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Memórias

quase póstumas
de Machado
de Assis
qollless
FTD
Copyright O Álvaro Cardoso Gotnes, 2014
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Da:nasceno

Alvaro Cardoso Gomes é professoruniversitário,


ensaísta,romancista e escritor para crianças e jovens.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Gomes, Alvaro Cardoso
Memórias quase pósturnas de Machado de Assis / Álvaro
Cardoso Gornes; ilustrações Alexandre Camanho. — 1. ed. —
Sio Paulo : FTD, 2014.

Bibliografia
ISBN 978-85-322-9284-1

l. Assis,Machado de, 1839-1908 2. Romance biográfico


— Literatura juvenil I. Catnanho, Alexandre. II.Título.

14-00934

índices para catálogo sistemático:


l. Biografia romanceada : Literatura juvenil ()28.5
O grande Machado, nosso igual

Apresentação • 11

caderno de memórias
TJIII • 15

Ao leitor • 18

Capitulo Saldo de duas vidas • 20


Olhos de cigana oblíqua e dissimulada • 33

Capítulo11 0 filho da lavadeira . 46


Incidente com Hermenegildo . 52
À velha casa • 55
Anica doente • 57
Os arrufos de Carola • 62
Capítulo Um ajudante muito especial • 64
São os homens animais? • 70
O bruxo do Cosme Velho • 73

IV Ganhei um secretário'
Capítulo • 76
Por favor, senhor diretor,
lavre o parecer . 81
Diálogo com um leitor curioso • 84
Capítulov O crente e o descrente 94
• 112
capítuloVI Uma noite de autógrafos • 114
Infância e juventude • 119

capítulo De médico e de IOUCO . 128


As virtudes de Carola • 143
Crendices • 146
A cartomante • 148

Capítulo Cartas de amor • 160


A difícil corte • 168
FaustO e Mefistófeles • 171

capít,no A teoria do tijolinho • 180


A teoria do tijolinho II • 190
Vaidade das vaidades • 198

Capítulox Ao pé do leito derradeiro • 206


A vida sem Carolina • 211
Um epílogo escrito
por Outra mão • 213

Fotocronologia da vida
e da obra de Machado de Assis • 218

Créditos das imagens • 232

Bibliografia • 233
O grande Machado r

nosso igual

ao poucos os escritores contemporâneos, no


Brasil,que têm uma obra tão vasta e diver-
sa quanto a de Alvaro Cardoso Gomes. Nisso,
curiosalllente, ele se irmana a Machado de Assis. Am-
bos são autores de romances, ensaios críticos, cro-
nicas,volurnesde poesia,contos etc. Quase não há
oêneroque não tenham tentado —e realizadobem.
Nunia época em que a especialização literária marca
carreirase pune a ousadia de autores, Alvaro Cardoso
G01nescontinua falando as várias línguas do espírito

po em que pratica sua imensa variedade de opções.


Mas há, tannbém,outra questão que os aproxima,
Os dois autores cultivam a rabula, adoram a ironia,
abraçanl a paródia, incorporam em sua ficção o diá-
logo conl obras de matrizes diversas e não evitam
os géneros populares. A ilnaginação alegórica —que,
aliás,define boa parte da contribuição de ambos

6
nos convida a ver o mundo, tão familiar,como algo
estranho.E não é estranho que nosso Realismo li-
terário comece, justamente, por um romance conta-
do a partir da perspectivado além-túmulo? MemÓrias
póstuntas de Brás Cubas (1881) é a prova de que, se a
literatura de qualquer tempo quiser permanecer fiel à
sua capacidade de invenção, ela não pode abandonar
a ousadia:dela colhemos os melhores frutos de uma
fantasia crítica.
Pois as Menlórias quase pÓstumas de Macllado de
Assis,a despeito de sua aparente simplicidade,é obra
de ousadia. Alvaro Cardoso Gomes nos conduz a um
Machado de Assis outonal; ele está no auge de sua
carreira e quase no fim da vida. Mesmo assim,não
é um Machado impaciente para com aquelesque o
acompanham. Muito pelo contrário. Quando a histó-
ria que vocês estão prestes a ler começa, encontramos
Machado revisando trechos importantes de Dom Cas-
illtlrro(1899) em companhia de Carolina,sua esposa,
de quem ele recebe repelões de consciênciae estilo.
Uma relação afetuosa,de imensa cumplicidadeentre
marido e esposa, marca essas Memóriasquasepóstumas
do início ao fim. Carola —tal como Machado costuma

7
chamar a esposa —acompanha nosso herói-escritor
enquanto viva e ainda lhe sobrevive, após sua
morte
na saudade.No início do livro, ambos vão ao morro
do Livramento, berço —por assim dizer —do próprio
Machado, onde encontram o jovem Hermenegildo,
que servirá de secretário e nova companhia ao escri-
tor. E Hermenegildo quem lê, passa a limpo e prefa-
cia essasmemórias de Machado.Ao mesmo tempo,
Hermenegildo é também leitor curioso, uma espécie
de jovem Machado, que se dedica a desvendar o sen-
tido dos textos lidos. Hermenegildo foi Machado —e
somos nós. Além dele, também farão companhiaao
velho autor Joana e Raimundo, nos serviços da casa,
e o padre Siqueira, nas partidas de xadrez.Temos,en-
tão, um cenário íntimo completo. Porém, ninguém
duvide de que Carola seja mesmo a presença mais
fundamental em cena.
Essas Memórias quasepóstumas não evitam o tema
do preconceito nem as dificuldades de se lidar com
os colegas de profissão. Detalhes biográficos de Ma-
chado de Assis são intercalados com grande sutileza a
trechos de sua própria ficção, fazendo homem e obra
compareceremsem receio nem monumentalização.

8
Hermenegildo discute com Machado suas opiniões
sobre a leitura dos contos e dos romances do autor,
ao mesmo tempo em que também se familiariza com
outros escritores do século XIX. Alvaro Cardoso Go-
mes, inventor de Hermenegildo, casa com grande as-
túcia fragmentos dos textos do próprio Machado com
a recriação de episódios importantes da vida do autor.
Vemos, por exemplo, instantâneos da formação
do escritor em sua projeção no jovem Hermenegildo,
o dificil noivado com Carolina, os rituais de contato
e socialização com outros escritores, além dos grandes
temas da ficção machadiana, tais como a vaidade e as
determinações de várias ordens, que, supostamente,
explicariam o comportamento humano. E, ao lon-
go do livro, Carola cobra do marido uma visão mais
atenta à mulher e uma perspectiva menos cáustica da
condição humana.
O resultado é uma história na qual o grande Ma-
chado de Assis se humaniza imensamente. Ele convive
com seus acompanhantes e com as próprias memórias
sem exigir deles nenhuma "chave"; ele tem prazer nas
conversascom Hermenegildo e nas partidas de xa-
drez com o padre Siqueira sem, tampouco, perder a

9
Nach.•Ao Aaotn

oportunidade de transtortná-la« instantesde cs-


clarecttncnto de tetnas cruci.11K.Neqsas Alentórias
(lilase
Machado «e torna no«o igual, ouvindo
aparvntc Itupacléncta a própria eqpo«a,cultivan-
do anugos c lidando cotil a frágil questão da

Alvaro Cardoso Gonies convida a considerar


.Machado dc ASSIStnais pró.xitno a nós, leitores, e
para a Itnaglnaçio de «ituaçõesInurnanasé, ao
mesmo tctnpo. prazerosa.útil e delicada.
Afonérias quase pósrtonas dc Macllado de Assis é tí-
tu20 espcctalis«inaoda coleção Meu amigoescritor,por-
que ',.rrs.asobre aquele que, talvez, seja nosso autor
maior —pela vida que viveu, pelas realizaçõesque al-
cançou, pelas obras que escreveu. E essa importante
históna lemos com grande proveito e muita emoção.

José Luiz Passos


Professor titular de bteraturas brasileira e portuguesa na
Unnrrsidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA). Entre
outros livros, é autor do estudo Machado de Assis:o ropnance
comm soas(Edusp, e do romance O sonâmbuloamador
(Alfaguara, 2012), vencedor do Grande Prémio Portugal
Telecom de Literaturx
Apresentaçã0

tzcr que Machado de Assisé o tnaior


csctltor brasileiro dc todos os tempos
constitut lugar-cotnum. Há muito
tcnzpo. os ma:s Itnportantcs críticos do Brasil e do
CXtct20tvêm chamando a atenção para seu excep-
ctonal talento. Apesar disso, há quem tenha certo
prvconcctto contra ele, acusando-o de dificil, com-
plexo, por contar suas histórias de um modo
difervnte do usual. De fato: Machado, utilizando-se
da alusão e recusando-se a dizer diretamente as coi-
sas,procura, por meio de imagens sutis, sugerir algo
ao leitor que não poderia ser dito de outro modo.
Como é o caso da descrição que faz de Capitu, a
imortal figura feminina do romance Dom Casmurro.
Seu retrato é quase todo sintetizado nos olhos, ima-
ginados como "de cigana oblíqua e dissimulada"
e "de ressaca".Ora, isso nem sempre é assimilado
por um leitor pouco afeito a sutilezase que, por
isso mesmo, prefere descrições pormenorizadas dos

11
Apresentação

izer que Machado de Assisé o maior


escritor brasileiro de todos os tempos
já constitui lugar-comum. Há muito
tempo, os mais importantes críticos do Brasil e do
exterior vêm chamando a atenção para seu excep-
cional talento. Apesar disso, há quem tenha certo
preconceito contra ele, acusando-o de dificil, com-
plexo, talvez por contar suas histórias de um modo
diferente do usual. De fato: Machado, utilizando-se
da alusão e recusando-se a dizer diretamente as coi-
sas,procura, por meio de imagens sutis, sugerir algo
ao leitor que não poderia ser dito de outro modo.
Como é o caso da descriçãoque faz de Capitu, a
imortal figura feminina do romance Dom Casmurro.
Seu retrato é quase todo sintetizado nos olhos, ima-
ginados como "de cigana oblíqua e dissimulada"
e "de ressaca".Ora, isso nem sempre é assimilado
por um leitor pouco afeito a sutilezase que, por
isso mesmo, prefere descrições pormenorizadas dos

11
ila

(Ic Icv;ı
Maç cjii a (Icfij)iüııjiı car;ltcv,
(Ic (s por Ilına gaııçl;lvclora

C Machaçlo
ji(i
LİZ (la vida para tornar Itıclhor ainçl;ı
cıc tcııjpcro cxUrana ıı;ırra-
'
lıvj clıcga a Scr corrosivo,
por cxu'liiplo, pöslıı„
A4('1116rias
nj(1Sde İhlâs C CIII *CII coııto ' 'Ç) Alicnista”,
(Qııcıji Icınbr;ı da beni-hıınıorada frasc de
14r;1sÇiııl»a«,ao (Icfinir o G'i scvı caso amoroso
conı a anjantc: "Marccla anıoıı-ıjıc durantc
zc c onzc contos dc rû•is”.Mas tanıbûm
possİvcl ver cnj Maçlıado tom ıncnos âcido no
cıııc rcvcla a perda da İnocöııcia dc jovcns,
coıııo açontccc nos contos "Uns braços” c "Missa
do galoş', c ıııcsnjo no romancc Dom Casmurro.Mas,
tant() ınıııı caso coıjıo outro, Maclıado visa a fa-
zer ıınıa crİtica h ganância dos homcns, a um mundo

12
açao

onde os mais fracos são vítirnas dos ruais tortes. "Ao


vencido, ódio ou cotupai.xào;ao vencedor, as bata-
tas" é a verdade que enlana da filosofiado Flutua-
nitas de Quincas Borba, pertneando seus livros ruais
instigantes.
No entanto Machado de Assisnio nos charna
a atenção tão só por sua excelênciacomo escritor.
Há um aspecto muito importante nele que tatu-
bém me levou a pensar em escrever esta biografia
romanceada: a sua vida. E bem verdade que nada há
nela de heroico, de grandioso.Muito pelo contrá-
rio: Machado foi um homem pacato,funcionário
público exemplar, bem casado, respeitável burguês.
Mas talvez, por isso mesmo, sua vida seja tão atra-
ente e possa servir de exemplo para qualquer jo-
vem. Machado de Assis era mulato (o pai negro e a
mãe branca), viveu numa sociedade escravocrata e
preconceituosa, era pobre e tinha a saúde frágil, so-
frendo de gagueira e epilepsia desde a infincia até a
velhice. Com a morte do pai, teve que ajudar a ma-
drasta (perdera a mãe bem cedo), vendendo doces
na rua. Apesar de todos essesproblemas,tornou-se
um leitor voraz, aprendeu francês sem dificuldades

13
MezOrias quase póstumas de Machado de Assis

(entre 15 e 16 anos), e, não demorou muito, veio


a trabalhar na imprensa,começando a publicar seus
versos.Em alguns anos de frutuoso trabalho,produ-
ziu mais de duzentos contos, oito romances, livros
de poesia, peças de teatro, traduções, crónicas e ar-
tigos de crítica literária, tornando-se o escritor mais
famoso do seu tempo. Machado de Assis,por tudo o
que passou,é mesmo um verdadeiro fenómeno, um
milagre da natureza. Com seu talento invulgar e sua
vontade férrea, é um homem a ser seguido e imitado.
Tanto na obra, quanto na vida.

Alvaro Cardoso Gomes

14
Um caderno de
memórias

ra em setembro,na primavera.A charnadodo Sr.


Machado, fui vê-lo em seu quarto, onde ele, rnuito
abatido, repousava. Tinha a pele macilenta, respira-
va com dificuldade, os olhos fundos, os lábios cheios de
feridas. Sentei-me num banquinho ao lado da carna, e
ele me disse:
—Meu caro Hermenegildo, queria lhe pedir urn gran-
de favor...
0 que eu não faria pelo Sr. Machado?Devo tudo o
que sou hoje ao fato de ele ter me acolhido quando eu
não tinha ninguém para cuidar de mim. Minha mãe havia
falecido, e meu padrasto era um homem cruel, que me
maltratava. Com sua natural bondade, o Sr. Machadoe
dona Carolina —que Deus a tenha - adotararn-rne, corno
se eu fosse o filho que não puderam ter.
—Às ordens, Sr. Machado.
Apontou para algo sobre a cómoda.
—Faça a gentileza de pegar aquele caderno.

15
Era um caderno pautado, desses co-
muns, usados nas escolas.
- Meu caro, registrei nele as
nhas memórias. Como bem sabe, meu
cursivol não é dos melhores e piorou
mais nos últimos tempos. Temo que não
me entendam... —abriu um sorriso triste
e completou:- Quantoa você,já está
mais que habituado a decifrar meus
hieróglifos...
Fez uma pequena pausa e prosse-
guiu:
—0 favor que lhe peço é que passeà
limpo minhas anotações. Sobre a escriva-
ninha do escritório, encontrará outroca-
derno destes, ainda sem uso, que poderá
levar consigo.
—0 Sr. Machado tem alguma pressa?
Algum prazo?
—Não sei se me cabe agorater al-
guma pressa ou prazos. Portanto,nãose
com
preocupe com isso. Redija devagar,
1Letramanuscrita. seu capricho usual.

16
Umcaderno de morn6ria:g

Como ele se sentia muito cansado, deixei-o. Em


casa, acomodei-me e abri o caderno, cuja primeira pá-
gina apresentava o seguinte título: Memórias quase
póstumas de Machado de Assis. Pus-me, então, a ler as
memórias dele. E gostei tanto que deixei para depois a
tarefa de passá-las a limpo. Assim atravessei a noite, en-
tretido com a leitura do caderno.
Eis o que eu li.

17
Ao leitor

ou início a estas minhas memórias dizendo


que resolvi escrevê-las não só para tornar
suportável a minha solidão, acentuada desde
a morte de Carolina, mas também porque sinto que,
dentro em breve, irei morrer. A partir dos primeiros
meses deste ano de 1908, comecei a me sentir muito
mal, a ponto de ter que pedir mais uma licença no Mi-
nistério da Viação, onde trabalho. Com a saúde abalada,
tinha na boca feridas que doíam muito, impedindo-
-me de comer alimentos sólidos,e uma grave infec-
ção intestinal. Sem contar que meus ataques epiléticos
vinham sendo cada vez mais frequentes. Fui consultar
o doutor Miguel Couto, e ele, com muito tato e deli-
cadeza, acabou por me desenganar. Pensei então que,
para esquecer os meus males, valeria a pena deixar re-
gistrados neste caderno alguns fatos relevantes, e outros
nem tanto, de minha vida.
Depois que tomei essa decisão,vim a descobrir
que, ao me propor a contar esta história, quando já
contava com 69 anos, chegava, em parte, a imitar o

18
personagem do meu romance AleniÓriaspóstutnas de
BrásCubas.Digo "em parte", porque ambos contamos
nossahistória começando pelo fim, mas Brás Cubas, ao
fazer isso,estava morto, e eu, ainda que muito comba-
lido, estou vivo. Desse modo, narrando sua vida depois
de falecer,meu personagem acabou se tornando um
"defunto autor", e eu, de minha parte, acabarei por Ilie
tornar um "autor quasedefunto", coisa mais ou menos
comum, em se tratando de literatura.
Devo confessar também que resolvi compor essa
história do modo mais prazeroso possível,escrevendo
só quando me apetecesse,sem ao menos pensar num
enredo ou numa possível ordem dos capítulos,deixan-
do que os acontecimentosviessemdo fundo da me-
mória e se impusessema mim quando e como bem
entendessem.Sendo assim,não se surpreenda quem se

mais espera da vida, com as idas e vindas que a histó-


ria oferecerá.A ordenação dela, portanto, deverá contar
com a benevolência de meus presumíveis leitores.
Antes, porém, de entrar em alguns fatos desta exis-
tência que vai se findando aos poucos, gostaria de com-
parara minha futura morte com a de Brás Cubas. E o
que virá expresso no capítulo I destas minhas memórias.

19
Capítulo I

duas
vidas
caro leitor, que já deve
ter lido Ji/cntóriaspÓstumas
de Brás Cubas, corn certe-
za se recordará do prirneiro capítulo:

Algum tempo hesitei ge devia


abrir «atag polo princípio
ou pelo tia, isto poria em pri-
moiro lugar 0 nagciacnto ou a mi-
nha morte. Suposto o ugo vulgar seja
começar pelo nasciaento, duas consi-
deraç0ee levaras a adotar diferen-
te aétodot a pri:neira é gae eu não sou
propriamente u.'aütor defunto, mas um
defunto autor, para quem a ca:npa foi
Outro berço; a segunda é gue o escrito
ficaria galante e mais novo.

Noi8égt que t.azbé:ncontou a sua norte,


di-
não a pôs no Introito, nas no cabo:
ferença radicai entre este livro e o
Pentateuco:.
da
Dito isto, expirei às duas horas
tarde de una sexta-feira do mês de agosto

de 1869, na minha bela chácara de Catan- 2 Cinco dos primeiros


ri-
bi. rinha uns sessenta e quatro anos, livros do Antigo Testa-
jos e prósperos, era solteiro, possuía mento Génesis,Exo-
do, Levítico, Números
cerca de trezentos contos e fui acon- e Deuteronómio.
panhado ao cemitério por onze amigos,

21
Onze amigos! Verdade é que
O não hou-
ve cartas nem anúncios.
Acresce que
o chovia - peneirava - uma
chuvinha
miúda, triste e constante, tão
cons-
tante e tão triste, que levou
da-
queles fiéis da última hora a
interca-
lar esta engenhosa ideia no
discurso
que proferiu à beira de minha
cova:
"Vós, que o conhecestes, meus
se-
nhores, vós podeis dizer comigo
que
a natureza parece estar chorando a
'O
perda irreparável de dos mais be-
10s caracteres que têm honrado a
manidade. Este ar sombrio, estas go-
tas do céu, aquelas nuvens escuras que
cobrem o azul como um crepe funéreo,
tudo isso é a dor crua e má que lhe rói
à natureza as mais íntimas entranhas;

Undiscevered country:
em inglês, país desco- ilustre finado" .
nhecido, inexplorado; é Bom e fiel amigo! Não, não me ar-
um eufemismo para a das vinte apólices que lhe
rependo
morte. Hamlet é per-
sonagem da tragédia deixei. E foi assim que cheguei à
do mesmo nome, da cláusula dos meus dias; foi assim que
autoria do dramaturgo me encaminhei para o undiscovered
inglês William Shakes- nelll
country de Hamlet 3, sem as ânsias
peare (1564-1616), au- nas pau-
tor tambémde Ron:eu as dúvidas do moço príncipe,
se retira
eJulieta, Macbeth,entre sado e trôpego, como quem
outras obras. espetáculo. Tarde e aborre-
tarde do

22
Saldo de dua:gvidas

cido. Viram-me ir umas nove ou dez pes-


soas, entre elas três senhoras, minha
irmã Sabina, casada com 0 Cotrim, a fi-
lha - um lírio-do-vale, - e4 . Tenham
paciência! daqui a pouco lhes direi
quem era a terceira senhora. Conten-
tem-se de saber que essa anónima, ain-
da que não parenta, padeceu mais do que
as parentas. É verdade, padeceu mais .
Não digo que se carpisse, não digo que
se deixasse rolar pelo chão, convul-
sa. Nen o meu óbito era coisa altamente
dramática. • • Um solteirão que expira
aos sessenta e quatro anos, não pare-
ce gue reúna em si todos os elementos
de una tragédia. E dado que si.m,o que
menos convinha a essa anónima era apa-
rentá-lo. De pé, à cabeceira da cama,
com os olhos estúpidos, a boca entrea-
berta, a triste senhora mal podia crer
na minha extinção • 4 Nas citações das obras
de Machado de Assis,
— Morto! morto! dizia consigo.
optou-se por atualizar
E a imaginação dela, corno as cego-
a ortografiae a pon-
nhas que um ilustre viajante viu des- tuação, quando tiradas
ferirem o voo desde o Iliss0 5 às ribas diretamente das publi-
cações originais.
africanas, sen embargo das ruínas e dos
tempos - a imaginação dessa senhora tam- 5 Ilisso é um pequeno
rio da Ática, região da
bén voou por sobre os destroços presen-
Grécia antiga.
tes até às ribas de uma África juvenil.. •

23
Memórias quase póstumas de Machado de Assis

Deixá-la ir; lá iremos rnais tarde;


lá iremos quando eu rae restituir aos
primeiros anos. Agora, quero morrer
tranquilamente, metodicamente, ou-
vindo os soluços das damas, as fa-
1as baixas dos homens, a chuva que
tamborila nas folhas de tinhorão da
chácara, e o som estrídulo de una
navalha que um amolador está afian-
do lá fora, à porta de um correeiro.
Juro-lhes que essa orquestra da mor-
te foi muito menos triste do que po-
dia parecer. De certo ponto em dian-
te chegou a ser deliciosa. A vida
estrebuchava-me no peito, com uns
ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-
-me a consciência, eu descia à imo-
bilidade física e moral, e o cor-
po fazia-se-me planta, e pedra, e
lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se
lhe disser que foi menos a pneumo-
nia, do que uma ideia grandiosa e
útil, a causa da minha morte, é pos-
e
ASSIS, Machado de. sível que o leitor me não creia,
Memórias póstutnas de todavia é verdade. Vou expor-lhe
por
Brás Cubas. São Paulo: sumariamente o caso. Julgue-o
si mesmo

24
De maneira diversa de Brás Cubas, quando
morrer, de modo muito provável,com meus 69
anos, não diria que estesseria-n"rijos¯ e me-
nos "prósperos".
Cornojí disse, ando bem doente, e o maco- ao
me desenganar,deu-me um prazo de cinco ou seis
meses de vida, para que vá desta para a meLhorou
para a pior, dependendo do ponto de vista.
Quanto à prosperidade,ela será muito rela:i-
va- Morrerei remediado, sem fortuna. Ao contrá-
rio de meu personagem,se não deixarei dinheiro
aos herdeiros, deixarei, porém, o legado de meus
escritos, o que não é coisa de pouca monta.Tam-
bém diferente do solteirão Brás Cubas, que era re-
fratário ao casamento,fui muito bem casadocom
Carolina.
E, quando morrer, quase com certeza. serei
acompanhadoaté o cemitério nio pr apenas onze
pessoas,como ele, mas por um grande numero de
amigos,alguns parentes e admiradores.Segundo
nhas determinações,enterrar-me-ão no jazigo per-
pétuo 1359,no cemitério São João Batista,onde já
repousa Carolina.

25
pp

O Mais ainda: Brás Cubas procurou


cd

o de forma extravagante, inculpar um


emplast07 como o responsável pela sua
morte, como disse nos capítulosII e V
de suas memórias:
Q)

Coraefeito, urndia de manhã, estan-


do a passear na chácara, pendurou-se-
-me urna ideia no trapézio que eu tinha
no cérebro. Uma vez pendurada, entrou
a bracejar, a pernear, a fazer as mais
arroj adas cabriolas de volatins, qtüe
é possível crer. Eu deixei-me estar a
contemplá-la. Súbito, deu um grande
salto, estendeu os braços e as pernas,
até tomar a forma de X: decifra-me
Ou devoro-te .
Essa ideia era nada menos que a in-
venção de um medicamento sublime,
emplasto anti-hipocondríaco, desti-
nado a aliviar a nossa melancólica hu-
manidade.

7 Medicamento que, ao
calor, amolece e adere
à pele. ocupado
Senão quando, estando eu
8Andarilho. invenção,
em preparar e apurar a minha

26
recebi emcheio golpe do
logo, e aio tratei, Tinhao
to no cérebro; trazia eomiqo
fixa dos doidos e doe Via-mo,
ao longe, ascender do chão dag
e renontar ao comoumaáguia
tal, e nãoé diante do tao exeoloo
petáculo que u.'homem podo sentir a dor
que o punge. Nooutro dia egtava pior;
tratei-no enfim, nag incomplotamon•
te, gea sétodo, nemcuidado, nempor-
gietência; tal toi a origemdo mal que
ae trouxe à eternidade. Sabem já que
morri sexta-feira, dia aziago, e
creio haver provado que foi a minha in•
vençáo que ne matou.

A minha morte, pelo contrário,


não se deverá a emplasto algurn, Mor-
rerei, como se sabe, em consequência
das feridas na boca e de infecção intes-
tinal,que vinha me afctandojá há um
longo tempo.
Como estou sozinho, no fina da
vida e sofrendo muito, vejo a morte ASSIS,op, cite,p
24,
agora,e creio também que a verei mais

27
Machado de Assis
Memórias quase póstumas de

tarde, como um bálsamo. Afinal, aos


mortos, só cabe o descanso,ou, como
melhor diria Lucrécio:

Por que não te retiras da vida cono


unconensa2já satisfeito
ou te concedes serenamente, ó tolo
tranquilo repouso? 10

Assim, quando chegar o momen-


to azado, deixarei a vida sem muitasla-
mentações, ao contrário de Brás Cubas,
que queria continuar vivendo a todo
custo, como ele revela no seu delírio do
capítulo VII:
10Em latim, "Cur non
ut plenus vitae conviva - Não, respondi; nem quero enten-
recedis,/ aequo animoque
der-te; tu és absurda, tu és uma fábu-
capis securam,stulte, quie-
tem?", Lucrécio, poeta Ia. Estou sonhando, decerto, ou, se é
latino (98 a.C-55 a.C.), verdade que enlouqueci, tu não passas
Da natureza, III, 938-9, de una concepção de alienado, isto é,
In: BARELLI, Ettore;
una coisa vã, que a razão ausente não
PENNACCHIETTI,
Sérgio. Dicionário das ci- pode reger nem palpar. Natureza, tu? a
tações.São Paulo: Mar- Natureza que eu conheço é só mãe e não
tins Fontes, 1, p. 362.
inimiga; não faz da vida um flagelo,

28
nem, como tu, traz esse
rosto indiferente, como o
sepulcro. E por que Pandora?
— Porque levo na ninha o
bolsa os bens e os males ,
e o maior de todos, a
esperança, consolação dos
ho-
nens. Trenes?
— Sim; o teu olhar fascina-me.
— creio; eu não sou somente
a vida; sou também
a norte, e til estás prestes a
devolver-ne o gue te
enprestei. Grande lascivo, espera-te
a voluptuosi-
dade do nada .
Quando esta palavra ecoou, cono trovão, 2a-
guele inenso vale, afigurou-se-me gue era o último
son gue chegava a meus ouvidos; sentir a
decomposição súbita de min mesmo. Então, encarei-a
con olhos súplices, e pedi mais alguns anos .
— Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu
mais alguns instantes de vida? Para devorar e se-
res devorado depois? Não estás farto do espetáculo
e da luta? Conheces de sobejo tudo o gue eu te de-
parei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do
dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite,
Os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior bene-
fício das ninhas mãos. Que mais queres tu, sublime
idiota?
Viver somente, não te peço mais nada. Quem me
pôs no coração este amor da vida, senão tu? e, se
eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma,
matando-me ?

29
- Porque já não preciso de ti.
importa ao tempo o minuto que
passa
mas o minuto gue vem. O minuto
gue ven
é forte, jucundo", supõe trazer
en
a eternidade, e traz a morte, e
ce como o outro, nas 0 tempo
subsis-
te. Egoísmo, dizes tu? Sim,
egoísno
não tenho outra lei. Egoísmo,
conse:-
vação. A onça mata o novilho porque
o
raciocínio da onça é que ela deve
ver, e se o novilho é tenro, tanto
ne-
lhor: eis o estatuto universal .
Sobe
e Olha 12

Nunca tive desses delírios em


vida, a não ser os delírios que inven-
tei para meus contos e romances,e
espero que, ao fechar os olhos, possa
descansar,sem ser importunado por
fantasmagorias. E, caso tivesse opor-
tunidade de encontrar a figura da
Natureza, ao contrário de Brás Cubas,
11Alegre, feliz. não lhe imploraria nem mais um liii-
12ASSIS, op. cit., p. 32- nuto de vida. Não, não faria isso
33.
não ia querer ser chamado de "idiota"

30
Saldo de duas vidas

nenl receber a lição de que a vida, de acordo com


o estatuto universal,é uma luta em que alguém
devora o próxin10, para ser devorado depois... E
tnuito Inenos ia querer a consolação ofertada pela
mãe Natureza:"Conheces de sobejo tudo o que
eu te deparei Ilienos torpe ou menos aflitivo: o
alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da
noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior
beneficio das Illinhas mãos". Recusaria o consolo
e talvez lhe dissesseapenas:"Afasta-te de mim, ó
infaustacriatura! Deixa-me, que nunca precisei de
ti e não será agora que irei implorar-te o que quer
que seja".
Queria só que meu corpo repousasseem paz,
ao lado de minha querida Carolina...
Quanto a estas minhas memórias,o leitor verá
que eu, apesar de pobre, de saúde frágil e, ainda por
cima, apesar de ser mulato, nascido numa sociedade
escravocrata,consegui dar rumo à vida. Fui sempre
um funcionário exemplar e um dedicado esposo
para Carolina. E, como legado, deixarei para a pos-
teridade romances, contos, crônicas, poesias e peças
de teatro, que os leitores não se cansarão de louvar.

31
Mornado 'Io AaaJn

Já Brás Cuba«, apesar dc rico, saudável e


branco, diqsipou a existência num sem-
dolcefar nicnt('13,deixando, depois da

ele Ilic•stnochegou a confessar:

Este último capítulo é todo de


negativas. Não alcancei a celebri-
dade do emplasto, não fui :ninistzo
não fui califa, não conheci o casa-
mento. Verdade é que, ao lado dessac
faltas, coube-me a boa fortuna de
não comprar o pão com o suor do
rosto. Mais; não padeci a morte de
D. Plácida, nem a semidemência do
Quincas Borba. Somadas unas coisas
e outras, qualquer pessoa imagina-
rá que não houve míngua nen sobra,
e conseguintemente que saí quite
com a vida. E imaginará
mal; por-
que ao chegar a este outro lado do
mistério, achei-me com um pequeno
Expressio itahana saldo, que é a derradeira negativa
que significa"ócio pra- deste capítulo de negativas: - lüao
zeroso . tive filhos, não transmiti a nenhu-
ASSIS, op. cit., p. ma criatura o legado da nossa misé-
ria. 14

32
Mas chega de delongas vamos à história. E dou
início a ela com uma cena que muito me apraz lembrar.
Nela, estava ainda bem de saúde, fazendo o que mais
aprecio,que é escrever.E junto a mim encontrava-se
Carolina, pronta a me assistirquando dela precisase.

Olhos de cigana oblíqua e dissimulada

Eu tinha os olhos postos na rua, entre os coqueiros


do meu jardim eram oito horas da manhã. Quem me
visse, à janela de minha casa em Cosme Velho, cuidaria
que estivesseolhando para o movimento dos veículos e
passantes;mas, em verdade, vos digo que pensava em ou-
tra coisa. Cotejava o passado com o presente. Que era eu,
muitos anos atrás? Um vendedor de balas e, depois, tipó-
grafo. Que sou agora? Funcionário de um ministério e
escritor.Voltei os olhos, contemplando o escritório. Os
livros nas estantes, a escrivaninha com seu tinteiro de pra-
ta -- presente de um amigo —,blocos de papel e canetas,
o abajur de bronze —cuja base era uma estátua de Dia-
na, tendo aos pés uma corça —,meu confortável canapé,
onde costumava me sentar para ler —tudo me dava a sen-
sação de sossego,comodidade, convidando ao trabalho.

33
Eu vestia uma mupa leve por conta do intenso
calor. As cigarras cantavalli enl coro, naquele sába-
s: do. Joana, a nossa cozinheira, costutnava dizer que
"cimrra cantando é sinal de chuva chegando". Seria
bom que chovesse,que urna canícula assilllnão
fazia bem aos nervos. Para nneu alívio, unna prinla-
vera, debruçada sobre urna das janelas, dava sonibra,
refrescando o escritório. Deixei a janela e voltei a
me sentar diante da mesa, sobre a qual as folhas de
papel manuscritas e a pena mergulhada na tinta me
aguardavam.
Estava inspirado naquele dia e escrevia com ra-
pidez. Meu romance prometia, os personagens ga-
nhando um perfil definido, e os fatos do enredo se
concatenando com solidez. Assim, escrevi até me
doer a mão. Parei para descansar um pouco, tirei os
óculos e limpei as lentes com um lenço. Repondo-

frase, e reescrevi o parágrafo que começava por "Fui


devagar..." e não me parecia nada bem. Uma hora
depois, satisfeito com o resultado, passei todo a limpo
o capítulo XXXII, que intitulara "Olhos de ressaca"
tarefa que me exigiu umas duas horas de trabalho:

34
Tudo curIogJdades
ao Catoohouver porém, no qual
náo no ou ensinou, on
como Éo
contarei no Olitrocapítulo. dl-
roi somente alguns diaa
pargoadors
do como agregado, fui ver a mi-
nha amiqa; oram dez horas da manhã.
D. Fortunata, que otgeava no quintal,
nem esporou quo ou lhe perguntasse
polafilha.
- Fat3tána sala penteando o cabe-
lot disse-mo; vá devagarzinho para lhe
pregar um susto.
Fui devaqar, mas ou o pé ou o es-
polho traiu-me. Este pode ger que não
fosse; era um espelhinho do pataca"
(perdoai a barateza), comprado a um
mascate italiano, moldura tosca, ar-
golinha de latão, pendente da pare-
det entre as duas janelas. Se não foi
ele, foi o pé. Um ou outro, a verdade
é que, apenas entrei na gala, pente,
cabelos, toda ela voou pelos ares, e
só lhe ouvi esta pergunta:
- Há alguma coisa?
- Não há nada, respondi; vim ver
você antes que o Padre Cabral chegue P' Moeda de pouco valor.
para a lição. Como passou a noite?

35
thJIÇ;?

tala?

logo de
alto e por um
ria, primeiro 'dor go

- tem, tftm, interrompeu Câpit.v;,


tooso pteelao alguémpara vencer j",
lho falaria, Eu nem Jog6
influir tanto; acho Cará todo,
você realmenve náo quer ser padre,
cangar? , , , Ele ó ôt«ndido; porém, . ,
loto! Você teimo com ele, Bentinho.
- Teimo; hoje mesmo de falar.
- Voc6jura?
- Juro! Deixo ver on olhos, Capita,
Tinha-mo lembrado definição Jozé
dera doleot "01h00 do cigana oblíqua e digai:tuiada".
Eu não gabia o quo era oblíqua, r
diggi.nalad¿
bio, e queria ver ge podiam chanar asgi:n.
doixou-oo fitar e examinar, perguntava o
era, oe nunca os vira; eu nada achei eztraordinárro;
a cor o a doçura eram minhas conhecidas. h dezora da

contemplação creio que lhe den outra ideia do


intento; imaginou quo era um pretexto para mirá-lo:
mais do perto, com 03 mous Olhotllongos, constantes,

36
00

enfiados neles, e a isto atribuo gue


entrassem a ficar crescidos, cres-
O
cidos e sombrios, com tal expressão
que.
Retórica dos namorados, dá-me uma
conparação exata e poética para dizer
o que fora:n aqueles olhos de Capitu.
Não me acode imagem capaz de dizer,
sen quebra da dignidade do estilo, 0
que eles foran e me fizeram. Olhos de
ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá
ideia daquela feição nova. Traziam não
sei gue fluido misterioso e enérgico,
'.=aforça gue arrastava para dentro,
cozo a vaga gue se retira da praia,
nos dias de ressaca. Para não ser ar-
rastado, agarrei-me às outras partes
vizinhas, às orelhas, aos braços, aos
cabelos espalhados pelos ombros; mas
tão depressa buscava as pupilas, a
onda gue saía delas vinha crescendo,
cava e escura, ameaçando envolver-me ,
puxar-me e tragar-me. Quantos minu-
tos gastan0s naquele jogo? Só os re-
16gios do céu terão marcado esse tempo
infinito e breve. A eternidade ternas
suas pêndulas 16; nem por não acabar
160 mesmo que o pên-
nunca deixa de querer saber a dura-
dulo de um relógio.
ção das felicidades e dos suplícios.

37
gozo aos bem-aventura-
Há de dobrar o
soma dos tormon-
dos do céu conhecer a
padecido no infor-
tos que já terão
no os seus inimigos; assim também a
quantidade das delícias que terão
zado no céu os seus desafetos aumen-
tará as dores aos condenados do in-
o,
ferno. Este outro suplício escapou ao
divino Dantet7;nas eu não estou aqui
para e:nendarpoetas. Estou para con-
tar que, ao cabo de um tempo não mar-
cado, agarrei-me definitivamente aos
cabelos de Capitu, nas então con as
nãos, e disse-lhe — para dizer alguma
coisa - que era capaz de os pentear,
se quisesse.
- Você?
- Eu mesmo.
- Vai embaraçar-me o cabelo todo,
isso sim.
--Se embaraçar, você desembaraça
l)ante Alighieri (1265- depois .
1321), poeta Italiano,
autor de A divina co- - Vamos ver.
média.

ASSIS, Machado de.


Dom Casmurro. 5. ed. Voltei a ler o texto. Estava tão entre-
São Paulo: FT D, 1999,
tido com a leitura que não me dei conta
P. 63-65.
da entrada de Carolina no escritório.

8
Ca Ido

De maneira que estremeci, quando ela pôs o braço em


torno a meus ombros e disse:
—Então, como vai este Dom Casnturro?
—Vaibem, ao que parece respondi, erguendo o
rosto. ---Estava escrevendo sobre a atração que Capitu
exerce sobre Bentinho...
—Posso ver? —perguntou-me ela, cheia de curio-
sidade.
—Por que não, Carola?
Passei-lhe o manuscrito. Ela foi sentar-se numa
cadeiraem frente à mesa e começou a ler as folhas
de papel que ainda cheiravam à tinta. Como era seu
costume, enrolava uma mecha de seus cabelos cotil
um dedo.
Depois de algum tempo, não podendo conter a
curiosidade, perguntei:
E então?
Sempre tive em conta os juízos de Carolina. E, ou-
vir e acatar a opinião dela, como nunca deixara de fazer,
era fundamental para o progresso de Dom Casmurro.
—Um instantinho, meu caro...
Ao terminar de ler, ela pôs as folhas sobre o colo
e disse,fingindo que me admoestava:

39
de Agaio
•mórias quase póstumas de Machado

Mas que ideia você teni (Ias


lheres, hein, Quincas 19
---Como assine
"Olhos de cigana oblíqua c dis-
simulada"... Ora, então sorno«
dissimuladas,fingidas?
-- Como você deve ter percebi-
do j—comecei a retrucar —,não fui eu
quem disse isso. Quem o disse foi o
José Dias.
—Mas foi você queni criou o José
Dias. Portanto...
— Carola, não acredito que você
esteja falando sério. Fosse assim re-
fleti um pouco, para depois cornplctar:
—Shakespeare, por exemplo, seria o cul-
pado pelos assassinatosque Macbetlf()
19Apelido pelo qual
Carolina tratava o es- comete. Eu não assun10tudo o que o
critor.
José Dias pensa a respeito de Capitu...
20Personagemde Sha-
kespeare,da peça de Carolina levantou-se, aproxirnou-
mesmo nome, que, in- -se e disse, com um ar provocativo,
citado pela mulher,
mata seu benfeitor para como se não estivesse de todo conven-
lhe roubar o trono.
cida dos meus argumentos:

40
---E você acha então (IVIC
I)élll tenho esses olhos dc cigana oblí-
qua e csqesolhos de res-
«aca que tentaria l)) para o

Não pucle resistir à graça dc Ca-


rolina. Tomei-a pela cintura e a fiz
aproxitnar-se njais de Disse-lhe
conl afeto:
De 1110doalgujn, querida, jnuito
pelo contrário...
E, fechando os olhos, recitei
versoqque havia connposto:

Teus olhos são meus livros.


Que livro há aí melhor, Trecho do poctna
Em que melhor se leia de Machadode Assis
21 "l,ivros e flores", pu-
A página do amor.
blicado pela primeira
vez Falenas. Rio de
Janeiro: B. L. Garnier,
Carolina deu Vilnarisada e beijou- 1870, Disponível Cin:
-Ine a face: <www.brasiliana.u«p.
br/bbd/handle/ 1918/
Mas que horneln Inais galante!
Saiu-se jnuito bem, depois do que dis- njode/lup>. Acesso
coo.'24 dez. 2013,
se das nmlheres...

41
Por um lado, quem o diz é
Carola.
não se diz no texto que
e, por outro,
Pias
são desse modo. Quem é assim
mulheres
todasas
pouco teirnosa, Carolina in-
uni
Corno era
sistiu: de que, em Menióriaspóstumas
Lembra-me
coisa engraçada, mas bastante provo_
uma
você disse
sobre uma mulher...
cativa,
Qual coisa?
Marcela amou Brás Cubas durante .
—Que
ela hesitou,como que tentando se lembrar da pas-
sagem.
"quinze meses e onze contos de réis"
completei.
—Está aí! As mulheres, em seus romances, ora
são fingidas,ora interesseiras. Não é o que também
acontece com a mulher do Palha, a Sofia, que seduz
o pobre do Quincas Borba com seus lindos
olhos,
braçose colo, só para explorá-lo?
Balancei a cabeça, e ela tornou a cair
na risada:
---Não dê importância, não,
Quincas, estoua
mangarcontigo.
v i 'lao

Carolina costutnava ser sisuda. Não no


papel
de Carola, quando, Ilitlitas vezes, gostava Inestno de
manoar comigo. Mas nunca Ine tirava do sério por-
que tinha sua graça. Lancei os olhos para as folhas
de papel enl posse dela e perguntei, ainda cheio de
curiosidade:
NIas,fora essa censura aos olhos da tninha ciga-
na, o que achou do que escrevi,Carola?
Carolina voltou a olhar para as páginas.Depois
de se demorar refletindo uni pouco, respondeuda-
quele seu jeito circunspeto:
Está Inesmo ótimo o capítulo!Pareceque es-
tou a ver a cena de tão viva. E que atraçào que a rapa-
riga exerce sobre ele. Urna atração fatal,que o arrasta
como uma onda... O melhor etn seu romanceé que
ele, não sabendo como definir o que há nos olhos da
Capitu, usa de uma metáfora tão bonita... Digna de
um grande poeta.
Carolina buscou um trecho com o dedo e, en-
contrando-o, pôs-se a lê-lo enl voz alta:

Retórica dos namorados, dá-me uma compara-


ção exata e poética para dizer o que foram aqueles
olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer,

43
quase póstumas do Machado do
,uemórias

sem quebra da dignidade do


ogtüi.lo
que eles e
foralll mo fizeram.
Olhou
ressaca? Vá, do ressaca. o
ideia daquela feição nova.
Traziam
sei que fluido lilisteriosoo enérgico
uma força que arrastava para
doutro
como a vaga que se retira da
praia,
dias de ressaca. 22

Ela fez urna pausa e disse


colho
para si mesnxa:

Há muito não lia coisa tão bonita.


E concluiu:
Sabe, Quincas, estou
curiosa por saber aonde isso vai dar,
Você tem uma ideia exata do que acon-
tecerá com eles?
—Sim, mas não diria exata,por-
que depende de con10 andará o ro-
mance, mas sei que não terniinarálá

fraco, e a Capitu é uma força da natu-


reza. Ele não resistirá a ela. E há entre
22ASSIS, op. cit., p. 64.
ardiloso.O certo é que se casarão,mas o abisrno en-
tre eles... o
Carolina levou-me um dedo aos lábios, fazendo-
-me calar:
----Não, não me conte mais nada. Não estrague a
surpresa. O romance lido, tenho certeza absoluta, será
bem mais saboroso que o romance resumido e conta-
do. Além disso,está na hora de nosso chá.Tinha vindo
até aqui para avisá-lo que a Joana fez aquele bolo de
fubá de que você tanto gosta.

45
Capitulo IT-

O filho da
1 av ade ir a

fly.
Igum tempo se passou depois da cena des-
crita anteriormente. Dom Castnurro fora
publicado e ganhara a estima dos críticos
e dos leitores. E minha vida corria com a placidez de
costume. Fazia meu trabalho no Ministério com o
escrúpulo de sempre, lia muito, escrevia para jornais
e revistas,reunia-me com os amigos. Pois, um dia, es-
tando entretido com a releitura de Hamlet,ouvi toca-
rem a sineta da entrada. Uma vez, duas vezes. Por que
o Raimundo ou a Joana não atendiam à porta? Ao
terceiro toque, lembrei-me de que eles haviam ido
comprar verduras e legumes numa chácara das pro-
ximidades. E Carolina não estava em casa.Tinha ido
visitar a amiga, dona Constança. Cabia a mim deixar
a leitura e ver quem era.
Ao portão, deparei-me com um rapazinho que
trazia uma grande trouxa na cabeça. Era mulato e
bem franzino. Como conseguia carregar tanto peso
com um fisico daquele?
—Pois não?
—A roupa lavada, senhor... —respondeu, num fio
de voz.
—Ah,sim, por favor, traga-a aqui para dentro.

47
Ele acotnpanhou-lne e, chegando à sala,
depositar, com dificuldade,
os nósculos para
quanto era e fui pegar
no chão. Perguntei-lhe
nheiro no quarto. Quando voltei, dei com ele
tado sobre a trouxa. Ao ver-me, assustou-see f:.
logo de pé. Reparei que parecia extenuado.
estivesseno limite de suas forças. Quiçá estivesse
fome. Fiz-lhe um sinal com a mão e disse:
—Venhacomigo até a cozinha.
Pedi que sentasse,fui ao armário e peguei
travessacom uma broa de fubá e um litro de le,.
Depositei tudo à sua frente, mas o rapazinhonio
atreveu a tocar no alimento.
—Ande, não faça cerimónia.
Como ainda hesitasse, eu mesmo cortei um
daço de broa e voltei a dizer:
—Coma, meu pequeno.
Começou a comer, a princípio, devagar,depo:s.
com voracidade. Cortei outro pedaço, que logodesa-
pareceu em sua boca. Quando pareceu saciado, ainda

lhe ofereci um copo de leite. Enquanto bebiadeva:r,


como se economizasse cada gole, perguntei-lhe:
—Como você se chama?
Ofilho da lavadeira

Herrnenegildo de Souza Pereira.


Detl-rne vontade de rir do jeito ceritnonioso
conl que Ilie respondera, 111as
não fiz isto. Apenas per-
guntei:
—Vocêé filho da Anica, não?

vinha nos servindo. Trabalhava corno poucos e, se-


gundo a Carolina, dava gosto ver como engonnava
lençol. O Hermenegildo apenas balançou a cabeça,
confirmando.
—E por que ela não veio trazer a roupa?
---Mamãe está doente.
O que ela tem?
—Dor no peito. Disse que não dava para carregar
tanto peso.
—E onde vocês moram?
No morro do Livramento...
Quanta coincidência! Eu também nascera por lá.
Isso fez com que simpatizasseainda mais com ele.
Insistipara que comesse outro pedaço de broa, acom-
panhado de leite. Não se fez de rogado. No final,
depois que o paguei, foi embora, levando, após muita
insistência,o que restara da broa.

49
Memórias quase póstumas de Machado de Assis

Quando Carolina voltou da rua, comentei


o
episódio com ela, que me disse:
—AAnica, então, está doente? Pobre mulher.

tempo que vem se queixando de que não
dorme
à noite, com tantas dores. Nem sei como consegue
trabalhar. E, se não bastasse isso, ainda é casada
com
aquele mandrião do Fortunato.
—Fortunato?
—O homem com quem vive. O primeiroma-
rido faleceu, deixando-a com o filho. Ela, então,
inventou de se amasiar com esse indivíduo,queé
pedreiro. Mas, de acordo com que ouvi, não é boa
bisca. Não trabalha, vive bêbedo, bate nela,maltrata
o pobre do menino.
a—Não é à toa que o Hermenegildo é tão fran-
zino.
Contei-lhe o que havia feito, dando-lhe a broa
e uns poucos tostões a mais.
—Você fez muito bem, Quincas. Não me sur-
preenderia saber que estão passando fome. Ainda
mais com a notícia de que a Anica está de cama.
Voltei para a leitura de Shakespeare,masnio
consegui mais me concentrar.

50
Volta e meia, era assombrado
pela visão daquele corpo franzino,
daqueles olhos fundos. Via-me no
rapazinho: de família pobre, nascera
também naquele morro, onde vivera
numa chácara, e meu pai era pintor
de paredes. O que nos diferenciava
era que eu tivera momentos felizes
na infincia, graças à proteção da mi-
nha madrinha, Dona Maria José de
Mendonça Barros023, de quem éra-
mos agregados24. E meu pai, ao con-
trário do padrasto de Hermenegildo,
sempre fora trabalhador e não tenho
a lembrança de ele ter tocado a mão
em minha mãe ou em mim. Viúva do Bngade:ro
Bento Barroso Peretra,
Era por isso tudo que havia me que tinha «Ido senador
condoído da sorte do menino. do Impérto, por duas
vezes foi Ministro da
Mas a história daquele rapazi- Guerra e, unu
nistro da Ntarinha-
nho que, sem que eu esperasse,cru-
24Pessoaque vi'tr com
zava-secom a minha, haveria de ter uma família,sem ter
outros desdobramentos que relatarei grau de parentesco com
ela.
adiante.

51
Incidente coraHermenegildo

De vez em quando, tinha eu 0 costume


de
trabalho para casa. Mas isso só acontecia
em situações
excepcionais, quando as coisas se atrasavam
no Mi
tério, menos por minha culpa do que por
culpade
gum funcionário relapso. Era o caso: tinha
que
com urgência alguns processos que estavam
cheiosde
erros. A tarefa consumia-me bastante do
meu tempo
mas sabia que era meu dever cuidar dela.
Quem mais
senão eu, diretor-geral da Contabilidade,
podiafazer
esse trabalho com o rigor que dele se exigia?
sultava uma tabela, na qual os nÚmerospareciam

maneira intempestiva. Disse com muita indignação:


—Não é possível! Desse jeito, não dá.
—O que não é possível,Carola?O que aconteceu
de tão grave? perguntei, preocupado.
Afinal, ela não andava com a saúde muito boa,o que
lhe provocava alterações constantes do humor.Pensava
eu que vinha se queixar de mais um de seusachaques.
— O Hermenegildo, Quincas! Apareceu hoje cá
em casa com uns hematomas pela cara.

52
O filho da lavadeira

Hematomas? Por acaso, de alguma queda?


Balançou a cabeça e disse,ainda com indignação:
—Antesfosse!Parece que o malandro do padrasto
bateu-lhe.
—Mas que absurdo! Onde se viu uma coisa dessas?
disse,levantando-me da cadeira.
—Pois é. Quando chegou com a roupa, o Rai-
mundo foi pagar-lhe e notou que o menino não pare-
cia bem. Contou-me a história, fui até ele e notei que
estavamesmo bastante machucado.
Ele já se foi?
Claro que não! Não o deixei ir-se. Calcule que
o Hermenegildo só me contou o que aconteceu de-
pois de muita insistência minha.
Ponderei sobre o caso.A mãe, pelo que eu sabia,
continuava mal, apesar de que ainda nos lavasse e passasse
a roupa.E vinha ainda aquele homem bater no menino.
—E o que acha que devemos fazer?
—Vimaté aqui para combinar com você.
Carolina disse isso num tom que eu conhecia de
muito. Fingia querer aconselhar-se comigo, mas sabia
quejá havia tomado uma decisão.
Então...? —eu disse.

53
as de Machado de Assis
quase
rias

Acho que devemos ir até a casa dele paraver


acontecendo de fato.
que anda
Até o morro do Livramento?
---Isso mesmo respondeu, num tom que não ad_
mitia réplica. —Vamosaté lá, levamos o Hermenegild
pratos limpos essa história toda
conosco e pomos em
Não me restavaoutra coisa senão dobrar-me à
todo caso, sabia que ela estavacom
I tade de Carolina. Em
Tínhamos
razão. mesmo que tomar alguma providência
a
capaz de dar cabo do menino.
do contrário, o homem era
E fui ter certeza disso quando me encontrei com
o rapazinho na sala. Parecia mais frágil do que antes,
talvez devido aos hematomas em sua face. Aquilo me
constrangeudemais e levou-me a decidir de vez pela
sugestãode Carolina. Chamamos um carro e fomosos
três ha direção do Livramento.
O cupê subia o morro bem devagare com gran-
de esforçodos dois cavalos.Ao contemplar o casario,
o arvoredoe a gente que por ali passava,não pude
deixar de sentir nostalgia. Afinal, fora no Livramento
que passaratoda minha infincia. E ainda estavambem
impressasna memória as imagens da velha casaonde,
como agregada, minha famflia residira.

54
P,velha casa

Bentinho, tornado Casmurro, resolve reconstruir a


casaem que viveu, com o intuito de "restaurar na velhice
a adolescência", como, aliás,o leitor já bem sabe.Eu, mais
modestoem minhas intenções, naquele esforço de me-
mÓria,enquanto subia o morro do Livramento,recons-
Ú-uíatambém a minha casa, mas apenas recuperando a
imagem do lugar em que vivi até meus seisanos de idade.
Ficavanuma grande chácara,no topo dessemorro.
Creio que hoje ela não exista mais.Tinha entre o povo
o nome de CasaVelha, e o era realmente: datavados
fins do outro século. Era uma edificação sólida e vasta,
gosto severo, sem adornos. Eu, desde criança, conhe-
cia-lhe a parte exterior, a grande varanda da frente, os
dois portões enormes, um para as pessoas da família.e
para as visitas, e outro destinado ao serviço, às cargas
que iam e vinham, ao gado que saía a pastar.Além
dessasduas entradas, havia, do lado oposto, onde ficava
a capela, um caminho que dava acesso às pessoas da
vizinhança,que ali iam ouvir missa aos domingos ou
rezar a ladainha aos sábados. Quanto ao espaço que
mais amava, a biblioteca, era uma vasta sala, dando para

55
o a chácara, por meio de
seisjanelas
grade de ferro, abertas de d
um só
Todo o lado oposto estava lad
forradod
estantes, carregadas de livros. Esses
na maior parte, antigos, e eram
havia muitos
infólios25;também livros de
história d
política, de teologia, alguns
de letras
filosofia,não raro em latim e e
italian026
Foi o que me ficou dela.
Não me
z: lembro de adornos no teto ou
naspa-
redes, muito menos de retratos
de ante-
passados. Recordá-la faz-me
retornar ao
passado.Posso ver a criança que eu
era,
descalça e sem camisa, brincando
por
f 2" Diz-se do formato
entre as árvores, caçando passarinhosou
que tem a folha de im- tentando pegar lagartixas.
pressãode um hvro ape-
i. nas dobrada em duas. Mas me lembra de que, acimade
2' Este parágrafo é re- tudo, o que mais me agradavamesmo
produção quase Integral era enfiar-me entre os livros e ver,com
de trechos dos capítulos
I e II de Relíquias da casa curiosidade, o que continham. Ainda
trlha, In: Obra completa,
Machado dcAssis, vol. II. 'l
hoje, sinto no ar aquele cheiro de pó e
g'Rio de Janeiro: Nova velharia da biblioteca da casa em que
: Aguilar, 1994, p. 2, 5-6.
passei a infincia.

56
O filho da lavadeira

A2ica doente

Chegamos,afinal, onde vivia o Hermenegildo,


sob os reclamos do condutor do carro, porque era
dificilsubir por aquela senda tão esburacada.Era um
casebrede taipa, com uma janela à frente, ocupando
um pequeno terreno, onde se viam algumas flores e
pés de couve, alface e tomate. Pareciam malcuida-
dos,como se não conhecessem mãos que tomassem
conta deles.
Entramosnuma saletade chão de terra batida,
onde havia uma mesa de pinho com três cadeiras.Nas
paredes de barro, estavam dependuradas estampas de
santos.O menino foi para dentro, e logo o ouvimos
conversarem voz baixa com alguém. Pouco depois,
uma mulher negra, magra como um pavio,veio se ar-
rastandocom muita dificuldade.Ao dar com a gente
de pé na saleta,chamou a atenção do rapazinho.Fez
issoentre muitos acessos de tosse:
—Mas... mas adonde se viu, Menegildo? Deixar
as Incelências de pé?!
E só foi sentar-se quando viu que já estávamos
acomodados.

57
póstumas de Machado de Assis
gmórias guase

Queria oferecer alguma coisa a nhô Machad


e nhá Carolina. Mas não tenho café. Serve um cháde
erva-cidreira?
—Não se incomode, Anica —disse Carolina.
Como ela se finara em tão pouco tempo! Lembro_
-me de que a Anica, quando começou a lavara roupa
para nós, era uma mocinha cheia de corpo e toda
ridente. Agora, tornara-se um molambo, só osso e pele.
—Anica,estamos aqui por causa do seu menino.Você
pode nos contar o que houve? —continuou Carolina.
Ela nos fitou com os olhos cheios de tristeza.Pôs
a cabeça entre os braços sobre a mesa cambaia e come-
çou a chorar. Entre soluços, dizia:
—Além de não trabalhar... ele ainda bate no meni-
no... Ontem, chegou bêbedo... Não encontrandoco-
mida, me xingou e... e... espancou o Menegildo. Meu
pobre filho que não tem pai e logo não terá a mãe...
—O que é isso,Anica? Como não terá mãe?—pro-
testei sem muita convicção. —Você logo estará boa.Va-
mos ver se conseguimos interná-la numa casa de saúde.
Isso mesmo — apoiou Carolina, para depois
completar: E vamos também resolver a situaçãodo
seu menino.

58
Anica contou, então, que o Fortunato não só batia
no Hermenegildo, como também não o deixava mais
ir à capela de São José, onde costumava ajudar o padre
Sarnento com a missa-Alegava,sem motivo, que pre-
cisas.a dele em casa.
O Menegildo vinha aprendendo tanta coisa
com o padre... Estavainté começando a ler língua de
missa,nhá Carolina. Sempre aparecia em casa com um
livro.E o desgraçadodo meu homem dizendo que ler
não enchia barriga de ninguém e que queria o Mene-
gfldo ajudando ele.
Deu um suspirofundo.
E o pior é que começou a bater nele à toa, à
toa.Diz que o Menegildo é vagabundo,que não quer
trabalhar.Mas o Menegildo é menino trabalhador.
O que ele não pode é com coisa pesada,de tão fra-
quinho que está.
Deu outro suspiro e pôs-se a falar do finado mari-
do, que, segundo ela, era originário dos Açores.
Ele, sim, era homem trabalhador, não deixava
faltarnada em casa.E tinha um grande amor pelo Me-
negildo.Ah, por que Deus tinha de levar ele! E, agora,
estouvendo que eu mesma vou faltar...

59
—Não diga uma coisa dessas, Anica
cortou
Carolina. —Vocêvai ficar boa...
—Sei, não, nhá Carolina. Sinto uma gastura
aqui
—ela passavaa mão pelo ventre. —Parece inté
que
estou pegando fogo por dentro.
Olhou com intensidade para nós e continuou:
—Por isso,se eu for mesmo pro hospital,
queria
pedir pra nhá Carolina cuidar do Menegildo.Se ele
ficar aqui em casa com o Fortunato, esse homemé
capaz de fazer alguma maldade pro menino.
—Pode ficar descansada —disse Carolina —que
cuidaremos dele.Você indo para o hospital,ficamos
com o Hermenegildo em casa.
"Como é que ela podia prometer uma coisada-
quelas?", pensei. Nem lugar tínhamos. Sem contar
que andava com muito trabalho e não queriaficar
quebrando a cabeça com aquele tipo de problema.
Foi o que lhe disse quando voltamos.
—E qual é o problema? Lugar arranja-se.Quan-
to a seu trabalho, não custaria nada você dar uma
parada.
não
—Acha que é coisa assim tão simples?Você
devia ter-se comprometido com isso —contestei.

60
O Ei lho da lavadeiro

Para que fui contestá-la?!Veio já


com pedras na mão:
---Machado! Não entende a situa-
ção do menino? Caso a Anica lhe falte,
não terá onde ficar e nem quem cuide
dele!
—Entendo, mas... a—a minha co-
modidade parecia querer estar acima da
comiseração.
—Não, não entende —rebateu ela.
Se entendesse de fato, concordaria
comigo. Mas você é assim:não quer sair
do seu mundinho, do seu trabalho, e,
com isso, deixa de pensar nas coisas, nos
outros. Ora, tenha a santa paciência!
Notei que Carolina estava presa
de grande irritação, o que implicava
que, em consequência disso, ia perder o
meu sossego.O bom senso soprou-me
ao ouvido que o melhor era concor-
dar com ela o quanto antes para evi- 27Zanga passageiraen-
tar mais atritos. Afinal, conhecia muito tre pessoasque se esti-
mam.
bem quando ela estava com arrufos27

61
ao:nôriaoquase pOatumas de Machado de

Ficavasorumbática, de cenho franzido,


mal falava
migo. Por que desafiá-la então? co
Foi essa reflexão que me levou
a acenar
cabeça, dizendo:
Está betn, Carola, não precisa
se exaltar.V
nos arranjar com o Hertnenegildo.

Os Car01a

-Bla-blá-blá, blá-blá, blá-blá-blá-blá,


-blá-blá, blá-blá-blá-blá,
blá-blá-blá-blá,blá-
-blá-blá-blá!
a.- Mas, Carola...

Blá-blá-blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá,
blá-blá-blá-blá-blá-blá.
Essa não entendi, eu...
Blá-blá-blá! Blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá-
-blá, blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá!
Blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá-blá, blá-
-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá-blá-
-blá, blá-blá-blá-blá-blá.
62
Eu não disse isso! Eu...

Blá-blá-blá-blá-blá-blá-blá !
—Carola! Você está sendo injusta!

—Blá-blá-blá?!Blá-blá-blá-blá-blá,blá-blá, blá-
-blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá-
-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá,
blá-blá-blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-
-blá-blá, blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-
-blá-blá... Blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-
-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-
-blá-blá-blá, blá-blá, blá-blá-blá-blá-
-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá!
Assim costumavam ser os arrufos de Carola.Ti-
vesse eu razão ou não, ela sempre tinha razão. Mas,
para minha sorte, pouco duravam. Não demorava
muito, vinha ela até minha mesa com uma chávena de
chá. Sem dizer nada, punha o braço em meu ombro,
e eu, para o bem de nossa relação, procurava esquecer
tudo.

63
111
Capítulo
Um ajudante
muito especial
s fatos relativos ao Hermenegildo aca-
baram se complicando, porque a Anica,
poucas semanas depois de ingressar na
Santa Casa de Misericórdia, veio a falecer. E assim,
atendendo ao chamado de Carolina,o menino apa-
receu, um dia, em casa,com uma trouxinha conten-
do seus pertences. E o problema de sua acomodação
logo se nos ofereceu. Onde arrumar um lugar para
ele? Não havia como hospedá-lo em casa,já que não
tínhamos quartos disponíveis.Mas a Joana letnbrou-
-se de que a irmã solteira, que vivia num bairro
próximo, podia oferecer abrigo a ele. Essa questão
resolvida,cabia agora decidir que trabalho poderia
ele fazer para nós, a troco de alimentação e algum
dinheiro. Como a casa era pequena, e o jardim e
o quintal, exíguos, o Raimundo e a Joana dispensa-
ram qualquer ajuda.
Como sempre, foi a Carolina quem soube como
resolver a questão:
—Ora, Quincas, ele pode muito bem cuidar da
biblioteca. Assim, lhe damos comida, alguns tostÕes
e uma obrigação que o mantenha ocupado e longe
do padrasto.

65
Da biblioteca? --- disse,
assu.stado
posta, que talvez viesse a perturbar com
o meu
O que ele poderia fazer por lá?
---Arrumar e espanejar os livros.
Ao
do Raimundo, 0 Hermenegildo, pelo
visto,sabe

Não pude deixar de rir com a


lembrançade
Carolina. De fato, quando, sob muita insistência
dela
eu deixava o Raimundo "arrumar" a biblioteca,
era
um deus nos acuda. Livros perdidos, fora de
ordem
ou numa ordem que só ele entendia; livros de
ponta
cabeça, papéis perdidos... Mas, mesmo que o Her-
menegildo soubesse ler, eu ainda estava meio reti-
cente. Gostava de ficar a sós quando lia e, aindamais,
quando escrevia.
----Deixo-o fazer isso com uma condição —disse,
após alguns segundos de circunspecção. —Só se você
o fizer prometer que não mexerá em nada semmi-
nha ordem e não fará bulha alguma enquanto estiver
no escritório.
---Bulha, Quincas?! O Hermenegildo? Nuncavi
menino mais sisudo.Tenho certeza absoluta de que
ele não o incomodará de modo algum.

66
E assim,na manhã do dia seguinte,
lá veio o Hermenegildo. Tomado o café
na cozinha, apresentou-se à porta do cs-
critório,com um pano e um espanador,
murmurando de cabeça baixa:
-- Bom dia, Sr. Machado. Com sua
licença.
E ficaria ali, parado, se eu não o
convidassea entrar:
—Entre, Hermenegildo, pode co-
meçar com aquela estante lá ao fundo.
Voltava eu a escrever. De fato, era ele
a mais discreta das criaturas, porque, nas
horas que se passaram,não ouvi ruído
daspenasdo espanadorou do pano to-
candoos livros.Contudo, num determi-
nado instante, ele interrompeu-me:
2' Arthur Schopenhauer
a—Desculpe, Sr. Machado...
(1788-1860), filósofo
Levantei a cabeça. alemão, autor de O
mundo como vontade e
Encontrei este livro do... —e ele representação,cuja obra
leu com certa dificuldade —...Schope- caracteriza-se pelo pes-
simismo. Exerceu gran-
nhauer28entre os livros do Shakespeare. de influênciaem Ma-
chado de Assis.
Qual o lugar certo dele?

67
ias quase póstumas de Machado do
'mói'
Aza ia

"Mais uma das


artes do
pensei.
-Tem razão,
não é 0
Schopenhauer. Por
favor Kar d
os livros de filosofia
ali e entre
urna estante junto apontei
à janela. Para
Assim, foi ele se
inteirando
ganização da biblioteca da
e corrigindo
arbitrariedades do
Raimundo
deixavam meio doido.
Pouco depois
muito esperto, sabia,
sem me
onde deveriam ficar os consultar
livros de litera-
tura brasileira, portuguesa
e estrangei-
ra, os livros de filosofia,
os dicionários
e gramáticas, e assim por
diante.E tra-
29 TristramShandy (tí-
balhava tão bem que eu, quando
tinha
tulo completoetn in- necessidade de alguma coisa,por
glês: Life opi- como-
i' nions ofTristram Shand)', didade, pedia-lhe:
Gcntlcman)é um ro- —O Hermenegildo, por favor,al-
mance escrito pelo ir-
landês Laurence Ster- cance-me o Tristram Shandy, do Sterne29
,
ne (1713-1768), que
influenciouo estilo e Sem perda de tempo, lá vinhaele
o humor de Machado com o volume. E, no final do expe-
de Assis.
diente, pedindo licença, perguntava-me
quais os livros que eu não iria luais usar, para colocá-
-10sde novo nas estantes.
Fui Ilie acostumando àquela companhia silencio-
sa e tão prestativa. Algunnas vezes, quando levantava os
olhos da página que lia ou em que escrevia, dava com
o rapazinho,mesmo de pé, entretido com um livro
aberto na mão.
-—Sente-se, Hermenegildo — dizia, apontando
um canapé, pois sabia que aquela não era uma postura
decente para se ler.
A primeira vez em que disseisso,como se o ti-
vessesurpreendido numa má ação,ficou tão assustado
que deixou cair o livro ao chão.
—Oh, desculpe, Sr. Machado murmurou, tra-
tando de catar o volume.
—Não me deve desculpas, Hermenegildo.
Quando quiser ler, pegue o que quiser, mas leia sen-
tado.
Passadasalgumas semanas, o rapaz, sob a dieta da
Joana, foi recuperando as forças. Dentro de alguns me-
ses,tinha energia suficiente para subir a escada portátil
de minha biblioteca, com alguns tomos em um dos
braços,e arrumá-los sem muita dificuldade nas estantes.

69
Mas a assistência de Hermenegildo
longo do tempo, não se restringiu
só a arrumar os livros ou a
alcançaros
volumes que eu lhe solicitasse.
Logo
logo, ele me prestaria um tipo de
balho que seria de muita valia.

São os homens animais?

Há certos homens que me fazem


lembrar um aforismo de ThomasHuxley,
que li não sei onde e que, se nãome
falha a memória, é assim:

Os homens são animais muito es-


tranhos : uma mistura do nervosisno de
30Do original em inglês: un cavalo, da teimosia de una nula e da
Men are trry queer ani- malícia de um camelo. 30
mals —a mixture ofhorse-
-nervousncss,ass-stubborn-
ness,and cantcl-malice", da Vim a descobrir que isso erabem
autoria de T. H. Huxley
(1825-1895), naturalista correto, na mais que desagradávelcon-
inglês. In: BARELLI,
Ettore; PENNAC- versa (e por que não dizer tambémne-
CHIETTI, Sérgio. Di- gociação?) que tive com o padrastodo
cionário das citações,p. 54.
Hermenegildo, o taldo Fortunato.

70
Utna tarde, (le novo sozinho
etn casa Carolina tinha ido
co, o I lerinenegildo fora atc o (Icspacljar

para cotnprar frutas e verduras ele apareceu


à porta, IDepoisde se identificar, conjeçotl a cn-
grolar unva conversa, falando de dificuldadeq,c CII,
nmito itnpaciente para que terjninasqetildo aquilo.
Cotuo não ia direto ao ponto, cortei-lhe rente a
fala:
Sr. Fortunato, diga logo o que quer, que tenho
luais o que fazer.
O que quero, Sr. Machado,é que o senhor
entenda a minha situação.
E continuou connInuitos rodeios:
O senhor tirou o Hermenegildo de casa,ago-
ra não tenho mais ninguém pra Ine ajudar.Uni ho-
mem na minha idade não pode carregar tanto peso.
Sendo assim...
-- Se deixasseo menino conl o senhor disse,
de mau humor —,com certeza o estaria espancando!
Deu um sorriso Inaroto e, pondo a mão no pei-
to, completou:

71
quase póstumas de Machado de Asais
.Óm6rxas

Eu?! Por queru nxe t01AAa, senhor?


lhe dava unAastareias, verdad
que, às vezes, só quando
queria trabalhar. Agora, não é justo que...
Interrompi-o mais unxa vez:
O senhor não teni noção do que seja
aonde quer chegar. Quanto justiça
E sei Paradeixar
Herrnenegildo em paz? o
Ao ouvir o que lhe propunha, abriu bem
osolhos
e voltou a sorrir daquela cínica:
NÃO estava pensando enx dinheiro, Sr.
Machado.
Afinal, coin a 1110rtede minha querida Anica,me
tornei
o respons.áwelpor ele. Sempre tive amor pelo menino,
Mas já que quer conceder um pequenoajutório...
E Inurmurou ulna quantia qualquer.Enfieiamão
no bolso, peguei ulna cédula de quinhentosréisque
lhe dei, dizendo:
Por favor, não me venha mais à porta,senão
quiser se dar mal com as autoridades.
Enquanto ele, de chapéu na mão, engrolavaoutras
virei-lhe as costas e entrei em casa.
De
explicações,
o homem do aforismo de
fato, era, em parte, como
como uma mula e malicioso
Thomas Huxley: teimoso
como um camelo.

72
O bruxo do Coz:ne velho

Cosme Velho é a rua onde viemos morar, de-


pois de alguns anos vivendo na Rua das Laranjeiras.
Ocupávamos um sobrado de dois andares,tendo um
jardim com coqueirosà frente e um quintalzinho
aos fundos. O bairro era sossegadoe não tão longe
assimdo centro.Tudo seria bom, não fosseum dos
vizinhos, um tal de Sr.Teles, começar a se indispor
comigo. Dizia não gostar de mim, por ser eu pessoa
arrogante e de pouca conversa.
—Não custava nada, de vez em quando, tro-
car uns dedos de prosa com o homem dizia-me
a Carola, tentando conciliar. Talvez se ressinta
disso...
Trocar uns dedos de prosa? Conversar sobre
o que com ele? Negócios do comércio? —respondi,
mal-humorado.
Como Dom Casmurro, queria sossego,trocar
dedos de prosa só com quem me aprouvesse.Mas o
homem, irritado com a minha casmurrice,virou-
-me a cara e pôs-se a falar mal de mim na vizi-
nhança.

73
critório, dizendo que 0 vizinho
desejava
liiigo. Era a respeito das minhas falar
árvores que
rubavam folhas sobre 0 seu telhado. d
Mandeidizer
que o Sr.Teles podia pedir a ele,
Raimundo
podasse. Mas, para nneu desconforto,
pouco depois

Nhô Machado, nhô Teles


disse que só
falar com o sinhô. quer
Para não prolongar mais a
história, fui até
portão para ver o que o
aquele sujeito queria.
bem o cumprimentei, disse com Nem
grosseria:
—O senhor não devia mandar ordens
peloseu
criado. Não gosto de falar com subalternos,
ainda
mais um preto.
Fechei o cenho:
E com um mulato, o senhor gosta?
Dei-lhe as costas, deixando-o plantado ali na
calçada. E mandei o Raimundo podar as árvores.
Isso serviu para piorar ainda mais as coisas.Não
contente em continuar com a maledicênciapelavi-
zinhança, ainda apelidou de o "Bruxo do Cos-
me Velho".

74
ajudante espec2.a1

Essa alcunha, penso eu, nasceu do seguinte:


como era meu costume, gostava de queimar velhos
papéis num caldeirão. Aquilo levantava uma fuma-
radapor todo o meu quintal. E não é que o Teles,
vendo-me,em meio à fumaça,inclinadojunto ao
caldeirão,associou minha figura à de um bruxo!
Vá lá que ficasseeu como o "Bruxo do Cosme
Velho".Tinha a sua graça. Enfim, que ele divulgasse
isso pela vizinhança e não viesse mais perturbar o
meu sossego.

75
IV
Capitulo
Ganlxeiun
secret. Ariot.
os últimos tempos, uma doença dos olhos
vinha me incomodando além da conta, de
maneira que ler se tornava muito dificil. E
textos,
tudo se agravava quando tinha que revisar meus
pois, além dos problemas da vista, minha grafia se tor-
nava cada vez pior. Eram garranchos que eu mal podia
entender e que não ousava enviar para o Ministério ou
para os editores. Nos bons tempos, era Carolina, com
a paciência de sempre, quem me passava tudo a limpo,
mas,agora, com os males dela, não tinha coragem de
lhe pedir uma coisa dessas.Foi, então, que tive a ideia
de testar o Hermenegildo. Trepado numa escada, ele
arrumava os tomos de uma enciclopédia nas alturas de
uma estante.
—Hermenegildo, venha cá um instante.
Ele desceu, limpando as mãos no pano de espanar:
Pois não, Sr. Machado.
—Como é o seu cursivo?
—O meu cursivo? perguntou, coçando a cabeça.
—Sim, a sua letra —respondi, com impaciência, já
que tinha que enviar ao Ministério um documento
ainda naquela tarde.
Acredito que não seja ruim, Sr. Machado.

77
o
Então, escreva alguma
disse, estendendo-lhe um coisaaí
pedaçod
papel e ulna pena, para
a, avaliaro
seu
Ele pensou uni pouco
e redi
Peguei a folha de papel e vi giu.
que ele
via escrito versos de "Navio
negreiro"
de Castro Alves 31:

' Stanos em pleno mar • . • Doudo no espaço


Brinca o luar - dourada borboleta.

Ah, então, gosta de poesia? ad


mirei-nne, ao ver que ele reproduziade
cor os versos.
— Gosto muito, Sr. Machado.
Vi que ele tinha um belo cursivo,
o que o tornava muito capazde passara
limpo o documento.
Antárno de Castro -- Tenho uma tarefa para você.Vá
Alw:s (1847-1871 poe- até a sala de jantar, sente-se e copieisto
ta rornánuco brasileiro,
autor de Espumasnu- para mim. Faça com capricho,maslem-
tuantes.
bre que tenho um pouco de pressa.

78
Ganh22 secrerá:io:

Meia hora depois, ele voltava com o documento,


copiadosem nenhum erro, em que tive apenas que
apor minha assinatura.
---Meus parabéns, Hermenegildo!
Obrigado, Sr. Machado. Quando precisar, é só
falar ---disse, com satisfação.
Não tenha dúvidas, logo, logo, precisarei de
novo de seus préstimos.
De fato, vinha elaborando um romance, inti-
tulado Esaú e Jacó, e as dificuldades com a minha
letra impediam-me que trabalhassea contento com
a revisão.As vezes, ficava empacado numa página,
por conta dos garranchos que rabiscara e que não
conseguia,de forma alguma, traduzir. Tomei uma
decisão:seria o Hermenegildo a passara limpo as
páginasde Esaú eJacó. Foi o que lhe propus uns dias
depois:
—Queria que fossepassandoa limpo este meu
romance—e completei com uma risada:—Como
poderá ver, está quase ilegível.
Ele pôs-se a trabalhar com afinco. No final da
tarde,já tinha copiado um bom punhado de páginas,
que me pus a revisar.

79
de Machado de Assis
'Memórias quase póstumas

Antes de 0 Hermenegildo ir embora


interrompeu-me o trabalho, dizendo 1a
com a
de sempre: tiniid
Sr. Machado, queria lhe pedir
um favor.
—Diga lá, meu caro.
—Será que o senhor podia
emprestar-meuns
vros? —e acrescentou: —O senhor fique lis
tranquilo,
terei o maior cuidado com eles. que
—E que livros seriam?
Um é EspuynasJlutuantes, que gostaria
de ter-
minar de ler. E os outros são do Sr.José de Alencar.
Ante meu assentimento, levou para ler a
poesia
do Castro Alves, além de Iracellla,O troncodoipêe
Senhora.E isso se tornou um hábito.Todasastardes,
quando se ia, levava consigo alguns livros.Trazia-os
de volta, colocava-os na estante. Satisfazendominha
curiosidade, dizia o que achara de um, de outro:
—Para lhe ser sincero, Sr. Machado, preferiSenho-
ra aos outros do Sr.José de Alencar.
Perguntava-lhe a razão da escolha.
romances indianistas e Ogua-
Iracema
—São belos
muita coisa sobreo amor,
rani, mas Senhora me diz
sobre princípios.

80
Tarnbéna disse que gostara jnais
da poesia de Castro Alves do que da dc
Olavo Bilac 32
E posso saber o porquê?
Não que a poesia do Sr. Bilac não
seja bonita, mas, às vezes, ele Ine parece tão
frio cotnparado com o Sr. Caqtro Alves...
Um dia, Inanifestou vontade de ler
livros meus.
Ah, os meus livros. Quais?
Ah, podia ser Páginas recolhidase
também Dom Casrnurro.
Fiz um gesto com a mão, abarcando
as estantes:
Sirva-se, esteja à vontade. E faça
bom proveito!

For favor, senhor di retor,


lavre o parecer
32Olavo Brás Martins
dos Guimarães Bilac
Embora o trabalho burocrático, por (1865-1918),poeta par-
vezes,aborrecessealém da conta, mesmo nasiano,autor de Poe-
sias e Tarde.
assim procurava desempenhar minhas

81
atividadesconl o liláxltno dc zelo. Fora
indicado
servir ao Estado e fazia isso conn o liláxill)o
de
e escrúpulos. O dificil nneslno era suportar
os im
nos, aquelas pessoas que acreditavam
saber maisdo
eu e que tinham a grosseriade querer
Lembra-me de que, quando ainda estava
lotado na
cretaria da Agricultura, onde começara
como primero
oficial e chegara, depois, a diretor, apareceu-me
ali
cidadão para falar sobre um processo,que
dependia
uma informação minha para seguir adiante.
Era um su-
jeito com um bigode em pontas, muito bem-vestido
e
que falava com afetação, exagerando nos "Vossas
Exce-
lências". Chegou, inclusive,a dizer que viera recomen-
dado por um fulano qualquer, não me recordoseum
deputado ou um senador, entregando-nne um carüo
visita que deixei sobre a mesa, seni olhar. Um pedan
t4
em suma. Mas, como não nne cabia julgá-lo e, sim,a
processo, recebi-o com a mesma atenção que dedicaria
a qualquer pessoa que lá viesse.
Começou com muitos preâmbulos e rapapés, o
suficiente para me aborrecer. Com toda paciêncu,
ajeitei-me na cadeira e preparei-me para ouvirmus
uma indigesta digressão. Contestando o despachoque

82
Ganhei un secretário!

dera enl seu processo,ele pôs-se a defender seu


ponto de vista,corn a veen)ência de quem estivessena
tribuna da Câjnara.
Sinto niilito, senhor Torres disse,cortando-lhe
a fala,pois sua lenga-lenga parecia que não ia terminar
nunca mas não nne parece que tenha razão. Exami-
nei o caso conn nnuito cuidado e não vejo como possa
despachar a seu favor.
Teve um sobressalto,como se não acreditando
que eu ousassenão só interrompê-lo, como também
contrariarseus argumentos. Não se dando por acha-
do, pôs-se a discorrer ainda mais sobre o assunto,na
esperançade modificar minha opinião. Por educação,
ouvi toda a arenga, embora já estivessecomeçando
a ficar irritado. Quando me pareceu que terminara,
levantei-me,fiz um gesto com a mão, convidando-o
a sentar-se à minha escrivaninha. Segurando o riso,
disse-lhecom toda a gravidade possível:
Senhor diretor, tenha a bondade de lavrar o pa-
recer.
Diante da minha encenação, estacou, os olhos cheios
de estupefação.E, sem ousar dizer mais nada, enfiou o
processosob o braço e deixou bem rápido a minha sala.

83
Ganhei um secretário!

eu dera em seu processo, ele pôs-se a defender seu


ponto de vista, com a veemência de quem estivesse na
tribuna da Câmara.
---Sinto muito, senhor Torres —disse,cortando-lhe
a fala,pois sua lenga-lenga parecia que não ia terminar
—,mas não me parece que tenha razão.Exami-
nunca
nei o caso com muito cuidado e não vejo como possa
despachar a seu favor.
Teve um sobressalto,como se não acreditando
que eu ousassenão só interrompê-lo, como também
contrariarseus argumentos. Não se dando por acha-
do, pôs-se a discorrer ainda mais sobre o assunto, na
esperançade modificar minha opinião. Por educação,
ouvi toda a arenga, embora já estivesse começando
a ficar irritado. Quando me pareceu que terminara,
levantei-me,fiz um gesto com a mão, convidando-o
a sentar-seà minha escrivaninha.Segurando o riso,
disse-lhecom toda a gravidadepossível:
—Senhor diretor, tenha a bondade de lavrar o pa-
recer.
Diante da minha encenação, estacou, os olhos cheios
de estupefação.E, sem ousar dizer mais nada, enfiou o
processosob o braço e deixou bem rápido a minha sala.

83
Diálogo com leitor curioso

Quando o Hermenegildo
devolveumeus
percebi que tivera 0 capricho de livros
encapá-los
—Muito obrigado, Sr.
Machado disse,colocan-
do-os na estante. —Gostei demais
de lê-los.
—Ah, então, já os leu?!
Sim, já os li. Cheguei até a
reler os contos
Páginas recolhidas. de
E de qual mais gostou?
—Na verdade, gostei de todos —dissecom
entu-
siasmo —,mas, se o Sr. Machado quiser saberde
qual
gostei mesmo, foi "Missa do galo".
"Missa do galo"? E posso saberpor quê?
Ele refletiu por um instante.
Ah, apreciei o modo como o senhorcontaa
história. Deixa muita coisa para a gente pensar.
Reparando no modo desenvolto como elese
referia a meus contos, não pude deixarde lheper-
guntar:
—Quantos anos você tem, Hermenegildo?
Machado.
—Acabei de completar 16, Sr.

84
0)

"l)ezcsseis anos e já tuostrando tanto gosto pela

ser acrescentada ao caráter do I lernjenegilclo, Prosse-


gui corn a conver«açào:
Mas me diga que coisas 0 conto o
levou a pensar?
Não Ine respondeu de injediato, conjo sc esti-
vesse a escolher tuelhor as palavras. Ao final de alguns
segundos, disqe, ainda que ressabiado:
Pelo que pude entender, Sr. Machado, parece
que a Conceição é Inuito solitária, o marido não a
alna e a trata com desrespeito...
Sim, sim, tem razão. Ela não é mesmo a mais
feliz das mulheres.
Ele acenou com a cabeça e prosseguiu:
Onde se viu o marido deixá-la sozinha, em
plena noite de Natal, para ir visitar a amante? E, de-
pois, enfeitar a casa com gravuras que deveriam ficar
melhor em salões de barbeiros... Não creio mesmo
que ele a respeita.
—E quanto ao jovem Nogueira? -- perguntei,
curioso por ver o que ele tinha entendido a mais do
conto.

85
Acho que ele desenvolveu
Xio por ela calou-se por pequena
instante,
s: cabeça: —Não, não diria uma paixão,
mas uma
oculta de amor... espécie
O que o leva a pensar assim?
- Alguns detalhes sobre o modo
como 0
gueira a vê. st.N
—Uns detalhes, pois sim. Mas
que detalhes
esses?
-—O senhor me dá licença de
pegar o
Balancei a cabeça positivamente.
Ele foi até
estante e apanhou o exemplarde Páginas
recolhik;
Sentou-se na ponta da cadeira e, abrindo
o
curou até localizar o conto.
—Ah! Cá está —e abriu um sorriso.
Leu o seguinte trecho:
Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa" e {aza
jus ao título, tão facilmente suportavaos
cimentos do marido. Em verdade, era
moderado, sem extremos, nem grandes lágri:.as,
dava
grandes risos. NO capítulo de que trato,
maometana; aceitaria um harém, com as
na).
salvas. Deus me perdoe, se a julgo
O próprio rosto era -
era atenuado e passivo.
nem feio. Era o que chana:.os
nem bonito
simpática. Não dizia 2a 1
una pessoa
perdoava tudo. Não sabia
de ninguém,
até que não soubesse
odiar; pode ser
33
amar.

-- Não é um retrato muito lisonjei-


• ... —brinquei com ele.
ro da Concelçao
—De fato, não é. O Sr. Nogueira
não a acha bela, diz que ela é apenas
"simpática"e que não sabia odiar. En-
fim,o senhor pintou o retrato de uma
mulher medíocre.
—Não, não a pintei assim.Quem
a pintou dessejeito foram os olhos do
Nogueira.
—Mas os olhos do Sr. Nogueira,
com o passar do tempo, hão de mudar...
—disseele voltando a consultar o livro
e lendo para mim:

Há impressões dessa noite, que me ASSIS, Nlachado de.


aparecem truncadas ou confusas. Con- "Missa do galo", In:
Uma das que Sio Paulo:FTD,
tradigo-me, atrapalho-me.
2002, p. 225.
ainda tenho frescas é que, em certa

87
141mpátl.
litiila, t I

( as p.ágina«,localizou otitro
(tecli0 (lite leu, colijo se eti não o co-
tlhecesse:

concordei, para dizer algumacol-


para sair da eopócio do nono magné-
tico, ou o que quer quo ora quo moto.
lhia a língua 0 00 gontidoo. Queria e
não queria acabar a convoroaçào; fazia
esforço para arredar OBolhog dela, e
arredava-os por um gontimonto do reg-
poito; masa ideia do parecer queera
aborrecimento, quando não ora, levava-
-me os olhos outra vez para Conceição."

Não lhe parece, meu caro Her-


tnenegildo eu comentei, querendo
prolongar a conversação que me pa-
recia cada vez ruais interessante —,que
tudo o que acontece com o Nogueira
é fruto da comoção da noite de Natal,
Idem, Il'ident. p, 230.

Idern, ibidetu, p. 232.


da leitura de una livro romântico, da pe-
numbra?
E, sejn ao jncnos consultar o livro
e puxando só pela Inejnória, recitei
outro trecho do conto:

Conceição entrou na gala, arraz-


tando as chinelinhas da alcova. ves-
tia um roupão branco, mal apanhado na
cintura. Sendo magra, tinha ar de
visão romântica, não diversa do neti
livro de aventuras

"Disparatadacom o meu li-


vro..." ele corrigiu-me.
Como assim? —perguntei, es-
pantado.
—No livro está "disparatada", e o
senhor disse "diversa".
Dei uma gargalhada,
—Venhoa perceber que você sabe
maisdo meu conto que eu próprio.
Ficou vermelho, tentou emen-
dar:
Desculpe-me o Sr. Machado.
36Idem, ibidem, p. 226.
Não quis ofendê-lo.
Não me ofende. Pelo contrário,
zer ver um jovem como você domin
ando conlo
guém o meu conto.
Voltou a abrir aquele seu sorriso
e—Então, o senhor dizia que tímido
a mudança
do Sr. Nogueira em relação à de
Conceição se
numbra, ao fato de ser noite de Natal e deve
leitura
- e a face dele
alumiou-se,a
de exclamar: - Por isso tudo é que ele se
atrapalha, vê as coisas confusas. Interessante'.
Pois
não havia pensado nisso.
Leu-me outros trechos de que gostara
e acabou
por me confessar que o que mais o atraíaem
meus
critos era que não dizia as coisas às claras.Dava
sempre
o que pensar a ele, permitindo que inferisseo compot-
tamento dos personagens por um gesto,umadescrição
sucinta, uma entonação diferente, um ato impensad(i
E bem verdade que ele não me dissetudoissoexata-
mente desse modo. Eu é que pude depreender
palavras o que pensava a respeito de meuscontos.
Depois, demorou-se um pouco comentando Dom

Caslllttrro. Parecia ter compreendido muitobemoque


Bentinho envelhecido tentava ao reconsÜtfri
fazer,
o

90
Ganhei

velha casa dc família, para, num esforço


mú•.ll,"atar as duas pontas da vida". Leu o
fragmentoem questão,que ouvi com mui-
to :ntcresse como se fosse de outra pessoa:

7270 34, coz criado. A casa


é própria; fi-la construir
de p:op63itO, levado de desejo tão
ar
:aeze veza izprini-lo, nas
lá. dia, há bastantes anos, le:n—
reproduzir no Engenho Novo a
caga aze criei na antiga Rua de
Y.ataca-;alog, o nesno aspecto
e daquela outra, gue desapa-
Construtor e pintor entenderam
mes-
'z ag i-:.dicaçõesgue lhes fiz: é o
zo prédio assobradado, três janelas de
varanda ao fundo, as mesmas al-
co-;a3e salas. 5a principal destas, a
do teto e dag paredes é mais ou
zer.03içaal, tzag grinaldas de flores
e grandes pássaros gue as tomam
Os três primeiros
bicos, de espaço a espaço. Nos qua-
foram imperadoresro-
tro cantos do teto as figuras das esta— manos,o último,Mas-
r;oeg, e ao centro dag paredes os meda- sinissa, foi um rei da
de César, Augusto, Nero e Massi- Numídia, reino do nor-
te da África e aliado dos
co-nos nomes por baixo. Nao
romanos.
alcanço a razão de taig personagens .

91
póotuman de Machadode Ano
.OriaB quaoo

Quando fomos para a caga do


10s, já ela estava assim
decorada;
nha do decênio anterior.
era gosto do tempo meter sabor
clágatco
e figuras antigas em pinturas
amor icas
nas. O mais é também análogo e
do. Tenho chacarinha, flores,
urna casuarina, um poço e lavadouro
Uso louça velha e mobília velha.
fim, agora, como outrora, há
o
contraste da vida interior,
é
pacata, com a exterior, que é ruidosa.
O meu fim evidente era atar as
pontas da vida, e restaurar na
a adolescência. Pois, senhor, não coa-
o que foi nem o ç
segui recompor

Parou de ler e ponderou:


Pois a casa,mesmo reconstruída
de modo idêntico, não será a
Como tanibém ele
não é, Sr. Machado?
outra pessoa, um homenl aniargtl-
será
vida...
rado, de mal com a
parece... Você teni todi
—E o que
a razão. tratardi
demorarnos a
Ainda nos
ASSIS, Dom Custnur- de Capitu, que eu,
provável infidelidade

92
de propósito, ocultara sob um véu de subentendidos.
Mas é evidente que não disse isso a ele. Preferi deixá-
-Io discorrer à vontade sobre os indícios que Bentinho
vai colhendo ao longo da vida e davam conta de uma
atração mútua entre Capitu e Escobar.
Hermenegildo balançou a cabeça e disse num
toni baixo, corno se fosse para si mesmo:
---Então, é por isso que ele, com o passar dos anos,
deixa de ser o ingénuo Bentinho para se transformar
no descrente Casmurro...
Consrrsamos ainda mais um pouco, até que o relógio
desseonze horas.Como movido por uma mola,ele levan-
tou-se, pedindo mil desculpaspor me desviardo trabalho.
—Ora, o que é que tem, Hermenegildo?Estava
mesmo aborrecido emendar o processo do Ministério

D
-—disse, dando um sorriso. Muito melhor conversar
com você do que ficar lendo esta papelada toda.
Estava sendo sincero: aquelas horas de conversação
agrada-
haviam, de fato, sido muito prazerosas.Não só me
também
va passaro tempo tratando de meus livros,como
literatura.
descobrir no rapazinho tanto interesse pela
lembrança
Era como se ele despertasse em mim a
do jovem que eu também fora um dia.
93
V
Capítulo
O crente
e o descrente
e vez ent quando, Carolina surpreendia-
e ta à capela de Santo Eustáquio, a al-
gumas quadras de casa, para asqstir à rnissa.
Não a sabia carola, Carohna ----disse-lhe, dia,
hutnon
Não sou camla retorquiu, parecendo ofendida.
Etnboranio seja ctcnte de fato,por ape-
rezar um pouco. E o padrc Squctra, diferente dos
padrs, que tanto o aborrvcclli@
é uni hotnelil
digno Faz da Vidaum sacerdócio. E depois é culto, tent
vastorcpcrtóno dc leitura.
dia. Sando da capela, tmuxc-rne ela exctn-
piar de pástwmasdc Brás Cubas para que o

o padre Ssquctra quent pediu. l)tsse que gos-


do ronunce explicou-meela.
Passadoum alegando que queria conhecer-
-mc.o Stqueara '.rto visitar-me, trazendo consigo
Rcccbt-o. de bom grado, no escritório,
autografet-theo hvrv»e passanos a conversar sobre lite-
ratura.CARúu unha razão: o padre Siqueira conhecia
a os greco-lanno» e discorria sobre eles
com muita erudzçào, sem pedantismo, o que me agradou.
Descobrxmosalgo mais em comum,
pôs os olhos sobre um de xadrez em
tnesa,com uma partida Iniciada.Deu-me
palpites «obre a Jogada que se ensaiava.
Ah, enfio, o senhor é aficionado
pelo xadrez
—disse-lhe.
Sim, é um dos meus vícios, além
do gosto
tenho em adquirir edições raras dos clássicos
nu com um sornso.
Como também gostava de distrair-me
com o
drez, resolvendo problemas sozinho ou
jogando
amigos, habituamo-nos, o padre Siqueira
e eu,
putar, uma vez por semana, algumas partidas.
On
vinha em casa,ora eu casadele, quando
para apreciar sua seleta biblioteca. Entre
outra, era comum falarmos de escritores
vamos e livros que nos haviam marcado.Devo
coifes-
sar que me aproveitava bastante dos encontros,ji
o padre tinha excelente memória. Cheguei
anotar reflexões, aforismos, frases que ele e

ces. Em outros momentos, contudo,aborrecia-me,


isso quando ele se punha a discorrersol)re

96
O crente e o descrente

Efllboranio me interessassepelo assunto,ouvia-o por


educação,já que ele era visita. Até que o padre Si-
queira,dando-se conta de meu enfado, mudava outra
vez de rumo, passando a falar dos clássicos.
Um dia, ao tratar de meus romances, ele tocou na
questão da minha visão pessimista da existência.
—Antesde tudo, queria lhe dizer que o considero
um grande escritor, Sr. Machado. Contudo, quando
termino de ler seus livros, sinto um abatimento, como
se mergulhasse de cabeça num abismo. O senhor não
nos deixa esperanças. Os maus e mais fortes triun-
fam sobre os bons e mais fracos. Como se não hou-
vessejustiça neste mundo e nem promessas para um
mundo futuro... O homem parece vítima de um cruel
determinismo, que não lhe permite saída do beco em
que se meteu...
Fez uma pausa, balançou a cabeça e continuou:
—Veja o final terrível de Meniórias pÓst11tnasde Brás
Cubas,em que aquele bon-vivantafirma,sem nenhum
cinismo, "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma
criatura o legado da nossa miséria". Pensa mesmo que
tudo é tão desanimador e que nada vale a pena nesta
vida, não é?

97
Aaase de Machadode

Ficou etn silêncio. Eu d


parte, tanibélli Ine mantinha etn
lêncio,curioso por saber aonde aquela
conversa ia dar. Ele prosseguiu, depois
de tuna hesitação:
Sim, um pessi111is1110
atroz. N
nhuma luz, esperança algurna. No en-
tanto, devo-lhe confessar, Sr. Machado
que, apesar disso, ou talvez por cau-
sa disso, os seus livros têm unia força
impressionante.Prefiro lê-los a ler, por
exemplo, as fibulas edificantes do se-
nhor Macedo ou do senhor Dinis39
Mesmo sabendo que as asas da esperan-
ça não me irão conduzir ao paraíso...
O padre se refere a "Asas da esperança"... Cornecei a
dos escritorestom.inti-
cos. o brasileiroJoaqutm rir do lugar-comum, o padre Siqueira
Manuel de Macedo
(1820-1882), autor de
tinha mesmo certa verve involuntária.
A morninha,e o portu— Depois, sem se dar conta de minhari-
gués Joaqutrn Guilher-
nr Gomes Coelho, que sada,continuou ele a falar do ronlance
adorou o pseudômmo
até chegar à questão do Humanitas.
de Júho Dinis (1839-
1871).autor de As pu- —Quer-me parecer que essafilo-
sofia criada pelo Quincas Borba talvez
pil.U do sorhcv reitor.

98
tnotivo central de toda sua
consistano
é? Tanto é assim que aparece
bra,nio Alcnróriaspistil-
ostensivo em
dc Inodo
13rásCubas e cm Quintas Berl',l, e
dc
111as
livros. De acordo
disfarçadaem outros
os tnais fortes sobre-
conl ela, sonnente
enquan-
vivem.A eles cabetn as batatas,
to aos vencidos, os mais fracos, «ó resta
a morte pela forne.
Balançou a cabeça e observou:
Creio ver nessa filosofia ecos da
teoria da seleção natural das espécies de
Darwin 40
----O senhor acha isso rnestno?
perguntei por perguntar, porque sabra
que ele estava certo.
Pois não e ----olhou-lne espan-
tado. ---E só ler conl atenção o que o
doido do Quincas Borba expõe para
ver como tenho razão,ao Ine retQrtra
esse sábio britânico.
Fez outra pausa, após a qual me
disse:
O -- conno não
de toda
a
que se fala da filosofia do
cd
podia fazer o obséquio de pegar o livro
paraque
localizá-la?
-- Onde deseja procurá-la? El)) 11/1ffnórias
cn
póstu.
mas, Quincas Borba ou ena an)bos?
Ele refletiu pouco e disse:
—Elli Quincas Borba. Está rnais sucinta e melhor
exemplificada.
Levantei-me, fui à estante, apanhei meu exemplar
de Quintas Borba e passei-o a ele que, num instante,
encontrou o que buscava.
—O senhor se incomodaria se a lesse em voz alta?
Disse que não, e ele, limpando a garganta, tirando
um incómodo pigarro, pôs-se a ler:

Para entenderes bem o que é a norte e a vida, bas-

ta contar-te como morreu minha avó.


- como foi?
- Senta-te.
Rubião obedeceu, dando ao rosto o maior inte-
resse possível, enquanto Quincas Borba continuava
a andar.
Foi no Rio de Janeiro, começou ele, defronte
da Capela Imperial, que era então Real, em dia de

100
O crente e o descrente

grande festa; minha avó saiu, atraves-


sou 0 adro, para ir ter à cadeirinha,
que a esperava no Largo do Paço. Gente
como formiga. O povo queria ver entrar
as grandes senhoras nas suas ricas tra-
quitanas. No momento em que ninha avó
saía do adro para ir à cadeirinha, un
pouco distante, aconteceu espantar-
-se uma das bestas de uma sege41; a besta
disparou, a outra imitou-a, confusão,
tumulto, minha avó caiu, e tanto as mu-
Ias cornoa sege passaram-lhe por cima.
Foi levada em braços para uma botica
da Rua Direita, veio um sangrador, nas
era tarde; tinha a cabeça rachada, una
perna e o ombro partidos , era toda san-
gue; expirou minutos depois .
- Foi realmente uma desgraçar dis-
se Rubião •
- Não.
Não?
- Ouve o resto. Aqui está como se
tinha passado o caso. O dono da sege es-
tava no adro, e tinha fome, muita fome,
Antiga carruagem,
porque era tarde, e almoçara cedo e puxada por dois cava-
pouco. Dali pôde fazer sinal ao co- 10s,com um único as- ;
cheiro; este fustigou as mulas para ir k sento, duas rodas e fren—
te fechada por cortinas
buscar o patrão. A sege no meio do ca—
elou vidro.
ninho achou um obstáculo e derribou-o;

101
Motu")I i t MACh." IO in

eooo obstáculo Ora minha avó. O primei 10


oério de At0$ foi ummovimento do concorL'ação:
manitao tinha tome. So emvoz de minhaavó,
rato ou um cão, é corto que minha avó não morreria,
o fato era o moomo; Humanitas precisa comer. se
vez do um rato ou de um cão, fosso um poeta, Byron
Ou Gonçalveo Dias, diferia o caso no sentido do dar
matéria a muitos necrológioo; mas o fundo subsistia.
O universo ainda não parou por lho faltarem alguns
um varão ilustre
poemas mor too em flor na cabeça de
importa, antes de
ou obscuro; mas liumanitas (e isto
tudo), Humanitas precisa comer.
sin-
Rubião escutava, com a alma nos olhos,
dava pela
ceramento desejoso de entender; mas não
morte da avó.
necessidade a que o amigo atribuía a
tarde que che-
Seguramente o dono da sege, por muito
passo que a boa
gasse à casa, não morria do fome, ao
Expli-
senhora morreu de verdade, e para sempre.
pergun-
cou-lhe, como pôde, essas dúvidas, e acabou
tando-lhe:
E que Humanitas é esse?
- Humanitas é o princípio, Mas não, não digo
Ru-
nada, tu não ég capaz de entender isto, meu caro
biáo; falemos de outra coisa.
Diga sempro.
Quincas Borba, que não deixara de andar, parou
alguns instantea.
Queres aer meu discípulo?
- Quero.

102
- Bem, irás entendendo aos pou-
cos a minha filosofia; no dia em que a
houveres penetrado inteiramente, ah!
nesse dia terás o maior prazer da vida,
porque não há vinho que embriague cono
a verdade. Crê-me, o Humanitismo é o
remate das coisas; e eu, que o formu-
lei, sou o maior homem do mundo. Olha,
vês como o meu bom Quincas Borba está
olhando para mim? Não ele, é Humani-
tas...
- Mas que Humanitas é esse?
- Humanitas é o princípio. Há nas
coisas todas certa substância recôn-
dita e idêntica, urn princípio único,
universal, eterno, comum, indivisível
e indestrutível - ou, para usar a lin-
guagem do grande Camões 42:

Urnaverdade que nas coisas anda,


Que mora no visíbil e invisíbil.

Pois essa sustância ou verdade,


esse princípio indestrutível é que é
Humanitas. Assirn lhe chamo, porque re-
sume o universo, e 0 universo é o ho- 42Luís Vaz de Camões
nem. Vais entendendo? (c. 1524-1580), poeta
português, autor de Os
— Pouco; mas, ainda assim, como é lusíadas.
que a morte de sua avó...

103
da sob:e-

O ca:-áte:
co:.servador
razoo de batatas
e
batatas apenas chegaa para
ass=n adguire fozças
e à 0a t: a 7 e: tente, Onde
2as, se as d'.:astribos di-

caz as batatas do cazpo, não chegan a


e-r,
e e de inanição. A paz,

nesse caso, é a a guerra é a conservação.


a Outra e recolhe os despo-

30s. Daí a da os hinos, aclamações,


páb'-•cas e todos de:aais efeitos das ações

bél:cas. Se a g-ae=a fosse isso, tais denonstra-


Góes não chegar±a— a dar-se, pelo notivO real de que
o só e aza 0 lhe é aprazível ou
vantajoso, e pelo ZOt±70 racional de gue nenhuma pes-
soa aza ação gue a destrói. Ao
vencido, ódio ou cozpaixão; ao vencedor, as batatas •
- Yas a opinião do externinado?
- há externinado. Desaparece o fenôneno; a
substância é a zesza. guaca viste ferver ágaa? Hás de
que as bolhas fazem-se e desfazem-se
de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indiví—
duos são essas bolhas transitórias .

104
O crente e o descrente

- Bem; a opinião da bolha. • .

- Bolha não tem opinião. Aparen-


O
tenente, há nada mais contristador
'amadessas terríveis pestes que de-
vastam 'anponto do globo? E, todavia,

só porque elimina os organismos fra-


cos, incapazes de resistência, como
porque dá lugar à observação, à des-
coberta da droga curativa. A higiene é
filha de podridões seculares; devemo-
-Ia a milhões de corrompidos e infec-
tos. Nada se perde, tudo é ganho. Repi-
to, as bolhas ficam na água. Vês este
livro? É D. Quixote. Se eu destruir o
neu exemplar, não elimino a obra que
continua eterna nos exemplares sub-
sistentes e nas edições posteriores.
Eterna e bela, belamente eterna, como
44
este mundo divino e supradivino.

Terminada a leitura, perguntou- Neologismo coado


por Niachados stgni-
-me se não via mesmo esperança al- ficando"o que cons-
trmge, comprime
guma na vida, no homem. Não lhe
k' ASSIS.Machado de.
respondi. Ele, então, repetiu, como que Quincas Borba, (ed. re—
para si mesmo, uma das falas do Quin- i novada).Sã0 Paulo:FTD,
2011, p. 19-22.
cas Borba:

105
Me:nOrhao do do Aso 10

"Ao vencido, ódio ou cornpaixão;ao


vencedor,as
batatas"... —e depois acrescentou, conl certa
veeillência:
Mas, nenl sernpre acontece isso na vida. Por vezes...
---Estarnos a falar de rornances, padre —cortei-lhe
a fala.
----Sirn, de rornances, Inas os rornances são como
eqpelhos da vida. Neles, venaos reflexos do que são
ou poderiarn ser os honaens. Mas, como lhe ia dizen-
do, por vezes,a vida nos surpreende e nem sempreo
homenl é lobo do homenl, nem sempre o homemé
mau, nem sempre os rnais fracos sucumbem à vora-
cidade dos mais fortes. Há gente boa e decente neste
mundo.
Fitou-me com intensidade e perguntou, perecen-
do-se todo cheio de dedos:
O senhor permite-me um comentário de or-
dem bem pessoal relativo a si?
Por um pudor natural todo meu, hesitei um pou-
co, mas acabei dizendo:
—Pois não.
Se o senhor quer saber,vejo uma contradição
muito grande entre essaconcepção atroz,
essa visão pes-
simistado mundo e dos homens
e foi a vez de ele
106
hesitarum tanto, para depois prosseguir e o exem- O
plo tuagníticoque o senhor deu e vem dando com
sua própria vida...
Talwz valesse a pena dizer-lhe que, se minha vida
era boa, o tneu pessimisn10nada tinha a ver com ela.

faziajulgar seni piedade os hotnens, acreditando


que eles eranntítetrs nas mios do destino, da nature-
ta. No entanto, se tinha Illinhas resistênciascontra a
hutnanidade no geral, gostava de alguns homens em
particular. Nias preti•ri pertnanecer enl silêncio, como
setnprc faço quando as pessoas começarn a adentrar
minha inutilidade.
O padre Siqueira, parecendo não dar por isso,
todo loquaz, prosseguiu com seu discurso:
—Vejasó, pelo que todos nós conhecemos, o se-
nhor nasceu de familia muito pobre, sem meios, o
senhor. ainda por cima, sendo... -- ele tornou a hesitar.
Embora não me agradasseo assunto,mesmo as-
sim ajudei-o a terminar o esboço da minha imagem:
. um mulato...
O padre Siqueira ficou vermelho como um pi-
tnentão. Acrescentou, meio sem graça:

107
— Não que a cor da pele desrnereça
alguém
Contudo, nurn meio enl que os negros,
Illulatose
pardos são, via de regra, desprezadose ténn
a vida
nnuito dura, o senhor, apesar de tudo isso,superou
os muitos obstáculos que se lhe ofereceram.Hoje,
além de ocupar uma posição de destaqueno Minis-
tério, casou-se com tuna senhora das ruaisdistintas
e se constitui num dos Inaiores,se não for o maior,
escritor vivo do Brasil!
E perguntou-me, usando de um tom triunfal:
—Então, de onde vem esse pessimismo, essa vi-
são atroz do mundo e dos homens? Essa ideia de um
determinismo que tira a liberdade, o livre-arbítrio do
ser humano?
Pausou,para completar com uma afirmação:
—O seu caso, em particular, desmente a regra
geral, a menos que...
A menos quê?
A menos que o senhor, no fundo, acredite na
força da Providência,como eu mesmo acredito. Acre-
dite que o homem, ainda que vivendo em meio à mi-
séria de um mundo cruel, não está desamparado,que
há quem vele por nós.
O crente e o descrente

padre Siqueira disse de um Inodo um tanto


severo digamos que haja mesmo essa Providência
que, como o senhor diz, ampara e ajuda o homem nas
vicissitudes...—refleti um pouco e continuei com uma
pergunta:—No caso, não crê o senhor que está substi-
tuindo um determinismo pelo outro? Que Deus ou a
providência, independente de como prefere chamá-lo,
é que determina o que o homem será?E que, com
isso,lhe tira a liberdade?
Como assim?—perguntou-me, perplexo. -- Que
determinismo? De acordo com os postulados do cris-
tianismo,o homem é livre para escolher entre o Bem
e o Mal. Onde haveria determinismo em seu exemplo
de vida, meu caro Sr. Machado?
De tão exaltado,começou a tossir.Respirou fundo
e prosseguiu:
—Para falar a verdade, Sr. Machado, por vezes, de-
pois de ver tantas iniquidades, cheguei a perder as espe-
ranças no homem, mas a Providência divina iluminou-
I
-me nas horas dificeis.Nela, sempre encontrei amparo.
Quanto ao senhor, é-me custoso acreditar que não
tenha crenças ---fitou-me fundo nos olhos e pergun-
tou:-- O senhor, por acaso,não crê em algurna coisa?

109
quase cóstE.as de Machado de Ass•s

Permaneci elil silêncio por alguna teniPo,


antes
de responder:
—No espírito.
-- Na alna, então...? —o rosto do padreilumi-
nou-se.
-- Não —disse, taxativo e algo incomodado com
o rumo da conversação. Não na alma, mas no espí-
rito, naquilo que faz o homem superar a mediocrida-
de humana e o determinismo de forças obscuras,por
meio da criação artística, por exemplo.
—Então, o senhor não se considera um materia-
lista?
De modo algum.
Respirou fundo e prosseguiu:
—Nesse caso,pouco lhe custa para crer em Deus.
Entre crer no poder do espírito e crer em
Deus, padre Siqueira, vai uma distância muito grande.
—E por que não crê em Deus? Posso sabê-lo?
A conversajá estava a me aborrecer. Longe
de mim querer discutir questões de teologia ou de
crenças. Preferia, para evitar maiores discussões, fl-
car com a máxima de César, para quem "geralmen-
te os homens acreditam de bom grado naquilo que

110
desejam"45,e o Ineu desejo era não crer
em nada, ou, quando nnuito, na supre-
maciado espírito sobre a matéria.
Mas antes que dissesse isso, Caro-
lina veio em meu socorro, convidando
o padre para o chá. Não é que, conl
a perspicácia de sempre, ela adivinha-
ra que a conversação vinha me per-
turbando? Por vezes, o padre Siqueira,
por força de suas convicções, tornava-
-se, para tneu gosto, um tanto incon-
veniente.
Pois, bem haja quem tenha, no
Oriente, inventado o chá, e que os in-
glesestenham difundido o gosto da be-
bida pelo mundo. Uma simples cháve-
na fazia que o bom padre se esquecesse 45Em latim, "Fere liben-
tcr homines id quod volunt
daquela conversa e se deliciasse com a credunt", Júlio César
(100 a.c.-44 a. C.), po-
bebida, acompanhada de sequilhos.
lítico e escritor romano,
Tanto foi assim que, depois desse autor de A guerragálica,
In: BARELLI, Ettore;
intervalo, ainda disputamos mais uma PENNACCHIETTI,
partida de xadrez. Mas em silêncio, Sérgio, Dicionário das
citações,p. 697.
como o jogo requeria. Levei a melhor,

111
e o padre, naquela tarde, saiu
deri0tad()
duas vezes: no jogo e na
tentativadc
querer converter-lne.

As artimanhas de um padre

E, assirn, o padre Siqueira e eu


nos habituarnos cona a rotina das nos-
sas partidas de xadrez. De certo modo,
aguardava com prazer suas visitas.
Como já devo ter dito, era pessoa de
agradável convívio. Só me incomo-
dava quando queria tratar de religião.
Discorria, então, sobre a bondade e
discernimento da Providência, a força
da palavra divina e conversões. Con-
tudo, vendo-me avesso ao assunto, e
mesmo um tanto aborrecido, muda-
va o rumo, ou fingia mudar o rumo,
falandodos clássicos,que de fato me
Metamortõsesde Pú-
blio Ovíd)0 Naso (43 interessavam:
Ovídio, nas Metamorfoscs
46, dá a
entender que...

112
O crente e o descrente

E eis que, de repente, mudava de rumo e punha-


-se a falar da crença dos antigos, de deuses e deusas.
Finório,o padre, eu sabia aonde queria ele chegar.
Se me submetesse à sua tirania, não demoraria mui-
to, estaria a falar da superioridade da fé cristã sobre
a pagã. E continuando com aquela lenga-lenga, lá
vinha seu tema preferido: o da conversão de infiéis
e descrentes.Mas, com o gesto de franzir o cenho,
mostrando a minha contrariedade,eu logo o fazia
voltar ao mundo da mitologia, onde me sentia bem
mais à vontade.
Quero crer que ele jamais perdeu as esperan-
ças de, um dia, converter-me. Trabalho inútil, pois,
em minha vida, converti-me tão só a duas coisas, nas
quais tenho a maior crença: o amor pelos livros e por
Carolina.

113
Capítulo VT
Umanoite de
autógrafos
o
arolina veio lennbrar-rne de
que, à noite, tínhamos que
ir ao lançarnento de Os scr-
tões,de Euclides da Cunha47.E não é
que me esquecera? Apesar de ele ser
meu amigo e de ter em minha mesa o
convite. Não fosse Carolina...
—Aque horas que é, Carola?
As oito, na Garnier 48. Só espe-
Euclides Rodrigues
ro que não se prolongue muito. Você, da Cunha (1866-1909)
quando vai a esses lançamentos, de- foi escrttor. sociólogo,
jornalista, ht<toriador.
mora-se a conversar com os amigos... geógratl) e engenhetro.
E, como sabe, ando cansada. I' Livraria B. L. Garnier
e Editora,localizadano
—Temossaído tão pouco de casa, Rio de Janetro, na Rua
ultimamente. E tão raro vê-los. do estesv etn
atividadeentre os anos
—Vocêos vê quando vai à Aca- de 1844e 1934
presidente era Baptiste
demia a—disse ela, saindo. ---Estou a Loui< Garnier. Nota-
reclamar de sua possível demora por- bthzou-se por publicar
de escritores que
que, a falar a verdade, preferia ficar se tornaram famosos,
como ,Machadode As-
em casa. sis.Tanibétn eta, na épo-
Talvez eu preferisse tanlbétn. ca, ponto de encontro
de
Nos últimos tempos, cansava-lne com

115
00

cri

facilidade,por conta de Illinha saúde


cadavez.
debilitada. E o que dizer de Carolina
então?
2) Levantei os olhos e reparei (Ilic I
do continuava na sua faina de arruinar c III)lPar
os
livros. Foi aí que tive urna inqpiraçâo.E sc o Ic-
o,
vasse conosco? Quiçá não conhecia a Garnier,c
-3 esta seria urna boa oportunidade, ainda naaisconj
o lançamento de una livro que atrairia nauitagcntc.
Melhor oportunidade não haveria para o rapazco-
z:
nhecer escritores.
Hermenegildo, você não quer ir conoscoa
uma livraria, hoje à noite?
Voltou o rosto para o meu lado e disse,corn
entusiasmo:
Sim, sim, gostaria muito!
—Hoje, acontecerá o lançamento do livro do
Sr. Euclides da Cunha.
—Obrigado, Sr. Machado. Gostaria de ter a
honra de conhecê-lo!
Quando comuniquei à Carolina que ha-
via convidado o Hermenegildo para ir conosco,
elogiou-me a decisão.Ao lembrar-se, poréna, de

116
que o pobre rapaz não tinha roupas
adequadas,levou-o a unia loja, ali no
bairro mesmo, e comprou-lhe rou-
pas e sapatos.Ao deixarjnos a casa,
ela apontou para o rapaz, cheio dc
vergonha no fat049novo, c dissc conl
um sorriso:
Reparou, Quincas, cojno o
Hermenegildo está elegante?
A livraria já estava cheia quando
chegamos, e foi um custo passar por
entre a gente, ainda mais que tinha
que cumprimentar um, cumprimen-
tar outro. Havia funcionários dos mi-
nistérios, deputados e senadores, mili-
tares,jornalistas, pessoas da sociedade,
já que Euclides da Cunha era muito
bem relacionado. Em meio à multi-
dão, fui reconhecendo pessoas do ofi-
cio: lá estavamo jovem e promissor
Lima Barreto e o dramaturgo Artur Roupa, vestimenta.
Azevedo confabulando. Troquei duas

117
palavras conl o José Veríssiillo
wAfonso I dc e dei
L Batrcto (ISSl- , por
1922).autor de. entre quenl tinha grande estinna.Encontrei
outras obras.
Quarc• tanibétll os da escola parna-
Artur Nabantino
de AzcvcJo siana, representados por Olavo Bilac
(I 190,8) drarna-
e Raunundo Correia e, lilais além, o
tun:n. poeta. connsta e
jortulbt.i. autor, entre Coelho Neto, conl queni Ine entreti-
outras obras, da rcça A
José vc ve,
de Matos A todos fiz questão de apresen-
da tar Hermenegildo, que seguia, muito
s;lctnr.Slatto CANhtane
dc Alc (1872-1 enfiado, Junto a nlim. Parecia ma-
FATltnr, filho de JC
ravilhado corn os livros, com toda
Alcncar. foi grandc
go dc hado dc aquela gente e, sobretudo, com os
Brás
Guanuràcs Bilac escritores de carne e osso que teve a
S), pocta, autor, oportunidade de conhecer.
entre outras obras.
poema "Vl.; Lac —Aqueleé mesmo o Olavo Bilac?
Raimundo da Mota
de Azevedo Correta O autor de Via Láctea? perguntava,
(1859-1911),pcrta, au- incrédulo.
tor de e
Snf«va.tsHennquc Naquela noite, quando voltamos
x:tntano Coelho Neto
(1804- i 934). connsta e para casa, em sua face estava estampa-
romanctsta, autor de da a maior felicidade.Junto ao peito,
Rapsodj.tj e REI nekW.
trazia um exemplar de Os sertões,com
O

4-1

que eu o havia presen- Os Sertões


teado e, em cuja folha (Campanha de
canudos) o
de rosto, Euclides da por
Euclydes da
Cunha escrevera uma Cunha
PQhQO JOVen•?
dedicatória: Y/ehmene9/do
de
Pehet'hQ, /e"dOk
precoce,
onereço e5de Meze•'//Vko.

de
de 1702.

1902

Infância e juventude

Chegando em casa, deitei-me, mas não dormi,


porque fiquei pensando nos acontecimentos daquela
noite.Ainda estavaimpresso em minha mente o rosto
iluminado do Hermenegildo ao entrar na Livraria
Garnier, contemplar os livros expostos, conhecer es-
critores e ter seu livro autografado por Euclides da
Cunha. Fatos como esses,na aparência comezinhos,
deveriamtê-lo marcado bastante,tal era seu estado
de excitação.

119
o Isso fez-nae lenabrar de sentimen-
tos semelhantes que experinaentara
ao conhecer a Livraria Paula Brito,lá
pelos idos de 1855. O estabelecimen-

to ficava no número 64 da Praça da


to

Constituição, que viria a ser chamada


depois de Largo do Rossi0 51. A maior
parte do tempo, quando lá ia ter,pas-
sava namorando os livros da vitrine
e das estantes, e vendo com invejaos
clientes a comprá-los. Por vezes,de-
parava-me com os escritores que ad-
mirava.Eram como seres do Olimpo,
tão distantesde mim. Sonhava, um dia,

não só ter dinheiro para comprar li-


vros, mas também ser como eles. Um
Em 1821, recebeu autor de respeito,com romances pu-
o nome de Praça da
Constituição e, em blicados, poesias e crónicas estampadas
R1890, a praça adqui-
riu o seu atual nome, nos periódicos ou uma peça represen-
Praça Tiradentes, em
tada num teatro.
comemoração ao cen—
tenário da morte do Mas sabia que estavamuito longe
inconfidente.
disso,pois ainda era uma criança que

120
Uma noite de autógrafos

vendia balas nas ruas, para ajudar minha madrasta


com as despesas da casa. Meu pai, a essa época, já
havia falecido, a vida era dificil e, a duras penas, con-
seguiraestudar.Mas com muito esforço ia progre-
dindo, lendo jornais, revistas e livros com voracidade.
Inclusive,chegara mesmo a aprender a língua france-
sa com Madame Gallot, a dona de uma padaria nas
proximidades de casa.
O que mais gostava de fazer então era ir ao cen-
tro da cidade, para frequentar bibliotecas e livrarias.
Como morávamos em São Cristóvão, era obrigado
a tomar a barca. Durante o percurso, não tinha olhos
para a paisagem,pois me distraía com a leitura de
livros.
Era só chegar ao centro, corria à Livraria Paula
Brito, para ver as novidades na vitrine ou nas estan-
tes. A essa altura, tenho que confessar que devo a seu
dono muito do que hoje sou. Não só por me permi-
tir que lesse em seu estabelecimento tudo o que me
dessevontade, por quanto tempo quisesse,mas tam-
bém por ter-me ajudado a dar um novo rumo à vida.
Uma tarde, estava a ler Noite na taverna,de Alvares

121
Me:nórias quase póstumas de Machado de Assis

de Azeved052, e ele, o
Franciscode
Paula Brito 53, ao ver entretido
com o livro recém-saído, disse:
Pelo que vejo, o jovem gosta
Inesmo de leitura...
Não disse nada, apenas fiz que
52 Manuel António
sini com a cabeça. Estava tão assustado
Álvares de Azevedo
(1831-1852) foi escri- com aquele homem dirigindo-mea
tor romântico,poeta e
prosador,autor de Lira palavra que, se tentasse falar, com toda
dos vinte anos e Noite na
a certeza iria começar a gaguejar.Jul-
taverna.

Francisco de Paula
gava que ele tivesse vindo me chamar
Brito (1809-1861) era a atenção por ficar lendo o livro sem
mulato,foi um edi-
tor, jornalista, escritor, pagar.
poeta, dramaturgo, tra- —E o que você faz, além de gostar
dutor e letrista carioca.
Além de ser dono de de ler?
tipografias e de uma li-
vraria,fundou a Socie- Envergonhado, confessei-lhe que
dade Petalógica, que vendia balas.
teve corno membro o
então jovem escritor Uma atividade tão digna quan-
e seu amigo Machado
de Assis.Foi editor da to outra qualquer —observou, para de-
revista Alarmota'lumi- pois completar: Mas gosta mesmo é
nensc,na qual Macha—
do publicou muitos de de ler, não é? Sempre o vejo aqui a
seus poemas.
mexer nos livros.

122
Uln dia, ele propôs trabalhar
em suatipografia,o que me deixou ra-
o
diante.E a minha felicidade aunncntou
ainda mais quando publiquei minha
prirneira poesia. Contava, então, com
15 anos:

À ILMA. SRA. D. P. J. A.

Quem pode em um momento descrever


Tantas virtudes de que sois dotada
Que fazem dos viventes ser amada
Que mesmo em vida faz de amor morrer!

0 gênio que vos faz enobrecer,


Virtude e graça de que sois c' roada
Vos fazem do esposo ser amada
(Quanto é doce no mundo tal viver!)
54Publicado no Perió-
dico dos pobres. Rio de
A natureza nessa obra primorosa, Janeiro, nÚmero da-
Obra que dentre todas as mais brilha, tado de 3 de outubro
de 1854. Disponível
Ostenta-se brilhante e majestosa!
em:<http://machado.
mec.gov.br/images/
Vós sois de vossa mãe a cara filha, stories/pdf/poesia/
Do esposo feliz, a grata esposar
maps07.pdfS. Acesso
54 em: 28 dez. 2013.
Todos os dotes tens, ó Petroni1ha.

123
o
Logo após, publiquei outra
nas páginas
/lll/llinense. Não demorou Inuito, da
tornei-meum
assíduo frequentador das páginas desse
periódico,
o
que Ine deixava crente de que, dia,eu seriames-

vitrine da Livrar:a Paula Brito.


Enquanto ISSO, vida melhorava, pois,gra-
ças a 11121a
Indicação, fui trabalhar como tipógrafona
Irnprensa Nacional. Ena Ineli novo enaprego,acon-
teceu fato que iria Ine aproxñnar de um dos
grandes escritores brasileiros de então, que acabou
tarnbéll) por se tornar ineu anaigo.
Enquanto trabalhava na gráfica, nos intervalos
ena que nada havia por fazer, pegava de um livro,
sentava-tne sobre alguns pacotes e punha-me a
ler.
Mas, um dia, fui surpreendido pelo chefe das
oficinas,que se pôs a gritar comigo:
Então, o senhor, em vez de trabalhar, fica a ler
livros!Já não é a primeira vez que o pego mandrian-
do. Agora, chega! Vou entregar o seu caso ao senhor
diretor.
Una noite de aut6grafOS

Ao ouvi-lo dizer isso, estremeci.


Conhecia o Sr. Manuel AntÔnio de
Almeida55da leitura de seu romance,
de que gostara muito, e de vê-lo, de
relance,entrando no gabinete de tra-
balho. Chamado à sua presença, não
ousei levantar a cabeça,já esperando a
reprimenda.
Disse-me o Sr.Vilela que o se-
nhor se distrai no oficio para ler livros...
Ergui a cabeça.E, em vez de um
semblante sisudo,como esperava,depa-
rei-me com um rosto cheio de bonda-
de, onde se armava um sorriso.
55Manuel António de
Sim, senhor —murmurei. Almeida (1831-1861),
escritor brasileiro,autor
E posso saber o que o senhor de Memórias de um sar-
estava a ler? gento de milícias.

Estendi-lhe o exemplar de Notre- 36Victor-Marie Hugo


(1802-1885) foi ro-
-Dame de Paris, com que vinha prati- mancista, poeta, drama-
turgo e ensaísta francês.
cando o meu francês. E autor de Os miseráveis
a—Ah,Victor Hug0 56! disse,pare- e Notre-Damede Paris,
entre outras obras.
cendo admirado e consultando o livro.

125
Memórias quase póstumas de Machado de Assis

—Então, o senhor já lê francês! Que lhe pareceu


a
história?
—Go-gos-tei bas-bastante para minha vergo-
nha, não pude deixar de gaguejar.

trato que Victor Hugo faz do pobre corcundada ca-


tedral...
Fechou o livro e pôs-se a tamborilar com os
dedos sobre a capa.
Pois então estavaa lê-lo durante o expediente...
"Agora veni a reprilnenda", pensei, encolhen-
do-:ne todo na cadeira.
Nesse caso,creio que seria melhor pô-lo a tra-
balhar como revisor. O que acha disso? —concluiu,
abrindo mais uma vez o sorriso.
Não podia crer: em vez de reprimenda, rece-
bia uma promoção! Saí da sala muito agradecido e
sem poder me conter de tão feliz. Cona o passar do
tempo, o Sr. Manuel AntÔnio de Almeida voltou a
dar mostras de sua generosidade, apresentando-me
a alguns amigos que eram também escritores. Conl
essasamizades,consegui, Inais tarde, meu primeiro

126
emprego ennjornal, o de revisor do Correiontcrcan-
til. Passeia colaborar tatnl)élll na revista O espelhoe,
enl 1860, a pertencer à vedação do Diário do Rio dc
Janeiro.
Masjatnais pude me esquecer de Incu primeiro
poema publicado.Tenho, guardado conn Inuito cari-
nho, um recorte já amarelecido do Periódicodospo-
brcs,onde apareceralll estampados meus versos.
Creia, caro leitor, que, quando o corro com os
olhos, ainda sinto Inuita emoção. E como se estivesse
impressauma parte de minha juventude neles.

127
Capítulo V11
De médico
e de louco, ..
arolina, que tinha iclo, ntnna
manhã, às conjpras, chegou
em casaconl um ar que lhe
conheçomuito bem e que denunciava
uma grande novi-
o querer Ilie contar
dade.Estava eu à varanda, a ler a Gazeta
quando ela pôs a bolsa e os
de notícias,
embrulhos sobre a mesinha de centro
e disse:
—Não sabe, então, da nova?
Nova?A única que soube hoje
acabeide lê-la aqui no jornal ---disse,
apontando para a página que tinha dian-
te dos olhos. Morreu o Dostoiévski 57
—O Dostoiévski! —exclamou ela,
consternada.—De que foi que ele morreu?
—Parece que de uma hemorragia
pulmonar associada a enfisema e ataque
epiléptico. Flódor Nirkhaxlovtch
Ao me referir à última moléstia, Dostoiévski (1821-
1881 romancista russo.
não pude deixar de me arrepiar todo, autor de, entre outras
porque também eu sofria do mesmo obras, Crime castigoe
Karamazov.
Os
mal.
— Pobre homem.
Tinha tanta
miração ad-
por ele! Que forte
impressão
me causaram Os ir/llãos
Karamazov
e
Recordação da casa dos iliortos.
Estão entre
os melhores livros que li... —Carolina
Q)
fez urna pausa e, depois, continuou:-
Mas era outra a nova que tinha paralhe
contar...
Fitou-me de olhos bem abertos,
quase sem respirar, como costumava
fazer nessas ocasiões. Afinal, qual era a
novidade? Na certa, algum mexerico,
ouvido de passagem ou em conversa
com uma amiga numa das lojas.
—E então, Carola, o que tem para
me contar? perguntei com impaciên-
cia, porque me apetecia voltar à leitura
do jornal.
Pois não é que o comendador
58 Primeiro hospício i Tavaresinternou o filho no hospício
criado no Brasil, no Dom Pedro e ela se pôs a fa-
Rio de Janeiro,em
1852, para tratamento lar em desabaladacarreira:—Quem me
de doentes mentais.
deu esta triste nova foi a Constança,a

130
Do louco,

encontrei na Rua do Ouvidor„, Está certo, o


rapazé jncstno uni perdulário, nunca deu valor ao
dli)hcim, aos estudos, é boa pessoa, educadísqinjo,
carátcr. Ninguéni, enl consciência, lhe únputaria
a faina de louco.
V»rquato internado nujn hospício?" rcfleti,
chcio de pastuo. fato, a notícia era J)icsjno espan-
tosa.Conhecia-o assun por cirna,Já tínhmnos trocado
uns dedos dc prosa. num encontro na Garnier, ena
que tnostrara uns versos, bastante rnaus por sinal.
IMAS não tl'trra coragetn de cornentar isso,porque o
rapaz dissera-me. tornado pela titnidez:
Se nio vtr neles valor algum, por favor, diga-
-rue, Sr. Machado. Scr-lhe-ei rnuito grato, pois tenho
eni alta conta seus juízos.
Louvei-lhe,ainda que por educação,uma e ou-
tra imagem, recomendei-lhe algumas leituras. Ou-
viu-me, Ineneando a cabeça, abrindo um sorriso e,
depois,agradeceu-me, com efusão,a leitura. E agora
Inc vinha a Carolina dizer que ele fora internado no
hospício.Só se fosse pela teimosia em continuar a es-
crever aqueles versos lastimáveis...
Mas por que foi o rapaz internado, Carola?

131
O que se diz por aí é
que seen-
graçou conl tlina escrava da
família.
Ulna negrinha de 15 anos, que
agora
está grávida dele. Mas o que deixouo
cornendador e farnília enlouquecidosé
que ele diz que deseja casar-secoma
memna.
E tnestno urn leviano ponderei,
não porque se enarnorasse de uma ne-
gra, mas, sitn, porque quisesse casar com
urna escrava.
Leviano ou não disse Caroli-
na, algo indignada —,por que interná-
-Io num hospício?O Torquato é tudo,
menos um lunático.
Talvez a faniília agisse melhor
No romance MC. enviando-o à Europa...
matias P'stumas de
Cubas,quando o —Como fez o pai de Brás Cubas,
Brás Cubas se apatxona quando ele ficou enrabichado por
pela amante Atarvela c
começa a gastar uma aquela Marcela59, não é? tornou Ca-
fortuna com ela, o pai
à força.à Eu- rolina, com malícia.
topa. para que ele ---Algo assim —disse,caindo na ri-
afaste de sua paixão.
sada.

132
o
Pois o comendador tentou fa-
zer o mesmo,e sabe o que aconteceu?
O Torquato ameaçou matar-se, e foi a
muito custo que conseguiram tirar-lhe
a arma da mão. O resultado: acabou
trancafiadono Pedro II.
Carolina foi para dentro, deixan-
do-me com meu jornal. Contudo, não
consegui mais me concentrar na lei-
tura, só pensando na desdita do pobre
moço. Internado num hospício porque
se apaixonara por uma escrava. Onde se
viu uma coisa dessas?Doido de paixão,
mas seria doidice bastante a ponto de
merecer ser internado?
E aquilo me ficou na cabeça,tan-
to que, à noite, mal dormi, só pensando
00Do catalão orat,de-
no caso.No outro dia, enquanto toma- rivado do castelhano
orate,e este ligado ao
va meu café, pensei que aquela notícia lat. ditra,"ar em movi-
podia redundar num conto. Pus mãos mento, vtraçào", sigm-
ficando doidos maluco.
à obra e comecei a escrever algo, a que Daí "casa de orates".
dei o título provisório de "A casa de que significa "casa de
doidos"
orates60", Como de costume, primeiro

133
que tudo, escrevi um
'd do conto,
O de um esboço dos personagens,
coisa em 0
toda a manhã. que
Eis a síntese da história que
acabei por
um respeitado médico da vila de imagina:
Itaguaí,de non)e
mão Bacamarte, casado com uma viúva, Si
a) D. Evarista
Costa e Mascarenhas, entendendo que da
os loucosvi
viam à solta pelas ruas _
da cidade, sem ter quem
cuidasse
deles, propõe à câmara dos vereadores a criação
de um
hospício de que ele próprio deverá tomar conta.
Esta-
belecido num casarão,construído especialmentepara
este fim, que passa a ser chamado de "A CasaVerde"
devido à cor de suasjanelas, Simão Bacamarte não só
recolhe os loucos, como também começa a estudare
catalogar os tipos de demência. Na sequência,imagi-
nei que o doutor começa a recolher na casanão só os
doidos de fato, como também pessoas que apresentem
algum sinal de monomania. Acaba,assim,por encer-
rar no hospício seu auxiliar,a própria mulher —por
achar que ela tem a mania de comprar roupas novas
—e pessoas gradas da vila. Depois, encarcerará aquelas
pessoasque não têm monomania alguma,ou que, de
seu ponto de vista,possuem outra forma de loucura.

134
,
De médico e de IO'„'CO.

E assimvai, causando um terrível reboliço na peque-


na cidade, cujos cidadãos se revoltatn contra seus mé-
todos.No epílogo da história, ele libertará todos os
internos e, por se acreditar a pessoa com menos de-
feitos de toda Itaguaí, se internará no hospício, onde
morrerá mais tarde, encerrando a grande confusão
pro\ocada por sua curiosidade científica.
O conto era uma alegoria sobre a Inente humana.
Afinal,o que é loucura? Não tetnos todos monoma-
nias?Eu, por excrnplo.O que me levou a consagrar
quase que a minha vida inteira a escrevercontos, ro-
manccs. peças de teatro, críticas para jornais e revistas?
Etn sutna, a tornar em ficção ou etn palavras a reali-
dade, em de viver tão «omente a própria realidade.
Crendo-«e nos estudos do meu Simão Bacamarte,eu
mesmo descria ser internado no Pedro II...
um bom tempo a escrever"A casade ora-
tes", não só pela complexidade e extensão,mas tam-
bém porque não andavabem de saúde.Já há algum
tempo, vinha tendo urn problema intestinal crÔnico,
sem contar que a vista me doía, impedindo-me a con-
centração demasiada na leitura. E assim fui escreven-
do bem devagar, levando com isso umas duas semanas.

135
Memórias 96.3 t

Acabando dc cv rever o

depois, veio ela conj as


di.
zendo:

gargalhada.
---Pândego por quê?

destino do pobre Torquato para c«crcvcr conto,


Não bastasse isso, ainda o faz de njancira bastantecó-
nnica.Quero lhe dizer que nunca diverti tanto
com uma história sua quanto conj c«ta daqui. J lá coi-
sas mesrno Inuito engraçadas nela.
Mexeu nas páginas e localizou uma passagem:

Aos quarenta anos cagou com D. Evarigta da Costa


e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anoo, viúva
de um juiz de fora, e não bonita nem gimpática. V:n
dos tios dele, caçador de pacat3 perante o Eterno, e
não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e
disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Eva-
rista reunia condições fisiológicas o anatómicas dg
primeira ordem, digeria com facilidado, dormia ro-
gularmente, tinha bom pulso, e excelonto vigta;
eg-
tava assim apta para dar-lhe filhos robuotoa, gàOB

136
inteligentes. Se além dessas pren-
e
únicas dignas da preocupação do
das
D. Evarista era mal composta
um sábio,
longe de lastimá-lo, agra-
de feições,
porquanto não corria
decia-o a Deus,
de preterir os interesses da
o risco
ciência na contemplação exclusiva,
consorte .61
miúda e vulgar da

Que retrato faz da pobre D. Eva-


rista...O doutor Bacarnartea escolhe
tão só por suas supostas qualidade para
procriar! Como se ela fosse um animal
pronto para a reprodução... E depois
ainda a trancafia no hospício! A própria
consorte!Ora, onde se viu uma coisa
dessas?E o que você fala dos doidos
de Itaguaí? Está mesmo impagável, por
exemplo,a crítica que faz da linguagem
do tal...
Ela voltou a mexer nas páginas, até
ASSIS, Machado de.
encontrar o que desejava: O alienista.3. ed- São
Ah, cá está! O Martim Brito, Paulo: FTD, 15.

"pintalegrete62acabado", como você o 62 0 tnestno que pe-


ralta.
resume.

137
01

O
E Carolina leu-llle, a
seguir
trechos: uns

"Deus, disse ele, depois


do dar
ü2iverso ao homem e à mulher, o
esse
mante e essa pérola da coroa
divina (Q
o orador arrastava triunfalmente
esta
frase de una ponta a Outra da
nega)
Deus quis vencer a Deus, e criou D. Eva-
rista. "63

Dava para o épico. Una vez, por


ASSIS op.
exemplo, compôs una ode à queda do Mar-
quês de Pombal 64,em que dizia gue esse
64 Sebastião José de
ministro era o "dragão aspérr±no do
Carvalhoe Melo,pn-
meim Conde de Oei- Nada" esmagado pelas "garras vinga-
rxs e depots Marquês doras do Todo"; e assin outras mais ou
de Pombal (1699- nenos fora do comum; gostava de ideias
1782),foi nobre dl-
sublimes e raras, das imagens grandes e
plomata e estadista
65
português. Secretário nobres. • •

de Estadodo Remo
durante o reinado de
D. José 1 (1750-1777), —Também comentou ela, sem dei-
deu início a váriasre- xar de rir com semelhantes ideias e pa-
formas administrativas,
económicas e sociais lavreado,só merecia mesmo figurar num
no Brasil de sua época.
hospício. O que seria aconselhável para
osASSIS, op. cit.. p. 37
muitos dos políticos que temos por aí...

138
t)"módico do louco,

fitotl-liie conj atenção c disqc:


Agora. Ironia (Ias ironiaq, njcu caro Quincas,
encontrar naq página Qcm que você mostra
o l)r, Sinño Bacanjartc inverte sua fórmula
de diagnosticara loucura, Pois não é quc cle manda
soltaros doidos e, por oposição, internar os sãos?!
Maqque ideia essa!
E ela «e pós a ler outros bocados dc meu conto:

De fato, o alienista oficiara à Câmara expon-


do: - 12 que verificara das estatísticas da vila
e da Casa Verde que quatro quintos da população
cotavam aposentados naquele estabelecimento; 22
que esta deslocação de população levara-o a exa-
minar os fundamentos da sua teoria das moléstias
cerebrais, teoria que excluía da razão todos os
cagog em que o equilíbrio das faculdades não fosse
perfeito e absoluto; 32 que, desge exame e do fato
estatístico, resultara para ele a convicção de que
a verdadeira doutrina não era aquela, mas a opos-
ta, e portanto, que se devia admitir como normal
e exemplar o desequilíbrio das faculdades e co:no
hipóteses patológicas todos os casos em que aque-
le equilíbrio fosse ininterrupto; 42 que à vista
disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos
reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas

139
gue se achassem nas
condições
agora

Con efeito, era


difícil
inaginar
mais racional sistema
terapêutico.
tando os loucos divididos por
classes
segundo a perfeição moral que
em cada
deles excedia às Outras, Simão
Ba-
cana: te ct11d0ü em atacar de
frente a
qualidade predominante. Suponhamos
nodesto. Ele aplicava a medicação que
pudesse i:cutir-lhe o sentimento opos-

"Que se devia admitir como nor-


mal e exemplar o desequilíbrio das fa-
culdades, e como hipóteses patológicas
todos os casos enl que aquele equilíbrio
fosse ininterrupto" repetiu ela, para
depois concluir: -- Enfim, com teoria
tão esdrúxula, posso entender que ele
não só tente curar as virtudes dos sãos e
acabe por internar a si próprio na Casa
ASSIS, op. Cit., p Verde. No que fez muito bem. Doido
mesmo, de verdade, em Itaguaí, pelo que
ASSIS, op. P• 64.
pude deduzir, é apenas o douto doutor...

140
Comecei a bater palmas e disse:
Muito bem! Como sempre, você
se revela unxa leitora das mais argutas,
querida Carola. Em todo caso, queria
saberse,de fato, gostou do conto, apesar
dajocosidade que lhe imputa.
—Está claro que gostei! Quero crer
apenasque você acentua aqui a ironia
presente em AlenióriaspÓstumas.Conti-
nua a ver o homem como um joguete
de forças que não pode controlar. So-
mente que, agora, carregando nas tin-
tas,utilizando-seda fórmula do ridcndo
castigatmores68, como se estivessea rir
da sociedade que só vive das aparências.
Calou-se um instante e, depois,
perguntou-me com aquele ar matreiro
que lhe conheço muito bem:
Meu caro Quincas, acredita mes-
----
mo que somos todos doidos?
—"Demédico e louco, todos temos
um pouco" não é o que diz o ditado latim: rindo. cas-
ugam-se os costumes.
popular? respondi, dando uma risada.

141
Q)

Carolina ia deixando o escritÓrio,quando


parou
e, voltando-se, disse:
—Mas há uma coisa que Ilie incomoda no conto.
Ante meu ar de interrogação,ela prosseguiu:
-- Não sei se gostei tanto do título quanto da his-
tória. "A casa de orates" não me soa bem...
Ela saiu, e eu fiquei ali ruminando a sua crítica.
Depois de algum tempo, cheguei à conclusãode que
Carolina —aliás, como sempre —tinha razão. Não, não

podia ser "A casa de orates". Refleti mais um pouco,


até que risquei com a caneta o título original e escre-
!
vi outro no lugar: "O alienista".Sim, "O ahemsta
Afinal, o centro de toda história não era mesmoa
figura do doutor Simão Bacamarte? Também tomei
outra providência.Como o conto fosse muito longo,
dividi-o em capítulos, encimados por subtítulos. Esse
era um expediente que costumava adotar nos roman-
ces e que muito me agradava.
E, assim,para minha satisfação,via mais um conto
meu, nascido de um fato real, preparando-se agora
para ganhar o mundo. De fato, "O alienista" acabaria
por sair entre as páginas de Papéisavulsos,no ano se-
guinte.

142
De médico e de louco.

As virtudes de Carola

O que seria de mim sem Caroli-


na? E uma pergunta que costumava fa-
zer quando ela era viva e, ainda mais,
quando morreu. Em tudo, deixava ela
sua marca. Guiava o serviço doméstico,
ajudando o criado Raimundo e a co-
zinheira Joana, e dando aos arranjos da
casao conforto que não poderia vir do
69 A palavra "fabrica"
dinheiro. Sabia conservar o bastante e o significa o fabrico, o
simples; tão ordenadas as coisas da casa, produto fabricado, no
caso, os tapetes e toalhi-
completadas pelo trabalho da mão da nhas que Carolina fez
dona, que captavam os meus olhos e os para a casa, Este pará-
grafo, a partir da palavra
das visitas. Todas elas traziam uma alma "guiava", é uma adap—
tação de um fragmento
e esta era nada menos que a mesma, re- do romance Mentorial
partida sem quebra e com alinho raro, de Aires, de Machado
de Assis,que pode ser
unindo o gracioso ao preciso.Tapetes de encontrado no capítulo
mesa e de pés, cortinas de janelas, en- intitulado"4 de feve-
reiro". Disponível em:
tre outros trabalhos que vieram com os <www.brasiliana.usp.
br/bbd/handle/1918/
anos, tudo trazia a marca da sua fabrica, a 00207200#page/1/
nota íntima da sua pessoa.Teria inventa- í mode/lup>, Acessoem:
69 28 dez. 2013.
do, se fosse preciso, a pobreza elegante.

143
Ministério, Carolina lendo

e vez em
quando, recebíatnos visitas; de noodo
invariável,eram
as Inesmas pessoas: o barão Siliith e Vasconcelos,
a
posa e suas filhas; Illinha sobrinha Sara, casada
como
capitão Bonificio da Costa; dona Fanny de Araújo.

conversando co:n todos, providenciando o chá,com-


pensando, assinl, a Illinha casrnurrice.
Não bastassem os arranjos da casa, ela aindame
ajudava, e :nuito, corn tneu trabalho. Não só lia os
Ineus manuscritos, palpitando sobre eles com pro-
priedade, co:no tambénl os passavaa limpo. O que
seriam de meus artigos, contos e romances, com
aqueles garranchos que endoideciam editores e ti-
pógrafos?
Não, o Dom Casnturronão pode ir assimpara a
Garnier —adrnoestava-me ela, ao contemplar os ori-
ginais cheios de rabiscos.—Teremosque dar um jeito
nisso.
E, pondo mãos à obra, com muita paciência, co-
piava o livro ou partes dele. Fez isso com quase toda

144
minha obra, à exceção de Esaú eJacó,
a
conhecer por inteiro,
que não chegou a
sua publicação, veio
pois,na época de
falecer. Ainda também me auxiliava,
a ca

organizandocaderninhos, a que dava o


título de Mentorabilia70. Neles, registra-
va frases,citações latinas e pensamentos,
organizadospor assuntos,a que se dava
o trabalho de traduzir. Isso facilitava de-
maisminha tarefa de escritor.
Ao me lembrar de Carolina, tão
amorosae prestativa,de nossa vida em
comum, e saber que ela partiu para
sempre,não posso deixar de registrar
aqui os versos de Camões:

70Plural de memorabilis,
Alna ninha gentil, que te partiste
latim,e que significa
Tão cedo desta vida, descontente, "coisas que são dignas
Repousa lá no Céu eternamente de serem lembradas".
E viva eu cá na terra sempre triste. CAMÕES, "5" (so-
netos). In: MOISÉS,
Massaud. A literatura
E, pois, com muitas saudades, que portuguesa através dos
me recordo daqueles momentos de textos. 13. ed. São Pau-
Io: Cultrix, 1983, p. 71.
grande felicidade conjugal.

145
Crendices

Era uma figura e tanto a


nossacozinheira,
Joana. Tinha as suas peculiaridades, a
como a de
crédula até mais não poder.
Fiquei sabendo por Carolina que havia
emsua
casa um altarzinho, onde ficavamsantose
santas,
reconhecidos ou não pela Igreja, ao lado de en-
tidades do Candomblé. Não se olhavaao espelho
em dia de tempestade, não se banhava em diassan-
tificados, não passava debaixo de escada e não po-
dia ver um gato preto à sua frente sem benzer-se,
dizendo:
Valha-me, Nossa Senhora do Perpétuo So-
corro!
Tinha receitas de mezinhas para tudo: desde
dores de cabeça, do estômago e até contra mau-
-olhado.
Uma vez, indo à cozinha para beber água, dei
com a Joana passando ao Raimundo urna oração
que, segundo ela, era tiro e queda contra o que-
branto.
Dizia ela:

146
De médico e de

E repetir três vezes a reza, com muita fé, fa-


zendoo sinal da cruz e segurando um raminho de
alecrim.
A oração era a seguinte:

Em louvor de Deus Nosso Senhor


E de Nossa Senhora Aparecida
Em louvor do Padre Santo
Em louvor do Pai Simão
Em louvor de nosso Senhor Jesus Cristo
Em louvor de Nossa Mãe Maria Santíssima.
Nossa Senhora lavou seu filho para cheirar
Eu benzo esta pessoa para sarar
De quebranto, mau-olhado e vento virado. Amém.

Ao dar comigo, ficou toda vexada. Para descon-


trair,eu sorri e disse,depondo o copo sobre a pia:
-- Então,Joana, e dá mesmo certo a oração?
—Vixe,nhô Machado, se não dá!
E veio com uma longa história de uma conhe-
cida dela, cujo filho havia ficado entrevado devido ao
mau-olhadolançado por uma vizinha invejosae que
etc., etc., etc.
Não a contestei.Contra crendicenão há argu-
mentos.

147
A cartomante

Esse tópico das crendices veio a ser


o tema de
uma das conversasque tive com o Hermenegildo.

Io de nossas obrigações, como já era costume entre


nós, tomávamos um chá. Essa era uma exigênciade
Carolina, pois, se ela não interviesse, tanto eu como
o Hermenegildo vararíamos a tarde, ocupados com
nossas obrigações, sem um intervalo sequer. Bastava
o relógio dar as três badaladas,lá vinha o Raimun-
do, a luando dela, com uma bandeja com chá e
sequilhos.Entre um gole e outro, o jovem pergun-
tou-me:
—Sr. Machado, o senhor tem uma imaginação
tão fértil. Donde é que lhe vêm tantas ideias?
Essaé uma boa pergunta.Donde é que me
vêm as ideias... —respondi, já refletindo.
Uns segundos depois, pus a chávena sobre o pi-
res e prossegui:
—Bem, algumas de minhas histórias nascem
inspiradaspor escritores que aprecio, outras surgem
da observaçãoda vida, de conversas que tenho com

148
amigose conhecidos, e mesmo de notícias que leio nos
jornais.
E como é que o senhor transformaisso num
conto, num romance?
Que pergunta! Embora soubesse como fazer con-
tos e romances,nunca tinha me passado pela cabeça
pensarno fabrico deles.
—Vamosfazer o seguinte disse,voltando a pensar
maisum pouco: —Vocêfala-me um título, e eu, se pos-
sível,tento lhe rastreara origem e mostrar como um
caso resultou nesse conto.
Ele semicerrou os olhos, pôs a mão no queixo e
começou a murmurar:
Um título... um título... —e perguntou: Pode
ser qualquer um, não é, Sr. Machado?
Sim...
Demorou-se para se decidir, até que disse:
-- Está bem. O que o senhor me diz de "A carto-
mante"?
Tentei me recordar de quando e por que escrevera
aqueleconto que publicara no livro Váriashistórias.Fora há
pouco mais de seis anos... Com mais uns instantes de re-
flexão,lembrei-me do motivo que me levaraa escrevê-lo:

149
O Em primeiro lugar,
veio-me a ideia
um conto que tratasse de urna de escrever
cartonlante,
época, vinha pensando bastante porque,na
sobre a
superstição,a
alvorecer,a humanidade tem a
'0 tentaçãode adivinhar
o futuro, procurando lê-lo no
movimento dos astros
ou nas entranhas das aves,consultando
feiticeiros,adi-
vinhos, oráculos ou mesmo santos e
divindades.Algu-
mas coincidências levaram os crédulos a
creremque,
de fato, podiam contar com essesexpedientes,
tendo
assim bons augúrios para as guerras, os negócios,
os
amores... Mas o futuro é apenas uma suposiçãoou,
se quiser, um produto da imaginação.O que há, de
fato, na linha do tempo, é o eterno presenteque se
desenrola diante de nós... Mesmo assim,as pessoastêm
o costume de se fiar em forças ocultas, temendo pelo
que lhes possa acontecer no futuro...
Contei-lhe, então, da conversa que ouvira entre a
Joana e o Raimundo. Fiz uma pausa,tomei mais um
gole de chá e prossegui:
—Numa outra ocasião, a Joana apareceu-me di-
zendo que alguém lhe botara um mau-olhado. Ou seja:
uma pessoa, que não gostava dela, fizera uma espécie de

150
De médico e de louco...

mandingapara lhe roubar o honlem. Ficando na dú-


vida de com quem ficaria o anxado,resolveratudo a
contento acabou ela por me dizer --, indo consultar
urna cartomante que atendia à Rua da GuardaVelha.
E a cartomante acertou na previsão?"— per-
guntei-lhe.
Pudera, se não acertou, nhô Machado! Por
mil réis, trouxe-me o meu Cristiano de volta!" —res
pondeu a Joana, feliz.
Hermenegildo pôs-se a rir.
—E, depois, Sr. Machado?
—Como aquilo era Inatéria que muito me in-
teressavapara analisar a alma humana, no que diz
respeitoa crenças,sabe o que eu fiz?
—O quê, Sr. Machado? -- perguntou-me ele, o
rosto ardendo de curiosidade.
Pois fui ver a tal da cartomante.
O senhor?! protestou. Mas... mas não en-
tendo. Como pode ter feito uma coisa dessas?
— Calma, Hermenegildo, não fui saber do
meu futuro e, sim, do meu presente. Fui até a casi-
nha da Guarda Velha para ver, in loco,como atuava
uma cartomante, já que só sabia disso por livros.

151
Menor 1 as pós r tistias
do Machado
de

Interessava-me conhecer como


agia
desse tipo, de que expedientes se
utilizava criatura
para
air
Respirei fundo e prossegui:
Cheguei à rua, mas devo lhe
confessarquehe
sitei antes de bater à porta. O que estava
fazendoali?
Eu, um funcionário de um Ministério, um
conheci
_
do escritor, parado diante de uma casa
enxovalhada
numa rua onde, de quando em vez, alguémpunha
a
cara pela janela espionando. Pensei em recuar,mas
a curiosidade foi mais forte. Abri a porta, subi uma
escadinha.A luz era pouca; os degraus dos pés, comi-
dos; o corrilnão, pegajoso.Havia outra porta em que
bati. Não aparecendo ninguém, tive ideia de descer,
mas a curiosidade fustigava-me o sangue. Tornei a ba-
ter uma, duas, três pancadas.Veio uma mulher, era a
cartonlante.Ao contrário do que esperava,não usava
um manto e nenl mesmo um turbante enfeitado com
miçangas.Sua roupa era ordinária, um vestido escuro
comprido, pulseirase colares.
Fiz uma pausa e continuei a narrativa:
—Disse,um pouco envergonhado,que vinha con-
sultá-la, e ela fez-me entrar. Dali, subimos ao sótão,

152
pior que a primeira e mais
por uma escada ainda
uma salinha, mal alumiada
escura.Em cima, havia
para o telhado dos fundos.
por uma janela, que dava
trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza,
Velhos
do meu ponto de vista, antes aumentava que
que,
cartomante
destruía o prestígio para os crédulos. A
do lado
fez-me sentar diante da mesa e sentou-se
que
oposto,com as costas para a janela, de maneira
meu rosto.
a pouca luz de fora batia em cheio no
Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas com-
pridas e gastas. Enquanto as baralhava, rapidamente,
olhavapara mim, por baixo dos olhos. Era uma mu-
lher de 40 anos, italiana, morena e magra, com gran-
des olhos sonsos e agudos.Voltou três cartas sobre a
mesa e disse:
primeiro o que é que o traz aqui."
"—Vejamos
Fixei os olhos nela, que, fingindo ler as cartas,
tornou a falar:
"—O senhor trabalha com...?"
"—Livros ..."—disse, evasivo, quando, talvez, fosse
preferívelnão ter dito nada.
"—Livros? O senhor os vende? É livreiro?"—ela
voltou a consultar as cartas.

153
o Aproveitei que errasse sobre
fui adiante,já que 0 peixe
a iqca.
comecei
"—Sim, 111asos negócios não Ine
vão bem.M
sócio..." eu
Ah!"—o rosto da mulher iluminou-se,
" e ela
apressou-sea dizer:
vem enganando
Exato. E eu queria saber o que vão ser de
meus negócios, se devo confiar nele..."
—Embaralhou as cartas e disse:
—Não se preocupe. Seu sócio irá cair em si,
arrependido de..."
Mas há uma mulher no meio..." fazendo
cara de coitado, interrompi-a, para pôr um pouco
mais de sal na história.
"—Uma mulher?" disse, com surpresa, mas logo
se corrigiu. Sim, sim, é o que as cartas dizem. Há
uma mulher entre os dois. E o senhor a ama..."
---Fiz que sim com a cabeça.
As cartas dizem-me..." ---abriu um sorriso e
continuou,dizem-me que seu sócio se arrepen-
derá do malfeito e que a mulher voltará a seus braços".

154
De médico e de louco...

---Estava satisfeito,já tinha tudo


o que desejava.Levantei-me e per-
guntei-lhequanto era. Examinou-me
e pediu-me dois mil réis, que lamen-
tei pagar, mas acabei pagando. Enfim,
era em nome da ciência... Ficava as-
sim sabendo como é que agiam esses
charlatães.Despedi-me dela e desci a
escadaque levava à rua, enquanto a
cartomante,alegre com a paga, torna-
va acima, cantarolando uma barcaro-
Ia. E logo procurei escapar dali, que
me incomodavam a sordidez de tudo
aquilo e os olhares dos curiosos àsja-
elas. 72
720 encontro de Ma-
—Então, foi isso que o levou a chado de Assis com
escrevero conto? a cartomante
é, em
grande parte, paráfrase
—Sim, isso e uma notícia que vi de um trecho do con-
numa das páginas de A semana ilustrada. to "A cartomante". In:
ASSIS. Machado de As-
Era escrita em poucas linhas, contando sis: contos, texto integral,
I seleção de Deomira
que, na Rua dos Barbonos, um sujei- Stefani. 7. ed. São Pau-
to, "enlouquecido pelo ciúme", sur- Io: Ática, 1979, p. 79-
80.
preendendoa mulher com o amante,

155
Memórias quase póstumas de Machado de Aca i3

matara os dois a tiros. Pronto!


Percebi
que tinha às noãos o embrião
de uma
história. E ligar o caso à crendice
foi
um condimento a mais.
Fui à estante, peguei meu volume
de Várias histórias,localizei o conto e h
um trecho logo do início:

Também ele, em criança, e ainda


depois, foi supersticioso, teve t:
arsenal inteiro de crendices, que a
mãe lhe incutiu e que aos vinte azos
desapareceram. No dia em que deixoa
cair toda essa vegetação parasita, e
ficou só o tronco da religião, ele,
como tivesse recebido da mãe a.?.bos
os ensinos, envolveu-os na nes:na dú-
vida, e logo depois em uma só negação
total. Camilo não acreditava nada.
Por quê? Não poderia dizê-lo, não pos-
suía um só argumento; limitava-se a
negar tudo. E digo mal, porque negar
é ainda afirmar, e ele não foraulava
a incredulidade; diante do mistério,
Idem, ibidem, p. 75-
76.
contentou-se em levantar 03 ombros, e
foi andando.

156
o

6
---Como você pode ver, de início,
Camilo não é um homem crédulo. Mui- o

to pelo contrário, é um cético, mas as


confidênciasde Rita e o contato com a
cartomantemodificam-no, pois, segun-
do ele mesmo pensa, "o presente que se
ignoravale o futuro". Ao ficar deslum-
brado pelas palavras da mulher, que são
semprepositivas,como costuma aconte-
cer nessescasos,e alarmado com o futu-
ro sombrio que vislumbra, recupera algo
que estavareprimido bem no fundo de
si, a credulidade, a superstição.
Pelo que me lembro do conto,
pareceque a mulher lhe fala só o que Édipo rei, tragédia
do dra:naturgo grego
ele quer ouvir... ---completou Herme- Sófocles (497/496
negildo. a.c.-406/405 a.C.).
Nesta peça, o jovem
— E sempre assim que agem os Édipo. ao consultar
adivinhos.Não teria muito cabimento o oráculode Delfos
para saber «obre o
que dissessemo contrário, coisas terrí- destino,recebe o vati-
cinto de que, sem que
veis,como acontece, por exemplo, com tenha consciência dis-
o Édipo da tragédia74. Mas, no caso do so, irá matar o próprio
pai e desposar a rnãe.
meu conto, a cartomante, corno, de modo

157
o geral, todas as cartomantes,é
movida
.c: pelo dinheiro. E ninguém, em sã
cons-
C)
ciência, pagará por um mau vaticínio.
Tornei a consultar o conto e li ou-
tra passagem:

Era assim, lentas e contínuas,gue


as velhas crenças do rapaz iam tornan-
do ao de cima, e o mistério empolgava-o

con as unhas de ferro. Às vezes queria


a; rir, e ria de si mesmo,algo vexado;nas
a mulher, as cartas, as palavras secas
e afirmativas, a exortação: Vá, vá,

ragazzo innanorato; e no fim, ao lon-


ge, a barcarola da despedida, lenta e
graciosa, tais eram os elementosre-
centes, que formavam,comos antigos,
una fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia ale-
gre e inpaciente, pensandonas horas
felizes de outrora e nas que haviam
de vir. Ao passar pela Glória, Cami—
10 olhou para o mar, estendeu os olhos
para fora, até onde a água e o céu dão
um abraço infinito, e teve assim uma
'5 Idem, ibidem, p. 80. sensação do futuro, longo, longo, in-
terminável . 75

158
De médico e de louco. , ,

ConA0pode ver, reacendem em Camilo velhas


crenças.E corno se a cartomante o tornasse criança de
novo, fazendo-o acreditar em seus vaticínios,a ponto
de vislumbrar futuro belo, interminável, sugerido
pela visão do encontro das águas do mar com o céu.
Satisfeitaa curiosidade do Hermenegildo e ter-
minado nosso intervalo, voltamos a trabalhar. Mas não
conseguime concentrar no que fazia.Ainda pensava
naquilo tudo: no destino dos homens, na ignorância
que temos do futuro, na incerteza em que vivemos.
Os pobres de espírito, como a Joana e o Raimundo,
ou como os personagens Camilo e Rita, tinham, pelo
menos, a crença como suporte. Fosse nos santos,em
Deus, nas rezas ou nas cartomantes.E eu? Em que
podia acreditar? Em nada? Talvez cresse em algo. Por
exemplo, na força de minhas convicções que me fa-
ziam perseverar,pondo o melhor que em mim havia
em tudo que fizesse.E, com isso,por que tinha que
adivinhar o futuro? Era melhor me preocupar com o
presente.
Por mais que fossem tentadoras, tinha que pôr um
ponto final naquelas reflexões. Isso se quisessetermi-
nar o capítulo de Esaú eJacó que estava a escrever.

159
VIII
Capítulo

Cartas de amor
exendo enl alguns papéis, encontrei
as cartas que excrcveraa Carolina, urn
pouco antes de nos casarrnos.Copio o

nhas tnetnóriaq:

de POUCO COP77GG.P7Ze
era ?
7¯enSe não dens Consc-zndeSoU) />7GS
Se
te não Conde;nada é porve Va/;aã pena
conda.r.R m;n/7Cz passada do ct0hGÇcZO
reSzzme-•Seeme?do;s CGP/dZZ/o<5:
una nac
CorreSpon4do) ozd)-o, Correspond;clo. pp;
me;to, nada tenho gue d;Zer) do não
megae;xo) eu o CR
me acuses por 860; há Se
não Sem
de ob-;gou--nqe,Com os SeaS
Qzp'Zczde
ConSe//706, Q de6Se
7G—/oCom doh, P7CzS
Sem hemohSo.
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hl pergunta natura/ é est ica:taca/ des—
des do;s5 CGP/dU/06 era o dc? cu,GOSã.l
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161
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não São «e a nada-
reza espalhasse às />7ãoSche;a5
pelo deu SeXo. pehdenCe5 ao
pertenc nztmeho de mu/hehe5 fZZe
e pen--
eu? h//é/>7
Sãh. Como de não rzzzzv-;a
76 Anne- Louise-Ger- 06350, tens papa zp•zp dodefue
maine Necker, baro— 05 heã/Çã ,07ãR.5••
507Che5de.
nesa de Staél-Holstein
(1766-1817),mais co-
d"zeh â a/ma
nhecida como Mada— e ã/>7CZ)
me de Staêl, foi roman—
cista e ensaísta francesa,
e5dd unta a/zpa"e de Com—
autora dos romances
Pheende e de dcZZ7'éZ>7
Dclphine e Corinne e
C
de 7QZZe,'---de
de um estudo sobre a 7e/;Z é deCehdo
literatura, fundamental
para a introdução do
eu acedo—acoz? cz/ey;zz,e
Romantismo. Cerdo de
eSde Q3hQd4'e/ e.'7CQh30...

.62
O/ha,
da
nho
t eõe;o de
/Ao;a;nda d ne/;z ?
pe/Q f/oh me

como Se Ê0SSe em nteSmQ,po;s


tae, apesar de SeCQe Sem perna—
me, e/Q pouCo de
tua a/ma,
e; o cl;a de ;cIQ)
poucos d;as e esdc(
fCa/tam
/onge! Mas razek? hl
é neCeSSdr;a /OcV-a esdc( a
porta do paraíso) não a•Âkondemcx5
o de5t;nogue é ConoSCo.

Por ora, de todaS Trecho de carta de j


estasprecauçaes. depo;s , Machado de Assispara
gueñda, o mando, Carolina, datada de 2 de
março, sem indicação
POP?ZZe é Se — de ano, mas, provavel-
nhor do mundo Hem esdc( ac;ma mente,do período í
das suas 3/dr;as Aonase das suas ; noivada Disponívelem:
<http://www.academia.
amJ;qaes esdére;s. Estamos org.br/abl/media/RB%
(60.5ne5de CQSo')amamo—noS) e ea
VIVOe morro por &SCreVe —me e 20DA%20MEMORIA.
crê no coração do deu pdts. Acesso em: 8 jan.
2014.

163
Memórias quase póstumas de Machado de Assis

Recordo-lne, então, das


ções que precaus
para nos
Isso pela oposição que vermos
encontreipor
parte dos Illeus futuros
cunhados,0
Miguel e a Adelaide. E tudo
porque
eu era Inulato!
Conheci Carolina quando
veio
ela de Portugal para tratar de seu
outro irrnão, o lileu amigo Fausti-
11078,que se encontrava doente dos
nervos. A princípio, ela foi morar no
bairro do Rio Comprid0 79, na casa
de uma filha da baronesa de Taquari,
dona Rita de Cássia Calazans Ro-
drigues.
Faustino Xavier de t
Novais (1820-1869) foi Na noite em que a vi pela pri-
I jornalista, poeta e escri-
tor português radicado
meira vez, na casa do Faustino,já de
no Brasil. imediato simpatizei com ela. Fiquei
'9 Bairro central do Rio
deverasimpressionado com sua bele-
de Janeiro. O seu nome
origina-sedo rio que za, maneiras e cultura. E creio que a
o percorre, nascendo
na Floresta da Tijuca e recíproca foi verdadeira.
desaguando na Baía da
Talvezpelo fato de o irmão Faus-
Guanabara.
tino ter me apresentado como "um

164
o

dos poetas e dramaturgos mais promissores da nova


geraçãoaqui do Brasil"
Ah, é mesmo? disse, abrindo um sorriso. —
E o que o senhor já publicou até agora?
Oito peças e um livro de poemas intitulado
Crisálidas...
E o senhor se lembra de algum poema que
pudesserecitar para mim?
Puxei pela memória e recitei o poema "Erro",
que ela ouviu com toda a atenção:

Erro é teu. Amei-te um dia


Com esse amor passageiro
Que nasce na fantasia
E não chega ao coração;
Não foi amor, foi apenas
Urnaligeira impressão;
Um querer indiferente ,
Em tua presença, vivo,
Morto, se estavas ausente,
E se ora me vês esquivo,
Se, como outrora, não vês
Meus incensos de poeta
Ir eu queimar a teus pés ,
É que, - como obra de um dia,
Passou-me essa fantasia.

165
Para eu amar-te devias
o
Outra ser e não como
eras.
Tuas frívolas quimeras,
Teu vão amor de ti mesma,
Essa pêndula gelada
Que chamavas coração,
Eramben fracos liames
Para que a alna enamorada
Meconseguissem prender;
Fora:nbaldados tentanes,
Saiu contra ti o azar,
E emborapouca, perdeste
A glória de me arrastar
Ao teu carro... Vãs quimeras!
Fara eu amar-te devias
80
dütra ser e não cono eras. • •

Bravo! ela disse, batendo pal-


mas, quando terminei. E muito bela.
Recite-me outro.
80 ASSIS, Machado de. Obedeci e disse-lhe mais outros
Cnsálid,t€:poesias. Publi-
cado no Rio de Janeiro, poemas, que ela pareceu apreciar bas-
por B. L. Garmer, em tante. Percebi que ela não só gostava de
1864. Disponível em:
<http://www.brxqlia- poesia, como conhecia bem literatu-
na.usp.bríbbd/bandle/
page/
ra em geral. Assim, entretivemos uma
5/ modc/l up>. Acesso conversaçãosobre o que havia de me-
cm: 29 dez. 2013.
lhor em Portugal, naquele momento.

166
Cartas de amor

Neste ano, acabaram de sair dois


romances bem interessantes. A doida do
Candal,do Sr. Camilo Castelo Branc081
a quem conheço pessoalmente e muito
estimo, e As pupilas do senhor reitor, do
Sr.Júlio Dinis contou-me, para depois
discorrer sobre os livros.
Sempre fui uma pessoa retraída e
creio que minha timidez, volta e meia,
atrapalhava-mena relação que tinha com
as pessoas e, mormente, com as mulheres.
Mas não com Carolina, que me deixou
logo à vontade.Tanto que, na noite em
que a conheci, esquecemo-nos dos ou-
tros, entretidos numa conversa sobre li- 81 Um dos mais im-
portantes romancistas
vros,sobre a vida cultural no Porto e no românticos em Portu-
gal (1825- 1890),autor
Rio de Janeiro e suas impressões sobre também de Amor de per-
nosso país. dição e Amor de salvação.

Carolina era de estatura mediana, 82Cada uma das partes


do cabelo que, dividido
trazia os cabelos presos em dois bandós 82e ao longo da cabeça até
vestia-secom simplicidade, embora com a nuca, arredonda-se
com algum relevo dos
bom gosto.Mas o que mais me encantou lados da testa, em certo
penteado feminino.
nela foram os olhos, que pareciam sonhar.

167
Memórias quase póstumas de Machado de Assis

Se a retórica de una enanlorado perniite unia


ima-
gem, diria que seus olhos eram "senhoris, de uma
luz
tão serena". E acabarmn eles por me seduzir,tanto
que, ao voltar para casa,parecia que flutuavamdiante
de mim, prometendo um futuro de muitasalegrias.

A difícil corte

Passamos a nos ver com regularidade, e logo per-


cebi que Carolina não era indiferente à minha corte.
Tudo correria no melhor dos mundos, se um obs-
táculo não viesse perturbar a tão sonhada felicidade
de tê-la junto a mim. Foi que, um dia, ela propôs de
se encontrar comigo em casa da amiga dona Rita de
Cássia,em vez de na casa do irmão Faustino.Só fui
entender a razão disso quando, aparentando nervosis-
mo, Carolina disse que devíamos nos ver menos vezes
e sempre num local neutro.
—Pode explicar-me a razão disso, Carolina?
Ela demorou-se a responder:
São meus irmãos...
Sabia que a Adelaide e o Miguel, chegados há
pouco tempo de Portugal, ao contrário do Faustino,

168
nio se Inostravatn nada cordiais comigo, Nos raros
encontros que tivera corn eles, tratararn-lne com res- o
peito, 111ascorn :nuita reserva. Desconfiava do Ilioti-
vo, mas esperei que Carolina o dissesse.Ela começou
com umas explicações, sem chegar ao ponto, o que
me obrigou a forçá-la a revzlar a razão de não poder-
mos nos encontrar amiúde e às claras, con10 era meu
desejo:
---Ande, Carolina, diga-tne. Por que não querern
eles que se encontre cotnigo?
Ela abaixou a cabeça e disse:
Está bem, contar. Mas sinto tanta vergo-
nha... —cheia de aflição, parou de falar, mas logo con-
tinuou:—Meus irmãos nio se conformam em que eu
seja cortejada por um mulato.
Procurei manter a calma, embora estivessefer-
vendo por dentro.
—O Faustino também pensa assim?
—Não, pelo amor de Deus! O Faustino é o que
mais me incentiva. Seria incapaz de uma coisa dessas.
Você sabe da estima que ele tem por você.
Ainda cheio de raiva,não pude deixar de dizer:
—E você?

169
Levantou a cabeça. Os olhos dela,que
erarntão
serenos, fuzilararn-lne:
Machado! Que conceito faz de mim?!Por
queni rue tonia? Sabe tnuito bem o apreço que tenho
por você. Que a cor de sua pele pouco me importa.
Valern-me Inuito naais o seu talento, a sua inteligência
e a sua sensibilidade.
Cheio de vergonha, peguei suas mãos e beijei-as:
Perdoe-me, Carolina, fui injusto. Não sabe
como uma coisa dessas,partindo de quem partiu,me
magoa.
—Tanto sei redarguiu ela que, apesar das res-
trições deles,estou firmemente decididaa continuar
I
consigo. Isso, se você ainda me quiser...
Carolina! Claro que a quero!
Assim foi nosso primeiro arrufo, provocado pela
estupidez dos irmãos dela. E, apesar disso, ou talvez
I por causa disso, passamos a nos encontrar com mais
assiduidade,embora longe deles. Quando não podía-
mos nos ver, escrevíamos cartas apaixonadas.
Afinal, vencidas as resistências dos irrnãos Novais,
a 12 de novembro de 1869,data que jamais me esque-
ço, casamo-nos.

170
Cartas de amor

e Mefistófeles
Fausto

com
Fausto,um sábio desencantado
quando tentado por Mefistófe-
a vida,
83 acabou por fazer um pacto selado
les ,
sangue, em que o demónio prome-
com
que lhe concederia o poder de fazer
teu
caso desse
tudo o que quisesse em vida,
dia, a exem-
suaalma em troca. Pois um
plo do lendário personagem, também
vivia experiência de ser tentado a ven-
der a minha alma, em troca de um bem
muitoprecioso.Somente que meu pacto
83 Fausto é um sábio
foi feito com um Mefistófeles de batina. que, atormentado pelos
O fato: no meio da tarde, apareceu- fracassos em vida, deixa-
-se tentar pelo diabo
-me em casa o padre Siqueira para a Mefistófeles, que, em
nossapartida de xadrez. Estranhei por- troca de sua alma, pro-
mete lhe concedero
que fazia tempo que não comparecia, máximo de felicidade.
São personagensde um
alegandocompromissos.Vinha ele com drama famoso, o Fausto,
um ar matreiro,e logo suspeitei que de- da autoria de Johann
Wolfgang von Goethe
veria estar tramando algo. Tive certeza (1749-1832), escritor
dissoquando, arrumadas as peças no ta- romântico alemão, tam-
bém autor de Werther.
buleiro,disse,com um ar triunfal:

171
Memórias quase póstumas de Machado
de Assis

Hoje, não
há cie
0
senhor
vencer.
Dei de onabros,
como se
Io pouco Ilie inaportasse, aqui-
e conacntei
com malícia:
Como pode saber,
padre Si-
queira? Andou consultando os
orá-
culos?
Não, não consultei os oráculos
e, sim, a Steinitz 84!
Ah, Steinitz... rebati,pensando
no enxadristaque havia sido campeão
do mundo.
Então, vinha ele mesmo prepara-
do para me enfrentar! Acontecia que,
84Wilhelm Steinitz nos últimos tempos, o padre só co-
(1836-1900) foi joga-
dor de xadrez e primei- nhecia derrotas. De vez em quando,
ro campeãodo mundo
nesse esporte. Nasceu
com muito esforço de sua parte e um
no antigo Império Aus- pouco de relaxamento meu, conse-
tríaco, na atual Repú-
blicaTcheca. No fim da guia uma vitória. Agora, entendia por
vida, ficou louco, che- que havia desaparecido por uns tem-
gando a acreditar que
poderia derrotar Deus pos... Devia estar estudando o cam-
numa partida.
- peão de xadrez, e seu ar de triunfo

172
dava-lnea certeza de que «e preparara conjo nunca
para o enlbate!
Tiranios a sorte, e a ele couberajn as brancas. An-
tes de coineçar, porérn, lançou-rnc um desafio:
Que tal se apostásscrnosalguma coisa, Sr. Ma-
chado?
Espantei-me conl o tom com que ele me propu-
nha algo assim tão esdrúxulo, já que nunca havíamos
feito isso antes.
Um sacerdote apostando, padre Siqueira? —
perguntei com ironia.
Sorriu meio sem jeito, mas foi adiante:
---E que o que vou propor para apostar vale mui-
to a pena. Tanto para mim, quanto para si.
—E o que o senhor quer me propor de aposta?
Posso já saber?
Hesitou um pouco:
—Desejava que apostasse a sua alma,senhor Ma-
chado.
—A minha alma?! —desatei a rir.
—Sim, a sua alma —disse-me, sério. -- Caso eu o
vença nesta partida que jogaremos agora, o senhor me
dará a sua alma.

173
Memórias quase póstumas de Machado
de Assia

Ah, pois então descobria


aonde queria
Como não conseguira ele
converter-me
mentos religiosos, queria ver se agora
com aquela aposta.Rebati: convertia
—E o senhor? O que me daria em
troca,se eu é
que o vencesse?A sua alma?
Foi a vez de ele rir:
O que o senhor faria com a minha alma,
Sr.
Machado? Ela lhe seria uma prenda inútil. Sem con-
tar que, sendo sacerdote,jamais poderia empenhara
minha alma, sob pena de excomunhão.
—Pois bem, o que o senhor me propõe em
troca?
Hesitou outro tanto,mas acabou dizendo:
—Aquele meu exemplar de Os Itisíadas,que o
senhor tanto admira...
Tem certeza?A primeira edição de Os 111Sía-
das! redargui, espantado, ao me lembrar da raríssima
edição de 1572 que vira em sua casa e pela qual ele
tinha a maior veneração.E, sabendo que eu havia lan-
çado olhares cobiçosos para a obra, vinha me propor
a aposta.
---Sim, essa mesma.

174
Siclucira devia ter eqttl-
(0 p,icljc dc «e
o Ntcililtz, a ponto
«lado

dos parcos bens. Pobre, corno


para «atisfazcr a qua paixão:
esforçara
raro«. Cl'inha, na sua eqtante
dos livro«
a
entre outras raridades, o re-
de pinho,
e
lusíadas De republica,nulna
ferido
se estava ele enl-
ediçãode 176885.Mas,
penhandoum bem de valor, não ficava
vencedor
eu muito atrás. Não fosse o
perde-
da partida,abraçaria uma fé que
ra muito cedo e render-me-ia a crenças
que o meu ceticismo repugnava.
---E então? interrompeu-me ele
o pensamento. —Teme o desafio?
Seni mais refletir, respondi:
Não, não temo. Pode, pois, co- ss' republica(Da
pública,obra ortgin.d-
meçar,padre Siqueira. mente em sets volu-
Deu a saída e, logo, comecei a per- mes).de MarcoTúho
Cicero (106 a.C.-43
ceberque, tendo estudado com afinco, a.C.), filósofo, orador.
sabiade cor a lição, o que o fazia Ino- escritor, advogado e
polittco romano.
ver as peças com bastante segurança.

175
Memórias quase póstumas de Machado do
Assis

Mas eu tarnbélll conhecia bena algumas


das manh
de Steinitz e fui me defendendo como
pude.Numa
distração do padre, que tentou me tomar
um cavalo
em vez de me acuar a torre, como rezava
uma dasli-
ções do Steinitz, preparei-lhe uma armadilha.E
, ante
seu ar de desolação, dei-lhe o xeque-mate.
—Mas não é possível... disse, balançando a cabe-
I
ça. —Na certa, cometi um engano...
Não será hoje, Me... ia dizer, inconsciente-
mente, Mefistófeles,111as me corrigi a tempo: Pa-
dre Siqueira, que irá me ganhar a alma.
—Pois é uma pena —disse, tornando a balançara
cabeça. Uma pena mesmo, Sr. Machado. Em todo
caso, há que se cumprir a aposta. Na semana que vem,
entrego-lhe o exemplar de Os Itisíadas.Mas, creia-me,
se ganhasseeu, com toda a certeza, ganharia mais o
senhor recebendo a graça de Deus.
Fiquei quieto, pensando que sentia alívio com o
resultado de nossa partida. Sabia o quanto me seria
dificil cumprir o acordo, se perdesse.
Mal o padre Siqueira deixou-me, fui à estante e pe-
guei o Fausto,de Goethe. Reli a cena em que
Mefistófeles
conversacom Deus, a propósito da tentação de
Fausto:
176
0

O SENHOR
viste Fausto?

MEFISTÓFELES
O Doutor?

O SENHOR
sim, o meu servo.

MEFISTÓFELES
Servo teu? guapo servo! o rei dos parvos •
Seu coamere beber são do outro mundo.
pasce-se no fervor da cachimónia,
que o traz há muito aéreo; em suma, é doido,
e ele próprio o suspeita. Ambiciona
cá do céu as estrelas mais formosas,
da terra gozos máximos . Nem perto
nen longe, vê, nem sonha, em que se farte.

O SENHOR
Por enquanto, anda à toa; em breves dias
lhe darei claridade. O fazendeiro
antevê, no abrolhar, a flor e o fruto.

MEFISTÓFELES
Quer Vossa Majestade uma apostinha?
Verá se também este se não perde,
uma vez que me deixe encaminhá-lo.

177
O SENHOR
Deixo, enquanto for vivo.
é natural o errar.

MEFISTÓFELES
Muitoobrigado.
86' 'Pasce-se": o rnesnoo co 'os vivos
Pois ta:nbé71é que 7-2
que "nutre-se, alimenta-
com defuntos embirro; o ze;alo
-se", "cachnnônia": ato
de pensar;"murganho". é tentar caras rechonchudas, fre2cas•
rato pequeno;"in actcr- sou como o gato: de murganho zorto
num": para setnpre. "Há não faço caso; o meu
de se regalar corn terra,
é correr e arpoar aos gue ze foge:.
como a tia serpente
ou seja, ele irá se arrastar
na terra como a serpen- O SENHOR
te. O fato de ele usar a o
Como queiras. Permito—te
palavra"tia" serve para
sugerir um parentesco Se lograres caçá-lo desbatiza-o,
do demónio conl essa e inferna-o muito embora. Mas, corrido
espécie de animal pe- fiques tu in se confessas
çonhento, O fragmento possa,
que o bom, dado que errar às vezes
provém da seguinte edi-
a nossa.
00: GOE THE,J0hann nunca nos sai da estrada, a zeta,
Wolfgang von. Fausto,
tradução de AntÓnio
Feliciano de Castilho, MEFISTÓFELES
versão para e1300k,p..39- Bom. Não lhe há de tardar o desengano,
41 (do PDF). Disponí- certo
Ganhei tão certo a aposta, cozo é
vel ern: <http://www.
ebooksbrasjl.org/ado chamar-me eu Mefistófeles. Se eu vingo
beebooklfaustogoethe. na emprega, a palma do triunfo é
pdf>Acesso em: 2.8dcz. Há de se regalar de terra,
2013.
como a tia serpente. »

178
Cartas de amor

livro e guardei-o na estante. Não, não


Fecheio
vez que o meu Mefistófeles de batina
seriadaquela
a alma.Venci a partida e, como prê-
conquistar-me-ia
ganhavao livro que iria ocupar lugar de honra
minhaestante de pau preto. Pobre padre Siqueira!
porum momento, cheguei até a pensar em desobri-
oá-lode cumprir a aposta. Mas, depois de muito con-
acabei achando que ele devia mesmo pagar
siderar,
pelopacto que fizera. Afinal, se eu perdesse, o quan-
to me custaria abraçar uma fé que achava tão inócua
como todas as fés.

179
Capítulo I Z
A teoria do
tij olinho
O

leitor, porventura, pode nunca ter ouvido


falar da "teoria do tijolinho". Pois, se não cd
ouviu, confesso que ela é minha e que a
com Her-
formuleia partir da conversaçãoque tive
menegildosobre nneu conto "O espelho". Curioso
aquela minha
como era, queria saber de onde viera
almas
ideiade que "cada criatura humana traz duas
consigo
—Da observação do ser humano. De onde mais
poderia ser? —repliquei.
Sorriu, meio que vexado.
—Sim, Sr. Machado, mas me custa crer ainda nes-
sateoria. Fui ensinado que temos uma só alma, a qual
é indivisível,mas o senhor fala em duas. Disse-me o
padre Siqueira...
Depende do que entende por alma —retru-
quei, cortando-lhe a fala. —No conto, não me refi-
ro de modo algum a uma questão religiosa.Trato, antes,
de um fenômeno ligado ao caráter do ser humano,
que apresenta,a meu ver, uma duplicidade.Como
você deve se lembrar, o Jacobina da história, antes co-
nhecido como Joãozinho, um rapaz pobre e que não
chama a atenção de ninguém, quando recebe uma

181
transfornn-se ena "senhor alferes".
Com
isso, ganha a admiração de parentese
amigos, e a inveja dos despeitados. Enfim
pode-se dizer que acaba ele por ter duas
o
almas, a natural, mais simples, e a artifi-
cial, que provoca a admiração de todos.
Sua face iluminou-se, e ele disse:
—Ah, é então por isso que o perso-
nagemJacobina diz, mais adiante, que "o
alfereseliminou o homem"?
Para se certificar do que dissera,Her-
menegildo pegou Papéisavulsosna estante,
abriu-o e localizou a passagem do conto:

- O alferes eliminou o homem. Du-


Documento de con-
rante alguns dias as duas naturezas
cessãode um título,
posto ou privilégio, no equilibraram-se; mas não tardou que
caso do personagem a primitiva cedesse à outra; ficou-me
do conto, o de alferes, uma parte mínima de humanidade. Acon-
antigo posto militar,
logo abaixo de tenen- teceu então que a alma exterior, que
te. Essestítulos eram era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos
concedidos pelo go- das moças, mudou de natureza, e passou
verno e tinham valor
mars de honraria. a ser a cortesia e os rapapés da
casa,
tudo o que me falava do posto, nada
do

182
A teoria do tijolinho

falava do homem. A única parte do


que me
ficou comigo foi aquela que
cidadão que
exercício da patente; a
entendia com 0
no ar e no passado.
outra dispersou-se
Custa-lhes acreditar, não? 88

Balanceia cabeça, confirmando:


—Temtoda a razão. E isso mesmo.
E continuei com minha explanação:
—Coisa mais comum é alguém eli-
minara alma interior, devido à supre-
maciada alma exterior, que pode ser
representadatanto pela farda de alferes,
quantopela batina roxa de um cardeal,
a coroa de um rei, por um título qual-
quer,uma posição social. Ou mesmo o
que acontece com uma conhecida do
Jacobina, uma senhora "gentilíssima",
cuja alma exterior é a "ópera", depois,
substituída"por um concerto, um baile
88ASSIS, Machado
do Cassino,a Rua do Ouvidor, Petró- de. "O espelho:esbo-
ço de uma nova teoria
polis
da alma humana". In:
Hermenegildo, que me seguia a Contos São Paulo: FTD,
2002, p. 93-94.
falacom muita atenção, perguntou:

183
i an qnaoe do Machado(Io

As pesqoa« deixai)) de ser o (Ilie


I
etil sociedade, o que o ca1110oti o título
(IctClnnna,
é o que quis dizer COIIIo seti conto?
Balancei de a cabeça positivatncnte,
para Inos-
trar que concotllava cotil ele, e I lerjnenegildo proqscguiu:
O Joãozinho, Inesi110seni saber, teni jnuita ne-
cessidade que o charneill de alferes, porque essaé tuna
Inaneira de ele se sentir irnportante... Tanto é aqsirn
que, ao ficar sozinho na fazenda, seni que lhe (leelllo
título, parece perder a identidade...
Referia-se ele ao episódio do conto enl que o
personagenl, indo visitar tuna velha tia, logo se vê
cotno centro de todas as atenções do pessoal da casa,
devido à farda de alferes. Na sequência, um incidente
vinha perturbar essesmornentos de tanta bonança e fe-
licidade. Urna viagern inesperada tirava a tia e os paren-
tes próximos da proximidade de Joãozinho, de rnaneira
que ele só tinha, para agradar-lhe, alguns escravos.Por
flill, quando os servos fogern da fazenda, acaba ficando
sem companhia alguma no casarão abandonado, o que
provoca nele um sentirnento opressivo,corno se sua
alma exterior se reduzisse.Pedi ao Hertnenegildo que
lesseem voz alta o trecho etn que tudo isso acontece:
O

era Outro t totalmen-


de três semanas,
fim
(d

Marcolina uma notícia grave; uma de


a tia
recebeu residente dali a
com um lavrador
filhas, casada
estava mal e à norte. Adeus, sobrinho!
cincoléguas,
alferes!Era mãe extremosa, armou logo uma
ade11S,
que fosse com ela, e a mim
viagem,pediu ao cunhado
Creio que, se não fosse
quetonasseconta do sítio.
o cunha-
a aflição,disporia o contrário; deixaria
do,e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com
os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que des-
de logo senti una grande opressão, alguma coisa se-
nelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere,
subitamentelevantadas em torno de mim. Era a alma
exteriorque se reduzia; estava agora limitada a al-
guns espíritos boçais. O alferes continuava a domi-
nar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a
consciênciamais débil. Os escravos punham uma nota
de humildade nas suas cortesias, que de certa manei-
ra compensava a afeição dos parentes e a intimidade
doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite ,
que eles redobravam de respeito, de alegria, de pro—
testos. Nhô alferes de minuto a minuto. Nhô alferes é
muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô a 1—
feres há de casar com moça bonita, filha de general;
um concerto de louvores e profecias, que me deixou
extático. Ah! pérfidos! mal podia eu suspeitar a in—
tenção secreta dos malvados .
Matá—lo?

185
- Antes assim fosse.
- Coisa pior?
Ouçam-me. Na manhã seguinte
achei-me 36.
Os velhacos, seduzidos por outros, ou
de movimen-
to próprio, tinham resolvido fugir
durante a noi-
te; e assim fizeram. Achei-me só, sem
mais ninguém,
entre quatro paredes, diante do terreiro
desertoe
da roça abandonada. Nenhum fôlego humano.
Corri a
casa toda, a senzala, tudo, nada, ninguém, um
mole-
quinho que fosse. Galos e galinhas tão somente,
par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as
moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pe-
10s escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que
isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não
por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pou-
co atrevidinho, tanto que não senti nada, duran-
te as primeiras horas. Fiquei triste por causa do
dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco
perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para
lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da
casa. Adotei o segundo alvitre, para não desa:npa-
rar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava
mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remé-
dio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Pe-
çanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha
saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou
sem vestígio dele; e à tarde comecei a sentir uma sen-
sação como de pessoa que houvesse perdido toda a açã0
nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular.

186
do tio Peçanha não voltou
o irmão
no out.ro, toda aquela
dia,
tomou proporçóes
semana.Minha solidão
Nunca 0$ dias foram mais
enor11Ñ$.
o sol abrasou a terra com
pridos, nunca
obstinação mais cansativa.

Entendi agora por que ele precisa


tanto de se olhar no espelho tornou
o Hermenegildo a dizer. Quando se
vê sozinho,sem ter quenx o adule, cha-
mando-o de "senhor alferes", volta a ser
o Joãozinho, mas, quando põe a farda e
contempla-se,não vê o Joãozinho, vê de
novo o "senhor alferes".
Leu o trecho final do conto, com
uma ênfase muito engraçada:

- Lembrou-me vestir a farda de al-


feres. Vesti-a, aprontei-me de todo; e,
como estava defronte do espelho, levan-
tei os olhos, não lhes digo nada;
o vidro reproduziu então a figura in-
tegral; nenhuma linha de menos, nenhum
89ASSIS, op. cit., p. 94-
contorno diverso; era eu mesmo, o alfe- 96.
res, que achava, enfim, a alma exterior.

187
Mortióña13 póottjrnas do Machadode

Essa alma aut30nte com a dona


do sítio
dispersa e fugida com 0$
eocravoa, ei
-
-1a recolhida no espelho. Imaginai
um
homem que, pouco a pouco, emerge
de um
letargo, abre os olhos sem ver, depoig
começa a ver, distingue as possoag
dos
objetos, mas não conhece individual-
mente uns nem outros; enfim, sabe que
este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui
está uma cadeira, ali um sofá. Tudo vol-
ta ao que era antes do sono. Assim foi
comigo. Olhava para o espelho, ia de
um lado para outro, recuava, gesticu-
lava, sorria, e o vidro exprimia tudo.
Não era mais um autómato, era um ente
aninado. Daí em diante, fui outro. Cada
dia, a una certa hora, vestia-me de al-
feres, e sentava-me diante do espelho,
lendo, olhando, meditando; no fim de
duas, três horas, despia-me outra vez.
com este regime pude atravessar mais
seis dias de solidão, sem os sentir. •

Parece, Sr. Machado, que, no final


do conto, a alma exterior domina-o por
completo.
Fitou-me outra vez com aqueles
ASSIS, op. cit., p. 90.
seus olhos tão expressivos.

188
Portanto,é de crer que algumaspessoaspor aí,
vez de serenn elas Ilieslllas, estão sernpre a viver
conformeo que a alma exterior determina.
De acordo, e a coisa torna-se mais grave ainda,
quandoa alma exterior, que é artificial, sufoca de vez
a interior...
Foi então que me veio à cabeça a novíssimateo-
ria.E resolvi explaná-la, pela primeira vez, ao Herme-
negildo,jáque estávamostratando de um conto que
tanto tinha a ver com ela:
Em realidade, meu caro, podemos pensar a res-
peito dessas pessoas que a elas se aplica a "teoria do
tijolinho"
"Teoria do tijolinho"?! —retrucou ele, espanta-
do. Nunca ouvi falar de tal teoria.
Não ouviu falar,porque acabei de formulá-la.
Consta do seguinte: peguemos, como exemplo, um su-
jeito humilde, de muita urbanidade, que se dá muito
bem com os colegas de trabalho.Um dia, por acaso,
cai-lhe ao colo uma promoção ou uma fortuna. De
pronto, muda do vinho para a água: passaa ignorar
os antigos amigos, trata os que lhe são subordinados
com arrogância. A Soberba torna-se sua nova alma.

189
Em stilna: algumas pessoas, ao subireill sobre
um sim-
bólico "tijolinho", se tornam outras, sentindo-se
supe-
riores às demais.
E concluí:
-—Este é, pois, o princípio de minha nova teoria.
E o senhor conhece muitas pessoasa quemse
aplique tal teoria, Sr. Machado?
Refleti, passando enl revista toda a gente que co-
nhecia e poderia servir de exemplo à Illinha teoria.Foi
então que me lembrei de uma, que a ela se aplicava,
como a mão à luva.
Sim, é claro, e poderia me referir a uma em
particular.Vamos à pessoa em questão.
O Hermenegildo acomodou-se melhor na cadei-
ra, e eu, puxando pela memória, comecei a contar.

A teoria do tijolinho II

—Vocêjá ouviu falar do comendador Natalino, não?


Hermenegildo pensou um pouco e disse:
—Não é aquele deputado que- andou envolvido
num escândalopor ter desviado verbas da Câmara? Li
Isso nos jornais...

190
A teoria do tijolinho

continuei. — O
Ele mesnno
apesar de muito rico, não se
holnenl,
Pensavaque o dinheiro pú-
emenda.
era público, em seu sentido nrais
blico
lhe dissesseque o co-
rasteiro.Mas e se
Inendadornem sempre foi o que cos-
ttllnaostentar? Que, há coisa de alguns
anos,era pobre?
O Hermenegildo fez uma cara de
total incredulidade.
—O comendador que mora na-
quelabela mansão nas Laranjeiras? Que
andapela cidade num luxuoso landau91?
Não acredito que tenha sido pobre.
—Pois foi bem pobre. Era verdu-
reiro,morava numa tapera, que ficava
numa chácara, onde plantava alfaces,
couves,tomates e pimentões. Saía, pela
manhãbem cedo, de tamancas e chapéu
de palha furado, puxando uma carro-
Cinhae vinha-nos vender as hortaliças. 91Antiga carruagem
puxada por dois cava-
Na época, quando tirava um dedo de 10se cuja capota podia
ser arriada.
prosacom ele, sorria com humildade,

191
Me:n6rias quase pós tunas de Machado de Asais

o chapéu apertado no peito,


tratando-
-Ine "pois não, Excelência
, POIS
silu
Excelência". E era serviçal
com todos
IVIes1110conl o Raimundo e a
Joana,os
criados de casa. Mas um dia...
Parei de falar, tomei um
gole do
chá e continuei:
. um dia, eis que a sorte lhe
sor-
riu. Um parente afastado da Itália,um
tio solteirão e abastado, que era produ-
tor de azeite, morreu. Aberto o testa-
mento do 1101nem,verificou-se que ele
deixara tudo ao sobrinho do Brasil.Da
9" Creso foi o último
rei da Lidia (560a.C.- noite para o dia, o Natalino, que não ti-
546 a.C.), famoso por nha onde cair morto, viu-se rico como
sua grande nqueza.
Cres092. O que fez ele então? A primei-
Condecoraçãoho-
noriticaque a Igreja ra coisa foi ir para a Itália apropriar-
costutnava conceder às
pessoas.de modo geral, -se dos títulos e dinheiro a que tinha
à custa de pagamento. direito como herdeiro universal.Apro-
A dignidadeque este
título atribui àquele veitou para visitar Roma, ver de lon-
que o detém é hierar-
qutcamente superior à
ge o papa, na Praça do Vaticano,e para
do cavaleiroe tnfenor comprar um título, tornando-se, assim,
à da gri-cruz.
comendador93. Da Itália foi para Paris.
o

trouxe consigo dois grandes o


ao Brasil,
retorno costurados pelos
fraques,
cheio dc o
Paris,0 outro cheio de palavras
alfaiatesdc

interrompeu-me com uma


O Hermenegildo
risada:
do comenda-
Muito sortido o segundo baú
Machado...
dor, Sr.
com o
E ninguém mais o reconheceu. Vinha
em pontas, de
cabelofrisado,o bigode terminado
gravatas
Inonóculo,ostentando casacas cor de ovo,
de seda, cartola, polainas e bengalas —uma com o
caqtãode marfim, outra de ouro ou de prata, sempre
variando.Derrubou a choupana em que vivera e, em
seulugar,ergueu o palacete com vinte janelas dan-
do para a rua. Quanto à horta, arrancou tudo, para
instalarum jardim como o de Versalhes, com fontes,
repuxos,ciprestese estátuas de mármore.
E, sem muito esforço, me vieram outros porme-
noresrelativosao comendador Natalino:
Mas não mudou ele tão só na aparência,
mudou também nos modos. Tratava os antigos
amigoscom soberba, como se não os conheces-

193
se. A liii:n, que costurnava lhe
deixar
alguns tostões corno gorjeta,
deu de
ignorar-tne, talvez porque lhe conhe-
cesse bern o passado de miséria. E só
veio curnprirnentar-lne numa recep-
o
a. çâo, em hornenagelll ao barão Smith
de Vasconcelos94, ao descobrir que eu
era urn escritor conhecido.Ao ouvir
alguém cornentando meu livro Crisá-
lidas, entrou na roda e, com o maior
despudor, disse: "Apraz-me saber que
Vossa Excelência compôs tão magní-
tico livro! Li-lho com poderosíssima
atenção! Louvo-lhe a forma opulenta
e soberba dos versos, a cintilação ex-
celentíssima dos ouropéis, a finíssima
ourivesaria etc., etc., etc.".
Dei uma risada,imitado pelo Her-
José Snuth de Vas- menegildo, e prossegui:
concelos, barão de Vas-
concelos (1817-1903), Não bastasse isso, naquele evento,
nobre português radi-
cado no Brasil e amigo
percebi que ele ficava muito atento ao
de Machado de Assis e que algumas pessoas diziam, para, de-
Carolina.
pois, sair repetindo as frases que ouvira.

194
A teoria do tijolinho

geral, as feitas: "primavera da


pe modo
, fechar com chave de ouro", "o
vida
alvorecerdas paixões","homens de um
amanhã sem futuro"... Gostava tam-
latinas, a torto e
bém de fazer citações
sed lex", "in hoc signo
a direito: "dura lex,
mundi" 95, coubes-
pinces sic transit gloria
semou não dentro do seu discurso.
O Hermenegildo interrompeu-me,
dizendocom muito humor:
—Vejoque, nessa noite, ele gastou me-
tadede um dos baús que trouxe da Europa.
Não pude deixar de rir com o dito
do rapaz,que ainda acrescentou:
Com as graças da Fortuna, subiu
ele de vez sobre o tijolinho, não é, Sr.
Machado?!
Sim, o comendador Natalino
é o mais acabado exemplo da minha
teoria.Somente que num grau supe- 95"Dura é a lei, mas é
rior.Em lhe sendo as ideias curtas, pro- a lei",.com este signo,
vencerás", "assim passa
curavasempre as alargar por meio dos a glória deste mundo".
superlativose do excesso de adjetivos.
195
e:nórias quase póstumas de Machado de Assis

Não bastasse isso, ainda costumava publicar


artigos
nos jornais, em que, a par dos insultosà gramática,
perorava contra os maus costumes e o amoralismonas
peças de teatro. No entanto, como todo mundo sabia,
era amancebado com uma atriz. E o caso da alma ex-
terior, cheia de arrogância, sufocando a interior,que
era humilde por excelência. E isso por obra e graça
de o homem ter subido num tijolo de bom tamanho.
Acabei de tomar o meu chá e disse:
—Contudo, há males que vêm para bem. Quero
dizer com isso que o comendador Natalino, com toda
sua pose e soberba, serviu-me, ao menos, para me ins-
pirar a "teoria do tijolinho" e mais dois contos,"O
espelho" e "Teoria do medalhão"
—Ah, "Teoria do medalhão", aquele conto todo
feito por diálogos,em que um homem conversacom
o filho e ensina-lhe o "oficio do medalhão", não e?
Segundo os conselhos do pai, o rapaz deveria só se
prover de ideias feitas...
Esse conto mesmo. Não lhe parece, então, que
o comendador, ao vestir a máscara social, adquirida
com a fortuna, sobe no tijolinho e torna-se outro,
como acontece com o alferes de "O espelho"?

196
o

seu olhar de anuência, pros-


Ante o
segtll:
E que, por se utilizar de ideias
e lugares-comuns em profusão,
feitas
muito bem dentro da "Teo-
encaixa-se
ria do medalhão"?
O Hermenegildo ficou pensativo,
talvezremoendo tudo aquilo que eu
lhe contara. Por fim, disse:
—Sr. Machado, acredito que o co-
mendador também lhe inspirou outro
personagem...
Eu poderia saber qual?
O José Dias! De Dom Casjnurro
—disse, de um jeito triunfante. —Não
era esse sujeito quem "amava os su-
perlativos","um modo de dar feição
monumental às ideias; não as havendo,
servia a prolongar as frases 967
—Meus parabéns, Herrnenegildo!
Pois eu tinha me esquecidodele dis-
se, rindo. ---O José Dias e seus super- ASSIS.
lativos.

197
O relógio bateu as
Cinco.Mas
lii,nçada! Tinha que revisar que
lilais um
aborrecido processo. Fiz então
sinalpara
o Herrnenegildo:
Bem, tneu caro. Parece-me que
foi
muito frutífera a nos«a conversa.Apren-
deu à perfeição o que seria a Teoria do
tijolinho. Agora, toca trabalharmos.A
mini, falta-tne estudar um documento
do Nlinistério; quanto a você, senão me
engano, cabe-lhe iirnpar a estantejunto à
Janela, não é rnesrno?

Va Idad€? das vaidades

Mas não consegui me concentrar na-


quele documento. Aconteceu que, ao me
recordar do comendador Natalino, numa
associação de ideias, acabei voltando aos
tempos da fundação da Academia Brasi-
leira de Letras97. O leitor, nesta altura, tal-
Conhecida tarnbém vez me perguntasse o que uma coisa tem a
pela sigla ABL.
ver com a outra. E o que veremos a seguir.

198
A teoria do tijolinho

1895, eu e alguns colegas das


Enl
costumávamos nos reunir, todas
letras
na redação da Revista Brasilei-
astardes,
ficava numa travessa da Rua
que
rd9S,
Ouvidor,número 66. Que prazer eu
do
chá na companhia de
sentiade tomar
genteinteressadaem falar de poesia, de
prosa,de teatro e de música!
E eis que, um dia, o Lúcio de Men- 98Revista que apareceu
veio com a ideia de criarmos no Rio de Janeiro e
donça99 teve três fases; a primei-
umaassociaçãode escritores, nos mol- ra, em 1855, a segunda,
em 1857, e a terceira e
des da Academia Francesa, usando dos mais importante, em
seguintesargumentos: 1895. Nessa última, era
dirigida pelo crítico
Está bem —ponderou ele —,nos- José Veríssimo; durou
sosencontrospor aqui têm sido muito até 1899, contando
com 19 volumes e 93
agradáveis,mas, caros amigos, não po- fascículos.

demos nos esquecer de que as revistas 99


Lúcio Eugénio de
Meneses e Vasconcelos
costumamser efêmeras.Um dia desses Drummond Furtado
a Revista Brasileira pode acabar, e não de Mendonça (1854-
1909), advogado, jor-
mais teremos onde nos encontrarmos. nalista,magistrado e es-
Sem contar que, reunidos numa acade- critor brasileiro, autor
de Névoas matutinas e
mia,podemos nos organizar para tocar idealizador da Acade-
mia Brasileirade Letras.
algunsprojetos comuns.

199
Memórias do Machado do Aso ic:

A proposta loi logo


aceita, e ini-
cianaos, conl Ilitlito entusiasrno,
os pre-
parativos. Conleçarnos a elaborar
os
estatuto« e a pensar nos membros
que
seriarn convidados. Acabamos por ar-

ficava enl frente ao Passeio Públicot00


Fui eleito presidente, por unanimidade,
e, etn 20 de julho de 1897,aconteceu
O Pedagogium tQ)1 a sessão inaugural, na qual proferi o se-
urn tnuscu pedagógi-
co criado etn 1890,na guinte discurso:
cidade do R 10de Jane:-
m. Em 1S97. foi trans- Senhores
fonnado num centro
de cultura superior e.
etn 1906, recebeu o Investindo-me no cargo de presi-
; primetro laboratóno de dente, quisestes começar a Academia
psicologta experimen- Brasileira de Letras pela consagração
tal do Brasil.O museu
da idade. Se não sou o mais velho dos
teve 19 anos de exxstén-
i cia- O Passeo Público nossos colegas, estou entre os mais ve-
do Rio de Janeiroé lhos. É simbólico da parte de una ins-
um parque localizado tituição que conta viver, confiar da
no bairro da Lapa, na
cidade do Rio de Ja- idade funções que mais de um espírito
neiro. Foi inaugurado eminente exerceria melhor. Agora que
no século XVIII, tendo vos agradeço a escolha, digo-vos que
sido o prnneiro parque
buscarei na medida do possível corres-
pábhco das Améncas.
ponder à vossa confiança.

200
preciso definir esta institui-
fioé
moço, aceita e con-
iniciadapor
por moços, a
?letada
natilralmente anbiciosa. 0
alnanova,
desejoé conservar, no meio da fede-

política,a unidade literária. Tal


ração
exige, não só a c0Ñpreensão pública,

aindae principalmente a vossa cons-


tància. Academia Francesa, pela qual
estase modelou, sobrevive aos aconteci-

:eatosde toda casta, às escolas literá-


nas e às transformações civis. A vossa há
de *rer ter as mesmas feições de estabi-
lidade e progresso. Já o batisno das suas
cadeiras com os nomes preclaros e saudo-
sos da ficção, da lírica, da crítica e da
eloqllêncianacionais é indício de que a
tradição é o seu primeiro voto. Cabe-vos
fazer com que ele perdure. Passai aos vos-
sos sucessores o pensamento e a vontade
Laiciais, para que eles o transmitam aos
seus, e a vossa obra seja contada entre
as sólidas e brilhantes páginas da nossa
ASSIS. de.
vida brasileira. Está aberta a sessão '01 Discurso. Extraído
sue Cwww.acadcnua.
org cgdu.e
Pouco tempo depois, propus, como exe;sys/start.htmhn
trabalho inicial da instituição, a criação 19 sk•z. 2013-
de um dicionário de brasileirismos.

201
e (xcto que tanibéln dos den)ais
rnetnbros que a Acadellita ti.io «ó procurasse prescr-
\ar os Itnportantes nornes da prosa, da poesia,da
crítica literána e do teatro brasileiro,conjo tmnbétn,
segundo o que Incu discurso,conqervasqe
'no tnejo da federação política, a unidade literária"
do pais. Etn outras palaxxas.n.io desejava que a ABL se
transtortnassc apenas local em que seti<pares tro-
clog:os entre para cultuar a própria vaidade.
Mas netn todos pensavam aqsirn.Corno já des-
confiava, hava os que dcscjava:n entrar na Acadernia
tão só para lustrar o ego. Nluitos tnedíocres passarmna
lutar para figurar entre os tnetnbros da associação,conl
adulações, cartas de rccotnendação de literatos e po-
líucos. Houve até os que, tnorbidamcntc, aguardavam
que um dos metnbros da ABL morresse para que, as-
sunnndo uma das cadeiras, tivessem a graça de ganhar
a ' 'iruortalidade". Tudo em vão, porque os escolhidos
deviam ser lembrados, de acordo com nosso estatuto,
pela qualidade da obra, pelos serviços prestados à cul-
tura e, por extensão, ao país.
E aí que entra o nosso comendador Natalino.
Não satisfeitoda comenda comprada em Roma, nem

202
A teoria
do
ti)olinho

o mandato de deputado, cujos votos, conforme


também as
máslínguas, teriam sido comprados,
passoua
desejar,com muita sanha, uma das cadeiras e, por
con-
seguinte,a condição de imortal. Não tendo
obra publi-
cada,apressou-se em preparar uma. Eis que,
de repente,
apareceuna praça com uma enfiada de livros
de poesia,
maispróprios de figurar em estantes de
ornitologia:
Aves de arribação, Alvorecer dos rouxinóis,
Manhã das coto-
vias,e outras coisas desse jaez. Não bastasse
essaerup-
ção de livros, ainda arranjou quem lhe escrevesse
críti-
cas laudatórias em alguns jornais. Ouvi dizer que tanto
os versos, quanto as resenhas eram todos de encomen-
da, tendo ele gasto um bom dinheirona empreitada.
Em sabendo que eu era presidenteda academia,
passou a assediar-me, ora com presentede seuslivros,
ora com mimos —abotoaduras de ouro, uma caneta de
prata, um cortador de papel de bronze.Os li\TOSti-
mimos eu os pas-
nham como destino a lata de lixo, os
conseguisseos meus favores,
sava adiante. Como não
o dia, meu inimigo,a pon-
tornou-se, da noite para
atacar-me em artigos,com críticaselaboradas,
to de
a saber,por meio da pena de escribas
como vim logo era a seguinte:
encomenda. Uma delas
de
203
Memórias quase póstumas de Machado de

Este ú 1 tino ro:aance do Sr. Machado


de Asus,
é que este livro pode mesmo ser chanado se
de "
roz,aa-
ce", não se sabe a veio. A história
arrasta-se
con muitas digressões tediosas, pelo enredo
frotzo
e descosido. Às netáforas são imprecisas e
nada Sig-
nifican, como a gue descreve os olhos da Sra.
Capito-
lina como os de 'anapessoa bêbeda. Em suna;
dificil-
mente, 0 leitor chegará ao f in do volume, porquanto
se entediará, en denasia, con as arrastadas ne:nórias
desse velho ranzinza gue não ten mais o que fazer. Bea
faria o Sr. Machado que se dedicasse mais a cuidar das
coisas do Ministério, gue andan ao deus-dará, do que
se dedicar a escrever algo para o qual não ten o nenor
talento.
Critilo

Foram alguns meses de ataques num jornaleco, na


certa também sustentado por ele. Até que, para meu
sossego,ao não obter réplicasde minha parte, cessou
de desancar-me.Soube então que, como desforra,re-
solvera fundar a Academia de Letras do Brasil,reunin-
do quarenta poetastrose escribas,a quem costumava
brindar com jantares e mimos. Foi seu primeiro e úni-
co presidente,pois, com sua morte e sem seu patro-
cínio, tal academia veio a se extinguir. Mas, enquanto
durou, funcionava num casarão na Rua dos Mártires,

204
o

contaram, nas reuniões,


rillldoIlie re-
„ldasa vinho Bordeaux, os Ilienlbros
acadernialiam os próprios poemas
c clogiavanl-se nnutuanlente. E, nunla
votação,escolhia-se o prenliado do dia,
que,etn seguida, sentado num trono de
lilártnore, costurnava ser honnenageado
urna coroa de louros. Consta
que
ele chegou a acumular uma dúzia delas.
Que, pois, goze agora, no Eterno, a imor-
talidadeconquistada com tanto denodo.
E ainda a propósito dessa obsessão
do cornendador Natalino de ganhar,a
todo custo, o estatuto de imortal,vale-
ria a pena registrar aqui o dito do livro
bíblico Eclesiastes:"Vaidade de vaidades,
. Digo isto pelo afã
tudo é vaidade" 102
desse homem, depois que foi premiado
campo
pela Fortuna, de granjear fama no
Livzo da sabeOti4
do Anngo Testamento,
Quando muito bem podiase Este trecho se encon-
das letras.
sua amante, tra no capituloI
contentar com suas fatiotas,
seu mandato e sua comenda.
seu palacete,
205
Ao pé do 10 i Ia)
derradeiro
esmo nos momentos de
maior abatimento, em que
mal conseguia se levantar da
Carolina ainda tinha seus cuidados
cama,
Procurandotomar conta da casa,
conllgo.
ordens para a Joana e o Raimundo,
expedia
de que nada me faltasse.Mesmo o chá
me encontrava no escritó-
datarde,quando
continuavapon-
rio com o Hermenegildo,
tual.Àstrês em ponto, o Raimundo aparecia
com a bandeja, as chávenas e os sequilhos.
Embora também enfermo, meus ma-
les nada se comparavam aos dela. Havia
emagrecido, perdido as cores, e seus olhos
traziam uma luz mortiça de tristeza,de
abandono.
Num esforço de vontade, ela quis ler
Esaú eJacó, depois que o Hermenegildo ter-
minou de passar a limpo os originais. Disse-
-lhe que devia poupar a vista, descansar.
Qual! rebateu. Se não revir
todo o texto, é capaz de enviá-lo ao edi- Erros
103
tor todo cheio de gralhas

207
Mas não conseguiu
ir além
primeiras páginas. das
Para agravar
ainda
mais o seu mal, um farmacêutico
que
costumava manipular nossas
receitas
enviou-lhe o remédio errado.
Em vez
de sal-amargo, mandou sal de
azedas104
que ela ingeriu sem perceber o
enga-
no. O veneno não a matou, masveio
a precipitar os danos num organismo
já tão combalido. Começou, então,a
depauperar-se a olhos vistos.
Como eu estavamesmo de licença,
fomos para Friburgo, onde o clima nos
fazia muito bem. Ficamos um mês por
lá. Esquecia-me de mim, só tinha olhos
para ela. Enquanto Carolina repousava,
Sal-amargo: sulfato sentado numa cadeira, lia-lhe poemas
de magnésio;o sulfato
de magnésiooral em- e romances. De vez em quando, pedia-
prega-se como laxante. -me que ficassejunto dela.Sentava-me
Sal de azedas: ácido
oxálico, que causa ir- a seu lado na cama, Carolina segurava-
ritaçâo severa e, se ab-
sorvido pelo organis-
-me a mão e dizia:
mo, pode causar danos —Quincas, o que será de você sem
nos rins.
mim? Queria tanto ir-me depois...

208
No pé do

face e, segurando as
\ áu*Àva-lhe lágrimas,

_vocé hi de tile enterrar, Carola.


Dentro
dias, de pé. E bela, como
sempre.
Eli sorna coril tristezas.
Como sempre, meu querido, você
continua
sedutor.
Mas de nada adiantaram as em Friburgo,
os cuidados do médico, das amigas, dos criados,
Ca-
veio a falecer no dix 20 de outubro de
1904,
de um tumor no intestino. Contava com 69 anosde
idade.
Morreu sem se queixar, os olhos postos em mim,
em despedida. Apesar do baque, não chorei,e o mes-
mo fiz quando a levei ao cemitério. Encerrei-me em
mtm como um caramujo. Mal ouvi os pêsamesdos
amigos e conhecidos. Retrucava com monossílabos
acre-
quando me fanam perguntas. Era como se não
ditasse que ela tinha partido.
depois, é que de fato tomei ciência
Dois dias fez-
vez. A dor de sua perda
de que ela se fora de Como continuava
por tudo.
-me perder o interesse do tempo em casa.
a maior parte
de licença, ficava
20
Memórias quase póstumas do Machado do

Não ia mais a lançaruento de livros,


não recebia
nem ia visitar ninguénn. Quando vinhalll e
ver,per-
manecia em silêncio, apenas esperando
que a visita
fosse breve. Passava grande parte do teniPo
deitado.
Mas era só contemplar o travesseiro em que
Carolina
repousara a cabeça em sua Inorte, os objetos de
touca-
dor dispostos sobre a penteadeira e mesmo a cesta
de
costura dela, que o sofrirnento se tornava lilais forte.
Segurando as lágrimas, levantava-me e ia zanzar pela
casacomo um condenado.
Até que, um dia, tomado pela inspiração,redigi
um soneto, consagrado à Carolina:

Querida, ao pé do leito derradeiro


Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro


Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro .

Trago-te flores, - restos arrancados


Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados .

210
se tenho nos olhos malferidos
Queeu,
de vida formulados ,
pensamentos
pensamentos idos e vividos .

Aquelas palavras não supriram o


vazio,nem trouxeram Carolina de vol-
ta,masme consolava saber que a leni-
brançadela, tão viva em mim, havia
inspirado tais versos.

A vida sem Carolina

Aos domingos, ia ao cemitério


visitar Carolina. Levava flores va-
riadas — margaridas, lilases, sernpre-
-vivas — porque me lembravam das
arrumações que ela costumavafazer ASNIS. de
"A Caroluu"idc
no vaso da mesa da sala de jantar. Fi- I'ub12,-ado eru
cava um bom tennpo diante do jazi- RIO dc J.tnctro- l'lu}obt
bhon. 1957
go, interrogando-me por que ela rue cm:
mec
deixara e dizendo-lhe, baixinho, que
a vida, sem sua presença,não Signi-
ficava nada.

211
Mas, honrando a Ilic'lllória de Carolina,
não po-
dia me entregar definitivanjentc à Il)inha dor.
Tinha
que viver e viver benn, pois sabia que, conl isso,
ela
se sentiria feliz. Para tanto, procurei dedicar-tnc
com
afinco à rotina do trabalho. No Ministério, como fora
nonneado para a Comissão Fiscal e Adininistrativadas
Obras do Cais do Porto, de certo nnodo,recuperei o
entusiasmo de antes pela tarefa burocrática. Foi uma
forma de superar o abatimento e as preocupações com
as minhas moléstias, agravadas pelas crises de epilepsia
que se tornavam cada vez mais frequentes.
Voltei também a escrever, enviando crónicas e
contos para os jornais. E, para a minha alegria,des-
cobri que me viera a inspiração para mais uma obra,
um romance de caráter memorialista.Dei-lhe o título
de Memorialde Aires.Era uma espécie de acerto de
contas com minha própria vida. Como eu me via no
personagem que ia construindo aos poucos! Aires,o
Conselheiro, tinha traços que eram bem meus, como
se pode ver no fragmento abaixo:

Eu tenho a mulher embaixo do chão de Viena e ne-


nhum dos meus filhos saiu do berço do Nada. Estou só,
totalmente só. Os rumores de fora, carros, bestas,

212
Ao pé do leito derradeiro

campainhas e assobios, nada


gentes,
vive para mim. Quando muito o neu
disto
parede, batendo as horas,
relógio de
alguma coisa - nas fala
parece falar
e fúnebre. Eu mesmo, re- ASSIS, Machado de.
tardo, pouco
últimas linhas, pareço-me Mcmoridl de Aires. Publi-
lendo estas
cado originalmente pela
um coveiro. Editora Garnier, Rio de
Janeiro, 1908.O tre-
cho fot retirado do capí-
Pois, sim, eu era um coveiro, o
tulo "30 de setembro".
coveirode mim mesmo —ao redigir Disponível cm: <MVW.
brasiliana.usp.br/bbd/
aqueleque seria meu último livro, pre- handie/ 19 18/002072
parava-me,sem nenhuma pompa, para I /mode/ Iup>.
Acesso em:31 dez. 2013.
enterrarmeu próprio cadáver.

Um epílogo escrito por outra mão

Após a morte do Sr. Machado, cum-


pri a promessade passar a limpo este seu
caderno.Confesso que não foi tarefa das
mais fáceis. Não só, a cada momento, era
retido pelas recordações de quando ele
ainda estava vivo, como também sua letra,
agravada pela doença, tornava tudo mais
difícil.

213
Memórias quase póstumas de Machado de Ase 13

Depois de algumas semanas de


árduo
trabalho, terminei, afinal, a cópia.
Comoo
Sr. Machado não teve tempo de findar
suas
memórias, tive o atrevimento de escrever,
numa folha à parte, estas singelas pala-
vras, à guisa de epílogo.
Começo por falar de seu funeral. 0 Sr.
Machado foi enterrado no cemitério São
João Batista, no mesmo jazigo em que se
encontravam os restos mortais de dona
Carolina. Seu féretrofoi acompanhadode
muita gente. Alguns parentes, seus amigos
mais próximos, políticos, militares, funcio-
nérios de ministérios, livreiros e escritores.
Entre estes últimos, o Sr. Rui Barbosa, que

BARBOSA,
lhe prestou a última homenagem.
Adeus a Machado de Registro aqui algumas das belas pa-
Assis. Disponível em:
<www.casaruibar lavras do poeta:
bosa.gov.br/dados/
DOC/artigos/rui
barbosa/FCRB_Rui sua zz/>7VaSo de ame
Barbosa_Adeus_a e me/ã.zx20/;a.
' Machado _de_ Assis. da sua repart;a/a enfre
pdf>. Acesso em:
Jan. 20
o Meã/e a Poona, não Se /he CZZ/>7—
Sem ,ezzdezae Sent 7Ce/ 107

214
o

do Sr. Machado, cansado


Aovoltardo sepultamento
O
do dia, deitei-me. E, com a cabeça sobre
sucessos
dos
bom tempo a cismar sobre o que ele
as mãos,passei um
memórias. Confesso que fiquei muito li-
disseraem suas
me coubera nelas e com o re-
sonjeadocom o papel que
que o Sr. Machado fez da minha
tratomais que generoso
importância em
pessoa.Jamais pensei que tivesse tanta
impressiona-
suavida. Mas outros aspectos também me
fé que
ram.Sobretudoos que diziam respeito à grande
exem-
ele tinha na Literatura e ao modo como conduzira
plarmentea vida.
Sufoquei um soluço. Como suportar a ideia de que o
meuprotetor,o meu mestre, se fora para sempre?
Por isso mesmo, é-me penoso demais registrar
an-
aqui como foram seus últimos momentos. No dia
mal,
tericr, sabendo que o Sr. Machado estava muito
em
tinha ido visitá-lo. Era já de madrugada. Estavam
de Alen-
sua casa o Sr. Euclides da Cunha, o Sr. Mário
o Sr.
car, o Sr. José Veríssimo, o Sr. Raimundo Correia,
bem quem
CoelhoNeto e outras pessoas que não sabia
impe-
eram.Quando tentei ir até ele, alguém quis me
dir, dizendo:
—Deixe-o descansar, meu jovem...

215
Mas o Sr. Machado, fazendo um débil sinal,
murmurou:
Aproxime-se, Hermenegildo.
Obedeci-lhe. Chegando ao pé do leito,
ajoelhei-
-me, apertei sua mão e a beijei. Tanta era minha
emoção
que comecei a chorar. Foi quando o Sr. Alberto
Carneiro
de Mendonça se aproximou. Os olhos cheios de tristeza,
perguntou-lhe:
Como está se sentindo hoje, querido amigo?
Muito mal... respondeu o Sr. Machado,acrescen-
tando com muita franqueza: —Vou morrer...
Mas o que é isso? Você há de melhorar,tenho cer-
teza...
—Qual —dizia, apontando para a sala, onde as pessoas
conversavam. —Escute... Não reconhece esse zum-zum?
0 Sr. Machado cerrou os olhos e murmurou:
—É de velório...
Logo em seguida, chegou o padre Siqueira com seu
breviário. Inclinando-se, perguntou bem baixinho ao Sr.
Machado:
—Meu caro, não acha que chegou a hora de reconci-
liar-se com Deus?
Com muita dificuldade, numa voz rouca, o Sr. Macha-
do ciciou apenas isso:

216
Ao pé do leito derradeiro

-- Não crendo em nada, seria uma hipocrisia confes-


sar-me,não é meu querido amigo?
0 padre Siqueira estremeceu. Recuou, levantando
o corpo,e, com esse movimento, acabou por derrubar o
breviário.
Então, o Sr. Machado fechou os olhos. A respiração
opressafoi desaparecendo,até que seu rosto assumiu
uma expressão bem serena. Continuei a apertar a sua
mão entre as minhas. Pouco depois, o único calor que
emanavadela era o das lágrimas que eu não conseguia
mais segurar.

217
Fotocronologia da
e da obra de
vida
Machado de Assis

Machado de Assisem
foto tirada em estúdio.

1806 —Nasce, no Rio de Janeiro, o pai de Machado de Assis,


FranciscoJosé de Assis.
1812 —Nasce, em Ponta Delgada, no arquipélago dos Açores, Maria
Machado da Câmara, mãe do escritor.

218
Fotocronoloqia da vida o da obra do Machado de Alasis

Casaril-se,no Rio de Janeiro, OKpais de Machado de Axsl«;ele,


1838--
pintor e dourador, ela, agregada da chácara da rica portuguesa
l). MariaJosé de Mendonça Barroso. O InatrirnÓnio é
celebradona capela da chácara, no Morro do Livralnento.
de junho, nasce, no Rio de Janeiro, Joaquilll Maria
1839-- Elli 21
Machado de Assis,filho de Francisco José de Assis e Maria
Leopoldina Machado de Assis (ela adotou o norue Leopoldina
no Brasil, etn hornenagelll à de D. Pedro II).
de Machado, Maria.
1841—Nasce a irru,i
1845—Morrern,durante uma epidemia de varíola, a irmã do escritor
e a Inadrinha dele, D. Maria José de Mendonça Barroso. Na
Inglaterra, é aprovada a Lei Aberdeen, declarando piratas os
navios negreiros brasileiros.

Aquarela retrata o navio negreiro luso-brasileiro Albanez, capturado por


navio inglês de combate ao tráfico de escravos,em Angola, em 1845.

219
Machado de Assis
quase póstu.mas de
Me:nór.as

*'Desembarque".gravara de Rugendas, em Viagempitoresca através do Brasil.

1849 —Morre, tuberculosa, Maria Leopoldina, mãe


de Machado.
1850 —E assinada a Lei Eusébio de Queirós,
proibindo o tráfico de escravospara o Brasil.
1854 —Francisco José, pai de Machado
de Assis,
casa-secom Maria Inês da Silva.
No mesmo ano o jovem
Machado foi
trabalhar na tipografia de
Paula Brito, na
atualPraçaTiradentes.
Em 3 de outubro,
publicou, no Periódico
até o momento, dospobres, o que,
consta como seu Gravura retrata o
poema, o soneto primeiro
"À Ilm a Sr a D. editor Francisco de
P.J. A"
220 Paula Brito.
v '-da e da oh: a
de de Assis

adnutido como aprendiz de tipógrafo na Tipografia


Saclonal,exercendo o oficio até 1858.
Segue como revisor de provas de Paula Brito. De 11 de abril
até 26 de junho do ano seguinte, escreve etn O Paraíba,de
Petrópolis.Também colabora com o Correion:crcantil, do
qual fora re\ñsor. Chega ao Rio o poeta português Faustino
,Xxer de irruio de Carolina,futuraesposade
Nlachado.

1859---Passa a escrever regularmente na revista O espelho,


fazendo crítica teatral, entre outros textos.Auxiliao
escritor francês Charles de Ribeyolles na tradução
de O Brasilpitoresco.
1860 a—Machado entra corno redator para o Diário do Rio dcJaneiro,
onde pernianece até 1867. Deste ano até 1875, escreveupara
A semana ilustrada.
1861 —Publica a comédia Desencantose a sátira Queda que as "ltllhcrcs
tint para os tolos.

QtT.DA

AS MULHERES

Capa da revista N. 319.


do
Semana ilustrada,
para
Rio de Janeiro,
a qual Machado
escreveu poemas,
contos.
crónicas e Folha de rosto de um
dos livros traduzidos
por Machado de Assis.

221
guase póstumas de Machado de Assis

1862 —Colabora conl a revista Ofuturo, de Faustino Xavier


de Novais,
e com o Jornal dasfanúlias.E admitido, a 31 de dezembro,
corno sócio do Conservatório DrannáticoBrasileiro,onde
exerce a função de censor teatral.
1863 —Publica o Teatro dc Alachadodc Assis, volume que se compõe
de
duas comédias, O protocoloe O cantinhoda porta.
1864 —Morre Francisco José, pai do escritor. Machado de Assis,no
mesmo ano, publica seu prinleiro livro de versos,Crisálidas.
1866 Com a morte, no Porto (Portugal),da mãe de Faustino
Xavier de Novais, sua irmã Carolina embarca para o Brasil.
Machado lança a comédia Os deusesdc casaca.Também
pubhca, no Diário do Rio dcJaneiro,sua tradução do romance
Os trabalhadoresdo rnar, de Victor Hugo, que sai em três
volumes no mesmo ano.Visitando Faustino Xavier de Novais,
conhece Carolina.

CIIR\SALIDAS

g.cs.oo ot

O escritor também Folha de rosto de


colaborou com o Crisálidas,primeiro
Jornal dasfantílias. livro de poemas de
Machado.
O escritor francêsVictor Hugo teve
do mear
seu hvro Os trabalhadores
traduzido por Machado de Assis.
222
(Ia v.itla

Ordem da
Placada Itnperial
1829 para
Rosa,criada enl
perpetuara memória do
segundocasamentode dom
PedroI, com dona Amélia
de Leuchtenberg.

Carolina em 1869,ano em que se casou


com o escritor.

1867—Alémde ser agraciado por D. Pedro II conl a Ordem da Rosa,


no grau de cavaleiro,é nomeado, a 8 de abril, ajudante do
diretor do Diário Oficial,cargo que exerceu até 1874.
1869 —A 16 de agosto, morre Faustino Xavier de Novais. A 12 de
novembro, Machado casa-se com Carolina Augusta Xavier
de Novais,na capela particular da casa do Conde de São
Mamede, no Cosme Velho.
223
Memórias quase postumas de Machado de Assis

1870 - Lança seu segundo


volume de
Falenas, e Contos./lll/llincnses.
1871 - E assinada a Lei do Ventre
Li\Te,em
28 de
1872 Publica seu primeiro romance,
Ressurreição,e integra a comissão
do
Dicionário ntarítñno brasileiro.
1873 —Publica o livro de contos Histórias
da
"Icia-noite.E nomeado, a 31 de
dezembro,
primeiro oficial da Secretaria de
Agricultura, Comércio e Obras
Públicas.

Alegoria à Lei
do Ventre Livre.

Machado de Assis e
alguns personagens
do romance
Ressurreição,em
ilustração publicada
na Semana ilustrada.

224
de seternbro a 3 de novembro, publica, em O Globo,
Pe 06
-
A /llão e a Illva,editado no mesnoo ano.
o romance
terceiro volume de versos, Allicricanas.
Pilblicaseu
1875
partir dejulho deste ano até abril de 1878, escreve em todos
1876—A
os números da revista Ilustraçãobrasileira.De 6 de agosto a I I
de setenlbro,publica no Globoo romance Helena,editado no
Iliesmo ano. Em 7 de dezembro, é promovido a chefe de seção
da Secretaria de Agricultura.
grande aniigo José de Alencar.
1877-eMorre seu
1878-- De 1.0de janeiro a 2 de março, publica, em O Cruzeiro,
o romance laiá Garcia,editado no mesmo ano. A 27 de
dezenlbro,entra em licença e segue, doente dos olhos e
dos intestinos, para Friburgo, onde fica até março de 1879.
Durante o período, começa a escrever MeniÓrias pdstuntasde
Brás Cubas.

Retrato de José de Alencar,


grande amigo de Machado.

TATA GARCIA
MACHADO DE ASSIS

ra St •

n. 24: Livrara ra et : .U-

••OOO

Anúncio da primeira edição


do romance laiá Garcia.

225
Machadodo Assis

1879 outiho, cotueça a na Ret'ist,t lhasileir,l.


No
até, pelo tueno.s,31 de tnarço de 1898
e«creve na
tvvi<taA que publica, entre outrok
trabalhos,o
rotuance Quit:ats Borba.
ISSO—A6 de tk•xrreito,entra noxatnente licença,por estar
sotivndo dos olho«.A 28 de tuarço, é designado oficial
de gabinete do tninistro da Agricultura, Manuel Buarquede
Macedo. E trptvsentada, no Teatro de D. Pedro II, a conlédia
Ta, só tu, puro amor... , por ocasião das festas organizadas
pelo Real Gabinete Português de Leitura para comemorar
o tricentenário de Camões. Publica, na Revista Brasileira,o
romance Alentórias postunt,ts dc Brás Cubas.

a cour

Capa da revista feminina


A Estacão,na qual
Machado publicou
contos e o romance
Quincas Borba em
folhetim.

226
Anala

BRAZ CUBAS

Folhade rosto do
rornance Afonórías
póstumasde Brás Cubas,
consideradomarco
micialdo Realismo no
Brasil.

Casa da Rua Cosme Velho, n? 18,


onde Machado c Carolina moraram.

e Tu, só
1881 -- Publica em volume Memórias pÓstumasde 13rásCubas
tu, puro amor...Escreve com assiduidade na Gazeta de Notícias,
redigindo as crónicas intituladas "A semana".
1882-- Publica o livro de contos Papéisavulsos.A 5 de janeiro, entra
em licença de três meses para tratar-se em Nova Friburgo.
1884—Publica Históriassem data e muda-se, com Carolina, para a
Rua Cosme Velho, 18, onde viverá até morrer. Antes, haviam
morado nas ruas dos Andradas, Santa Luzia, da Lapa, das
Laranjeirase do Catctc.
227
Cotuctnoras•.io da asstnatura do decreto da
Aboll€io no l).wo ltnpertal do Rio de Janeiro.

1888 Abol:çsio da escravatura no


Brasil, corn a pronmlgação da lei
Aurea. Por decreto da Princesa
Isabel,Regente do Império,
é a oficial da Ordem
da Rosa. Lei do 13 de Maio.
Desfila,no dia 20 do mesmo
Inés, no préstito organizado para
celebrar a Abolição.
1889 Em 30 de março, é pronaovido
a diRtor da Diretoria de
Comércio, na Secretaria da
Agricultura. A República é Ilustração publicada em 16 de
novernbro de 1889 na Rct'ista
proclarnada,o que provoca o
ilustrada,em comemoração à
exilio da família ilnperial. Proclamaçâo da República.

228
Fotocronologia da vida e da obra de Machado de
Assis

1891 Quincas Borba é publicado volunne.


IMorre Maria Inê<,a Inadrasta de
Nlachado. QUINCAS BOIIBA

1893—Enl 3 de dezernbro, assillne a


direção-geral do Ministério da Viação.

1895 —Voltaa escrever na Revista brasileira.


1896 Publica I 'árias histórias. Elli 15 de
dezembro, dirige a prilneira se«scio
Folha de rosto do
preparatória da fundação da Acade1Hia
rornance (Quincas Borba,
Brasileirade Letras, que preside até o publicado etn volume
finl da vida. pelo editor B. L. Garnier.

O Pedagogium, museu onde foi realizada a primeira sessãopreparatória


da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro.

229
Feiha de tosto do tontance IX'") Casmurre
pela Garnier etn t 899.

da no Ministério da Viação,é posto em


em I t de Janetax retornando como secretário
Sevrrtno \'ietra. Posteriormente, exerce as
tunções cotn Epitácio Pessoae Alfredo Maia. Síl\io
puk'liea livro sobre Machado, em que lhe faz muitas

IS99 —St»ch2do publica Dem Casmurroe Páginasrecolhidas,


em que aparece seu novo li\T0 de

-- Retoma o cargo de diretor da Secretaria da Indústria,no


Mzn:széno da Vtaçio, em IS de novembro. Um mês depois,
assume Direçio-geral de Contabilidadeno Ministério.
Euclides da Cunha publica Os sertões.
1904 - Publica o romance Es,rtieJacó. Em janeiro, segue para
Friburgoscom a esposa enferma. Carolina morre em
20 de Outubro. dias antes de completaretn 35 anos
de casados.
—Publica d' casa relha.
Fotocronologia da vida e da obra de Machado de Assis

1908 -- Publica seu últitno rornance, AleynorialdeAires. Em 1.0de


junho, entra enl licença médica. Morre na naadrugadade 29
de setembro, às 3h20, enl sua casa. E enterrado, segundo sua
deterrninação, no jazigo perpétuo 1359,junto a Carolina, no
cetnitério São João Batista.

Cortejo fÚnebre conduz o corpo do escritor Machado de Assis


até o cernitér:o SãoJoão Batista.

da
1-101nenaoe111
HOMENAGEMDE FON-FON A MACHADODE ASSIS

IVIachado de Assis,
publicada na edição
de 3 de outubro de
1 quatro dias após
a Inorte do escritor.

231
Bibliografia
1. Obras d? Machado de Assis

1.l. Teatro
(t-antasta dranúttca). 1861.
(comédias). t Sta.
(comédia), t S64.
[Yu:o (cornédta), 1866.
s; raro amerm(cornédl.i), ISS I .

Poesia
I S64.

1875.
Poci.zs (Crisálidas, FdlOtdS,Americanas,

1.3. Contos
Contosflumina:ses, 1870.
}fistÓriasd' meia-noite, 1873.
Papéis avulsos, 1882.
4. Histórias sem data, 1884.
Várias histórias, 1896.
Páginas recolhidas, 1899.
Relíquias da cas,l velha, 1906.

233
1.4, Rontanccs
Rcs3ttrrciUio,1872.
c a lut'cl, 1874.
1 1876.
Gania, 1878.

Quinots 130rl'et,IS91
Casn:urro, 1899.
Esaú e Jacó,
Alentorial dc Aires, 1908.

*Observação: além disso, Machado de Assis publicou


traduções de obras de Victor Hugo, Alexandre Dumas,
Charles IDickens e Inuitas críticas literárias e teatrais.

2 . Obras de Machado do Assis


utilizadas nosto livro

ASSIS, JMachado de. "A Carolina". In: Dispersas.Rio de


Janeiro: Philoblblion, 1957. Disponível enr <http://
tnachado.nlec.gov.br/images/stories/pdf/poesia/

'SA cartomante", In: Alachado dc Assis: contos


(seleção de Deomira Stefani). 7. ed. São Paulo: Atica,
1979.
Crisalidas:poesias.Rio de Janeiro: B. L. Garnier,
1864. Disponível em: <www.brasiliana.usp.br/bbd/
handle/ 1918/00201500#page/ 5/mode/ 1up>.

234
Bibliografia

. ' 'Livros e flores", Falcnas.Rio de Janeiro: B.


L. Garnier, 1870. Disponível enr <wxwvv.brasiliana.

mode/ 1up>.
. Alctnorial dc Aires. Rio de Janeiro:
B. L. Garnier, 1908. Disponível enr
<www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/

de Brás Cubas. São Paulo: FT D,


MentÓriaspÓstt111tas
2010.
. "Missa do galo", "O espelho" e "Teoria do
medalhão", In: Contos.São Paulo: FT D, 2002.
O alienista.3. ed. São Paulo: FTD, 1999.
Quincas Borba. (ed. renovada). São Paulo: FT D,
2011.
Relíquias da casa vellld,enl Obra cotnpleta,Alacltado
1994.
dcAssis,vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,

3. Obras sobre Machado de Assis

de Assis etn
BARBOSA, Francisco de Assis. Machado
Illinidtura.São Paulo: Melhoramentos, 1958.
Sio Paulo:
BARBOSA, João Alexandre (org.). Textoscríticos.
Perspectiva; Brasília: INE, 1986.
GLEDSON,J0hn. Machado de e história. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1986.

235
MAGALHÃESJÚNIOR, Raimundo. Vida obra dc
.llachado dc Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1981.4u
MURICY, Kátia. A razão cética:Machado dc Assis e as questões
do seu tcrnpo.São Paulo: Conapanhia das Letras, 1988.
PASSOS,José Luiz. Alac/lado de Assis: o ronlance conlpessoas.
São Paulo: EDUSP/Nankin Editorial, 2007.
PEREIRA, Astrojildo. Alachado de Assis: ensaios c apontanwntos
avulsos.Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Alachado de Assis: estudo críticoc
6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
biográfico.
Edusp, 1988.
ROMERO, Sílvio. Xlachado de Assis: estudo conwarativo de
literatura brasileira.Campinas: Unicamp, 1992.
SCHWARZ, Roberto. Uni tnestre na periferia do capitalistno:
MachadodeAssis.São Paulo: Livraria Duas Cidades,
1990.

4. Outras obras utilizadas


BARELLI,Ettore; PENNACCHIETTI, Sérgio. Dicionário
dascitações.
São Paulo: Martins Fontes, 2001.
GOETHE,Johann Wolfgang von. Fausto, tradução de
António Feliciano de Castilho, Versão para eBook',
eBooksBrasil.org, (02003.
MARMOTAFLUMINENSE,
folhetins, e
variedades,Rio de Janeiro, em 3
de outubro de 1854.
P03RFS.- ae número

*achado

Disponivel em:
/cgilua-exe/sys;stam

EABOSA- Rui- a \lachado de Assis.Disponfirl

Basiliana USP —acervo digitalizado das primeiras edições


das obras machadianas

XLch2do de Assis —página da Academia Brasileira de Letras

Machado de Assis —obra completa

237
Meu ami o

Escritor

s vésperas da morte, o escritor Machado de Assis


decide registrar num caderno alguns fatos relevan-
tes de sua vida: a infância pobre, a relaçãocom a
família,a lenta ascensão social, o emprego público, o amor por
Carolina e sua trajetória de escritor. Entrelaçando fatos reais
e ficção,este romance mostra Machado na intimidade do dia
a dia, e sua amizade com os escritores Manuel Antônio de
Almeida,José de Alencar e Euclides da Cunha, entre outros.
Certo dia, Machado adota como secretário o filho da
lavadeirada família, Hermenegildo. O rapaz, de 16 anos, passa
a cuidar da limpeza e organização do escritório do autor.
Nasce,então, uma bonita amizade.
Uma história tocante que nos pernxiceiliiaoinarcomo
nasceramalguns contos e romanceq do grande escritor.

ISBN 978-85-322-9284-1
(0

co
FTD 9 788532 292841
A coleção Meu amigo escritortem como
objetivo principal aproximar os jovens estudantes
dos grandes escritores da Literatura Portuguesa e
Brasileira. Propõe uma aproxhnação ficcionalcom
o autor e o contexto em que estavainserido.
As ficções, amparadas na realidade e numa
sólida bibliografia de apoio, trazem informações
sobre a formação e a carreira dos escritores,
as obras produzidas por eles, os diferentes
momentos históricos, as escolas literárias e seus
respectivos gêneros.
Alvaro Cardoso Gomes
Coordenador da
Coleção Aleu Alliigo Escritor

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