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ROBERTO MUGGIATI

- DA LAMA À FAMA-
Leadbel/y B.B. King
Muddy
Waters
Lightnin'
Hopkins Bessie
Smith
Ma Rainey
Howlin'
Blind Wolf
Lemon
Robert
Jeffer:son
T-Bone Johnson
Walker
Leroy
Carr John Lee Hooker

Willie Dixon
Big Bill
Broonzy
Sonny Boy
ed itorall34 Williamson
Lonnie Johnson
"Os blues são as raízes e as outras mú-
sicas são os frutos. É bom manter as raízes
vivas, porque isso significa melhores frutos
para o futuro" . Sábias palavras de Willie D i-
xon, que além de baixista, arranjador e com-
positor de clássicos da espécie como Hoochie
coochie man, Back doar man, Little red
rooster, Spoonful e I can't quit you foi um
dos principais produtores do ramo.
A seu trabalho pode ser creditada parte
importante da revalorização do gênero, a par-
tir da redescoberta tardia de lendários blues-
men como Howlin' Wolf, Muddy Waters e
Lightnin' Hopkins por fundadores do rock
como Eric Clapton, Paul McCartney, Keith
Richards ou Jimmy Page. Garotos brancos
ingleses cuja maior ambição era tocar e can-
tar como os negros dos campos de algodão
do Mississippi.
O jornalista, escritor e saxofonista Ro-
berto Muggiati, autor dos livros Rock: o gri-
to e o mito (Vozes, 1973), O que é jazz (Bra-
siliense, 1983), Rock: do sonho ao pesadelo
(L&PM, 1984) decupa esta saga com rique-
za de acordes.
Das origens geopolíticas, musicais, à poe-
sia do estilo, passando pelas divas (Bessie
Smith, Ma Raney) e ícones (de Robert John-
son a Robert Cray), além dos troncos e ga-
lhos brotados das raízes adubadas pela lama
do Delta. Que tanto levam ao jazz de Charlie
Parker e Wynton Marsalis, quanto ao rock
de Elvis Presley e Bill Haley e ao sou! de Ray
Charles e Aretha Franklin. De Stevie Wonder
e Michael Jackson a Miles Davis e Bob Dy-
lan, todos tem alguma dívida com cegos len-
dários como Blind Lemon Jeffe rson ou mar-
ginais desbravadores como Leadbelly.
"Gosto de sair andando por um blues e
ver até onde ele nos leva'', ciceroneava Jim
Morrison, o crepitante líder dos Doors. "Des-
de o d ia em que comecei a cantar para valer,
só cantei blues", sentenciava em carne viva
]anis Joplin.
Diretor-editor da revista Manchete, Mug-
giati, que trabalhou na BBC de Londres e cur-
sou como bolsista o Centre de Formation des
Journalistes, de Paris, rastreia as pegadas -
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SFSC
YIUllARIAH
Coleção Ouvido Musical

Roberto Muggiati

BLUES
DA LAMA À FAMA

editora•34
EDITORA 34

Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (011) 816-6777 editora34@uol.com.br

Copyright© Editora 34 Ltda., 1995


Blues: da lama à fama© Roberto Muggiati, 1995

A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL, E CONFIGURA UMA APROPRIAÇÃO


INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:


Bracher & Malta Produção Gráfica
Revisão:
Leny Cordeiro

Créditos das fotografias:


Lena Muggiati: pgs. 139, 146 e 151 .
Divulgação/reprodução: pgs. 3, 5, 8, 22, 26, 39, 62, 76, 83, 106, 109, 112, 117,
120, 124, 129, 132, 142, 161, 163, 169, 180, 185, 188 e 200; capa e 4ª capa.
D.R.: pgs. 17, 36, 42, 48, 54, 58, 72, 95, 106, 109, 132e142.

1" Edição - 1995, 2ª Reimpressão - 1999

CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Muggiati, Roberto, 1937 ·
M919b Blues: da lama à fama I Roberto Muggiati. -
Rio de Janeiro : Ed. 34, 1995
224 p. (Coleção Ouvido Musical)

ISBN 85·85490-66·7

Inclui bibliografia, discografia e vídeos.

1. Blucs - História e crítica. I. Título.

CDD - 784.53
95-0708 CDU - 784.4
BLUES
DA LAMA À FAMA

Para Lena, Roberto e Natasha,


que me suportaram durante um
ano inteiro mergulhado nos blues
BLUES

DA LAMA À FAMA

1. Do GRITO AO CANTO ...................... ..................................................................... 9


2. A TERRA DO BLUES ................................................................................................. 19
3. A POESIA DO BLUES .... ............................................................................................ 27
4. LEADBELLY - O BLUES NA ESTRADA.................................................................. 35
5. BLIND LEMON JEFFERSON - NÓ CEGO NA ESQUINA DO BLUES .............. 43
6. füG BILL BROONZY - DE MISSISSIPPI A CHICAGO ........................................ 49
7. LONNIE JOHNSON - O POETA DO BLUES ........................................................ 55
8. LEROY CARR - O BLUES TRÁGICO...... .............................................................. 59
9. ROBERT JOHNSON - FAUSTO NA ENCRUZILHADA ........................................ 63
10. SONNY BOY WILUAMSON - O MAGO DA HARMÔNICA ............................. 73
11. BESSlE SMITH - A IMPERATRIZ DO BLUES ....................................................... 77
12. MA E AS ME INAS - AS CANTORAS DO BLUES CLÁSSICO ......................... 93
13. LIGHTNIN' HOPKINS - O RELÂMPAGO DO TEXAS ........................................ 107
14. HOWLIN' WOLF - O LOBO SOLITÁRIO............................................................ 113
15. MUDDY WATERS - O BRUXO DO DELTA........................................................ 121
16. WILLIE DIXON - O MAESTRO DO BLUES ......................................................... 127
17. JOHN LEE HooKER - o PAI DO BOOGIE & BLUES ··· ·································· 135
18. T - BONE WALKER - O PAI DO RHYTHM & BLUES........................................ 143
19. B.B. KING - o REI DO BLUES ··················································· ·························· 147
20. JAZZ: DO BOOGIE AO BOP .................................................................................... 155
21. Do RHYTHM & BLUES AO RocK 'N' RoLL ................................................. 165
22. NA ENCRUZILHADA DO FUTURO......................................... ... ... ........... .............. 173
23. BRAZIL BLUES .................................................................. ....................................... ... 189
24. DA LAMA À FAMA...... ....... ...................................................................................... 201

Bibliografia............................................................................................................. 217
Discografia.............................................................................................................. 219
Vídeos ......................................................................................................................... 221
GREAT B~ GUITARISTS
. STRING DAZZLERS

A pré-história do blues: um pé na América, outro na África


1.
DO GRITO AO CANTO

O blues nasceu com o primeiro escravo negro na América. Da África


os negros trouxeram sua expressão vocal básica - os hollers -, gritos de
entonações estranhas que cortavam os céus do Novo Mundo como uma espé-
cie de sonar, explorando um território desconhecido. Enquanto o escravo
mergulhava na cultura americana - representada, no plano musical, pela
tradição européia - , o grito primal se alterava e sofria mutações. A obscena
instituição do tráfico foi proibida em 1808, mas os escravos continuavam
chegando, abarrotados nos porões dos navios negreiros. Só na década de
1850-1860, a América do Norte recebeu mais negros do que no meio século
anterior. O negro era uma ferramenta de trabalho. Até nos raros momentos
de lazer, quase tudo lhe era interditado. Não podia tocar instrumentos de
percussão ou de sopro. Os brancos receavam que pudessem ser usados como
um código, incitando à rebelião. Assim, a voz ficou sendo o principal - senão
o único - instrumento musical do negro. Era usada nas work-songs, can-
ções em que o feitor cadenciava o trabalho dos escravos, a batida dos martelos
ou machados, o levantamento de cargas, etc. Estas canções ajudavam a ame-
nizar e racionalizar o trabalho e o tornavam mais rentável. Tranqüilizavam
também o proprietário, que as ouvia, garantindo que os seus escravos es-
tavam sob controle, no devido lugar. Há quem argumente que o blues veio
da música religiosa e dos spirituals, canções que os negros criaram a partir
das histórias da Bíblia. Na verdade, ele tem muito mais a ver com a reali-
dade prática das work-songs. Musicalmente, os hinos religiosos exerceram
o seu papel: os acordes básicos do blues são derivados da harmonia euro-
péia. São os mesmos três acordes usados no acompanhamento de Noite Feliz,
recnicamente conhecidos como tônica, subdominante e dominante - e po-
dem ser ouvidos nesta mesma ordem numa versão comum de um conheci-
do blues como Careless Lave. Os negros sofreram uma evangelização ma-
iça no início do século 19, porque a religião africana era proibida aos es-
cravos. Mas não lhes faltava o espírito de crítica, como nestes versos da época:

White man use whip


White man use trigger,

Blues 9
But the Bible and Jesus
Made a slave of the nigger.
("O branco usa o chicote / O branco usa o gatilho /Mas a
Bíblia e Jesus/ Fizeram do negro um escravo.")

Esta rebeldia era já um germe do blues. Mas a sua voz mais autênti-
ca vinha do grito original. Os berros negros eram expressões tão pessoais
que identificavam imediatamente quem os emitia. "Aí vem o Sam", co-
mentava a namorada ou o amigo. "Will Jackson está chegando." Ou,
ainda: "Acabo de ouvir Archie dobrando a esquina." Os gritos eram uma
forma de comunicação nos campos do Sul e muitas canções evoluíram a
partir deles. Eram ouvidos também nas ruas das cidades, onde vendedo-
res ambulantes negros anunciavam seus produtos ou serviços através de
um pungente canto rítmico, expressão semimusical de rara beleza. Alguns
destes gritos foram gravados nas ruas de Charleston, Carolina do Sul, no
início do século, e preservados em disco. (No LP da Riverside A History
of Classical Jazz.) George Gershwin- que absorveu muito do blues em
sua música - incluiu alguns refrões de vendedores da rua em sua ópera
de 1935 Porgy and Bess, como Strawberry Woman, Honey Mane Crab
Man, ou seja, os gritos da mulher dos morangos, do vendedor de mel e
do vendedor de caranguejos. Havia ainda os negros que anunciavam a
chegada e a partida dos trens nas estações, autênticos artistas do grito.
Esta marca individual se projetou também no blues. Existiam blues de
Blind Lemon, blues de Willie Johnson, e assim por diante. O bluesman
Son House especulava, em 1965:

"As pessoas insistem em me perguntar onde os blues co-


m eçaram e tudo o que posso dizer é que, quando eu era garoto,
a gente estava sempre cantando nos campos. Não chegava a ser
canto, era mais gritaria, mas nós fazíamos nossas canções so-
bre as coisas que estavam acontecendo com a gente na época e
acho que foi assim que o blues começou."

E o estudioso do blues Samuel Charters, numa reconstituição alta-


mente poética, viaja no tempo:

"Não parece existir maneira de descobrir quem foi o can-


tor que primeiro criou o blues como o conhecem os, mas ele é
uma forma de canção específica e em algum lugar, provavelmente

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numa cabana do Delta, um cantor que conhecia as melodias e
os versos improvisados das work-songs do Mississippi decidiu
cantá-las de uma maneira nova e assim nasceu o blues."

Na raiz do cantor de blues está a tradição do griot africano, uma


espécie de mistura do menestrel medieval e do cantor de sinagoga, um
músico que através da voz exercia uma função social e até religiosa nas
tribos da costa ocidental da África, de onde vieram os escravos para a
América. Num compêndio de descrições de viagens publicado em Lon-
dres em 1745, a Collection of Voyages de Green, um viajante inglês cha-
mado Jobson assim descrevia estes cantores:

"Do papel dos músicos na sociedade parece haver consi-


derável acordo, embora existam diferenças quanto ao nome.
Aqueles que tocam instrumentos são pessoas de um caráter mui-
to singular e parecem ser seus poetas, bem como seus músicos,
não diversos dos bardos entre os irlandeses e os antigos bretões.
Todos os autores franceses que descrevem os países dos ]alofs
e dos Fulis os chamam de Guiriots (... ) O viajante Bardot diz
que Guiriot na língua dos negros de Sanaga significa Bufão e que
eles são uma espécie de sicofantas. Os reis e os grandes homens
do país conservam dois ou mais destes Guiriots para diverti-los
e eventualmente entreter visitantes estrangeiros."

Alfons M . Dauer, presidente do Departamento Afro-Americano do


Instituto para Pesquisas do Jazz (sim, existe! em Graz, na Áustria), defen-
de a tese de que o blues norte-americano não se desenvolveu no Sul dos
Estados Unidos, mas surgiu numa data muito anterior nas savanas da
África Ocidental. Ele destaca elementos textuais e melódicos na música
sudanesa muito similares ao blues norte-americano e únicos na África.
Dauer menciona ainda - segundo o brasilianista da MPB, Claus Schrei-
ner - "em conexão com a música brasileira, um tipo de violino que se
desenvolveu a partir do rebab árabe e que se assemelha muito a um vio-
lino rústico usado na música do Nordeste brasileiro e chamado rabeca
ou rebeca."
O incrível fascínio do grito negro impressionou muitos viajantes,
como F.L. Holmstead, que percorreu o Sul dos Estados Unidos antes da
Guerra Civil (1861-1865) . Ele relata o que aconteceu quando dormia num
vagão de um trem de passageiros:

Blues 11
"À meia-noite fui acordado por uma forte gargalhada e,
olhando pela janela, vi que o bando de carregadores negros ti-
nha feito uma fogueira e estava desfrutando um alegre repasto.
Subitamente, um deles emitiu um som que eu nunca ouvira an-
tes; um grito longo, forte e musical, subindo e descendo, trans-
formando-se em falsete, sua voz atravessando a mata e cortan-
do o ar límpido e gelado da noite como um toque de clarim.
Quando terminou, a melodia foi continuada por um outro e, em
seguida, por vários, em coro ... "

Este som único do grito que veio da África reflete características cul-
turais típicas que têm desafiado análises segundo os padrões convencio-
nais da musicologia ocidental. A célula básica do blues é a chamada blue
note - a nota blue, que ocorre na terceira e na sétima (querem alguns
também na quinta) notas da escala européia. Ou seja, na tonalidade de
Dó maior, o Mi e o Si eram bemolizados, isto é, diminuídos de meio tom:

Do Re Mib Fa Sol La Sib

Isso corresponderia a uma resistência étnica, a incapacidade - ou


recusa - do negro de aderir estritamente à tonalidade européia. O fe-
nômeno é também explicado pelo uso dos quartos de tom na música da
África Ocidental, sendo a blue note uma tentativa de adaptar estes quar-
tos de tom para os instrumentos europeus. As interpretações variam,
abrangendo desde uma possível influência da música árabe, através da
penetração muçulmana na África Ocidental, até uma superposição da
escala pentatônica africana (de 5 notas) sobre a escala dia tônica euro-
péia (de 7 notas), que teria resultado em duas áreas "incertas", as duas
áreas das blue notes.
A tonalidade do blues já foi extensivamente estudada. Em 1924, uma
equipe de pesquisadores do Departamento de Psicologia da Universida-
de de Iowa, encabeçada pelos drs. Milton Metfessel e Carl Seashore, aper-
feiçoou uma técnica de fotofonografia. Com uma "câmara fotográfica
sonora portátil", eles percorreram várias regiões dos Estados Unidos,
registrando gritos e canções folclóricas e traduzindo-os em gráficos. Mas
nem a tecnologia dos computadores seria capaz de explicar teoricamente
os blues, que, como toda arte popular, são no fundo matéria essencial-
mente prática. Por exemplo: as blue notes não podem ser tocadas no pia-
no, pois estão entre as teclas. Nem poderiam ser tocadas em instrumen-

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tos de sopro - como trompete, clarineta e saxofone - ou de corda, como
violão e banjo, que possuem tonalidades fixas. Mas, na prática, podem
ser tocadas em qualquer instrumento, com exceção dos xilofones e dos
teclados. Mesmo assim, o piano se adaptou admiravelmente ao blues e
criou um de seus mais importantes derivados, o boogie-woogie. O violão
resolveu o problema, inspirado nas técnicas da guitarra havaiana, com o
estilo slide (de "deslizar") ou bottleneck ("gargalo de garrafa"): o músi-
co dobrava as notas correndo ao longo das cordas um pedaço de metal,
como uma faca, ou um gargalo de garrafa enfiado no dedo.
Alguns chamaram as blue notes - chocantes para ouvidos não-ini-
ciados - de notas "rebeldes". Muitas vezes, no jargão dos músicos, elas
eram dirty notes, "notas sujas". Comentou o chefe de orquestra Rudy
Vallee, ídolo da classe média americana, em 1930: "Tenho tocado uma
certa nota meio bárbara no meu saxofone e observado o seu efeito sobre
as platéias, a agitação dos pés e das pernas jovens." Vallee talvez nem
oubesse, mas tinha descoberto a blue note. Já o francês Darius Milhaud
e o americano George Gershwin foram os primeiros a botar casaca nas
blue notes e a levá-las para as salas de concerto eruditas com La Création
du Monde (1923) e Rhapsody in Blue (1924) . Outros públicos, além do
negro, começavam a tomar conhecimento do blues.
Estruturalmente, o blues acabou se fixando numa forma bastante
rigorosa, quase clássica: 12 compassos, divididos em três partes iguais,
no esquema A-A-B, com um acorde diferente sublinhando cada parte. O
egundo verso invariavelmente repete o primeiro:

I'm going down and lay my head on the railroad track.


I'm going down and lay my head on the railroad track,
When the train come along, I'm gonna snatch it back. "

Esta é a estrofe típica do blues e, como salientou o maestro Leonard


a
Bernstein no seu LP O Que É Jazz, sua métrica é do pentâmetro jâmbico,
uma das mais clássicas de toda a literatura. Em tom de brincadeira, na-
quele álbum didático, Bernstein canta e toca ao piano um Macbeth Blues,
aseado num importante trecho da peça de Shakespeare:

I will not be afraid of death and bane,


I will not be afraid of death and bane,
Til/ Birnam forest come to Dunsinane.
(Ato V, Cena III)

lues 13
A origem da estrofe do blues pode estar nas antigas baladas anglo-
saxônicas - as ballits que os negros aprenderam na América. Misturan-
do o seu grito primai com as canções de trabalho e com as canções de ninar,
com a harmonia dos hinos religiosos e com a estrutura das baladas, o negro
americano chegou ao blues, sua principal forma de expressão. Nada me-
lhor do que um professor de literatura e historiador do jazz, Marshall
Stearns, para definir a estrofe do blues:

"(... ) é um bom veículo para uma narrativa de qualquer


tamanho. Ao mesmo tempo, é mais dramática: os dois primei-
ros versos criam a atmosfera de modo claro pela repetição e o
terceiro desfere o golpe. A estrofe do blues é comunicação con-
centrada, feita sob medida para a apresentação ao vivo em meio
a um público participante."

Outra peculiaridade do blues: sua letra - a parte cantada - nunca


chega a preencher os quatro compassos de cada verso. Geralmente preen-
che apenas a primeira metade do verso. A outra metade costuma ser com-
pletada por um break instrumental. No início, este "breque" era preenchido
por um violão, um banjo, uma gaita-de-boca ou instrumentos rústicos que
o bluesman rural costumava fabricar artesanalmente. Quando o blues che-
gou à cidade, o break passou a ser preenchido pelos instrumentos de jazz.
E os que mais se prestavam a este papel eram os metais - como a corneta,
o trompete e o trombone - e as palhetas: a clarineta e os diferentes tipos
de saxofone. Os metais tinham uma vantagem sobre as palhetas: usando
as surdinas, podiam imitar a voz humana e distorcer as notas à maneira
dos cantores de blues. Pode-se dizer que os metais e palhetas da música negra
fizeram no blues o seu "laboratório" para aperfeiçoar o jazz.
Entre os instrumentos típicos do blues inicial estavam o violão, o
banjo (originado do banjor africano), o one-string (uma versão do nosso
berimbau), a rabeca {principal animadora das danças nas noites de lazer
na senzala), a gaita-de-boca, o kazoo (com um som parecido ao do pen-
te-com-papel-de-seda), a ]ew's harp (espécie de mini-harpa usando o in-
terior da boca como caixa de ressonância), o jug (botija de barro ou de
vidro que, soprada pelo gargalo, fazia o papel dos graves da tuba) e uma
quantidade de instrumentos de confecção doméstica, feitos com tábuas
de lavar roupa (o washboard, tocado com as pontas dos dedos cobertas
de dedais metálicos); feitos com tinas de banho, cabos de vassoura, cai-
xas de sabão e de charuto.

14 Roberto Muggiati
Mas, como destaca Paul Oliver em seu estudo The story of the Blues,
nenhum instrumento possuía a flexibilidade do violão para acompanhar
a música fundamentalmente vocal do blues:

"Um dos muitos fatores que influenciaram o caráter do


blues foi a popularidade do violão. C.F. Martin trocou a Ale-
manha pelos Estados Unidos em 1833 e começou a fabricar vio-
lões, mas a rivalidade com a firma de Orville Gibson, que co-
m eçou a fabricar o grande "Gibson" em 1894, afetou conside-
ravelmente a sua produção. A compra de violões pelo reembol-
so postal e de kits para a fabricação de violões também aumen-
tou a disponibilidade do instrumento, enquanto a proximidade
do México e a presença de uma população hispano-americana
no Texas contribuíram para a popularidade dos grandes violões
de doze cordas."

.Além do violão com que se acompanhava, o cantor de blues podia


bém preencher os breaks com o recurso simultâneo da harmônica (a
- -de-boca), colocada ao alcance de sua boca por um suporte metáli-
- ::-reso em volta do seu pescoço (algo parecido com os aparelhos de dente
que os adolescentes usam hoje). Com isso, o bluesman, mesmo to-
o sozinho, punha sempre em ação duas vozes: o violão e o canto e,
- ~ame os breaks, o violão e a gaita-de-boca. Esta prática seria a marca
ada de Bob Dylan no seu início de carreira, inspirado pelos canto-
-_: :olk e de blues.
Se a instrumentação do blues e a sua anatomia vocal são relativamente
e onhecidas, a palavra em si é um mistério. Como a palavra jazz, o
e: já teve mil interpretações, mas as origens do termo continuam ne-
ão foram poucos os estudos e o que segue é um resumo do tra-
o de incontáveis pesquisadores.
_.\ expressão to look blue, no sentido de se estar sofrendo de medo,
- edade, tristeza ou depressão, já era corrente em 1550. Na época p ós-
ana, ou, mais precisamente, como registraram os lexicógrafos a
·-de 1616 (ano da morte de William Shakespeare), era costume em-
-- gar o termo blue devils para designar espíritos maléficos. Em 1787,
•te devils passaram a simbolizar um estado de depressão emocional,
amo a palavra no plural, blues, aparecia em 1822 relacionada às
-...-.~.........ções provocadas pelo delirium tremens. Em 1807, num trecho de
- ragundi XI, do escritor americano Washington Irving, a palavra

15
também é usada com esta conotação: "Ele concluiu sua arenga com um
suspiro e eu vi que ainda estava sob a influência de toda uma legião dos
blues." O próprio Thomas Jefferson-quem diria? - escreveu em 1810:
"Nós somos assaltados às vezes por algo dos blue devils. " Nos anos 1830
ou 1840, dizer que a pessoa tinha os blues significava que estava aborre-
cida; em 1860, já significava infelicidade. Um dos primeiros registros es-
critos da palavra está no diário de Charlotte Forten, uma negra que nas-
ceu livre no Norte e foi trabalhar como professora de escravos na Caro-
lina do Sul. Em 14 de dezembro de 1862, ela anotou no seu diário: "Não
tinha dormido mais do que dez minutos quando fui acordada pelo que
me pareciam gritos terríveis vindos dos alojamentos dos escravos. " Os
gritos a perturbaram de tal maneira que no dia seguinte, um domingo,
ao voltar da igreja, ela anotou no diário: "Ouase todo mundo estava ale-
gre e feliz; eu, no entanto, voltei para casa com os blues. Joguei-me na
cama e, pela primeira vez desde que aqui cheguei, m e senti muito solitá-
ria e lamentei minha sorte." Pouco depois, em 1886, em Vida no Exérci-
to, de um tal de Gregg, aparece o desabafo: "Foi muito bom para mim
aquele dia em que pude enxergar o lado mais iluminado do caso e evitar
um severo ataque dos blues... "
Se a origem da palavra está cercada de mistérios, a trajetória da música,
em compensação, se amarra a algumas datas-chave. O pianista e band leader
de Nova Orleans Ferdinandjoseph La Menthe, mais conhecido como Jelly
Roll Morton, que se intitulava "o inventor do jazz em 1902", também se
atribuía a paternidade do blues. Ele teria composto em 1905 The ]elly Roll
Blues, mas só o publicou em 1915 em Chicago. Ironicamente foi um vio-
linista branco de uma orquestra de dança de Oklahoma City, Hart Wand,
quem publicou pela primeira vez a palavra blues numa canção, em março
de 1912: The Dallas Blues, que não era tecnicamente um blues. Ó primei-
ro blues de verdade foi publicado poucos meses depois, ainda em 1912,
por W.C. Handy, que se intitularia "O Pai do Blues": era uma nova ver-
são de uma canção chamada Mister Crump, que Handy tinha composto
para a campanha eleitoral do prefeito Edward H. "Boss" Crump e fizera
sucesso não só em Memphis, mas em outras cidades. Com o título de The
Memphis Blues, ela passou para a história como o primeiro de todos os
blues. O mais famoso deles viria logo a seguir. Em 1913, a companhia de
música de Handy publicou jogo Blues, que teria sido composto - ou pelo
menos interpretado - por um pianista local. Não foi um grande sucesso,
mas, um ano depois, Handy lhe acrescentou um ou dois toques e nasceu
assim o clássico de todos os tempos, St. Louis Blues.

16 Roberto Muggiati
Joe Moms Music Co.
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Uma partitura histórica: o primeiro blues publicado, 1912


Em 1920, explodiu um novo fenômeno: o blues entrava na era da
comunicação de massa. A gravação de Crazy Blues por Mamie Smith, em
1920 - o primeiro registro fonográfico de um blues - abria toda uma
nova era e cristalizava o blues urbano clássico, centrado nas Imperatri-
zes do Blues.
Um dos fatores responsáveis pelo aparecimento destas divas negras
foi o êxodo das populações negras do Sul para as grandes cidades do Norte.
A crise econômica, os acidentes naturais, a praga do algodão - causada
pelo inseto boll weevil, cantado em muitos blues - , o desenvolvimento
dos meios de transporte e uma predisposição histórica dos Estados Uni-
dos para uma grande revolução social foram as causas destas migrações.
Por volta de 1850, havia pouco mais de 300 negros em Chicago. Em 1900,
a população negra havia aumentado dez vezes. Ela se concentrava prin-
cipalmente no chamado South Side da cidade. Com a Primeira Guerra
Mundial, surgiu a necessidade de mão-de-obra suplementar e os negros
do Sul foram atraídos para Chicago, onde a discriminação racial era me-
nor. Por esta época, Cow Cow Davenport cantava:

I'm tired of this fim Crow, gonna leave this fim Crow town.
Doggone my black soul, I'm sweet Chicago bound.
("Estou cansado deste racismo, vou deixar esta cidade ra-
cista. /Aos diabos minha negra alma, estou a caminho da doce
Chicago.")

Em 1920, já havia 109 mil negros em Chicago; mais de 90 mil deles


tinham nascido em outros Estados, principalmente no Sul.
Foi em cidades como Chicago e Nova Iorque que surgiu o segundo
fator responsável pela explosão do blues: o início de uma revolução
tecnológica que acabou com a época das pianolas de rolo e dos pianis-
tas que passavam o dia todo nas lojas das grandes editoras musicais to-
cando os últimos sucessos para vender partituras. Com a nova tecnolo-
gia da reprodução sonora nascia a era do gramofone e abria-se o mer-
cado do disco, que seria estimulado ainda mais pelo aperfeiçoamento das
gravações, que passariam em meados dos anos 20 do método mecânico
para o método elétrico. E, ainda na área dos discos, um terceiro fator:
descobria-se um fabuloso potencial para os race records, eufemismo para
discos destinados aos negros. O blues tirava o pé da lama do Mississippi
e iniciava a sua caminhada para a fama nas grandes cidades da América
- e do mundo.

18 Roberto Muggiati
TERRA DO BLUES

Se o blues teve um berço, é o Delta. Ao ouvir falar no Delta, a maio-


pensa no Delta do Mississippi, nas vizinhanças de Nova Orleans. Er-
o: este foi o berço do jazz. O Delta a que os bluesmen se referem, como
espécie de país mítico, é o delta lamacento do rio Yazoo, que junta
águas às do Mississippi nas proximidades de Vicksburg, região de
dações bíblicas onde camadas de lama vão se depositando a cada pri-
~era. O escritor Samuel Charters descreve esta dimensão lendária do
ca em seu livro Country Blues:

"Pergunte a um sulista onde começa o Delta e ele vai rir:


·o Delta começa no saguão do Hotel Peabody, em Memphis
Tennessee.'
E até onde vai o Delta? Talvez até Vicksburg. Talvez até
Jackson. Natchez fica no Delta?
<Nunca pensei muito nisso. É possível. Com os diabos, é
possível.'
O Delta começa abaixo de Memphis e vai para o Sul, tão
longe ao Sul quanto você quiser."

O Delta deu terra rica para as plantações de algodão, com o traba-


- escravo. Abolida a escravatura, os negros continuaram a trabalhar no
e de semi-escravidão. Era o esquema dos sharecroppers (meeiros),
~me explorados pelos brancos proprietários de terras. Os meeiros e
-frias chamavam o patrão de boss, bossman ou Big Boss. O sistema
:--~tação era tão rígido e autoritário que os negros acabaram usando
o bossman genericamente para representar a opressão da justiça e
iedade brancas.
~-a língua dos índios Choctaw, rio Yazoo quer dizer Rio da Morte e
~ ºão do Delta era conhecida como o Cinturão Negro. O índice de lin-
entos no Estado do Mississippi nos anos 20 a 30 era o maior do Sul
seja, o mais elevado de todo o país - e os linchamentos eram espe-
os públicos demorados e sangrentos. Um negro que olhasse uma mulher

19
branca poderia ser acusado de "estupro". Se um negro ia pedir a um bran-
co um dinheiro que este lhe devia e por acaso tinha no bolso um pequeno
canivete, ainda que fechado, podia ser acusado de "roubo à mão armada".
E isso, no Mississippi, podia valer ao negro a prisão perpétua. Quando o
branco precisava construir uma estrada ou erguer um dique contra as en-
chentes, o negro era a mão-de-obra eleita. Principalmente porque saía de
graça. O branco recorria ao trabalho dos presidiários. E, quando faltávam
trabalhadores, era fácil fazer presidiários: se o negro bobeava e saía de casa
sem documentos, era preso por vadiagem; se retrucava ao branco, tinha a
pena aumentada por desacato à autoridade. Acabava vestindo o pijama
listrado e, com as bolas de ferro presas aos pés por meio de alças e corren-
tes de ferro - as famosas ball and chains tão cantadas pelos blues - , ia
trabalhar de sol a sol sem nenhuma paga. Muitos morriam nas fugas de-
sesperadas das penitenciárias. Outros recorriam aos blues. Nas penitenciá-
rias do Mississippi foram descobertos alguns dos melhores cantores de blues;
outros, tiveram atrás das grades o seu aprendizado musical.
Na atmosfera opressiva do Delta, era natural que os o negros se
voltassem para o blues. Ali vivia uma densa população afro-americana,
pobre e isolada, forçada a criar suas próprias diversões. Ainda neste sé-
culo, foi no Mississippi que etnólogos encontraram vestígios de música
africana no repertório de bandas de pífanos e tambores. Foi também no
Mississippi que o compositor W.C. Handy ouviu pela primeira vez a mú-
sica que chamou de "primitiva", um trio instrumental de blues; e foi lá
que surgiu um dos primeiros blues, Yellow Dog Blues, alusão à ferrovia
Yazoo & Delta, conhecida localmente por Yellow Dog. Neste cenário,
nasceram figuras lendárias do blues, como Ike Zinnerman, que buscava
inspiração tocando seu violão num boneyard ("canteiro de ossos"): num
cemitério, à meia-noite, sentado sobre uma sepultura qualquer.
O palco destes primeiros gigantes do blues eram as modestas jook
joints, também conhecidas como barrelhouses - barracos de madeira que
abrigavam uma mistura tosca de sala de concerto, salão de dança e bar.
A palavra vem da África Ocidental, de joog, que significa "agitar" ou
"sacudir"; e/ou do dialeto Vili do Congo, de yuka, que quer dizer "fazer
barulho, golpear, bater". Até as menores cidades do Delta tinham uma
ou duas jooks, situadas o mais longe possível da igreja local. Representa-
vam a contrapartida da missa de domingo: era nas jooks que corriam os
embalos de sábado à noite. Nestes estabelecimentos, rolava a bebida clan-
destina da Lei Seca (os proprietários pagavam à Polícia para fechar os
olhos) e os drinques eram servidos em copos de lata. Não se usavam co-

20 Roberto Muggiati
JO ou canecas de vidro. Segundo o bluesman John Shines, "as pessoas
iam aprontar confusão e abrir a cabeça das outras com aquelas cane-
-- - - eram Lugares violentos."
Ironicamente, as jooks deram o nome à máquina que acabaria com
: as jukeboxes, nas quais bastava enfiar uma moeda para tocar um disco
....2. escolha do freguês. Na terra das jook joints, as jukeboxes eram mais

- nhecidas por outro nome, vendors. Antes de a máquina substituir os can-


- ~es, as festas eram animadas pelas doses de hootch - o uísque ilegal
- do do milho - e as pessoas se sacudiam ao som do blues. Numa época
que um disco nunca ultrapassava os três minutos de música, os blues
- •ooks chegavam a durar meia hora ou mais; e era comum um outro
-or desafiar o bluesman que estava se apresentando e travar com ele um
deiro duelo musical - o chamado headhunting, ou headcutting. As
, uma mulher se destacava do grupo e começava a gingar seus qua-
m defronte ao músico que tocava, como que tomada por um transe.
Especialistas em blues indicam uma gravação de Son House - feita
- ck's Store, no Lago Cormorant, Mississippi, em 1942 - como uma
riruição notável da música que se fazia nas jook joints do Delta. É
• - in' Blues, composição de Robert Johnson, lançada pela gravadora
esa Flyright. Eddie 'Son' House foi um cantor de blues meio estranho.
- :i o em 1901, cresceu num meio religioso e acabou se insurgindo
-a a influência demoníaca do blues. Isso não o impediu de gravar
clássicos do gênero, como Preaching the Blues e Jinx Blues. Este
~e sortilégio (jinx) e diz, entre outras coisas:

Well, the blues, the blues is a worried heart disease


Look Like the woman you be lovin', man.
So doggone hard to please. (... )
You know the blues ain't nothin' but a Lowdown, shakin'
- -/Jin' chill
Well, if you ain't had'em, honey. I hope you never will...
(" Ora, o blues, o blues é uma doença do coração preocupa-
º I A ssim, quando a mulher que você ama, cara, é muito difí-
:~ f de agradar. (... ) Você sabe que o blues não passa de um cala-
.é o ruim e dolorido /Se você ainda não sentiu isso, espero que

lo sinta nunca ... ").

_ uitos anos depois, Son House se lamentava: "Sempre me dava raiva


• wmem com uma guitarra cantando os blues e aquelas coisas to-

21
,' !·, SLIDE
THE . .- G.
i; - : ; ' • : '
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• •

BOTTLES, KNIVES li STEEL

O efeito slide: dedos de som e sangue


Pelos discos que fez em 1930 recebeu 30 doláres; por seu traba-
1942, gravado pelo pesquisador Alan Lomax para a Biblioteca do
e- o ganhou menos ainda: uma garrafa de Coca Cola. Son sumiu
e foi trabalhar, entre outras coisas, como ferroviário no Estado
a Iorque, até ressurgir triunfalmente no Festival Folk de Newport
- . Como era da Igreja Batista, mais tolerante que outras do Sul -
· que um pouco de blues não comprometeria sua alma - , Son
oltou à atividade musical. Em 1969, no auge do blues reviva! ali-
.::. pelo rock, Son House chegava a ganhar de 500 a 600 dólares
=--~".._. . . tação. Antes de morrer, nos anos 80, Son House aposentou-
=orar em Detroit, mas seus blues são ouvidos até hoje.
-.-o gênio marginal do Delta foi Tommy Johnson, que nasceu por
96 em Terry, Mississippi. Ele aprendeu a cantar nas planta-
n ·olveu uma prodigiosa técnica vocal, usando o recurso do
· o o nosso popular "tiroleíti" de cantores-vaqueiros como Bob
de suas canções mais famosas foi dedicada à sua maior preo-
ebida. Canned Heat Blues - que inspirou o nome de uma
- - americana dos anos 60 - refere-se a um óleo de cozinha
1:=::u::!SO -om a marca Sterno. A sede atroz provocada pela Lei Seca fazia
ar este óleo, coá-lo através de um pano e beber a poção
ele bebia de tudo: todo tipo de álcool, graxa de sapato,
·:oiicmll.a.. cônico capilar, derivados de petróleo. Um dos subprodutos
e erilismo desvairado que grassava no Delta eram os aleija-
r:!l>.::L:::i.;-r:r;-,es- das doenças provocadas pela ingestão de coquetéis tão
,....,.............. canções dos anos 30 abordavam o tema do jake leg, o
·:na da venenosa bebida clandestina. Tommy Johnson gra-
em 1928 pelo selo Victor e depois parou. Tudo porque
- -cia suas relações com o mundo. Na hora de assinar um
va caindo de bêbado e acreditou que tinha vendido seus
,--·-----~ para o resto da vida. A dúzia de blues que ele gravou
i:áveis músicos do Delta. E Tommy Johnson continuou
-~~d.o até os 60 anos, quando morreu, em 1956, em Crystal
e passar a noite inteira fazendo música na festa de ani-
~brinha.
negros do Sul, havia uma distinção entre os musi-
--:a avam por sua eficiência instrumental, e os songsters,
-eciados por suas qualidades como cantores e composi-
'..:.lii!S!:!:c-r. do Delta equilibravam estas duas características. En-
l1Tif ---'~""" ;oram eles os precursores da técnica do note-bending,

23
de "dobrar" as notas do violão através do estilo slide. Corre uma versão,
beirando a lenda, de que a técnica surgiu quando um pente de bolso de
um músico havaiano caiu justamente em cima do violão, criando o som
novo ao deslizar sobre as cordas de aço. Lenda ou não, foi Joseph Kekuku,
do grupo do dançarino exótico do Havaí Toots Paka, quem gravou slide
pela primeira vez, para a gravadora de Thomas Edison em Nova Iorque
em 1909. Mas estudiosos da música afro-americana argumentam que o
slide evoluiu a partir do one string, instrumento rudimentar de uma cor-
da só, aparentado do berimbau. Um dos primeiros a fazer referência à
técnica do slide foi o compositor W.C. Handy, relatando uma viagem ao
Delta em 1903:

"Uma noite em Tutwiler, quando eu lutava contra o sono


na estação à espera de um trem com nove horas de atraso, a vida
subitamente me agarrou pelo ombro e me acordou com uma
sacudidela. Um negro esguio e desajeitado tinha começado a
dedilhar um violão ao meu lado enquanto eu dormia. Suas rou-
pas eram trapos, os dedos dos pés saíam pelos buracos dos sa-
patos. Seu rosto continha algo da tristeza milenar. Ao tocar, ele
apertava as cordas do violão com uma faca da maneira popu-
larizada pelos guitarristas havaianos, que usavam barras de aço.
O efeito foi inesquecível."

Os sliders do Delta usavam o que estivesse à mão: facas, barras de


ferro, pedaços de cano, gargalos de garrafa e até ossos de animais. Mui-
tos descuidavam de proteger o dedo e acabavam a noite com a mão e o
violão vermelhos de sangue. Com o tempo, muitos costumavam prote-
ger o dedo com um trapo embebido em óleo para impedir que o vidro do
gargalo (daí um dos nomes dados ao estilo, bottleneck) cortasse a pele.
Um dos mestres desta técnica - e um dos deuses do Delta - foi
Charley Patton. Nascido em 1887 em Edwards, Mississippi, vestia-se com
rara elegância: ternos impecáveis, gravata-borboleta, um autêntico dândi
dos bayous, escondia atrás da roupa sua complexa personalidade. Charley
Patton era um verdadeiro "coquetel racial", mistura de branco e negro
com predominância de sangue índio. "Parecia um porto-riquenho", diz
o cantor de blues Howlin' Wolf. Patton era iletrado, passava o tempo todo
vagabundeando, quase sempre bêbado. Torrava todo dinheiro que apa-
recesse e surrava sem piedade suas oito mulheres. Mas uma destas mu-
lheres foi páreo para ele. Bertha Lee Pate juntou-se a Patton pouco de-

24 Roberto Muggiati
ruas gravações de 1929 e, embora não fosse um gênio, gravou com
-- - morte do cantor em 1934. Certa vez, durante uma briga, Bertha
o uma faca de açougueiro e cortou a garganta de Charley. O casal
- utiu o incidente, mas Patton levou para o resto da vida aquela
- - o seu pescoço. O repertório de Patton era mais amplo do que o
~"iro no Mississippi: além do autêntico blues do Delta, ele tocava
-""-'"'--"LJ- e canções folclóricas, covers de canções populares e até alguns

de ragtime. Sua dicção era primitiva e às. vezes confusa (Son


julgava "ininteligível"), mas seu admirável senso rítmico ofus-
- quer deficiências harmônicas e melódicas que tivesse. Em 1933,
' - _- Patton e Bertha Lee mudaram-se para um buraco chamado Holly
_ • nde se apresentavam nas jooks locais. A saúde dele definhava,
_ ao ferimento na garganta e principalmente a uma doença cardía-
ez um problema na válvula mitral. Estava sempre sem fôlego e
·a descansar três dias seguidos para se recuperar de uma noitada
. Patton morreu em 1934. Bertha Lee morreu em 1975, aos 73
evistada sobre o seu lendário marido, conseguia lembrar ape-
:!C ele tocava guitarra. Esqueceu que Charley Patton também canta-

ele, morreu uma parte importante do blues: a tradição do Delta.

25
NEWS &THE BLUES ·
TELLING IT LIKE IT IS

Deu na primeira página: o blues como jornalismo


:\ DO BLUES

poeta francês Jean Cocteau considerava o blues a única contribui-


êntica e importante de inspiração popular à literatura deste século.
americana Elizabeth Bishop admitia que seu pentâmetro jâmbico
- 'avorito era "I hate to see that evenin' sun go down ",da letra de
is Blues, de W.C. Handy. Mas ninguém define melhor o blues do
criadores, como o próprio W.C. Handy: "O blues veio do nada,
ência, do desejo." Há letras que dizem tudo: "I !ove the blues, it
-- :o nice" ("Adoro o blues, ele machuca tão gostoso"). Ou títulos de
.........,-""'~ como The Blues Ain't Nothing But a Woman Cryin' for Her Man.
- .:ia.lista na pesquisa do blues, o escritor Paul Oliver sintetizou:

"... o blues é um estado de espírito e a música que dá voz a


e. O blues é o lamento dos oprimidos, o grito de independên-
:ia, a paixão dos lascivos, a raiva dos frustrados e a gargalhada
do fatalista. É a agonia da indecisão, o desespero dos desempre-
oados, a angústia dos destituídos e o humor seco do cínico. O
blues é a emoção pessoal do indivíduo que encontra na música
z1m veículo para se expressar. Mas é também uma música so-
cial: o blues pode ser diversão, pode ser música para dançar e
para beber, a música de uma classe dentro de um grupo segre-
gado. O blues pode ser a criação de artistas dentro de uma pe-
quena comunidade étnica, seja no mais profundo Sul rural, seja
nos guetos congestionados das cidades industriais. O blues é a
canção casual do guitarrista na varanda do quintal, a música do
pianista no bar, o sucesso do rhythm and blues tocando na juke-
box. É o duelo obsceno de violeiros na feira ambulante, o show
no palco de um inferninho nos arredores da cidade, o espetá-
culo de uma trupe itinerante, o último número de uma estrela
dos discos. O blues é todas estas coisas e todas estas pessoas, a
criação de artistas famosos com muitas gravações e a inspira-
ção de um homem conhecido apenas por sua comunidade, tal-
vez conhecido apenas por si mesmo."

ues 27
Um intelectual negro, o escritor Ralph Ellison, autor de O Homem
Invisível, diz que "o blues é um impulso para manter vivos na consciên-
cia dolorida da gente os detalhes penosos e os episódios de uma experiência
brutal, para ferir as mãos nestas arestas de vidro e transcender tudo ar-
rancando com os dedos um lirismo quase-trágico, quase-cômico."
Os cantores de blues, mais objetivos, dizem, como T-Bone Walker,
que para tocar o blues "é preciso viver os blues". Cada músico de blues
viveu, em maior ou menor grau, os blues. Mas ninguém os viveu como
Blind Willie Johnson, nascido em 1902 em Marlin, Texas, numa fazenda
perto do rio Brazos. Eram muitos os cantores de blues cegos que acres-
centavam o título Blind ao nome; havia até alguns falsos cegos, aos quais
o título dava status e ajudava a ganhar a vida. Willie Johnson era cego
mesmo, desde os sete anos, quando a madrasta lhe jogou ácido nos olhos
para se vingar do marido depois de uma surra. Willie cantava blues de
exaltação religiosa (Motherless Children Have a Hard Time, Lord, I ]ust
Can't Keep from Cryin') nas pequenas cidades algodoeiras do sul do Texas.
Aos 25 anos foi para Dallas, onde conheceu sua mulher e parceira de canto
Angeline. Descoberto por caçadores de talentos, Blind Willie fez algumas
gravações e tornou-se um dos grandes sucessos do disco no Sul durante
muitos anos. Quando sua gravadora faliu, em 1932, ele sumiu e nunca
mais fez um disco. Em 1949, Blind Willie e Angeline foram acordados por
um incêndio em sua casa em Beaumont, Texas. Conseguiram apagar as
chamas com baldes de água e, sem dinheiro, não tendo para onde ir, dei-
taram-se na cama carbonizada e ensopada para dormir. Willie pegou uma
pneumonia, agravada porque continuou a cantar nas ruas geladas. Final-
mente, procurou um hospital, onde se recusaram a atendê-lo porque era
cego. Blind Willie Johnson, autor da canção Jesus Make Up My Dying
Bed, voltou para casa arrasado, deitou-se na cama molhada cobrindo-se
com jornais velhos e morreu em poucos dias.
Mas o blues nem sempre é totalmente trágico. Às vezes, ri de si mes-
mo, como nesta canção de Blind Blake:

There's a great big mistery


And it surely is worryin me
This diddie wa diddie, this diddie wa diddie
I wish somebody would tell me what diddie wa diddie means.
("Existe um mistério muito grande/ E está me preocupan-
do demais /Este diddie wa diddie, este diddie wa diddie /Queria
que alguém me explicasse o que diddie wa diddie quer dizer.")

28 Roberto Muggiati
ili blues que traçam a interseção perfeita entre o coletivo e o individual:

If your house catch on fire and there ain't no water round (bis)
Throw your gal out the window and let the shack burn down.
("Se tua casa pega fogo e não existe água à mão/ Jogue a
z4/her pela janela e deixe o barraco queimar.")

~ blues que falam de doenças, como tuberculose, pneumonia, pela-


~ belly faz poesia pura em seu T .B. Blues:

It's too late, too late, too late, too late (bis)
I'm on may way to Denver and mama must I hesitate
Mmmmmmmmmm mmmmmm the T.B. is killing me (bis)
_1y mama I'm, like a prisoner. I'm always a-working the

ça e mulher também vinham juntos, como em Pneumonia Blues,


Lemon Johnson:

_ ching ali over I believe I've got the pneumonia this time (bis)
~.\Jid
it's all on account of that low down gal of mine.
-com dor no corpo inteiro, acho que desta vez peguei pneu-
- E tudo por causa daquela miserável da minha mulher.")

- e rrilhos correm como sangue pela veias do blues. A ferrovia não


meio de transporte - é quase um veículo mágico que leva o
~- scender a sua condição. Viagem, união, separação: o trem ad-
uma dimensão mitológica. Não à toa, o sistema de fuga usado
...._,....._.-,~~·onistas antes da Guerra Civil para ajudar escravos a ganha-
__,.._.......... de nos Estados do Norte foi chamado de Underground Rail-
,i.:.--,.,.....- Subterrânea. Era uma rede de casas amigas ("estações" ) nas
- ~ o se abrigavam à noite durante sua escapada.
o _o, o sonho dos negros oprimidos do Sul, de conquistar uma
-:rabalhando nas fábricas do Norte, tornava-se realidade graças
..._~,.,,-.o-... - fuitas vezes, sem dinheiro, o negro pegava carona num trem
:=:...ã. uma vida perigosa. Os seguranças da ferrovia surravam forte
3i~i.<l:lü!i, muitas vezes os aleijavam ou matavam. Havia também os
diziam ramblified, os músicos errantes e os vagabundos, to-
ros da estrada. Para eles, era uma verdadeira viagem de pra-

29
zer riding the blinds, "cavalgando" nos cargueiros ou trens postais. Alguns,
mais ousados, praticavam o riding the rods: para escapar dos vigias, que
procuravam clandestinos no ·t opo dos vagões, eles viajavam pendurados nos
rods, barras metálicas que serviam de reforço debaixo dos vagões. Não era
um esporte para mulheres. Como dizia o blues de Cow Cow Davenport:

I'm going up North, baby, I can't carry you,


Ain't nothing in that cold country a sweet gal can do.
("Vou para o Norte, baby, não posso te levar/ Não há nada
naquela terra fria que uma doce garota possa fazer.")

Ou um verso clássico do blues shouter de Chicago, Jimmy Rushing:


"Goin' to Chicago, sorry but I can't take you". Muitas mulheres canta-
ram blues em que os trens aparecem como agentes inexoráveis da separa-
ção. Já em 1924, Trixie Smith fazia sucesso com sua gravação de Freight
Train Blues. Na versão de 1938, ela enxerta versos de Chicago Bound Blues:

Mean old fireman, cruel old engineer.


You took my man away and Left his mama standing here.
("Seu odiento foguista, seu cruel maquinista/ Vocês Leva-
ram meu homem embora e deixaram a mulher dele sozinha. ")

Às vezes, a letra assume um tom de fantasia, como em The L&N


Blues, cantado por Clara Smith em 1925:

Got the travelin' blues, gonna catch a train and ride (bis)
When I ain't ridin', I ain't satisfied
I'm a ramblin' woman. I've gota ramblin mind (bis)
I'm gonna buy me a ticket and ease on down the fine.
('Estou com os blues da viagem, vou pegar um trem e ro-
dar I Quando não estou rodando não estou satisfeita/ Sou uma
mulher da estrada, tenho a cabeça na estrada/ Vou comprar uma
passagem e rolar por estes trilhos.")

Em algumas canções, a própria voz tenta imitar os trens, como em


Choo Choo Blues, gravado por Trixie Smith em 1924. Também os ins-
trumentos tentam recriar os sons dos trens na música: o violão e princi-
palmente a gaita-de-boca. O piano do boogie-woogie é outro exemplo.
Há quem considere o Honky Tonk Train de Meade Lewis uma tentati-

30 Roberto Muggiati
a musical de mimetizar um trem, tão bem sucedida quanto o Pacific 231
"' Honneger.
a música de Robert Johnson o trem aparece com lirismo intenso,
autêntica metáfora da vida. O chamado da estrada aparece em Ramb-
'7 on my Mind: "Runnin' down to the station catch the first mail train

- e". As luzes de um trem dão cores a uma triste história de amor em


·e in Vain, talvez sua canção mais famosa. A letra de Sweet Home
cigo causou muita discussão entre estudiosos do blues. Nela, Johnson
·da a namorada a viajar "back to the land of California to my sweet
Chicago." Alguns viram na canção uma referência a uma específi-
de trem California-to-Illinois. Outros acharam que Johnson fa-
c.e uma estrada de ferro mental. Mais recentemente, um historiador
riu que Robert Johnson tinha um primo que morava numa cida-
,......_.........-.a da Califórnia chamada Port Chicago ...

rros prodígios da era mecânica e eletrônica entram também no


io do blues. Em seu Phonograph Blues, Robert Johnson fala
..c:.........u::ute de sexo através do gramofone:

• Tow, we played it on the safa, now we played beside the wall


~1y needles have got rusty, baby, they will not play at ali.
"Nós tocávamos no sofá, nós tocávamos contra a parede
:li has agulhas enferrujaram, não posso tocar mais.")

- o maiores sucessos de Johnson foi Terraplane Blues, em que


11\11 ......,.. ;:raído compara o corpo da mulher a um automóvel:

_ otor's in a bad condition, you gotta have theses batteries


- e
u . . I'm cryin', please, plea-hease don't do me wrong
o been driving my Terraplane now for you-hoo since I
?Je.
O motor está em péssima condição, tem que carregar esta
""'~~·.,. / _ ias eu estou implorando, por favor, por fa-vor, não
:.il / Quem andou dirigindo o meu Terraplane para você
ett estive fora?")

-a escrever uma tese sobre a relação entre os meios de transpor-


-ia um trem chamado Shorty George que levava parentes,
-~- _es para visitar os presos nas penitenciárias agrícolas do Sul.

31
Muitos blues cantaram o ferry que levava músicos de Friars Point, no Mis-
sissippi, para West Helena, no Arkansas, onde a venda de bebidas era le-
gal. Havia um barco-bordel no Mississippi, o Katy Adams: as prostitutas
a bordo levantavam as saias e sacudiam a sacola de dinheiro pendurada
sobre o sexo para atrair a clientela. Nos anos 30, quando compositores de
standards como Gershwin e Cole Porter começavam a incorporar o avião
em suas letras, o blues também já voltava suas vistas para o ar. Em 1930,
Mother McCollurn grava em Chicago Jesus Is My Air-o-Plane: "Oh, Jesus
is my air-o-plane. / He rides over us ali, He don't ever fali/ Jesus is my air-
o-plane. " Aviões costumavam cortar os céus do Delta lançando panfletos
para anunciar discos e espetáculos. Urna destas felipetas da época diz:

THE DEATH OF CHARLEY PATTON!


Poor old Charley Patton had one "Spoonful" too many so
now we see him leave his "Pony Blues" behind as he goes "Down
the Dirt Road" where the "High Sheriff" and "Revenue Man "
can't find him. Buy Charley's last great hit "PooR M E" at your
best bet. PowELL's Mus1c in Jackson T ODAY!

Ou seja, o panfleto anunciava a morte de Charley Patton e convoca-


va todos a comprarem seu último disco.
Vários blues foram compostos sobre a morte de músicos famosos,
como Leroy Carr e Bessie Smith. Havia blues que exerciam esta função,
um misto de crônica da História e noticiário. Alguns presidentes ameri-
canos foram objeto de canções como a de Big Joe Williams sobre Roosevelt:

Well you know that President Roosevelt, he was awful fine;


Well he helped the crippled boys, and alm ost healed the
blind.
("Ora, vocês sabem, o Presidente Roosevelt foi um ótimo
sujeito/ Ele ajudou as crianças aleijadas e quase curou os cegos.")

J.B. Lenoir foi um verdadeiro jornalista do blues. Nascido no Missis-


sippi em 1929, ele ousou interpelar diretamente em 1954 o ocupante da
Casa Branca, queixando-se da situação econômica em Eisenhower's Blues.
Como corria a era do macartismo, o disco foi recolhido das lojas e o FBI
abriu um dossiê sobre Lenoir. Mais tarde, ele lançou outra versão mais bem-
comportada do número, com o título Tax Paying Blues. A convocação em
massa de soldados negros para a Guerra da Coréia inspirou a J .B. Lenoir

32 Roberto Muggiati
rea Blues e (Eisenhower) I'm in Korea. Em 1965, Lenoir faz um pode-
depoimento musical sobre os direitos civis no LP Alabama Blues. Em
~ - ele morre aos 38 anos num acidente de carro. Imediatamente, o blue-
- britânico John Mayall lhe presta uma homenagem em forma de blues,
Death of].B. Lenoir. E, num álbum de 1969, Mayall - que também
na Coréia - dedica outra música "a J.B. Lenoir, cujo talento ainda
- .:oi devidamente reconhecido", I'm Gonna Fight Four You ].B..
O naufrágio do Titanic, a travessia do Atlântico por Lindbergh, o
- da Bolsa em 1929, o desemprego e a depresssão dos anos 30, as
do pugilista Joe Louis, o ataque japonês a Pearl Harbor e o lan-
,...._____..._-o da bomba atômica - todos estes temas acabaram em blues. Mas
ro maior do blues, aquele que não só ocupa a maior quantidade
_ ~ ioneiro, mas elevou também o blues ao seu mais alto grau de
•.,......_""4de foi o amor e o sexo.
_ - o há espaço no blues para o romantismo adolescente das canções
média branca, daqueles que rimam Moon com]une. O amor no
e ser infeliz - o que acontece na maioria das vezes - mas tam-
-~ e e positivo, geralmente quando o cantor ou a cantora exaltam
='or erótico valendo-se de imagens domésticas ou culinárias. ]elly-
; ·e de pão doce ou rocambole, entrou para a gíria já no final do
~como representativo de "vagina", "ato sexual", "amante", "ta-
. Amor e sexo no blues são sempre maduros e diretos. Mui-
hocantemente diretos, como em Copulatin' Blues, de Howard
- ohnson:

Get off with me! Honey, bend your knee.


on't get too drunk 'cause you can't last long.
- -erzha comigo! Querida, dobre o joelho /Não beba de-
: ;ão você não vai gozar muito.")

~ lues que diz: "J used to lave you, but oh, God damn now!"
- amava, mas, ora, vá pro raio que te parta!").
:é um blues de Frank 'Son' Seals intitulado Your Lave Is Like
aginaram Frank Sinatra chegando ao topo da parada de
uma canção que proclama "teu amor é como um câncer"?
enente de blues que canta amores malsucedidos baseada
,.,......---"""-'..,,....-·..... Alguém colocou um "mau olhado" ou "rogou um pra-
maldições e as defesas contra elas são agenciadas atra-
....._,,•..._....- . . ,- e amuletos, os mojos tão freqüentemente citados nas le-

33
tras de blues. Mas isto já faz parte da magia ancestral que veio da Áfri-
ca. No confronto com a realidade concreta do século 20 na América, o
cantor de blues se exprime, em relação ao sexo e ao amor, com admirá-
vel lucidez e lirismo. Como diz o historiador de literatura e de música
Marshall Stearns, "a linguagem do blues é enganosamente simples. Por
trás de tudo há um ceticismo agudo que penetra na fachada florida de
nossa cultura como uma faca."

34 Roberto Muggiati
LUES NA ESTRADA

i:: e foi um espécie de François Villon do blues. Como o poeta fran-


século 15, Leadbelly foi acusado até de homicídio e passou algu-
oradas na prisão. Mas soube transcender a marginalidade gra-
arte. Não foi apenas cantor e compositor de blues. Também
"°ª canções de igreja, temas infantis, work-songs, baladas fol-
. canções de cowboy, canções populares e o que mais lhe surgisse
- . Tocava piano, acordeão, gaita-de-boca, bandolim e violão de
. mas seu instrumento principal era o violão de 12 cordas que
Texas e incorporou como acompanhamento vibrante - com
rítmicos e figuras de baixo - ao canto áspero intercalado
~~.......... falados.
·rn""LIJL...'" ~dbetter, mais conhecido com Leadbelly ("Barriga de Chum-
- 1ooringsport, Louisiana, em 1889, na aurora do blues,
- -- o e de uma índia mestiça. Cresceu na fazenda do pai - na
o lago Caddo. Aos dez anos ganhou de um tio uma espécie
windjammer - e aos 13 anos já tocava nos bailes de
embra como o tio chegou com o instrumento no dorso
. oal francês da Louisiana gostava de acordeão. Nós,
""""""'"''"'-
-..~"'- mais do violão. Para ficar numa boa, eu tocava os dois. "
'""-"...__~::.. Leadbelly cuidava do gado e das mulas, colhia algo-
"-"~'-'~',- ia para a farra e tocava a noite toda em bares e bailes.
_ e "era um rapaz mau e terrível". Aos 15 anos, foi
- filha de um vizinho. Um ano depois, a mesma jovem,
novo e Leadbelly teve de fugir. Armado de violão
5Z:rada e foi tentar a vida na cidade. Até que se deu
- e outono, trabalhava nas fazendas colhendo algo-
ava em salões de baile e bordéis. Mas seu jinx
o "azar" ou "maldição" -era forte. Certa vez,
om uma garrafa. Em outra ocasião, um assal-
.:"'u pescoço e esculpiu um belo talho que virou
- ara o resto da vida. Mulherengo, geralmente
-- :ez, encontrou resistência e estuprou a moça.

35
Huddie Leadbelly: o favorito da polícia
ano de cadeia, no condado de Harrison, mas no terceiro dia saltou
e fugiu para a liberdade através de uma plantação. Em outro
;:isando o nome falso de Walter Boyd e intitulando-se "O Rei dos
e Violão de 12 Cordas do Mundo", Leadbelly atravessava com
anheiros a parte rasa de um rio na confluência dos Estados de
sas e Oklahoma. Um deles falou que Huddie havia visto algo
o outro. Este puxou o revólver - os três estavam armados -
~,._,_...,._lly foi mais rápido e deu-lhe um tiro na testa. No dia 13 de
e 1917, foi condenado a 30 anos de prisão na penitenciária
.,. haw. Tentou fugir, tentou afogar-se num lago - não conse-
·olta por cima: tornou-se o chefe do melhor grupo de traba-
- :ia prisão e o artista preferido dos presos. Um dia, a prisão rece-
-- do governador do Texas, Pat Neff, com a Primeira Dama e
eadbelly cantou, tocou, dançou e improvisou até uma canção
· perdão ao governador. Neff era famoso por nunca ter per-
-.;:, ém. Prometeu a Leadbelly: "Vou libertá-lo um dia, mas ago-
e tocar para mim." Um dia antes de terminar o mandato, em
- _ ºeff deu ordens para que Leadbelly fosse solto. Ele passara seis
. , . . :neses e oito dias na prisão.
-é e azar continuava. Em 1930, Leadbellyvoltou à prisão, desta
enda Estadual de Louisiana, em Angola, com a sentença de dez
- - ·er esfaqueado seis homens que queriam tomar a sua marmita
~v....:u uísque nela ... Mas a sorte finalmente chegou. John e Alan
111mnn.... - - e filho, eram obcecados caçadores-de-sons e percorriam as trilhas
Escadas Unidos com o seu gravador tentando recolher música
.::e rodo tipo. Encontraram Leadbelly na penitenciária de Ango-
ou outro apelo de perdão, desta vez endereçado ao governa-
iana, O.K. Allen. No outro lado do disco, feito em alumínio,
-eg:i trava um de seus clássicos, Goodnight Irene. Um ano de-
xava as grades e tornava-se motorista de John Lomax, condu-
-:isões, plantações, jook joints, igrejas, bordéis e o que fosse. Além
Lomax em sua pesquisa de campo, Leadbelly era introduzido
~ circuito universitário, em palestras sobre folclore seguidas de
~g>es musicais. A presença daquele negro tição em meio a um públi-
l"J!"'!;C::Si!zan· o branco chocava, principalmente quando ele, num tom muito
endava: "Nunca matem mulheres, isto será o seu fim."
- o de mulher, Leadbelly resolveu se aquietar um pouco. Em
- e com Martha Ledbetter, em Connecticut. A esta altura, ele
o casamento muito sério, na área profissional. O trabalho

IUUW: 37
dos Lomax adquiria uma importância extraordinária e tudo o que eles
faziam contava com o apoio do governo e se destinava aos arquivos da
Biblioteca do Congresso em Washington. E foi em Connecticut, no chalé
da folclorista Mary Elizabeth Barnicle, que aconteceram as principais
gravações do repertório de blues, baladas, hollers, quadrilhas, canções de
trabalho e de cabaré feitas por Leadbelly. Além de tudo isso, os Lomax
começaram a trabalhar numa biografia de Huddie.
A carreira do ex-marginal de repente entrou em alta. En Nova Iorque,
Leadbelly tocava para universitários e em clubes, fazia programas de rá-
dio e engajava-se em causas políticas trabalhistas de esquerda.
Agradava, apesar de não fazer concessões: "Nunca um branco foi
capaz de fazer um blues, porque não tem nada com que se preocupar, não
tem problemas do tamanho do nossos."
Uma coisa Leadbelly sempre admitiu: a influência de Blind Lemon
Jefferson. Os cantores de blues cegos são uma tradição. Jefferson era uma
lenda. Leadbelly diz que o conheceu em Dallas em 1904; que o conheceu
durante 18 anos. O que se sabe é que por um tempo Leadbelly e Lemon
cantaram nos bares de Dallas e nas escadarias das estações ferroviárias
do Texas. Às vezes viajavam até Silver City, terra de dinheiro (e mulher)
fácil. "Gostamos de mulheres por aqui", dizia Huddie, "porque quando
tem mulher os homens trazem dinheiro. E com homens, mulher e dinhei-
ro rolando, a gente quebra tudo com aquelas guitarras ... "
Ele evoca, em sua linguagem colorida, a vida na estrada com Blind
Lemon:

"Naqueles dias no Sul, o velho Blind Lemon Jefferson e eu,


a gente costumava viajar naqueles vagões sujos reservados aos
negros, enquanto o pessoal branco se acomodava em alto esti-
lo nos elegantes carros Pullman. Aqueles fedorentos calhambe-
ques ficavam cheios de negros que nem latas de sardinha. Ha-
via bóias-frias das plantações ainda com algodão preso na sua
carapinha e estivadores à procura de novos empregos nas bar-
caças e nos diques. Ainda tinham graxa no rosto e nas mãos
porque não havia onde pudessem se lavar no lado negro das es-
tações ferroviárias . E havia jogadores, meeiros, garotas negras
e mulatas e meio-negras e meio-mulatas. Havia ratos de prisão
e pastores e putas de quadris largos com suas saias de chita e
guingão levantadas até quase a cintura, tentando fazer seus tru-
ques, qualquer tipo de truque por um punhado de dólares. O

38 Roberto M uggiati
Leadbelly: da prisão à eternidade
velho Lemon e eu nos sentávamos no meio daquele vagão ra-
cista com todo mundo de pé à nossa volta, ouvindo e batendo
palmas. E nós viajávamos naqueles violões, cantando e berran-
do o caminho todo até Silver City ou qualquer outro lugar. E
enquanto Lemon trabalhava um verso, eu me intrometia, ber-
rando: 'Blind Lemon era um cego!' E o velho Lemon devolvia
o berro: 'Leadbelly era gente fina!"'

Apesar de toda a truculência, Huddie Leadbelly foi um bluesman


sensível aos problemas sociais que o cercavam. Uma de sua obras-primas
é T.B. Blues, que poderia ser facilmente transposto hoje da tuberculose
para a AIDS:

'The T.B. is killing me


My mama rm like a prisoner
rm always a-working the street
When I was oooooon my feet
Could't even walk down the street
But the mens are looking at me
From my head to my feet
But they's dead now
And T.B. is killing me
I want my body buried
In the deep blue sea.
("A T.B. está me matando/ Mulher, sou como um prisio-
neiro / Estou sempre trabalhando na rua / Quando me pus de
pé/ Nem podia andar pela rua/ Mas os homens estão me olhan-
do/ Da cabeça aos pés/ Mas estão mortos agora/ E a T.B. está
me matando/ Quero meu corpo enterrado/ No profundo mar
azul.")

Huddie Leadbelly foi o primeiro artista fo~ apresentar sua música


em concerto a públicos brancos fora do Sul. Foi também um dos primei-
ros a levar a sua arte para a Europa, com apresentações na França, pouco
antes de morrer. Em junho de 1949, ele gravou para a Biblioteca do Con-
gresso num concerto da Universidade do Texas, em Austin. A esta altura
já estava minado pela esclerose lateral amiotrófica, também conhecida como
a doença de Lou Gehrig. Em 6 de dezembro de 1949, Huddie Leadbetter
morria no hospital de Bellevue, em Nova Iorque. No início dos anos 60,

40 Roberto Muggiati
LeYivido pelos jovens da canção folk que faziam música inspirados
es como ele e no branco de Oklahoma, W oody Guthrie. Em 19 8 8,
- do um disco, A Vision Shared, espécie de tributo dos músicos jovens
- :ie e Leadbelly. As gerações passam, mas a força da música de Huddie
__......._,.._._.: permanece, com a mesma vitalidade e urgência dos tempos he-
~o blues na estrada.

11111111111: 41
Blind Lemon Jefferson: o homem que enxergava com os dedos
D LEMON JEFFERSON
CEGO NA ESQUINA DO BLUES

uem nascia cego no Sul, só tinha uma saída: cantar os blues. Nas
as, com uma latinha presa à guitarra por arame para recolher as
as eles cantavam e se acompanhavam, sob o sol escaldante do ve-
com os dedos endurecidos pelo vento cortante do inverno. A his-
do blues está cheia de seus nomes: Blind Willie Johnson, Blind Blake,
Boy Fuller, Blind James Brewer, Blind Arvella Gray, Blind John
_ Walker, Blind Columbus Williams, BlindJoe Taggart, Blind Archie
n e o mais famoso de todos, Blind Lemon Jefferson. Lemon, nome
eiro, porque nasceu gordinho como um limão, em 1897, na cida-
de Wortham, no Texas, um dos sete filhos do casamento de seu
uma viúva que tinha dois filhos do marido anterior. Cego de
ça Blind Lemon era muito esperto e, de certa forma, compensava
--ncia. Conseguia brincar com os irmãos, correr com eles e até atra-
rio, atrás deles, pelos estrados de troncos. Era bom também em
-e e tinha a vantagem da sua corpulência. Já aos 14 anos, era tão
o os pais e começava a cantar e tocar violão. Gordo, de óculos,
a tardes sentado à porta de um armazém na rua principal de
. cantando por alguns trocados. Ainda adolescente, Blind Lemon
-_requisitado para tocar em bailes e festas nas fazendas da região.
-- aos 20 anos, deu adeus a pai e mãe e pegou um trem para Dallas,
·a 120 quilômetros ao norte de Wortham.
- ;neço na grande cidade foi duro. Na fazenda, Blind Lemon sem-
ama e mesa garantidas. Em Dallas, precisava batalhar para
ão, como conta literalmente num de seus blues:

stood in the corner and almost bust my head (bis)


• couldn't earn enough money to buy me a loaf of bread.
""Fiquei na esquina e quase estourei a cabeça/ Não conse-
...'inheiro nem para comprar uma fatia de pão.")

illllheiro, Blind Lemon figurou no cartaz dos teatros de Dallas


,.. ravam luta livre. Como cego, era uma atração na categoria

43
dos exóticos e, pesando 120 quilos, acabava sem se machucar muito. Com
o tempo, foi fazendo contatos e acabou tocando na zona - no chamado
red-light district. Conseguia o suficiente para a bebida e, no fim da noite,
o violão cuidadosamente colocado debaixo da cadeira para que ninguém
pisasse nele, terminava sempre com uma das garotas no colo.
Lemon tinha integrado à sua música os sons mais primitivos do cam-
po. Agora, ele absorvia a música da cidade. Possuía uma capacidade in-
crível para assimilar e traduzir tudo o que ouvia numa linguagem alta-
mente pessoal. Paul Oliver, um dos maiores pesquisadores do blues, de-
fine o estilo de Blind Lemon Jefferson:

"Quando cantava, o fazia com um pathos profundo, o sen-


timento de um homem mergulhado para sempre na escuridão.
Sua voz era aguda, seca e tinha uma força cortante que afasta-
va toda hipocrisia e deixava a alma exposta. Com um domínio
natural da nuance, ele usava uma quantidade de técnicas vocais,
emitindo uma nota com uma precisão total, elevando-a, deixan-
do a voz subir e decrescer, entrando em cadência como o apito
de um trem no meio da noite. Ao contrário dos bluesmen do Mis-
sissippi, o canto de Lemon, próximo do berro, não tinha uma
batida insistente. Em vez disso, ele suspendia o ritmo e segura-
va uma nota para enfatizar uma palavra ou um verso. 'Marte-
lando' as cordas, estrangulando-as e usando arpeggios rápidos.
Lemon jogava com frases rápidas que estendiam sua linha vo-
cal. Para ele, o violão era uma outra voz e ele freqüentemente
usava frases imitativas, num estilo altamente inovador e pessoal. "

Uma brisa de prosperidade acabou soprando sobre Blind: ele agora


se locomovia de automóvel, com chofer. .. é claro. Em suas breves visita
à fazenda, deixava o motorista ir à cidade e levar garotas a passeio. Por
volta de 1923, casou-se com uma jovem chamada Roberta e tiveram um
filho, dois ou três anos depois. Na metade dos anos 20, Lemon viajava
sem parar. Foi visto ao leste no Alabama, no extremo sul no litoral do
Texas e até mesmo em Memphis, Tennessee. Um pastor do Texas lem-
bra-se dele cantando nas ruas na época da colheita de algodão, sentad
numa banqueta e cercado por uma multidão vibrante. O dinheiro rolava
nestas ocasiões. Cada vez mais gordo, o violão espremido entre a barriga
descomunal e a papada do queixo, com um par de óculos que não servia
para nada e um chapéu Stetson que o protegia do sol- e uma espécie de

44 Roberto Muggiar::
-;olta dos ombros quando as noites esfriavam, a partir de setem-
. d Lemon Jefferson já era, a esta altura, uma lenda viva.
demorou para que as gravadoras partissem no seu encalço. Di-
um de seus primeiros registros fonográficos aconteceu na seção
de um loja de departamentos de Dallas. A companhia que lan-
rimeiros discos foi a Paramount, sediada em Chicago. Ele pode
...- o testes em Dallas, mas suas primeiras gravações foram produ-
Chicago, na primavera de 1925: Beggin' Back e Old Rounder's
rndutor não ficou muito contente e o disco só foi lançado no
1926. Em fevereiro de 1926, Lemon gravava pela segunda vez e
a Paramount anunciava seu primeiro disco:

'Aqui está um autêntico blues no estilo antigo por um au-


ico cantor de blues antigo - Blind Lemon Jefferson, de
- .as. Este Booster Blues e Dry Southern Blues, do outro lado,
- duas das velhas canções de Blind Lemon. Com seu canto,
:oca o violão no verdadeiro estilo do Sul."

,~ u-se uma enxurrada de gravações, a maioria delas com um razoá-


o comercial. Mas o produtor Mayo Williams e a Paramount não
.llil Blind Lemon muito bem. A paga era ínfima, os royalties eram
~dos e Jefferson só ficou na Paramount porque Williams o compra-
mulheres e bebida. Ao término de cada gravação, lá estavam à espera
punhado de dólares, uma garrafa e uma prostituta. Lemon tentou
- ara outra companhia, a OKeh, lá gravando duas músicas. De volta
ount, ganhou até um brinde promocional, um disco de aniversá-
sua foto no selo, Blind Lemon's Birthday Record. Mas a idéia, apesar
_elente marketing, não vingou. Com a saída de Mayo Williams, as
entre Jefferson e a Paramount deterioraram. A esta altura ele já
afastado da mulher e era um verdadeiro desgarrado. Assim como a
'" arte de sua vida, sua morte também ficou envolta em lenda.
fevereiro de 1930, o corpo de Blind Lemon Jefferson, 33 anos,
ontrado congelado na rua, coberto pela neve de um dos piores in-
de Chicago. Naquela tarde ele gravara seu último título nos estú-
1111111 • ~ Paramount, Empty House Blues. As diferentes versões diziam que:
Saiu do estúdio e perdeu o caminho na neve;
, Deixou uma festa bêbado demais e acabou esperando a morte
=ntado num meio-fio;
- Estava na esquina, à espera do seu motorista, mas este nunca chegou.

45
A inseparável guitarra foi encontrada ao lado do corpo. A Paramount
contratou um pianista boêmio para levar o corpo de Lemon até Dallas. Ami-
gos conduziram o caixão até a igreja em Wortham. Os pais e centenas de
vizinhos e amigos acompanharam o enterro. O corpo de Blind Lemon foi
sepultado no campo aberto, nos arredores de Wortham. Até algum tempo
atrás, sua sepultura jazia, coberta pelo capim e sem marca alguma, entre a
de sua mãe e a de sua irmã.
Morto, Blind Lemon virou herói instantâneo. O reverendo Emmett
Dickinson, num sermão gravado em disco, pela Paramount, Death ofBlind
Lemon, falou:

"Meus amigos, Blind Lemon Jefferson morreu e o mundo


inteiro está chorando a sua perda. Por isso sentimos que a nos-
sa perda é o ganho do Céu. Grandes homens, homens educa-
dos e homens cultos, quando eles nos deixam para sua morada
eterna no céu - eles merecem o nosso respeito. Mas quando um
homem que verdadeiramente amamos pela generosidade e ins-
piração que nos deu na parte mais elevada do coração deixa o
nosso convívio, sentimos um vazio em nossos corações que ja-
mais será preenchido. "

Ao contrário do corpo, vulnerável, a obra de Blind Lemon Jefferson


só fez crescer nestes últimos 60 anos. Em cinco anos de Paramount, ele
gravou 79 blues (além dos dois gravados para OKeh). Ali está uma ver-
dadeira Comédia Humana dos blues, uma obra autobiográfica que traça
um impressionante painel do indivíduo e da época. Como em Pneumo-
nia Blues:

Aching ali over, I believe I've got the pneumonia this time
(bis)
And it's ali on account of that low down gal of mine.
("Me dói o corpo todo, acho que peguei a pneumonia des-
ta vez/ Tudo por causa daquela miserável da minha garota.")

Ou em Bad Luck Blues:

I bet my money and lost it Lord, it's oh doggone my bad


luck sou/ (bis)
I'll never bet on this old trey game no more.

46 Roberto Muggiati
("Apostei meu dinheiro e perdi, meu Deus, oh que sorte
errível a minha / Prometo nunca mais apostar neste jogo de
dos, nunca mais.")

;:.. a poesia enxuta de Big Night Blues:

My feet is so sore, can't hardly wear my shoes (bis)


Out last night with wild women and it give me the big night
tes.
("Meus pés estão doendo, mal posso calçar os sapatos /A
ite passada com mulheres da pesada, estou com os blues da
:mde noite.")

.am o lamento profundo de Broke and Hungry:

Iam broke and hungry, ragged and dirty too (bis)


Mama, if I clean up can I go home with you.
Iam motherless fatherless sister - and brotherless too (bis)
Reason I'm trying so hard to make the trip with you.
("Estou quebrado e faminto, maltrapilho e sujo também/
lher, se eu fizer a faxina posso ir com você? /Não tenho mãe
, pai nem irmã nem irmão, não /É por isso que estou ten-
- .do embarcar nesta com você.")

pequena obra-prima Long Distance Moan:

I'm flagging to South Carolina. I gotta go there this time

Woman in Da/las Texas is 'bout to make me loose my mind.


("Estou pegando um trem para a Carolina do Sul, tenho
chegar lá na hora/ Mulher em Dallas Texas está me dei-
- .do louco.")

o Mozart na música clássica, como Charlie Parker no jazz, Blind


:effers on só viveu trinta e poucos anos. Mas foi o suficiente para
11111111e gênio proporcionasse muitas décadas de influência que marca-
,1111111: - e mudaram - a trajetória e a linguagem do blues.

Ili 47
Big Bill Broonzy: das plantações à grande cidade
L BROONZY
-1 SIPPI A CHICAGO

Lee Conley Broonzy, mais conhecido como Big Bill Broonzy,


' --e entre o blues rural e o urbano, entre o Mississippi e Chicago.
Scott, Mississippi, em 1893, em meio a 16 irmãos, urna vida
a garoto - no Arkansas, para onde a família se mudou - fez
de uma caixa de charuto e, com um amigo que brincava com
:ra de fabricação também doméstica, começou a tocar em festas
• es. "Naquela época", contou ele numa entrevista ao rádio em
-ocava schottisches, glides (dança de passos deslizantes) e valsas".
15, aos dezoito anos, Broonzy já estava casado e cuidava de
fazenda. Decidira tornar-se pastor e renunciara ao violino.
~~:arn-lhe 50 dólares e um violino por quatro dias de música. Sua
u com o dinheiro, para que ele tivesse de tocar. A seca de 1916
a colheita, seu gado e suas economias. Foi trabalhar nas mi-
·ão até que Tio Sam o pegou em 1917. Passou dois anos no
e volta a Arkansas, achou o Sul insuportável e decidiu se mu-
20 foi para Chicago e conseguiu um emprego na companhia
Pullman.
v-írus da música não largava Big Bill. E ele tinha outras ambi-
que não podia mudar a cor da sua cara, mas viera ao Norte
o o que o homem branco tinha: roupas elegantes, um carrão,
ranca. Big Bill começou a aprender violão com Papa Charlie
e rocava num estilo arcaico de ragtime e minstrel show num
- de seis cordas. Suas primeiras tentativas de gravar foram frus-
utor Mayo Williams rejeitou seu primeiro teste. No segundo,
-~ eu com um amigo, John Thomas, os dois caindo de bêba-
epois, o próprio Mayo Williams aprovou Big Bill e Thomas.
intitulada "Big Bill & Thomas", o primeiro disco saiu em
lado, House Rent Stomp; do outro, Big Bill's Blues. Foi um
: Broonzy gravou seu primeiro disco aos 34 anos. E não foi

gravações se seguiram, pouca gente tomou conhecimento. Em


a Paramount como Big Bill, com 37 anos, estavam em crise.

49
Ele tentava aprender alguma coisa ouvindo discos de outros cantores, como
Blind Lemon, Leroy Carr e Lonnie Johnson. Para ganhar a vida, traba-
lhou numa venda de legumes. Gravou para outros selos, como Gennett,
Champion e ARC. Começou também a tocar nos bares do South Side de
Chicago. Em 1934, gravando para a Bluebird (uma subsidiária da RCA),
tudo mudou: Big Bill começou finalmente a ter sucesso. Passou a usar
acompanhamento de piano e, em certas gravações, sax e trompete. Tinha
finalmente encontrado o seu estilo e fazia um blues ritmicamente esper-
to, precursor do rock 'n' roll dos anos 50. Seu Flat Foot Susie With Her
Flat Yes Yes (pronunciado "iê-iê" por Big Bill) antecipa os rocks de Chuck
Berry e Little Richard.
O blues de Big Bill, com um pé fincado na lama do Mississippi, apóia-
se no rural para se projetar no urbano e no futuro. Já em fins dos anos
30 ele adota a guitarra elétrica. Ainda em 1930, nos discos que gravou
com os Hokum Boys (hokum, na gíria da música americana, equivale à
nossa "pilantragem"), Big Bill, à pergunta do parceiro em Brownskin
Shuffle, responde: "Boy, these blues ain't supposed to be sung, they're
supposed to be barrelhoused!" (Cara, estes blues não devem ser canta-
dos, eles devem ser estraçalhados!")
Já no início de 1937, Big Bill gravava com bateria e depois, como o
seu amigo Tampa Red, tornava-se um pioneiro da guitarra elétrica. Em-
bora os temas tivessem sempre alguma inspiração rural, o som e a instru-
mentação antecipavam o rhythm & blues dos anos 40, que desemboca-
ria no rock 'n' roll dos anos 50. Em seus anos de maior atividade, Broonz.
assinou mais de 300 blues. Receber os direitos autorais destas canções era
outra história. Ironicamente, um dos blues que ficou mais fortemente
associado à imagem de Big Bill não era de sua autoria, mas de um amig
íntimo, o cantor Casey Bill Weldon. A interpretação de I'm Gonna Mov
to the Outskirts of Town por Broonzy é um retrato patético do maridc
traído e dependente da mulher:

I'm gonna move way out to the outskirts of town (bis)


Thafs why I don't want nobody always hanging around.
I'm gonna tell you baby,
We're gonna move away from here.
I don't want no iceman,
I'm gonna buy me a frigidaire ...
I'm gonna bring my groceries,
Gonna bring them everyday.

50 Roberto Muggia-
-- s gonna stop that grocery boy,
J • that's gonna keep him away ...
- look funny,
:;...i_

:is can be,


.1

t eight children, baby,


t nar' one of them look like me.
•,: r·s why I'm gonna move to the outskirts of town.
·s why I don't want nobody always hanging around.
o e-me embora para fora da cidade/ Porque não quero
ondando por aqui. / Vou te dizer, mulher. / Vamos
daqui. /Não quero nenhum entregador de gelo, /Vou
.. uma geladeira ... / Vou trazer os meus legumes./ Vou
dos os dias. /Isso vai afastar aquele verdureiro./ Vai
z que ele fique longe daqui ... / Parece até engraçado./
graçado mesmo. / Temos oito filhos, mulher, /E ne-
eles se parece comigo. /É por isso que vou para fora da
• _ É por isso que não quero ninguém rondando por aqui. ")

e de Big Bill Broonzy já estava se espalhando pelo país. Em


~arricipou do concerto "Spirituals to Swing", no Carnegie Hall
rque, promovido por John Hammond. (Hammond tentara
bert Johnson mas, ao saber que ele tinha morrido, convocou
- --m pouco de folclore é sempre necessário no marketing da
-~Bill se surpreendeu ao ser apresentado no Carnegie não como
- e sucesso, com discos tocados por todo o país, mas como um
e lavoura. Isso justamente no ano em que lançara 34 blues de
-cadamente urbana.
da segunda guerra, a sede do público branco jovem por he-
u.ndo folk rural tirou Big Bill de um emprego de faxineiro no
::- adual de Iowa e o recolocou no circuito dos shows e das gra-
- ·ão querendo ser rotulado apenas como um "animal musical",
-o rrou em várias ocasiões que sabia pensar. Traçou certa vez a
-- entre o artista do blues e o meeiro comum das plantações: "São
- __ ue não sabem como cresce o algodão, o trigo e a cana-de-açú-
"lão ligam a mínima para isso!" Sobre a religião, ele era curto e
-os homens vão à igreja para esconder a sua sujeira e as mulhe-
~ a mostrar seus vestidos".
1952, Big Bill Broonzy foi convidado a dar concertos na Fran-
'' .:iou a prática de fazer turnês européias quase todo ano, visitan-

llÍl'\~I 51
do também a Bélgica e a Inglaterra. Foi em Londres que ele publicou, em
1955, sua autobiografia, Big Bill's Blues. O mundo estava mudando e
os jovens músicos negros começavam a contestar a arte de Big Bill. Ele
se punha numa posição defensiva: "Até os jovens do Sul estão partindo
para uma música rápida, eles gostam do jump e do jitterbug, mas se eu
tivesse que parar de tocar o velho blues lento, não sei o que aconteceria
com ele." E tem mais:

"Alguns negros me dizem que o velho estilo do blues está


levando a nossa raça de volta para os tempos da carroça e do
cavalo e da escravidão-e quem quer se lembrar da escravidão?
Alguns dirão que a escravidão acabou e por que não tocamos
outra coisa? Eu digo apenas que não sei tocar outra coisa ... "

Big Bill Broonzy estava no auge da forma - e da fama - quando a


voz começou a ratear. Sentia problemas de rouquidão e acabou no hos-
pital, quando lhe deram o diagnóstico cruel: câncer na garganta. Uma ope-
ração para remover o tumor o deixou sem voz. Tempos antes, seu amigo
Studs Terkel gravara uma entrevista radiofônica em que Big Bill definiu
admiravelmente os blues:

"Pegue, por exemplo, uma faca. Quantas coisas você pode


fazer com uma faca? Você pode cortar peixe, pode cortar as
unhas do pé. já vi sujeitos fazerem a barba com uma faca, pode-
se comer feijão com uma faca, pode-se matar um homem. Está
aí. Fale de cinco coisas que você pode fazer com uma faca e você
tem cinco versos. Você tem um blues."

Tempos depois, em três programas radiofônicos em homenagem a Big


Bill, Studs Terkel tentou fazê-lo falar, mas a voz não saiu mais. Big Bill
Broonzy morreu numa ambulância que o levava para um hospital de Chi-
cago em agosto de 1958. Houve concertos e homenagens, muitos escrito-
res e oradores louvaram o seu talento. Mas o seu necrológio já havia sido
publicado, três anos antes, no seu livro e em suas próprias palavras:

"... quando escreverem sobre mim, por favor não digam que
sou um músico de jazz. Não digam que sou um músico, ou um
guitarrista - escrevam apenas que Big Bill foi conhecido can-
tor e tocador de blues e que gravou 260 blues e canções de 1925

52 Roberto Muggiati
-é 1952; foi um homem feliz quando estava bêbado e brincan-
·o com mulheres; foi apreciado por todos os cantores de blues,
- guns ficavam um pouco enciumados às vezes, mas Big Bill
-omprava uma garrafa de uísque e todos começavam a rir e tocar
.:e novo. Big Bill acabava ficando bêbado e saía de fino da fes-
- e ia para casa dormir ... "

53
Lonnie Johnson: elegância na vida e na música
~i:. JOHNSON
-- DO BLUES

People, I've stood these blues 'bout as longas I can


! walked ali night with these blues, we both joined hand
.,;rzd.
A.nd they traveled my heart through, just like a natural man.
-cente, suportei estes blues tanto quanto pude. / Cami-
;oda a noite com estes blues, de mãos dadas. / E eles viaja-
-:ravés do meu coração, como um homem natural.")

o bluesmen mais líricos nasceu na terra do jazz, Nova Orleans,


:mm uma família de 13 filhos, com o nome de Alonzo Johnson. Em
aioria havia morrido da gripe espanhola. Só sobraram Lonnie
- mais velho. A música era um consolo: Lonnie aprendeu vio-
o, o irmão tocava violão, violino, banjo e piano. Não causa-
ª impressão na cidade. Resolveram pegar a estrada. De 1917
_ nnie participou de um espetáculo musical em Londres. Come-
- . . .om orquestras, primeiro num barco a vapor do Mississippi,
epois em St. Louis, onde se instalou com o irmão. De repen-
- deixou de ser bom negócio e Lonnie partiu para a luta. Tra-
a fá brica de pneus no Illinois, depois achou emprego numa
e East St. Louis e se casou.
-ono de 1925, uma competição de blues sacudiu o Teatro
ashington em St. Louis durante 18 semanas. O vencedor -
,,.,,,,.•~-~ -- foi Lonnie Johnson. Os olheiros das gravadoras estavam
-re concurso e, dentro de uma semana, Lonnie era contrata-
-eh e gravava seu primeiro disco., Num catálogo da OKeh de
- de Lonnie aparecia ao lado de um texto que dizia: "Lonnie
_ lues lentos, arrogantes, terrivelmente lamentosos, este é o
·oto. Ele tenta dar a você uma história cheia de maldade ...
-..;ntor como Lonnie ... ele prende você misteriosamente en-
• ..1 sua miséria."
tinha um diferencial em relação aos demais cantores de blues:
violão era muito sofisticada, com toques de jazz - não à

55
toa nascera em Nova Orleans. Apesar desta sofisticação, Lonnie falava
de temas que tocavam fundo nas populações do Sul. Só sobre as inunda-
ções, escreveu oito blues. Como este:

I want togo back to Helena but the high water's got me


barred (bis)
I woke up early this mornin', I wandered all in my back-
yard.
They want me to work on the lévee I had to leave my home
(bis)
I was so scared the levee might break, Lord I might drown.
("Quero voltar para Helena mas as águas me prenderam/
Acordei cedo esta manhã, rodei pelo meu quintal. /Querem que
eu trabalhe na barragem, tive que deixar minha casa. / Fiquei
com tanto medo de que a barragem rompesse, Deus, eu podia
me afogar.")

No começo, Johnson gravou em duo e trio. A partir de 1927, gravou


com mais acompanhantes, usando pela primeira vez um violão com fren-
te revestida em metal, que tinha um som mais suave e prolongado. Naquele
verão de 1927, Lonnie instalou-se com a mulher Mary em Nova Iorque,
num apartamento do Harlem. Gravou em estúdio com um novo cantor da
OKeh, Texas Alexander. Em dezembro, em Chicago, gravou quatro lados
com o Hot Five de Louis Armstrong: Once in a White, Hotter than That
e os blues l'm Not Rough e Savoy Blues. Seus solos nos dois blues e o acom-
panhamento e dueto com a voz em scat de Louis em H otter than That en-
traram para a história do jazz. Em outubro e novembro de 1928, Lonnie
gravou três temas com a grande orquestra de Duke Ellington: The Mooche,
Hot and Bothered e Misty Morning. A participação de Johnson é privile-
giada, com solos breves (como era de praxe na época, em que as gravações
não podiam exceder os três minutos), mas marcantes. Particularmente em
The Mooche, precursor do jungle sound de Ellington, ele tem com o clari-
netista Barney Bigard (também de Nova Orleans) um diálogo histórico e.
em seguida, sublinha admiravelmente o vocal em scat de Baby Cox.
Como se não bastasse gravar com Armstrong e Ellington, Lonnie viajou
com Bessie Smith em 1929 na turnê do espetáculo The Midnight Steppers
e teve seu próprio programa de rádio em Nova Iorque. Outra conquista,
no campo do jazz: em 1929, Lonnie gravou duetos com o violonista Eddie
Lang, que se ocultou sob o pseudônimo de Blind Willie Dunn.

56 Roberto Muggia
O ano de 1932 foi de uma busca frenética de discos "vendáveis".
::!.Uie passou a gravar mais e mais blues de apelo sexual do tipo I Got
_ Best ]elly Roll in Town. Compondo sob pressão, ele se via obrigado
ü: -:egar algumas palavras, experimentar com o violão e ver se as pessoas
-.u:n. Se a reação é boa, você tem um blues. Gravei 125 canções com
" - mos acordes." Com a Depressão, a vida de Lonnie passou a copiar
a: - as dos seus blues. Ele trabalhou em minas de carvão, estradas de
, _ e iderúrgicas até retomar sua carreira no showbiz. Em 1937, rece-
"11 ..:Jl convite para tocar no clube Three Deuces de Chicago, com o
ra Baby Dodds, das gravações dos anos 20 com Louis Armstrong.
ou a gravar de novo, para a Decca e depois para a Bluebird, da RCA.
- ~ cedeu à nova moda e aderiu à guitarra elétrica. Muitos acham
aí que perdeu o seu estilo. Em 1952, Lonnie viajou até a Inglater-
uma série de concertos. A redescoberta do folk e do blues na vi-
- anos 50 / 60 o trouxe de novo à tona. Em 1960, promoveram
111111m ~ontro de Johnson com Duke Ellington no Town Hall de Nova
_ ew York Daily News enfatizou as fortunas contrastantes dos
ca com esta manchete: O Faxineiro Encontra-se com o Du-
7 is de centenas de gravações, Lonnie Johnson foi morrer em
~ o Canadá, em 1970. Pouco antes, em conversa com a jorna-
Valerie Wilmer, falou:

Canto os blues da cidade. Meu estilo musical nada tem a


; a região onde nasci. Saí de Nova Orleans e morei em
-, Cleveland, Chicago, Nova Iorque, Cincinnati e Filadél-
a música, na verdade, veio do fundo da minha alma."

57
Leroy Carr: sexo, bebida & blues
Y CARR

:.tiro antes de James Dean e Marilyn Monroe, a autodestruição já


m marketing. Vejam o que a imprensa especializada fez com um
1m11 · n lendário:

cc O que tornou Leroy Carr um dos melhores cantores de

:: de todos os tempos também o matou. Dizem que para


-.:ir o blues é preciso vivê-los. Leroy Carr fez as duas coisas.
eu em 1935, pouco antes de completar 30 anos. O proble-
- que Leroy sofria o pior tipo de blues: bebeu até morrer. "

es é essencialmente autobiográfico e o próprio Leroy tratou do


o em várias canções: Straight Alky Blues 1 &2, Corn Likker
rd Times Done Drove Me To Drink. Foi o álcool que juntou Carr
-.:eiro de gravações Francis "Scrapper" Blackwell. Este era fabri-
·da ilegal e conheceu Leroy "quando vendia minha mercadoria ...
rodo o álcool que eu tinha e me pôs para fora dos negócios".
Carr nasceu em Nashville em 1905 - filho único, uma rarida-
- tempos - de Will e Susie Carr. O pai era pobre e trabalhava
e na Vanderblit University. Leroy cresceu no bairro, formou-
,.-~-·~ e conseguiu emprego numa loja de roupas. Um dia, passou
um pianista chamado Ollie Akins. Leroy se entusiasmou com
:. meçou a imitá-lo. Continuou aprendendo de outros pianis-
~ e de repente se viu ganhando a vida cantando e tocando em
,......~---~.a.a um guarda-roupa caro e vistoso, comprando da loja onde
·°""'"··~~-...... Arranjou uma namorada chamada Lottie, mostrava gosto
~ amda morava com os pais. Os amigos davam força para que
-.- em Chicago e o encontro com Scrapper Blackwell o deci-
trem para o norte na primavera de 1928. Acertou de saída,
eiro disco, para a Vocalion, How Long How Long Blues:

!ong, how long, has that evening train been gone?


rong, how long, baby, how long?

59
Standing at the station, watch my baby leaving town.
Feeling disgusted, nowhere she could be found
How long, how long, baby how long.
I can hear the whistle blowing, but I cannot see no train,
And it's deep down in my heart, baby, that I have an aching
pain.
For how long, how long, baby how long.
Sometimes I feel so disgusted and I feel so blue.
That I hardly know what in the world just to do.
For how long, how long, baby, how long...
("Há quanto tempo, há quanto tempo, aquele trem notur-
no se foi?/ Há quanto tempo, mulher, há quanto tempo?/ Pa-
rado na estação, vendo minha mulher deixar a cidade. /Deses-
perado, em nenhum lugar a encontrei. /Há quanto tempo, mu-
lher, há quanto tempo. /Posso ouvir o apito, mas não consigo
ver nenhum trem, / E lá no fundo do coração, mulher, é onde
dói a dor. / Há quanto tempo, há quanto tempo, mulher, há
quanto tempo. /Às vezes me sinto na pior e me sinto triste. /Que
mal sei o que fazer no mundo,/ Há quanto tempo, há quanto
tempo mulher há quanto tempo ... ")

Com este blues, Leroy Carr ficou imediatamente popular. Em 1º de


setembro de 1928, a Vocalion anunciava nos jornais: "Ele está de volta!
Leroy Carr, artista exclusivo da Vocalion que está se tornando rapida-
mente o maior cantor de blues da terra." A gravadora prometia cópias
de fotos autografadas do artista e lançava em outubro seu disco seguin-
te, Broken Spoke Blues. Leroy ficou com a Vocalion até dezembro de 1934.
gravando 114 blues e seis diferentes versões de How Long How Long.
. Muddy Waters exalta How Long Blues como um dos primeiros que
aprendeu a tocar. O especialista Giles Oakley, em The Devil's Music: A
History of the Blues, diz que Leroy e Blackwell "mostravam uma ligação
quase telepática em seus duetos." Mas a autodestruição fazia parte d
show e os dois competiam em proezas etílicas. O álcool já afetava seria-
mente a saúde de Leroy quando ele teve um desentendimento com Scrap-
per. Descontentes com a Vocalion, Carr e Blackwell foram levados a ou-
tra gravadora, a Bluebird, pelo bluesman Tampa Red. Na hora de assi-
nar, Scrapper começou a reclamar que Leroy é quem ficava com a fama e
o dinheiro da dupla e nada sobrava para ele. Depois de gravarem umas
duas canções, as hostilidades vieram à tona e Scrapper teve de ser retira-

60 Roberto Muggia-
- .a do estúdio. O que Leroy gravou sem ele foi de péssima quali-
epois das gravações houve uma festa no clube onde Tampa Red
::J.Iltando, mas Leroy não compareceu. Mais tarde, souberam que
fazendo shows no Sul. E então veio a notícia de que havia mor-
erculose em Memphis. A notícia chocou todos os amigos. Cor-
_:são de que Carr passou dias seguidos bebendo num bordel de
- - e morreu de pneumonia. Outros dizem que alguém "botou ara-
-eu uísque", uma alusão de que teria sido envenenado, antecipando
enário do fim de Robert Johnson.
rte de Leroy Carr virou notícia e acabou em blues. Bumble Bee
u The Death of Leroy Carr e Little Bill Gaither The Life of Leroy
:;o faltou também o tributo do parceiro Scrapper Blackwell, My
;J -ues. Canta Scrapper a certa altura:

--:he day of his funeral, I hated to see Leroy's face (bis)


3ecause I know there is no one could ever take his place.
- . o dia do seu enterro, detestei ver o rosto de Leroy I
e sei que ninguém poderia jamais tomar o seu lugar.")

-;ier morreu com Leroy. Morreu para a música e foi trabalhar


11TI11 ·ca de asfalto e passou trinta anos num pesadelo etílico até o
encontrou o seu destino, assassinado num beco de Indianápolis.
e crapper sobrevivem até hoje no som arrastado e pungente
:u How Long Blues.

61
Robert Johnson: o estilo acima de tudo
111 ,, , - JOH SON
_ E CRUZILHADA

o de Robert Johnson está mergulhado no mito. É o filho em


desconhecido; é o errante eternamente com o pé na estrada;
....,--,,..--..... que fez um pacto com o demônio. Viveu apenas 2 7 anos,
e sões de gravação e deixou 29 faixas - pouco para os pa-
:ie . Robert Johnson nunca foi famoso em vida. Morto em
_ ignorado até os anos 60, quando de repente se tornou um
eus para roqueiros como Eric Clapton e os Rolling Stones que,
reverência, gravaram algumas de suas canções. É difícil entender
· ico modesto de raízes rurais conseguiu transcender sua con-
- uma obra tão sofisticada, urbana e duradoura. (A magia de
ra a de outros marginais imortais como Charlie Parker, Billie
Chet Baker.) Muitos são tentados até a acreditar na lenda de
.~~·· \'endeu a alma ao diabo em troca do seu gênio musical.
-ária é meio complicada. Charles Doddsjr. eJulia AnnMajors,
-cravos do Mississippi, se casam em 1889. Charles tem sucesso
, o casal cria seis filhas (duas morrem prematuramente) e um
rixa pessoal leva Charles a largar tudo e mudar-se para Memphis
1· - - La, com o nome falso de Spencer, começa a vida nova com uma
1

ulher, J ulia, largada em Hazlehurst, Mississippi, tem um caso


e Noah Johnson, do qual resulta um filho, Robert Leroy John-
eu em 8 de maio de 1911. Na infância, Robert é jogado de
- a é voltar para a mãe J ulia, agora casada com um novo homem,
~" Willis, que passa a ser o terceiro pai do menino. Robert é
~ na Escola de Comércio de Indian Creek. Problemas com a vista
rararata num olho) lhe dão um bom pretexto para largar a esco-
alrura, já se interessava por música. Robert começa tocando a
- o chamado berimbau-de-boca - , passa depois para a har-
11m1111i...z :malmente se encontra no violão. A esta altura, contam a Robert
erdadeiro pai, Noah, e ele reassume o sobrenome Johnson.
· o dilema se repete. O menino quer fazer música, os pais não
_·esta, como em outras regiões do Delta, os templos do blues são
.nts. Existem quatro na região de Robinsonville. Robert espe-

63
rava anoitecer, saía às escondidas de casa e ia procurar a jook em que
estavam tocando seus ídolos, Son House e Willie Brown. Willie, depois
de ensinar alguns truques a Robert, começa a aprender muita coisa com
ele. (Willie Brown inspirou o personagem interpretado por Joe Seneca no
filme Crossroads, a história de um garoto que pede a ajuda de um velho
bluesman para localizar uma hipotética 30ª canção de Robert Johnson. )
Perfeccionista na sua música, Robert era também muito cuidadoso
com sua aparência e fazia sucesso com as mulheres. John Shines, que via-
jou algum tempo com ele, conta:

"A gente estava na estrada há muitos dias, sem dinheiro.


Às vezes até sem comida, sem falar num lugar decente para pas-
sar a noite, tocando em ruas poeirentas ou em cabarés sujos. Eu
me olhava no espelho e me sentia um cão e lá estava Robert, todo
limpo e elegante, parecendo que tinha saído da igreja ... "

Em 1929, com apenas 18 anos, Robert casou-se com Virginia Travis.


Foram morar com a meia-irmã mais velha de Robert e o marido dela. Em
pouco tempo, Virginia engravida. Segundo parentes e amigos, o casamento
e a paternidade iminente fizeram de Robert um· outro homem. Um dia,
percorrendo uma estrada ruim no velho carro do cunhado, Robert alertou:
"Dirija com mais cuidado. Minha mulher está gerando!" Foi talvez um
presságio: em abril de 1930, Virginia- que tinha apenas 16 anos- morre
no parto com o bebê.
Robert procura consolo na música. Este episódio marcou, e muito, o
lado trágico do seu blues. Cansado de Robinsonville, ele decide de repente
partir em busca do pai, NoahJohnson. A procura o leva a Hazlehurst, sua
cidade natal, uma espécie de paraíso no meio da Depressão: um programa
do governo, o Works Progress Administration (WPA), estava construin-
do muitas estradas naquela região. Nas jooks locais, Robert encontra um
novo mentor na figura de Ike Zinnerman, o blueseiro que gostava de to-
car de noite nos cemitérios.
Em Hazlehurst, Robert não encontra o pai. Acha uma mulher dez
anos mais velha, veterana de dois casamentos e três filhos Calletta 'Calie'
Craft. Os dois se casam em 1931, mas Robert mantém sigilo sobre a união.
Gostava de dar a impressão de que era sustentado por uma mulher mais
velha que o adorava e fazia qualquer coisa por ele. Cacoete de bluesman.
Aos olhos - ou melhor, aos ouvidos - de Son House e Willie Brown,
Robert era apenas um aprendiz promissor. Mas tudo mudou de repente.

64 Roberto Muggiati
=nrra a hipótese de um pacto diabólico, ótima idéia para um fil-
..., Greenberg, que trabalhou seis anos como assistente do cineasta
erner Herzog, publicou em livro o seu roteiro para um filme
rt J ohnson, Lave in Vain / The Life and the Legend of Robert
_ cena do pacto com o demônio corre assim:
•zgo de uma estrada vazia. Numa encruzilhada escura vemos
·nson dedilhando seu violão nervosamente. Está desafinado.
~ então passos na estrada. O demônio aproxima-se e surge na
-·olha para Robert, só olha para o violão. Apanha o instrumen-
·ra-se de lado e improvisa um solo incrível. Devolve o violão e
caminho.
~epois, Robert volta a se encontrar com Son House e Willie
um blues como eles nunca o viram tocar antes. A partir deste
interpretaria o blues com a magia de Robert Johnson. Al-
músicas citam explicitamente o demônio, como Preaching
-P Jumped the Devi[), Hellhound on My Trai[ e este Me and

.=::... /y this mornin' when you knocked upon my doar (bis)


.d I said, "Hello, Satan, I believe it's time togo."
and the Devi! was walkin' side by side (bis)
- .J I'm goin' to beat my woman until I get satisfied

may bury my body down by the highway side (bis)


•y old evil spirit can catch a Greyhound bus and ride.
Esta manhã, bem cedo, quando você bateu à minha porta
isse, "Olá, Satã, acho que é hora de ir andando. / Eu e o
::.:iminhando lado a lado / Vou surrar minha mulher até
·~realizado. (... )/Pode enterrar meu corpo à margem
_ia I Para que meu mau espírito pegue um ônibus Grey-
.-:: siga embora... ")

_ ufa outra capacidade que muitos consideravam demonía-


-. - numa sala ~heia de pessoas, participando da conversa, todo
o animadamente, enquanto um rádio ao fundo tocava al-
.. Robert, totalmente envolvido na conversa, parecia não
-• atenção ao rádio. Mas no dia seguinte, ou até dias depois,
·epetir nota por nota todas as canções que o rádio tinha
ocasião.

65
Nesta época, caçadores-de-talento procuravam por todo o Sul dos Estados
Unidos cantores de blues para abastecer o mercado dos race records. É estra-
nho que Robert tenha ficado tanto tempo ignorado. Ele só foi fazer suas pri-
meiras gravações aos 25 anos. E foi descoberto quase por acaso. H .C. Speir
caçava músicos de talento para várias gravadoras e tinha um pequeno estúdio
em sua loja de música em Jackson. O problema é que ele só recebia sua co-
missão quando o disco era lançado no mercado. Tinha colaborado na gra-
vação de 180 lados de discos para a AmericanRecord Company, mas a com-
panhia só acabou colocando nas lojas 40 lados. Quando Robert se apresentou
à loja de Speir, este, já desanimado com o negócios, limitou-se a anotar seu
nome e passá-lo para outro agente. Por sorte, ele indicou Robert Johnson
a Ernie Oertle, um dos mais eficientes vendedores da ARC no Meio-Sul. Uma
audição bastou. Oertle convidou Robert para gravar em San Antonio, Texas.
A primeira gravação aconteceu em 23 de novembro de 1936, num estú-
dio improvisado num quarto de hotel. Robert sentou-se diante de um mi-
crofone, com uma garrafa de uísque de milho a seus pés, cortesia da pro-
dução. A sistemática destas gravações foi detalhada por Frank Walker, um
produtor da Columbia que fez muitos discos de blues nos anos 20:

"A gente costumava gravar num hotel de Atlanta e trazia


os cantores e pagava um dólar ao dia por sua alimentação e por
um lugar para dormir num outro hotel mais barato. Então, passá-
vamos a noite pulando de um quarto de hotel para outro e os
músicos também pulando de um quarto para outro e de caneta
na mão riscávamos as canções que não queríamos usar e escolhía-
mos as canções que eles conheciam, porque não era o caso de
impor a eles canções porque não seriam capazes de aprendê-las
ali na hora. O repertório deles consistia de oito ou dez itens que
sabiam fazer bem e era tudo o que conheciam. Por isso, quan-
do você escolhia as três ou quatros canções que eram o melhor
no chamado repertório do sujeito, você esgotava a capacidade
dele como artista. Era um trabalho duro, tirar o melhor deles.
Você podia terminar com duas seleções, ou com seis ou oito. Mas
era tudo. Você lhes dava adeus. Eles voltavam para casa. Tinham
acabado de gravar um disco e aquilo era, na cabeça deles, qua-
se tão importante como ser Presidente dos Estados Unidos."

No quarto do hotel de San Antonio, naquela noite histórica, o en


carregado da gravação Don Law explicou a Robert alguns aspectos té

66 Roberto Muggia
\1111 Dissertou sobre os microfones escolhidos, mais adequados às con-
111111.,. -, de temperatura e umidade do Texas. Explicou o timing da grava-
músico devia começar quando a luz azul fosse acesa. Três minutos
-. a luz vermelha indicava a hora de parar. O músico tinha de saber
- uar os seus três minutos e compactar neles o máximo de técnica
oção. Johnson era novato e tocava balançando a cabeça. Muitas
- gravações sofrem desta irregularidade, com a voz afastando-se às
:: microfone. Mas todas as deficiências técnicas são superadas pela
111."1. - ... Já na primeira sessão, em que grava oito canções, Robert faz o

eiro hit, Terraplane Blues. O Terraplane era um automóvel sedã


:...+ dson tornou accessível à classe média entre os anos 1933 e 1938.
- ~os antes de entrar para a mitologia do rock 'n' roll, o automóvel
?Or Robert Johnson como um bem-humorado símile sexual:

A nd I feel so lonesome, you hear me when I moan (bis)


Who been drivin' my Terraplane for you since I been gone?
I'd said I flash your lights, mama, your horn won' t even

Somebody's been runnin' my batteries down on this machine.


Teven flash my lights, mama, this horn won't even blow
Gota short in this connection, hoo-well, babe, it's way
• below
ºm gonna h'istyour hood, mama-mmm. I'm bound to check
oi/...
-Estou tão solitário, você ouve o meu lamento/ Mas quem
dirigindo o meu Terraplane para você desde que eu via-
Eu disse que ia acender os seus faróis, mulher, sua buzina
esmo toca. /Alguém andou arriando minha bateria nes-
~ uina. /Eu até acendo os meus faróis, mulher, esta buzi-
quer tocar / Deu um curto nesta ligação, ora veja só,
-. é bem lá embaixo./ Vou levantar o seu capô, mulher, e
-ue vou checar o seu óleo ... ")

~as sessões, em 26 e 27 novembro, no Gunter Hotel de San


ert grava mais oito canções. As vezes ele tem de esperar
....rros artistas gravam no mesmo estúdio improvisado, músi-
grupo folclórico mexicano (Andre Berlanga e Francisco
uas bandas country (W. Lee O' Daniel & his Hillbilly Boys
· Wagon Band) e o grupo Adolph & the Bohemians.

67
Apesar das fichas de gravação detalhadas da American Recording
Company (ARC), corre a lenda de que as primeiras gravações de Robert
Johnson teriam sido feitas num salão de bilhar e que, a certa altura, es-
tourou uma briga feia no local. Alguém teria jogado uma bola de bilhar
no engenheiro de som e acertado nas matrizes. As fichas de gravação da
ARC só assinalam um registro na segunda sessão, de quinta-feira, 26 de
novembro (dois takes de 32-20 Blues), o que dá uma certa credibilidade
à história.
Terraplane Blues saiu pela Vocalion e foi o disco de Robert Johnson
que mais vendeu. A esta altura, ele já tinha largado sua coroa Calletta,
era um franco-atirador com as mulheres. Era também assolado pelo
Wanderlust - na linguagem do blues, era um rambler - e botava de
novo o pé na estrada. Pegou a Rodovia 51 com dois amigos e passou por
St. Louis, Chicago, Detroit, Windsor (Ontário, no Canadá), Nova Iorque
e Nova Jersey. Em 19 e 20 de junho de 1937, um sábado e um domin-
go, Robert Johnson fez as suas últimas gravações, em Dallas, Texas.
Em agosto de 1938, o seu carma demoníaco o atraía de novo para
a pequena Robinsonville e suas jook joints. O musicólogo, colecionador,
fotógrafo e iconógrafo que se tornou o maior especialista em Robert
Johnson, Stephen C. La Vere, comenta:

"Era uma ocupação perigosa ser músico naqueles dias. Os


outros músicos odiavam quem tocava melhor que eles. As mu-
lheres o odiavam se ele punha o olho em outras mulheres. E os
homens odiavam o músico que era adorado pelas mulheres. Um
músico de talento tinha de ser cuidadoso, especialmente se não
sabia muito bem com que tipo de mulher estava se envolvendo.
E, àquela altura da vida, Robert era famoso por este tipo de
confusão."

Robert e seu protegido Honeyboy Edwards estavam tocando nas noi-


tes de sábado numa espelunca de Greenwood chamada Three Forks (tudo
isso bem no coração do Delta). Robert, sem saber direito, travou intimi-
dade com a mulher do dono do botequim Três Garfos (até aí, a simbologia
do demo ... ). Corria a noite de sábado, 13 de agosto de 1938, e o barman
serviu a Robert uma garrafa de uísque já aberta.
O gaitista Sonny Boy Williamson, outra atração da noite~ macaco
velho, jogou a garrafa ao chão antes que Robert pudesse beber, direto do
gargalo. Robert, irritado, pediu a Sonny Boy que nunca mais tocasse na

68 Roberto Muggiati
ebida. Veio uma segunda garrafa, também com o lacre aberto, e
:::-ert emborcou. O dono da birosca, o marido traído, tinha colocado
"'-- ::nina no uísque de Robert. Mesmo sentindo-se mal, Johnson atraves-
a noite tocando e cantando. Depois, foi levado para a casa de um
.:,O, contraiu pneumonia e morreu no dia 16 de agosto. Uma densa
a de mistério cercou durante décadas a morte de Robert Johnson.
uito tempo acreditou-se que tivesse morrido apunhalado por uma
~er ciumenta. Mais recentemente, a versão do envenenamento foi
:mada até mesmo por uma entrevista dada pelo marido traído. Nin-
abe quem foi o homem que acudiu o agonizante Robert. Falam de
m chamado "Tush Hogg", ou "Tushogg". Muitos apostam que foi
o. A família insistiu que Robert havia entregue sua alma a Cristo,
do a assinar sua conversão num retalho de linho .
. -o final de 1938, o produtor John Hammond (descobridor de Count
e Billie Holiday) tentava reunir talentos para o seu pioneiro concerto
-ruals to Swing" no Carnegie Hall de Nova Iorque e pediu a Don
e convocasse Robert Johnson. Law saiu em campo e acabou des-
-do que Robert Johnson estava morto há alguns meses e fora enter-
-um caixão de madeira doado pela municipalidade no cemitério de
· :..2!1 City, Mississippi. E o blues acabou representado no Carnegie Hall
_ Bill Broonzy.
homem Robert Johnson permanece até hoje uma incógnita. Al-
oisas, com o passar dos anos, se descobriram sobre ele. Costu-
e··ar sempre consigo uma pequena agenda de capa preta, em que
idéias para canções e letras de blues. A agenda era uma suges-
amigo Ike Zinnerman, o blueseiro que adorava tocar nos cemité-
...,..,eia-noite. Robert usava um violão Gibson para suas apresenta-
escolhia uma Kalamazoo para ocasiões especiais. A ascensão
erador Hailé Selassié e a invasão da Etiópia pelos italianos em
aram um grande interesse entre os afro-americanos. Segundo
,.•.,.,.=-·-.an John Shines, Robert Johnson mostrava grande preocupação
pia e a colocava num contexto bíblico - uma preocupação que
:raria a ideologia e a música dos rastafarianos da Jamaica e do
e Bob Marley. Passando para o terreno das amenidades, Robert
rodos os americanos que queriam exorcizar a Depressão -
muito de ir ao cinema e era fã de westerns e de Clark Gable.
- cicia alarmante para os fãs ortodoxos: Robert, influenciado por
- -by, teria pensado em formar um grupo de guitarra elétrica para
-:ões como Blue Heaven e Yes, Sir, That's My Baby.

69
A imagem de Robert Johnson se perde na névoa dos _tempos. Mas
sua influência está viva. Ele marcou toda a escola de Chicago - a segun-
da geração do blues - e se tornou o pai espiritual da terceira geração, os
roqueiros britânicos dos anos 60. Como diz o guitarrista Eric Clapton:

"Eu tinha 15 ou 16 anos e seu som foi uma espécie de cho-


que para mim, não sabia que existia uma coisa tão forte. O que
surpreende em Robert Johnson é que ele não parecia estar to-
cando para um público; ele não obedecia as regras do ritmo ou
da harmonia - tocava para si mesmo, como se sentisse as coi-
sas tão agudamente que eram quase insuportáveis."

Keith Richards, dos Rolling Stones, conta que ouviu pela primeirn
vez um disco de Johnson no apartamento do guitarrista Brian Jones. E
perguntou: "'Quem é o outro cara que está tocando com ele?' Porque e;
estava ouvindo duas guitarras e levou muito tempo até que percebess
como é que ele conseguia fazer aquilo tudo sozinho."
Robert Johnson sintetizou o estilo do Delta, tocando peças percussiva
com bottleneck e usando figuras de baixo que evocavam os duetos vio-
lão /piano de Leroy Carr e Scrapper Blackwell. Os que o viram tocar cL-
zem que tinha "dedos de aranha". Robert não foi apenas a resposta
urbanização do blues ao velho estilo rural. Pode-se dizer que foi o primeir
músico a compor o "blues de autor".
Meio século depois de morto, ele conquistou um disco de ouro e u=
Grammy, com o álbum Robert ]ohnson / The Complete Recordings.:
estão, além das 29 canções conhecidas, 12 alternate takes, num total
41 faixas. Um universo poético que fala de perdas e danos - mais em
cionais do que materiais - de medo e magia, sexo e religião e, principa.
mente, de amor e desamor. Uma Divina Comédia e Comédia Humana
blues. As letras de Robert Johnson são sintéticas e rigorosas, concre
como as imagens de um filme. Admirem esta, de Lave in Vain, que
Rolling Stones gravaram em 1969, e que poderia ficar como epitáfio
tístico do velho Robert:

And I followed her to the station with a suitcase in my hand


(bis)
Well, it's hard to tell, it's hard to tell when ali your love's
in vain
Ali my love's in vain

70 Roberto Mugg
When the train rolled up the station I looked her in the eye

Well I was lonesome, I felt so lonesome and I could not help


Ty
A.li my love's in vain
hen the train, it left the station with two lights on behind

ell, the blue light was my blues and the red light was my

á l my love's in vain
u hou ou ou ou hoo, Willie Mae
1'J oh oh oh oh hey hoo, Willie Mae

u ou ou ou ou ou hee vee oh woe


my love's in vain.
-;::,li atrás dela até a estação, com a mala na mão I Bem, é
- r, é duro falar quando todo o amor é em vão I Todo o
or em vão I Quando o trem entrou na estação olhei no
~ I Eu estava sozinho, eu me sentia tão sozinho e não
• ~o chorar I Todo o meu amor é em vão I Quando o trem
- estação, com dois faróis na traseira IA luz azul era o
- e a luz vermelha minha mente I Todo o meu amor é
O u hou ou ou ou huu, Willie Mae. I Oh oh oh oh oh
_- ~illie Mae I ou ou ou ou ou ou hii vii oh dor I Todo
- or em vão ... ")

71
Sonny Boy Williamson: a esfinge de chapéu de coco
- BOY WILLIAMSON
DA HARMÔNICA

:1es tem também as suas duplicidades e confusões. Existem, por


ois Sonny Boy Williamsons - o jovem, que foi o primeiro -
. que foi o Segundo. Explicando melhor, John Lee 'Sonny Boy'
nasceu em 1916 em Jackson, Tennessee, fazia misérias com
- ·nica e cantava um blues vibrante. Partiu para Chicago e gra-
es que ficou famoso, rico em conotações sexuais:

E evate me, mama,


- !ama, five or six stories on down
E evate me, mama,
-il'e or six stories on down.
_ ow you know everybody tells me you must be the ele-
est woman in town.
~ fe leve mulher, /Mulher, cinco ou seis andares abaixo.
~-e mulher,/ Cinco ou seis andares abaixo. /Agora você
;te todo mundo me fala que você é a maior 'ascensorista'

-de.")

nny Boy fez algumas diabruras técnicas, como descreve o es-


ul Oliver: "Era um intérprete de harmônica muito influente
;: tatibitate. Causou impacto com sua técnica de apertar notas
:..i cruzada' (isto é, o tom de mi sobre uma harmônica em lá).
dimento de dicção deu a sua voz uma qualidade distinta em
ções."
y compôs blues extremamente originais, muitas vezes auto-
. com Bad Luck Blues, sobre o assassinato de um primo; ou
;:anções documentais de atualidade, como a patriótica War
~ joe Louis and John Henry Blues. Como toda lenda do blues,
: em 1948, aos 32 anos, com a cabeça atravessada por um
:;;"lo quando caminhava para uma apresentação no Plantation
~ .::ago.

cena Sonny Boy II, uma figura enigmática que evitava sem-

73
pre falar do seu passado. Willie ou Rice Miller - o novo Sonny Bo.
Williamson - nasceu em Glendora, no Mississippi, em 1897. Começa a
vida mudando de nomes. Filho ilegítimo de Millie Ford, é batizado Alex
e depois assume o nome de seu padrasto Jim Miller, recebendo ainda crian-
ça o apelido de "Rice". Com um cinturão de gaitas Hohner amarradas
em bandoleira sobre o peito, faz a estrada com o nome de Little Boy Blue
Outro apelido, Footsie, vem do hábito de cortar buracos no couro do
sapatos para arejar os pés. E no fim da vida, Goat, de "goatee" - cava-
nhaque. Muito antes dos roqueiros, este Sonny Boy já jogava espertamente
com o visual. O crítico francês Phillippe Bas-Raberin assim o descreve nc
livro Le Blues Moderne Depuis 1945:

"Sua intuição rítmica, aliada a uma rara elegância de exe-


cução, lhe valeu, da parte dos músicos que tocaram com ele, uma
estima próxima da veneração. Atitude que parecia legitimar até
mesmo no seu físico de velho aristocrata rural, enigmático e
curvado debaixo de seu chapéu-coco."

Sonny Boy tinha também a capacidade de aparecer em momento


dramáticos da história do blues. Era ele o convidado especial na noite de
13 de agosto de 1938, na birosca Three Forks, em que Robert Johnson
foi envenenado por um marido ciumento. Corre até a lenda de que Roben
Johnson morreu em seus braços. Em 1941, Sonny foi convidado para to-
car num programa de rádio da estação KFFA de Helena, Arkansas, o
"Sonny Boy's Com Meal and King Biscuit Show", que ia ao ar todos os
dias às 12h45. Durante 24 anos, Sonny Boy - que se proclamava "o Sonny
Boy original" - projetou as notas torcidas de sua harmônica pelas on-
das do King Biscuit Show, que se tornou um importante foco de blues e
chegou quase a criar uma linguagem musical própria.
O blues de Sonny Boy era de uma poesia dilacerante e original:

Been so long till I just can't sleep at night (bis)


I couldn't eat my breakfast in the mornin' and teeth and
tangue begin to fight.
Yes, it been so long the carpet have faced on the floor, (bis)
If she ever come back to me I'm not goin' to let her leave
no more.
("Há tanto tempo, nem consigo dormir de noite/ Não posso
tomar café de manhã que meus dentes e a língua começam a

74 Roberto Muggiati
_Jr. / Sim, há tanto tempo o tapete está colado ao chão./ Se
- _ ltar para mim não vou deixar sair nunca mais.")

ar da segurança que o programa de rádio lhe trazia, Sonny Boy


o por seu Wanderlust e pôs o pé na estrada de novo. Desapa-
-ante meses, ou até anos, assinou contrato com uma gravadora
.:... - ·ou nada, desapareceu e reapareceu - ninguém conseguia ad-
~- - onny Boy. Só em 1951 faz suas primeiras gravações para a
Os donos da gravadora, desarvorados, passam o seu contrato
de Chicago em 1955, onde ele grava uma série de brilhan-
- - até 1964. Apesar - ou por causa - de seus delírios, Sonny
:: · as totalmente exóticas para a linguagem do blues. Explorando
exual, ele fala de uma mulher capaz de dar visão aos cegos,
__ , t to the Blind ("Every time she start to lovin', the deaf and dumb
-.ilk" - "Toda vez que ela começa a amar, os surdos e mudos
falar") - , canção que teria influenciado a ópera-rock Tommy,
inglês The Who.
anos 50, Sonny Boy viaja na sci-fi com temas ufológicos com
·: n Eye; em Have You Ever Been in Lave descreve uma mulher
is hidráulicos" e um "estômago com ar condicionado". Son-
:: ega ao número 3 das paradas em 1955 com Don't Start Me
;:)35 sua consagração acontece em 1963, numa vitoriosa turnê

ue culmina com apresentações e gravações com os grupos de


- ~ ·es The Animais e Yardbirds. Sonny Boy se sente tão bem no
11fümc _. ..mdo que chega a pensar em naturalizar-se cidadão britânico .

. volta ao programa do King Biscuit em Helena, Arkansas. "Só


-a casa para morrer", comenta ironicamente com os amigos. No
-e 1965, passa as noites num bar de Helena bebendo e tocando
~wks, o grupo desfeito de Ronnie Hawkins que logo se torna-
como The Band. O guitarrista Robbie Robertson nota que
.- cospe de tempos em tempos numa jarra e, no fim da noite,
a bem, vê a jarra cheia de sangue. Há muito entusiasmo no
--5e de uma fusão genial, os roqueiros de The Band com o vete-
=sman. Idéias ao vento. Na manhã seguinte, 25 de maio de 1965,
.- Williamson é encontrado morto na sua cama.

75
Bessie Smith: o blues é uma mulher
.::. SIE SMITH
_1PERA TRIZ DO BLUES

" Um dia um sujeito chegou para Bessie e perguntou se tinha troco


... um nota de mil dólares - procurando provocá-la. Bessie disse: 'Te-
. sim.' Ergueu a frente da saia e lá estava um avental de carpinteiro
_ual puxou um maço de notas trocadas. Aquele era o seu banco. " A
· - ria, contada por Louis Armstrong, mostra a personalidade da garo-
' - bre do Tennessee que foi elevada ao status imperial acima de todas
.::ruas cantoras de blues. Este ar de majestade de Bessie Smith não se
:ngia ao universo da música negra. Conta a cantora-dançarina Mae
· . ...,..,es que, durante uma visita ao castelo de Windsor, ao elogiar um re-
- da Rainha Mary, ouviu do Príncipe de Gales o comentário: "Sim,
que só existem duas mulheres com uma verdadeira aura de realeza
.mdo: minha mãe e Bessie Smith."
'ma das marcas da independência de Bessie era excursionar de trem
-ua trupe num vagão exclusivo de sua propriedade. Era um vagão de
30 metros de comprimento, com dois andares, construído sob en-
da pela Southern Iron and Equipment Company de Atlanta e pin-
m cores vivas. Parecia um luxo, mas na verdade era a maneira mais
.:a de evitar a discriminação nos hotéis e o desconforto nas cidades
'" as. Equipado com cozinha, banheiro, águas quente e fria, oferecia
espaço para todos relaxarem e, em ocasiões especiais, festejarem.
uando excursionava pela zona rural, Bessie chegava a uma cidade,
nava o vagão e erguia uma lona de circo nas proximidades, montando
ma o palco para seus shows, que costumavam atrair multidões.
- o contrário de Ma Rainey, pioneira e uma das grandes damas do
Bessie não atendia só às platéias rurais, mas também ao crescente
= urbano que tinha seu interesse estimulado pelos discos da canto-
,_ ie Smith foi, na verdade, uma das primeiras grandes vendedoras
-os e a sua relação com a indústria fonográfica é um capítulo espe-
história da música deste século. Ela começou a gravar ainda na
o sistema acústico: cantava através de um grande cone em cujo
um estilete ia cortando os sulcos de um disco de cera. Estas "im-
vocais" eram depois transferidas para uma matriz de cobre, a

um 77
partir da qual se prensavam os discos pretos de goma-laca vendidos ao
público, nos quais o processo era revertido: uma agulha percorria os sul-
cos e transmitia os sons através de um fone de forma cônica.
Estes discos tinham um limite de tempo - não deviam ultrapassar
os três minutos. Em 1920, ano em que as americanas ganharam direito
de voto, a gravação de Crazy Blues por Mamie Smith - no dia de São
Valentim - abriu às gravadoras um mercado novo: o dos race records
destinados à população negra. Com uma faixa de cada lado, os discos
custavam 7 5 centavos, eram vendidos nos bairros negros das grandes ci-
dades e, pelo correio, para os consumidores rurais. Em junho de 1923, já
com 18 canções gravadas, Bessie fazia sua primeira excursão promocional
pelo Sul e Meio-Oeste. Ela viajava com uma réplica do equipamento de
gravação, explicava didaticamente à platéia como eram feitos os discos e
cantava como se estivesse em estúdio. Nestas turnês, o repertório era
composto pelas canções lançadas em disco por Bessie, que faziam um
grande sucesso de vendas. O primeiro blues que ela gravou, em 16 de
fevereiro de 1923, fora um sucesso no ano anterior, pela cantora Alberta
Hunter, compositora do tema em parceria com a pianista Lovie Austin:
Down Hearted Blues. Mas a interpretação de Bessie era tão nova e arre-
batadora que o disco chegou a vender 800 mil cópias
Anos mais tarde, Alberta Hunter falou: "Nunca houve ninguém como
Bessie, nem haverá mais. Era rouca e cantava alto, mas tinha uma espé-
cie de lamento - não, não era lamento, havia miséria no que ela fazia.
Era algo que tinha de arrancar do peito e botar para fora."
Frank Walker, considerado o homem que a descobriu, diz que uma
única frase de Down Hearted Blues bastou para consagrar Bessie: "Got
the world in a jug, got the stopper in my hand". ("Tenho o mundo numa
botija e a rolha em minha mão.") Walker, nomeado chefe da divisão de
race records da Columbia em 1923, lembrou-se de ter ouvido Bessie can-
tar num botequim de Selma, Alabama, em 1927, e mandou o pianista Cla-
rence Williams à procura dela. Começava assim uma das mais ricas car-
reiras fonográficas, com 180 faixas gravadas ao longo de dez anos, todas
nos estúdios da Columbia em Nova Iorque. Sobreviveram 160 faixas.
Elizabeth 'Bessie' Smith nasceu em 15 de abril de 1894 no gueto negro
de Chattanooga, Tennessee, um dos sete filhos de um pastor batista. O
irmão mais velho morreu antes de Bessie nascer; o pai, pouco tempo de-
pois; e a mãe, quando Bessie tinha apenas oito anos. A irmã mais velha,
Viola- a quem um estranho de passagem pela cidade "presenteara" com
um bebê - teve de cuidar do que sobrou da família num barraco de um

78 Roberto Muggiati
ó quarto em que - Bessie contaria mais tarde - os ratos eram mais nu-
erosos que os Smiths. Aos nove, Bessie já cantava nas esquinas em tro-
ca de vinténs. Nesta idade, apresentou-se num concurso de calouros no
vory Theater, onde ganhou oito dólares, que gastou num par de patins.
esde cedo, gastar dinheiro era com ela. Cultivava também uma certa
·tomania e dizia ter ganho os patins no campeonato estadual do Ten-
essee. Foi o seu irmão, Clarence Smith - dançarino e comediante que
_eixara Chattanooga para tentar a sorte no vaudeville - quem conseguiu
primeiro teste para Bessie. Aprovada, ela passou a integrar a trupe iti-
-erante de Moses Stokes. A história de que saiu de Chattanooga raptada
-or Ma Rainey, a Mãe dos Blues, não passa de uma lenda. Bessie citava,
.:omo uma de sua principais inspiradoras, Cora Fisher, um das empresá-
s do grupo de Stokes.
Era 1912. Bessie tinha 18 anos e o aspecto de uma rainha africana:
-a corpulenta, a pele bem negra - negra até demais para aqueles tem-
de racismo explícito. Ela passaria dez anos excursionando no circui-
- chamado TOBA, sigla de Theater's Owners Booking Association, que
- artistas negros apelidaram de Tough on Black Artists, ou Asses.
Viajou com grupos como os Rabbit Foot Minstrels e os Florida Cot-
Blossoms. Depois resolveu sossegar. Morava em Filadélfia - onde
apresentava a noite toda num cabaré - quando foi localizada por
ence Williams e levada para a Columbia. Seu primeiro disco, Down
~ ~~rted Blues, gravado em fevereiro, só foi para as lojas em 7 de junho
- 1923, data que Bessie marcou também para o seu casamento com Jack
falam de um casamento anterior dela, mas não há registros). Jack
rigia noturno em Filadélfia e sonhava entrar para a polícia, mas não
a eito. Profissionalmente, acabaria mesmo como "o marido de Bessie
- ili". Nesta capacidade, até que tentou ajudar, no começo. Arranjou
- eiro para que ela comprasse roupas novas quando foi fazer a primei-
.: avação na Columbia. Jack descobriu ainda uma cláusula marota no
- aro que o pianista Clarence Smith fizera Bessie assinar, cedendo a
_ Clarence, 50% de seus ganhos. Mas Jack não era páreo para as ra-
da indústria fonográfica: ao combinar com Frank Walker um novo
:rato, não reparou que a Columbia garantia à cantora um mínimo de
dólares anuais, mas omitia astutamente a cláusula dos royalties sobre
endas de seus discos. Assim, a maior fabricante de hits dos anos 20
·enada de qualquer participação nos lucros das suas gravações- urna
-~aridade que causaria confusão até nos anos 70, quando seus dis-
= ram relançados maciçamente. Correu até a história de que foram

79
as vendas colossais dos discos de Bessie Smith que salvaram a Columbia
da falência na década de 20. Antes de assinar com a Columbia, Bessie teria
feito testes para a Black Swan, mas foi demitida no meio da primeira gra-
vação, que interrompeu alegando: "Agüenta aí que eu preciso cuspir!" Iro-
nicamente, meses depois, quando os discos de Bessie na Columbia
começavam a vender, a Black Swan ia à falência.
A vida de Bessie era igual às suas canções. Uma, particularmente,
composta por seu pianista Porter Grainger, era o seu hino de guerra: Tain't
Nobody's Bizness If I Do, que entraria para o repertório de cantoras de
jazz como Billie Holiday e Dinah Washington:

If I should take a notion


to jump into the ocean
Tain't nobody's bizness if Ido.
If I goto church on Sundays
And to cabaret ali day Monday,
Tain't nobody's bizness if Ido
Ou seja: "Se me dá a idéia Ide saltar no oceano I não é da
conta de ninguém. I Se vou à igreja aos domingos I e ao cabaré
toda segunda I não é da conta de ninguém."

Em pouco tempo, Bessie ganhava o que queria. The Greatest and


Highest Salaried Race Star in the World (A maior e mais bem paga estre-
la de cor do mundo) era como a chamavam em 1925. Mesmo sem rece-
ber direitos sobre seus discos, Bessie chegava a fazer 2.000 dólares por
semana em shows nas grandes cidades. Na Columbia, era também uma
das artistas mais bem remuneradas, ganhando mais até do que muitos
músicos brancos. Pagavam-lhe 200 dólares por lado de disco "usável".
A mesma canção era gravada várias vezes, não por preocupações artísti-
cas, mas por questões técnicas. O calor podia alterar a velocidade de ro-
tação, ou a cera podia ser de má qualidade. Os discos de cera só podiam
ser tocados uma vez e depois eram raspados para serem usados em ou-
tras gravações. Assim, matrizes de metal eram prensadas para teste, a partir
das quais se escolhia o take que iria para as lojas. Na época, ninguém
pensaria em preservar ou comercializar os alternate takes, como aconte-
ceria a partir dos anos 40. (Os alternate takes de Lester Young, Pee Wee
Russell e Billie Holiday, na Commodore; os de Charlie Parker na Dial e
Savoy; os de Miles Davis, Fats Navarro e Bud Powell, na Blue Note, se
tornariam autênticas radiografias do processo criativo do jazz.) Os raros

80 Roberto Muggiati
ernate takes de Bessie mostram que ela era muito precisa e articulada
. oncepção de cada tema. As diferenças estão mais no acompanhamento
ue na interpretação da cantora.
O dinheiro de Bessie foi também a sua desgraça. Billie Holiday, que
ou o caminho da música através dos discos de Bessie Smith (fazia a
- a de recados nos bordéis de Baltimore para poder ouvir Bessie na
-ola da madame) certamente pensava na Imperatriz dos Blues quando
pôs God Bless The Chi/d:

Money, you've got lots of friends.


They're crowding round your door.
But when you're gone and spending ends
They don't come no more.
("Dinheiro, você tem um monte de amigos./ Se amonto-
:1m diante de sua porta. /Mas quando você está por baixo e pára
de gastar/ Eles não aparecem mais.")

Jack Gee, o marido, se intitulava empresário de Bessie, em cartões


ita e cartazes de shows. Na verdade, só atrapalhava. Ruby Walker,
:inha de Jack mas aliada - e até cúmplice - de Bessie, entrou como
-~arina para a trupe. Ela conta:

"Bessie deixou Jack acreditar que ele comandava o espe-


táculo. Mas era uma piada. Jack vinha aos ensaios e multava as
dançarinas que não erguiam suficientemente as pernas ou erra-
vam o passo. O grupo inteiro o detestava."

Para comprar o vestido com que Bessie foi fazer suas primeiras gra-
--:Jes na Columbia, Jack empenhara o uniforme e o relógio de vigia
:.uno. Ruby comenta:

"Bessie comprou para Jack tudo o que ele possuía: ternos


caros, um relógio de ouro, até um Cadillac. E sempre dava muito
dinheiro a ele. Acreditem, ela pagou de volta aquele vestido um
milhão de vezes. Além do mais, era um vestido barato. Jack não
tinha o menor gosto."

~..\lém dos presentes para Jack, Bessie comprava para si mesma rou-
caras e casacos de pele. Comprou também um apartamento em Fila-

81
délfia, mas era apenas um pouso provisório entre turnês. A vida de Bessie
era mesmo a estrada. Ruby Walker conta:

" O apartamento não tinha móveis caros, só grandes espre-


guiçadeiras, um sofá, abajures e mesas com pinturas e estátuas
- Bessie nunca perdeu seu tempo com objetos caros."

A medida que aumentava a tensão no casamento com Jack, Bessie


apelava cada vez mais para a bebida, o bathtub gin clandestino da Lei
Seca.
Curiosamente, a ascensão e queda - e até mesmo a discografia -
de Bessie coincidem com a Prohibition, que durou de 1919 a 1933, ano
de suas últimas gravações. Bessie gostava da bebida adulterada daqueles
anos e jurava que jamais tocaria numa garrafa lacrada, de produção in-
dustrial. O clarinetista Buster Bailey a descreve:

"Era uma mulher da pesada. Tinha um coração grande e


bom, gostava de beber e gostava de cantar seus blues devagar."

Dois incidentes, em níveis sociais opostos, dão uma idéia de seu tem-
peramento. Em 1925, de volta a Chattanooga, ja consagrada, Bessie ini-
ciou uma temporada no Liberty Theater com casa lotada. Depois, de to-
dos os convites que recebeu para comemorar a estréia, ela escolheu uma
pigfoot party - espécie de pagode - na casa de um velho amigo num
bairro distante e perigoso. Ao chegar no local - que rescendia a comida,
bebida, fumo e suor, ao som de um pianista de blues que tentava romper
a cortina de conversa e gargalhadas de uma sala cheia - Bessie gritou:
"The funk is flyin '!" (Algo como "A zorra está rolando!" Reparem no
uso pioneiro da palavra funk, hoje tão comum nas periferias do mundo. )
No calor da festa, um penetra atacou uma das garotas de Bessie e foi
rechaçado pela cantora com um direto no queixo. O agressor fugiu, mas
ficou à espreita numa esquina escura. Alta madrugada, quando Bessie
voltava para o hotel, o homem enfiou-lhe uma faca nos costados. Com a
faca cravada no corpo, Bessie ainda correu alguns quarteirões atrás do
homem. Quando uma das meninas retirou a faca, o sangue - segundo
testemunhas - esguichou alguns metros. O médico recomendou a Bessie
três dias de repouso. Tudo isso aconteceu às quatro da manhã. Às duas
da tarde, Bessie cantava os seus blues, inigualável, na matinê do Liberty.
E, com seu incrível senso de marketing, passou para os jornais uma his-

82 Roberto Muggiati
Bessie Smith: o carisma da Imperatriz
tória bem diferente, acrescentando glamour à sua· figura. O Chicago De-
fender publicava, na edição de 7 de março de 1925:

Chattanooga, Tenn. - Bessie Smith, a popular artista dos


discos Columbia, foi apunhalada por um homem chamado Buck
Hodge no que se acredita tenha sido uma tentativa de roubo. A
Srta. Smith veio de Chicago para Chattanooga para cantar no
Liberty Theater. O roubo foi provocado por sua ostentação de
diamantes e gemas preciosas. O ferimento não foi grave, embora
a levassem para o Hospital Erlanger para tratamento.

Três anos depois, em abril de 1928, em Nova Iorque, Bessie causaria


uma forte impressão em Carl Van Vechten, jovem e rico jornalista quedes-
cobrira a cultura negra e tornara-se um de seus principais divulgadores. O
beautiful people dos anos 20, entediado com as convenções do seu peque-
no mundo, buscava no jazz e na dança negra uma novidade, uma fuga e
até um modo de aplacar sua consciência culpada. Foi talvez a primeira
manifestação radical chie do século, a chamada Negro Renaissance. Mas
o interesse de Van Vechten pela música negra era autêntico. Ele até manti-
nha no Harlem um apartamento todo decorado em preto e luzes vermelhas.
A recepção que ofereceu a Bessie aconteceu em território branco, no
apartamento de Carl na Rua 55 Oeste. O salão de Van Vechten e sua
mulher, a ex-bailarina russa Fania Marinoff, era seleto e famoso. Naquela
noite estavam lá celebridades como o compositor George Gershwin, a
dançarina Adele Astaire (irmã de Fred), a diva Marguerite d'Alvarez e a
atriz Constance Collier. Bessie chegou com a sobrinha Ruby Walker e o
pianista Porter Grainger, que promovera o encontro. Ele achava que con-
tatos como este ajudariam a carreira de Bessie. Mas a Imperatriz era uma
personalidade difícil. Entregou à sobrinha seu casaco de pele de arminho
branco. Ruby vestia um casaco de mink emprestado por Bessie e grande
demais para ela. Sob o peso dos dois casacos, tropeçou e quase caiu no
salão. Carl Van Vechten ofereceu um drinque: "Que tal um Martíni bem
seco?" Bessie retrucou: "Sei lá de Martínis, secos ou molhados. Me dá
mesmo um gim, cara!" Não havia muito o que conversar. Grainger sen-
tou-se logo ao piano e Bessie começou a cantar seus blues. A cada inter-
valo ela estendia o copo, que Van Vechten enchia imediatamente. Depois
de umas seis ou sete canções, Grainger sentiu que era hora de bater em
retirada. Falou a Ruby: "Vamos tirar ela daqui antes que mostre o rabo!"
À saída, Fania Marinoff tentou ser cortês: "Senhorita Smith, não vai sair

84 Roberto Muggiati
em me dar um beijo de despedida .. .. " Bessie repeliu o abraço da anfitriã
_ m um empurrão que mandou ao chão a ex-bailarina e berrou: "Me lar-
"" e, nunca vi merda maior!"
A arte de Bessie superou o vexame. Carl Van Vechten lembra a oca-
º assim:
"Estou seguro de que ninguém presente àquela noite jamais
esquecerá. Não era uma atriz. Nem uma imitadora da tragédia
feminina. Não havia fingimento algum. Era a verdade: uma mu-
lher rasgando o seu coração com uma faca e mostrando a to-
dos nós- fazendo com que sofrêssemos o que ela sofria. Para
mim, foi a maior atuação de Bessie."

O ano de 1929 foi decisivo. O casamento com Jack Gee chegou ao


. O drama conjugal de Bessie, ironicamente, foi fixado em celulóide,
..una interpretação altamente autobiográfica: Bessie aparece como a mu-
er traída num filme de 16 minutos, St. Louis Blues, com roteiro e dire-
::o musical de W.C. Handy, autor da canção-título. O filme se passa numa
- nsão de Memphis, mas foi rodado em Long Island, no mês de junho.
orge Hoefer comenta:

"Um executivo da Warner Brothers teria dito durante as


filmagens: 'É pena que a gente não tenha feito desta história um
longa-metragem'... Bessie faz o papel de uma mulher abando-
nada e o aspecto mais impressionante do filme é a beleza de seus
movimentos e a sensibilidade de suas expressões faciais. Apa-
rentemente, tinha considerável talento como atriz dramática."

Meses depois, o crack da Bolsa inaugura a era da Depressão e acaba


~ m a euforia no showbiz e nos discos. O rádio apressa a morte do vau-
•ille, que fizera florescer o blues clássico urbano. Em 1930, foram pren-
das apenas 4.150 cópias de um disco de Bessie. Em 1931, dois outros
os saíram com a tiragem decrescente de 800 e 400 cópias. Em 1933,
hn Hammond - o caçador-de-talentos da Columbia que lançara Billie
~oliday, Count Basie e Benny Goodman (que casou com uma de suas
:mãs) - foi buscar Bessie num cabaré de Filadélfia onde ela cantava
iquetas pornográficas a troco de gorjetas. Seria a sua última sessão
. ::. gravações, em Nova Iorque, a 24 de novembro - quatro canções mais
- estilo do jazz do que do blues. Segundo Bessie, ninguém queria mais

es 85
se deprimir com os blues. Três dias depois, no mesmo estúdio, usando três
músicos das últimas gravações de Bessie - Benny Goodman (clarineta),
Jack Teagarden (trombone) e Buck Washington (piano) - , John Ham-
mond produzia os primeiros discos de Bilhe Holiday. Nascia a era das
cantoras de jazz e o blues mergulhava nas trevas do passado.
O resgate de 160 das 180 canções gravadas por Bessie para a Columbia
foi um verdadeiro trabalho de detetive, estimulado por John Hammond e
realizado pelo crítico de jazz dinamarquês (nascido na Groenlândia) Chris
Albertson. Entre outras coisas, descobriu-se que ela teria gravado um dis-
co (dois lados) sob o nome de Rosa Emerson, em 1921, pelo selo Emer-
son. Na sua edição de 12 de fevereiro de 1921, o Chicago Defender noti-
ciava que Bessie ia fazer discos para a Emerson Record Company. O pri-
meiro lançamento estava previsto para 10 de março de 1921, mas ninguém
sabe o que aconteceu com as matrizes, ou sequer se elas existiram.
Em 1924, uma curiosidade histórica: Bessie fez um teste para o selo
Edison. O presidente da primeira gravadora do mundo, o inventor do
fonógrafo em pessoa, Thomas Alva Edison, reprovou-a e anotou em sua
ficha: "Voice n.g. 21/4/24." Ou seja, "voz não boa {no good)".
Em 1970, quando a Columbia resolveu relançar Bessie Smith em LP,
descobriu que, das 180 gravações listadas, 20 nunca haviam sido publi-
cadas e tiveram as matrizes destruídas. E mais: das 160 lançadas, só 57
matrizes foram encontradas, muitas sem a menor condição de reprodu-
ção. A maioria das canções teve de ser recuperada a partir de discos de
colecionadores, alguns em uso há mais de 40 anos. Em certos casos, qua-
tro diferentes discos de cada canção foram usados até se obter uma ver-
são satisfatória. Ao todo, 450 lados foram transferidos para fita até se
chegar às 160 faixas que comporiam os cinco álbuns duplos lançados a
partir de 1970. O resultado é um tributo a Bessie Smith e à arte do blues.
Chris Albertson descreve o trabalho de depuração sonora dos velhos dis-
cos, com a ajuda da nova tecnologia:

"Todo esforço foi feito para preservar a qualidade vocal


capturada pelo equipamento de gravação original. Empregou-
se um mínimo de equalização e só nos casos absolutamente ne-
cessários. Não se acrescentou eco, embora ele fosse usado num
punhado de seleções de fitas transferidas em 19 51 para a série
anterior de quatro discos de Bessie Smith da Columbia. Naqueles
dias iniciais da hi-fi era crença comum que o eco realçava as
velhas canções. A recanalização para estéreo, um truque poste-

86 Roberto Muggiati
rior, foi similarmente abandonada em função da maior pureza
de som. O ruído superficial, até então minimizado pelo uso de
filtros (que também alteram o som do sinal gravado), foi virtu-
almente eliminado através de um novo sistema, aperfeiçoado
pelo engenheiro Larry Hiller durante os primeiros estágios des-
te projeto. A vantagem deste sistema é eliminar a maioria dos
sons estranhos sem afetar o som da música. O resultado de to-
das estas técnicas nos permite ouvir os discos de Bessie Smith
com uma clareza e presença sem precedentes."

E o que ouvimos nestas 160 estações da odisséia musical de Bessie Smith?


repertório oscila entre os três vértices de um triângulo: o vaudeville; a
scente canção popular americana (rotulada como produto da Tin Pan
•.:.J ley); e o blues. Acompanhando Bessie através destes dez anos de estúdio
923-1933), percebemos uma evolução na escolha dos instrumentistas
-ompanhantes. Nas primeira gravações, de 1923, ela se limita a um piano:
ence Williams, Fletcher Henderson ou Jimmy Jorres, com a adição even-
~l de uma clarineta. É o que basta, numa opção quase minimalista. Em
~ 24, ela passa a contar com a colaboração do trombonista Charlie Green,
Trombone Cholly, com quem gravaria 38 canções, de julho de 1924 a junho
"" 19 31. Com ele, Bessie gravou alguns de seus melhores blues e fez até um
o pioneiro, em 1928, Empty Bed Blues, prolongado do lado A para o
- o B do disco e alcançando o tempo recorde de 6'19" de gravação. Membro
.::.a orquestra de Fletcher Henderson, Charlie Green foi outra vítima da De-
:-essão: encontraram seu corpo congelado nos degraus de uma pensão do
:-:Ia.riem à mesma época em que Bessie morria numa estrada do Sul. Com-
-.eta o trio trágico outro músico que teve forte empatia com Bessie, o cor-
- 'sta Joe Smith (gravou com ela de 1924 a 1927) e morreu de tuberculo-
- num hospital para doentes mentais em 1937, no mesmo ano em que Bessie.
No livro Jazz Masters of the Twen#es, Richard Hadlock disseca o
-enômeno Bessie Smith:

"Seu constante retorno, elongação e ênfase de fortes cen-


tros tonais tendia a criar a ilusão de uma espécie de canção mo-
derna com intimações quase espirituais. Com esta abordagem,
a mais banal canção popular podia ser transformada num belo
blues à medida que Bessie remodelava suas configurações me-
lódicas, harmônicas e rítmicas dentro do seu estilo simples, mas
tocante (... ). Este estilo de centro tonal nasceu provavelmente

ues 87
da necessidade de projetar sua voz, sem auxílio do microfone,
até as últimas filas das platéias em circos e teatros e, no caso de
Bessie, não induzia à monotonia (... ) Bessie tinha um bom al-
cance, quase duas oitavas, do fá grave ao mi agudo, mas traba-
lhava mais criativamente na oitava em que o seu possante fá mé-
dio marcava o centro tonal. (... ) Como os melhores instrumen-
tistas, Bessie podia criar um solo envolvente a partir de um mí-
nimo de matéria-prima musical e, novamente, como a maioria
dos jazzistas, era muitas vezes forçada a fazer isto."

O que Bessie estabeleceu definitivamente na música de sua época foi


o primado do intérprete, do solista. Os músicos do blues rural e da impro-
visação coletiva de Nova Orleans eram e faziam questão de ser ilustres
desconhecidos. O que contava era a música. Bessie foi uma das primeiras
- antes mesmo de Louis Armstrong - a romper o anonimato e valorizar
o solista. E, por falar em solista, existem alguns segundos do único desem-
penho instrumental de Bessie em Sinful blues, acompanhada só de Freddie
Longshaw ao piano, em que ela improvisa no kazoo, um instrumento ru-
dimentar do blues primitivo. "Ela sempre gostava de soprar num pente com
papel de seda e fingir que tocava um instrumento'', conta Ruby Walker.
"E sempre arrancava boas gargalhadas do público quando fazia isso."
Bessie foi, no canto, o equivalente a Louis Armstrong como instru-
mentista. Juntos, eles gravaram onze canções, entre janeiro e maio de 1925.
St. Louis Blues é considerada uma obra-prima na carreira dos dois. "O
que quer que ela cantasse se transformava em blues." diz George Hoefer
num artigo sobre Bessie. Canções como Baby Won't You Please Come
Home, Alexander's Ragtime Band e After You've C one, por exemplo. A
sua capacidade de criar climas é impressionante. Nenhuma canção des-
creve melhor a excitação da noite do que Th ere'll Be a Hot Time in Old
Town Tonight. Na área dos blues, Bessie exprime humor em Mean Old
Bed Bug Blues; preocupação social em Back Water Blues, sobre as inun-
dações do Mississippi; compaixão pela pobreza em N obody Knows You
When You're Down and Out; preocupações etílicas em Me and My gin;
e o tema principal do blues, o amor, em incontáveis canções como Careless
Lave Blues, Lost Your Head Blues e o clássico Empty Bed Blues:

Woke up this morning, with an awful achin' head (bis)


My new man had left m e, justa roam and a empty bed.

88 Roberto Muggiati
Richard Hadlock escreveu, com inspiração, que "acompanhar os
· rimos dias da vida de Bessie Smith não é muito diferente de tentar fazer
crônica dos espasmos mortais de uma baleia. Ocasionalmente ela vem
tona para registrar sua agonia, mas a maior parte do processo acontece
ebaixo d'água e fora da nossa visão."
Nos anos 30, Bessie caíra no esquecimento. Bebia cada vez mais e, por
oincidência, casou-se com Richard Morgan, um ex-fabricante de bebida
landestina na Chicago dos anos 20. Foi em Chicago que Morgan conhe-
:eu Bessie, por quem tinha grande admiração. Reencontrou-a em 1930,
- olveu se separar da mulher a juntou-se com a cantora. Morgan era tio
~ vibrafonista Lionel Hampton, que lembra: "Não havia nada que ele não
.izesse por ela."
George Hoefer anota:

"Sua bebida, uma válvula emocional, tornou-se progressi-


vamente compulsiva ao longo dos anos. Ela era basicamente uma
mulher amargurada que, não só não tinha todas as respostas,
mas achava muitas das perguntas estranhas. Ao mesmo tempo,
Bessie era gentil, sentimental e cheia de simpatia pelos miserá-
veis de sua raça. Quando tinha dinheiro, inclinava-se a esbanjá-
/o. Contam que certa vez comprou uma pensão em Nova Iorque
para que um grupo de amigos pudesse viver sob o mesmo teto. "

Em 1935, Bessie apresentou-se no Teatro Apollo, do Harlem, inau-


_Jrado no ano anterior. Mesmo com a carreira em decadência, a prima
·onna do blues reclamou do cachê e recebeu um bom aumento. Em 1936,
~ a cantou num concerto de jazz no Famous Door, na Rua 52, em Nova
rque. O guitarrista Eddie Condon estava lá e diz que Bessie cantou tão
-em que Mildred Bailey se recusou a subir ao palco depois dela. Apesar
..:... tes pequenos sucessos, Bessie era obrigada a recorrer às rent parties
ra sobreviver. Eram festas em que os músicos se reuniam para cantar,
- ar e levantar algum dinheiro para os companheiros em dificuldades.
:::stas reuniões foram retratadas por Bessie numa de suas últimas grava-
- s, Gimme a Pigfoot.
Em setembro de 1937 ela viaj ava com o show Winsted's Broadway
·..astus pelos Estados sulistas. Na madrugada de 26 de setembro, Bessie
_Richard Morgan seguiam numa caminhonete Packard pela Rodovia 61
uando se chocaram com um caminhão da National Biscuit Company,
~ara do na estrada sem sinalização. Morgan ainda tentou frear o carro e

nes 89
bateu com o lado do passageiro contra o caminhão. Bessie, que dormia
com o braço do lado de fora da janela, teve o membro esmagado à altu-
ra do cotovelo. O acidente ocorreu nos arredores do Coahoma, uma ci-
dadezinha que sequer tinha hospital. Por acaso, um cirurgião de Memphis
chegou ao local do acidente poucos minutos depois. Haviam chamado
uma ambulância, mas o médico, sentindo que Bessie corria o perigo de
sangrar até morrer, tentou colocá-la na traseira do seu carro. Tentava
fazê-lo, com imensa dificuldade (Bessie pesava na época uns 90 quilos),
quando outro carro bateu contra a traseira do seu, destruindo-a comple-
tamente. Cinco minutos depois, chegou a ambulância e levou Bessie às
pressas para o hospital mais próximo, em Clarksdale, Mississippi, onde
na Enfermaria Negra um dos melhores cirurgiões amputou-lhe o braço.
Ela morreu ao meio-dia e quinze, oito horas e meia depois do acidente.
O relatório médico atribuiu a morte mais a ferimentos internos do que
à perda de sangue.
Muito tempo depois, pesquisadores acharam uma entrevista de Bessie
a um jornal em 1936. Ela se dizia otimista em relação ao futuro e sentia-
se à véspera de novos sucessos. Professava sua adoração por diamantes,
casacos de pele e eventos esportivos, mas confessava que sua ambição era
se aposentar em 1960 e ir descansar com seus animais de estimação numa
fazenda bem longe.
Os grandes jornais - e até mesmo os jornais locais - não deram
muita importância à morte de Bessie Smith. Quem levantou toda a polê-
mica foi o diletante engajado John Hammond (afinal, eram os tempos da
Guerra da Espanha). Num artigo para a revista especializada em música
downbeat, Hammond perguntava, no título: BESSIE SMITH SANGROU ATÉ
MORRER ENQUANTO ESPERAVA POR SOCORRO MÉDICO? E escrevia: "Quando ela
chegou finalmente ao hospital recusaram-se a atendê-la porque era negra
e ela sangrou até morrer. .. "
A história acabou esquecida, restrita a uns poucos .círculos intelec-
tuais. Mas, nos politizados anos 60, voltou com força total. Virou até peça
de teatro pelo autor de Quem Tem Medo de Virginia Woolf? - Edward
Albee - , que teatralizou A Morte de Bessie Smith.
O túmulo de Bessie, num pequeno cemitério de Filadélfia, ficou sem
lápide até 1970, quando Juanita Smith - uma enfermeira que trabalhou
para ela-, John Hammond e a cantora Janis Joplin juntaram 500 dóla-
res para pagar a pedra com a inscrição "BESSIE SMITH, 18 94-19 3 7. A MAIOR
CANTORA DE BLUES DO MUNDO JAMAIS DEIXARÁ DE CANTAR".
E Bessie continua cantando através de seus discos. Da sua forte pre-

90 Roberto Muggiati
-ença ao vivo, alguns depoimentos contam milagres, como o do pianista
de jazz Art Hodes:

"Lá está ela. Resplandecente é a palavra a única capaz de


descrevê-la. Claro, não é bonita - mas para mim é. Com um
vestido de noite branco e brilhante, uma mulher de grande por-
te, ela domina o palco de toda casa quando canta Yellow Dog
Blues. Ela agarra a gente. Não há como explicar o seu canto, a
sua voz. Não usa microfone, nem precisa. Canta caminhando
lentamente em volta do palco. A cabeça pende um pouco. Não
consigo ver direito se está de olhos abertos. A cada número, o
mesmo silêncio, a grande interpretação, o aplauso ensurdecedor.
Ninguém a deixa sair. Que mulher!"

Mezz Mezzrow - o clarinetista branco (judeu) de alma negra-diz


e "cada nota que aquela mulher gritava ia vibrar nas cordas retesadas
meu sistema nervoso. Cada palavra que Bessie cantava respondia a uma
_ gunta que eu fazia."
O guitarrista Eddie Condon, um dos expoentes do estilo Chicago -
·ersão branca do jazz negro de Nova Orleans - descreve uma cena de
..:. latria explícita vivida por um dos mitos do jazz, Bix Beiderbecke, o
!tng man with a horn que, como Bessie, morreu cedo, vítima do bathtub
da Lei Seca:

"Fomos ouvir Bessie no Paradise, uma espelunca na esquina


da 35 com Calumet. Na primeira noite, Bix puxou os bolsos para
fora e colocou todo o dinheiro que tinha sobre a mesa para que
ela continuasse cantando. Nós tínhamos crescido ouvindo seus
discos. Sabíamos que era a maior cantora de blues. Mas era
muito melhor do que tínhamos imaginado."

Danny Barker, o lendário banjoísta de Nova Orleans, disseca a mú-


- de Bessie à luz do carismático Black South:

"Se você tinha alguma ligação com a Igreja, como eu, que
vinha do Sul, você reconheceria uma semelhança entre o que ela
azia e o que aqueles pregadores evangelistas de lá faziam para
m exer com as pessoas. O Sul tinha fabulosos pregadores e evan-
gelistas. Alguns ficavam nas esquinas e juntavam verdadeiras

91
multidões. Bessie fazia a mesma coisa no palco. De certa for-
ma, ela era como os Billy Graham de hoje. Podia hipnotizar as
massas. Quando cantava, você podia ouvir um alfinete cair."

Outra que sofreu uma inspiração quase religiosa da profana Bessie


foi a maior cantora de gospel, Mahalia Jackson:

"Quando eu era pequena, sentia que Bessie estava passan-


do por problemas como os meus. Por isso, ouvi-la era um con-
solo para as pessoas do Sul. Ela exprimia tudo aquilo que aquelas
pessoas não conseguiam traduzir em palavras."

Mas quem define tudo, com sua maravilhosa simplicidade, é Louis


"Satchmo" Armstrong:

"Bessie Smith me emocionava sempre - a maneira como


fraseava uma nota com aquele toque especial na sua voz que
nenhuma outra cantora de blues tinha. Ela possuía música em
sua alma e sentia tudo o que fazia. A sua sinceridade em rela-
ção à música foi uma inspiração para todos."

92 Roberto Muggiati
. IA E AS MENINAS
CANTORAS DO BLUES CLÁSSICO

O gramofone foi inventado em 1877 por Thomas Alva Edison. Ele


- -etendia usá-lo em escritórios, como uma espécie de ditafone. Os sons
:am gravados em cilindros e já no início do século a máquina de Edison
_-a largamente usada na indústria do entretenimento, com gravações de
:archas, ragtimes, árias de ópera e peças sinfônicas. A gravação em ci-
~ dros era cara, complicada e o som deixava muito a desejar. O primei-
- grande aperfeiçoamento veio com o disco de cera. Já nos anos 20 acon-
_.:ia o primeiro fenômeno de massa desencadeado pela indústria fono-
_-afica: os race records, discos destinados à comunidade negra. A grande
.a dos race records eram os blues - não mais o blues rural, mas o blues
- ano interpretado por cantoras.
Estas cantoras em pouco tempo ganharam fama e dinheiro com suas
_- vações. Para ser exato, não tanto com as gravações - que eram mal
-=-ªs - mas com os shows que faziam pelo país inteiro, graças ao poder
~netração dos discos. Viviam em alto estilo, cobriam-se de peles e jóias
::-am saudadas como autênticas rainhas. Sally Placksin, no livro American
mem in Jazz, descreve a música que elas faziam:

"Em suas canções, as mulheres do blues falavam de uma


ampla gama de assuntos e sentimentos e, com a sua franqueza,
romperam muitos dos tabus sexuais e sociais da época. Falavam
de amor, dor-de-cotovelo, vingança assassina, raiva, prostitui-
ção, prisão, abandono, solidão, doença, álcool, inundações, via-
gem, lar, humor, trens, sexo, navios, superstição, azar, morte,
sonhos, vodu, cemitérios, lesbianismo, homossexualidade mas-
culina, sado masoquismo, violência e até dores nos pés. Eram
rudes, maliciosas, com o pé na terra, e sua interpretação e seus
temas refletiam e tocavam fundo a própria vida e as experiên-
cias do público que as ouvia."

De todas elas, uma foi reconhecida como a Mãe do Blues: Gertrude


gett Ma Rainey, nascida em Columbus, Geórgia, em 1886. Já aos 12

93
anos ela se exibia num show de jovens talentos, The Bunch of Blackberries,
na Springer Opera House de Columbus. Em 1902, quando tinha 16 anos,
Gertrude ouviu uma mulher cantando uma canção sobre o homem que
tinha perdido. Era um som tão pungente que ela decorou a canção e a in-
corporou a seu repertório. Muito antes da publicação do primeiro blues
-Memphis Blues, de W.C. Handy, em 1912 - Gertrude costumava fe-
char seus espetáculos com aquela canção que ela chamava "the blues".
Aos 16 anos, casou-se com um dançarino e comediante muitos anos
mais velho, William Pa Rainey. Dizem as más linguas que a diferença de
idade era compensada pela feiúra de Gertrude. Conta o pianista-cantor
de blues Champion Jack Dupree: "Ela era realmente feia ... Mas, quando
abria a boca, arrasava! A gente esquecia tudo. Ela sabia como cantar
aqueles blues e tocar no fundo do nosso coração. Oue personalidade ti-
nha aquela mulher!"
Ma Rainey era baixa e encorpada e foi uma das primeiras a colocar
ouro nos dentes da frente. Gostava de homens geralmente mais jovens -
era ela quem tomava a iniciativa - e dizem também que gostava de mu-
lheres. Ma chamava a atenção sobre a sua figura usando cabelos desgre-
nhados, colares de ouro e diamantes, laços na cabeça, brincos descomunais,
tiaras, boás de plumas em volta do pescoço, vestidos e mantos exóticos.
Mais do que. as aparências, a música de Ma Rainey transformou os
blues. Num de seus clássicos, Bo-Weavil Blues, ela infunde ao blues a sim-
plicidade de um haicai:

I went downtown
I got me a hat
I brought it back home
I laid it on the shelf
I looked at my bed
I'm gettin' tired sleepin' by myself
("Fui à cidade I Comprei um chapéu I Trouxe-o para casa
I Coloquei-o no armário I Olhei para minha cama I Estou ficando
cansada de dormir sozinha ... ")

Ma Rainey gravou seu primeiro disco aos 37 anos, em dezembro de


1923, para a Paramount. A Paramount era uma subsidiária de uma com-
panhia de móveis que dava discos como brinde a quem comprasse gramo-
fones. Um dia, resolveu entrar na fabricação de discos. De 1923 a 1928,
Ma Rainey gravou mais de cem lados. Sobreviveram 86 canções. Nelas,

94 Roberto Muggiati
Ma Rainey: a mulher que inventou o blues
Ma é acompanhada por instrumentistas ilustres do jazz como Louis Arms-
trong (trompete), ColemanHawkins (saxofone),Joe Smith (corneta), Charlie
Green e Kid Ory (trombone) e Georgia "Tom" Dorsey (piano). Com o crack
da Bolsa em 1929, a era das cantoras do blues clássico chegou ao fim. Já
em 1928 a Paramount não renovava o contrato de Ma Rainey, alegando
que o seu "material tinha saído de moda". Ma continuou na estrada, com-
prou uma casa para a família na Georgia e um apartamento em Chicago.
Entre 1914 e 1916, Ma e Pa mantinham um show com o curioso nome de
Rainey & Rainey, Assassinators of the Blues. No início dos anos 30, ela
voltou a correr a estrada com a Arkansas Swift Foot Review. Eficiente nos
negócios, Ma Rainey era proprietária de dois teatros em Columbus - o
Lyric e o Airdrome - e participava nas atividades da sua igreja. Em 1939,
aos 43 anos, Ma Rainey sofreu um ataque do coração e morreu no City
Hospital de Columbus. O crítico de jazz Charles Edward Smith escreveu
o seu epitáfio: "Ela era a voz do Sul, cantando do Sul para o Sul."
Smith, o mais comum dos sobrenomes norte-americanos, designou
uma verdadeira dinastia no blues: além de Bessie, havia outras cinco -
nenhuma delas aparentada - , Clara, Trixie, Mamie, Laura e Hazel. Foi
Mamie Smith quem detonou o nascimento da indústria do blues, ao gra-
var Crazy Blues, em 1920. Nascida no gueto de Cincinnati, 1883, Mamie
começou a excursionar como dançarina aos dez anos de idade. Aos 30
anos, em 1913, Mamie conquistava o Harlem com seu marido, também
cantor, Willie Smith. A primeira gravação de Mamie foi arranjada por um
editor de música negra, apesar dos grupos de pressão que se opunham às
gravações de cantoras negras. A última hora, a cantora branca Sophie
Tucker adoeceu e o editor, Perry Bradford, conseguiu que Mamie a substi-
tuísse, acompanhada de uma banda branca. O resultado foi tão bom que,
seis meses depois - no dia de São Valentim, 14 de fevereiro de 1920 -
, ela voltava ao estúdio com uma orquestra negra. O pianista Willie the
Lion Smith ensinou aos músicos as partes de piano trazidas por Mamie.
Cada um ganhou 25 dólares pela sessão, sem previsão de royalties, e só
recebeu o dinheiro dois meses depois.
Com o sucesso de Crazy Blues, Mamie Smith tornou-se a artista ne-
gra mais bem paga da época. Por uma noite na Virginia recebeu dois mil
dólares. Usava uma capa de penas de avestruz de três mil dólares e dizem
que seu apartamento de Nova Iorque tinha um piano em cada quarto. No
auge da carreira, nos anos 20, Mamie, segundo escreveram Leonard Kunstadt
e Bob Colton, "era sinônimo da palavra 'sucesso'. Suas peles, suas jóias, seus
apartamentos, as brigas com os amantes e as ameaças de tiro ganhavam muita

96 Roberto Muggiati
otoriedade. O anúncio de uma nova gravação por Mamie Smith era motivo
::uficiente para se declarar feriado nos bairros negros do país."
Em 1931, já no terceiro casamento, Mamie fez as últimas de suas 80
41'.avações. Embora continuasse a se apresentar na Flórida, em Nova Iorque
=na Europa, sua carreira entrou em declínio. Um produtor de discos da
= oca diz: "Acho que houve algum complô do mundo dos negócios con-
a ela. Era inteligente demais para os negócios de então. E, na época, as
ulheres não deviam ser assim." Mamie Smith atuou em alguns filmes B
-os anos 40 e morreu sem um tostão num hospital do Harlem em 1946,
.:: pois de uma longa doença, sendo enterrada como indigente num cerni-
-mode Staten Island. Em 1964, um fã alemão coletou dinheiro para uma
ide; músicos americanos fizeram até um concerto para levantar dinhei-
- , mas entraves burocráticos deixaram tudo na mesma. Até hoje Mamie
·th não recebeu a merecida lápide com a inscrição A PRIMEIRA DAMA DO
:ES AMERICANO.
Clara Smith, conhecida como Queen of the Moaners (Rainha das Cho-
as ), gravou um total de 123 canções. Muito poucas foram relançadas
LP e CD, entre elas duas com Bessie Smith. Clara nasceu em Spartanburg,
olina do Sul, em 1894. Em 1918 já era um dos grandes nomes do cir-
to TOBA; em 1923, começou a gravar para a Paramount. Seu primeiro
·-o foi Every Woman's Blues. Naquele ano, ela se instalou em Nova Iorque
--·o u o Clube Teatral Clara Smith. Considerada uma das mais bem-ves-
cantoras de blues, Clara fazia piadas maliciosas aos maridos das pri-
as filas de seus espetáculos, para constrangimento das mulheres. Quanto
fortes as suas interpretações, mais as platéias gostavam. Como can-
-a de blues, Carl Van Vechten a descreveu: "Sua voz é ora potente, ora
'ancólica. Faz o coração da gente sangrar."
Apesar da fidelidade de seu público e da quantidade de discos gra-
·os, Clara Smith foi atingida pela Depressão. O trombonista Clyde
mhardt lembra da mulher mais elegante do blues, em 1932, usando um
·<linho preto e um gorro, "ganhando 35 dólares por semana e dan-
-:::e por muito feliz." Clara Smith morreu do coração em 1935, aos 41
e foi enterrada num cemitério do condado de Macomb no Michigan.
~uitas destas cantoras viveram dramas piores que os dos blues que
.-.avam. Outras caíram no mais completo esquecimento. Quem iria a uma
hoje pedir um disco de Rosa Henderson? E, no entanto, Rosa gravou
, .- 100 canções, entre 1923e1931, na companhia de músicos famosos
o Fletcher Henderson, Coleman Hawkins e James P. Johnson. Nasci-
em Henderson, Kentucky, em 1896, Rosa começou a cantar blues aos

97
13 anos no show itinerante de um tio. Aos 22 anos, deixou o tio e foi cantar
no vaudeville de Nova Orleans com o marido, o comediante Slim Hender-
son. A morte súbita do marido em 192 7 abateu o ânimo de Rosa. Aos pou-
cos, foi deixando a cena e em 1939 fez sua última gravação para a Columbia,
acompanhada por James P. Johnson ao piano. Foi trabalhar então numa
loja de departamentos de Nova Iorque para garantir o sustento da famí-
lia. No início dos anos 50, um pesquisador interessado em trazê-la de volta
aos palcos foi informado de sua morte. Só 15 anos depois, ele descobriu
que Rosa Henderson ainda estava muito viva e organizou algumas apre-
sentações dela em concertos beneficentes. Rosa Henderson morreu final-
mente em maio de 1968 - quando o mundo pegava fogo - aos 71 anos.
O blues é também a arte dos sobreviventes. Ida Cox, por exemplo,
eficiente na arte e nos negócios, conseguiu manter uma carreira de sucesso
durante quase 40 anos. Nascida em Cedartown, Geórgia, em 1889, Ida
Prather fugiu de casa aos 14 anos com um grupo itinerante, os White and
Clark Minstrels. Durante algum tempo, ela e o marido, Adler Cox, cuida-
vam de um hotel em Macon, Geórgia, ao lado de um teatro, e hospeda-
vam cantoras famosas como Bessie Smith e Ma Rainey. Ao fugir de casa
Ida teve de se esconder no lavatório do trem, que a mãe fizera revistar de
cabo a rabo pela polícia. Quando a mãe morreu em 1920, Ida mudou-se
para Atlanta e recomeçou a carreira, do alto: cantando, acompanhada pelo
pianista Jelly Roll Morton,Jelly Rol! Blues, que se tornou o seu grande hit.
Em 1923, Ida foi a primeira cantora de blues a gravar para a Paramount
Records, sediada em Chicago, seis meses antes de Ma Rainey. De 1923 até
1929, gravou 88 canções, com músicos como a pianista Lovie Austin e o
trompetista Tommy Ladnier. Um de seus números clássicos chamava-se
Wild Women Don't Have the Blues. Um tema comum no blues, a supers-
tição, se torna uma obra-prima na interpretação que Ida fez de Fogyism,
em Chicago, 1928, acompanhada apenas de Joe 'King' Oliver (corneta),
Arthur Campbell (piano) e de um banjo desconhecido:

Why do people believe in some old sign? (bis)


You hear a hoot owl holler, some one is surely dyin'
Some will break a mirrar, cry bad luck for seven years (bis)
And if a black cat crosses them, they'll break right down
in tears.
To dream of muddy water, trouble is knockin at your doar;
(bis)
You man is sure to leave you, and never return no more

98 Roberto Muggiati
When your man comes home evil, tell you you are gettin'
old (bis)
That's a true sign he's got someone else bakin' his jelly rol/."
("Por que as pessoas acreditam neste tipo de velharia?/ Se
a coruja uiva, alguém está seguramente morrendo. /Alguns que-
bram um espelho e esperam sete anos de azar. /E se um gato
preto cruza o seu caminho, deitam logo a chorar. /Sonhar com
água suja, tem problema à sua porta. / Seu homem a está dei-
xando para nunca mais voltar. / Quando seu homem chega em
casa brabo, diz que você está ficando velha. /É sinal seguro de
que ele tem outra dona cuidando da comida dele.")

O autor deste blues era o pianista Jesse Crump, o novo marido de


da. Juntos, eles organizaram uma companhia de espetáculos com o su-
gestivo nome de Raisin' Cain. O trompetista Doe Cheatham, que fazia
arte do grupo, descreve as dificuldades da vida na estrada:

"Ida era ótima e tinha uma grande responsabilidade com


o show. Você sabe, naqueles dias você tinha de pagar o pessoal,
providenciar o transporte, cuidar para que ninguém perdesse o
trem e todo mundo chegasse aos ensaios na hora certa. A grana
era curta. E a maioria dos empresários passava a perna nos ar-
tistas. Às vezes a bilheteria era magra e então o grupo seguia para
outro teatro e a associação que contratava os shows, o TO BA,
pagava metade do dinheiro e prometia a outra metade para a
semana seguinte... e depois de um tempo você está tão a perigo
que fica todo mundo desesperado. Trabalhei em três ou quatro
espetáculos e nunca fui pago. Acabava levando apenas o troco
no fim de semana. A gente nunca recebia um salário inteiro. Mas
nada havia que os artistas pudessem fazer: era pegar o que apa-
recia e seguir em frente."

Ida atravessou com garra os anos duros da Depressão. Em 1937, fa-


do de um espetáculo em que ela participava, a revista do showbiz,
-.,;riety, escreveu: "Em Ida Cox, o grupo tem uma estrela." Aos 50 anos,
foi convidada por John Hammond para o concerto Spirituals to Swing,
Carnegie Hall de Nova Iorque, numa noite dedicada à memória de
ie Smith. Ida cantou seu grande sucesso Four Day Creep. Semanas
.., ois, o clube Café Society começou a apresentar alguns artistas do con-

es 99
certo do Carnegie. Ida Cox foi uma das convidadas. Continuou em turnês
até 1944, quando sofreu um derrame. Aposentou-se então no Tennessee.
Em 1961, John Hammond a redescobriu, após algum trabalho de inves-
tigação. Chris Albertson convenceu-a a gravar para a Riversidade em Nova
Iorque, com o saxofonista Coleman Hawkins e o trompetista Roy Eldridge.
Mesmo afastada há décadas, Ida lembrava-se das letras, de cada vírgula.
"Posso ter esquecido de todo o resto - as pessoas e as coisas que fiz na
minha vida - as letras, não." E Ida Cox voltou para casa, em Knoxville,
onde morreu de câncer em 1967.
Outra que gravou com o lendário King Oliver foi Sara Martin, das
cantoras de blues talvez a de estilo mais aproximado ao de Bessie Smith
(gravou até os mesmos temas, como Kitchen Man}. Dos registros de Sara
com Oliver, inserido na orquestra de Clarence Williams - feitos no ven-
tre da besta, Nova Iorque em 1929, o ano do crack - , destaca-se um blues
trágico falando de amor mal resolvido, carregado de pathos, Death Sting
Me Blues. É um exemplo admirável do blues clássico feminino:

I want ali you women to listen to my tale of woe (bis}


I've got consumption of the heart and I feel myself sinking
slow
Ah, my heart is aching, and the blues are ali around my
room; (bis)
Blues is like the devi!, they'll have me hellbound soon.
Blues you made me rol! and tumble, you made me weep and
sigh, Lawdy, Lawdy, Lawdy;
Blues you rol! and tumble, you made me weep and sigh;
Made me use cocaine and whiskey, but you wouldn't let me
die.
Blues, blues, blues, why did you bring trouble to me (bis)
Oh death please sting me, and take me out of my misery.
("Quero que todas vocês mulheres ouçam minha triste his-
tória / Estou com o coração destruído e estou afundando aos
poucos. /Ai, meu coração sofre e os blues invadiram o meu
quarto; / O blues é como o diabo, logo me leva para o inferno.
/ Blues me fizeram rolar e tropeçar, chorar e soluçar, oh Deus;
/ Blues me rolam e atropelam, me fazem chorar e soluçar. /Me
fizeram usar cocaína e uísque, mas não me deixaram morrer./
Blues, blues, blues, por que trouxeram o mal até mim,/ Oh, Mor-
te, por favor me apanhe e me tire da minha miséria.")

100 Roberto Muggiati


Sara Martin nasceu em Louisville, Kentucky, em 1884. Fez sucesso
-om seu primeiro disco, Sugar Blues, para a OKeh. Curiosamente, sub-
eteu-se a um teste com Thomas Edison no mesmo dia em que o inven-
:or do fonógrafo reprovou Bessie Smith. Edison rejeitou também Sara:
-No, voice bad." ("Não, voz ruim."). Mesmo com a voz ruim, Sara cati-
ou platéias por todo o país e foi uma das mais importantes blues !adies.
Em 1929, depois d·as fabulosas gravações com King Oliver, abandonou
showbiz para se dedicar ao trabalho em sua igreja. Sara Martin mor-
-eu em 1955, esquecida, aos 71 anos.
Outras lutaram mais e chegaram até à Casa Branca. Ethel Waters é
..;.rn caso particular entre as cantoras de blues. Ou melhor, foi uma gran-
- intérprete de blues durante alguns anos, mas projetou sua arte mais
ém, como cantora e atriz. Nasceu em 1896 em Chester, Pensilvânia.
-Ítima de estupro aos 12 anos, levou o trauma para o resto da vida. Foi
·=iada pela avó, que trabalhava como empregada para sustentar Ethel, sua
-iãe e duas tias alcoólatras." A própria Ethel conta:

"Eu era uma garota selvagem aos sete anos. Era má, lide-
rava a gangue da rua nos furtos e nas confusões. Naquela ida-
de já sabia tudo de sexo e da vida. Xingava melhor que qual-
quer estivador e sentia um prazer sádico em chocar as pessoas."

Ethel começou a cantar cedo. Aos cinco anos já era anunciada como
-by Star numa igreja de Filadélfia. Aos oito, cantava no vaudeville. Ca-
-se aos 13, separou-se aos 14. Trabalhou como doméstica, faxinei-
lavadora de pratos e garçonete. Aos 17 anos, estreou como cantora
.::ma festa de Halloween. Iniciando sua carreira no vaudeville, tornou-
ª primeira mulher - e a segunda pessoa - a cantar St. Louis Blues
..:.m cenário profissional. Era a canção que ficaria fortemente associa-
- a o repertório de Bessie Smith. Estilísticamente, Ethel era a antípoda
Bessie. Ela conta que, numa época em que o seu público exigia que
a masse blues, apresentando-se num programa duplo com Bessie, o
resário desta exigiu que Ethel interpretasse outro gênero de canções.
o fim da temporada, Bessie comentou para ela: "Você não é tão ruim.
' nunca imaginei que alguém pudesse fazer isto comigo em m eu pró-
território e com o meu próprio povo."
Eventualmente, Ethel - que fez sucesso em 1921 com sua grava-
- de Down Home Blues - afastou-se dos blues e passou a interpre-
- standards. Depois de My Mane He's Funny That Way, gravou Dinah,

101
que se tornou um hit. Quando os autores lhe apresentaram esta canção,
Ethel achou o andamento muito rápido e brega. Cantando com seu pró-
prio pianista, ralentou o tempo e acrescentou uma parte improvisada.
Tinha um dom fabuloso de escolher o tratamento adequado para cada
canção. Não à toa, em 1933 recebia um prêmio da Associação da Can-
ção Popular por ter introduzido no mercado 50 canções que se torna-
ram hits. O musicólogo Gene Davis a saúda como "a figura-chave de
transição entre blues rural e o pop urbano." E a cantora popular e de
jazz Lena Horne diz: "Ethel Waters foi a mãe de todas nós."
Ethel ingressou no circuito do beautiful people, conhecendo escri-
tores como Eugene O'Neill, Sinclair Lewis, Somerset Maugham e com-
positores como Cole Porter e Noel Coward. Nos anos em que gravou
para a Columbia, foi acompanhada por músicos como Benny Goodman,
Tommy Dorsey, Jack Teagarden e Gene Krupa. Ainda nos anos 30, Ethel
Waters passou a investir em sua carreira de atriz. Além de vários papéis
na Broadway, foi parar em Hollywood, onde apareceu em vários filmes.
O mais notável foi The Member of the W edding (Cruel Desengano), di-
rigido por Fred Zinnemann, baseado numa história da escritora Carson
McCullers, que virou peça na Broadway em 1950, com Ethel e Julie Har-
ris. Na verdade, a carreira cinematográfica de Ethel começara muito
antes, em 1929, quando ela trabalhou no filme O n With the Show, em
que cantou Am I Blue. Daryl Zanuck pagava a ela US$ 5.000 por mês.
O poeta negro Langston Hughes resumiu o trabalho de Ethel:

"No espaço restrito da canção popular de 32 compassos,


Waters podia comprimir todas as suas memórias de dor, triste-
za e solidão e transformar estas músicas em vinhetas inesquecí-
veis de grande intensidade dramática. "

Católica fervorosa, Ethel não tinha vícios, mas as pressões de uma


vida intensa - três casamentos sem filhos, perseguições do imposto de
renda e outras complicações - a levaram à glutonice compulsiva. A
silhueta esguia dos anos do blues foi substituída pelo corpo rotundo da
mãe negra que a conduziu a papéis estereotipados no teatro e na TV.
Seguidora fervorosa do pastor Billy Graham, recebida na Casa Branca
por Richard Nixon em 1971, Ethel Waters - minada por males como
catarata, cardiopatia, diabetes, insuficiência renal e câncer do útero -
morreu na Califórnia em 1977. Vinte anos antes, tinha dito ao Mirrar
de Los Angeles: "Não tenho m edo de morrer, querido. Na verdade, es-

102 Roberto Muggiati


pero a minha hora com prazer. Sei que o bom Senhor vai apertar nos seus
este grande e gordo pardal. "
Ao contrário da multifacetada Ethel, Victoria Spivey sempre foi uma
mulher do blues. Nasceu em Houston, Texas, em 1906. Tinha sete irmãos
=uma fanúlia musical que formou até uma orquestra. Aos oito anos, apren-
eu piano com o namorado da irmã, que tocava num bordel. Aos doze,
acompanhava os filmes mudos num cinema de Houston e depois tocava e
:.antava com bandas de jazz e blues. Aos 16 anos, Victoria foi para Saint
.i...ouis em busca de um caçador-de-talentos da gravadora OKeh, ]esse John-
on, dono de uma loja que vendia discos de blues. ]esse não estava na loja,
as ela insistiu, sentou-se ao piano e começou a tocar Black Snake Blues,
;mtando uma pequena multidão. Dois dias depois, J esse Johnson procurava
í ctoria na casa da irmã, no Missouri, assinava um contrato com ela e, cinco
depois, o disco Black Snake Blues era prensado. Vendeu 150.000 cópias
-o primeiro mês. A música era inovadora: Victoria escolhia 16 compassos
-ara o seu blues, em vez dos clássicos 12 compassos. O sucesso levou-a a
-ova Iorque, onde as gravações continuaram, ao lado de figuras como Louis
rrnstrong, Red Allen, King Oliver e Zutty Singleton. Victoria Spivey es-
-elou também num dos primeiros musicais negros de Hollywood, Halle-
·ah !, de King Vidor, em 1929. Ela enfren.t ou os anos da Depressão com
.;_j_flções de forte conteúdo social, tornou-se empresária, caçadora-de-talen-
dona de companhia e, depois de tantos anos de estrada, resolveu se
:iosentar nos anos 50. Em 1961, voltou a se apresentar no circuito fo lk
=)J°ova Iorque, onde conheceu Bob Dylan. Aliás, por iniciativa do pro-
ror John Hammond, os primeiros discos de Dylan foram gravados na
lumbia, acompanhando BigJoe Williams numa sessão que também in-
- ·u gravações com Victoria Spivey, Roosevelt Sykes e Lonnie Johnson.
Victoria Spivey produziu cerca de 1.500 canções. Às vezes ela costu-
- -va ficar sentada num carro na esquina da Rua Oito em Nova Iorque,
servando as cenas urbanas e compondo blues. Algumas de suas canções,
:no Black Snake Blues, foram escritas na hora; outras, como uma sobre
pai, um capataz nas docas de Galveston, exigiram um ano de traba-
- . Em 1962, ela fundou sua própria gravadora. Um crítico saudou suas
,ões como "poemas tonais escritos na linguagem do blues." Victoria
- vey seguiu incansável, nos anos 70, levando o blues ao rádio, à televi-
- e à Europa. Morreu em 1976 no Beekman Hospital, em Nova Iorque,
O anos, em paz com o mundo, ao qual legou uma bela obra.
Fecha o ciclo uma blueswoman fabulosa, Alberta Hunter. Sua volta aos
~os e aos discos em 1977, aos 82 anos - após 20 anos sem cantar-,

1 es 103
foi um dos retornos mais notáveis na história do showbiz. O Príncipe de Gales
era seu fã. Em Londres, ela estrelou ao lado de Paul Robeson no musical
Showboat. Em Paris, atuou com Josephine Baker nos anos de ouro do music
hall. Na Segunda Guerra, fez parceria com Noel Coward em apresentações
no front aliado e cantou para generais como Eisenhower, Montgomery e
Zhukov. Mas o forte em Alberta Hunter sempre foi o blues. Nascida em
Memphis, Tennessee, em 1895, filha de uma cozinheira de bordel e de um
bagageiro dos trens Pullrnan, Alberta fugiu de casa adolescente para can-
tar num cabaré de gângsteres em Chicago. Além de cantar, Alberta com-
punha, mesmo sem ler música. "Se uma nota soava bem ao lado de outra,
eu as deixava juntas. Depois, acrescentava uma terceira e, se a coisa dava
certo, seguia em frente." Em 1920, ela cantava no Dreamland, um clube que
ficou famoso por apresentar, na época, Louis e Lil Hardin Armstrong e King
Oliver. O salário era só de 30 dólares por semana, mas as generosas gorje-
tas dos gângsteres faziam com que nunca voltasse para casa com menos de
500 dólares na bolsa. Conhecida como a Namorada do South Side (o gueto
e bairro de música negra de Chicago), Alberta foi fazer suas primeiras gra-
vações em Nova Iorque em 1921. Com o seu modo intuitivo de compor,
fez Down Hearted Blues. A pianista Lovie Austin colocou a música na par-
titura e ganhou o crédito de co-autora. Alberta gravou a canção em 1922
para a Paramount, mas foi em 1923, na interpretação de Bessie Smith, que
o disco de Down Hearted Blues vendeu em menos de um ano quase um mi-
lhão de cópias.
Em 1927, com um breve casamento terminado (ela alega que não podia
conciliar carreira e marido), Alberta partiu de férias para a Europa. E lá
ficou por muitos anos. Na década de 30, com um repertório inteiramente
mudado, ela se especializa nos standards americanos e ingleses, como Miss
Otis Regrets, Stars Fell on Alabama e I Travei Alone. Fazendo a ponte entre
os Estados Unidos e a Europa, Alberta visita ainda o Oriente Médio e a
África, mantém um show radiofônico na NBC e estrela seu próprio pro-
grama de televisão em 1939, uma experiência da NBC durante a Feira
Mundial. Ela comenta: "Só consigo me lembrar de todas aquelas luzes
quentes. Claro, ninguém tinha aparelho de TV na época, por isso minha
estréia na televisão foi quase um segredo. "
Durante a Segunda Guerra, ela fez shows para as tropas na Alema-
nha, na China, na Birmânia e na Índia. Em 1954, quando a mãe morreu,
Alberta resolveu parar de cantar, fez um curso na Associação Cristã de
Moças de Nova Iorque e foi trabalhar como enfermeira nos 20 anos se-
guintes. Gravou esporadicamente, em 1961 (com Lovie Austin) e em 1962

104 Roberto Muggiati


com o grupo de Jimmy Archey). Alberta diz que não queria aparecer muito
orque, se divulgasse a sua idade, o hospital poderia aposentá-la. Foi a
sistência de amigos como o pianista Bobby Short que a levou a voltar
ao palco. Voltou também a compor, geralmente de madrugada. "De re-
ente, surge uma idéia e a letra me vem à cabeça. Levanto cedo na ma-
hã seguinte e vou à downtown para que alguém coloque minha música
em partitura e anote a Letra."
No seu retorno, Alberta compôs e interpretou a trilha sonora do fil-
e Remember My Name, produzido por Robert Altman em 1978; lan-
:ou quatro álbuns e apresentou-se incansavelmente em Nova Iorque e no
-esro do mundo. Cantou duas vezes em São Paulo, em 1983 e 1984. Pre-
-endia voltar ao Brasil em abril de 1985, mas morreu no final de 1984,
-OS 89 anos. Numa de suas últimas gravações, I'm Having a Good Time,
· berta Hunter confessa:" Não estou perdendo nada, estou me divertin-
;J na maior, não tente me reprimir ... Amanhã pode ser que eu morra, mas

- ie estou vivendo numa festa. "

s 105
Lightnin' Hopkins: a ferramenta e o combustível
13 .
LIGHTNIN' HOPKINS
0 RELÂMPAGO DO TEXAS

"As vidas de muitos cantores de blues mostram as cicatrizes da indi-


-"erença, da opressão e do racismo. Os tornozelos de Lightnin' Hopkins
_xibem as cicatrizes reais dos grilhões das penitenciárias rurais." Este co-
:nentário do historiador do blues Paul Oliver, um inglês, sintetiza a atmosfera
que cercou Sam Lightnin' Hopkins, um dos últimos bluesmen lendários do
-:-exas. Sam nasceu em 1912 em Centerville e desde menino aprendeu a
~mpunhar um violão. Tinha apenas oito anos quando a família pegou a
elha camionete e partiu pela estrada US75 até Buffalo, Texas, onde havia
.::m piquenique da igreja batista. Era um domingo quente e, de repente, Sam
......ordou para um experiência transcendental: num palanque, um homem
_ordo e cego fazia coisas infernais com a voz e o violão. Era Blind Lemon
t:fferson. Sam passou a tarde colado em Lemon e, finalmente, juntou cora-
-~m para tocar com ele. Lemon virou-se e berrou: "Garoto, toque, mas toque
.:...reito!" Quando percebeu que era apenas uma criança, Blind Lemon deu-
-e umas lições de graça, que Sam guardou para o resto da vida.
Suas influências iniciais foram Blind Lemon e um primo, Texas Ale-
.ander, que já em 1927 gravava para o OKeh. De certa forma, estas influên-
o acompanharam até o fim da vida. Ainda menino, Sam Hopkins pegou
estrada. Na Depressão, durante os anos 30, se viu de volta a Centerville
_ :ez o pior que podia fazer: casou. Largou o violão e sacrificou as mãos
máquinas de lavoura e nas cordas de puxar mulas, guardando cicatri-
- - para o resto da vida. A certa altura, foi trabalhar como meeiro de um
tifundiário chamado Tom Moore. Como bom cantor de blues, e comen-
;:nlsta social, relatou esta experiência em Tim Moore's Farm:

You know I got a telegram this morning


I t say your wife is dead.
I showed it to Mr. Moore, he says
Go ahead, nigger, you know you gotta plow a ridge.
That white man said it's been rainin'
Y es sir, I'm way behind.
I may let you bury that woman

es 107
On your dinner time.
("Sabe, recebi um telegrama esta manhã/ Dizendo sua mu-
lher morreu / Mostrei ao Sr. Moore, ele disse / Vá em frente,
negro, você tem que arar um sulco / Aquele branco falou que
está chovendo/ Sim, senhor, estou atrasado. /Posso deixar você
enterrar aquela mulher/ Na sua hora do jantar.")

Alguns capangas de Tom ouviram o disco, não gostaram e correram


atrás de Sam no gueto de Houston. Felizmente - para a música - não o
acharam. Sam cantava há vários anos e já tinha um certo nome na região
de Houston. Um amigo de família, "tio" Lucien, finalmente o convenceu
a dedicar-se inteiramente à música.
Sam Hopkins trabalhou por algum tempo em clubes acompanhando
seu primo cantor, o veterano Texas Alexander. Havia também um pianis-
ta chamado "Thunder" Smith. No final de 1946, Smith e Hopkins foram
para Hollywood e gravaram uma sessão para o selo Aladdin, que havia lan-
çado discos de cantoras como Helen Humes e de jazzistas como os saxofonis-
tas Lester Young e Illinois Jacquet. Nesta gravação, a dupla se autodeno-
minou de "Thunder" Smith e "Lightnin" Hopkins. Desde então, o nome
colou. Os discos da Aladdin não mudaram a face do mundo e havia pou-
cos empregos em Los Angeles na época. Em 1947, Hopkins estava de volta
a Houston. Chegou até a cantar nas esquinas. Um dia, estava sentado na
calçada tocando violão para um grupo de crianças quando um "olheiro"
o viu - e gostou. Encaminhou Lightnin' à gravadora Gold Star, de um tal
de Bill Quinn, que começara a carreira fonográfica gravando grupos cai-
piras. De repente, Quinn descobriu que os cantores de blues não só eram
mais interessantes do que os caipiras, como vendiam mais. O primeiro disco
que lançou de Lightnin' superou as expectativas. Com Short Haired Woman
de um lado e o rápido Big Mama ]ump do outro, sem publicidade e com
uma distribuição deficiente, o disco vendeu 50 mil cópias. Nos dois anos
seguintes, Ligtnin' gravou para Quinn e vendia regularmente 40 mil cópi-
as de cada disco, 80 mil de hits como Baby, Please Don't Go. Mas o ho-
mem do blues não estava acostumado a ganhar dinheiro, gastava tudo
bebendo com os amigos e voltava sempre pedindo mais para Quinn. O
empresário acabou fazendo um acerto em que o dinheiro era pago à mu-
lher de Lightnin', que controlava melhor os gastos. Então, em 1948, Light-
nin' foi para Nova Iorque e gravou 18 canções, até hoje inéditas, para outro
selo. Muitas eram cópias carbono do que ele já havia feito para a Gold Star.
Quando soube, Quinn o demitiu imediatamente ....

108 Roberto Muggiati


Lightnin' Hopkins: retrato do artista quando blueseiro
Lightnin' era, a esta altura, um dos últimos "originais" do blues. En-
quanto a maioria dos seus contemporâneos havia aderido às bandas com
guitarra elétrica, ele insistia em cantar acompanhado apenas de seu vio-
lão acústico. (Hoje, numa colocação pós-moderna, se chamaria isto de
unplugged.) Foi um dos primeiros cantores de blues a se apresentar du-
rante dez anos sem mais ninguém, só sua voz e seu violão. Sam Charters
em seu livro The Country Blues, analisa o caráter radicalmente individua-
lista do estilo de Lightnin' Hopkins:

"Seu canto era muito livre, quase desorganizado. Alguns


versos tinham doze compassos, outros treze e meio, alguns dez
compassos. Lightnin' cantava no mesmo estilo irregular e áspero
com que Lemon Jefferson e Texas Alexander haviam gravado
vinte anos antes. A guitarra rastreava a voz, acompanhando as
palavras, zunindo em batida rítmica numa corda mais grave e
de repente repicando sobre a voz entre os versos e impondo
passagens líricas dolorosamente intensas. Os próprios blues,
duros e diretos, eram algo muito diferente dos discos dos ou-
tros cantores. Lightnin' foi um dos cantores mais rudes saídos
do Sul e seu canto parecia quase primitivo quando seus discos
tocavam nos programas vespertinos, entre comerciais interminá-
veis e os vocais de estilos populares como Billy Eckstyne e Nat
King Cole."

Suas relações com as gravadoras não eram fáceis. Depois de rodar por
umas doze etiquetas durante dez anos, ele gravou em Chicago para a Mer-
cury, em 1951, um blues engajado sobre a Guerra Fria, Sad News From
Korea, e festejou a paz em 1953 num disco para a Decca, The War Is Over.
Havia uma distância enorme dos blues rurais voltados para a sobrevivên-
cia quase animal a canções filosóficas como esta de Lightnin' Hopkins:

You know the world is in a tangle, baby yeah, I feel they're


gonna start war again (bis)
Yes there's gonna be many mothers and fathers worryin',
yes there's gonna be as many girls that lose a frien'.
I got the news this mornin, right now they need a million
men (bis)
You know I been overseas, woman, po' Lightnin' don't
want to go there again.

110 Roberto Muggiati


("Você sabe que este mundo está uma confusão, mulher,
sim eu acho que vão começar a guerra de novo. /Sim, vai haver
muitas mães e pais preocupados, sim vai haver muitas garotas
perdendo um amigo. / Ouvi a notícia esta manhã, estão preci-
sando de um milhão de homens /Sabe, estive do outro lado do
mar, mulher, coitado do Lightnin', não quer mais ir para lá.")

Na década de 1950, espremido entre o rhythm & blues e o rock 'n'


:oll (e não sentia atração por nenhum dos dois), Lightnin' viu o seu espa-
.;o diminuído. Ganhava bem de direitos autorais, mas não se dava bem ·
'las apresentações ao vivo. Foi lembrado vagamente na onda do folk reviva/
....o início dos anos 60. Segundo a revista Rhythm and Blues, Lightnin' em
~9 63 "suspeitava do novo público branco que o chamava de artista ...
:_ightnin' não acha que o público vai entender o que ele está cantando e
tão faz uns números rápidos evitando aqueles que são trágicos e pun-
~ entes. Para a platéia, ele é um exótico e ele, em troco, só dá ao público
m pequena parcela do seu talento."
Lightnin' refogou outra chance importante. Em 1964, ofereceram-
-e 2.000 dólares por semana para uma turnê européia, mas ele se recu-
va a entrar num avião e preferiu tocar em Houston por 17 dólares a
oite em cervejarias, salões de sinuca e churrascarias. Além do mais, ar-
-ancava o seu sustento não da música, mas do jogo. Só em 1977, Lightnin'
_ egaria à Europa, mas por pouco tempo. Houston era o seu país e ele
irou - e ficou tocando por um punhado de dólares, percorrendo o cir-
to dos hotéis de terceira, gravando em troca de bebida. Dowling Street,
:ua principal do centro comercial negro em Houston, era a sua praia.
e esticou o seu destino até 1982. Na sua melhor fase, Sam Lightnin'
opkins gravou 190 canções. Basta ouvir uma delas para sentir o talen-
único deste individualista do blues.

111
Chester Burnett: o lobo de cara limpa
14.
H OWLIN' WOLF
0 LOBO SOLITÁRIO

Um uivo gutural estremece os alto-falantes. A guitarra elétrica entra


em cena, entortando tudo. O cantor uiva de novo, agora em falsete, e a
=aita-de-boca embarca numa frase rítmica obsessiva de cinco notas, apoia-
::ia pela guitarra. A letra começa, num clima de paranóia:

Well, somebody knockin' on my doar;


Well, somebody knockin' on my doar.
Well, l'm so worried, don't know where togo.
("Ei, tem alguém batendo à minha porta;/ Ei, tem alguém
batendo à minha porta. /Estou tão preocupado, não sei para
onde vou. ")

O som continua insistindo nas cinco notas e a letra reforça a atmos-


·e~a de perseguição:

Well, somebody called me, called me on my telephone;


Well, somebody called me, called me by my telephone.
Well, keep on callin', tell' em I'm not at home.
("Ei, alguém me chamou, me chamou no meu telefone/ Ei,
alguém me chamou, me chamou pelo meu telefone. / Podem
continuar chamando, digam que não estou em casa.")

O cantor viaja então numa frase cantarolada e a letra conclui abrup-


ente, numa solução mágica que não convece:

Well, do not worry.


Daddy is goin' to be in ...
("Chega, não se preocupe,/ Papai está vindo ... ")

Esta estranha gravação aconteceu no verão de 1951 num pequeno es-


. o de Memphis, Tennessee. Quem agenciou a sessão foi um disc-jóquei
-:al que começava a se aventurar na produção de discos: Sam Phillips.

s 113
Inicialmente, ele gravava souvenirs de todo tipo, de casamentos, festas de
aniversários, funerais e eventos cívicos. Foi assim que Sam descobriu Elvi
Presley, um caminhoneiro que entrou um dia no seu estúdio para gravar
uma canção em homenagem ao aniversário da mãe. Mas, em 1951, Sam
Phillips ainda não encontrara a sua maravilha branca com alma de negra
de um milhão de dólares. O bluesman uivante que ele levara para o estú-
dio chamava-se Howlin' Wolf e Phillips, começando a garimpar no terri-
tório da música negra, exultou:

"Quando eu o ouvi, disse; 'Esta é a minha grande chance!


É aqui que a alma do homem nunca morre. ' "

Sam Phillips descreve a maneira de cantar de Howlin' Wolf:

"Seus olhos se iluminavam e você podia ver as veias no seu


pescoço e, meu irmão, não havia nada mais, toda a sua alma se
concentrava naquela canção. Ele cantava com a danada da sua
alma ... "

O disco chamava-se Moanin' at Midnight e está para o blues assim


como Round Midnight, do pianista Thelonious Monk, está para o jazz.
No plano existencial, este blues de Howlin' Wolf transmite uma angús-
tia à altura daquela do personagem Joseph K. de O Processo, de Frank
Kafka. (Me desculpem os eruditos, mas a cultura popular, em certos ca-
sos, é coisa muito séria ... )
Muito se escreveu sobre Moanin' at Midnight. O crítico Mark A.
Humphrey, depois de analisar as contradições destes 2' 53" de música
conclui que a canção "não foi um erro. Foi uma redução conceitualmente
ousada dos blues." O próprio Howlin' Wolf tem também a sua palavra
sobre a gravação: "Nestes primeiros discos, fui eu quem falou aos caras
o que tocar - e como tocar a música. Ora, o lance dos baixos naqueles
primeiros discos é meu - aquele baixo é meu. Alguns dos números só
têm um acorde. Não há muita variação de harmonia. Isto é algo que eu
herdei da música antiga."
Humphrey alça Wolf à altura de um Braque ou Picasso nesta análise:

"Wolf tem sido chamado de primitivo, mas seu primiti-


vismo era deliberado e poderia ser comparado ao dos pintores
cubistas que, justapondo elementos 'primitiv os' de maneiras

114 Roberto Muggiari


inesperadas, criaram a arte da vanguarda. Wolf percebeu que,
com seus blues, ele estava 'desconstruindo'. Antes de reconstruir
sua música, ele precisava arrasá-la até as suas fundações."

Temido pelos músicos, adulado pela crítica, o Lobo nasceu com o


nome de Chester Arthur Burnett (em homenagem ao Presidente Chester
A . Arthur) no ano de 1910 na cidadezinha de West Point, próxima de
Aberdeen, Mississippi. Os pais trabalhavam na lavoura e Chester seria
também fazendeiro e só se tornaria músico profissional no final dos anos
40. O seu encontro com a música se deu através do bluesman Charley
Patton, companheiro de Robert Johnson, uma verdadeira fera que nunca
~ecebeu o reconhecimento que merece. Numa entrevista de 1968, Wolf
escreve a sua iniciação musical:

"Eu estava arando, arando a plantação, puxando quatro


mulas. Um homem se aproximou dedilhando o violão, chama-
va-se Charley Patton, e gostei do seu som. Sempre quis tocar
violão. Pedi que me mostrasse alguns acordes. Toda noite, de-
pois do trabalho, eu ia à casa de Charley e ele me mostrava como
tocar o violão. Acabei pegando o jeito e saí em frente sozinho.
Comecei a tocar, tudo era maravilhoso, e as pessoas gostaram
do que eu fazia. Decidi tocar e pedi a meu pai um violão. No
dia 15 de janeiro de 1928 ele me comprou um violão e eu co-
mecei a dedilhar primeiro. Então, apareceu Sonny Boy com a
gaita-de-boca - Rice Miller, seu nome verdadeiro. Casou-se com
minha irmã e me ensinou a tocar a gaita."

Foi de Charley Patton a primeira música que Wolf tocou, "uma can-
so bre amarrar o meu pônei e selar a minha égua preta" (Saddle My
ney) . Foi de Patton que Wolf tirou também clássicos do blues como
"Oonful e Red Rooster. Sua figura inspirava respeito. Com lm90 de al-
-a e 120 quilos, fazia jus aos apelidos de Buli Cow e Big Foot Chester.
o que colou mesmo foi Howlin' Wolf, derivado, segundo ele, não
-error que incutia nos oponentes, mas da mais tenra infância, quando
·ô o sentava no colo e contava histórias do lobo mau, para colocar na
a o menino que, desde cedo, era encapetado. Ao contrário dos canto-
e blues do Delta - que pegavam a estrada e corriam pelo país-,
_, -lin' Wolf alternava sua atividade musical com o trabalho na lavou-
Em 1941, depois do ataque japonês a Pearl Harbor, foi convocado pelo

115
exército e serviu em Seattle até 1945, tocando para as tropas. Não guar-
da boas lembranças da vida de caserna: "Eu não gostava do exército. Eles
nos matam com exercícios e acabei com um colapso nervoso."
O ano da grande mudança na vida de Chester foi 1948, quando já
contava 38 anos de idade. Ele decidiu mudar-se para Memphis, Tennessee,
um importante centro musical:

"Foi aí que peguei minha chance. Lá na terrinha, não po-


diam pagar bem a você. Às vezes eu trabalhava uma noite in-
teira em troca de um sanduíche de peixe e ficava muito satisfei-
to. Em Memphis, comecei realmente a progredir."

Wolf encontrou também a sua verdadeira vocação: "Sou simplesmen-


te um artista. Quando me apresento, eu canto para as pessoas. Antes de
me tornar um artista, eu cantava para mim mesmo. " Como B.B. King e
Sonny Boy Williamson, Wolf conseguiu um emprego de disc-jóquei numa
estação de Memphis, a KWEM. Foi assim que chamou a atenção do pú-
blico e acabou levado por lke Turner (sim, o Ike da dupla conjugal Ike &
Tina Turner) para o estúdio de Sam Phillips. Aconteceu então a grava-
ção lendária de Moanin' at Midnight, em agosto de 1951. Mas Sam Phi-
llips, franco-atirador da indústria fonográfica, aprontou uma grande con-
fusão. Começou a repassar as mesmas gravações de Wolf para a grava-
dora Chess de Chicago e para a RPM dos irmãos Bihari, em Los Angeles.
Do conflito, resultou uma decisão: Howlin' Wolf assinou um contrato com
a Chess e mudou-se para Chicago.
A fama do Lobo em Memphis era enorme. Segundo Rufus Thomas,
"ele atraía mais público para um clube do que qualquer outro artista que
havia passado pela cidade. Mais até do que Ray Charles". O próprio Wolf
conta: "Mudei para Chicago em 1952 ou 1953. Eu tinha um carro de
4.000 dólares e 3.900 dólares no bolso. Sou o uniquésimo (onliest) que
deixou o Sul como um cavalheiro. "
Quem conseguiu o primeiro emprego para o Lobo em Chicago foi
Muddy Waters, seu arquirrival. Pouca gente acredita nesta história. Wolf
e Muddy sempre foram considerados os maiores inimigos no mundo do
blues. No festival de Ann Arbor em 1969, Wolf prolongou o seu show
interminavelmente para prejudicar Muddy, que se apresentaria depois. Mas
Wolf confirmou numa entrevista: "É, foi assim mesm o. Procurei Muddy
porque não conhecia mais ninguém na cidade. E ele me levou aos clubes
noturnos e me ajudou a começar a carreira em Chicago."

116 Roberto Muggiati


Howlin' Wolf: o lobo com cara de lobo
Na Chess, Wolf enfrentava outra rivalidade, com o compositor e baixista
da casa Willie Dixon. Dixon escreveu alguns de seus maiores sucessos para
Howlin' Wolf, mas o impediu de tocar a gaita-de-boca. Wolf conseguiu reunir
uma banda infernal, com a bateria de Earl Philips, as guitarras de Willie
Johnson e de Hubert Sumlin, espécie de filho espiritual do Lobo que contri-
buiu para muito da vibração que marca as gravações de Wolf para a Chess.
Os anos 5 Oem Chicago e as gravações para a Chess foram a época de
ouro do Grande Lóbo. Mas, nas apresentações em palco, ele mostrava um
outro lado do seu talento e se superava como intérprete. Numa apresenta-
ção típica, Wolf costumava deitar e rolar pelo chão, esfregar uma vassou-
ra entre as pernas, simular sexo com o microfone e a gaita-de-boca, dar
cambalhotas e às vezes escalar as cortinas e de repente, quando elas pare-
ciam prestes a ceder ao seu peso, deslizar lá do alto pousando dramatica-
mente de volta ao palco. Em suas canções autobiográficas, ele tecia a len-
da do Lobo; The Wolf Is at Your Door, I'm the Wolf, Sittin' On Top of
the World. Há também temas de Willie Dixon que exaltam a exuberância
e sensualidade de Howlin' Wolf, como 300 Ponds of]oy e Back Door Man.
com a clássica definição:

I am a back door man:


Well, the men don't know.
But the little girls understand.
("Sou o homem da porta dos fundos;/ Bem, os homens não
sabem,/ Mas as garotas entendem.")

Clássica também é a sua interpretação no train blues gravado em


1956, Smokestack Lightnin':

Oh-ohh
Smokestack lightnin'
Shinin'
]ust like gold
Oh, don't you hear me cryin':
W00000-000000
W000-0000-0000
Wooooooo.

O renascimento do blues e do folk nos anos 60 não esqueceu a figu-


ra carismática de Chester Burnett. O movimento teve também reflexos do

118 Roberto Muggiati


outro lado do Atlântico. Na Inglaterra, o produtor e empresário Giorgio
Gomelsky lembra que "no início dos anos 60 havia cerca de 40 fãs de blues
em Londres que tinham colecionado alguns discos e acreditavam que o
blues iria regenerar o cenário musical agonizante. Não tínhamos acesso
a discos. Se alguém por acaso encontrasse um álbum de Howlin' Wolf,
ós ficaríamos horas sentados escutando."
Em 1964, Wolf excursiona pela Grã-Bretanha e pela Europa na turnê
o American Blues Festival. Os Rolling Stones gravam uma cover do seu
.... ittle Red Rooster no seu terceiro álbum, em 1965. No mesmo ano, os
--ones aparecem no show de rock da ABC-TV americana, Shindig, apresen-
:ando Howlin' Wolf como seu convidado especial. E ouvem o mestre re-
erentemente, enquanto ele interpreta How Many More Years na sua pri-
:neira aparição numa rede de televisão nacional. Uma verdadeira onda de
upomania se instala entre os grupos de rock britânicos e americanos, que
assam a gravar covers de Wolf: Yardbirds (Smokestack Lightning), Cream
Spoonful), Rod Stewart & Jeff Beck (l Ain't Superstitious), Electric Flag
"illing Floor) e The Doors (Back Doar Man). Em 1970, num inteligente
a.nce de marketing da Chess, Howlin' Wolf se torna o primeiro bluesman
.llilericano (os outros seriam Muddy Waters, Chuck Berry e Bo Diddley)
~gravar em Londres com roqueiros ingleses, na companhia de superstars
.:orno Eric Clapton, Steve Winwood e os Stones Bill Wyman e Charlie Watts.
A esta altura, a saúde do Lobo estava em declínio. No final dos anos
ele sofreu um ataque cardíaco. Depois, um desastre de carro em que
i jogado através do pára-brisa afetou seus rins, a ponto de precisar sub-
eter-se regularmente ao tratamento de hemodiálise. Suas "300 libras de
' egria" haviam caído para 210. Ele ainda chega a gravar três discos para
Chess, um ao vivo em 1972 e dois em estúdio, o último em 1973. To-
- do por um câncer, ainda consegue brilhar, em novembro de 1975, num
_ petáculo de blues no International Amphitheatre de Chicago, acompa-
-· ado, como sempre, pela guitarra de Hubert Sumlin. Na noite seguinte,
3.Z sua última apresentação em seu show regular no Club 1815. Em 10
::e janeiro de 1976, o Lobo descansa e é enterrado no Cemitério Oakridge,
Hillside, subúrbio de Chicago. De lá para cá, a lenda cresceu. Uma
=--árua em tamanho natural foi erguida num parque no South Side de
:!iicago. E em janeiro de 1991 a viúva de Wolf, Lillie, recebe por ele as
- menagens quando o nome de Howlin' Wolf é inscrito no Rock and Roll
alJ of Fame. Para resumir a arte do Grande Lobo, é bom lembrar o gri-
exultante de descoberta de Sam Phillips naquela tarde de v~rão de 1951
Memphis: "É aqui que a alma do homem nunca morre."

es 119
Muddy Waters: o velho blues de roupa nova
15.
M UDDY WATERS
O BRUX O DO D ELTA

The gypsy woman told my mother


Before I was born.
You got a boy chi/d comin'
He's gonna be a son-of-a-gun,
He's gonna make pretty womens
Jump and shout
Then the world is gonna know
What's this all about...
("A cigana falou a minha mãe/ Antes de eu nascer,/ 'Você
vai ter um filho homem / E ele vai ser um sucesso. / Vai fazer
mulheres bonitas / Gritarem de alegria / E então o mundo vai
saber/ O que é que está rolando'... ")

Assim como definiu Howlin' Wolf em Back Doar Man, o genial Willie
Dixon pintou o retrato perfeito de Muddy Waters na letra de Hoochie
Coochie Man. O nascimento desta canção é lenda pura: Dixon encurra-
1ou Muddy no banheiro dos homens no intervalo de uma apresentação
em Chicago e lhe ensinou a música quase à força. Hoochie Coochie caiu
~orno uma luva no estilo e na interpretação de Muddy Waters e lançou
os dois, Muddy e Willie Dixon, para a fama.
Nada mau para um garoto nascido em 1915 em Rolling Fork, M is-
issippi, e criado em Clarksdale, a cidade onde Bessie Smith morreu quan-
do ele tinha 22 anos. Seu nome verdadeiro parecia inventado, McKinley
:\.1organfield, filho de um criador de porcos, galinhas e melancias. Já aos
:rês anos, com a morte da mãe, foi para debaixo da saia da avó. O apelido
pegou cedo, porque gostava de brincar num riacho. Mas há outras versões,
da gíria de músico, de que costumava vender peixe e tocar ao mesmo tem-
po. Ele mesmo explica: "Eu tocava onde podia. Todo mundo fritava pei-
"te e se divertia à beça. Eu trabalhava a noite toda, tocando até o amanhe-
~r por cinqüenta centavos e um sanduíche. E feliz da vida!"
Como muitos cantores de blues, Muddy Waters começou na gaita-
e-boca. Só pegou no violão aos 17 anos. A esta altura, já estava casa-

lues 121
do. Quase pensou em desistir quando ouviu dois cobras, Son House e
Robert Johnson. Muddy sentia-se oprimido pela atmosfera do Sul. Em
1940, foi até St. Louis, "só para farejar o pedaço". No verão de 1941,
o caçador-de-sons Alan Lomax o descobriu numa plantação nos arredo-
res de Clarksdale e fez uma gravação com ele, que levou para os arqui-
vos da Biblioteca do Congresso em Washington: Country Blues (o títu-
lo foi dado por Lomax) era basicamente o Walking Blues de Son House,
que recomendara Muddy a Lomax. Muitas décadas depois, o pesquisa-
dor lembrava que o cantor de blues de 26 anos que ele encontrara na
plantação não tinha guitarra nem sapatos. Em 1943, aos 28 anos, Muddy
pegou um trem para Chicago e nunca mais olhou para trás. Ele não sa-
bia, mas estava fazendo nascer o rhythm & blues.
Chicago, para ele, não era lá estas coisas. Muddy trabalhava como
chofer de caminhão de dia e de noite tocava em festinhas - as house rent
parties, espécie de pagodes para pagar o aluguel de amigos - e em infer-
ninhos, sendo pago em uísque e fazendo aos poucos o seu nome. Mas es-
tava cheio de ambição:

"Eu queria ficar famoso, ser um homem de destaque. Em


Chicago, Little Walter, Jimmy Rogers e eu saíamos à procura
de outras bandas. Nosso nome era Headhunters (Caçadores de
Cabeças) e quando encontrávamos um adversário musical nós
o estraçalhávamos."

O ano de 1945 marcou o fim da guerra. Mas a guerra continuou para


Muddy Waters. Ganhou de um tio sua primeira guitarra elétrica. Um dia,
em 1946, um caçador-de-talentos da gravadora Aristocrat foi atrás dele,
o encontrou dirigindo o caminhão de carvão do tio e o levou para o estú-
dio. O selo pertencia a imigrantes poloneses, os irmãos Chess. Depois,
sensatamente, o nome da gravadora mudou para Chess e acabou setor-
nando um símbolo do novo blues que nascia em Chicago. A mudança de
nome trouxe sorte a Muddy e aos Chess. Seu primeiro sucesso, Rolling Stone,
vendeu 60 mil cópias, um autêntico hit na época para um disco "racial"
distribuído precariamente apenas nos guetos de grandes cidades como Chi-
cago, St. Louis, Memphis e no Sul. Contra tudo e contra todos, Muddy
Waters se tornava urna estrela. Num embalo autobiográfico, o blues dizia:

Well, my mother to/d my father


Just before, hmmm, I was born;

122 Roberto Muggiati


I gota boy child' s comin'
Gonna be, he's gonna be a rollin' stone
("Bem, minha mãe contou a meu pai/ Pouco antes, hmmm.
de eu nascer;/ Tenho um filho a caminho,/ Ele vai ser uma pe-
dra que rola.")

Esta canção, entre outras coisas, teria inspirado o nome da mais fa-
mosa banda de rock da Inglaterra (o guitarrista Brian Jorres, um dos fun-
dadores do grupo, era ligadíssimo em Muddy Waters e ensinou tudo a
.Ylick Jagger) . O próprio Muddy lembra que o sucesso não chegou fácil:

"Conservei meu emprego normal até ter alguns discos na


praça. Eu tocava sete noites por semana e trabalhava seis dias,
ganhando cerca de 40 dólares por semana no meu emprego. E
devia fazer uns 35 dólares por semana tocando sete noites, cin-
co dólares por noite. É bom saber destas coisas ... "

Com o sucesso, Muddy pôde largar seu emprego diário e concentrar-


e na música. Alternava sua atividade entre gravações e apresentações em
clubes noturnos. Por volta de 1957, havia cristalizado o seu som down-
ome. Na descrição do antropólogo do blues, Samuel B. Charters, "um
som down-home muito moderno, quase inteiramente eletrificado e des-
::acando um ritmo avassalador que varria tudo o que se pusesse à sua fren-
:e." Charters descreve com detalhes:

"A harmônica e a guitarra, para shows em clubes, eram


afinadas num volume ensurdecedor e, para ser ouvido acima de
toda esta zorra, o pianista tinha que usar um microfone atrás
das cordas e o contrabaixo usava um aparato elétrico ou um mi-
crofone separado. O baterista tinha um microfone para cantar,
mas geralmente não contava com um microfone para a bateria
e precisava se valer da força dos seus braços."

O blues era outro. Do lamento intimista dos primeiros tempos, trans-


- rmara-se na energia pura do rhythm & blues, uma música voltada para
tempos mais nervosos do pós-guerra. Uma influência importante na
;)(lllda de Muddy Waters foi a entrada do contrabaixista Willie Dixon em
· 954. Dixon não era um mero intérprete, mas exercia uma função políti-
.:.a. na Chess como arranjador, compositor e homem de repertório. Ele, que

ues 123
Muddy Waters: pedras que rolam não criam musgo
nunca foi uma estrela, tinha um talento incrível para fazer canções de
sucesso para estrelas como Howlin' Wolf e Muddy Waters. Seu retrato
e Muddy em Hootchie Coochie tomou emprestado o começo de Rolling
Stone, mas o mérito é todo de Dixon ao emplacar esta canção e outras
~orno ]ust Make Love to Me e I'm Ready.
Em 1958, Muddy Waters tornou-se um dos primeiros bluesmen a
~vadir a praia britânica. Ele mesmo comenta:

"Quando fui à Inglaterra pela primeira vez, eu praticamente


iniciei o país na guitarra amplificada de blues. Muitos fãs me
perguntaram por que eu não tocava o violão acústico e eu lhes
prometi trazer um na próxima ocasião, o que acabei fazendo.
Mas, na época da minha segunda visita, as bandas de blues in-
glesas estavam todas amplificadas e tonitruavam muito mais
forte do que o meu grupo!"

A apresentação de Muddy Waters no Festival de Newport de 1960


i outro divisor de águas na sua carreira. O elitista festival do jazz inicia-
.::.o em 1954 pelo pianista-empresário George Wein abrira espaço, a partir
.:e 1960, para o reviva/ do folk e do blues. A eletrizante apresentação de
uddy, eternizada em disco, ajudou a injetar uma forte dose de blues na
va linguagem do rock na América e na Inglaterra. Uma das primeiras
_ i as que os Beatles disseram à imprensa quando iniciaram sua primeira
~ê americana em 1964 foi que gostariam de conhecer Muddy Waters e
Diddley. Um repórter perguntou: "E onde é que ficam estes lugares?"
Depois de influenciar nove entre dez supergrupos ingleses dos anos
, Muddy Waters foi gravar em Londres, em 1971, com estrelas como
· ory Gallagher, Steve Winwood e Mitch Mitchell (baterista do falecido
-.:n.i Hendrix) e músicos de jazz, gravados em NY, (os trompetistas Joe
~ewman e Ernie Royal, o trombonista Garnett Brown e o saxofonista
~ don Powell). The London Muddy Waters Sessions é uma amostra fas-
ante da vitalidade do velho crocodilo do Delta, aos 56 anos de idade.
re esta experiência ele falou: "Esta garotada branca está por toda parte
. ora. Alguns até que tocam um bom blues. Tocam de montão, competem
m você na guitarra, mas não são capazes de vocalizar como o negro."
E o velho McKinley Morganfield continuou mostrando do que os
tesmen negros eram capazes. Mesmo prejudicado por um acidente de
· :ro em 1973, que o obrigava a tocar sentado, ou escorado em apoios
palco, ele seguiu tocando e cantando o que sabia. Brilhou numa de suas

es 125
últimas apresentações, no Festival de Blues de Chicago em 1981, regis-
trada para sempre em vídeo. E seu enterro, depois de ser fulminado por
um ataque do coração em 30 de abril de 1983 em Chicago, mobilizou uma
verdadeira multidão e provou, como diz a canção, que pedras que rolam
não criam musgo. A música de Muddy Waters é ouvida até hoje, com o
mesmo sabor de novidade. E assim será, por muitos e muitos anos.

126 Roberto Muggiati


16.
WILLIE DIX O N
O MAESTRO DO BLUES

Willie James Dixon não foi um grande cantor. Como instrumentista


foi um contrabaixo razoável. Mas nenhum músico de blues atingiu a sua
estatura como compositor. Mais do que compositor, foi um arranjador e
produtor excepcional, principal responsável pelo sucesso da gravadora
Chess, a ponta-de-lança do blues de Chicago.
Um pequeno histórico de suas conquistas: no início dos anos 40, com
o seu Big Three Trio, gravou Signifying Monkey, que se tornou um hit no
disco pela orquestra de Cab Calloway, com 40 mil cópias vendidas (o equiva-
lente a um milhão no mercado de hoje). Uma canção de um de seus primei-
ros grupos- os Four Jumps of Five, gravada em 1939-foi relançada nos
anos 60 por Peter, Paul & Mary com o nome de Big Boat up the River. Dixon
compôs as assinaturas musicais de dois dos maiores bluesmen da transição,
Howlin' Wolf (Back Doar Man) e Muddy Waters (Hoochie Coochie Man ),
que venderam 75 mil exemplares de saída. Teve canções gravadas por Elvis
Presley, Nina Simone, Ike e Tina Turner, Roy Buchanan. Seu Little Red Roos-
ter ajudou a fazer o nome dos Rolling Stones. Spoonful foi um veículo ideal
para a energia do supertrio Cream. I Can't Quit You ajudou a decolar o Led
Zeppelin. Outros nomes que beberam na fonte do velho Willie: Otis Redding,
Allman Brothers, Bo Diddley, Fleetwood Mac, Rod Stewart, Chuck Berry,
The Doors,John Mayall, Ten Years After, Little Walter e Little Milton, Sonny
Boy Williamson, José Feliciano, Count Basie, J ohnny Rivers, Steve Winwood
- um verdadeiro Quem É Quem do blues, rhythm & blues, rock (ameri-
cano e britânico), jazz e pop deste século.
Pouca gente sabe que o blues quase perdeu Willie Dixon para outra
arte tipicamente americana, o pugilismo. Em 1937, sob o nome de James
Dixon, ele foi um promissor peso pesado e chegou a atuar como sparring
do campeão Joe Louis. Ganhou alguns títulos (foi até campeão do Estado
de Illinois), mas, sentindo-se enganado por seu manager, Dixon teve com
ele uma divergência durante a qual "a disposição dos móveis foi ligeira-
mente perturbada." Punido pela comissão de boxe com seis meses de sus-
pensão, Dixon usou seus grandes dedos para castigar um primitivo con-
trabaixo de lata com uma corda só, presente do amigo Leonard "Baby Doo"

Blues 127
Caston, que, com seu violão, costumava fazer hora na academia de boxe
onde Dixon treinava. Caston tinha um bom faro e empurrou Willie Dixor:
para um caminho sem retorno: a carreira musical.
Na verdade, o caminho já estava traçado desde cedo. Dixon - que
nasceu em Vicksburg, Mississippi, em 1915 -tinha uma mãe, Daisy, que
falava tudo em rimas e escreveu vários livros de poemas religiosos. Já do
pai, Willie - que tinha 13 irmãos - recebeu outro tipo de influência. " Às
vezes eu o via, às vezes ele desaparecia. Meu pai era o tipo de sujeito que
chamavam de marginal. E meu padrastro também." Aos sete anos, o
menino fascinado corria pelas ruas de Vicksburg atrás de um caminhão
que conduzia a banda do pianista Little Brother Montgomery. Na ado-
lescência, Dixon aprendeu músicas nas duas melhores escolas: o blues, na
penitênciária rural; e o gospel, na igreja. Um amigo carpinteiro ensinou-
lhe harmonia e o colocou num quarteto gospel, os Union Jubilee Singers,
atração semanal num programa da rádio WQBC de Vicksburg. Além de
cantar, Willie- seguindo o talento da mãe com as palavras - começou
a adaptar para a música poemas que havia escrito anos antes. Mas os ho-
rizontes de Vicksburg eram muito estreitos para ele. Em 1936, aos 21 anos
se mandou para tentar a sorte em Chicago. Depois da breve temporada
como boxeador, foi fazer música nas ruas e botequins da Windy City com
o amigo "Baby Doo". Os dois ajudaram a formar o grupo Five Breezes
em 1939. A esta altura, Dixon já tinha um baixo de verdade, cortesia de
Jim Martin, político de Chicago que contratou o grupo para tocar em seu
clube noturno. Foi com os Breezes que Dixon gravou seus primeiros dis-
co, oito canções para a Bluebird, em novembro de 1940.
A vida começava a melhorar para Willie Dixon quando os japone-
ses aprontaram aquela confusão toda em Pearl Harbor. Franklin Roosevelt
batizou o "Dia da Infâmia" e botou os Estados Unidos na guerra. A grande
massa dos primeiros chamados - adivinhem - foram os negros. E Willie
Dixon, convocado na base da ignorância, antecipou em vinte anos a de-
sobediência civil de um Muhamed Ali e dos jovens pacifistas dos anos 60 .
Nas suas próprias palavras:

" O exército subiu no palco do Pink Poodle, em Chicago,


quando os Five Breezes tocavam, m e agarrou e me botou na
cadeia. Eu disse a eles que era um conscientious objector ("opo-
sitor consciente") e que não ia lutar por ninguém. Começaram
o meu julgamento e eu lhes disse que não achava que devia ir
para a guerra por causa das condições em que vivia o meu povo.

128 Roberto Muggiati


illie Dixon (com Ollie Crawford e Baby Doo): jogando nas onze no campo do blues
Eu não achava justo, segundo as leis do governo, por causa da
maneira como estavam tratando os negros. Eu disse que não me
sentia um cidadão, apenas um objeto."

O episódio levou até Dixon a lembrar uma frase do pai, Charlie


Dixon, sobre azar: "O único azar que você teve na vida foi quando seus
pobres avós desceram do navio que os trouxe para a América!" Um ano
de idas e vindas entre a cadeia e o tribunal e Dixon acabou se safando e
formou o Four Jumps of Five. Então, Caston o convidou para integrar o
trio Rhythm Rascals e eles partiram para uma turnê pelo teatro de guer-
ra que os levou através da Ásia, África do Norte e Europa, acompanhan-
do a cantora Alberta Hunter sob o nome de Rhythm & Blues Unit 47.
Terminada a guerra, Caston e Dixon formaram o Big Three Trio, com
o guitarrista Bernardo Dennis (substituído um ano depois por Ollie Craw-
ford). Era o tipo de grupo de harmonia vocal, na linha dos Mills Brothers
e dos Ink Spots, que renovava a linguagem da música negra. O blues era
apenas uma parte ·do repertório, que incluía temas originais e covers de
canções populares. A base do grupo eram os clubes do distrito de Chicago
conhecido como Loop, onde se apresentavam para platéias brancas. Mas
no fim da noite eles participavam das jam sessions no bairro negro, o South
Side, um caldeirão onde o blues fervilhava toda noite. Um dos locais des-
tas jams, o El Mocambo, pertencia a dois irmãos poloneses, Phil e Leonard
Chess. Dixon, que já possuía alguma experiência com gravações, sentiu que
os irmãos Chess estavam pensando em começar uma gravadora e estimu-
lou a idéia. Seu primeiro trabalho foi uma sessão com Robert Nighthwak
em 1948. Em 1951, quando os problemas conjugais de Caston levaram à
dissolução do Big Three Trio, Dixon passou a se dedicar mais a Chess. E
os irmãos Chess praticamente o alugaram. O crítico Sheldon Barris des-
creveu as funções de Dixon na Chess, entre 1952 e 1956, como "diretor
artístico/ produtor/ compositor/ músico/ caçador-de-talentos/ arranjador."
O próprio Willie conta a história à sua maneira modesta:

"Uma porção de artistas que queria fazer blues aparecia por


lá e eu tinha uma certa autoridade na Chess e poder de escolha.
Isto incluía gente como Chuck Berry e Bo Diddley. Os irmãos
Chess costumavam aceitar o que eu dizia porque, na verdade,
não entendiam nada do negócio. Mas tinham pessoas trabalhan-
do para eles que eram do ramo e foi isso que manteve a grava-
dora em ação."

130 Roberto Muggiati


Em 1954, Dixon começou a compor para dois monstros sagrados do
blues, Muddy Waters e Howling Wolf. Os dois eram velhos rivais do Sul,
muito difíceis de lidar e geralmente se queixavam de que Dixon não lhes
estava reservando as melhores composições. Willie tinha de usar jogo de
cintura para administrar a dupla. Ele mesmo explicou:

"Eu tinha de usar uma certa psicologia. Como Muddy e


Wolf achavam que eu estava lhes passando as canções inadequa-
das, eu chegava para Wolf e dizia: 'Olha só, cara, ouve esta
canção que eu fiz para Muddy. Ele vai adorar!' Com isso, Wolf
exigia a canção para ele e gravava na hora."

Em 1957, Dixon foi trabalhar para uma nova gravadora, a Cobra, do


.'.>utro lado da cidade. E logo emplacou um sucesso: I Can't Quit You, Baby,
:antada por Otis Rush. Ajudou a lançar outros artistas, como Buddy Guy
:! Magic Sam. Mas a Cobra enfrentava problemas financeiros e Dixon voltou
ara a Chess em 1959. E voltou cheio de gás. Nos anos 60, criou alguns
e seus maiores sucessos: Back Doar Man, Little Red Rooster, I Ain't Supers-
-;tious, Spoonful (todos gravados por Howlin' Wolf), You Can't ]udge a
3ook by Its Cover (Bo Diddley) e Wang Dang Doodle (Koko Taylor). Em
·evereiro de 1963, Little Walter gravou a composição de Dixon Dead Pre-
-·dents. Nada a ver com John Kennedy, que iria morrer em novembro do
-iesmo ano. Os "presidentes mortos que todo mundo ama", segunda a letra,
-o os que ornam as verdes notas do Tesouro americano - e o bluesman
..;1Illenta nunca ter visto a cor de um Cleveland, o da nota de US$ 1.000.
O blues de Willie Dixon toca em tudo que é básico na vida - amor,
xo, dinheiro, destino. Por isso, é uma linguagem universal. Em 1960,
_'lincidindo com sua volta à Chess, ele viajou pela primeira vez à Europa
-ara uma turnê com Memphis Slim. Willie comenta com humor:

"Big Bill Broonzy já freqüentava a Europa bem antes de


nós e espertamente se anunciava como o último artista do blues.
Depois que chegamos lá o público dizia para nós: 'Vocês não
podem ser artistas de blues, porque Big Bill Broonzy disse que
ele era o último cantor de blues e que não havia mais nenhum
na América... "

A partir de 1962, durante três anos, Dixon atuou como o selecionador


músicos que participariam dos American Folk Blues Festivals, uma turnê

_es 131
Willie Dixon: a insustentável leveza do blues
de três a quatro semanas de concertos produzida por uma organização
alemã. A esta altura, o rock inglês explodia e os Stones colocavam nas
paradas o Little Red Rooster de Dixon. Quando Mick Jagger & Cia. fo-
ram visitá-lo em Chicago, Dixon diz que não pode recebê-los em sua casa,
de tanta gente - fãs, imprensa, bicões - que vinha atrás dos rapazes. O
sucesso do Led Zepellin se deve, em grande parte, ao uso que fez de Dixon:
com suas covers das canções You Shook Me e I Can't Quit You, Baby e
com o plágio de You Need Love, sob o nome de Whole Lotta Love.
Em 1969, Leonard Chess morreu e, com ele, a gravadora Chess.
Dixon seguiu seu caminho formando uma banda de turnês, a Chicago Ali
Stars. Em 1970, a Columbia lançou um álbum com Willie interpretando
nove de suas mais famosas canções. Em 1977, sofrendo de diabetes, Willie
teve um pé amputado. Mesmo assim prosseguiu na luta. Neste mesmo ano,
conseguiu um acordo sobre royalties que lhe permitiu finalmente ter uma
paga justa por um dos mais criativos songbooks dos blues.
O repouso do guerreiro chegou em 1983. Com a mulher Marie e 13
filhos, Willie deixou a gélida Chicago pela ensolarada Califórnia. Repouso
elativo, é claro. Próximo dos estúdios de Hollywood, ele se viu logo muito
olicitado. Participou das trilhas de A Cor do Dinheiro e La Bamba. Em
. ez de consumir o dinheiro ganho, o engajado Willie iniciou um nova
:::ausa. Criou a Blues Heaven Foundation, uma organização não-lucrati-
a para corrigir injustiças passadas e estimular as vocações, mantendo vivos
- memória e o futuro do blues. Em 1987, o Led Zeppelin finalmente con-
-ordou em indenizar Dixon pela apropriação indevida de sua música.
De paz com a vida, Willie Dixon morreu de um ataque cardíaco pro-
ocado pelo diabetes em janeiro de 1992 em Burbank, Califórnia. Para o
terra, Dixon voltou a Chicago, onde tudo começou. A despedida foi
_ movente, como relatou O Estado de São Paulo de 7 de fevereiro de 1992:

"Chicago prestou sua última homenagem ao lendário blues-


man Willie Dixon tomando emprestada uma tradição de Nova
Orleans. Uma carruagem do tempo da Guerra Civil america-
na, puxada por cavalos, cruzou a Zona Sul de Chicago carre-
gando o esquife de Dixon, seguida de um cortejo de músicos de
blues de cabelos grisalhos que tocavam Celebrate a Wonderful
Life. A banda marcial de uma escola da cidade também fez parte
do cortejo acompanhado por uma multidão de guarda-chuvas
que subiam e desciam ao ritmo da música. Centenas de fãs, ne-
gros e brancos, de todos os cantos de uma segregada Chicago,

133
caminharam juntos no compasso do blues enquanto morado-
res da vizinhança acenavam de suas sacadas e seguravam posters
com o rosto sorridente de Dixon, (... ) Andrea Denham, funcio -
nária da Administração da Universidade de Chicago, faltou ao
serviço e fez o marido imitá-la para acompanhar o féretro. 'As-
sim podemos ser parte da história,' disse."

E a lição de humanismo de Willie Dixon fica para sempre nesta SU2


afirmação:

"Os blues são as raízes e as outras músicas são os frutos.


É bom manter as raízes vivas porque isto significa melhores fru-
tos para o futuro. O blues existirá sempre, porque o blues é a
raiz da música americana. Enquanto a música americana sobre-
viver, o blues também sobreviverá."

134 Roberto Muggiati


17 .
J OHN LEE HOOKER
0 PAI DO BOOGIE & BLUES

Ele já gravou uma trilha sonora com Miles Davis, cantou com Bob
Dylan no Village, trabalhou com John Belushi no filme Os Irmãos Caras-
de-Pau, gravou com roqueiros americanos como Johnny Winter, George
Thorogood e o Canned Heat e ingleses como .John Mayall e Eric Clapton.
Aos 74 anos, tem uma bela casa nas colinas dos arredores de San Francis-
co. Tem ainda outras casas: uma na área da baía de San Francisco, outra
em Detroit e está comprando outra no Sul da Califórnia. Na frente de sua
:asa, tem vários carros de luxo. Depois de 55 anos de música, dá-se o luxo
e só tocar quando quer; depois de muitas mulheres (eram três, mas outro
dia lembrou-se de um quarto casamento), vive uma vida simples, com ca-
:horro, guarda-costas e motorista. Ele, que sempre apreciou as mulheres
e as usou como inspiração para suas músicas, hoje se mostra um pouco cético
em relação ao casamento: "Elas querem impedir você de fazer música. Dizem
_ue querem se casar e quando você se casa elas começam a mandar em você."
Este é o retrato em miniatura de John Lee Hooker, uma lenda viva do
lues, o último grande músico da tradição do Delta do Mississippi. Nem
-udo foi assim tão fácil para ele. Nasceu em agosto de 1920 em Clarksdale,
.::dade que se celebrizou como local da morte de Bessie Smith, embora
-enham saído dali bluesmen com Hooker e Muddy Waters. Seus pais traba-
avam na lavoura, tinham 11 filhos e atuavam na igreja, o pai como pas-
- r. Hook tocou pela primeira vez em serviços na igreja, mas estava embe-
ido da tradição pagã do blues do Delta. Seu primeiro instrumento foi um
:.ibo esticado junto à porta do celeiro. Seu padrasto Will Moore costuma-
ª receber visitas de cobras do blues como Blind Lemon Jefferson, Blind
ke e Charley Patton. O próprio Hook lembra: "Comecei a tocar violão
·os 13 anos. Aprendi com meu padrasto, Willy Moore. O estilo que eu toco
-aje, ele tocava na época. Pena que ele não tenha ido adiante."
Corre 1934, a América está mergulhada na Depressão, e o garoto John
ee, de 14 anos, foge de casa para tentar a sorte em Memphis. Mais tarde
_ e explicaria: "Sabia que não conseguiria nada no Mississippi, então co-
.ecei a fazer o meu caminho para o Norte." Em Memphis, John Lee tra-
.tlhou em house parties - espécie de pagodes de blue - e em juke houses,

ues 135
botequins com música. Para sobreviver, empregou-se como lanterninha num
cinema da Beale Street, o W.C. Handy Theater, nome em homenagem ao
Pai do Blues - com uniforme vermelho e lanterna na mão, como manda-
va o figurino. Depois de três anos em Memphis, Hook foi um pouco para
o norte - Cincinnati e Knoxville, trabalhando até com grupos de gospel.
Diz ele: "Eu fazia aquelas irmãs pularem em cima dos bancos da igreja e
elas diziam: 'O garoto sabe cantar, vejam só!"'
Em 1942, John Lee chegou à Motor Town, Detroit. Trabalhou como
porteiro e depois foi parar na linha de montagem da Ford. Continuava
trabalhando à noite em bares e festas, fazendo a sua música. Tentando
chegar às gravadoras, John Lee fez um disco de demonstração e o levou
para um produtor independente chamado Beinard Besman. Era novem-
bro, fazia muito frio e Besman lembra:

"Ele usava uma sobretudo velho e era muito magro, mais


ou menos da minha idade. Seus sapatos estavam cheios de fu-
ros. Tinha um disco gravado em algum lugar, uma reprodução
horrível, chamava-se Sally Mae, um blues. Disse que queria gra-
var. Tinha um defeito de fala, também; gaguejava um pouco e
eu pensei: 'Céus, como pode um cara assim cantar? Preciso ver
isso, preciso tentar.' E disse para ele: 'Vou gravar você, mas so-
zinho, ninguém mais.' O disco que ele havia trazido tinha pia-
no e bateria, não gostei. Ele tocou para mim e achei que tinha
possibilidades, mas estava realmente perplexo."

Besman achou que gravar um bluesman acompanhando-se sozinho


ao violão era coisa meio antiquada para 1948. O público já estava se li-
gando no som mais possante das bandas de rhythm & blues. Mas sua
intuição falou mais forte e ele achou que devia gravar John Lee Hooker
sozinho. E partiu para uma solução extremamente original:

"Eu sabia que tinha de tentar algo diferente. Primeiro, am-


plificamos a guitarra. Ele tinha uma velha Stella e nenhum ampli-
ficador. Colocamos um microfone na guitarra e instalamos um
alto-falante. Era um estúdio minúsculo, com duas saletas. Colo-
camos um alto-falante num sanitário ao lado, literalmente no
vaso sanitário, e então pusemos um microfone debaixo do alto-
(alante, de modo que o som iria reverberar na água. Eu queria
um efeito de eco. Então o som voltava para um alto-falante no

136 Roberto Muggiati


estúdio, saía dele e era captado simultaneamente com a voz. Colo-
quei um tablado debaixo de Hooker para que as batidas de seus
pés ficassem mais fortes e também instalei um microfone ali."

Como a gravação de Sally Mae não ia muito bem, Besman resolveu


mudar de clima e sugeriu a Hook que tocasse um boogie. Boogie (woogie)
é um estilo pianístico derivado do blues. Um boogie tocado por um blues-
man com voz e violão é algo parecido ao boogie-woogie no aspecto rít-
mico, uma música enérgica cheia de balanço, que já se distancia do blues
dolente tradicional. Até a divisão da música em 12 compassos é às vezes
abandonada, sem que deixe de ser blues.
Boogie Chillen foi um achado. A música despontou nas paradas de
sucessos da Billboard em janeiro de 1949, subiu logo ao Nº 1 e ficou en-
rre as mais vendidas durante quase cinco meses. E acabou vendendo cen-
tenas de milhares de cópias. Nos três anos seguintes, Hooker teve mais
16 discos lançados pelo selo Sensation, de Besman, todos com excelentes
vendagens. Besman descreve o processo criativo de Hooker:

"Era iletrado. Pegava um assunto qualquer ou eu lhe suge-


ria algo e ele começava a brincar com o tema, inventando as
palavras à medida que ia cantando. Nunca tinha um plano e a
mesma canção sempre saía diferente. Ele era capaz de inventar
uma história a partir de qualquer coisa. Na verdade, é um gênio. "

Esta descrição mostra John Lee como um autêntico improvisador,


;azendo blues como se fosse um músico de jazz, atuando como um "com-
ositor instantâneo". Apesar do relativo sucesso, a vida se tornava mui-
-o competitiva e Hooker tentava arrancar dinheiro de onde podia. Assim,
gravou para selos diferentes sob vários pseudônimos, alguns até bem trans-
arentes (John Lee Booker, John Lee Cooker, Sir John Lee Hooker, Johnny
Lee), outros mais disfarçados (Birmingham Sam & His Magic Guitar, The
Boogie Man, Delta John, Johnny Williams e Texas Slim).

"Eu estava atrás da grana. Não m e importava como m e


chamassem, nem saber quem eram eles. Se me pagavam, eu to-
cava. Nunca mudei meu estilo, mas mudava meu nome. "

Apesar de ter alcançado uma certa estabilidade, o cenário musical


-ornou-se muito agressivo na segunda metade dos anos 50. As bandas de

ues 137
rhythm & blues e o rock 'n' roll começavam a tirar público dos homens do
blues. Lembra Hooker: "Nós continuávamos dando o nosso recado, mas
não acontecia nada." De repente, o céu clareou e o sol voltou a brilhar.
Estimulados pela contracultura beat, os jovens da América descobriram a
força e a pureza da arte marginal do velho blues e das canções folk . No
final dos anos 50, John Lee cantou num clube do Greenwich Village - o
Gerde's Folk City - na companhia de Bob Dylan, que em pouco se torna-
ria a grande estrela da canção de protesto nos Estados Unidos e no resto
do mundo. Hook começa também a se apresentar nos festivais america-
nos e europeus, onde é recebido com o maior carinho e respeito. Em vez
de se acomodar, aperfeiçoa cada vez mais o seu trabalho:

"Escrevo canções baseadas na vida e nas pessoas. Escrevo


sobre as pessoas, como elas vivem, o que elas enfrentam e o que
eu mesmo enfrento ... eu analiso as pessoas. A letra está lá. Eu a
puxo da minha cabeça e componho, sem papel, sem nada. Não
preciso disto, vem tudo do meu coração e da minha cabeça."

Seu segundo hit a alcançar o Nº 1 das paradas de rhythm & blues, em


19 51, foi I'm in the Mood, inspirado, estranhamente, em Glenn Miller. "Eu
ouvia o homem, quando era garoto. Ele não precisava de letra, só do mood,
da atmosfera. Gostei do título e quando começei a gravar nunca mais es-
queci, jurei que um dia ia fazer aquele número, e fazer da minha maneira."
Outro sucesso de John Lee, Boom, Boom, de 1962 - gravado pelos
Animais e por Mae West e cantado pelo próprio Hook no filme Os Ir-
mãos Caras-de-Pau - foi inspirado por uma garçonete. Conta ele:

"Eu chegava sempre atrasado no clube, tinha de tirar o


sobretudo correndo e subir ao palco e toda noite ela me censu-
rava: 'Boom, boom, você está atrasado de novo. Boom, boom,
vou metralhar você!' Eu voltava para casa e trabalhava naque-
la canção e um dia cheguei ao clube, sempre atrasado, e cantei
Boom, Boom. O público quase veio abaixo e a música foi pa-
rar nas rádios, no Top 40, AM, FM e tudo o mais. E a garçone-
te me disse: 'Você me deve esta.' E eu acabei dando crédito a
ela. Não compôs a canção, mas me deu a idéia."

Dimples, outro sucesso de Hook (dimples quer dizer "covinhas") foi


dedicado à mulher de um de seus melhores amigos. John Lee elogiou as

138 Roberto Muggiati


John Lee Hooker: um sobrevivente na noite do blues
covinhas dela e ela pediu: "Escreva uma canção sobre mim." Diz Hooker:
"A gente pega a maioria dos assuntos das mulheres, da maneira como elas
andam, falam e sorriem." Dimples também foi para as rádios e o marido
amigo de Hook, mais do que enciumado, reclamou da notoriedade súbi-
ta da mulher: "Não agüento. Agora ela pensa que é uma superstar. .. "
John Lee Hooker transforma tudo em música, até as coisas mais es-
tranhas ao blues. "Adoro baladas e não tenho vergonha de dizer que Tony
Bennett é meu favorito. Costumava tocar sem parar 1 Left My Heart in
San Francisco. Eu o ouvia cantar e aquilo me emocionava tanto, senti que
tinha de fazer a minha versão. E fiz." O resultado é Frisco Blues, grava-
do em 1963 com a colaboração do trio feminino Martha & The Vandellas.
Na época o crédito aos vocais de fundo foi omitido, porque as Vandellas
eram contratadas do selo Motown.
Hooker faz uma comparação dos múltiplos contextos em que já se
apresentou. Nos anos 50 / 60:

"Eu adorava ficar sentado com a minha guitarra tocando


blues suaves e lentos, sem fazer barulho, conversando com as
pessoas, e elas me cercavam carinhosamente naquelas coffee-
houses ... Sei que aqueles dias não voltam mais, mas sinto sau-
dades. Eu não ganhava dinheiro como ganho hoje, mas o dinhei-
ro não conta. O importante era o ambiente, as pessoas e eu gos-
tar do que fazia. "

Falando sobre os anos 80 / 90:

"Hoje todo mundo só quer dançar, o negócio é boogie, é


se agitar. E eu tenho que entrar nesta. Eu sou o único - talvez
haja um ou dois outros - capaz de fazer isto, tocar música
boogie, música de dança para jovens e velhos. Outro dia Brownie
McGhee e Sonny Terry me diziam: 'Você é o único que conse-
guiu sair das coffee-houses para a pista do Roxy. " '

A atividade de John Lee pode ter diminuído nos anos 90, mas ele
tem mostrado um incrível ecumenismo musical. Apresentou-se no Brasil
no Free Jazz Festival de 1990 e fez o maior sucesso. Participou da trilha
sonora de The Hot Spot, um film noir de Dennis Hopper, ao lado de
Miles Davis e Taj Mahal. Gravou em 1987 um clássico de Robert John-
son, Terraplane Blues, acompanhado por seu discípulo, o guitarrista Roy

140 Roberto Muggiati


Rogers. Lançou um disco em 1991, The Healer, com convidados espe-
cialíssimos como Carlos Santana, Robert Cray, Bonnie Raitt, George
Thorogood, Charlie Musselwhite e os grupos Canned Heat e Los Lobos.
No recente Blues Summitt, de B.B. King, John Lee rouba o show de gente
como Buddy Guy, Etta James, Koko Taylor e Albert Collins. Ao mes-
mo tempo, aparece em duas faixas do último álbum do introspectivo Van
Morrison, Too Long in Exile.
Na contracapa de um dos seus mais de 100 álbuns, o fotógrafo Frank
Driggs escreveu:

"] ohn Lee nunca precisou de uma banda para empolgar


uma platéia, só de si mesmo, batendo os pés e cantando no es-
tilo do blues falante cadenciado por riffs de guitarra, seja num
pequeno café ou numa grande sala de concerto."

John Lee Hooker se tornou, em 1992, a pessoa mais velha a emplacar


um sucesso (Boom, Boom) entre os 20 mais vendidos na Grã-Bretanha, onde
foi homenageado em 1994 com um programa especial de televisão. Na apre-
entação de um recente CD duplo especial da Rhino Records (The Ultimate
Collection: 1948-1990), o velho Hook faz uma declaração de princípios:

"Para vocês e para todas as pessoas deste país e deste mun-


do, eu adoro vocês e quero continuar o meu trabalho por mais
tempo que seja possível, porque eu quero manter o blues vivo
enquanto puder. já não há mais muitos dos veteranos cantan-
do por aí. E eu quero que os cantores de blues mais jovens ten-
tem e levem a música adiante."

es 141
T-Bone Walker: o mago endiabrado da guitarra
18.
T-BONE WALKER
O PAI DO RHYTHM & BLUES

Afinal, onde foi que nasceu o rhythm & blues? Nove entre dez fãs
responderão: em Chicago. Será? Nos anos 40, o êxodo de muitos sulistas
pobres não era mais para o Grande Norte, mas para o promissor Oeste.
Com a Segunda Guerra, a indústria bélica e os campos de petróleo ofere-
ciam muitos empregos na Califórnia. Os japoneses de Los Angeles foram
removidos para campos de concentração e o bairro próximo da Central
Avenue conhecido como Little Tokyo em pouco tempo passava a se cha-
mar Little Harlem. Por volta de 1950, os negros de Los Angeles soma-
vam cerca de 200.000. E haja música para essa gente! Música geralmen-
e feita por negros. Todo tipo de som rolava em LA nesta época, do revo-
lucionário bebop (até Charlie Parker deixou sua marca por lá) ao mais
rimitivo blues. Foi neste ambiente que T-Bone Walker fez o seu nome.
O nome, aliás, não era este. Ele nasceu Aaron Thibeaux Walker em
Dallas, em 1910. A música estava no sangue e o garoto dançava e passava
chapéu nas apresentações da orquestra de cordas do padrasto. Aos 12
.mos, ganhou um banjo da mãe. Foi guia de cego - e que cego!-, Blind
:..emonJefferson de quem aprendeu muita coisa. Grudou também em Hu-
die Leadbelly para melhorar o seu blues. Aos 16 anos já havia gravado
_ois discos com o nome de Oak-Cliff T-Bone. Acompanhou as cantoras
_ia Rainey e Ida Cox e exibia uma bela técnica quando aportou na Cos-
·..a Oeste em 1936. Antes disso, fez muito laboratório instrumental. Foi
uno de Chuck Richardson em Oklahoma City. (Outro aluno de Chuck,
~- adie Christian, tornou-se o criador da sintaxe moderna da guitarra de
izz.) O estilo dos dois- Walker e Christian - era muito parecido com
de um instrumento de sopro como o trompete ou o saxofone.
Não se sabe muito bem quando Walker aderiu à guitarra elétrica. Já
1932, Rickenbacker colocou à venda sua Electro Spanish Guitar, mas
- ucos exemplares foram vendidos. Por volta de 1936, quando Walker
egava a Los Angeles, o mercado oferecia a guitarra elétrica Gibson
150, conhecida como "o modelo Charlie Christian". Havia lama nas
de Watts - o gueto de LA- quando Walker começou a trabalhar
o dançarino na banda do saxofonista Big Jim Wynn. Em pouco tem-

143
po, ele cantava e tocava a guitarra, impressionando não só com o seu de-
sempenho sonoro mas com toda uma acrobacia que incluía tocar o ins-
trumento atrás de suas costas e exibir alguns passos coreográficos. Seu
virtuosismo chamou a atenção do band-leader Les Hite, que o contratou
em 1939 e foi recompensado, no ano seguinte, com uma nota na revista
de jazz downbeat, chamando Walker de "nova estrela da banda".
Por esta época tem início a transição do blues lento (que Walker sabia
tocar) para o andamento mais rápido, chamado jump, do qual ele era um
mestre. O crítico Samuel Charters escreveu que Walker

"não era um grande cantor de blues, mas um artista compe-


tente e esforçado. Fez várias apresentações na televisão nos anos
50. A cortina abria e lá estava T-Bone com um paletó de lamê
dourado empunhando uma guitarra cravejada de jóias plugada
num fio muito comprido que T-Bone cuidava para não pisar -
e tropeçar. Cantava geralmente um blues rápido, do gênero jump,
e terminava com um ritmo de dança, culminando o show ao
passar a guitarra por trás da cabeça e atingir o clímax."

Em 1947, T-Bone gravou uma canção que calou fundo na popula-


ção negra, Cal/ It Stormy Monday. A música refletia o estado de espírito
de muitos negros que lutaram nas frentes de batalha da Europa e do Pa-
cífico, tornaram-se heróis e depois voltaram para o pobre anonimato no
guetos das grandes cidades. Com sua mistura de boogie e jump no blue
tocado com guitarra elétrica, T-Bone Walker ajudou a criar o idioma do
rhythm & blues que, com algumas poucas modificações, desembocaria no
rock 'n' roll dos anos 50. Tocando a guitarra nas costas, dando camba-
lhotas, caminhando para a platéia e muitas vezes até saindo com a banda
para a rua, Walker antecipou as loucuras que, dez anos depois, fariam a
fama de músicos como Chuck Berry e Little Richard.
Walker acabou vítima do seu próprio sucesso. Em pouco tempo, o
mercado estava cheio de clones de T-Bone e a competição cada vez mais
forte. Sua gravadora, a Imperial, tentou reciclá-lo com uma banda de Nova
Orleans, usando eco em seus vocais, com ritmo de mambo e depois com
baterias mais ruidosas, mas nenhuma destas novidades teve êxito comer-
cial. Enquanto isso, Chuck Berry subia nas paradas com Sweet Little
Sixteen, uma canção que era quase um cover de um tema de Walker de
1946, Bobby Sox Blues. Quando o rock jovem, nos Estados Unidos e na
Inglaterra, começou a imitar o blues, T-Bone comentou: "Certos grupos

144 Roberto Muggiati


jovens brancos querem reencontrar exatamente o som dos discos que
ouviram, mas isso é impossível. Eu mesmo não seria capaz de tocar como
tocava em 1945. "
T-Bone Walker seguiu tocando como sabia até morrer em 1975. A
multidão que acompanhou o seu enterro foi prova de que o velho texano
marcou a ferro e fogo a história do blues.

es 145
B.B. King: canto e guitarra em close
19 .
B.B. KING
O REI DO BLUES

"Tem gente que pensa que, se você é um cantor de blues,


você tem de ser um cara sentado num banquinho olhando para
o Norte, com um boné na cabeça virado para o Sul, um cigarro
pendurado na boca para o Leste e uma garrafa de uísque aos
seus pés para o Oeste. Tua guitarra tem de ser velha e caindo
aos pedaços. Se você toca contrabaixo, ele tem de ser feito com
uma vassoura e uma banheira de lata. Mas isto não funciona
mais. Se o blues ficasse só nisso, já teria morrido. Se você é um
músico de blues, tem de preparar uma boa embalagem para
vender. Alguns puristas partiram contra mim, dizendo que me
vendi. Eu não. Estou apenas sobrevivendo."

Sobrevivendo, em termos. Quando falou isto, em 1979, Riley B.


"Blues Boy" King morava num rancho de 250 mil dólares em Las Vegas.
Sua lógica é correta. Se superstars como Mick Jagger, Eric Clapton, Jeff
Beck, Jimmy Page e outros ganharam milhões copiando a música dos
velhos bluesmen do Delta, por que um filho da terra, B.B. King, não po-
dia fazer o mesmo e defender uns trocados?
A vida - pelo menos nos primeiros 25 anos - nunca foi fácil para
este filho de Itta Bena, Mississippi, como ele mesmo define "a maior ci-
dadezinha entre Indianola e Greenwood". Seus pais trabalhavam na la-
voura e se separaram quando King tinha cinco anos. O menino ficou com
a mãe, que morreu quando ele tinha nove anos; e depois com a avó, que
morreu no ano seguinte. Durante algum tempo, ele viveu sozinho num
barraco, "ordenhando dez vacas por dia, colhendo algodão e fazendo todas
as tarefas" em troca de casa, comida e educação. Na escola, escolheu como
modelos ídolos negros tão diversos como o campeão dos pesos-pesados
-oe Louis e o grande educador W.E.B. Du Bois.
B.B. King chegou à música através da religião. Um pastor da Igreja
-antificada, cunhado de seu tio, deixou o violão sobre a cama durante
i.llil almoço dominical e King pegou o instrumento e começou a dedilhar.
() pastor o pegou em flagrante, mas, em vez de censurá-lo, ensinou-lhe

- .ues 147
três acordes. King comenta: "Quer saber de uma coisa? Estou tocando
aqueles acordes até hoje ... "
Mas as mãos de King, aos 15 anos, se ocupavam mais com a lavou-
ra. A família se mudou para uma grande plantação em Indianola e ora-
paz "picava algodão, dirigia um trator e servia de motorista para opa-
trão por 22 dólares por semana." Em 1944, aos 18 anos, King foi convo-
cado pelo exército para o exame médico em Camp Shelby. O patrão não
queria perder os seus serviços e apelou para um dispositivo - uma tal de
"dispensa ocupacional" - , alegando à junta de alistamento que King era
um trabalhador indispensável. Esperando a resposta do exército, o patrão
disse a King que ele aumentaria suas chances de não ir à guerra se seca-
sasse. King imediatamente se casou com a namorada, Martha Denton. Sua
dispensa foi concedida, como trabalhador numa atividade essencial para
o esforço de guerra. A dispensa obrigava King a ficar atrelado à lavoura
enquanto durasse a guerra. Ele se sentia praticamente um escravo. Oca-
samento também não foi um mar de rosas. "Durou seis anos", conta King.
"Os filhos daquele casamento morreram muito pequenos. Nunca tivemos
sorte com crianças."
King pediu emprestado 15 dólares ao patrão e comprou seu primeiro
violão. "Eu praticava o tempo todo aqueles três acordes e acabei apren-
dendo sozinho o blues. Nos sábados em que havia menos trabalho na
plantação, eu tocava nas esquinas de Indianola e fazia o dobro do dinhei-
ro que ganhava numa semana inteira de lavoura." O coração de Riley
King estava voltado para Memphis, 200 quilômetros ao norte de In-
dianola. A música negra que ouvia pelas estações de rádio de Memphis
lhe causava arrepios na espinha. Tentou convencer os cantores do seu
grupo, o St. John's Gospel, a deixarem Indianola em busca de fama e
fortuna. Não toparam a aventura. Ele sim. Em 1946 deixou para trás a
mulher e a fazenda e, pegando carona, chegou a Memphis apenas com
a guitarra debaixo do braço. Seu plano era ericontrar o primo Bukka
White, um bluesman de alguma reputação, mas King não tinha sequer
certeza de que Bukka vivia ainda em Memphis. Começou a procura pela
Beale Street, a grande artéria da música, imortalizada por uma canção
do Pai do Blues, W .C. Handy. Uma noite, Riley dormia num vagão de
trem; a noite seguinte, numa casa de jogo. Depois de alguns dias de an-
danças, acabou achando o primo Booker T . Washington (Bukka) White,
um excepcional músico de blues e um homem que sabia muito da vida.
Quando jovem, suspeito de um assassinato - que não cometeu - numa
birosca do Mississippi, Bukka fugiu para Chicago. Estava diante de um

148 Roberto Muggiati


microfone para gravar um disco quando assistentes de um xerife do
Mississippi apareceram e o levaram de volta para uma colônia penal,
daquelas em que os presos usavam roupas listradas e trabalhavam o dia
inteiro com bolas de ferro presas por correntes aos tornozelos.
Bukka tinha o que ensinar ao primo Riley King e começou mostran-
do que ele não era tão bom quanto pensava, que Memphis estava cheia
de músicos competitivos, vindos de todo o Sul. Durante dez meses Bukka
ensinou ao primo a arte e as artimanhas do blues. Depois disso, King voltou
à mulher e à lavoura, pagou suas dívidas ao patrão e, em 1948, tomou
de novo o rumo norte. Desta vez, chegando a Memphis, atravessou o Mis-
sissippi e seguiu para West Memphis, Arkansas. Procurou Sonny Boy
Williamson, que conhecera em Indianola. Sonny Boy estava numa enras-
cada: comprometera-se a tocar no fim de semana em dois bares ao mes-
mo tempo, para garantir pelo menos um deles. (Cancelamentos eram
comuns na época.) Mas os dois donos de bares que o contrataram man-
tiveram as datas. Sonny Boy disse a King: "Vamos ver o que você sabe
fazer." Gostou do que ouviu e o levou ao ar no programa de rádio que
tinha na estação KWEM, anunciando um novo e promissor talento e
pedindo aos ouvintes que telefonassem para a rádio, caso gostassem da
música do jovem King. Além disso, escalou King para o seu lugar num
dos compromissos do fim de semana: o que pagava menos. Fez mais:
convenceu a proprietária do saloon a beneficiar-se com a apresentação
da "nova sensação do blues" e garantiu-lhe que os telefones não paravam
de tocar na KWEM, perguntando pelo jovem guitarrista.
Foi assim que Riley B. King, aos 23 anos, conseguiu um emprego de
12 dólares por semana, mais cama e comida, no Sixteenth Street Grill de
Miss Annie, uma sala que, além da música, tinha um dancing e um cassino.
A sorte - a esta altura virando a seu favor - reservava outras sur-
presas para King. Um dia, depois de uma longa caminhada debaixo da chu-
va, da estação rodoviária de Memphis até a rádio WDIA, com a guitarra
embrulhada em papel de jornal, Riley tocou os instintos maternos da di-
retora de programação Chris Spindel: "Ele parecia tão triste, mas quando
começou a tocar nós sentimos que era especial." King foi contratado para
um programa de 15 minutos todo sábado, onde o apresentavam com "The
Beale Street Blues Boy". Os fãs simplesmente o chamavam de B.B.
Com seus novos transmissores de 50.000 watts, a WDIA se intitulava
a "Estação-Mãe dos Negros" e conseguia ser ouvida em todo o Delta do
.Mississippi, alcançando até Nova Orleans. Esta audiência privilegiada ge-
rava anúncios e, de repente, B.B. King se viu competindo com Sonny Boy

Bl ues 149
Williamson - que anunciava o fortificante Hadacol na KWEM - ao fazer
um programa de dez minutos na WDIA patrocinado por outro tônico, o
Pepticon. Blues Boy tornou-se até, então, o Pepticon Boy. As apresenta-
ções em rádio e ao vivo dispersavam-se no ar. A imortalidade estava nos
discos e B.B. King teve a sua primeira oportunidade em 1949, com o selo
Bullet, de Nashville, para o qual gravou Miss Martha King, fazendo mé-
dia com a mulher e inovando na instrumentação, com uma banda de rhythm
& blues que incluía trompete, trombone e dois saxofones. E aqui vai uma
trívia de gravadora independente: os irmão Bihari, em Los Angeles, gosta-
ram do disco e encomendaram uma gravação para o seu selo RPM, a ser
feita em Memphis por Sam Phillips, que inaugurava assim, com B.B. King,
o seu Memphis Recording Service. (Passariam depois por Sam Phillips outros
bluesmen famosos e roqueiros como Elvis Presley, Jerry Lee Lewis e Carl
Perkins.) Além do autobiográfico B.B. Blues e de Three O' Clock Blues -
seu primeiro hit, em 1950 - , King gravou She's Dynamite, que prenuncia
já o novo blues, com o pé na lama do Delta e a cabeça voltada para a fama
nos cartazes da Broadway e nas luzes de Hollywood e Las Vegas.

She carries e pearl-handled pista!.


A knife and a razor, too;
You don't tell her nothin',
She'll always tell you.
She's dynamite ... "
("Ela leva uma pistola de cabo de madrepérola/ Uma faca
e uma navalha, também; / Você não diz nada a ela, / É ela quem
sempre vai dizer a você./ Ela é dinamite ... ")

Em 1952, King emplacou outro hit, Boogie Woogie Woman, que


lembrava Barrelhouse Woman de Leroy Carr e era puxado pelo piano vi-
brante de Ike Turner.

Well, she's a boogie woogie woman, she boogies ali the time
(bis)
Well, now if she keeps on boogein', she's bound to lose her
mind.
("Ela é uma mulher do boogie woogie, faz boogie o tem-
po todo /Se continuar fazendo boogie, vai acabar perdendo a
cabeça.")

150 Roberto Muggiati


B.B. King: trocando figurinhas com Lucille
Esta foi praticamente a canção de despedida da rádio WDIA e
Memphis. A estrada - uma estrada pavimentada de ouro - chama,-2.
o Blues Boy e já por volta de 1954 ele chegou a fazer com suas apresen-
tações 480 mil dólares no ano. Dinheiro muito bem ganho: B.B. King
celebrizou-se como um verdadeiro estivador do blues, com uma média
de 300 shows por ano - e dizem que os restantes 65 dias foram passa-
dos em estúdios de gravação.
Apesar de ser um filho do Delta, seus blues eram uma música posi-
tiva, vibrante e cheia de malícia, mesmo ·quando tratavam de desencan-
tos amorosos. O que ele fazia era uma forma de rhythm & blues, que
os brancos copiaram com o nome de rock 'n' roll. E aí as coisas come-
çaram a ficar de novo difíceis para os músicos negros, mas King soube
dar a volta por cima. Em 1956, ele tocou 342 noites em lugares diferen-
tes - os chamados one-night stands. Foi numa destas apresentações, em
Twist, Arkansas, que ocorreu um estranho episódio:

"Era uma noite fria. No centro do salão ardia um imenso


tambor com querosene, para esquentar o ambiente. Dois caras
começaram a brigar - uma encrenca a respeito da cozinheira,
uma tal de Lucille. Os dois caíram sobre o fogo, que se espar-
ramou pelo salão. Duas pessoas morreram na confusão. Saí cor-
rendo, mas decidi voltar para apanhar minha guitarra. Quase
morri queimado, mas eu não podia me dar o luxo de ficar sem
ela. Por isso batizei minha guitarra de Lucille." (Quando con-
tou esta história, em 1979, B.B. King já estava na sua 15ª Lucille.)

Em 1957, B.B. King casou-se com uma universitária chamada Sue


Carol Hall, em Detroit, numa cerimônia oficiada por um pastor que era
o pai da cantora Aretha Franklin. O casamento durou nove anos, mas Sue
Carol não agüentou o ritmo de vida do marido. Lembra King:

"Ela dizia que eu devia trabalhar normalmente, ficar em


casa vendo os jogos de beisebol na TV, indo à igreja no domin-
go. Eu não conseguia me ver naquele papel e então resolvemos
nos separar. Disse que ela podia ficar com a casa - ia pegá-la,
de qualquer maneira - e disse que metade do que eu tinha era
dela, mas ela ainda me arrancou 35 mil dólares, que era tudo o
que eu tinha ... "

152 Roberto Muggiati


Em 1958, deixando de remar contra a maré do rock and roll, ele
gravou Sweet Sixteen, que chegou ao Nº 1 na parada do R & B. Quan-
do B.B. King estava acertando o passo com os roqueiros americanos, o
eixo da música deslocou-se para o calipso caribenho, para o twist e, atra-
vessando o Atlântico, para o rock britânico, que no fundo nada mais era
do que uma apropriação do velho blues do Delta. E ele acabou colabo-
rando até com um ex-Beatle, Ringo Starr, num álbum inglês, B.B. King
in London. Antes disso, marcou presença na revolução cultural do final
dos anos 60. Em 1967, com sua banda de negros e seu velho ônibus cain-
do aos pedaços, aportou em San Francisco para um concerto numa sala
chamada Fillmore:

"A sala estava cheia, de parede a parede. E o público era


inteiramente de brancos. Falei: epa, viemos ao lugar errado!'.
Mas, quando me apresentaram, o público se pôs de pé aos berros.
Eu nem tinha tocado uma nota. Estavam berrando por mim,
B.B. King. Naquele momento, chorei. E senti que a única ma-
neira de sair daquela situação era tocar. Toquei."

O Fillmore West era o lar de bandas que fizeram história em San


õ:"rancisco, do Jefferson Airplane e de Janis Joplin. A partir daquele dia
e 1967 - o Ano da Flor - , B.B. King foi adotado pelo "poder jovem".
- oda uma geração - batizada de "A Nação de Woodstock", após o
egaconcerto de 1969 - caiu sob o seu encanto. B.B. King correspon-
::.eu e juntou-se a músicos brancos como Joe Walsh, Leon Russell e Carole
( .ing (autora do milionário LP Tapestry) num disco que marcou época,
~ 1970, Indiano/a Mississippi Seeds, embalado, principalmente, pelo
=mo irresistível de sua guitarra chamada Lucille.
À beira dos 70 anos, B.B. King continua ativo. No final de 1993,
ltou ao Brasil e falou com entusiasmo de seu novo disco, com a canto-
- de jazz Diane Schuur. Um de seus últimos álbuns foi uma espécie de
uto, Blues Summit, em que ele toca com bluesmen de todas as idades,
" · es e sexos, como John Lee Hooker, Albert Collins, Buddy Guy, Koko
-lar, Ruth Brown, Lowell Fulson e Robert Cray.
Para um filho do Delta, B.B. King é capaz de expressar opiniões he-
oxas sobre o blues, como esta, numa entrevista a Manchete em 1986.

"Eu acho que a música não tem cores. O que chamam de


blues para mim é música, apenas música. Qualquer pessoa, de

153
qualquer nacionalidade, se desejar, pode tocar qualquer tipo de
música, de todas as maneiras. E acho que já vêm fazendo isso
bem. Já andei por muitos lugares. No japão, por exemplo, es-
cutei certa noite uma banda que tocava blues muito bem. Che-
guei perto e disse hello e eles responderam em japonês. Não
falavam uma palavra de inglês, mas não precisavam, para to-
car o blues. Qualquer um pode tocar. Existe música feita por
negros que não consigo ouvir, não me agrada. Não é o fato de
ser negro que fará de alguém um grande intérprete do blues."

Falou o Rei. Longa vida para B.B. King!

154 Roberto Muggiati


20.
JAZZ: DO BOOGIE AO BOP

O contrabaixista de Nova Orleans Pops Poster conta em sua auto-


biografia: "Por volta de 1900 havia três tipos de bandas em Nova Orleans.
Havia bandas que tocavam ragtime, outras que tocavam música suave e
outras que só tocavam blues." Blues e jazz corriam em linhas paralelas,
-orno os trilhos de uma ferrovia. Do lado do blues, de origem rural, esta-
·am os songsters, os cantores; do lado do jazz vinham os musicianers, os
strumentistas. Campo e cidade se opunham: os músicos rurais, sem
-esso aos instrumentos (com exceção do violão, da gaita e de instrumentos
.:e fabricação doméstica), concentravam-se no canto; os músicos da ci-
.iade, com grande disponibilidade de instrumentos de sopro, deixavam o
.:anto de lado e criavam, a partir das brass bands, o estilo de Nova Orleans,
a eado na improvisação coletiva. O formato clássico incluía corneta (ou
::ompete), clarineta e trombone - entretecendo polifonicamente a me-
·a - , apoiados por banjo, tuba e tambores. Estas primeiras jazz-bands
~avam eventualmente nos bares da área entre as ruas Rampart e Perdi-
-J, mas sua principal atividade era em bailes nos clubes e fraternidades,
..,.., concertos nos parques Lincoln e Johnson, em funerais (costume que
a da África: um homem devia se despedir da vida com o máximo de
· mpa e riqueza), em piqueniques às margens do lago Pontchartrain e pelas
da cidade, desfilando em coloridas paradas ou fazendo propaganda
alto de carroções puxados a cavalo. Unidades essencialmente móveis,
:as bandas privilegiavam instrumentos portáteis, daí a preferência pela
a (exercendo o papel do contrabaixo) e dos tambores (em vez da pe-
bateria) . Daí, também, a ausência do piano.
Instrumento sedentário, o piano em Nova Orleans ficou circunscrito
bordéis de Storyville - o Bairro da Luz Vermelha - , onde era rei.
1 _ Roll Morton, o excêntrico que se intitulava o pai do jazz e do blues,

--a:

"Nova Orleans era o lugar onde havia os maiores pianis-


tas do país. Tínhamos espanhóis, negros, brancos, franceses,
:imericanos, eles vinham de todos os cantos porque ali havia mais

155
emprego para os pianistas do que em qualquer outra parte do
mundo. Os bordéis de Storyville precisavam de 'professores' e
nós os tínhamos, em muitos estilos diferentes ... "

Um destes estilos, que começou a evoluir no Sul, fundia o piano de


jazz com o blues para criar um gênero totalmente novo, o boogie-woogie.
Ironicamente, foi uma banda branca de Nova Orleans - e já com o
piano integrado à jazz-band - que gravou o primeiro disco de jazz, em
26 de fevereiro de 1917, no estúdio da Victor em Nova Iorque. Era a Ori-
ginal Dixieland Jazz Band, formada por corneta, clarineta, trombone, pia-
no e bateria. Outra curiosidade: este primeiro disco de jazz era um blues,
Livery Stable Blues. (Do outro lado, vinha Dixieland Jazz Band One-Step.)
A partir dos anos 20, com a ascensão das grandes damas do blues, os
melhores instrumentistas de jazz foram recrutados para acompanhar as divas
dos race records. Bessie Smith, que sabia escolher, convocou o pianista e
arranjador Fletcher Henderson, Louis Armstrong (que ainda tocava cor-
neta), o saxofonista Coleman Hawkins {tocando clarineta), e encerrou sua
carreira em discos em 1933 com o jovem clarinetista Benny Goodman. Ma
Rainey também gravou com Armstrong, Henderson e Hawkins. Sidney
Bechet, o mago do sax soprano, acompanhou Bessie Smith e Trixie Smith.
Joe 'King' Oliver, o mestre de Louis Armstrong, deixou solos que são ver-
dadeiras obras-primas acompanhando Ida Cox e Sara Martin. Preencher
as pausas - os breaks instrumentais em contracanto com as grandes vo-
calistas do blues - foi uma verdadeira escola para os solistas de jazz. Em
contato direto com o blues, eles reforçaram ainda mais a característica que
separa os músicos de jazz dos instrumentistas de conservatório, a qualida-
de marcadamente vocal das suas interpretações.
Sidney Bechet, em excursão pela Europa com a orquestra de Will
Marion Cook, em 1919, foi convidado a tocar para o rei no Palácio de
Buckingham. "O rei era George V e havia a cara dele em toda nota ou
moeda e toda vez que eu comprava alguma coisa eu achava engraçado
ver no dinheiro a cara de um sujeito que eu conhecia." A Família Real
acompanhou o espetáculo batendo os pés para marcar o ritmo. Havia umas
mil pessoas naquela Command Performance. Perguntado sobre o que mais
gostou, o Rei confessou que foi Characteristic Blues, uma das especiali-
dades de Bechet na orquestra de Will Marion Cook.
Já em meados dos anos 20, o jazz começou a se complicar - em al-
guns casos, no bom sentido. Em setembro de 1926, Jelly Roll Morton iniciou
em Chicago as suas famosas gravações com os Red Hot Peppers, que se

156 Roberto Muggiati


estenderiam, nesta cidade,-até junho de 1927. Quase metade das gravações
leva a chancela do blues: Sidewalk Blues, Original Jelly Rol/ Blues, Cannon
Bali Blues, Wild Man Blues, Beale Street Blues, Wolverine Blues. Mantendo
ainda a formação clássica do jazz de Nova Orleans, Morton atuava não
só como solista, mas se impunha como arranjador e começava a afastar-
se do esquema de improvisação coletiva. Com um espírito de organização
mais rigoroso, disciplinava os temas e tornava as partes orquestrais mais
"compostas", sem perder a espontaneidade do jazz, e criando, ao mesmo
tempo, uma versão instrumental do blues.
Também a partir de 1926, com uma orquestra ampliada (os metais
e as palhetas agora se apresentavam em naipes), Duke Ellington fazia suas
primeiras gravações, que incluíam Immigration Blues, de sua autoria,
osTishomingo Blues e Yellow Dog Blues, de W.C. Handy, que revelava
uma nova estrela no sax soprano, Johnny Hodges. Ellington, que criou o
jungle style e se celebrizou pelos seus metais em surdina wah-wah (imita-
ções do grito humano pelos trompetes e trombones), marcou os anos de
ouro das big bands negras que atraíam para as noitadas nas salas de bai-
le e teatros do Harlem os aristocratas e intelectuais brancos mais sofisti-
cados da época. Afinal, não à toa F. Scott Fitzgerald batizou os anos 20
de "A Era do Jazz" (esqueceu apenas de acrescentar "& do Blues" ... ).
Mas o jazz, a partir dos anos 30, não era mais exclusividade de Nova
Iorque e Chicago. Um nova-iorquino, William 'Count' Basie- que aprendeu
órgão e piano com Fats Waller tocando nos poços de orquestra de cinemas
durante e época dos filmes mudos-, teve que ir até Kansas City para se tornar
conhecido. Extraviado durante uma excursão com a orquestra liderada por
Bennie Moten - que morreu de repente na mesa de operação durante uma
cirurgia do apêndice-Basie herdou a orquestra e traduziu o blues para a
linguagem da big band. Kansas City (Missouri), importante entroncamen-
to ferroviário, celebrizou-se pelos jumps (blues orquestrais rápidos) e pe-
las jams - as lendárias jam sessions que varavam a noite. Conta Sam Price:

"]am sessions em Kansas City? Lembro que certa vez, no


Subway Club da Rua 18, deixei uma jam às dez da noite, fui até
em casa tomar um banho e uma cerveja e trocar de roupa. Quan-
do voltei ao clube era um.a hora da manhã e ainda estavam to-
cando a mesma música. "

Os duelos musicais entre músicos de K.C. e jazzistas visitantes en-


rraram para a história. A pianista Mary Lou Williams recorda uma noite

Blues 157
especial em 1934, quando a acordaram no meio da madrugada batendo
à sua janela. Era o saxofonista Ben Webster convocando-a para tocar numa
jam session em que todos os pianistas já haviam desmaiado. Coleman
Hawkins desafiava os tenores locais - ases como Webster, Hershel Evans
e Lester Young. Os músicos improvisavam sobre standards e sobre blues
e Mary Lou conta que, quando chegou ao clube, viu Coleman Hawkins

"de camiseta, duelando. Parecia ter topado com um obs-


táculo inesperado. Sua banda tinha um compromisso em St.
Louis, mas Hawk continuava soprando. Finalmente desistiu,
sentou-se direto ao volante do seu carro e pegou a estrada. Ti-
nha comprado um Cadillac novinho em folha e fundiu a máquina
tentando chegar a tempo em St. Louis."

O jazz de Kansas City era todo energia e os blues, brigando com o volu-
me de som das big bands, tiveram que se tornar mais resistentes. Os canto-
res competiam com os instrumentos não só em volume de som mas até em
capacidade de improvisação. Nasceu daí a tradição dos blues shouters -
os berradores de blues - , que cultivavam um canto mais rápido, usando a
letra mais como uma base sonora do que como depoimento poético. Frases
como" I !ove my baby, I'm aliar ifI say don't" e "Nobody !oves me, nobody
seems to care" aparecem com freqüência nos blues de K.C., tratadas quase
como riffs instrumentais. As interpretações de St. Louis Blues à maneira clás-
sica por Bessie Smith e à moda de K.C. por (Big) Joe Turner evidenciam o
abismo entre as duas escolas. Além de Turner, outro famoso shouter foi
Jimmy Rushing. Durante 15 anos, a partir de 1935, Mr. Five by Five, esta
figura imensa de 115 quilos, cantou na orquestra de Count Basie, fazendo
praticamente o papel de instrumento solista, com blues rítmicos como este:

Don't the moon look lonesome shinin' through the trees


(bis)
Don't your house look lonesome when your baby packs her
trunk to leave.
("Não parece solitária a lua brilhando por entre as árvo-
res? /Não parece tua casa solitária quando tua mulher faz as
malas e vai embora ... ?")

Um continuador da tradição dos blues shouters na tradição de Kansas


City, com uma roupagem mais moderna, foi Joe Williams, que se tornou

158 Roberto Muggiati


o vocalista da banda de Count Basie nos anos 50 e gravou com ele o su-
cesso Everyday (l Have the Blues), um blues de um tal de Peter Chatman,
que se tornou conhecido como Memphis Slim, participou das primeiras
turnês de bluesmen na Europa a partir de 1960 e acabou se radicando em
Paris, onde morreu em 1988. Everyday, na voz de Joe Williams acompa-
nhado pela grande orquestra de Count Basie, é um dos mais belos mo-
mentos na história do blues.
Ainda Kansas City: foi lá que nasceu em 1920 um garoto negro,
Charles Christopher Parker, abandonado pelo pai, criado por uma mãe
pobre que lhe comprou por 45 dólares um saxofone surrado a partir do
qual cresceu o gênio do jazz moderno. Outra coincidência ligando o jazz
ao blues: uma das primeiras composições de Charlie Parker, com a or-
questra de Kansas City de Jay McShann, foi um blues, Hootie Blues, gra-
vada em 1941.
Além de tocar os blues como ninguém - e dar-lhes uma nova roupa-
gem - , Charlie Parker criava novas e complexas músicas a partir de can-
ções aparentemente banais como os standards. De certa forma, estraçalhava
as melodias brancas com o seu revolucionário bebop. Seus sons, aparen-
temente caóticos, obedeciam a uma lógica implacável. Ao contrário de sua
arte, sua vida foi só confusão. O envolvimento com drogas, os excessos com
comida, bebida e sexo, o relacionamento complicado com as mulheres, os
colegas e os empresários - tudo isso o levou a uma morte prematura, em
1955, antes de completar 35 anos. Mas o que fez em 18 anos de carreira
e quase 15 anos de gravações bastou para mudar toda a história do jazz.
E, como herança, Charlie Parker deixou uma interpretação de uma beleza
cristalina, Parker's Mood, uma prova viva de que o blues -vocal ou ins-
trumental, antigo ou moderno - é eterno.
Dizzy Gillespie, o trompetista cúmplice de Charlie Parker na revo-
lução do bop, comenta que as pessoas o olhavam de cara feia quando ele
tocava blues. Na época, o blues parecia retrógrado em relação ao bop.
Dizzy reagia: "Cara, isto é minha música, é minha herança!" Segundo ele,
os músicos do bop queriam mostrar seu virtuosismo. "Por que tocar uma
nota num compasso, se você podia tocar mil? Estes sujeitos esqueciam que
Charlie Parker personificava o idioma do blues. Quando ele tocava o blues,
era realmente um blueseiro."
John Lewis, o pianista, formado em antropologia, que acompanha
Charlie no pungente Parker's Mood, projetou o blues numa nova dimen-
ão. Pioneiro da chamada Third Stream Music, ele fundiu o jazz com o
clássico e o blues com Bach através do seu Modem Jazz Quartet (piano I

Bl ues 159
vibrafone /baixo / bateria), que abriu toda uma nova avenida para oca-
samento do jazz com o barroco através de grupos com os Swingle Singers
e do pianista Claude Bolling, autor das Suítes para Jazz-Piano Trio e Flauta
(com Jean-Pierre Rampal); e Violão (com Alexandre Lagoya); e Violino
(com Pinchas Zuckerman).
Discípulo de Parker nos anos 40, o trompetista Miles Davis virou o
bop do avesso e soube adaptar o blues a um contexto introspectivo; aliás,
o próprio Parker antecipara esta tendência em seu Cool Blues. Miles Davis
dizia em 1957:

"Você não aprende a tocar o blues. Você simplesmente toca.


Eu nem mesmo chego a pensar em harmonia. A coisa flui natu-
ralmente. Você aprende onde deve colocar as notas para que elas
soem direito. Você não sai em busca de um acorde esquisito. Eu
costumava modificar as coisas porque queria ouvi-las - pro-
gressões alternativas e macetes vanguardistas. Agora meu gos-
to melhorou ... "

O saxofonista John Coltrane, discípulo de Miles Davis nos anos 50,


também guardava um profundo respeito pelos blues. Em 1960, quando
já iniciava sua fase vanguardista, beirando o free jazz, Coltrane gravou
um álbum só de blues, The Legend Plays the Blues. Não eram blues tra-
dicionais, mas cinco originais de Trane e um do baterista Elvin Jones.
Poucos lembram que Coltrane, no começo dos anos 50, tocava em ban-
das de rhythm & blues Filadélfia. O fato de lançar um álbum de blues
na mesma época em que grava sua revolucionária versão ao sax sopra-
no de My Favourite Things deixa os críticos perplexos. Um quarto de sé-
culo depois, um intelectual francês, Alain Gerber, escreve um livro (Le
Cas Coltrane) em que gasta 40 páginas, citando Barthes e Lacan, para
investigar o contra-senso do blues em Coltrane e estabelecer entre ele e
Sidney Bechet (uma das faixas de Coltrane era Blues to Bechet) um vín-
culo equacionado segundo a teoria nietzschiana do Eterno Retorno ...
Bullshit! (frescura!}, diria a tudo isso Charles Mingus, o contra-
baixista que resolveu botar a casa em ordem nos anos 50, fazendo uma
releitura do bop à luz do jazz orquestral de Jelly Roll Morton e Duke
Ellington. Os blues dominam toda a obra de Mingus, em títulos de com-
posições (Mingus Blues, Noddin'Ya Head Blues, Non-Sectarian Blues,
No Private Income Blues) e em títulos de álbuns (Blues and Roots, Three
or Four Shades of Blues) ou de trilhas sonoras (Blues for the Jung/e). O

160 Roberto Muggiati


JOHN COLTRANE: the legend

John Coltrane: vanguarda com gosto de blues


jovem trompetista Wynton Marsalis, nascido em 1961 em Nova Orleans.
deu continuidade à linhagem Jelly Roll-Ellington-Mingus, a de um jazz
que nem sempre é livremente improvisado, mas dá atenção também a um
sentido de disciplina e organização, preocupando-se com a orquestraçãc
e os esquemas tonais. Por estar próximo das raízes - mas ter um dis-
tanciamento que nem Jelly Roll ou Ellington tiveram-, Marsalis fez uma
verdadeira releitura do jazz tradicional e do blues na sua trilogia Sou
Gestures in Southern Blue e, mais recentemente, do gospel e dos spiritual
no CD duplo ln this House On this Morning.
Thelonious Sphere Monk, o grande excêntrico do jazz moderno, foi
capa da revista Time em 1964. Time dizia que

"sua obra de 57 composições é um auto-retrato diabólico


e espirituoso, uma série de instantâneos despojados de sua vida
em Nova Iorque. Métricas cambiantes, harmonias únicas e acor-
des exóticos criam o efeito de uma conversação desesperada
numa outra língua, um ataque de riso embriagado, um grito num
parque no meio da noite."

Monk, pianista e compositor, fez um corte vertical na história do


jazz e criou sua obra "moderna" a partir de matéria-prima aparentemente
simples e tradicional, como as canções gospel, o piano stride, os standards
e, é claro, os blues.
Neste pacote de estilos pianísticos derivados do blues destaca-se o
boogie-woogie. Começou como uma espécie de adaptação do blues rural
pelos pianistas negros das grandes cidades. O violão e o banjo preenchiam
os breaks nos blues vocais e estabeleciam uma espécie de diálogo com o
canto. O piano do boogie tocava mais rápido, com uma batida mais for-
te, e geralmente abolia os vocais. O nome do estilo veio de uma compo-
sição de Pinetop Smith, Pinetop's Boogie-Woogie, de 1928. Os dicioná-
rios de gíria dão à palavra boogie isolada o sentido de se mexer, sacudir,
rebolar, fazer sexo. Boogie-woogie vem associado à música de jazz, swing
ou jive. Quer dizer também "divertir-se intensamente" . O boogie-woogie
seguia aproximadamente a mesma estrutura do blues. Críticos e historia-
dores ainda não deram a devida importância ao papel fundamental do
boogie-woogie na explosão de dois dos maiores movimentos musicais do
século: o das grandes orquestras da Era do Swing, durante os anos 40, e
o do rock 'n' roll, nos anos 50. Durante a Segunda Guerra, o crítico e
produtor John Hammond- descobridor de Count Basie, Billie Holiday

162 Roberto Muggiati


Charlie Mingus: jazz com blues & raízes
e Benny Goodman - empreendeu uma verdadeira cruzada para resgatar
a memória do boogie-woogie. Foi encontrar o pianista Meade Lux Lewis,
um dos mestres desta escola, lavando carros em Chicago, e o trouxe de
volta aos palcos, organizando shows especiais no Café Society de Nova
Iorque. Hammond juntou Lewis a dois outros grandes intérpretes do
boogie, Pete Johnson e Albert Ammons, que costumavam gravar a qua-
tro mãos, e produziu gravações memoráveis com três pianos. Os discos e
as apresentações detonaram um verdadeiro boogie-boom. Era comum ou-
vir adolescentes nos anos 40 martelando pianos em festas e as big bands
sentiram necessidade de atualizar seu repertório com boogies orquestrais,
como fez Tommy Dorsey, adaptando para sua banda o tema Boogie-
Woogie a partir de composições de Pinetop Smith. A fusão do rhythm and
blues e de suas guitarras elétricas com o ritmo irresistível do boogie-woogie
resultou, no início dos anos 50, no rock 'n' roll - e o resto é História.

164 Roberto Muggiati


21.
DO RHYTHM & BLUES AO ROCK 'N' ROLL

Os negros foram para a guerra como os brancos e trabalharam nas


fábricas como os brancos. Terminada a guerra, as coisas pareciam vol-
tar à antiga normalidade nos Estados Unidos. Mas nada seria como an-
tes. Já em 1945, um hit surpreendia as gravadoras e abria seus ouvidos
para o rhythm & blues, que ainda não tinha este nome. Era I Wonder,
de um pianista/ vocalista de Nashville, Tennessee, Cecil Gant. Pratica-
mente desconhecido, ele só começou a gravar ao final da guerra, quase
com 30 anos. Gant chamou a atenção pela primeira vez cantando e to-
cando piano de improviso num palanque de venda de bônus de guerra.
Uma firma de Oakland, na Califórnia, o contratou para fazer propagan-
da, apelidando-o de "The G.I. Sing-Sation", algo como o Soldado Sen-
sação, fazendo trocadilho ente " sensação" e "canção". A fórmula de
Gant misturava a vibração rítmica do boogie-woogie e do jump com a
melodia sentimental do blues-balada.

I wonder
My little darlin'
Where can you be
Again tonight
While the moon
Is shinin' bright
I wonder.
("Eu me pergunto/ Minha querida/ Onde está você/ De
novo nesta noite/ Enquanto a Lua/ Brilha como nunca,/ Eu
me pergunto.")

I Wonder não atingiu apenas o público negro, mas também teve


sucesso em áreas brancas. Por esta época, o mercado de discos ainda
rotulava a música negra de race music, expressão politicamente incor-
retíssima. Para dourar a pílula, gravadoras começaram a usar eufemis-
mos como ebony (MGM), sepia (Decca e Capital) e rhythm & blues
(RCA Victor). Em junho de 1949 a revista especializada Billboard pas-

Blues 165
sou a empregar o termo da RCA e o estilo ficou conhecido, daí em diante,
como rhythm & blues.
O rhythm & blues na verdade era uma forma de blues urbano mais
rápido, usando guitarras e eventualmente baixos eletrificados. Abria tam-
bém sua instrumentação para saxofones estridentes e roucos, imitando
gritos e - contrariando a índole melódica do instrumento - ajudando a
marcar o ritmo frenético da nova música.
O nome rock 'n' rol/ - que definiu o som mais marcante do século
- veio da letra de um velho blues de 1922, regravado depois da guerra
por Big Joe Turner: "My baby she rocks me with a steady rol!."
Quem batizou o novo estilo em 1951 foi Alan Freed, um admirador
ferrenho de Beethoven e Wagner que produzia um programa noturno de
música clássica para uma rádio de Cleveland, Ohio. Um dia, um amigo o
levou quase à força para visitar uma loja de discos freqüentada pela juven-
tude local. Freed teve um verdadeiro choque cultural quando viu jovens
casais dançando energicamente ao som de uma música que ele não só sempre
ouvira mal, como até ignorara: o rhythm & blues.

ccOuvi os saxofones de Red Prysock e Big A{ Sears. Ouvi


o blues cantado e o toque de piano de Ivory Joe Hunter. Fiquei
pensando. Pensei a semana toda. E então procurei o diretor da
rádio e passei uma cantada nele para que me deixasse transmi-
tir, depois do meu programa de música clássica, uma 'festinha
de rock 'n' rol!'."

Com o pseudônimo de Moondog, Alan Freed começou a produzir o


primeiro programa dedicado à nova música. A repercussão de suas Moon-
dog's rock 'n' rol! parties fez surgir novos programas e novos disc-jóqueis
em rádios de todo o país. Em três anos, o rock 'n' rol/ tomava conta da Amé-
rica - e partia para a conquista do mundo. Ironicamente, Alan Freed aca-
bou envolvido no famoso Escândalo da Payola (referência ao "jabá" que
as gravadoras davam aos DJs para que programassem os seus discos nas
rádios) e morreu pobre e desempregado em 1965, aos 43 anos. Uma histó-
ria que bem merecia um blues ...
Em sua edição de 15 de março de 1952, a revista Billboard comentava:

ccAté certa época, havia um grande abismo separando, de


um lado, o sofisticado blues da cidade grande e as novidades do
rock para os mercados do Norte e, do outro, os blues rurais e

166 Roberto Muggiati


do Delta que eram populares nas regiões do Sul. Gradualmen-
te, as duas formas se entrelaçaram e a canção do blues rural,
agora apresentada em arranjos que atendem tanto aos gostos do
Norte como do Sul, vêm aparecendo em discos de todas as eti-
quetas der & b. (... ) Alguns artistas até há pouco exclusivos do
meio rural vêm alcançando popularidade ultimamente, entre eles
Howlin' Wolf, B.B. King, Muddy Waters e outros (expoentes
do blues de bar)."

Foi do blues que veio a primeira canção do rock 'n' roll a vender um
milhão de discos. Todos pensam que foi Rock Around the Clock, por Bill
Haley & His Comets. Haley, um branco de Detroit, começou tocando
música country. Em 1948, já gravava com um grupo chamado Four Aces
of Western Swing. Em 1949, mudava o nome da banda para The Saddle-
men. Em 1952, deu uma guinada: voltou-se para o rhythm & blues e
batizou o grupo de Bill Haley & His Comets, uma irreverente alusão ao
cometa Halley. Apesar do visual caucasiano, dos ternos bem-comporta-
dos e gravatinhas-borboleta e do pega-rapaz nos cabelos louros do líder,
o grupo incendiou o público jovem. No dia 12 de abril de 1954, Haley e
seus rapazes entraram no estúdio Pythian Temple da Decca, em Nova
Iorque, para fazer uma gravação histórica: (We're Gonna) Rock Around
the Clock. (Nada de tocar e dançar em volta de algum hipotético relógio,
como querem muitos tradutores de filmes dublados para a TV; a expres-
são idiomática "around the clock" quer dizer "sem parar".) O disco ven-
deu de saída 75 mil cópias. Mas o grand hit surgiria na gravação seguin-
te dos Comets, em 7 de junho. Haley escolheu um blues-novidade grava-
do naquele mesmo ano por Big Joe Turner, Shake, Rattle and Roll. O
crítico Charlie Gillett analisa:

"Para o rock 'n' roll, os blues shouters de orquestras eram


geralmente técnicos demais (carecendo por isso daquele som
doméstico que o rock requeria) e também adultos demais em suas
preocupações e referências. O contexto sexual de suas canções
precisava ser mudado - mas isso podia ser manipulado, como
demonstrou Bill Haley com o seu tratamento de Shake, Rattle
and Roll, de Big ]oe Turner."

Shake, Rattle and Rol! por Bill Haley & His Comets ficou 12 sema-
na entre os Top 20 (20 mais vendidos) e tornou-se o primeiro disco de

Blues 167
rock 'n' roll a vender um milhão de cópias. (Rock Around the Clock vol-
tou à cena em 1955, ao figurar como carro-chefe da trilha sonora do fil-
me Sementes da Violência, e acabaria vendendo mais de 20 milhões de
cópias.) Uma das influências importantes da música de Bill Haley veio de
outra vertente do blues: o jump, também conhecido como jive ou ainda
jump and jive ou shuffle. Curiosamente, como o termo " jazz", "jive" e
jump também significavam, na gíria negra, "fazer sexo" .
Se o padrinho do jump é Cab Calloway, o pai é Louis Thomas Jordan,
nascido em 1908 numa família de músicos do Arkansas. Cantando e to-
cando clarineta e saxofone, Jordan começou garoto como sapateador nos
Rabbit Foot Minstrels, o mesmo grupo que deu também a primeira chan-
ce a Bessie Smith. Excursionou depois com a Rainha do Blues, Ma Rainey,
e foi parar em Nova Iorque na orquestra de Chick Webb, que tinha como
vocalista a jovem Ella Fitzgerald. Webb era o rei do Savoy, uma das mais
importantes pistas de dança do Harlem. O esperto Jordan aprendeu tudo
o que tinha a aprender com esta escola - do blues clássico de Ma Rainey
ao swing de Chick Webb - e seguiu em frente com sua própria banda. Com
o Louis Jordan and his Timpany Five, formado em 1939, ele começa a gravar
na Decca, e já em 1941 um de seus discos (Knock Me a Kiss e, do lado B,
l'm Gonna to the Outskirts ofTown) vende meio milhão de cópias. Jordan
atinge a marca de um milhão com Choo-Choo Ch'Boogie e Saturday Night
Fish Fry, gravando ainda sucessos como Let The Good Times Roll, Baby,
It's Cold Outside, Stone Cold Dead in the Market (com Ella Fitzgerald),
Your Socks Don't Match (com Bing Crosby). O cinema também acolhe Louis
Jordan e ele assina a trilha de um desenho de Tom & Jerry (Smitten Kitten)
e estrela uma série de soundies, filmetes de três minutos que são os precur-
sores do videoclip e são apresentados com estardalhaço nos cinemas ao lado
dos últimos longa-metragens de Hollywood, até duas ou três vezes por ses-
são, a pedido do público.
Tudo isso traz fama e dinheiro para Louis Jordan, mas os historiadores
do blues e do rock ainda estão lhe devendo. Não é o caso dos ingleses Roy
Carr, Brian Case e Fred Dellar, que o colocam nas alturas no livro The Hip:

"A carreira de Louis Jordan é uma fritada de peixe em noite


de sábado contínua, estabelecendo-o como uma das figuras mais
importantes (se bem que historicamente subestimadas) da mú-
sica negra americana. Este excitável soprador de sàx alto é para
o jump o que Bird é para o bop e Hendrix para o rock: ele de-
fine os melhores aspectos do estilo em sua própria imagem. Exer-

168 Roberto Muggiati


Louis Jordan: jazz, jump & jive
ceu uma profunda influência sobre talentos iniciantes como Ray
Charles, Chuck Berry e B.B. King - este pagando-lhe tributo
público com suas versões de Inflation Blues e Heed My Warning,
de Jordan, no seu álbum Blues 'n' Jazz, de 1983."

As sementes que Jordan plantou foram colhidas por alguns músicos


negros do rock 'n' roll (Chuck Berry, Little Richard, Fats Domino) e pe-
las estrelas brancas que calcaram o seu estilo na música de Jordan: Bill
Haley, Elvis Presley, Jerry Lee Lewis. Jordan continuou ativo com sua
banda, gravando e fazendo excursões pelos EUA e pela Europa. Em 1974,
liderava uma nova versão do Timpany Five em Nevada, quando sofreu
um ataque do coração. Morreu em 1975 em sua casa de Los Angeles, após
sofrer um segundo ataque.
Em 1973, um filme exaltando o reviva[ do rock 'n' roll- estrelado,
entre outros, por Chuck Berry, Little Richard, Fats Domino e Bill Haley
- levou o título de uma canção de Jordan, Let the Good Times Rol!. Re-
centemente, um crítico de rock americano perguntou a Chuck Berry sobre
o clássico riff da canção Johnny B. Goode, "que se tornou a mais famosa
marca registrada do rock 'n' rol!". Chuck falou:

"Esse riff é o resultado de muitas idéias que me influenci-


aram. Alguém sempre me influencia. Estes anos todos, cara, eu
venho surrupiando coisas. Carl Hogan, o guitarrista do Lou
Jordan, foi o primeiro que eu ouvi tocar esse link, não melem-
bro bem em que canção ... "

Chuck Berry nasceu em St. Louis, Missouri, em 1931. Passou por um


reformatório (por tentativa de roubo), foi cosmetólogo, cabeleireiro e ope-
rário da indústria automobilística para sustentar mulher e filhos. Tocava
guitarra desde a adolescência e, em 1955, recomendado pelo cantor de blues
Muddy Waters, foi fazer um teste com Leonard Chess, da gravadora Chess,
de Chicago. Chess ofereceu-lhe um contrato e ele gravou Mabellene, su-
cesso instantâneo, ao qual se seguiram outros, como Rol! Over Beethoven,
Johnny B. Goode e Sweet Little Sixteen.
As gravadoras independentes funcionaram como uma alavanca na
transição do rhythm & blues para o rock 'n' roll. Duas, particularmente,
tiveram um papel fundamental: a Chess, de Chicago, e a Sun, de Mem-
phis. A Sun era uma pequena gravadora iniciada nos anos 50 por um ex-
engenheiro de rádio nascido em Florence, Alabama, Sam Phillips. Sam

170 Roberto Muggiati


ficou intrigado quando viu gente como Jules e Saul Bihari se deslocar da
Califórnia até Memphis só para gravar - com equipamentos portáteis,
em estúdios improvisados em garagens - músicos negros de blues e do
rhythm and blues.
Sam estabeleceu uma ligação não só com os Bihari mas também com
os irmãos Chess de Chicago, gravando para eles artistas negros importan-
tes que gravitavam em torno de Memphis, como Howlin' Wolf, B.B. King
e Ike Turner. No começo, a Sun Records era uma etiqueta exclusivamente
de blues. Mas Sam Phillips era sensível às mudanças de gosto que esta-
vam ocorrendo na América e costumava dizer: "Se eu pudesse encontrar
um branco com o som e a alma de um negro, eu ganharia milhões de dó-
lares." Suas preces foram ouvidas. Um dia, em 1953, um jovem cami-
nhoneiro procurou Sam para gravar um disco em homenagem ao ani-
versário da mãe. Ali, pagando quatro dólares, qualquer um podia gra-
var qualquer coisa num disco de acetato de dez polegadas. Era um sá-
bado e Sam Phillips não estava no estúdio, mas a secretária se impressio-
nou com a voz do caminhoneiro e, além do acetato, gravou em fita, ano-
tando o endereço dele. O caminhoneiro chamava-se Elvis Aaron Presley,
nascido, por coincidência, nas vizinhanças do Delta, em Tupelo, Missis-
sippi. Depois de alguns desencontros, Sam Phillips convocou Elvis para
uma sessão na Sun, em julho de 1954. As coisas não correram muito bem
até que, num intervalo da gravação, meio de brincadeira, Elvis começou
a cantar uma versão envenenada de um conhecido blues de Arthur "Big
Boy" Crudup, That's Ali Right (Mama) . Era o que Sam procurava. Elvis
lhe deu seu primeiro milhão de dólares e partiu para sua carreira bi-
lionária. Sam Phillips finalmente abandonou os discos, partiu para uma
quantidade de investimentos, tornando-se um dos acionistas iniciais da
cadeia de hotéis Holiday Inn. Curiosamente, das dez primeiras canções
que Presley gravou para a Sun, cinco - a metade - eram blues. Uma
vez mais, a música do negro pobre fazia a fortuna do branco.
A gravadora Chess nasceu a partir de um clube noturno operado
pelos irmãos Phil e Leonard Chess em Chicago, em 1938, o El Mocambo
Lounge, um bar da pesada freqüentado por traficantes e onde os músicos
tocavam e cantavam em troca de bebida. A gravadora começou em 194 7
com um nome nada recomendável -Aristocrat - , mudando em 1949
para Chess. O primeiro disco da nova fase foi My Foolish Heart, pelo
saxofonista de jazz Gene Ammons; o segundo, foi um sucesso: Rolling
Stone, por Muddy Waters. Além de Muddy, a Chess alistou entre seus
talentos Howlin' Wolf, John Lee Hooker, Jimmy Rogers e Willie Mabon.

Blues 171
Tinha em seu elenco grupos como The Moonglows e lançou ases do rock
'n' roll como Bobby Charles e Chuck Berry. Em 1953, os irmãos Chess
abriram uma etiqueta subsidiária, a Checker, que incluía entre seus ar-
tistas de rhythm & blues o lendário Sonny Boy Williamson, Little Mil-
ton, Little Walter e Lowell Fulson.
Um artista que fez história na Chess foi Bo Diddley, talvez o músico
mais característico da fusão do blues com o rock 'n' roll. Foi mais um
bluesman de nome a nascer na cidade onde Bessie Smith morreu em 1937,
Clarksdale, Mississippi. Aliás, quando Bessie morreu, Bo tinha cinco anos
e mudava-se com a madrastra para Chicago. Seu nome original, Elias Bates,
passou para Elias MacDaniel, do sobrenome de uma prima de sua mãe, e
passou depois a Bo Diddley, apelido dos tempos do colégio. ("Bow did-
dley" era um dos nomes dados ao violão rudimentar de uma corda, de
origem africana, o equivalente do nosso berimbau. ) Seu primeiro disco, Bo
Diddley, com toda a sua carga de afirmação individual, foi seguido por outro
manifesto de virilidade, I'm a Man. Tudo isso aconteceu em 1955 e desde
então o blues, ou rhythm & blues ou rock 'n' roll ou seja lá o que for, nunca
mais foi o mesmo. Batizando o "Bo Diddley Beat", ou "Bo Diddley Sound",
Elias McDaniel influenciou roqueiros dos dois lados do Atlântico - de Elvis
a Eric Burdon, de Hendrix aos Stones - e reinjetou na música afro-ame-
ricana dos anos 50 o vigor da herança primai.
O historiador de jazz alemão Joachim E. Berendt assinala, com cla-
reza, a revolução que Bo Diddley e outros músicos da tradição do blues
provocaram na cultura do nosso século:

"Através de Bill Haley, Elvis Presley, Chuck Berry, Fats Do-


mino, Little Richard e muitos outros, o elemento blues penetrou
na música popular, destruindo assim o sentimentalismo, o kitsch
e a superficialidade que lhe eram comuns, muito ao sabor da Tin
Pan Alley. Se a música pop de hoje possui um nível musical e
literário mais elevado, assim como maior coerência e autentici-
dade de expressão do que a música popular anterior a 1950, isso
se deve à infiltração do blues e da música negra em sua lingua-
gem. A música negra é em geral, mais realista, mais ligada aos
problemas sociais e ao dia-a-dia da vida de cada um."

172 Roberto Muggiati


22.
NAENCRU~LHADADOFUTURO

Ao aderir às guitarras elétricas e acelerar o seu ritmo, o blues sofreu


um verdadeiro choque. Para muitos, o rhythm & blues - que não pas-
sava de uma camuflagem do rock 'n' roll - assinava o atestado de óbito
da tradição do Delta. O escritor negro LeRoi J ones (depois adotaria o nome
de guerra de Amiri Baraka), via no rhythm & blues

"um anátema para a classe média negra, um tipo de fre-


nesi e vulgaridade que nunca tinham estado presentes nas for-
mas mais antigas do blues. De repente, era como se uma gran-
de parte da fachada humanista euro-americana adotada pela
música afro-americana tivesse sido lavada ou eliminada pela
guerra. Os cantores de rhythm & blues tinham literalmente de
berrar para se fazer ouvir acima dos sons de diversos instrumen-
tos eletrificados e das ruidosas seções rítmicas. De certo modo,
quanto mais alto o acompanhamento instrumental e mais gri-
tado o canto, mais expressiva parecia a música. O blues sem-
pre fora música vocal - e devemos admitir que o acompanha-
mento instrumental do rhythm & blues ainda seguia aquela tra-
dição vocal - mas agora o voz humana tinha de lutar, de gri-
tar para ser ouvida."

O veterano bluesman John Lee Hooker vê outro ângulo da questão:

"Para os garotos negros comuns, parece que o blues é um


constrangimento. Acho que eles gostam de blues, mas sentem
um certo embaraço porque seus avós foram criados na escravi-
dão. Eles gostam, mas acham que nos dias modernos não de-
viam mais ouvir esta música - é como se ela os puxasse para
trás no tempo."

No pós-guerra, os negros da América urbana passaram a nutrir os


mesmos sonhos de consumo da classe média branca. Afinal, isso estava até

Blues 173
embutido na idéia da democracia e na luta pelos direitos civis. Não por acaso
o ano em que estourou o rock 'n' roll, 1954, foi o mesmo em que o Supre-
·m o Tribunal dos Estados Unidos adotou a decisão histórica de proibir a
segregação racial nas escolas públicas. Estas aspirações " brancas", segun-
do alguns sóciomusicólogos, teriam levado a um "embranquecimento" da
música negra. A resposta a este dilema foi a sou/ music, ainda de sotaque
negróide, mas com as arestas aparadas, uma mutação mais suave do som
afro-americano. As blue notes, é claro, continuavam entrando na receita,
mas o soul evitava o tom cru e direto do blues e se inspirava no som reli-
gioso dos spirituals e do gospel. Aliás, a fronteira sempre foi bastante tê-
nue. O cantor Bobby Bland dizia que o blues e o spiritual são a mesma coisa,
basta cantar "baby" num e "Lord" no outro ...
Já a partir de 1953, o rock nascente competia com um tipo mais sua-
ve de música vocal, tipificada por sucessos como Crying in the Chapei
(Orioles), Pretender e Only You (The Platters). Surgia o estilo de riffs vocais
chamado onomatopaicamente de doo-wop. (O roqueiro iconoclasta Frank
Zappa gravaria em 1967 uma bem-humorada paródia de doo-wop no LP
Cruising with Ruben and the Jets, não escondendo uma certa afeição pelo
gênero.) O rock 'n' roll teve o seu apogeu entre 1956e1958. Surgiu então
uma série de novas danças e novos ritmos: Harry Belafonte introduziu o
calypso caribenho, Chubby Checker fez todo mundo se sacudir no balan-
ço do twist - e quem se lembra do jerk, do Madison, do Watusi ou do
hully-gully? O território estava aberto para a invasão da sou/music e ela
foi concebida e lançada virtualmente como um produto industrial. Ex-
boxeador, músico nas horas vagas, Berry Gordy Jr., 29 anos, ganhava 85
dólares por semana em 1959 trabalhando na linha de montagem da Ford,
em Detroit. A cidade, além de ser a maior concentração mundial da indús-
tria automobilística, era a quarta maior população negra dos Estados Uni-
dos, depois de Nova Iorque, Chicago e Filadélfia. Berry, que tivera tam-
bém uma loja de discos de jazz, tomou 800 dólares emprestados da irmã
e resolveu começar a gravar e distribuir discos. Queria apenas se livrar do
trabalho da fábrica, nada mais. O que a princípio parecia empreitada modes-
ta, quase uma aventura sem futuro, transformou-se de repente num negó-
cio de proporções gigantescas. Gordy acertou na mosca. E o sucesso não
veio por acaso. Ele possuía um raro talento para detectar as sutilezas do
mercado de disco e uma grande habilidade para produzir discos e lidar com
os artistas. Deu à sua gravadora o nome de Motown, em homenagem ao
apelido de Detroit, Motor Town. Em pouco tempo a Motown era desdo-
brada em várias etiquetas e firmas subsidiárias: Tamla, Gordy, depois Soul

174 Roberto Muggiati


e VIP. Tratando a música como um mero produto industrial, sujeito às leis
do mercado, Gordy oferecia a brancos e negros uma imagem idealizada
do negro e um som ao mesmo tempo vibrante e agradável de ouvir.
Berry Gordy Jr. cuidava dos negócios e de seus contratados com mão
de ferro. O crítico John Gabree analisou com certa acidez os métodos da
gravadora:

"A Motown parece mais apta a produzir carros do que


matéria artística de músicos presumidamente sensíveis. As vá-
rias divisões do complexo Motown controlam todos os aspec-
tos dos negócios de seus contratados, desde as roupas que usam
(é significativo que os músicos as chamem de 'uniformes') até
os carros que compram, a decoração de suas casas e os investi-
mentos que fazem com seus lucros."

Alheio a críticas, Berry Gordy Jr. foi em frente. Seu primeiro suces-
so, lançado em novembro de 1959, já dizia tudo: Money (That's What I
Want), pelo cantor Barrett Strong. (A canção foi gravada depois por John
Lennon, pelos Rolling Stones e Pretenders.) No sobrado do 2648 West
Grand Boulevard em Detroit, a sede da Motown, ele ergueu uma imen-
sa placa com os dizeres HITSVILLE, USA. E a Motown se tornou realmente
uma fábrica de hits: dos quase 600 compactos que lançou entre 1960 e
1970, mais de dois terços foram sucessos de venda. Tudo isso não acon-
teceu à toa. Gordy, além de workaholic, mantinha um rigoroso contro-
le de qualidade sobre os seus produtos: só autorizava o lançamento de
uma dentre 70 faixas gravadas.
"Em 16 anos ganhei 367 milhões de dólares. Devia estar fazendo a
coisa certa", disse Berry Gordy Jr. ao vender a Motown em 1988 para
a MCA e o grupo de investimentos Boston Ventures por 61 milhões de
dólares. Gordy não se aposentou, continuou administrando a Jobete
Music Publishing, a editora que detém os direitos sobre quase todos os
hits da Motown. Entre os talentos que revelou estão Diana Ross (do gru-
po Supremes), Stevie Wonder, Marvin Gaye, Lionel Ritchie e Michael
Jackson e o Jackson Five. (Em 1973, o grupo - com exceção de Jermaine
Jackson, que se casou com a filha de Berry Gordy - pagou a multa de
600 mil dólares para se emancipar da Motown.)
Berry Gordy, Diana Ross, Michael Jackson - o showbiz criou sua
aristocracia negra. E ainda: as últimas listas dos entertainers mais bem
pagos dos Estados Unidos, feitas pelas revistas Forbes e Fortune, são

Blues 175
encabeçadas por negros como Bill Cosby, Eddie Murphy, Richard Pryor,
Oprah Winfrey e Whoopi Goldberg. De repente, os negros adotaram o
lema do beautiful people dos anos 20 de que "viver bem é a melhor vin-
gança". O fenômeno foi até analisado por um livro em 1988, Repeal of
the Blues (Rejeição do Blues), de Alan Pomerance, que mostra o artista
negro fugindo da "tristeza" (blues) e do padrão de desgraça tipificado
pelo cantor de blues.
Entre estas estrelas da música negra estão cantores que sofreram uma
forte influência do jazz e do blues. Ray Charles Robinson (cortou o so-
brenome para não ser confundido com o boxeador 'Sugar' Ray Robinson)
nasceu em 1930 em Albany, Geórgia, e aos seis anos sofreu de glaucoma
e ficou cego. Como tinha queda para a música, começou a estudar desde
cedo. Em sua autobiografia, Brother Ray, de 1978, ele lembra:

"Na minha época havia dois tipos de som. Havia os discos


de raça. Eram as músicas de negros, os blues dolentes que você
fazia se queria ir fundo nas coisas. Só artistas negros. Estou falan-
do de Big Boy Crudup, Tampa Red, Muddy Waters, Blind Boy
Philips, Washboard Sam, E/more James, Sonny Boy Williamson
e os pianistas de boogie-woogie -Meade Lux Lewis, Pete John-
son e Albert Ammons - , que eu amava de todo o coração. Do
outro lado, havia a música das rádios. A maioria era swing, ne-
gro ou branco. Estou falando de Artie Shaw, Benny Goodman,
Tommy Dorsey, Count Basie e Duke Ellington.

Antes de se tornar o principal crooner do soul, Ray Charles tocou jazz.


Era exímio pianista e um saxofone razoável. Gravou até com músicos de
jazz como o vibrafonista Milt Jackson, o saxofonista David Newman, o
baixista Oscar Pettifo.r;d e o baterista Connie Kay. Ray tem toda uma teo-
ria sobre as "ligações perigosas" entre músicos brancos e negros:

"Eu tocava uma porção de músicas que tinham sido feitas


originalmente por negros e depois reinterpretadas por brancos.
Um bom exemplo era Cow Cow Boogie, ou outra canção do
arromba, Pistol Packin' Mama. Eram grandes sucessos brancos,
mas se baseavam em sons negros e ritmos negros que já vinham
rolando há muito tempo. Estas músicas ficavam escuras de novo
- e depressa - quando eu botava minhas mãos nelas. Eu as
resgatava e trazia de volta para o ponto de partida. Não que eu

176 Roberto Muggiati


ficasse com raiva daqueles brancos por terem tirado as músicas
dos negros. Eu sempre disse: não é porque Bel! inventou o tele-
fone que Ray Charles vai deixar de usá-lo."

Se Ray Charles guardou pelo menos alguma memória das coisas que
viu até os seis anos, Stevie Wonder já nasceu cego. Como Ray, ele se in-
sere na tradição do músico que, por ser cego, tem realçadas as suas capa-
cidades auditivas (pelo menos é o que reza o folclore ... ). Steveland Morris
nasceu em Saginaw, Michigan, em 1950, e aos oito anos já dominava uma
quantidade de instrumentos, doados por parentes e vizinhos: piano, gai-
ta-de-boca, bongos, bateria. Stevie acabou recomendado para Berry Gotdy
Jr. e, aos 13 anos, conseguia o feito de emplacar um single e um LP no
primeiro lugar das paradas. Ficou conhecido como Little Stevie Wonder.
Cresceu, deixou o Little de lado, e como Stevie Wonder passou a fazer
uma música cada vez mais rica e complexa, ampliando os seus horizon-
tes em álbuns conceituais como Songs in the Key of Life (1976) e ]ourney
through the Secret Life of Plants (1979). Stevie conquistou o mundo da
música pop com canções com My Cherie Amoure Isn't She Lovely, mas
cada frase de suas composições, antes de chegar ao topo das paradas, foi
banhada na tradição do blues.
Outra que ouviu muito blues até se tornar a Rainha do Soul foi Aretha
Franklin. Nascida em 1942 num dos pontos focais do blues - Memphis,
Tennessee - começou a ouvir música e a cantar na igreja. O pai era pas-
tor e teve 70 álbuns de sermõ,es lançados pela gravadora de blues Chess.
Quando a família se mudou para Detroit, ele passou a dirigir o coro da
igreja New Bethel. Dotada de uma voz que impressionou a todos desde
cedo, Aretha ainda pequena cantava e tocava piano, acompanhando o pai
em turnês. Encorajada pelo cantor Sam Cooke, amigo da família, gravou
uma série de fitas demos com a ajuda do baixista de jazz Major Holley.
Mais uma vez, coube ao todo-poderoso produtor da Columbia, John
Hammond, descobrir e lançar uma nova estrela. Já em 1961- a canto-
ra tinha apenas 19 anos - saía seu primeiro LP pela grande gravadora
que lançara Bessie Smith nos anos 20. Mas o repertório, quase todo de
standards, não fazia jus à voz de Aretha. Foram necessários alguns anos
- e o talento do produtor Jerry Wexler- para colocá-la no caminho cer-
to. Em sua recente autobiografia, Rhythm and Blues, Wexler conta que,
depois de sete anos na Columbia, Aretha estava profundamente frustra-
da. Era um prodígio do gospel, tinha a melhor voz do país, mas seu po-
tencial se perdia com o repertório errado e os arranjos inadequados, às

Blues 177
vezes usando até orquestras de cordas. Wexler levou-a para gravar em
Muscle Shoals, Alabama, não muito longe da Memphis natal de Aretha.
Lá, sentada ao piano e acompanhada de órgão, metais, saxofones, seção
rítmica e vocais de fundo, ela gravou I Never Loved a Man (The Way I
Lave You) e Do Right Woman - Do Right Man. O compacto resultan-
te virou ouro pouco depois de sair e o mesmo aconteceu com o LP, ter-
minado em Nova Iorque. No verão de 1967, Aretha Franklin era a nova
sensação da música pop americana. Com a fabulosa voz gospel - lem-
brava a de sua tia Clara Ward, ou a de Mahalia Jackson - ela atacava
um repertório profano de canções de amor ao embalo do rhythm & blues.
Um dos hits de Aretha era Respect, assinado por Otis Redding, ou-
tro que se tornaria superstar no verão de 1967. Tivesse surgido em outra
época, Redding tomaria certamente o rumo do blues. Ele nasceu em 1941
em Dawson, e mudou-se depois para a vizinha Macon, na Geórgia, ambas
no Blue Belt - o Cinturão Azul do blues. Como Aretha e muitos outros,
Otis começou a cantar no coro da igreja e da escola. Em pouco tempo
pegava a estrada, como roadie e cantor substituto da banda Johnny Jenkins
and the Pinetops. Um dia, em 1962, quando Jenkins gravava no estúdio
da Stax em Memphis, Redding aproveitou uma sobra no tempo de estú-
dio e gravou duas composições suas, These Arms of Mine e Hey Hey Baby.
O chefão da Stax ficou impressionado: contratou Otis na hora e lançou
These Arms of Mine num compacto. O single teve boa colocação nas
paradas e abriu caminho para o primeiro álbum de Redding, Pain in My
Heart. Mas, mesmo gravando regularmente desde 1962, Otis enfrentava
problema idêntico ao de Aretha: o público americano ainda não o desco-
brira. Era até mais apreciado na Europa, em particular na Grã-Bretanha.
Redding participou de várias turnês do elenco da Stax-Volt entre 1964
e 1967, liderando a excursão de 1965 à Europa. Sua grande oportunidade
chegou afinal com o festival Monterey Pop, onde se tornou estrela da noite
para o dia, como Jimi Hendrix e]anis] oplin. Otis Redding não teve muito
tempo para desfrutar o seu sucesso. Morreu em 10 de dezembro de 1967
com quatro membros da banda que o acompanhava, os Bar-Kays, quando
seu avião caiu no lago Monona, perto de Madison, Wisconsin. Três dias
antes, Otis gravara sua última canção (Sittin' On) The Dock of the Bay,
uma espécie de hino soul à cidade mais cantada daqueles anos, San Fran-
cisco. Lançada no final de janeiro de 1968, Dock of the Bay logo chega-
va ao número um nas paradas dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha.
Havia uma certa atmosfera sinistra neste hit póstumo, realçada pela sono-
plastia de gaivotas e ondas que evocavam o fim do cantor no fundo das

178 Roberto Muggiati


águas. O mistério era reforçado por rumores, não confirmados, que cor-
riam no boca a boca do underground, de que quando retiraram o avião
das águas geladas do lago encontraram - adivinhem quem? - seguran-
do o manche, no lugar do piloto: Otis Redding ... E havia mais: anos de-
pois, houve rumores de uma Maldição de Monterey. Qualquer pessoa,
medianamente supersticiosa, tem tudo para acreditar: dos músicos que
tocaram, cantaram ou tiveram algum papel no festival de Monterey, nada
menos que oito morreram nos 11 anos seguintes:
Otis Redding, o primeiro da lista, ainda em 1967, aos 26 anos.
Brian Jones, dos Rolling Stones - que foi a Monterey dar uma for-
ça a Jimi Hendrix - , afogado misteriosamente na piscina de sua casa na
Inglaterra em 1969, aos 27 anos.
Al Wilson, do Canned Heat, de overdose, em 1970, aos 27 anos.
Jimi Hendrix, sufocado por seu próprio vômito, num hotel de Lon-
dres em 1970, aos 27 anos.
]anis Joplin, poucos dias depois, de overdose, num hotel de Los Angeles,
aos 27 anos.
Ron 'Pigpen' Mckernan, do grupo Grateful Dead, de hemorragia
estomacal, causada por excesso de álcool, em sua casa na Califórnia, em
1973, aos 27 anos.
Mama Cass Elliott, de parada cardíaca devida à obesidade, num hotel
de Londres, em 1977, aos 31 anos.
Keith Moon, baterista do grupo The Who, de uma overdose de He-
minevrin - tabletes usados no combate ao alcoolismo - no seu aparta-
mento de Londres, em 1978, aos 32 anos.
É maldição para nenhum blueseiro do Delta - cercado de jinx e
mojos - botar defeito.
Mas nem só de histórias infelizes é feito o blues na encruzilhada do
pós-guerra. Buddy Guy é o típico músico que começou a vida profissional
em plena era do rock 'n' roll e conseguiu não só ficar fiel ao idioma do blues
tradicional, como modernizá-lo e, mesmo não se tornando milionário, viver
bem do seu trabalho. George 'Buddy' Guy nasceu em Lettsworth, Louisiana,
em 1936. Aos 13 anos, fabricou um violão com latas e arame de cortina.
Aprendeu ouvindo discos de Lightnin' Hopkins, T-Bone Walker e John Lee
Hooker. Aos 17 anos, ganhou a primeira guitarra. Aos 21 anos, já influen-
ciado pelo estilo de B.B. King, foi arriscar a sorte em Chicago e se deu bem,
gravando na Chess com gigantes como Muddy Waters, Howlin' Wolf e
Willie Dixon. Em 1956, inicia com o gaitista Junior Wells uma parceria
que, com alguns intervalos, dura até hoje. Buddy Guy ficou célebre no

Blues 179
Budd::J Guy & Juniot WeHs

Buddy Guy & Junior Wells: o blues vai bem e manda lembranças
mundo do rock porque certa vez Jimi Hendrix cancelou uma apresenta-
ção só para ir ao seu camarim dizer a Guy que tinha roubado muitas de
suas idéias na guitarra. Adorado por roqueiros como Eric Clapton, Jeff Beck
e Mark Knopfler - com os quais já gravou - , Buddy foi homenageado
pela fábrica Fender com um modelo especial de guitarra, a Buddy Guy
Signature Stratocaster. Ainda com gosto da estrada, mas hoje no circuito
do blues chie, Buddy, quando volta a Chicago, toca - a guitarra e os ne-
gócios - na sua casa de blues, o Legend's Bar.
Buddy pertence ao elenco da Alligator, a gravadora especializada que
vem mantendo acesa a chama do blues desde 1970, quando começou, na
base da aventura. Em fevereiro daquele ano, um pequeno grupo de jovens
brancos apaixonados por blues se reunia no apartamento de Bruce Iglauer
para lançar a revista Living Blues. Foram necessários sete anos para es-
gotar os cinco mil exemplares do vol. 1. Com o fracasso do fanzine, Iglauer,
que trabalhava na gravadora Delmark, decidiu iniciar o seu próprio selo,
Alligator Records. Para o primeiro disco, recrutou um dinossauro do blues,
o veterano Hound Dog Taylor, que tocava com sua banda, the House-
Rockers, nas piores espeluncas do South Side de Chicago por 45 dólares
a noite (para ele e toda a banda ... ). Hound Dog era daqueles blueseiros
do Delta que levavam o piano numa carroça puxada a mula para se apre-
sentar nas biroscas de peixe frito nas noites de sábado. Em 1942, aos 27
anos, deixou Mississippi para tentar a sorte em Chicago. Não aconteceu
grande coisa, mas Hound foi levando, morando no gueto com uma irmã,
trabalhando de dia na cozinha de um restaurante. Em 1957, Hound Dog
perdeu o emprego numa fábrica de carcaças de aparelhos de TV e voltou
a ganhar a vida como músico. Numa atmosfera informal, sem nenhum
aparato hi-tech, Iglauer reproduziu no estúdio as condições de uma apre-
sentação ao vivo, com garrafas de uísque ao pé dos músicos e um punha-
do de amigos servindo de platéia, e gravou assim o primeiro álbum da
Alligator. A Alligator deu sorte a Hound Dog - e vice-versa. O primeiro
disco, lançado em agosto de 1971 com apenas mil cópias - a maioria
das quais oferecidas grátis como material de divulgação-, acabou cha-
mando atenção sobre Hound Dog Taylor and the House Rockers. Eles
receberam convites para excursionar pelo Meio-Oeste dos Estados Uni-
dos, entraram no circuito universitário da Nova Inglaterra, saltaram para
as salas de concerto de Nova Iorque e acabaram viajando até a Austrália
e Nova Zelândia. Hound Dog não teve muito tempo para saborear seu
sucesso. Morreu em 1975, deixando quatro álbuns cheios de belos blues.
A esta altura, a Alligator já impunha respeito no mercado.

Blues 181
Com 120 títulos no seu catálogo exclusivo de blues, já ganhou dois
Grammies (o Oscar do disco, para o qual teve 24 indicações) e 44 W.C.
Handy Awards, o prêmio máximo do blues. Em 1991, Bruce Iglauer pre-
viu que faturaria um milhão de dólares a mais no ano do que em 1990. O
elenco da Alligator é uma amostra da vitalidade do blues atual. Reúne negros
e brancos, jovens e veteranos, e aventura-se por território exótico, ao lan-
çar um grupo só de mulheres, o Saffire - formado por uma negra, uma judia
e uma Cherokee - ou ao investir em Katie Webster, cantora e tecladista,
que, em The Swamp Boogie Queen, injeta cacos de Debussy e Thelonious
Monk em suas inflamadas interpretações. Não tão fortes como a Alligator,
mas igualmente sérios, outros selos levam adiante a mensagem do blues, como
a Malaco Records, de Jackson, Mississippi; a High Tone, da Califórnia; e
a Antone, de Austin, Texas.
Em sua crise da meia-idade, o blues foi cortejado também por jovens
brancos baby-boomers, como os irmãos Winter. Albinos, nascidos no Mis-
sissippi em 1944 e 1946, e criados no Texas, Johnny e Edgar Winter se en-
cantaram desde cedo pela música negra. Depois de formar com o irmão al-
gumas bandas que não deram em nada, Johnny trabalhou como acompa-
nhante de um bluesman de sua cidade, Beaumont, e começou a gravar para
selos regionais. Antes que pudesse apresentar seu material para as grandes
gravadoras, foi descoberto por um empresário de Nova Iorque - que leu
um artigo sobre ele na revista Rolling Stone- e tornou-se uma atração ins-
tantânea na Grande Maçã, onde, já no final de 1968, consagrava-se no templo
de Bill Graham (não o pastor, mas o empresário), a sala de rock Fillmore
East. O sucesso levou Johnny a um contrato com a gigante do disco, a Co-
lumbia, onde gravou com o irmão Edgar, num estúdio de Nashville em 1969.
Edgar acabou seguindo o caminho do jazz e Johnny, com seu estilo de vida
barra-pesada, passou a ter problemas pessoais e profissionais. Voltou em
grande forma em 1973 e, em 1977, tocou com Muddy Waters e produziu
o álbum que marcava o retorno do lendário bluesman. De lá para cá, o en-
volvimento de Johnny Winter com o blues tem sido total, em festivais, turnês
e gravações. Pertence também, atualmente, ao elenco da Alligator, onde
gravou um LP com os lendários Sonny Terry e Willie Dixon.
Branco sempre paga pedágio na estrada do blues. Os irmãos Duane e
Gregg Allman nasceram, em 1946 e 1947, em Nashville, Tennessee. Nos
anos 60 já empunhavam guitarras depois de terem ouvido muito blues pelo
rádio, e saíam pela Geórgia, Flórida e Alabama com os Allman Joys. Sua
fama chegou até a Califórnia, onde foram contratados para acompanhar
estrelas negras do porte de Wilson Pickett, Aretha Franklin e Clarence Carter.

182 Roberto Muggiati


Em 1969, gravam seu disco de estréia em Nova Iorque e embarcam em turnês
de costa a costa. Duane, considerado um dos maiores guitarristas brancos
do estilo slide, é convidado especial de Eric Clapton no álbum épico Layla,
que sai creditado para uma banda imaginária, Derek and the Dominoes. Em
1971, aos 24 anos, Duane morre num acidente de motocicleta em Macon,
na Geórgia, ao sair da casa do baixista da banda, Berry Oakley. Menos de
um ano depois, Oakley morre perto do mesmo local, também num desas-
tre de moto. Ironicamente, em 1973, a Allman Brothers Band se torna a maior
atração do rock americano. E os solos de guitarra slide de Duane Allman
fazem dele uma lenda do blues branco.
Há mais brancos garimpando o território do blues. Outro especialista
do slide é George Thorogood, um jovem descoberto aos 20 anos em 1975
num inferninho de Boston pelo produtor de uma pequena gravadora, a Roun-
der. Seu primeiro disco, com os Destroyers, lançado em 1977 com a modesta
prensagem de 750 cópias, acabou adotado pela rádio KSAN, de San Francis-
co, e vendendo 300 mil cópias. Já com o segundo LP George conseguia a
façanha de obter um disco de ouro para uma gravadora independente. Seu
repertório inclui 'clássicos do blues (Willie Dixon, John Lee Hooker, Brownie
McGhee, Elmore James), muito de Chuck Berry e uma quantidade de canções
originais, geralmente no idioma do blues. O sucesso não subiu à cabeça de
Thorogood. O vital continua sendo o prazer de tocar, como ele mesmo define,
numa frase bem blueseira: "Se não tem graça, então não vale a pena fazer. .. "
Quase na mesma linha, o angeleno Ry Cooder, nascido em 1947, acor-
dou cedo para o blues e para a guitarra slide. Não demorou para que chamas-
se a atenção dos produtores, mas ele passou pelo cinema (participou das
trilhas de Candy e Performance) antes de gravar discos, colaborando num
dos melhores LPs dos Rolling Stones (Let It Bleed, em 1969) e fazendo seu
primeiro álbum em 1970, Ry Cooder. Com uma queda para a musicologia,
Ry fuçou os mais obscuros cantos da música popular, do Tex-Mex (mis-
tura de texano e mexicano) ao jazz (do tempo de Bix Beiderbecke); do rhythm
& blues e do gospel à guitarra havaiana; dos blues das Bahamas (sim, exis-
tem!) à tradição indiana. Sempre ligado ao blues, Cooder demonstra um
ecletismo musical admirável:

" Você pode ser um pigmeu do Congo tocando flau ta" na-
sal - sim, soprando o instrumento pela narina - , e se você gra-
var o disco certo você vai estar no ar imediatamente nesta cida-
de (Los Angeles) e nas paradas de sucesso na semana seguinte,
É a democracia em ação ... "

Blues 183
Outro caso interessante é o de John Hammond. O nome é o mesmo
do todo-poderoso chefão da Columbia que lançou Billie Holiday, Count Basie
e Bob Dylan, que produziu o concerto de jazz no Carnegie Hall e foi durante
décadas um ditador do gosto musical americano. Os pais de Hammond se
divorciaram quando ele tinha apenas seis anos, mas o acesso à coleção de
discos do velho John continuou aberto. "Me tornei um fã do blues aos 12
anos de idade, ouvindo músicos como ]osh White, Sonny Terry, Brownie
McGhee, Howlin' Wolf e John Lee Hooker." O som de Hammond é negróide
como poucos e alguns o consideram um continuador da obra de Jimi Hendrix,
embora não possua a chama de Hendrix. Hammond, que nasceu no mes-
mo ano em que Hendrix, formou uma banda com ele em 1966 no Café Au
Go Go de Nova Iorque. Ele pode não ter o mesmo carisma dos seus ídolos,
mas faz uma música honesta e consistente. Como disse numa recente visita
ao Brasil: "O blues é o sangue vivo da música norte-americana. Cada ge-
ração trará sua colheita de novos intérpretes de blues."
Ainda na faixa do blues trágico, há o caso de Stevie Ray Vaughan, outro
fabuloso bottlenecker, espécie de duplicata de Duane Allman. Também
formou banda com um irmão, Jimmy, os Vaughan Brothers. E também
morreu associado a Eric Clapton (devemos chamá-lo de Slowhand ou Cold
Foot?) Depois de um concerto em agosto de 1990 para 7.000 pessoas na
estação de esqui de Alpine Valley, no Wisconsin (mesmo Estado em que
morreu Otis Redding) -concerto em que tocou ao lado de Clapton, Robert
Cray e Buddy Guy - , Stevie Ray embarcou num helicóptero com destino
a Chicago. O helicóptero chocou-se com uma montanha artificial para a
prática de esqui, a 1.500 metros do auditório do concerto que promovia
o novo disco de Clapton. Os corpos ficaram irreconhecíveis e correram ru-
mores de que Clapton, que havia tomado outro helicóptero, teria morri-
do. Mas os mortos foram três membros da equipe de Clapton (o empresá-
rio, o segurança e um assistente) e Stevie Ray, uma das maiores esperan-
ças brancas do blues, desaparecida aos 35 anos. O veterano John Lee Hooker
conhecido com Mr. Cool, confessou: "Eu raramente choro, mas ao saber
da morte de Stevie sentei na cama e chorei como uma criança."
Com tanto branco invadindo a praia do blues, o que sobra para o
negro, dono desta arte? Além dos muitos veteranos -que vão do "dinos-
sauro" John Lee Hooker, 74 anos, aos sempre ativos B.B. King e Buddy
Guy - , tem sangue novo na praça. O nome dele é Robert Cray, nascido
em 1953 em Columbus, Geórgia, onde o pai, militar, estava postado. De
base em base, o pequeno Cray rodou da Califórnia à Alemanha e à Virgí-
nia, antes de ancorar com a família em Tacoma, no Estado de Washing-

184 Roberto Muggiati


- do blues
Robert Cray.. a nova geraçao
ton, em 1968. Aos vinte e poucos anos, Cray pegou sua primeira guitar-
ra e iniciou urna banda chamada One Way Street. Na ver.dade, era urna
rua de mão dupla, misturando o soul e o psicodélico. Com um amigo, o
baixista Richard Cousins, Robert mudou-se para o Oregon e lançou seu
primeiro álbum em 1978 pela Tornato Records, Who's Been Talking, que
só saiu dois anos depois. Em 1983, Cray grava para a HighTone Bad
Influence, que lhe traz fama nacional, prêmios W .C. Handy e projeta sua
carreira. A partir daí, Robert Cray torna-se onipresente no cenário do
blues, da MTV aos festivais, das excursões aos especiais de TV, dos talk-
shows aos vídeos. O próprio Cray, de bola cheia aos 41 anos, conta:

"No começo eu tocava música de outros compositores co-


mo B.B. King, Elmore James e Willie Dixon. Depois, comecei
a escrever minhas próprias canções, tentando combinar o anti-
go blues com a música moderna que tenho em mente, mais aberta
e receptiva a novas influências. Espero não estar decepcionan-
do ninguém."

Branco é branco, preto é preto, mas o blues é o blues e a cor não faz
mais diferença. Corno diria Marshall McLuhan, o blues ingressou na al-
deia global. E Mary Katherine Aldin assinala num livro recente:

"Com ofertas de shows mais freqüentes e tendo o mundo


inteiro como arena, bluesmen como Robert Cray e B.B. King
deixaram para trás os ônibus da Greyhound; agora eles vão de
Concorde. Custos mais elevados de turnês, que hoje incluem
equipamentos dispendiosos e a tecnologia mais moderna de pal-
co, além do pessoal encarregado da infra-estrutura, significam
que o blues subiu na escala econômica e que cachês mais altos
são compensados por apresentações em arenas maiores. As juke
joints dos anos 30 e até os clubes folk dos anos 60 foram subs-
tituídos pelos festivais de blues que atraem dezenas de milha-
res. O Chicago Blues Festival, o maior da América, reuniu um
público de 700 mil pessoas em 1990."

O blues pode estar numa encruzilhada criativa, mas pelo menos com
a certeza de que é uma forma de arte franca e direta, que fala sem ro-
deios da condição humana. Jimi Hendrix definiu o impasse melhor do
que ninguém:

186 Roberto Muggiati


"Os blues são fáceis de tocar, mas difíceis de sentir. Seja
você negro, branco ou roxo, se alguém gostar da tua música o
bastante para ser inspirado por ela, então está tudo bem. É ri-
dículo dizer que esta música só pode ser tocada por negros. A
cor não faz nenhuma diferença. Todo mundo tem algum tipo
de blues para oferecer. Vejam Elvis. Ele costumava cantar me-
lhor quando cantava o blues do que quando começou a cantar
aquelas musiquinhas de praia. Era capaz de cantar os blues e
era branco ... Quando a música avança muito e fica perto de se
tornar apenas técnica, as pessoas sempre se voltam para o bási-
co, para o honesto. E o blues é, mais do que tudo, básico ... "

Blues 187
Celso Blues Boy: aumenta que isso aí é roquenrol - digo, blues ...
23.
BRAZIL BLUES

O blues nasceu do choque cultural entre o escravo africano e a civi-


lização norte-americana. Por que os negros da África não fizeram o blues
no Brasil, por exemplo? Acontece que as variáveis, neste caldo cultural,
eram diferentes. Primeiro, é preciso levar em conta as origens de cada leva
de escravos. O musicólogo Marshall Stearns explica esta diversidade:

"Fazendeiros brasileiros - supridos desde cedo com es-


cravos senegaleses pelos traficantes portugueses - preferiram
desde então escravos do Senegal. Do mesmo modo, fazendeiros
espanhóis preferiram iorubás; fazendeiros ingleses preferiram
ashantis; e fazendeiros franceses optaram por negros do Daomé.
Houve exceções, é claro, mas de maneira gera'/ o padrão sobre-
vive até hoje: a música africana predominante em Cuba (origi-
nalmente espanhola) é iorubana; na Jamaica (britânica) é ashanti;
e no Haiti, antigamente colonizado pela França, é do Daomé.
Os do Daomé eram os adoradores originais do vodu - o deus-
serpente Damballa é uma de suas divindades - e o fato de que
Nova Orleans foi por algum tempo uma colônia francesa aju-
da a explicar por que esta cidade é a capital 'hoodoo' dos Esta-
dos Unidos, até hoje, e oferece uma pista para explicar como o
jazz nasceu em Nova Orleans."

Existem analogias. Na semelhança da instrumentação, por exemplo:


o berimbau é a versão brasileira do one-string, ou bow diddley, o violão
rudimentar do Sul dos Estados Unidos; o nosso berimbau-de-boca pare-
ce-se com a]ew's harp do blues. Em Música de Feitiçaria no Brasil (1933),
Mário de Andrade, o pai de Macunaíma - que foi também um grande
pesquisador musical-, mostra a proximidade das músicas rurais do Brasil
e do Sul dos Estados Unidos:

"Nos congados, moçambiques e sambas de negros rurais


ou já de caipiras de São Paulo, as frases de recitativo entre as

Blues 189
danças são propositalmente dadas com tais glissandos e porta-
mentos, com tão prodigiosa indecisão melódica, que não é pos-
sível grafar estes recitativos. Na realidade, a impressão que se
tem é que existe um tema, exclusivamente virtual, que é impos-
sível por isso determinar com exatidão, sobre o qual os can-
tadores variam sempre em quartos de tom, desafinações vo-
luntárias, nasalações sonoramente indiscerníveis, arrastados e
portamentos de voz. Tudo isso pela sua própria pobreza deixa
cantador e ouvinte numa indecisão pasmosa, completamente
desnorteado e tonto: porque esse é realmente o processo de tor-
nar mais forte, mais eficaz, o poder hipnótico da música."

Parece uma descrição do blues, mas o blues permaneceu um gênero


especificamente afro-americano e não se repetiu em outros países de cul-
tura européia que tenham recebido populações negras. Talvez o equiva-
lente do blues no Brasil seja o samba. Claus Schreiner, um brasilianista mu-
sical, escreve que "o que Bessie Smith foi para o blues americano, Clementina
de Jesus foi para a música afro-brasileira." O blues americano invadiu o
mundo e foi submetido a imitações. Fala-se até de um "blues branco" -
ou do "blues britânico" - , embora historicamente o blues seja uma cria-
ção exclusiva do negro norte-americano. Graças aos modernos meios de
comunicação, o blues expandiu-se pelo mundo e chegou também ao Bra-
sil. Ironicamente - apesar de ser o mais antigo - foi o último dos estilos
musicais a invadir a nossa praia.
Já nos anos 20, graças ao cinema (o primeiro soundie, filme falado,
foi O Cantor de Jazz, com AI Jolson, em 1927) e principalmente ao rá-
dio e aos discos, o jazz aportou com força por aqui. As jazz-bands eram
uma verdadeira epidemia. Em São Paulo, a Jazz Manon funcionava des-
de 1921. No Rio, a Carlito Jazz, de 1926, acompanhou Josephine Baker
em Paris; a Jazz Band Sul-Americana, que também excursionou pela Eu-
ropa e pelos Estados Unidos, teve entre seus membros o famoso saxofo-
nista Booker Pittman. Em Pernambuco, Capiba criou a Jazz Band Aca-
dêmica em 1931. Em Porto Alegre, de 1923 a 1932, o Jazz Espia Só ani-
mava os bailes da Sociedade Philosophia e do Clube Caixeral.
Vieram depois as big bands - cópia carbono das grandes orques-
tras da Era do Swing, nos anos 30 / 40. Artistas como Dick Farney des-
cobriram o jazz moderno e já em 1956 acontecia o 1º Festival Brasileiro
de Jazz, no Teatro de Cultura Artística de São Paulo. Ao mesmo tempo,
em reação ao bebop e outras modernidades, surgia um reviva[ do jazz tra-

190 Roberto Muggiati


dicional, através de bandas como a Paulistânia Jazz Band, a São Paulo
Dixieland Band e a Traditional Jazz Band. Os blues pegou carona no re-
pertório do jazz, como pegou carona nos movimentos seguintes: o rock
'n' roll dos anos 50, o rock britânico e americano dos anos 60, até os an-
típodas New Wave e punk dos anos 70. Só em meados dos anos 70 co-
meçaram a brotar por aqui as primeiras bandas exclusivamente de blues,
em sua maioria formadas por jovens brancos da classe média saturados
do rock e que não conseguiam encontrar na MPB uma identificação para
seus anseios e seu estilo de vida.
Os festivais de jazz de São Paulo (1978 e 1980), Rio-Monterey (1980)
e Free Jazz (Rio & SP, a partir de 1985), trouxeram ao Brasil importan-
tes figuras do blues, como John Lee Hooker, ChampionJack Dupree, B.B.
King, Albert King, Albert Collins, Joe Williams, Clarence "Gatemouth"
Brown, Bo Diddley. A Noite de Blues do Free Jazz tornou-se a mais con-
corrida do festival, reunindo bluesmen de todos os matizes, velhos e no-
vos, brancos e negros.
O interesse pelos blues no Brasil cresceu tanto que, nos final dos anos
80, começaram a acontecer por aqui festivais especializados. O 1º Festi-
val de Blues reuniu em julho de 1989, em Ribeirão Preto, cobras como
Buddy Guy, Junior Wells, Albert Collins, Magic Slim e Etta James, tendo
ainda a participação de brasileiros como o Blues Etílicos e André Chris-
tovam. André trabalhou nos Estados Unidos como roadie de Albert Col-
lins, ou seja, carregava os amplificadores e ajudava a montar o palco nos
shows e turnês. Dez anos depois, os dois se reencontram em Ribeirão,
Collins reconhece imediatamente Christovam e o carrega no colo. A at-
mosfera do festival foi de admirável descontração, ajudada - segundo
muitos - pelas virtudes excepcionais da água da cidade, a única do mundo
abastecida totalmente por poços artesianos. Ou seja: a pureza da água de
Ribeirão garante a qualidade de sua cerveja e do seu chope, considera-
dos os melhores do país. Durante o evento, só na tradiconal choperia Pin-
güim, rolaram para a garganta dos bluesmen 4.500 litros em quatro dias
de festival. Com as gargantas bem lubrificadas, os músicos retribuíram à
altura em suas apresentações. Foram até além: Albert Collins tocou viola
caipira no hall do hotel com a dupla sertaneja Lourival e Lourenço. E John
Primer - guitarrista de Magic Slim que já fez parte da banda do lendá-
rio Muddy Waters - desfilou numa kombi pelas ruas de Ribeirão can-
tando blues para divulgar o festival.
Em 1990, o 2º Festival de Blues repetiu a dose, trazendo para o giná-
sio do Ibirapuera, em São Paulo, cartazes como Koko Taylor, Bo Diddley,

Blues 191
Magic Slim, John Hammond, The Kinsey Report & Big Daddy Kinsey. E
o marketing entrou na jogada em maio de 1994 com o festival Nescafé &
Blues, que trouxe a São Paulo, entre outros, além do blueseiro (ex-roquei-
ro) britânico Eric Burdon, cobras como Robert Cray, Otis Clay, Coco Mon-
toya, Robben Ford ê Lonnie Brooks.
O promotor de todos estes festivais, Cesar Castanho, foi também o
responsável por uma série de apresentações de blues no 150 Club do hotel
Maksoud Plaza, em São Paulo. Em 1983, ele conseguiu o feito de trazer
ao Brasil uma das maiores lendas vivas do blues, a cantora Alberta Hunter.
Ela mostrou que "ainda há uma porção de boas canções neste velho violi-
no". Alberta gostou tanto que voltou no ano seguinte, em junho de 1984:
"O povo e as frutas que vocês têm, honey, são os melhores do mundo.
Quando apareceu este convite, larguei tudo para voltar. E vou voltar
sempre, baby, pode escrever aí. " A esta altura, com 89 anos, a frágil Al-
berta passava o dia inteiro deitada no quarto do hotel, comendo caqui, e
depois era conduzida ao palco numa cadeira de rodas, oculta do público.
O público só a via já de pé, quando as luzes do palco se acendiam, can-
tando, gesticulando e dando o máximo de sua energia. Ao se despedir do
Brasil em 1984, Alberta prometeu voltar no ano seguinte para festejar seus
noventa anos no 150 Club, com um bolo cheio de velinhas. Mas ela morreu
antes, em outubro de 1984. O famoso crítico do Village Voice, Stanley
Crouch, confirma:

"Tinha 89 anos e planejava comemorar o próximo aniver-


sário em 1° de abril no Brasil, onde havia emocionado tanto seus
ouvintes em duas viagens nestes últimos anos que eles preten-
diam armar uma grande festa para celebrar seus 90 anos."

O episódio ganha importância na biografia Alberta Hunter /A Cele-


bration of the Blues, do jornalista Frank C. Taylor em colaboração com o
pianista da cantora, Gerald Cook. O livro registra a acalorada discussão
entre Alberta e o empresário Barney Josephson, que a acolhera como atração
permanente no The Cookery, do Greenwich Village, desde o seu retorno
triunfal aos 82 anos. "Isto vai te matar. Você voltará do Brasil num cai-
xão e não vou assinar teu atestado de óbito", disse Barney.
"Estes shows no Brasil são única coisa que a mantêm viva", argu-
menta o advogado da cantora, William Krazilovsky. "Ela já estaria mor-
ta há muito tempo se você não a tivesse feito trabalhar de novo. Se tiver
de morrer, que morra feliz, num avião ou no alto de uma montanha."

192 Roberto Muggiati


E Alberta Hunter acabou com a discussão: "Só faço o que tenho von-
tade de fazer: vou ao Brasil."
Outro que tomou gosto pelo Brasil através do 150 Club - onde se
apresentou pela primeira vez em 1985 - foi Buddy Guy. Guitarrista e
cantor, trouxe o parceiro inseparável desde 1956, o gaitista Junior Wells.
Entre temporadas no Maksoud e apresentações nos festivais, Buddy Guy
já veio ao Brasil sete vezes. Teve seus discos lançados aqui por selos de
blues como Black and Blue e Jazz and Blues. Além destes, outros selos
independentes entraram na onda do blues, como o Antone's, o carioca
Imagem e o paulista Brasidisc. E as grandes gravadoras também se liga-
ram: a Warner lançou as coleções Atlantic Blues, Atlantic Rhythm & Blues,
The Legacy of the Blues (da Sonet) e Blues Anthology (da Chess). A Sony
investiu pesado na totalidade da obra de Bessie Smith e Robert Johnson
e saiu com uma coleção básica importante, a Roots 'n' Blues.
O blues está vivo no Brasil - mais vivo do que nunca - e mora no
Grande Rio e na Grande São Paulo. Uma pequena história para ilustrar a
vitalidade do gênero. Mal começa a cair uma chuva no Rio de Janeiro e se
ouve a má notícia: "Não passa ninguém na Praça da Bandeira!" O anún-
cio - parece até letra de blues - inferniza a vida dos que trabalham na
Zona Sul e moram na Zona Norte e não conseguem atravessar a barreira
da Bandeira para chegar em casa. Pois foi na Praça da Bandeira, numa sexta-
feira de dezembro de 1993, debaixo de muita chuva, que uma pequena mul-
tidão de bluesófilos se juntou para vibrar com a noitada final do 1° Garage
Underblues Festival. O evento aconteceria numa estranha - mas muito
requisitada - casa de rock, o Garage, na Rua Ceará, também celebrizada
por concentrar no Rio o point das oficinas especializadas em motos e por
ser uma espécie de QG dos fanáticos da Harley Davidson. Vinícius Rocha,
29 anos, ex-publicitário, vocalista da banda Mr. Blues e organizador do
festival, explicava o aspecto heterogêneo da platéia: "Aqui não tem modelito,
cada um vem na sua. A roupa do blueseiro é a sua alma. " Graças ao fes-
tival, Vinícius e seu sócio no clube Garage conseguiram catalogar mais de
400 bandas de blues na região do Grande Rio.
As bandas finalistas do Garage Underblues dão uma idéia do movi-
mento. A vencedora do festival - a Carinha da Gaita Blues Band - , da
Zona Sul, é liderada por Fernando Louzada, o "Carinha da Gaita", que
diz ter o blues no sangue: "Sou de uma família de ciganos, tenho paren-
tes que contrabandearam uísque. Acho que sou um negro que veio à Ter-
ra disfarçado de branco." Como prêmio pelo primeiro lugar, a Carinha
da Gaita ganhou a gravação de um videoclip e de uma fita demo, mais

Blues 193
uma apresentação no Garage, dividindo o programa com Celso Blues Boy
e a banda da casa, Mr. Blues.
A Lost Ballantynes, segunda banda colocada no festival, faz blues na
Baixada Fluminense. O gaitista /vocalista Osema Xavier e o baixo Ricardo
Infante se conheceram no Colégio Salesiano, do bairro de Rocha Miranda
e fundaram a banda em 1988. Ganham a vida como digitador e técnico
em química, mas estão sempre tocando em bares à margem dos trilhos
da Central do Brasil, um lance bem Delta blues.
Vinícius Rocha e sua Mr. Blues são de Niterói e ensaiam três vezes
por semana num estúdio alugado. Seus componentes são um advogado
trabalhista, um biólogo, um programador visual, dois músicos profissio-
nais que tocam e dão aulas (guitarra e baixo) e Vinícius, também empre-
sário e produtor da banda. Vinícius é ainda sócio da Garage, com Fábio
Costa, um torneiro mecânico de 33 anos, pai de três filhos, que trocou a
profissão pelo blues. Fábio começou como discotecário de rock em bai-
les de subúrbio e acha que o momento é este: "Estamos aqui, desde 1990,
e só agora o blues veio se juntar às outras tribos - e talvez seja a mais
underground de todas."
Os Ballantynes são um estranho no ninho da Baixada: conseguiram
invadir o espaço do pagode, da axé musice do funk em Duque de Caxias,
Nova Iguaçu e São João de Meriti, cantando em inglês, embora precisem
da ajuda de um tradutor para compor suas letras. Já o Carinha da Gaita
acha que dá para cantar blues em português. É o que pensa também um
dos papas do blues nativo, Celso Blues Boy: "Somos brasileiros e deve-
mos cantar na nossa língua.
Celso Ricardo Furtado de Carvalho, 37 anos, tirou o seu "Blues
Boy" do nome do ídolo B.B. King e considera cantar o blues "uma mis-
são que devo cumprir até o fim de meus dias." Nascido no Rio, morou
em Blumenau, Santa Catarina, dos 6 aos 14 anos. Começou na guitarra
aos nove, aprendendo com o pai ("ele só tocava três acordes, acho que
foi o primeiro punk do mundo" ). Primeiro, Celso acompanhava a irmã
pianista tocando Bach Uesus, Alegria dos Homens ). Desencaminhado por
um tio, mergulhou nos discos de rock e blues. Depois de tocar em alguns
bailes em Blumenau, rompeu com a família e pegou a estrada - um
autêntico rambler. Aos 17, acompanhava Sá & Guarabira, depois Raul
Seixas ("O diabo é o pai do rock" ) e em 1976, aos 19, formou o Legião
Estrangeira. Veio então a fase da pesada, os tempos do Appaloosa, um
clube de blues na Barata Ribeiro, em Copacabana. O Appaloosa era
praticamente a casa de Celso. Um dia, depois de beber com amigos, foi

194 Roberto Muggiati


até lá. No lugar do palco, encontrou um bando de mulheres nuas. O
Appaloosa tinha se transformado numa boate de strip-tease e Celso es-
quecera. E esquecido ficou ele, também, até o início dos anos 80, quan-
do um aluno de guitarra insistiu para que gravasse uma demo e a levou
à Rádio Fluminense. Dias depois, o som de Celso Blues Boy estava no
ar. Eram os tempos em que a Fluminense, "a onda maldita", fazia a ca-
beça da rapaziada e os shows da pesada começavam a acontecer no Circo
Voador, na Lapa, e nas Noites Cariocas, no Morro da Urca (os especta-
dores subiam pelo bondinho do Pão de Acuçar. ) Celso lançou o primei-
ro de seus seis discos em 1984, Som na Guitarra, e emplacou um hit com
a canção-manifesto Aumenta Que Isso Aí É Rock 'n' Rol!. Para o quar-
to álbum, Blues Forever, todo cantado em inglês - uma exceção na
carrreira de Celso - , ele fez eleições diretas no Circo Voador: o próprio
público escolhia o repertório do disco. Com uma média de 20 shows por
mês pelo país (até nisso segue o exemplo do workaholic ídolo B.B. King),
Celso confessa: "Desde pequeno ouço B.B., que funciona para mim como
um ponto de referência. Clapton, meu ídolo, entra como ponto de equi-
líbrio e Hendrix como desabafo."
Recentemente, Celso lançou a grife Blues Boy: óculos escuros e pa-
lhetas para guitarra e baixo. Afinal um pouco de marketing não faz mal
a um blueseiro apaixonado pela Fórmula-1: "Na Fórmula-1 é um cara
sozinho com uma coisa bruta e a guitarra é também uma coisa bruta. É
tão perigoso tocar um carro de Fórmula-1 como pilotar uma guitarra, tem
que ter reflexos rápidos, não pode errar."
Outras máximas do nosso Blues Boy:
"Eu não preciso me vestir de rock, falar como rock, agir como rock,
nem sei como se faz isso. Sei que todo dia de manhã, depois do café, leio
os jornais com minha Fender no colo."
"Acredito piamente que a guitarra tem uma alma, uma força sim-
bólica. É como o crucifixo ou a cruz para o cristão, um símbolo que tem
um poder muito grande e esse poder às vezes sufoca, muitas vezes eu te-
nho vontade de arrebentar com ela, mas só faria isso se pudesse ter ela
inteirinha de novo."
Sobre sua composição Fumando na Escuridão: "Essa é o meu xodó,
fala de um cara sozinho num trem - em trem está sempre o blues - e o
cara lá, sem ter nada pra fazer, a não ser fumar no escuro porque não há
ninguém no maldito vagão."
Um episódio revelador: em 1986, convidado pela revista Rol! para
entrevistar B.B. King, que se exibia no Brasil, Celso chorou de emoção.

Blues 195
King emprestou-lhe sua guitarra, a famosa Lucille, que Celso dedilhou com
carinho e competência. B.B. convidou-o para visitá-lo em Indianapolis e
talvez até gravar com ele lá. Celso acabou não indo.
Algumas cantoras brasileiras se aproximaram do blues, como a pau-
lista Rosa Maria. Elis Regina tinha uma sensibilidade blueseira, mas não
aprofundou. Cida Moreira, que lançou um álbum chamado Abolerado
Blues, encara sempre o repertório de cabaré e blues. Angela Rô Rô tam-
bém é chegada: "Sessenta e nove foi o ano em que saí de casa. Fui morar
com uns hippies internacionais numa casa lá na ladeira Saint Romain, aqui
no Rio, já estava com a minha cabecinha para os rocks, para os blues,
cantarolando aqui e ali."
Outro nesta trilha, misturando MPB, pop & blues, é Edvaldo Santana,
39 anos, do subúrbio de São Miguel Paulista, que lançou em 1993 seu
primeiro álbum solo, Lobo Solitário. Edvaldo foi louvado pelo poeta
Haroldo Campos (" ... é um ferroqueiro brutalista, pedras cantantes na
garganta, capaz de rock e rocha") e pelo ex-Titã Arnaldo Antunes ("her-
deiro da malandragem que não vê obstáculo algum na senda que vai do
samba ao blues ... "). Em seu álbum, acompanhado da banda Swing-Blues,
Edvaldo canta até um The Bluesman. Ele conta: "Eu vivia como vaga-
bundo, jogando futebol e tocando violão. Foi quando comecei a juntar o
suíngue brasileiro e a melancolia do blues."
O Rio de Janeiro é solo fértil para o blues. Houve até, em junho de
1994, um tributo a RobertJohnson no Circo Voador. Em agosto rolou no
Jazzmania o Top Cat Blues Festival, com músicos como Charlie Mussel-
white, Roy Roggers e Duke Robillard. Existem dinossauros como o Atlân-
tico Blues, formado em 1977 no Rio, fazendo ramal com Carlitos da Chess
Carlitos Discos. Uma Jimmy Shields Blues Band, de um americano, apre-
sentou-se no Blues & Rock Fest no ginásio do Fluminense. O bairro do Méier
tem o Suburblues. Há bandas sólidas como Big Allanbick, fundada no co-
meço de 1992; o Baseado em Blues; o Overblues, que vai de Willie Dixon
a Robben Ford; Os Srs., do ex-roqueiro Affonso Jr., tocando Willie Dixon
e Carl Perkins. O Zé da Gaita, o Blues Session e outras mais.
O Blues Etílicos, com oito anos de vida, cinco álbuns, já dividiu o
palco com celebridades como Buddy Guy, Junior Wells e Albert Collins.
Entre seus componentes está um americano do Mississippi, Greg Wilson
(vocais e guitarra), e um brasileiro, Flávio Guimarães (gaita e vocais), que
já tocou em Chicago. Além de composições originais, o Blues Etílicos
interpreta blues de RobertJohnson, Charlie Musselwhite e Son House. E
incorpora o toque brasileiro: no último disco, Salamandra, que usou o

196 Roberto Muggiati


engenheiro de som americano Tom Swift (de B.B. King, Eric Clapton, Miles
Davis e Rolling Stones), o Etílicos contou com a participação da clarineta
de Paulo Moura e do vozeirão de Ed Motta. Já participou também de um
disco de Erasmo Carlos, que é pai do baterista do grupo, Gil Eduardo. O
Blues Etílicos arriscou até uma versão em blues de um poema de Edgar
Allan Poe: "Este espírito do blues parece só baixar na língua inglesa.
Querer o contrário é o mesmo que ouvir samba cantado em inglês."
Existe vida inteligente no blues brasileiro além do Rio de Janeiro. O
americano Roy Rogers (que produziu o recente álbum de John Lee Hooker,
The Healer), esteve aqui recentemente com os seus Delta Rhythm Kings
e declarou-se muito feliz com o blues que ouviu no Brasil, particularmente
em Curitiba e Belo Horizonte. Blues de Belô? Uai! ...
Mas uma das forças do blues made in Brazil é mesmo o chamado
Blues da Garoa - o som da Grande São Paulo. Ali, muita coisa boa já
rolou em locais como o Aeroanta, ou nas noitadas de blues da Cultura
Inglesa; e surgiram recentemente clubes especializados como o Blue Note
Jazz Bar, nos Jardins; o Brittania, na Vila Mariana; e o Bourbon Street
Music Club, em Moema, que não fez por menos: trouxe para a festa de
sua inauguração, em dezembro de 1993, o lendário B.B. King. Entre as
muitas bandas que tocam nestes clubes estão a Companhia Paulista de
Blues (seu vocalista, Marcello Porto, gravou um jingle para o Pizza Hut),
e a banda Blue Jeans (que divide o guitarrista, o slider Marcos Ottaviano,
com a Companhia Paulista de Blues).
Um dos gurus do blues paulista é um branco nascido em Angola,
Nuno Mindelis, 38 anos. Começou na guitarra aos sete anos e formou
seu primeiro grupo aos 12, em Luanda. Desde então, Nuno nunca mais
largou o blues: "Este som faz parte da minha formação, é como a minha
caligrafia." No Brasil há 18 anos, Nuno partiu para a carreira solo em
1986 e lançou o primeiro disco (Long Distance Cal/) em fins de 1992. Sua
banda chama-se Cream Crackers, porque os músicos costumavam devo-
rar os biscoitos dos três filhos de Nuno durante os ensaios. É a família
que ainda matém Mindelis trabalhando na gerência de uma companhia
aérea, mas o blues ocupa cada vez mais o seu tempo livre.
A grande estrela do blues paulista é André Christovam, 36 anos,
nascido "na rua Amaral Gurgel, no dia 29 de agosto, o mesmo dia de
Charlie Parker, na minha casa sobre uma rotisserie." Garoto ainda, ele
descobriu o blues lendo as contracapas dos discos de rock britânicos dos
anos 60: Cream, Animais, Stones, todos falavam sempre de blueseiros
como Robert Johnson, Leadbelly, Muddy Waters.

Blues 197
"A primeira vez que ouvi estes caras foi bastante indigesta
para mim, era tão mal gravado e esquisito. Senti medo de How-
lin' Wolf, aquela voz parecia a voz de todos os pesadelos, algo
assombroso, demoníaco. Mas adorava o som das guitarras. Com
o tempo, não queria mais ouvir outra coisa... "

O pai de André (a família era espírita) queria que ele tocasse música
erudita. Um episódio meio místico mudou tudo. O próprio André rela-
tou, numa entrevista ao Estadão em 1989:

"André tinha 14 anos e queria uma guitarra. Durante o


sono viu um clarão que falava . E a voz dizia para ele escolher
entre a garota e guitarra - as duas opções eram o seu sonho.
André vacilou, mas abraçou a moça. Esperou um segundo. Dei-
xou a garota de lado e se interessou pela guitarra. 'Posso dar
uma olhadinha?', perguntou à voz. Era só uma olhadinha, mas
ele não conseguiu desgrudar mais daquelas cordas. No dia se-
guinte, avisou ao pai: 'Estou pirando. Sonhei de novo com a
guitarra'. E o velho não resistiu ao apelo."

Outro lance meio do Além. Aos 20 anos, o pai de André morre e ele
vende a casa que herdou e parte para os Estados Unidos. Vai estudar no
Guitar Institute of Technology (parece até coisa da NASA... ) de Los An-
geles, onde conheceu o baixista Dan Duran {ex-Aretha Franklin). Duran
torna-se o seu guru. Todo dia faz André ouvir discos de velhos bluesmen
e cobra o dever de casa no manhã seguinte, obrigando André a tocar cer-
tas passagens. Duran tinha uma loja de guitarras antigas onde André cos-
tumava passar o dia inteiro. Foi lá que topou com o bluesman Albert Collins
e se tornou seu roadie. Fez também amizade com Buddy Guy. Quando
Buddy esteve no Brasil, foi André quem lhe emprestou o equipamento para
tocar. Em retribuição, Buddy o convidou a apresentar-se na sua casa de
blues de Chicago, o Legend's Bar. Mas isto ficaria para muitos anos de-
pois. Em 1974, André tinha formado o power trio Fickle Pickle. Rodou o
mundo (morou em Los Angeles, Nova Iorque, Lisboa, Paris e Londres) e
voltou ao Brasil em 1985, formando o Heróis do Brasil com Kid Vinil.
Em 1989, André mostrou que era um dos raros bluesmen nativos ca-
pazes de traduzir para o português o espírito do blues, no LP Mandinga.
Como na faixa Genuíno Pedaço de Cristo:

198 Roberto Muggiati


"Camelô vendendo adoidado chaveiro de lasca de pedra,
genuíno pedaço de Cristo. Não gasta. Não suja. Não quebra... "

Em 1990, lança outro álbum, A Touch of Glass, alusivo ao cilindro


de vidro que envolveu o seu dedo para obter o efeito slide, deslizando sobre
as cordas da guitarra. Em 1991, para resolver um bloqueio criativo, André
Christovam viajou às fontes. Resolveu gravar no lendário estúdio da Chess
em Chicago, lar de gênios como Willie Dixon, Muddy Waters, Howlin' Wolf
e Chuck Berry, depois visitado pelas estrelas do rock britânico Animais,
Yardbirds e Stones. Os Rolling Stones chegaram a gravar uma faixa (do
LP 12 x 5) nomeada em homenagem ao endereço do estúdio da Chess, 2120
South Michigan Avenue. André foi buscar seus músicos no Legend's Bar
de Buddy Guy e convocou, entre outros, o veterano Andrew Odom, bati-
zando o álbum como The 2120 Sessions.
Há pouco tempo, André Christovam tentou se descrever numa frase
e acabou definindo o dilema do blueseiro brasileiro em geral:

"Não acho que estou sendo mais um músico de blues e sim


um músico bluesy. É uma carga muito pesada ser um bluesman
branco nascido em Santa Cecília ... "

Blues 199
Bo Diddley: a ponte entre o blues e o rock
24.
DA LAMA À FAMA

Os Beatles amavam os blues. Ringo Starr quis se mudar de Liverpool


para Houston, no Texas, porque seu ídolo Lightnin' Hopkins nasceu lá.
Chegou até a pedir visto no consulado americano de Liverpool, mas de-
sistiu diante da papelada exigida, "tudo para saber se o cachorro dina-
marquês de meu avô simpatizava com os comunistas". John Lennon vê
uma grande semelhança entre os Deltas do Mississippi e do Mersey:

"Éramos um bando de descendentes de irlandeses, negros e


chineses, gente de todo tipo. Mas não havia nada de grandioso
em Liverpool, não era uma grande cidade americana. Era uma
cidade que empobrecia, de vida muito dura. Mas os naturais de
Liverpool têm muito humor, porque sofrem muito. Estão sempre
inventando piadas. São muito espirituosos e Liverpool é quase uma
cidade irlandesa. Foi ali que os irlandeses aportaram quando suas
batatas acabaram. Ali os negros foram abandonados ou foram tra-
balhar como escravos. "

John Lennon, que tinha também uma sensibilidade plástica, descre-


ve filosoficamente o blues:

"O blues é bonito porque é simples e real. Nem pervertido,


nem refletido. Não é um conceito, é como uma cadeira. Não o
desenho de uma cadeira, mas a primeira cadeira. A cadeira é feita
para sentar, não para olhar ou apreciar. E a gente senta naquela
música de blues."

O acesso dos jovens ingleses à música nos anos 50 ainda era muito
restrito. Devido a problemas com a distribuição de discos (os britânicos
preferiam privilegiar os seus produtos) e com a programação radiofônica
(estatal e estática, dominada pela BBC), o rock 'n' roll levaria alguns anos
para atravessar o Atlântico. Sem urna infra-estrutura que divulgasse a nova
música (rádios, disc-jóqueis, concertos, etc.), os jovens ingleses só podiam

Blues 201
contar com os discos - mesmo assim editados com atraso - ou então,
era o caso de muitos, sequer lançados no mercado britânico.
Este vazio foi preenchido nos anos 50 pela onda musical do skiffle,
que tomou conta da Grã-Bretanha. Era uma espécie de imitação tosca,
meio caricata, da música rural do Sul do Estados Unidos, do velho blues
feito com instrumentos de fabricação caseira, tinas e tábuas de lavar rou-
pa, pente com papel de seda, gaitinha-de-boca, banjo de caixa de charu-
to e arame, contrabaixo de caixa de sabão e cabo de vassoura. Mas foi o
skiffle que deu ao rock britânico sua rica e sólida base de blues, através
de pioneiros como Alexis Korner e John Mayall (nascidos em 1928 e 1933 ).
Korner tinha sangue de rambler e vida de cigano. Nasceu em Paris,
de pai austríaco e mãe greco-turca. Passou a infância rodando pela Europa
ai:é que os pais decidiram se fixar na Inglaterra em meados dos anos 30.
Começou a aprender piano e teoria musical aos cinco anos. O pai era oficial
de cavalaria durante a Primeira Guerra e queria que o filho fosse diplomata.
Aos 12 anos, Alexis se envolveu com uma gangue de rua que costumava
roubar discos na feira de camelôs de Shepherd's Bush, em Londres. O pri-
meiro disco que roubou foi um boogie de Jimmy Yancey. A partir daí só
queria tocar blues e jazz. Servindo na Alemanha em 1947, começou a to-
car em bandas locais e, ao voltar a Londres, entrou para a orquestra de Chris
Barber, um dos mais respeitados jazzeiros do estilo tradicional na Inglaterra.
Entre 1956e1960, segundo Korner, Barber cometeu um autêntico suicídio
cultural, introduzindo em seus shows um grupo de rhythm & blues (do qual
Alexis participava) e trazendo para a Inglaterra bluesmen americanos como
John Lee Hooker, Muddy Waters e Otis Spann. O Blues Incorporated (era
o nome do grupo) tornou-se lenda a partir de suas primeiras apresentações
no Ealing Rhythm & Blues Club de Londres, em março de 1962, formado
por Cyril Davies (harmônica, vocais), Alexis Korner (guitarra), Charlie
Watts (bateria) e Art Wood (vocais). Entre futuros astros do rock, toca-
ram e cantaram com Korner: Mick Jagger, Keith Richards, Brian Jones,
Charlie Watts (quatro dos cinco Rolling Stones originais); Eric Clapton,
Jack Bruce e Ginger Baker (a totalidade do Cream); Eric Burdon (dos Ani-
mals); Paul Jones (do grupo de Manfred Mann) e os futuros jazzistas John
McLaughlin e John Surman. Fiel à tradição do blues do Delta, Alexis Korner
- que ganhou o título de Pai do Blues Inglês - permaneceu à sombra, uma
figura cult perdida nas névoas do tempo. Morreu de câncer num hospital
de Londres, em 1ºde janeiro de 1984, um domingo, aos 55 anos.
John Mayall se defendeu melhor. Nascido em Manchester, interessou-
se pelo blues aos 13 anos, morou numa casa em cima de uma árvore, serviu

202 Roberto Muggiati


na Guerra da Coréia e, de volta à Inglaterra, formou um grupo, o Power-
house Four. Só em 1963, aos 30 anos, estimulado por Alexis Korner, mu-
dou-se para Londres, onde fundou um grupo que faria história - os Blues-
breakers - e forneceria para as superbandas inglesas guitarristas como Eric
Clapton (Cream) e Mick Taylor (Stones). Em 1969, Mayall reuniu uma
formação reduzida e compacta, quase uma heresia, pois abolia a bateria e
a guitarra elétrica, usando o violão acústico de John Mark, os saxofones
/flautas de John Almond, o baixo de Steve Thompson e ele mesmo aos vocais
e gaita-de-boca. O álbum Turning Point foi realmente uma virada em sua
carreira e na trajetória do blues-rock. Em 1971e1972, Mayall gravou nos
Estados Unidos dois álbuns que lançariam uma nova tendência, a jazz-blues
fusion, incluindo no grupo básico de rock o trompete de Blue Mitchell, o
saxofone de Clifford Solomon e a guitarra de Freddy Robinson. Verdadeira
lenda viva - apelidado de Big Daddy of the British Blues, "vovô do blues
britânico" - , John Mayall seguiu gravando e participando de shows e fes-
tivais pelo mundo afora. Esteve no Brasil no Free Jazz Festival de 1989 e
numa turnê em março de 1994 em São Paulo, quando afirmou: "O blues
é um universo muito interessante e dinâmico. Acho que o mais importan-
te é que está cada vez mais popular. Existe toda uma nova geração que vem
trabalhando com o blues e usando o blues como influência." O blues, reco-
nhecido, agradeceu, através de John Lee Hooker: "A cho que os grupos
ingleses foram responsáveis pela volta do blues... gente como John Mayall.
Estes caras sentem mesmo o blues. A cor da pele não faz diferença."
Um dos grupos britânicos mais marcados pelos blues foram os Rolling
Stones. O nome da banda foi sugerido pelo guitarrista BrianJones, basea-
do numa canção de Muddy Waters, que era a sua inspiração maior. Já no
seu primeiro álbum eles gravavam uma canção de Willie Dixon (I]ust W ant
to Make Lave to You) e outra de Bo Diddley (I N eed You, Baby). Outras
covers de blues se seguiram: Little Red Rooster, de Willie Dixon; I Can't
Be Satisfied, de Muddy Waters; Confessin' the Blues, de Jay McShann; e,
no álbum Let It Bleed, de 1969, a canção que desencadearia o reviva[ de
Robert Johnson, Lave in Vain. Num trabalho mais solto, o LP de 1972
]amming With Edward, três dos Stones (Jagger, Wyman e Watts) tocam
com o tecladista Nicky Hopkins e o guitarrista Ry Cooder. Um dos pon-
tos altos do disco é um blues de Elmore James.
Derivada do blues, a expressão rolling stones tornou-se uma autênti-
ca marca registrada do rock: deu o nome à banda inglesa, a uma canção
de Bob Dylan (Like a Rolling Stone) e à revista R olling Stone, lançada em
novembro de 1967 em San Francisco (capital inicial: 7.500 dólares, de

Blues 203
empréstimos) e que se tornaria uma empreitada milionária, a Life da Ge-
ração de Woodstock. O blues deu nome a outras bandas, como a ameri-
cana Canned Heat, da canção de Tommy Johnson exaltando a beberagem
infernal que o endoidava. Fiel à vocação, o Canned Heat foi um dos primei-
ros grupos a gravar com blueseiros - o excepcional álbum duplo de 1971
Hooker 'n Heat, com John Lee Hooker - e, na área da tragédia, enfren-
tou a morte prematura do seu guitarrista Al "Blind Owl" Wilson em 1970,
aos 27 anos. A banda inglesa Badfinger tirou seu nome de um blues cha-
mado Badfinger Boogie. Metade do nome do The Lovin' Spoonful vem de
um título de blues e o grupo foi batizado numa época em que o cantor John
Sebatian atuava com o bluesman MississippiJohn Hurt. Outras bandas com
atmosfera de blues no nome: a inglesa Moody Blues, a escocesa Bay City
Rollers, a irlandesa Boomtown Rats e a americana Grand Funk Railroad.
E o pai da space opera, o Pink Floyd - quem diria? - , criou sua marca
engenhosamente a partir dos nomes de dois bluesmen desconhecidos da
Geórgia: Pink Anderson e Floyd Council. Ouçam com atenção: até mesmo
o rock etéreo e aparentemente techno do Pink Floyd está carregado de blues,
na guitarra em câmara lenta de Dave Gilmour e nos teclados de Rick Wright.
A música de RobertJohnson e de ElmoreJames inflamou também a
imaginação de outro guitarrista da geração dos Beatles e dos Stones, Eric
Clapton. Nascido em 1945 em Surrey, ao sul de Londres, Clapton come-
çou copiando Chuck Berry. Ele contou depois à revista Rolling Stone:

"Toquei exatamente como Chuck Berry durante seis ou sete


meses. E então me liguei nos cantores de blues mais velhos. Ado-
rei Big Bill Broonzy, que estava mais à mão; depois ouvi uma
porção de caras que nunca tinha ouvido antes: Robert ]ohnson,
Skip James e Blind Boy Fuller. Acabei ficando completamente
fascinado por este mundo novo. Ouvi, estudei, mergulhei no
blues e emergi tocando blues."

Depois de uma temporada nos Yardbirds, Eric fez o seu PhD de blues
na banda de John Mayall, os Bluesbreakers. A partir da primavera de 1965,
passou dois anos trancado num quartinho da casa de Mayall, vivendo só
para a guitarra. É a esta altura que começa a ser chamado de God, Deus,
em vez do apelido Slowhand, que ganhara nos anos do clube Crawdaddy,
pela maneira especial e blueseira de tanger a guitarra. Em 1966, Clapton
forma o Cream, com o baixista Jack Bruce e o baterista Ginger Baker. Este
supergrupo compacto - apenas um trio -ganha as paradas cantando blues

204 Roberto Muggiati


de Willie Dixon (Spoonful) e de RobertJohnson (Crossroads) . Mas a con-
vivência de três superstars, adulados pelo público e pela crítica, é difícil,
quase impossível: dois anos depois, o Cream se desfaz, com um concerto
de despedida no Royal Albert Hall de Londres. Formando novos grupos
e, em certas ocasiões, praticamente solo, Eric Clapton enfrenta duas déca-
das tentando conciliar uma carreira bem-sucedida com uma vida particu-
lar cheia de dramas. Nos anos 80, faz esta autocrítica, em que mergulha
fundo no sentimento dos blues:

"Quando comecei com a guitarra, eu era imaturo e achava


que para tocar bem os blues precisava ser miserável. Era como
se tivesse que estar sempre cheio de problemas para tocar com
convicção. É claro, se você vai viver assim, não vai viver muito
tempo. Então, nos anos 70, pensei que talvez pudesse me aquie-
tar, levar uma vida feliz sentado com o cachorro diante da lareira
e talvez fingir a miséria do blues, o que era uma atitude igualmen-
te imatura. (... ) Finalmente, descobri que o supremo herói da
guitarra deveria ser um distribuidor de sabedoria, bem como de
qualquer coisa mais. E é isso que ainda busco, além da perfeição
como músico: a conquista da sabedoria, em qualquer quantidade."

O próprio Clapton indicou o caminho da iluminação ao afirmar que


os dois LPs de Robert Johnson (King of the Delt Blues Singers) "satisfa-
ziam plenamente todas as minhas ambições musicais. Eles transmitem
todos os tipos de expressão e todas as emoções." Joe Cocker, o gasista-
bombeiro de Sheffield que se tornaria o "Caruso da música pop" e faria
uma interpretação envenenada lendária de With a Little Help from My
Friends, dos Beatles, no Festival de Woodstock- também bebeu na boa
fonte do blues. Entre os seus favoritos, Cocker cita Lightnin' Hopkins,
Howlin' Wolf e Muddy Waters. Um depoimento eloqüente sobre o im-
pacto do blues na Inglaterra dos sixties foi dado pelo líder do grupo The
Animals, Eric Burdon, à revista americana Ebony, em 1966:

"Nasci em Newcastle, uma típica região de construção na-


val e mineração de carvão. E eu era um típico estudante daquela
típica cidade do Norte, a alguns anos de ingressar na universida-
de. Foi em Newcastle que ouvi meu primeiro disco soul. Eu mo-
rava num edifício de apartamentos e no andar de baixo morava
um sujeito da marinha mercante que viajava com freqüência aos

Blues 205
Estados Unidos. Ele trazia discos de suas viagens, desde Bill
Haley (isso foi antes da explosão dos Beatles) até Dave Brubeck.
Entre estes dois extremos, havia canções estranhas gravadas por
gente de nomes estranhos como Fats Domino, Robert Johnson,
Big Maybelle. Os primeiros discos que realmente me fissuraram
foram Don't Roll Those Bloodshot Eyes at Me, de Wynonie
Harris, e Sam Jones Done Snagged His Braces, de Louis Jordan.
Senti então que um dia tentaria cantar daquele jeito ...
Comecei a colecionar coisas - fotografias, artigos de jornal,
recortes de revistas - para descobrir por que os negros eram
maltratados, às vezes brutalmente. Aos 17 anos me apaixonei
loucamente por uma garota africana e pretendia levá-la comigo
para a América. Mas, quando conheci a América e vi como eram
as relações entre as raças, falei para mim mesmo: 'Deixa pra lá... "'

Não foi só no outro lado do Atlântico que o blues repercutiu. Jovens


de toda a América, já no final dos anos 50, começaram a despertar para
a música negra e para a tradição folk, estimulados pelo movimento de con-
testação dos valores do Establishment, iniciado pelos beats. Em meados
da década, a "geração silenciosa", como era conhecida, começou de re-
pente a fazer um barulho infernal: o rock 'n' roll. Mas o som de Elvis &
Cia. logo foi abafado nas paradas por outras modas, mais bem-compor-
tadas, e ritmos de dança fúteis.
Os anos 60 iniciaram-se com a canção de protesto (Bob Dylan, Joan
Baez, Peter, Paul & Mary) - derivada do folk - cadenciando as cami-
nhadas pelos direitos civis. Nascido em 1941 num buraco do Norte dos
EUA - Duluth, Minnesota, Robert Zimmerman inventou para si um nova
persona, sob o nome de Bob Dylan, que tinha muito a ver com o cantor de
blues errante. Seu ídolo era branco, o cantor folk Woody Guthrie, mas Dylan
também foi buscar muito de sua inspiração no blues. Em suas primeiras
gravações, acompanhou na gaita-de-boca uma figura lendária do blues, Big
Joe Williams, por intercessão de uma das rainhas do blues clássico dos anos
20, Victoria Spivey, que Dylan conheceu nos seus tempos de iniciante no
Gerde's Folk City, no Village de Nova Iorque. A forma e o espírito do blues
estão presentes nas músicas de Dylan, como Outlaw Blues, Subterranean
Homesick Blues, Black Crow Blues, Bob Dylan's Blues, Poor Boy's Blues
e nos muitos talkin' blues, como Talkin']ohn Birch Paranoid Blues e nos
surrealistas Talking Bear Mountain Picnic Massacre Blues e Talkin' World
War III Blues. Depois de uma fase em que chegou até a se engajar com o

206 Roberto Muggiati


fundamentalismo religioso (virada dos anos 70 / 80), Dylan, no disco de
1993, World Cone Wrong, faz uma verdadeira declaração de amor ao velho
blues. Sozinho, acompanhando-se ao violão e à gaita-de-boca, canta covers
de blues de gente como Blind Willie McTell, os Mississippi Sheiks, Willie
Brown e Doe Watson. O Dylan do início dos anos 60 não tinha muito a
ver com o blues - era o Dylan de Blowin' in the Wind. Em pouco tempo,
o som suave do pacifismo deixou de satisfazer uma juventude rica e vibrante,
sedenta de ação. Foi assim que o blues voltou à América, percorrendo uma
estranha trajetória: via Grã-Bretanha ... A música agitada dos Beatles, Rolling
Stones, Animals, The Who e Yardbirds atingiu a juventude americana como
um soco na boca do estômago. E finalmente em 1967 - o Ano da Flor-,
na Califórnia, tudo começou a acontecer. Foi lá que os Doors saíram di-
reto do seu primeiro disco para o número um das paradas, com Light My
Pire. Foi lá, no festival Monterey Pop, que nasceram duas superestrelas,
Janis Joplin e Jimi Hendrix. Com Jim Morrison, formariam os 3 Js, a San-
tíssima Trindade trágica do rock. Ídolos em 1967, viveriam seu apogeu em
três anos e depois desapareceriam. Jimi morreu em Londres em setembro
de 1970; ]anis, poucos dias depois, em Los Angeles; e Jim foi encontrado
morto numa banheira em Paris, em junho de 1971.
James Douglas Morrison tinha tudo para ser um garoto típico da
classe média americana dos anos 60. Filho de um oficial da Marinha (o
pai chegaria a almirante), nasceu na Flórida em 1943, cresceu na Virgínia
e na Califórnia. Jim lia de tudo, da Odisséia de Homero ao Ulysses de
James Joyce. Leu On the Road de Jack Kerouac pouco depois da publi-
cação do livro em 1957. Resolveu reler o livro, anotando passagens num
caderno em espiral que levava por toda parte. Morava a menos de uma
hora de ônibus de North Beach, o reduto dos principais escritores da beat
generation em San Francisco. Lia a poesia dos beats e lia a poesia dos blues.
Mais tarde, já cantor famoso, dizia à revista Rolling Stone:

"Gosto de cantar os blues, gosto daquelas longas e livres


viagens de blues sem nenhum começo específico ou fim. A gen-
te vai seguindo um caminho e eu posso ir inventando coisas. E
todo mundo fa z solos. Prefiro este tipo de canção a apenas mais
uma canção. Sabe, gosto de sair andando por um blues e ver até
onde ele nos leva. "

Jim pensava em formar uma banda, já tinha até o nome, The Doors,
tirado de uma citação do poeta visionário William Blake: "Se as portas

Blues 207
da percepção fossem lavadas, tudo pareceria ao homem como verdadeira-
mente é: infinito." Há quem diga que o título da banda veio de Blake
via Aldous Huxley, que descreveu no livro As Portas da Percepção os efei-
tos psicológicos da experiência das drogas. Jim encontrou o parceiro ideal
no tecladista Ray Manzarek. Os dois tinham estudado cinema na UCLA,
famosa por acolher professores como Jean Renoir, Josef von Sternberg
e Stanley Kramer. Um de seus colegas era Francis Ford Coppola, que anos
depois homenagearia os Doors usando música sua na trilha de Apo-
calypse Now. Jim e Ray viraram drop outs, caíram fora. Em 1965, vol-
taram a se encontrar por acaso na praia de Venice, em Los Angeles. Ray
perguntou o que fazia, Jim disse que compunha umas canções. "Então
vamos formar uma banda e ganhar um milhão de dólares'', disse Ray.
E Jim completou: "É isso aí, era exatamente o que eu estava pensando ... "
Os Doors ganharam em pouco tempo seu milhão de dólares e outros
mais. Ray, como Jim, era ligado nos blues. Já aos 12 anos ouvia rhythm
and blues de Chicago e formara um grupo com dois irmãos, Rick and
the Ravens, em que ele aparecia com o nome blueseiro de Screamin' Ray
Daniels. Como os irmãos não gostavam muito de blues, acabaram ce-
dendo seu lugar no grupo ao guitarrista Robby Krieger e ao baterista
John Densmore, que apreciavam, como Jim e Ray, a música negra. Os
blues faziam parte do repertório dos Doors. Gravaram - e freqüente-
mente tocavam em suas apresentações - os clássicos de Willie Dixon
Back Door Mane Little Red Rooster, logomarcas musicais que Dixon
criou para Howlin' Wolf, e Who Do You Lave?, de Bo Diddley. Mas os
milhões de dólares não fizeram nenhum bem a Jim Morrison. Afastou-
se do grupo e morreu aos 2 7 anos, em condições misteriosas, num apar-
tamento que alugara perto da Place des Vosges, em Paris. Foi Paris, mas
podia ser em qualquer lugar do Texas, a morte prematura de mais um
bluesman estradeiro e pobre.
História parecida foi a de Janis Lyn Joplin, nascida também em 1943
em Port Arthur, Texas. Era uma cidade de 70 mil habitantes que vivia do
petróleo, e o pai trabalhava na Texaco. Janis era uma garota sensível que
destoava dos colegas. Um dos passatempos dos garotos texanos, que po-
diam dirigir a partir dos 14 anos, era sair nos carrões dos pais e, com uma
tábua grossa, derrubar os negros que passavam de bicicleta pelo acosta-
mento das estradas. Janis não conseguia hostilizar os negros. Era até cha-
mada de nigger lover ("amante de crioulos") porque se interessava pela cul-
tura negra, que conhecera através da leitura de autores beats como Jack
Kerouac e Allen Ginsberg. Daí para os blues foi um passo:

208 Roberto Muggiati


"Um cara que conheci me fez ouvir as canções de Bessie
Smith. Ele também tinha uns discos de Leadbelly, que eu ouvi
e gostei muito mais do que aquelas coisas que tocavam nas rá-
dios. Comecei então a ouvir blues e folk. Lendo livros sobre
blues, eu cruzava sempre com o nome de Bessie Smith. Assim,
encomendei uma porção de discos dela pelo correio e acabei me
apaixonando por ela.'"

Janis não era religiosa mas ia à igreja com a família e chegou a can-
tar no coro. Só se imaginou como cantora depois que começou a ouvir
os blues. Contam que uma noite, numa festa, tocaram um disco de Bessie
Smith (ou de Odetta, segundo outras versões) e Janis falou: "Também
posso cantar assim!" E diante de uma platéia cética soltou o vozeirão
incrível pela primeira vez. Janis havia descoberto a sua "outra voz" - a
negra que lhe dava o sentimento de libertação total que sempre buscara.
Anos mais tarde, ele confessou: "Desde o dia em que comecei a cantar
pra valer, nunca mais cantei outra coisa - só o blues."
Janis alcançou o sucesso de repente, através de uma única música,
no Primeiro Festival Internacional Pop de Monterey. Quando começou a
cantar - para uma platéia que incluía o stone Brian Jones e Mama Cass
Elliott, do grupo The Mamas and the Papas - era uma superstar. A can-
ção era (Lave Is Like a) Bali and Chain, até então exclusivamente asso-
ciada à cantora negra Big Mama Willie Mae Thornton.
Rica e famosa, Janis Joplin seguiu cantando seus blues (o segundo
álbum chamou-se I Got Dem OI' Kozmic Blues Again, Mama), trocan-
do de bandas e de amantes. Em 1970, depois de um louco Carnaval no
Brasil - só cantou num bordel da Bahia, onde se hospedou por três dias
- , Janis formou uma nova banda, a Full-Tilt Boogie, e embarcou num
novo som, que catalogou de "loud electric funky country blues". No dia
4 de outubro, foi encontrada morta de overdose de heroína num quarto
de hotel em Los Angeles. Uma das últimas coisas que Janis fez foi man-
dar construir um túmulo de mármore negro para Bessie Smith sobre a
cova rasa em que estava enterrada a Imperatriz do Blues no cemitério de
Filadélfia. E mandou inscrever na lápide: "BESSIE SMITH, 1894-1937. A
MAJOR CANTORA DE BLUES DO MUNDO JAMA1S DEIXARÁ DE CANTAR". B.B. King
dizia: "Janis Joplin canta os blues com tanto sentimento como se fosse
negra." Janis respondia, agressiva: "Canto música negra para tirar di-
nheiro dos brancos." Outra frase em que Janis expressou o dilema da sua
condição: "Um dia ainda vou compor uma canção que descreva o que é

Bl ues 209
fazer amor com 25 mil pessoas num concerto e depois voltar para casa
sozinha." Fiel ao espírito boêmio do blues, ]anis Joplin, que tinha o ape-
lido de "Pérola" (Pearl foi o título de seu último álbum, póstumo), deixou
em seu testamento 2.500 dólares para uma festa fúnebre que aconteceu
tempos depois, numa boate de San Anselmo. "As bebidas são por conta
de Pearl", dizia o convite. E umas duzentas pessoas atenderam ao cha-
mado, bebendo os venenos prediletos de Janis - Southern Comfort,
Kahlua, tequila, vodca e um ponche de Pina Colada - ao som de gru-
pos de rock como o Grateful Dead. Uma ironia afinal: a última faixa do
álbum Pearl ficou apenas instrumental, não houve tempo de gravar a voz
de Janis. O título da canção era Buried Alive in the Blues, "Enterrada
Viva nos Blues".
Jim e Janis morreram com 27 anos. Jimi Hendrix, com 28. Uma pe-
quena diferença em três vidas (e mortes) incrivelmente semelhantes: Jimi
Hendrix era negro. Mas, no auge da sua carreira - aqueles anos admirá-
veis entre 1967 a 1970-, existiu uma cultura em que branco e preto, mascu-
lino e feminino, político e poético se fundiam numa única entidade. Hendrix,
nativo de Seattle - a terra do grunge-, precisou ir até a Inglaterrra e se
fantasiar de dândi psicodélico para conquistar a América. O guitarrista dos
Rolling Stones, BrianJones (que morreria misteriosamente no ano seguin-
te), viajou da Inglaterra até Monterey só para anunciar o espetáculo de Jimi,
no mesmo festival que revelou }anis. Jimi fez uma apresentação inesque-
cível, culminando com a queima ritual de sua guitarra sobre o palco. James
Marshall Hendrix foi um dos primeiros war babies americanos: nasceu em
1942, ano em que os Estados Unidos entraram efetivamente na Segunda
Guerra Mundial. Seu pai era um jardineiro negro; sua mãe, filha de uina
índia Cherokee. Jimi estudou gaita-de-boca, depois violino. Aos 11 anos,
ganhou uma guitarra. Aos 14 - cabelos gomalinados, gravata-borboleta
e summer jacket - animava bailes nas noites de sábado com The Rocking
Kings. Seus professores eram os discos de cantores de blues como B.B. King
e Muddy Waters e do roqueiro Chuck Berry.
O disco que saiu em 1994, Blues, mostrando a ligação de Jimi com
o gênero, traz incríveis revelações. Nas extensas notas de capa, Michael
J. Fairchild afirma que Jimi Hendrix teria tido uma iniciação de vodu e
blues em Macon, na Geórgia, aos 13 anos, em 1956. Para justificar sua
tese, Fairchild cita Michael Ventura em Whole Earth Review, 1987:

"Nos anos 1650, depois que Oliver Cromwell conquistou


a Irlanda numa série de massacres, ele deixou seu irmão Henry

210 Roberto Muggiati


como governador da ilha. Na década seguinte, Henry vendeu
milhares de irlandeses, principalmente mulheres e crianças, como
escravos para as Índias Ocidentais. Cálculos falam de 30 a 80
mil pessoas. Os escravos irlandeses, em sua maioria mulheres,
foram casados com africanos. Virtualmente todo relato sobre o
vodu indica, a certa altura, como são semelhantes as suas práticas
de bruxaria com as práticas da feitiçaria européia. Pagãos pra-
ticantes da Irlanda infundiram suas crenças aos africanos, mistu-
rando no vodu duas grandes correntes de metafísica não-cristã. "

Este caldeirão afro-irlandês, dentro de um caldeirão americano que


continha o índio Cherokee, revela a linhagem clássica do blues de Jimi
Hendrix. O pai diz que Jimi costumava ouvir B.B. King e Muddy Waters
e tocar guitarra acompanhando os discos. Jimi esclarece: "Onde apren-
di realmente a tocar o blues foi no Sul, quando servi o exército durante
nove meses." Estudiosos da vida e obra de Jimi Hendrix estabelecem até
uma ligação mística com Robert Johnson. Em 6 de março de 1942, o
maior tornado que já se abateu sobre o Delta varreu da face da terra o
botequim Three Forks, onde Robert foi envenenado. Nove meses depois,
nascia Jimi Hendrix.
Hendrix teve uma experiência de estrada rica em blues. Excursio-
nou pelos Estados Unidos, Canadá e Bermudas com o grupo dos Isley
Brothers. No Tennessee, participou de um pacote itinerante de rhythm
& blues que incluía seu ídolo B.B. King, mas perdeu o ônibus e ficou a
pé em Kansas City. Lá achou uma vaga na banda de Little Richard, o
primeiro superstar andrógino do rock. Jimi largou a companhia em San
Francisco e entrou para a turnê da Ike & Tina Turner Revue, que o le-
vou até Nova Iorque. No verão de 1966, Jimi - com o nome de Jimmy
James, acompanhado pelo grupo The Blue Flames - era uma atração
exótica do Café Au Go Go, no Village, e vários astros britânicos foram
vê-lo: os Beatles, três dos Rolling Stones, Bob Dylan. Chas Chandler, gui-
tarrista do grupo The Animals, em turnê pelos EUA, propôs a Hendrix:
"Venha comigo à Inglaterra e farei de você uma estrela." Dito e feito.
Com roupas coloridas, um novo nome, um baixista e baterista brancos
e o trio batizado de The Jimi Hendrix Experience, Jimi aterrissou com
impacto no cenário do rock, saudado como "o guru do blues eletrôni-
co" . O dinheiro e a fama tiveram sobre Jimi o mesmo efeito destrutivo
que acabou com Jim Morrison e Janis Joplin. Na roda viva do "sexo,
drogas & rock 'n' roll" (parece clichê, mas é a pura verdade), Jimi bri-

Blues 211
lhou no Festival de Woodstock em 1969, fez um concerto pela paz no
Madison Square Garden de Nova Iorque, uma filmagem meio maluca no
Havaí (Rainbow Brigde) e uma apresentação frustrante no Festival da
Ilha de Wight, em 1970. Na noite de 16 de setembro, em Londres, Jimi
foi ver o show do amigo Eric Burdon no clube de jazz de Ronnie Scott e
deu uma canja. Tocou pela última vez e tocou blues. No dia 18, foi en-
contrado inconsciente no quarto do hotel e chegou ao hospital morto.
O patologista registrou "morte por sufocação causada pela inalação de
vômito após a intoxicação por barbitúricos".
Jimi foi outro enterrado vivo pelos blues. Chegou a gravar alguns
deles, como Rock Me, Baby, de B.B. King, e Bleeding Heart, de Elmore
James. E toda a sua música estava impregnada de blues, uma espécie de
tradução para a Era do Homem na Lua da velha tradição do Delta, um
casamento perfeito das raízes com a alta tecnologia. Na sua última en-
trevista à imprensa, depois do Festival da Ilha de Wight, Hendrix falou
sobre a corrente sonora do futuro:

"Gosto de Richard Strauss e de Wagner, são caras legais e


acho que vão formar a base da minha nova música. Mas pai-
rando no céu acima de tudo estarão os blues - ainda tenho
muito do blues - e haverá a celestial música do Ocidente e a
suave música do Oriente, misturadas para formar uma coisa só."

A febre do blues não parou nos anos 60. O grupo que abriu com
estardalhaço os anos 70 - o britânico Led Zeppelin - também era chega-
do ao som do Delta. Na biografia da banda, Hammer of the Gods, Stephen
Davis mostra esta conexão à luz do perfil protometaleiro do Zeppelin:

"Na verdade, todos os jovens músicos ingleses que inva-


diram a América no rastro dos Beatles - os Rolling Stones,
Animais, Yardbirds e Kinks, na primeira onda; Cream, Jeff Beck
e Led Zeppelin, na segunda - consideravam a si mesmos estu-
diosos dos blues. A maioria deles, antes sequer de pisar num
palco, tinha passado meses e anos trancada em seus quartos
tocando velhos discos, absorvendo o blues clássico.norte-ame-
ricano de Blind Lemon Jefferson, Big Bill Broonzy, Skip James,
Leadbelly e Muddy Waters. Depois, descobriram E/more James,
Sonny Boy Williamson e Robert Johnson, rei dos cantores do
Delta, o músico possuído e demoníaco que corporificava a idéia

212 Roberto Muggiati


folclórica do blues como música do Diabo. No Delta do Missis-
sippi, onde Robert Johnson nasceu, diziam que, se um cantor
de blues iniciante esperasse à margem de uma encruzilhada deser-
ta numa noite escura sem lua, o próprio Satã surgiria e afinaria
a sua guitarra, selando um pacto que, em troca da alma do blues-
man, lhe garantia uma vida de dinheiro, mulheres e fama."

No início dos anos 60, o futuro guitarrista do Led Zep, Jimmy Page,
participava das jam sessions do clube Marquee, em Londres, ao lado de
guitarristas como Jeff Beck e Eric Clapton. E o futuro vocalista da banda,
Robert Plant, abandonava a casa dos pais nos subúrbios de Birmingham
e pegava a estrada como cantor de blues ambulante. Certa vez, quando o
veterano Sonny Boy Williamson deu um concerto em Birmingham, Plant
esgueirou-se pelos bastidores e furtou uma gaita-de-boca, fetiche que o apro-
ximaria simbolicamente do mestre. A guitarra plangente de Page e o grito
rouco de Plant estouram nas paradas já nos primeiros álbuns do Zeppelin.
Entre as canções, estavam duas covers assumidas de Willie Dixon (You
Shook Me e I Can't Quit You Baby). Mas o Led Zeppelin foi mais longe
que os outros grupos e canibalizou vários blues, assinando-os sob o seu
nome. Seu grande sucesso Whole Lotta Lave foi claramente calcado no blues
You Shook Me, de Willie Dixon. How Many More Times não disfarça nem
no título: incorpora How Many More Years de Howlin' Wolf, misturado
a The Hunter de Albert King e com uma pala do Bolero de Ravel, via Beck's
Bolero, de Jeff Beck (que fora produzido pelo guitarrista do Led, Jimmy
Page). O bom Wolf foi de novo tosquiado pelo Zeppelin em The Lemon
Song, que toma o seu Killing Floor e enxerta nele um trecho da letra de
Traveling Riverside Blues, de Robert Johnson.
O oportunismo branco sempre explorou a música negra. A primei-
ra gravação de jazz foi feita em 1917 por um grupo branco, a Original
Dixieland Jazz Band, e os dixielanders - músicos de jazz brancos -
fizeram um bom dinheiro nos agitados anos 20, que o escritor Scott Fitz-
gerald batizou a Era do Jazz. Nos anos 30, quando muitos brancos fica-
ram milionários com a música das big bands, houve outra apropriação
da música negra. O clarinetista Benny Goodman ficou famoso graças à
sua interpretação de King Porter Stomp, composição do negro Jelly Roll
Morton, em arranjo de outro negro, Fletcher Henderson. Não tendo con-
dições de manter sua orquestra, Henderson foi sobreviver fazendo arranjos
para Benny Goodman, ao preço de 3 7 dólares e meio cada partitura. O
trombonista Tommy Dorsey foi outro que enriqueceu como band-leader.

Blues 213
Dorsey ficou famoso da noite para o dia com sua versão de Marie, copia-
da nota por nota de uma orquestração original negra - a dos Royal
Serenaders, de Doe Wheeler. E o lendário Glenn Miller ofereceu um sa-
lário mais vantajoso e roubou Sy Oliver, o arranjador da banda negra de
Jimmy Lunceford, tornando-se internacionalmente famoso.
Com o rock 'n' roll a pilhagem foi ainda mais flagrante. Muito do
que se ouvia no rhythm & blues dos anos 40 / 50 - e no blues de negros
como Howlin' Wolf, Muddy Waters e Bo Diddley, e no jive de Louis
Jordan - era praticamente o que se tornaria conhecido como rock 'n' roll,
ao ser gravado - exatamente da mesma maneira - por grupos brancos.
Um caso célebre foi a versão que Bill Haley e seus Comets fizeram da gra-
vação de Shake, Rattle and Roll pelo cantor de blues BigJoe Turner. Esta
prática se tornaria conhecida no jargão do mercado fonográfico pelo nome
de covering e os discos dela resultantes seriam chamados de covers e nin-
guém entraria no mérito da questão ou discutiria o aspecto de direitos
autorais. Em outras palavras: os negros continuavam por baixo.
Nos anos 60, mudaram apenas o cenário e os personagens: jovens
músicos britânicos começaram a gravar covers do blues tradicional. Os
jovens americanos seguiriam o exemplo e todos ganhariam o status de
superstar: a palavra estrela - empregada durante os anos de ouro de
Hollywood - se tornaria pequena para dimensionar o sucesso dos mú-
sicos de rock. Os bluesmen pegaram as sobras e não reclamaram. Para
eles, cantar e tocar era mais importante do que ficar rico. Alguns até che-
garam a ganhar dinheiro. Nos Estados Unidos e no circuito europeu, ve-
teranos do Delta eram cada vez mais solicitados pelos festivais de folk e
de jazz e para acompanhar estrelas do rock em turnês. Muitos, com o Peter
Chatham, mais conhecido como Memphis Slim, mudaram-se para a Eu-
ropa. Em 1960, ele tocou com Alexis Korner em Londres. Dois anos de-
pois, estabeleceu-se definitivamente na França, até morrer do coração em
Paris, em 1985, aos 71 anos. Outros tiveram a oportunidade de gravar
na Inglaterra com astros do rock na série da gravadora Chess London
Sessions, como Howlin' Wolf, Muddy Waters, Bo Diddley e o roqueiro
de raízes blueseiras Chuck Berry.
Este fenômeno de apropriação cultural foi visto - pelo raciocínio
mais frio e distanciado de alguns cientistas sociais - como uma estrada
de mão dupla. Os brancos, à medida que absorvem a cultura negra, são
por ela modificados. Elvis ficou famoso em Memphis ao gravar uma cover
de um blues de Arthur "Big Boy" Crudup, That's Alright (Mama). Nos
anos 60, o líder radical negro Eldridge Cleaver fala de Elvis

214 Roberto Muggiati


"lançando sementes de um novo ritmo e estilo nas almas
brancas do jovens da América, cuja fome interior e necessida-
des não se satisfaziam mais com os antissépticos sapatos bran-
cos e as canções ainda mais brancas de Pat Boone".

Os novos "brancos de alma negra" foram analisados pelo escritor


Norman Mailer num ensaio famoso de 1957, The White Negro. Falando
da "devastação psíquica causada no inconsciente coletivo pelos campos
de concentração e pela bomba atômica", Mailer aponta um novo fenô-
meno: o aparecimento, neste cenário sombrio, do hipster, o modelo do
existencialista americano:

"Não por acaso a fonte do Hip é o negro, pois ele vem vi-
vendo à margem da sociedade, entre o totalitarismo e a demo-
cracia, durante dois séculos (. .. ) Em lugares como o Greenwich
Village, um ménage-à-trois se estabeleceu - o boêmio e o de-
linqüente juvenil se viram face a face com o negro e o hipster
se tornou um fato na vida americana."

Na mesma época, os escritores da beat generation também iniciam


uma contestação sistemática dos valores brancos. Como expressa o per-
sonagem de On the Road (1957), o romance-manifesto de Jack Kerouac:

"Eu gostaria de ser um negro, pois sentia que o melhor que


o mundo branco me oferecia não trazia êxtase suficiente para
mim, nem suficientes vida, alegria, emoção, escuridão, música."

A música, no caso, é jazz e blues. Os escritores beat costumavam re-


citar suas poesias ao som de jazz em clubes noturnos de San Francisco e
Nova Iorque, improvisando como um músico. E usaram também a for-
ma e o espírito do blues em seus poemas. Kerouac chegou a escrever um
livro com o título Mexico City Blues (242 Choruses). E até autores lite-
rariamente mais respeitados já usaram o blues, como W.H. Auden, que
publicou em 1936 um Funeral Blues. Curiosamente, o poema, recitado
no filme-sensação de 1994 Quatro Casamentos e um Funeral, criou toda
uma onda de interesse sobre a obra de Auden, provocando até o relan-
çamento do livro do qual ele constava, Tell Me about the Truth of Love.
Num artigo de 1994 no New York Times, intitulado The Blues: a
Cousin to Mozart, o crítico Peter Watrous levanta questões transcendentais

Blues 215
sobre o rude som que nasceu nos miasmas do Delta. Depois de citar -
como erudito pop - Bessie Smith e Robert Johnson, a raga indiana e o
jazz vanguardista de Miles Davis e Ornette Coleman, Watrous proclama:

"Tocar bem o blues é participar da História em movimen-


to, compreender a fértil história do século 20. Fazer isso bem é
coisa honrada, ajudar os simples três acordes, tão carregados de
conotação, a se projetarem alegremente para o século 21, uma
lembrança do que aconteceu aqui, quando e com quem. "

Em seus cem anos de vida, o blues fez uma longa viagem, das mar-
gens lamacentas do Mississippi até o neon das marquises nas grandes ci-
dades. A blue note coloriu virtualmente todo tipo de música deste século,
do bop à bossa, do rap ao rock, do clássico à discoteca. Deixou sua marca
na canção popular da Broadway, nos standards de Cole Porter e Gershwin,
de Berlin e Hammerstein, de Hoagy Carmichael e Harold Arlen. O mu-
sicólogo Russell Ames chega até a afirmar: "Se existe uma forma nacio-
nal de canção americana, é o blues." A queima dos estilos na fogueira das
vaidades sonoras só faz com que o blues se destaque ainda mais, conquis-
tando até o público jovem, cansado de tanta moda fake e em busca da
coisa real, oferecida pela comunicação sólida, honesta, filosófica e pra-
zerosa do blues. Ninguém duvide que, ainda no século 21, o homem con-
tinuará proclamando: a Terra é Blue!

216 Roberto Muggiati


BIBLIOGRAFIA

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GREENBERG, Alan. Lave In Vain / The Life and Legend of Robert J ohnson.
Nova York: Doubleday, 1983.
GURALNICK, Peter. Feel Like Coming Home / Portraits in Blues & Rock
'n' Roll. Omnibus Press, 1971.
HADLOCK, Richard. Jazz Masters of the Twenties. Collier Books, 1965.
HANDY, W.C. Father of the Blues. Collier Books, 1941.
HOBSBA WN, Eric J. História Social do Jazz. Paz e Terra, 1990.
JONES, LeRoi. O Jazz e sua Influência na Cultura Americana {título ori-
ginal: Blues People). Distribuidora Record, 1967.
LOMAX, Alan. Mister Jelly Roll. Nova York: Duell, Sloan & Pearce,
1950.
LO MAX, Alan. The Land Where the Blues Began. Nova York: Pantheon
Books, 1993.
MURRAY, Albert. Stomping the Blues. Quartet Books, 1978.
MURRA Y, Albert. Good Morning Blues / The Autobiography of Count
Basie. Paladian / Grafton Books, 1985.
OLIVER, Paul, HARRISON, Max, BOLCOM, William. Cospe!, Blues e
Jazz. Série The New Grove, L & PM, 1990.
OLIVER, Paul - The Story of the Blues. Penguin Books, 1978.

Blues 217
PLACKSIN, Sally. American Women in Jazz/ 1900 to the present. Wideview
Books, 1982.
POMERANCE, Alan. Repeal of the Blues. Nova York: Citadel Press,
1988.
RITZ, Charles, CHARLES, Ray. Brother Ray / Ray Charles' Own Story.
The Dial Press, 1978.
SACKHEIM, Eric (compilation). The blues Line /A Collection of Blues
Lyrics from Leadbelly to Muddy Waters. Schirmer Books, 1975.
SANTELLI, Robert - The Big Book of Blues /A Biographical Encyclo-
pedia. Pavillion, 1994.
SAWYER, Charles. The Arrival of B.B. King. Doubleday, 1980.
SHAPIRO, Nat, HENTOFF, Nat. Hear Me Talkin' to Ya / The Story of
Jazz by the Men Who Made It. Rinehart, 1955.
STEARNS, Marshall. The Story of Jazz. Mentor Books, 1958.
TAYLOR, Frank C., COOK, Gerald. Alberta Hunter /A Celebration of
the Blues. McGraw-Hill, 1988.
WEXLER, Jerry, RITZ, Charles. Rhythm and the Blues /A Life in American
Music. Alfred Knopf, 1993.

218 Roberto Muggiati


DISCOGRAFIA

Bessie Smith - Cinco álbuns duplos, 10 LPs, lançados pela Sony, concen-
tram as 160 faixas publicadas da Imperatriz do Blues, um autêntico
monumento musical do século. (Parte da coleção saiu em 2 CDs duplos)
Robert ]ohnson - Também pela Sony, em LP ou CD, as 29 canções que
se conhece do gênio do Delta, com alternate takes, perfazendo 41 fai-
xas - uma verdadeira Comédia Humana do Blues.
Roots 'n' Blue - Coleção histórica da Sony (dos baús da Columbia), com
mestres como Big Bill Broonzy, Lonnie Johnson, Blind Boy Fuller,
Willie Dixon e antologias focalizando raridades dos anos 20 / 30.
Wiilie Dixon e Howlin' Wolf - Cada um com a sua Chess Box (2 e 3
CDs, respectivamente) lançada pela MCA. Importado e imperdível.
John Lee Hooker - O último sobrevivente do blues, numa caixa indis-
pensável da Rhino, The Ultimate Collection: 1948-1990 (2 CDs) im-
portada. John Lee também tem CDs recentes aqui, como The Healer
(Warner), Boom Boom, e Chill Out (EMI-Odeon).
Roots - Série da Movie Play encontrável nas grandes lojas com uma ampla
gama do blues mainstream. Títulos recomendáveis: Muddy Waters, Bo
Diddley, Sonny Boy Williamson, Little Walter, Little Milton, Memphis
Slim, Otis Spann, B.B. King, J.B. Lenoir, além de antologias de blues e
do rock 'n' roll inicial. Muita coisa boa a garimpar, a bom preço.
The London Sessions - Encontros promovidos pela Chess entre bluesmen
e roqueiros britânicos no início dos anos 70, figurando álbuns com
Howlin' Wolf, Muddy Waters, Bo Diddley e Chuck Berry.
B.B. King - Tem pelo menos uns 20 títulos no Brasil, incluindo o recen-
te Blues Summit (duetos com Buddy Guy, Robert Cray, John Lee
Hooker, etc.). Um dos meus favoritos é dos anos 70, Indiano/a Missis-
sippi Seeds, com roqueiros como Carole King e Leon Russell. O seu
trabalho mais antigo saiu aqui pela Imagem.
Alligator- O selo do blues gravado pós-1970 chegou ao Brasil via Warner
e já lançou cerca de 30 títulos, misturando veteranos e novos, negros
e brancos, ortodoxos e exóticos. Importante ponto de referência e
muita adrenalina rolando sempre.

Blues 219
O blues do rock - Americanos como }anis e Jimi (não percam o recente
CD Blues, de Hendrix), algumas coisas do Canned Heat (em espe-
cial o álbum com John Lee Hooker), dos Doors, dos irmãos Allman,
Winter e Vaughan. E britânicos como Eric Clapton, John Mayall,
Rolling Stones e Led Zeppelin.
O blues do jazz - Duas linguagens entrelaçadas. Jelly Roll Morton, Duke
Ellington, a tradição de Kansas City, Charlie Parker, Charles Mingus,
John Coltrane (The Legend Plays the Blues), Modem Jazz Quartet
(Bach+ Blues), MiltJackson (não percam suas colaborações com Ray
Charles) e a Academia de Blues de Wynton Marsalis.
Nos sebos da vida- Várias coleções foram lançadas nos anos 80 no Brasil.
The Legacy of the Blues (Sonat / Warner) focaliza músicos lendários
como Memphis Slim, Lightnin' Hopkins, Champion Jack Dupree e
Big Joe Williams. A série Blues Anthology (MAC / WEA) relançou
álbuns da Chess de cobras como Muddy Waters, John Lee Hooker,
Big Bill Broonzy & Washboard Sam, Little Walter, Bo Diddley e
Chuck Berry. A Atlantic Blues (Warner) lançou antologias de guitarra,
piano, vocalistas e a escola de Chicago. E a ambiciosa série Atlantic
Rhythm and Blues (Warner), com sete álbuns duplos, é uma verda-
deira enciclopédia - embora misture os generos blues e soul - co-
brindo o período de 1947 a 1974.

220 Roberto Muggiati


VÍDEOS

Blues - João Moreira Salles. Vídeo Filmes, 1990.


Blues Brothers, The (Os Irmãos Caras-de-Pau) - John Landis, com par-
ticipações de Ray Charles, Aretha Franklin, John Lee Hooker e Cab
Calloway, 1980.
The Blues Brothers Band Live in Montreux - Warner, 1994.
Crossroads, A Encruzilhada - Walter Hill. Ficção baseada na lenda do
bluesman Robert Johnson. Música de Ry Cooder, 1986.
Count Basie and Friends, 1943-1945 - Com a participação de Louis
Jordan & his Tympani Five. Verve I PolyGram, 1991.
Gimme Shelter - David & Albert Maysles, Charlotte Zwerin. O avesso
de Woodstock na turnê dos Rolling Stones que culminou na tragé-
dia de Altamont, no final de 1969, PolyGram.
Monterey Pop - James Desmond, 1969. As revelações de Janis Joplin,
Jimi Hendrix e Otis Redding no festival do verão de 1967 que fez
história.
Muddy Waters Live - Documentário da última apresentação do lendário
bluesman no Festival de Blues de Chicago de 1981. BMG I Ariola, 1993.

Blu es 221
COLEÇÃO OUVIDO MUSICAL
direção de Tárik de Souza

A coleção Ouvido Musical, através de várias vertentes temáticas e abordagens me-


todológicas - perfis, ensaios, reportagens - , propõe um estudo dos movimentos m usi-
cais do planeta. Este olhar sonoro, a partir de um país de musicalidade à flor da pele, não
se pretende limitado pelo circunstancial ou geopolítico. Na era das avenidas da informá-
tica, da rotulada world musice da simultaneidade virtual e interativa, a coleção queres-
tar conectada às diversas vias de cada tema, fiel à tarefa de apresentar aos leitores o maior
número de alternativas para o conhecimento desse universo complexo e interpenetrado.
O critério de seleção dos títulos e seus autores segue este primado de a brangência,
tendo como únicos vetores a qualidade e a relevância. A idéia da coleção é mapear as prin-
cipais tendências que movem o tabuleiro da música, além de refletir e desvelar seus per-
sonagens, instrumentos e atitudes. O desenvolvimento técnico, o apuro virtuosístico e a
história das humanidades conviverão indissolúveis nessa trama, retratada por autores
escolhidos sempre entre os expoentes de cada assunto. Com a série pretende-se uma visão
nova e sistematizada sobre a música, essa arte volátil que nos cerca, mobiliza e define.

Roberto Muggiati
Blues: da lama à fama
Arthur Dapieve
BRock: o rock brasileiro dos anos 80
Carlos Calado
A divina comédia dos Mutantes
Dominique Dreyfus
Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga
Luiz Galvão
Anos 70: novos e baianos
Carlos Albuquerque
O eterno verão do Reggae
Tom Leão
Heavy Metal: guitarras em fúria
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello
A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras (Vol. 1: 1901-1957)
Carlos Calado
Tropicália: a história de uma revolução musical
Henrique Cazes
Choro: do quintal ao Municipal
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello
A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras (Vol. 2: 1958-1 985)
Sílvio Essingcr
Punk: anarquia planetária e a cena brasileira
SESC
VILA llARIANA

E sn: LIVRO FOI COMPOSTO EM SABON PELA


BRACHER & M ALTA, COM FOTOLITOS DO
8 UREAU 34 E IM PR ESSO PELA EDITORA
PARMA PAPEL A LTA i'RINT 90 G/M2 DA ÜA.
SUZANO D E P APEL E CELU LOSE PARA A
E DITORA 34, EM NOVEMBRO DE 1999.
e seleciona a discografia - deste gênero que
está na essência da música mais influente do
século. Explica ainda através das etnias ne-
gras escravas trazidas para o continente por-
que o blues não nasceu no Brasil, mas como
ele encontrou terreno fértil aqui, hoje m ulti-
plicado por músicos, cantores, festivais e ca-
sas noturnas.
Em perfis incandescentes, Muggiati, au-
tor ainda de Rock: de E/vis à beatlemania,
1954-1966 (Br asiliense, 1985) e Rock: da
utopia à incerteza, 1967-1984 (Brasiliense,
1985), além de Jazz, uma história em qua-
tro tempos (L&PM, 1985) desvela os prin-
cipais bluesmen e blues women, sitiados en-
tre o hedonismo e a sobrevivência, numa li-
nha transgressora que muitas vezes acaba
por trás das grades.
Até que a questão racial - os primeiros
discos de blues saíam do forno com o estig-
ma de race records - acaba ultrapassada. O
viajante B.B. King elogia o blues do Japão.
John Lee Hooker detecta um problema se-
melhante ao que afastou do samba as gera-
ções funk dos morros cariocas. "Para o ga-
roto negro comum, o blues é constrangimen-
to porque seus pais foram criados na escra-
vidão. É como se essa música nos puxasse
para trás nos tempos", imagina.
Mas Jimi Hendrix - um desses garotos
negros, aliás, o melhor do mundo com uma
guitarra nas mãos -apostava na permanên-
cia do gênero. " Quando a música avança mui-
to e fica perto de se tornar apenas técnica, as
pessoas sempre se voltam para o básico, o que
o blues é acima de tudo" .
Uma opinião afinada com outro artista
que moldou para sempre a música popular,
o beatle John Lennon: "O blues é bonito por-
que é simples e real. N ão é um conceito, é
como uma cadeira" .
Tomem seus lugares, leitores, o blues vai
rolar. E como dizia Muddy Waters, pedras
que rolam não criam musgo.

Tárik de Souza
O poeta francês Jean Cocteau considerava o blues a única con-
tribuição autêntica e importante de inspiração popular à literatura
deste século. A poeta americana Elizabeth Bishop admitia que seu
pentâmetro jâmbico perfeito favorito era "J hate to see that evenin'
sun go down", da letra de St. Louis Blues, de W .C. Handy. Mas nin-
guém define melhor o blues do que seus criadores, como o próprio W. C.
Handy: "O blues veio do nada, da carência, do desejo." Há letras que
dizem tudo: "I love the blues, it hurts so nice". Ou títulos de canções
como The Blues Ain't Nothing But a Woman Cryin' for H er M an.
Especialista na pesquisa do blues, o escritor Paul Oliver sintetizou:

"O blues é o lamento dos oprimidos, o grito de inde-


pendência, a paixão dos lascivos, a raiva dos frustrados e
a gargalhada do fatalista. É a agonia da indecisão, o de-
sespero dos desempregados, a angústia dos destituídos e
o humor seco do cínico."

Em seus cem anos de vida, o blues fez uma longa viagem, das
margens lamacentas do Mississippi até o neon das marquises nas
grandes cidades. A blue note coloriu virtualmente todo tipo de música
deste século, do bop à bossa, do rap ao rock, do clássico à discoteca.

R oberto Muggiati

Coleção Ouvido M usical

I SBN 85- 8 549 0 -bb - 7

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editoram 34

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