
ximaria simbolicamente do mestre. A guitarra plangente de Page e o grito
rouco de Plant estouram nas paradas já nos primeiros álbuns do Zeppelin.
Entre as canções, estavam duas covers assumidas de Willie Dixon (You
Shook Me e I Can't Quit You Baby). Mas o Led Zeppelin foi mais longe
que os outros grupos e canibalizou vários blues, assinando-os sob o seu
nome. Seu grande sucesso Whole Lotta Lave foi claramente calcado no blues
You Shook Me, de Willie Dixon. How Many More Times não disfarça nem
no título: incorpora How Many More Years de Howlin' Wolf, misturado
a The Hunter de Albert King e com uma pala do Bolero de Ravel, via Beck's
Bolero, de Jeff Beck (que fora produzido pelo guitarrista do Led, Jimmy
Page). O bom Wolf foi de novo tosquiado pelo Zeppelin em The Lemon
Song, que toma o seu Killing Floor e enxerta nele um trecho da letra de
Traveling Riverside Blues, de Robert Johnson.
O oportunismo branco sempre explorou a música negra. A primei-
ra gravação de jazz foi feita em 1917 por um grupo branco, a Original
Dixieland Jazz Band, e os dixielanders - músicos de jazz brancos -
fizeram um bom dinheiro nos agitados anos 20, que o escritor Scott Fitz-
gerald batizou a Era do Jazz. Nos anos 30, quando muitos brancos fica-
ram milionários com a música das big bands, houve outra apropriação
da música negra. O clarinetista Benny Goodman ficou famoso graças à
sua interpretação de King Porter Stomp, composição do negro Jelly Roll
Morton, em arranjo de outro negro, Fletcher Henderson. Não tendo con-
dições de manter sua orquestra, Henderson foi sobreviver fazendo arranjos
para Benny Goodman, ao preço de 3 7 dólares e meio cada partitura. O
trombonista Tommy Dorsey foi outro que enriqueceu como band-leader.
Blues 213
Dorsey ficou famoso da noite para o dia com sua versão de Marie, copia-
da nota por nota de uma orquestração original negra - a dos Royal
Serenaders, de Doe Wheeler. E o lendário Glenn Miller ofereceu um sa-
lário mais vantajoso e roubou Sy Oliver, o arranjador da banda negra de
Jimmy Lunceford, tornando-se internacionalmente famoso.
Com o rock 'n' roll a pilhagem foi ainda mais flagrante. Muito do
que se ouvia no rhythm & blues dos anos 40 / 50 - e no blues de negros
como Howlin' Wolf, Muddy Waters e Bo Diddley, e no jive de Louis
Jordan - era praticamente o que se tornaria conhecido como rock 'n' roll,
ao ser gravado - exatamente da mesma maneira - por grupos brancos.
Um caso célebre foi a versão que Bill Haley e seus Comets fizeram da gra-
vação de Shake, Rattle and Roll pelo cantor de blues BigJoe Turner. Esta
prática se tornaria conhecida no jargão do mercado fonográfico pelo nome
de covering e os discos dela resultantes seriam chamados de covers e nin-
guém entraria no mérito da questão ou discutiria o aspecto de direitos
autorais. Em outras palavras: os negros continuavam por baixo.
Nos anos 60, mudaram apenas o cenário e os personagens: jovens
músicos britânicos começaram a gravar covers do blues tradicional. Os
jovens americanos seguiriam o exemplo e todos ganhariam o status de
superstar: a palavra estrela - empregada durante os anos de ouro de
Hollywood - se tornaria pequena para dimensionar o sucesso dos mú-
sicos de rock. Os bluesmen pegaram as sobras e não reclamaram. Para
eles, cantar e tocar era mais importante do que ficar rico. Alguns até che-
garam a ganhar dinheiro. Nos Estados Unidos e no circuito europeu, ve-
teranos do Delta eram cada vez mais solicitados pelos festivais de folk e
de jazz e para acompanhar estrelas do rock em turnês. Muitos, com o Peter
Chatham, mais conhecido como Memphis Slim, mudaram-se para a Eu-
ropa. Em 1960, ele tocou com Alexis Korner em Londres. Dois anos de-
pois, estabeleceu-se definitivamente na França, até morrer do coração em
Paris, em 1985, aos 71 anos. Outros tiveram a oportunidade de gravar
na Inglaterra com astros do rock na série da gravadora Chess London
Sessions, como Howlin' Wolf, Muddy Waters, Bo Diddley e o roqueiro
de raízes blueseiras Chuck Berry.
Este fenômeno de apropriação cultural foi visto - pelo raciocínio
mais frio e distanciado de alguns cientistas sociais - como uma estrada
de mão dupla. Os brancos, à medida que absorvem a cultura negra, são
por ela modificados. Elvis ficou famoso em Memphis ao gravar uma cover
de um blues de Arthur "Big Boy" Crudup, That's Alright (Mama). Nos
anos 60, o líder radical negro Eldridge Cleaver fala de Elvis
"Não por acaso a fonte do Hip é o negro, pois ele vem vi-
vendo à margem da sociedade, entre o totalitarismo e a demo-
cracia, durante dois séculos (. .. ) Em lugares como o Greenwich
Village, um ménage-à-trois se estabeleceu - o boêmio e o de-
linqüente juvenil se viram face a face com o negro e o hipster
se tornou um fato na vida americana."
Blues 215
sobre o rude som que nasceu nos miasmas do Delta. Depois de citar -
como erudito pop - Bessie Smith e Robert Johnson, a raga indiana e o
jazz vanguardista de Miles Davis e Ornette Coleman, Watrous proclama:
Em seus cem anos de vida, o blues fez uma longa viagem, das mar-
gens lamacentas do Mississippi até o neon das marquises nas grandes ci-
dades. A blue note coloriu virtualmente todo tipo de música deste século,
do bop à bossa, do rap ao rock, do clássico à discoteca. Deixou sua marca
na canção popular da Broadway, nos standards de Cole Porter e Gershwin,
de Berlin e Hammerstein, de Hoagy Carmichael e Harold Arlen. O mu-
sicólogo Russell Ames chega até a afirmar: "Se existe uma forma nacio-
nal de canção americana, é o blues." A queima dos estilos na fogueira das
vaidades sonoras só faz com que o blues se destaque ainda mais, conquis-
tando até o público jovem, cansado de tanta moda fake e em busca da
coisa real, oferecida pela comunicação sólida, honesta, filosófica e pra-
zerosa do blues. Ninguém duvide que, ainda no século 21, o homem con-
tinuará proclamando: a Terra é Blue!
Blues 217
PLACKSIN, Sally. American Women in Jazz/ 1900 to the present. Wideview
Books, 1982.
POMERANCE, Alan. Repeal of the Blues. Nova York: Citadel Press,
1988.
RITZ, Charles, CHARLES, Ray. Brother Ray / Ray Charles' Own Story.
The Dial Press, 1978.
SACKHEIM, Eric (compilation). The blues Line /A Collection of Blues
Lyrics from Leadbelly to Muddy Waters. Schirmer Books, 1975.
SANTELLI, Robert - The Big Book of Blues /A Biographical Encyclo-
pedia. Pavillion, 1994.
SAWYER, Charles. The Arrival of B.B. King. Doubleday, 1980.
SHAPIRO, Nat, HENTOFF, Nat. Hear Me Talkin' to Ya / The Story of
Jazz by the Men Who Made It. Rinehart, 1955.
STEARNS, Marshall. The Story of Jazz. Mentor Books, 1958.
TAYLOR, Frank C., COOK, Gerald. Alberta Hunter /A Celebration of
the Blues. McGraw-Hill, 1988.
WEXLER, Jerry, RITZ, Charles. Rhythm and the Blues /A Life in American
Music. Alfred Knopf, 1993.
Bessie Smith - Cinco álbuns duplos, 10 LPs, lançados pela Sony, concen-
tram as 160 faixas publicadas da Imperatriz do Blues, um autêntico
monumento musical do século. (Parte da coleção saiu em 2 CDs duplos)
Robert ]ohnson - Também pela Sony, em LP ou CD, as 29 canções que
se conhece do gênio do Delta, com alternate takes, perfazendo 41 fai-
xas - uma verdadeira Comédia Humana do Blues.
Roots 'n' Blue - Coleção histórica da Sony (dos baús da Columbia), com
mestres como Big Bill Broonzy, Lonnie Johnson, Blind Boy Fuller,
Willie Dixon e antologias focalizando raridades dos anos 20 / 30.
Wiilie Dixon e Howlin' Wolf - Cada um com a sua Chess Box (2 e 3
CDs, respectivamente) lançada pela MCA. Importado e imperdível.
John Lee Hooker - O último sobrevivente do blues, numa caixa indis-
pensável da Rhino, The Ultimate Collection: 1948-1990 (2 CDs) im-
portada. John Lee também tem CDs recentes aqui, como The Healer
(Warner), Boom Boom, e Chill Out (EMI-Odeon).
Roots - Série da Movie Play encontrável nas grandes lojas com uma ampla
gama do blues mainstream. Títulos recomendáveis: Muddy Waters, Bo
Diddley, Sonny Boy Williamson, Little Walter, Little Milton, Memphis
Slim, Otis Spann, B.B. King, J.B. Lenoir, além de antologias de blues e
do rock 'n' roll inicial. Muita coisa boa a garimpar, a bom preço.
The London Sessions - Encontros promovidos pela Chess entre bluesmen
e roqueiros britânicos no início dos anos 70, figurando álbuns com
Howlin' Wolf, Muddy Waters, Bo Diddley e Chuck Berry.
B.B. King - Tem pelo menos uns 20 títulos no Brasil, incluindo o recen-
te Blues Summit (duetos com Buddy Guy, Robert Cray, John Lee
Hooker, etc.). Um dos meus favoritos é dos anos 70, Indiano/a Missis-
sippi Seeds, com roqueiros como Carole King e Leon Russell. O seu
trabalho mais antigo saiu aqui pela Imagem.
Alligator- O selo do blues gravado pós-1970 chegou ao Brasil via Warner
e já lançou cerca de 30 títulos, misturando veteranos e novos, negros
e brancos, ortodoxos e exóticos. Importante ponto de referência e
muita adrenalina rolando sempre.
Blues 219
O blues do rock - Americanos como }anis e Jimi (não percam o recente
CD Blues, de Hendrix), algumas coisas do Canned Heat (em espe-
cial o álbum com John Lee Hooker), dos Doors, dos irmãos Allman,
Winter e Vaughan. E britânicos como Eric Clapton, John Mayall,
Rolling Stones e Led Zeppelin.
O blues do jazz - Duas linguagens entrelaçadas. Jelly Roll Morton, Duke
Ellington, a tradição de Kansas City, Charlie Parker, Charles Mingus,
John Coltrane (The Legend Plays the Blues), Modem Jazz Quartet
(Bach+ Blues), MiltJackson (não percam suas colaborações com Ray
Charles) e a Academia de Blues de Wynton Marsalis.
Nos sebos da vida- Várias coleções foram lançadas nos anos 80 no Brasil.
The Legacy of the Blues (Sonat / Warner) focaliza músicos lendários
como Memphis Slim, Lightnin' Hopkins, Champion Jack Dupree e
Big Joe Williams. A série Blues Anthology (MAC / WEA) relançou
álbuns da Chess de cobras como Muddy Waters, John Lee Hooker,
Big Bill Broonzy & Washboard Sam, Little Walter, Bo Diddley e
Chuck Berry. A Atlantic Blues (Warner) lançou antologias de guitarra,
piano, vocalistas e a escola de Chicago. E a ambiciosa série Atlantic
Rhythm and Blues (Warner), com sete álbuns duplos, é uma verda-
deira enciclopédia - embora misture os generos blues e soul - co-
brindo o período de 1947 a 1974.
Blu es 221
COLEÇÃO OUVIDO MUSICAL
direção de Tárik de Souza
Roberto Muggiati
Blues: da lama à fama
Arthur Dapieve
BRock: o rock brasileiro dos anos 80
Carlos Calado
A divina comédia dos Mutantes
Dominique Dreyfus
Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga
Luiz Galvão
Anos 70: novos e baianos
Carlos Albuquerque
O eterno verão do Reggae
Tom Leão
Heavy Metal: guitarras em fúria
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello
A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras (Vol. 1: 1901-1957)
Carlos Calado
Tropicália: a história de uma revolução musical
Henrique Cazes
Choro: do quintal ao Municipal
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello
A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras (Vol. 2: 1958-1 985)
Sílvio Essingcr
Punk: anarquia planetária e a cena brasileira
SESC
VILA llARIANA
Tárik de Souza
O poeta francês Jean Cocteau considerava o blues a única con-
tribuição autêntica e importante de inspiração popular à literatura
deste século. A poeta americana Elizabeth Bishop admitia que seu
pentâmetro jâmbico perfeito favorito era "J hate to see that evenin'
sun go down", da letra de St. Louis Blues, de W .C. Handy. Mas nin-
guém define melhor o blues do que seus criadores, como o próprio W. C.
Handy: "O blues veio do nada, da carência, do desejo." Há letras que
dizem tudo: "I love the blues, it hurts so nice". Ou títulos de canções
como The Blues Ain't Nothing But a Woman Cryin' for H er M an.
Especialista na pesquisa do blues, o escritor Paul Oliver sintetizou:
Em seus cem anos de vida, o blues fez uma longa viagem, das
margens lamacentas do Mississippi até o neon das marquises nas
grandes cidades. A blue note coloriu virtualmente todo tipo de música
deste século, do bop à bossa, do rap ao rock, do clássico à discoteca.
R oberto Muggiati
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