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Capítulo 1:
São Paulo.
Alguém lhe disse mais tarde, que poderia ser do proprietário do Banco e apesar
disso, ninguém jamais o tinha visto ou sabia como ele era, por mais que
houvesse todo tipo de história ao seu respeito. Aquele foi o único bilhete que
recebera dele e consequentemente a única prova de sua existência. Ou talvez, o
resquício encantador de que ele podia ser uma lenda inventada pelos seus
próprios funcionários.
Ajeitou seu conjunto social de saia lápis e tailleur preto sobre o corselet do
mesmo tom, que lhe conferia o ar elegante que ela sempre buscava ter com seus
clientes, por mais que todos eles fossem, em sua maioria descendentes de
irlandeses, escoceses ou britânicos, fugidos da Europa em Guerra, há mais de
setenta anos e então estabilizados na Nova América, com uma promessa de
ganhos em uma terra diplomática e neutra. Eram camponeses, mas eram
simpáticos.
Arrumou uma mecha do cabelo que se soltou do penteado e empurrou os
óculos de armação negra e pesada pela ponte do nariz, enquanto rumava
elegantemente para a mesa redonda de vidro, onde o homem a aguardava,
bebericando em uma xícara de café.
— Voltei — ela disse, sorrindo e ele sorriu de volta, mostrando dentes
amarelados pelo fumo e as sardas cobrindo o rosto. Ele era bem mais velho do
que ela, provavelmente estava perto de seus sessenta anos, ou tivesse vivido
uma vida sofrida o bastante para tornar seus traços fundos e pesados. Não sabia
quais foram suas provações, mas elas lhe renderam muito bem.
Sentou-se na cadeira giratória e ajeitou a saia sobre as coxas cobertas pela
meia-fina escura, enquanto prosseguia o depósito do homem mais velho e ele
observava o estado de suas economias.
O Ór Íon Bank não guardava dinheiro na sua forma mais simplória de dizer,
não transferia ou trabalhava com cédulas ou moedas correntes. O banco
trabalhava única e exclusivamente com ouro, fossem barras ou moedas antigas,
guardadas pelas famílias.
O homem franziu a testa enrugada para a planilha de acompanhamento e
balançou em uma negativa, apontando para um dos números digitados ali,
como se tivesse visto o próprio diabo entre os zeros e a vírgula.
— Tem algo de errado — ele volveu um pouco assustado, com os olhos
arregalados — sumiram vinte moedas, não cheguei a usá-las, pois são herança
de família, mas não constam nesse seu papel, pode verificar?
Foi a vez dela de franzir as sobrancelhas.
— Só um momento.
Cruzou o corredor que variava entre pedras de granito e piso frio dourado,
iluminadas pelas luminárias clássicas e incandescentes, já que o dono não
admitia nada de luzes frias naquele banco. A porta negra no final do corredor
abria-se para o escritório do seu chefe, o Sr. De Luca.
Ela pousou uma mão sobre a maçaneta, guardando o arquivo do cliente entre o
braço e a lateral do corpo, enquanto batia três vezes contra a porta com a mão
livre. Ela ouviu um educado “entre” abafado pela madeira espessa e então
girou a maçaneta gelada, abrindo a porta para dentro e sendo saudada com o
cheiro de tabaco, whiskey e colônia masculina amadeirada.
Sentado na poltrona de couro, o Sr. De Luca terminava alguma anotação em
uma agenda aberta, cercado de papéis e planilhas, um copo de bebida e um
cinzeiro com diversos charutos dispensados e um ainda aceso que liberava um
fio de fumaça cinzenta, espiralando pelo escritório esfumaçado.
— Oi, Cora... o que acontece? — Ele questionou, erguendo os olhos para ela
rapidamente e depois os voltando para o papel.
Havia uma regra muito particular lá: Cordélia fora convidada a nunca usar seu
nome inteiro, então ela era conhecida apenas como Cora tanto entre seus
colegas como entre seus clientes. Seus cartões de visita e até mesmo a placa
dourada em sua mesa vinham com seu apelido de infância e apesar da
estranheza, ela se acostumou àquela particularidade.
Ele era imensamente alto, magro e de cabelos ruivos aloirados penteados para
trás, com uma barba que tinha a intenção de ser arrumada, encobrindo o queixo
longo e pontudo. Era um homem muito bonito, com traços fortes e um rosto
esculpido para parecer algo entre profundamente masculino e nobre.
— O Sr. Brus notou vinte moedas faltantes no seu cofre pessoal. Queria pegar as
chaves para conferir se não houve algum erro na contagem. Caso elas estejam
faltando, como eu devo prosseguir?
Os olhos verdes dele se voltaram para ela com um misto de terror e ansiedade,
como se ele tivesse treinado àquelas emoções e não as sentisse realmente. E essa
era uma impressão que ela tinha de absolutamente qualquer emoção
demonstrada por ele, como se De Luca não soubesse muito bem como expor o
que estivesse sentindo e com frequência recorresse a alguma estratégia teatral.
Seu chefe ergueu o rosto e depois o corpo de uma vez, apoiando as costas
contra o encosto da poltrona de couro e então tomando um gole de sua bebida.
— Inferno, eu sabia que esse dia chegaria — ele torceu os lábios e balançou a
cabeça parecendo transtornado, antes de acionar seu telefone na mesa e ligar
para a atendente que ficava na mesa ao lado da dela.
— Isabel? — Ele chiou, mostrando exaustão na aparência e na voz — o Sr. Brus
ainda está aí? Ah, sim. Diga a ele que pode voltar amanhã, eu resolverei o
problema. Sim. Muito obrigado, querida — e desligou o telefone, voltando
novamente os olhos cansados na direção de Cordélia.
Antes que ele pudesse dizer algo, o seu cliente empurrou bruscamente a porta
da sala, com uma expressão de puro terror estampada em seu rosto. Os olhos
velhos e marejados espalharam um arrepio por Cordélia, como se o homem
tivesse visto a própria morte com aquela notícia.
— Eles vão nos matar, se não acharem as moedas — ele gritou, deixando
lágrimas cristalinas deslizarem pelo seu rosto — minha família será caçada e
brutalizada! Vocês não entendem?
— Por favor, tenha calma — entoou seu chefe, lentamente, quase como um
mantra.
— Não! Todos estamos mortos! Mortos! Aqueles demônios virão de debaixo da
terra e arrombarão minha casa! — O homem rosnou sua lamúria, espalhando os
papéis do banco que estavam depositados sobre uma escrivaninha — devorarão
os meus filhos, estuprarão minhas filhas e levarão elas e meus netos como
escravos! Comerão os seus corações e o meu!
— Brus! — Chamou o Sr. De Luca — são apenas histórias! Acalme-se, nós
pegaremos as moedas de volta!
Um segurança novo atravessou pelo corredor e escoltou o homem para fora,
que ainda chorava em pleno desespero, implorando que o ouro fosse
encontrado antes que todo aquele prenúncio de morte caísse sobre suas cabeças.
Cordélia estava completamente congelada quando voltou os olhos para o seu
chefe, que suspirou lentamente, colocando os pensamentos no lugar.
Moveu alguns papéis sobre a sua mesa e então se ergueu, batendo as mãos
contra os bolsos e xingando baixinho, enquanto revirava o escritório fumacento
e desarrumado, até encontrar o que parecia ser um cartão sob uma agenda
velha e esquecida.
Ele puxou o cartão branco e olhou as letras negras impressas em sua superfície
para checar se era realmente o que ele estava procurando. E então se virou para
Cordélia novamente, segurando o cartão entre os dedos, como se tocasse no
pedaço de algum cadáver, querendo se livrar dele o mais rápido e
definitivamente que pudesse.
— Aqui, querida — ele disse novamente, como dizia para todos os que
trabalhavam naquele banco e até para os clientes — ligue para esse cara e
explique para ele o que aconteceu. Diga que é muito urgente e que quero que
isso seja devolvido o mais rápido possível.
Ela meneou a cabeça em confirmação, pegando o cartão dos dedos acinzentados
dele, cobertos de fuligem do charuto. Agradeceu educadamente e saiu da sala,
girando a maçaneta às suas costas, com o arquivo novamente entre o braço e o
corpo, como estava tão acostumada a fazer.
Quando se sentou à mesa novamente, ela olhou o cartão com mais atenção e
então franziu o cenho, completamente espantada com o que lia naquele pedaço
de papel empoeirado e sujo de fumo.
Uma risada borbulhou em sua garganta quando tirou o fone do gancho, mas
soube ser profissional o suficiente quando uma voz masculina e rouca a
atendeu do outro lado da linha.
— Hum — ela fez, deslizando os olhos pelo cartão novamente e apertando os
lábios, antes de soltá-los suavemente — Sr. Alessandro Beleni, Mestre nas Artes
Arcanas? Eu gostaria de marcar uma reunião no Ór Íon Bank com caráter de
urgência, em nome do Sr. De Luca, a respeito do sumiço de algumas moedas de
ouro.
O homem concordou rapidamente em se apresentar na recepção no final da
tarde, quando o banco se fecharia para as visitas dos clientes e eles poderiam
facilmente lidar com aquela situação em um ambiente mais calmo e ameno,
onde talvez ele pudesse explicar a ela, porque o sumiço de algumas moedas de
ouro necessitava da ajuda de um ocultista.
Puxou sua gaveta para guardar o novo cartão e foi surpreendida pelo que
parecia uma rosa solitária, vermelha como se suas pétalas fossem mergulhadas
no mais puro sangue, pousada sobre um envelope negro sobre sua papelada
habitual. Ele estava selado com cera vermelha, marcada com o desenho de um
besouro de asas abertas, revelando em seu interior um olho humano que
parecia olhá-la fixamente.
Ela puxou a tampa, descolando o selo e revelando uma carta em seu interior, de
um material firme e ligeiramente perolado, aveludado ao toque, quase como
um convite para uma festa elegante demais para que ela fosse convidada.
O aroma que se desprendeu dele era de sementes de maça, especiarias exóticas
e mistérios noturnos, como uma combinação perdida em algum mundo dos
sonhos pelo qual ela houvesse caminhado. Em seu centro, estava escrito em
uma caligrafia negra e inclinada:
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Á sua frente havia o que se parecia com uma longa cortina cor de vinho
fechada, tão misteriosa quanto os segundos que precedem o começo de uma
ópera. Ela era decorada com suas faixas brilhantes, compostas de lantejoulas em
tons de cereja, formando listas verticais, que se tornaram sombreadas com o
passar dos anos e o envelhecer das risadas que aquelas cores já tinham
saboreado.
Uma névoa fina e gelada se escovava por debaixo da grandiosa cortina,
envolvendo os tornozelos de Cordélia e espalhando um calafrio por seu corpo,
como se sentisse dedos fantasmagóricos deslizarem por sua pele em uma carícia
lenta. Uma luminosidade leitosa se deitava e se expandia pela neblina, como se
delimitasse um portal para um outro mundo.
Ela quase podia ouvir um sussurro espectral, vindo da fresta, algo que poderia
ser o vento batendo em uma janela ou deslizando por galhos secos, mas que
ainda assim parecia uma voz aveludada, cavalgando na brisa perfumada.
Eu estou aqui...
Cordélia se aproximou, sentindo a solidez de seus saltos contra a madeira firme
e encerada, atravessando os lençóis nebulosos e erguendo a mão a sua frente, e
sentindo o tecido aveludado, deixando a poeira se grudar aos seus dedos como
fuligem.
Venha para mim.
Quando abriu uma fresta, ela foi empurrada para dentro com uma lufada de
vento que tinha o mesmo aroma de seu envelope, pisando docilmente sobre o
que parecia grama fresca verdejante.
Quando ergueu os olhos, Cordélia percebeu que estava em uma campina cor de
esmeralda, que reluzia para o sol que deslizava sobre ela, completamente
cercada por uma densa floresta escura e sibilante. Cordélia se ergueu
lentamente, admirando o que acreditou que seria uma alucinação e piscou,
tentando interromper a realidade daquilo, a solidez daquele lugar.
A grama alta acariciava seus tornozelos quando ela deu alguns passos à frente e
notou o que parecia ser um pequeno lago luzindo para os raios solares, com
águas tão claras que pareciam prateadas.
Ela suspirou ao ver a forma leitosa e majestosa de um corcel trotar às suas
margens, batendo as patas sedosas contra o chão, enquanto sua crina volumosa
e ondulada era suspensa pela brisa.
Ele relinchou para ela com movimentos elegantes, quase como se houvesse uma
inteligência inesperada habitando sob sua pele e Cordélia sentiu um arrepio
atravessar seu corpo lentamente, como se os dedos gelados do medo
inesperadamente envolvessem os ossos de sua coluna, alertando-a sobre a
ilusão daquilo.
O sol deslizou através do pelo perolado, iluminando sua pelagem como se fosse
alguma coisa sobrenatural, brilhante como se houvesse ouro e prata abaixo dela
e não músculos e sangue. Quando sua mente começou a se questionar sobre o
que estava vendo, foi como assistir um filme de terror antigo e aos poucos,
admirar o mistério se quebrando, percebendo as falhas nos truques.
Algo em seu interior gritou que havia qualquer coisa de errada com
aquele cavalo, com o formato de seus traços, com a posição de seus olhos, ou
talvez suas orelhas. Com gelo se derramando em suas veias e a forçando a dar
um passo para trás em completo terror, ela percebeu que a aparência equina era
meramente uma camuflagem natural para uma espécie de lagarto imenso, com
olhos dourados no topo da cabeça, que estavam vividamente focados nela.
Teve a nítida impressão de que iria desmaiar, quando alguém envolveu
dedos longos ao redor de seu braço, arrancando um grito de sua garganta e
fazendo-a voltar os olhos na direção oposta.
Suas pernas estremeceram quando Cordélia encarou a criatura a sua
frente, liquefazendo seus músculos e sua composição, como se ela
simplesmente não pudesse respirar ou existir, só pudesse admirar: ele era um
homem alto, de pele dourada luzente como se fosse beijada pela luz solar por
tantas vezes, que ela finalmente estivesse instalada em seu interior.
O rosto marcante e poderoso ostentava um par de olhos felinos
completamente dourados, como se fossem forjados do metal precioso e
brilhassem com todo o seu poder, cada traço em seu rosto era perfeitamente
esculpido e posicionado para compor uma beleza feral e devastadora, como se
ele fosse feito de todas as coisas que não podiam ser domadas pela mão do
homem.
Cabelos dourados deslizavam em ondas robustas por seus ombros largos
e se revolviam com as carícias do vento, volteando ao redor de um par de
chifres de cervo que se erguiam poderosamente de sua cabeça, claros como
marfim.
Havia um aroma nele, como se sua pele exalasse o perfume das árvores e
das folhas, como se a primavera ainda cantasse em seu interior, desabrochando
flores ao alvorecer, beijadas pelo orvalho. Enquanto ele olhava para ela,
Cordélia sentia que todas as árvores, flores e abelhas olhavam também, como se
a floresta vivesse em seu interior, feroz e fulminante.
Ele deslizou o um dedo enluvado de couro negro por seu maxilar,
focando completamente seu olhar nele, como se ela fosse capaz de desviar os
olhos de sua presença hipnotizante — ao invés da outra coisa que aguardava
nas margens do lago.
— Não pode olhar muito tempo para ele — a criatura de olhos e
madeixas douradas a advertiu e sua voz era sedosa e grave, arranhando contra
a sua pele e deslizando um arrepio através de seu corpo — ele é um kelpie… vai
apenas incitá-lo à atacar, tem que desviar o olhar, mantê-lo em sua visão
periférica, mas nunca olhá-lo diretamente por tanto tempo — os olhos dele
brilhavam como as águas de um mar de ouro — ele é um predador — ele
sussurrou se aproximando, envolvendo-a com seu aroma e seu poder, secando
sua garganta com sua presença poderosa — e eu também s ou...
Os olhos de Cordélia se arregalaram quando ela se afastou, sentindo seu
corpo ser puxado para a direção oposta, enquanto a figura dele se afastava
como uma visão distante, um sonho de verão que se perdia em meio à
realidade.
— Corra — ele sussurrou desembainhando uma espada que cantou ao ser
revelada, enquanto seu portador ainda se mantinha de costas para o kelpie, que
se aproximava lentamente, desvelando cada vez mais sua verdadeira natureza
atormentadora.
Ela estava prestes a gritar quando sentiu suas costas baterem contra algo
gelado.
Quando olhou para os lados percebeu que estava jogada contra a parede
branca do corredor. Sua respiração ofegante retumbava contra as paredes,
cortando o silêncio, enquanto seu coração tamborilava em seus ouvidos, como
uma canção tribal de guerra.
— Mas que diabos foi… — ela nem sequer se permitiu terminar.
Quando voltou à sua cadeira, ela suspirou e tomou um gole de seu café,
enquanto observava o Sr. De Luca dizer casualmente que todos os outros caixas,
atendentes e gerentes estariam dispensados após as 16h e que apenas Cordélia
deveria permanecer no banco, para resolver assuntos importantes de um
cliente.
Ela lançou um sorriso desnorteado para a atendente ao seu lado e puxou
o colar de ferro que se envolvia ao redor de sua garganta, sentindo o cordão
sufoca-la e o guardou em sua gaveta sem olhar para checar se o envelope ainda
estava lá.
— Você está bem? — Questionou Isabel voltando os olhos para o
corredor sombreado, sinalizando que tinha visto o que quer que havia
acontecido com ela — talvez precise de uma folga, teve um cliente difícil hoje.
— Estou bem — mordeu os lábios respirando lentamente — acho apenas
que sonhei acordada...
— Você que sabe — a jovem deu de ombros e continuou a analisar a
planilha à sua frente.
O relógio cuco uivou que finalmente estavam no final da tarde e Cordélia se
ergueu da cadeira se despedindo dos demais colegas. Bebeu um gole de água,
enquanto via o seu chefe passar por ela, arrumando a gravata e logo em
seguida, alinhando o paletó escuro. Ele parou antes de deixar completamente o
hall onde ela recepcionava os clientes e então se voltou para ela, tirando uma
poeira invisível de seu ombro.
— Cora — o Sr. De Luca disse suavemente, ainda de longe, dando passagem
para uma das moças da limpeza e segurando um calhamaço de papéis
amarelados entre os dedos longos e ainda sujos de fuligem — posso contar com
você para resolver esse assunto, não é? Eu digo, discretamente.
Ela franziu as sobrancelhas. Discretamente era uma palavra básica em uma
rotina financeira, mas o jeito com que ele havia pontuado a necessidade de
discrição naquele assunto causou um pequeno arrepio pela sua pele.
— Tem algo que eu deveria saber, Sr. De Luca? É um desvio de dinheiro?
Fomos roubados? O que foi tudo aquilo?
A impressão de ansiedade saiu dos olhos do Sr. De Luca como um vento de
verão atingindo a praia, uma lufada e não estava mais lá, trazendo novamente
um pouco da sua cor rosada para sua pele que parecia macilenta desde a
notícia.
Uma gargalhada rouca borbulhou de sua garganta e ele se curvou para rir com
gosto, como se fosse a melhor piada que ouviu em anos. Quando voltou a sua
posição normal, ele limpou uma lágrima que manchava seus cílios ruivos e
suspirou, controlando o seu ataque histérico.
— Não, não é um desvio. Nenhum esquema, nenhuma fraude — ele respirou
com um pouco mais de peso dessa vez — ninguém toca naquele cofre há muito
tempo, apenas eu tenho a chave e a contagem é muito bem monitorada e feita
por alguém de minha extrema confiança. Eu sei o que está por trás disso, mas
preciso que Alessandro me confirme essa teoria.
Ele mudou o peso de um pé para o outro, como se tentasse achar as palavras em
sua própria mente e tivesse dificuldade para agarrá-las, na nuvem caótica de
informações que se derramava sobre ele.
— Confio em você — o Sr. De Luca apertou os lábios — você dá aulas sobre
contos de fadas, não é?
Ela piscou e balançou a cabeça, atordoada com a mudança rápida de assunto.
— Folclore feérico — Cordélia corrigiu franzindo o cenho e empurrando as
armações negras de seus óculos pesados, pela ponte do nariz — foi há muito
tempo, eu não leciono mais sobre esse assunto. Foram só algumas aulas, em
uma oficina de literatura.
Ele deu um tapinha de incentivo em seu ombro e estalou a língua no céu da
boca, como uma galã dos anos oitenta.
— Então você vai saber o que fazer! — Ele girou sobre os calcanhares e passou
pela porta giratória tranquilamente, com suas pernas longas vencendo
rapidamente o caminho pela calçada cinzenta, abrindo o guarda-chuva para se
proteger da garoa fina e chata que caia, tão típica do meio de abril, com seu
vento gelado e úmido.
Pouco depois que a figura esguia de De Luca desaparecesse em meio a cidade
movimentada, cinzenta e fria, ela conseguiu distinguir alguém que parecia
completamente deslocado naquela multidão embalada em roupas sociais, suor e
cansaço mental.
Ele era alto e bonito de uma maneira que era quase indecente um homem ser.
Tinha toda a postura de um cavalheiro, mas parecia querer esconder a própria
elegância, como um príncipe fugido do castelo para experimentar a vida no
povoado. Seus cabelos longos, lisos e platinados desciam até a altura de seu
quadril, completamente sedosos e reluzindo para as luzes artificiais da rua, que
começavam a se acender.
Ele vestia um imenso casaco bege-acinzentado que lhe dava um aspecto
londrino, sobre um conjunto de terno e calça pretos, assim como sapatos
combinando. Uma gravata ligeiramente frouxa pendia de seu colarinho,
enquanto ele caminhava em direção ao banco, com as mãos enfiadas nos bolsos
largos do casaco.
O loiro passou pela porta giratória e então pousou a sua frente graciosamente,
ligeiramente molhado. Então lhe estendeu a mão longa e lhe lançou um sorriso
charmoso.
— Sou Alessandro Beleni — disse ele e Cordélia apertou sua mão, sentindo seus
dedos longos e gelados engolirem os dela, que pareciam minúsculos perto dos
dele.
— Cora Pontinelli, muito prazer.
Ela apontou para Alessandro o sofá vermelho no meio do Hall e ele se sentou,
se acomodando confortavelmente, enquanto Cordélia reunia as informações em
sua mente para que pudesse passar a eles.
— Hoje descobrimos que algumas moedas de uma conta antiga foram roubadas
do meu cliente: o Sr. Brus. Um antigo pescador irlandês. As moedas são herança
de sua família e ele as trouxe consigo e nós as mantivemos guardadas. Não
sabemos como elas sumiram, mas aparentemente De Luca parecia ter muita
certeza de que você — olhou fixamente para o loiro, com uma sobrancelha
erguida, ainda avaliando como ele poderia ajudar — saberia resolver isso.
Ele inclinou a cabeça, fechando os olhos e ponderando sobre as informações que
Cordélia havia dado a ele, como se montasse um quebra-cabeça com as
pouquíssimas pistas que lhe foram dadas. Até que por fim, Alessandro cruzou
as longas pernas e disse:
— Se De Luca acha que eu posso ajudar, é porque ele pensa que foram Goblins.
— Perdão?
— Eu lembro de você — ele prosseguiu ignorando a pergunta completamente,
como se ele tivesse dito a coisa mais comum que uma pessoa pode dizer a
outra, quando ouro começa a sumir de suas casas — você lecionou quatro aulas
sobre folclore bretão, estava ajudando uma oficina literária e foi convidada. Foi
muito elucidativo, meu barman foi lá só para anotar o que você ia dizer.
Cordélia balançou sua cabeça como se estivesse enlouquecendo e trocou o peso
dos pés sobre os saltos, sentindo as solas doerem finalmente.
— Você disse g oblins? Goblins... baixinhos? De orelhas grandes...?
— Isso.
— E narizes pontudos...
— Sim.
— Saltitantes e com chapéus cônicos?
— Disso eu não tenho certeza, mas digamos que sim — ele meneou a cabeça
positivamente, com um aceno displicente.
— Goblins invadiram o cofre e roubaram as moedas, é essa a sua explicação?
— Não —Alessandro pontuou erguendo um dedo e as sobrancelhas platinadas
— eu disse que se De Luca me chamou aqui, é porque ele acha que se trata de
goblins.
Cordélia bateu as mãos espalmadas contra sua saia negra e se afastou,
completamente consternada com o que aquele lunático lhe dizia. Não
acreditava nem por um momento que estava realmente presenciando aquilo.
— Todavia — Alessandro prosseguiu, observando a consternação nos olhos
furiosos dela — ajuda se você me levar até o cofre, para que possamos ver se
tem algo de errado mesmo, ou se foi um roubo comum.
Ele se ergueu quando Cordélia fez um aceno com a cabeça, ajeitando uma
mecha de seu cabelo atrás da orelha, evidenciando o brilho suave dos brincos
que balançavam em suas orelhas. Alessandro a acompanhou silenciosamente e
a bancária abriu a porta do cofre e deixou com que ele analisasse as paredes de
metal frio e ligeiramente acobreado.
O loiro andou em círculos pelo local, até que entre os seus julgamentos, puxou
um dos gaveteiros e o empurrou para o centro vazio do imenso cofre de metal
gelado. As rodinhas rangeram pelo movimento que não faziam há muito tempo
e então deslizaram até que o espaço atrás do gaveteiro estivesse visível para
ambos.
Havia um círculo ali, feito de cogumelos, brotando do metal como se aquilo
fosse minimamente natural e a respiração ficou presa na garganta de Cordélia,
como se o ar se rejeitasse a sair de dentro dela, estupefato demais para voltar a
circular naquele local.
Círculos de Fada, ela pensou, sentindo o choque percorrer seu corpo, enquanto
era fuzilada por uma quantidade imensa de informações de livros, artigos e
poemas antigos e tentava em vão chegar a qualquer outra conclusão que não
envolvesse aquelas criaturas míticas e repulsivas.
— Bom — volveu Alessandro, apoiando as mãos contra a cintura, fazendo com
que o seu casaco se dobrasse sob o peso delas — agora que sabemos que eles
entraram aqui, temos que os encontrar e descobrir o que eles querem com esse
ouro. Você sabe de onde eram aquelas moedas?
Ela engasgou com o ar, os lábios se abrindo e fechando como um peixe fora
d´água, até que as letras voltaram a se encontrar do topo da sua mente e
passaram a fazer um pouco mais de sentido, para que as palavras fossem
formadas.
— Eu não sei a história completa, sei que era algum artefato antigo da família e
que foi derretido e com o ouro, fizeram aquelas moedas. Aparentemente não
chegaram a usar, já que fugiram para o nosso país e as guardaram aqui.
Cordélia puxou a chave dourada e antiga que segurava no bolso do seu tailleur
e abriu a gaveta onde as moedas estavam guardadas, puxando-a com violência
e fazendo o metal gritar no espaço fechado, raspando ruidosamente.
Sobre o veludo negro do interior da gaveta prateada, não estavam mais as
moedas límpidas e reluzentes que Brus havia entregue a eles. Havia em seu
lugar, um conjunto de moedas modeladas em nada mais do que musgo,
ligeiramente luminoso, que ela conhecia pelo nome de schistostega, que era
comumente chamado de o uro dos goblins.
Jogou a gaveta para o lado e ela bateu contra o chão e quicou com a força do
golpe, jogando as moedas falsas para todos os cantos, antes que a caixa de metal
deslizasse no chão e ficasse nele, tristemente vazia.
— De Luca deve ter decidido me pregar uma peça esse ano — ela sibilou
esfregando os dedos contra a testa, como se tentasse manter a calma.
Alessandro apenas sorriu à sua frente, achando seu pequeno ato de descontrole
aparentemente divertido — bom, vamos ver até onde vai essa gracinha. O que
fazemos agora?
— Conhece o F
ata Morgana?
Capítulo 2:
— Dizia a lenda que quando o Diabo foi expulso do paraíso e percebeu que iria
passar a eternidade na terra e que os humanos eram todos um bando de
macacos falantes sem um pingo de estilo, ele teve uma epifania.
— Céus — gemeu Cordélia — e qual foi a conclusão a que ele chegou?
Alessandro sorriu para ela maliciosamente e então respondeu:
— Decidiu que a Terra precisava de um bar. E que ia se chamar F
ata Morgana.
As ruas do centro estavam cinzentas e úmidas da chuva que tinha caído há
pouquíssimo tempo, as calçadas escorregadias com a mistura de poeira e água,
sujando seus bonitos sapatos de veludo negro, quando ela cruzou de uma
calçada para outra, desviando dos carros com os faróis acesos, que andavam em
menor velocidade, evitando algum acidente em pleno tráfego.
O bar estava quase escondido entre dois prédios muito antigos, com arquitetura
do começo do século passado, com suas cores claras cobertas de fuligem e
histórias que se perderam naquelas ruas estreitas, esquecidas em um passado
distante.
O prédio em que ele havia inaugurado aquele bar discreto, possuía uma águia
no teto, um detalhe pelo qual ela passou por muitos anos, enquanto retornava
para casa, profundamente crédula de que o edifício abrigava apenas uma
lavanderia.
A águia no topo, imensa, construída em gesso ou cimento, parecia uma guardiã
astuta e feroz, com as asas abertas em arco, como se preparasse para saltar sobre
uma possível presa e abocanhá-la com seu bico curvo. Alguns metros abaixo
dela, estava um letreiro púrpura, que emanava sua luz pulsante, enquanto a
cidade escurecia.
No letreiro estava escrito Fata Morgana em uma grafia inclinada e feminina que
lhe lembrou os pubs americanos dos filmes de gangster e fê-la voltar seu olhar
questionador para o loiro alto ao seu lado, enquanto ele lhe lançava um meio
sorriso preguiçoso demais para responder suas indagações.
— E o Diabo te deu o bar dele? — Ela perguntou, com uma sobrancelha
erguida, quando ele abriu a porta dupla de madeira talhada e eles foram
saudados pelo ar úmido que estava enclausurado no ambiente.
— Na verdade, eu só administro.
Cordélia revirou os olhos em descrença. Sentia os vapores perfumosos de uma
série de essências, como chás da tarde, fumaça de charutos e incensos que
queimavam em algum lugar que ela não conseguia localizar.
O ambiente era escuro, salvo algumas luminárias incandescentes em pontos
afastados, prevalecendo a sensação de que ela estava em um restaurante da
máfia e esperava que alguém surgisse e falasse com ela em algum dialeto
italiano, que Cordélia jamais conseguiria compreender.
E havia símbolos mágicos em todos os cantos, desenhados com giz nas paredes,
no chão e no teto, ou pintados com tinta ou qualquer outra coisa. Ramalhetes de
ervas balançavam suavemente com a passagem de ar, assim como bonecos de
voodoo e pentagramas decorados com fitas coloridas.
Ao fundo, ironicamente, ela ouvia a jukebox antiga e reluzente, tocando
clássicos do ABBA. O barman acenou para Alessandro como se não o visse há
anos.
— Esse é Daniel, DanyBoy, conheça Cordélia. Ela que ligou de manhã, a pedido
do De Luca — ela fez um aceno com a cabeça e DanyBoy praticamente uivou
um cumprimento, ensaiando alguns passos de Dancing Queen, enquanto
esfregava uma caneca de cerveja até deixá-la mais brilhante que um colar de
diamantes.
— Prazer, bebê — ele disse com um sorriso imenso e reluzente — quer beber
alguma coisa? — Antes que ela pudesse negar educadamente a oferta, ele
estalou os dedos a sua frente e então apontou o indicador para ela, como se uma
revelação divina tivesse se descortinado diante de seus olhos — vou fazer um
Bellini para você. Ela não tem cara de champanhe e pêssegos? Você é
definitivamente champanhe e pêssegos — e desviou para o lado deslizando e
deixando a caneca reluzente sobre o balcão de madeira escura e encerada.
Cordélia se virou para Alessandro e por trás da sua imagem, teve quase certeza
de que viu um gnomo pulando do balcão para o chão. Piscou os olhos e ele não
estava mais lá. Quanto mais olhava para o bar, mais simples ele parecia, mas
pelos cantos dos olhos, ela tinha a impressão de ver criaturas se movendo de
um lado para outro.
O loiro a sua frente riu, com as pernas cruzadas, sentado no banco à sua frente,
com uma calma que fazia um pouco do sangue dela ferver.
Aproximou-se, cruzando os braços sob os seios e ergueu as sobrancelhas
angulosas, para que pudesse dar ênfase ao seu desagrado.
— Estou esperando encontrar os goblins, Senh...
— Nem pense nisso — ele chiou apontando para ela, como se ela tivesse dito o
nome de Deus em vão e em meio a uma missa negra — nada de senhor, me
chame de Alessandro, esse é meu nome e você tem o direito e o dever de usá-lo
— Alessandro jogou os cabelos loiros claros para trás do ombro com um
movimento fluido e então se ajeitou novamente — sobre os goblins, estou
aguardando um contato aparecer para me esclarecer alguns pontos. Ele vai
chegar a qualquer instante, então apenas relaxe e tome a bebida que o Dan está
te trazendo, ok?
— Meu cliente entrou na sala do meu chefe em prantos, berrando que os filhos
dele seriam mortos e as filhas seriam estupradas por... — Cordélia apertou a
ponte do nariz — deixa eu pontuar para você... P
OR FADAS!
— Eu também teria medo disso, se quer saber — Alessandro respondeu —
Cora, sente-se naquele banco e espere. Não sabemos se o cara estava
simplesmente tendo uma síncope, irlandeses adoram por a culpa em fadas,
então relaxe, o k?
Cordélia bufou, girando em seus calcanhares e se sentou no banco alto,
cruzando as pernas cobertas pela meia fina negra, completamente contrariada.
Estavam perdendo tempo naquele lugar decorado como se ainda estivessem no
dia das bruxas, enquanto seu cliente acreditava que eles estavam resolvendo o
desaparecimento das moedas e eventualmente, o seu nome não teria mais
nenhum valor no mundo financeiro.
Gemeu frustrada e quando o barman trouxe a sua bebida, sorveu os goles
tentando compensar seu terror do que aconteceria. As portas de madeira se
abriram novamente e ela sentiu o sopro do ar frio e úmido, que se dobrou sobre
e abaixo do corpo de um homem baixinho e profundamente calvo, trazendo
consigo uma maleta negra de couro.
A palavra: bancário gritava em sua mente enquanto o analisava e o assistia
fechar as portas atrás de si e ajeitar a gravata negra, antes de se mover em
direção ao imenso loiro ao seu lado.
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— Bel — disse o homem com um sorriso típico de um negociador. Eles se
cumprimentaram educadamente, sem sorrisos muito abertos, apenas a simples
constatação de que estavam no mesmo negócio há muito tempo — não estou
surpreso de te encontrar em São Paulo, na verdade, me perguntava quando se
renderia à terra da garoa.
— Parece que obteve sua resposta — Alessandro respondeu com uma risada
suave e convidou o homem para se sentar ao seu lado, acenando a Cordélia
para que se aproximasse e participasse da pequena reunião — alguma notícia
sobre o possível roubo daquelas moedas?
— Sim, mas você não vai gostar nem um pouco... — ele respondeu e depois
franziu as sobrancelhas — o Povo do Ar fechou suas cidades para o nosso
mundo há mais de 700 anos, com as primeiras Caça às Bruxas. Eles chegaram à
conclusão de que nosso mundo não era mais seguro para eles e que também
não queriam nossos radicais entrando no deles. Você pode imaginar por que —
ele lançou um olhar para Cordélia, apenas para checar se ela estava
acompanhando as informações estranhas que brotavam dele — mas até pouco
tempo, humanos ainda tinham acesso aos Mercados Feéricos, mas nem isso têm
no momento, mesmos as passagens nos nódulos de Ley estão seladas, é como se
os feéricos estivessem definitivamente encerrando contato com o mundo mortal
e eu não sei bem o que pensar disso ainda.
Ele pigarreou, como se tentasse tirar aquela ideia de sua garganta e a mera
citação dela lhe parecesse uma blasfêmia.
— Os sidhes estão ainda mais discretos, eu mesmo só consegui alguma
informação graças a alguns favores que me deviam — ele engoliu a seco, vendo
a expressão de Alessandro se tornar mais e mais sombria, conforme as palavras
deslizavam de seus lábios e ele se encolhia em seu banco.
Ele passou as mãos pelo pouco cabelo, limpando a umidade que se acumulou
em sua testa. O homem calvo continuou, quando conseguiu encontrar as
palavras e a coragem:
— O padrinho me disse que o Príncipe da Primavera precisaria recuperar algo
importante nas terras mortais — ele apontou suavemente para Cordélia,
ligeiramente trêmulo — e provavelmente a recuperou. A única maneira de
reaverem o tesouro, é encontrando o príncipe e torcendo para que ele entenda o
ponto de vocês.
— Está me dizendo que um príncipe das fadas roubou as moedas? — Cordélia
questionou com escárnio, ignorando as formas estranhas que flutuavam em seu
campo de visão — podemos ir até ele e repetir três vezes que fadas não existem,
talvez caia morto!
— Você viu o círculo — gemeu o Alessandro, erguendo as mãos — eu não estou
inventando essa porcaria!
— Ah — resmungou o homem mais velho, quase como se achasse aquilo
divertido — você é cética? Não acredita nessas coisas, não é mesmo? Não
acredita em fadas?
— Claro que não acredito em fadas — ela rugiu, com as mãos sobre a mesa —
meu chefe deve estar me pregando a pegadinha do ano, com toda essa tolice.
Fadas não existem!
O mais velho deu de ombros e sua forma se tornou menor ainda, envolta em
seu terno negro que agora parecia imenso para ele, mas havia um sorriso de
ironia bruta em seus lábios. Voltou-se para o loiro e prosseguiu:
— Por que não mostra a ela?
Alessandro pareceu se mover na cadeira, lançando um olhar longo na direção
da bancária, como se avaliasse a ideia e testasse se valia a pena. Então ergueu a
mão até a frente do rosto dela e estalou seus dedos.
Cordélia não sentiu algo em específico, além de um pouco de tontura. O mundo
a sua frente pareceu se envolver em uma volta alongada que estava durando
mais do que deveria e quando finalmente voltou a se estabilizar, percebeu que o
bar estava cheio.
Muito cheio.
Goblins, elfos, anões e outras criaturas que ela nem sequer era capaz de
reconhecer, cantavam, riam e conversavam em uma imensa fofoca de sibilos
completamente interminável. A balbúrdia era tão grande, que ela achou que
seria tragada por aquele som que apenas aumentava, conforme ela tomava
noção das criaturas que a rodeavam.
— Mas que inferno é isso...?
Seus olhos caíram para o contato de Alessandro e seu queixo pendeu em
estupefação. Onde antes havia um homem baixinho e roliço, mas
completamente humano, agora havia o que ela poderia classificar como um
goblin.
Sua aparência era completamente felina, de coloração azulada com listras
negras e uma longa barba branca que descia por seu queixo e chegava até a
altura de seu peito, em ondas emaranhadas. Ele usava um par de óculos
redondos, apoiados no focinho curto e suas orelhas grandes e felinas se moviam
de um lado para o outro, acompanhando a algazarra ao seu redor.
Sobrancelhas brancas imensas estavam escovadas para os lados, grossas e tão
enroscadas como sua barba branca-acinzentada, lhe dando uma aparência
estranhamente intelectual, realçada pelos seus olhos prateados, com pupilas
elípticas.
— Você pode me chamar de Sr. Du — ele sorriu para Cordélia, mostrando uma
arcada dentária cheia de dentes pontudos e caninos que poderiam perfurar sua
garganta.
Cordélia estava em completo choque, tentou puxar as palavras de sua garganta
e falhou miseravelmente. Não as encontrou nem sequer quando uma pixie
flutuou acima do goblin azul e o cumprimentou com um combinado de sibilos
esganados.
— Como eu estava dizendo — o Sr. Du prosseguiu calmamente — não tem
como vocês entrarem, eu lamento.
— Tem certeza? — Alessandro ergueu ambas as sobrancelhas claras — De Luca
me pediu que ela fosse junto conosco, então deveria haver alguma maneira.
— Nenhuma que eu possa fornecer — o goblin riu, se afastando da bancária
como se tivesse medo de que ela fosse mordê-lo e infectá-lo com seu ceticismo
— mas se acharem alguma, desçam antes do Samhaim.
— Quando diz descer, o que quer dizer com isso?
— Bom — respondeu o gato barbudo — conhece as histórias, os sidhe vivem sob
as montanhas e o nosso país tem um complexo de túneis subterrâneos
pré-colonização, que achamos que foram feitos por eles. Provavelmente se
pudessem, mas não podem, iriam descer pelo acesso mais fácil ao mundo das
fadas! Mas claro, você não acredita em nada disso, então não tem importância.
Cordélia sentiu um enjoo atingi-la em cheio, aquilo não se parecia em nada com
as histórias brilhantes que ela conhecia, cheias de dança e companhias
misteriosas. Mas sempre havia aquela porção de poemas felizes que
começavam suaves e deliciosos, até se tornarem em algo em algo vicioso e
assustador. Engoliu a seco e tomou mais um gole de seu drink para fazer as
informações descerem com o líquido, alcançando o pingente de ferro sem
perceber e envolvendo os dedos ao redor dele.
— Fadas — Cordélia resmungou — só me faltava isso.
Capítulo 3
Cordélia era filha de casal de pastores radicais no interior de São Paulo. Uma
família reclusa e complexa que nunca soube compreender a mente da criança
que eles tinham em casa. O conservadorismo dos pais se tornou apenas pior
conforme ela crescia e descobria novos mundos a serem desvendados, assim
como a sua paixão por contos-de-fadas se avolumava em seu coração.
Seu primeiro livro sobre fadas foi um folheto ilustrado que ela guardava sob a
cama, longe dos olhos da família e longe do seu ódio a tudo o que não fosse o
seu livro sagrado. Naquela época, a pequena Cordélia acreditava em muitas
coisas e pediu socorro à maioria delas.
Quando a mãe encontrou uma carta, implorando ao Papai Noel que a levasse
para o Polo Norte, onde ela pudesse trabalhar com os elfos e ficar longe da
violência religiosa dos pais, Cordélia fora castigada por dias e suas coisas
bonitas foram tiradas dela. Fadas de porcelana, cartões postais da Irlanda e
ilustrações que ela colecionava com todo o amor de seu coração, foram
destruídos pela onda de fúria que despencou sobre ela.
Mas isso não a impediu de escrever outras e mais outras; a qualquer criatura
mítica que povoasse seus sonhos e que em seus delírios imaginativos, pudesse
livrá-la do inferno em que vivia desde sempre. Obviamente, nenhum ser
mágico jamais a resgatou.
E com isso ela aprendeu a primeira regra sobre a vida real: Cordélia não era o
tipo de garota que seria salva e infelizmente ela teria de derrotar seus próprios
dragões ou ser destruída por eles.
Quando atingiu a maioridade e pode comprar seus próprios livros com o
salário de seus estágios, ela começou a fazer sua própria coleção de histórias
temáticas. Uma coleção que era profundamente especial para ela e que se
perdeu, quando, anos mais tarde, foi finalmente encontrada pelo ódio irracional
de sua família.
Lembrava-se de adentrar em seu quarto e encontrar cinzas de todos os seus
livros mais amados, de encontrar as raras ilustrações rasgadas e parcialmente
devoradas pelas chamas. Lembrava-se de chorar até desmaiar no chão frio do
cômodo em meio aos fragmentos de uma vida de estudos — e depois disso,
como uma nuvem cinza, alimentada pelo que acontecera e pelos discursos
doentios das pessoas que deveriam amá-la, Cordélia parou de acreditar.
Parou de se importar tão radicalmente, que o mundo se tornou um maquinário
rangente, sem sentimentos, no qual ela simplesmente existia.
No dia seguinte, ela recebeu uma ligação do Or Íon Bank e meses depois saiu da
casa dos pais e nunca mais voltou.
Agora, ela se sentia como aquela criança de novo, como se pudesse ouvir a
risada de suas antigas fantasias ecoarem em algum lugar de sua mente, como
um convite para repensar que talvez, algo dentro dela ainda pudesse acreditar.
A volta para a sua própria casa foi como um retorno de um sonho. Ela ainda
conseguia ver as criaturas estranhas caminhando pelo bar, conversando entre si
e vivendo a vida que o mundo das fadas parecia ter há muito tempo.
Era como se visse aquela experiência pelos olhos de outra pessoa, alguém que
ela não conhecia e que era capaz de digerir aquelas informações. Apertou os
olhos por um momento, quando assistiu as luzes de sua rua piscarem ao seu
redor, emitindo um ruído elétrico que pareceu como um suspiro de algo vivo.
Com um calafrio correndo por sua coluna, percebeu que filamentos de sombras
se desprendiam dos postes e deslizavam pela calçada, como se tivessem vida
própria, invadindo sombras maiores, arrancando miados aterrorizados de gatos
e ratos que se escondiam.
Aquelas sombras não pertenciam a nada em particular, pareciam coisas vivas,
com personalidade própria, se envolvendo ao redor do metal dos postes de luz
e escalando até onde as lâmpadas estremeciam, tocadas pelos tentáculos negros.
Eram completamente alheias à sua presença, até que pareceram notar que ela
podia vê-las. Milhões de pares de olhos brilhantes como pequenas estrelas
pulsando na abóbada celeste, voltaram-se para ela e acompanharam seus
passos, como uma plateia ansiosa pelo desfecho de uma peça.
Cordélia engasgou com o próprio ar, quando percebeu que começaram a se
mover ao seu redor, lentamente, buscando se mesclar com o resto da paisagem
como predadores na savana. Ela acelerou seu passo, batendo os saltos grossos
contra a calçada, até que estivesse à frente do condomínio onde morava,
cercada de luzes.
Adentrou com uma velocidade que não se lembrava de conseguir atingir, mal
percebendo se havia ou não cumprimentado o porteiro e seguindo direto para o
seu apartamento, onde acenderia cada pequena luminária que existia ali dentro.
Quando chegou a sua sala de estar, perguntou a si mesma se estava
enlouquecendo. Recostada contra a porta de madeira grossa, ela só conseguia
respirar lentamente, tentando acalmar seus nervos esticados ao máximo.
Trancou a porta e seguiu para a sala, retirando as roupas apertadas.
Ela tinha milhares de livros ali, contos de fadas, coletâneas folclóricas, artigos
sobre superstições. Sentiu os batimentos de seu coração voltarem a acelerar
quando notou que, sobre sua mesa redonda de madeira, havia um vaso de
cristal com um glorioso buquê de rosas vermelhas, como aquela que havia em
sua gaveta no banco.
Ao lado dele, estavam dois de seus livros abertos, como se alguém os estivesse
consultando em sua casa. Um deles era de Lorde Dunsany: A Fábula do Sonhador
e o outro era uma edição rara de Alice no País das Maravilhas, com uma rosa
vermelha entre as páginas abertas, como um marcador exótico.
— Eu não deixei vocês aqui — ela sussurrou para os livros, como se eles
pudessem respondê-la de volta, passando as pontas dos dedos pelas suas
páginas amareladas, sentindo sua textura.
Sua edição de Alice estava aberta logo nas primeiras páginas, com uma pétala
vermelha deitada ao lado do parágrafo onde a garota começa a perseguir o
Coelho Branco e caía para o mundo subterrâneo de Carrol. Cordélia deslizou os
dedos pelas linhas do livro antigo, sentindo um arrepio escalar seus braços,
erguendo seus pelos, como se ela fosse atravessada por uma onda de
magnetismo.
— A toca do coelho, no começo, alongava-se como um túnel, mas de repente
abria-se como um poço, tão de repente que Alice não teve um segundo sequer
para pensar em parar, antes de se ver caindo no que parecia ser um buraco
muito fundo — ela leu em voz alta, como se esperasse encontrar alguma pista,
alguma charada que estava escondida entre aquelas letras, mas não pode
decifrar qualquer coisa.
A Fábula do Sonhador estava aberta no conto de Bethmoora, uma cidade mítica,
devastada por uma doença mais mítica ainda, que parecia existir apenas nos
sonhos de seu narrador. Uma cidade que havia se fechado para a humanidade e
cujos portões batiam contra o vento, ecoando o seu vazio.
Mas havia um detalhe a mais que ela não se lembrava de ter visto da última vez
que folheara aquele volume: acima do texto, havia um selo. Era um símbolo
intricado, uma abelha ladeada por um graveto e uma chave. A frente dela,
como se a enfrentasse, havia um escaravelho com um olho felino no ventre
exposto pelas asas abertas, rodeado por estrelas e pousado sobre outra chave.
Uma lufada de ar perfumado varreu a sala e as páginas viraram, revelando um
novo envelope negro com a marca do sinete de besouro, pressionada contra a
cera vermelho sangue. Esse bilhete estava decorado com arabescos dourados
nas bordas, como se fosse ainda mais elegante que o anterior. O perfume
amadeirado, misturado a especiarias e sonhos, invadiu suas narinas como o
aroma que deveria flutuar entre os pomares do paraíso.
Dentro dele, havia um recado, no mesmo papel perolado, com bordas negras
brilhantes. Com sua fragrância exalando sonhos antigos e promessas vindouras,
ela inclinou ligeiramente o cartão e a caligrafia se revelou para a luz, alongada e
inclinada em sua tinta negra:
Para sua terceira aventura,
Aguardo ansiosamente sua visita,
— M.