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O tema da relação entre fé e razão é um tema determinante, ou melhor, o tema determinante da

biografia de Santo Agostinho. Quando criança, ele havia aprendido com sua mãe Mónica a fé
católica. Mas, na adolescência, ele abandonou essa fé, porque não conseguia ver e descobrir a sua
razoabilidade e não queria no seu íntimo uma religião que não fosse também para ele uma
expressão da razão, que é a verdade. A sede que Agostinho tinha pela verdade foi muito radical e
levou-o a afastar-se da fé católica. Mas seu radicalismo era tal que, ao mesmo tempo, ele não podia
se contentar com filosofias que não chegavam à verdade em si, que não chegavam a Deus, e um
Deus que não fosse apenas uma última hipótese cosmológica, mas o verdadeiro Deus, o Deus que
dá vida e que entra em nossa própria vida.

Assim, todo o percurso intelectual e espiritual de Santo Agostinho é um modelo válido também
hoje na relação entre fé e razão, um tema não só para os homens crentes, mas para todo homem que
busca a verdade, tema central do equilíbrio e do destino de todo ser humano. Essas duas dimensões,
fé e razão, não devem ser separadas ou opostas, mas devem sempre ir juntas. Como o próprio
Agostinho escreveu após sua conversão, fé e razão são “as duas forças que nos levam a conhecer”
(Contra os Acadêmicos III, 20.43). A este respeito, as duas fórmulas agostinianas (Sermões 43.9)
que expressam esta síntese coerente entre fé e razão são muito conhecidas, mas precisam de ser
analizadas: “crede ut intelligas” (acredite para compreender) - a crença abre o caminho para
atravessar a porta da verdade -, mas também, e inseparavelmente, “intellige ut credas” (compreenda
para acreditar) - procura a verdade para encontrar Deus e acreditar.

As duas afirmações de Agostinho expressam a síntese desse problema da relação entre fé e razão
com efetividade imediata e com igual profundidade. Historicamente, esta relação andava formando-
se, mesmo antes da vinda de Cristo, no encontro entre a fé judaica e o pensamento grego no
judaísmo helenístico. Mais tarde na história, esta relação foi retomada e desenvolvida por muitos
pensadores cristãos (com destaque a ser dado a Santo Anselmo de Aosta e São Tomás de Aquino).
A harmonia entre fé e razão, na perspectiva de Santo Agostinho, significa acima de tudo que Deus
não está longe: ele não está longe da nossa razão e da nossa vida; está perto de todo ser humano,
perto do nosso coração e perto da nossa razão, se realmente começarmos a andar pelo caminho da
verdade.

Precisamente essa proximidade de Deus ao homem foi sentida com extraordinária intensidade por
Agostinho. A presença de Deus no homem é profunda e ao mesmo tempo misteriosa, mas o homem
pode reconhece-la e descobri-la dentro de si mesmo: não indo para fora, como afirma Agostinho,
mas voltando para dentro de si mesmo, pois “a verdade mora no homem interior; e se você
descobrir que sua natureza é mutável, você transcenda a si mesmo. Mas lembre-se, quando você
transcende a si mesmo, que você transcende uma alma que raciocina. Portanto, levante-se onde a
luz da razão vem” (Sobre a verdadeira religião 39,72). Assim como ele mesmo aponta, com a
famosa declaração no início das Confissões, uma autobiografia espiritual escrita em louvor a Deus:
“Tu nos fizeste para ti e nosso coração é inquieto enquanto não repousar em ti” (I, 1, 1).

De reflexo, a distância de Deus equivale à distância de si mesmo. Reconhece Agostinho nas suas
Confissões, dirigindo-se diretamente a Deus: “Íntimo interior meo e superior summo meo” – “Você
estava dentro de mim mais do que o meu íntimo e mais alto do que a minha parte mais alta”,
(Confissões, III, 6.11); ao ponto que ele acrescenta em outra passagem, recordando o tempo antes
da conversão: “Você estava diante de mim; mas eu me tinha afastado de mim mesmo e não já me
encontrava; e menos ainda encontrava a Você” (Confissões V, 2,2).

Precisamente porque Agostinho viveu este itinerário intelectual e espiritual em primeira pessoa, ele
foi capaz de transferi-lo em suas obras com grande imediatismo, profundidade e sabedoria,
reconhecendo em outros dois passos famosos das Confissões (IV, 4,9 e 14,22) que o homem é “um
grande enigma” (magna quaestio) e “um grande abismo” (grande profundum), enigma e abismo que
só Cristo ilumina e salva. Isto é importante: um homem que está longe de Deus também está longe
de si mesmo, alienado de si mesmo, e pode se redescobrir e reencontrar apenas encontrando-se com
Deus. É assim também que o homem vem para si mesmo, para seu verdadeiro eu, para sua
verdadeira identidade.

O ser humano - ressalta depois Agostinho no De Civitate Dei (A Cidade de Deus, XII, 27) - é social
por natureza mas anti-social por vício, e é salvo por Cristo, o único mediador entre Deus e a
humanidade e “caminho universal de liberdade e salvação” como escreve João Paulo II
(Augustinum Hipponensem, 21). Fora deste caminho, que nunca faltou para a humanidade - como
diz Agostinho na mesma obra – “nunca ninguém já foi libertado, é libertado, jamais será libertado”
(A cidade de Deus X, 32: 2).

Como único mediador da salvação, Cristo é cabeça da Igreja e está misticamente unido a ela, a
ponto de Agostinho poder afirmar: “Nós nos tornamos Cristo. Porque, se ele é a cabeça, nós somos
os membros, o homem total é ele e nós” (Comentário ao Evangelho de João 21.8). Povo de Deus e
casa de Deus, a Igreja na visão agostiniana está assim intimamente ligada ao conceito de Corpo de
Cristo, fundada na releitura cristológica do Antigo Testamento e na vida sacramental centrada na
Eucaristia, na qual o Senhor nos dá seu Corpo e ele nos transforma em seu corpo. É essencial,
então, que a Igreja, Povo de Deus em um sentido cristológico e não meramente sociológico, ser
verdadeiramente inserida em Cristo, que - como diz Agostinho em uma bela passagem – “ora por
nós, reza em nós e reza por nós; roga por nós como nosso sacerdote, ora em nós como nossa cabeça,
é reza por nós como nosso Deus; portanto, reconhecemos portanto nele a nossa voz e em nós a sua
voz” (Exposições sobre os Salmos 85.1).

Na conclusão da Carta Apostólica Augustinum Hipponensem, João Paulo II quis perguntar ao


próprio santo o que ele tem a dizer para as pessoas de hoje, e responde em primeiro lugar com as
palavras de Agostinho confiadas a uma carta ditada pouco depois de sua conversão: “Parece-me que
os homens devem ser reconduzidos à esperança de encontrar a verdade” (Ep 1,1.).Esta verdade é o
próprio Cristo, verdadeiro Deus, a quem é dirigida uma das mais belas e famosa orações das
Confissões (X, 27,38): "Tarde eu Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Te amei! Eis que Tu
estavas dentro e eu fora, e aí fora Te procurava, e nas belezas que Tu criaste, deformado, eu me
jogava. Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo. De Ti me mantinham longe aquelas coisas
que sequer existiriam se não estivessem em Ti. Chamaste e clamaste em alta voz e quebraste minha
surdez, brilhaste, mostraste a tua glória, e dissipaste a minha cegueira, espalhaste o teu perfume e eu
respirei e aspiro a Ti, saboreei e agora estou com fome e sede, me tocaste e eu fiquei inflamado na
tua paz”.

Eis que Agostinho se encontrou com Deus e ao longo de sua vida ele experimentou isto, ao ponto
de que esta realidade - que é antes de tudo o encontro com uma Pessoa, Jesus - mudou a sua vida,
como também muda a vida daqueles homens e mulheres que o encontram.

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