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Do mito do desenvolvimento econômico ao mito do progresso: uma


homenagem a Celso Furtado e Gilberto Dupas

Article  in  Perspectiva Econômica · June 2012


DOI: 10.4013/pe.2012.81.02

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Clério Plein Eduardo Ernesto Filippi


Universidade Estadual do Oeste do Paraná Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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Perspectiva Econômica, 8(1):13-23, janeiro-junho 2012
© 2012 by Unisinos - doi: 10.4013/pe.2012.81.02

Do mito do desenvolvimento econômico


ao mito do progresso: uma homenagem
a Celso Furtado e Gilberto Dupas

From the myth of economic development to the myth of progress:


A tribute to Celso Furtado and Gilberto Dupas

Clério Plein1
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
clerioplein@ig.com.br

Eduardo Ernesto Filippi2


Universidade Federal do Rio Grande do Sul
edu_292000@yahoo.com.br

Resumo. O objetivo do ensaio é fazer uma home- Abstract. The purpose of this essay is a tribute to
nagem a Celso Furtado e Gilberto Dupas através de Celso Furtado and Gilberto Dupas through a cross-
uma leitura cruzada das obras O mito do desenvol- reading of the works The myth of economic develop-
vimento econômico (Furtado, 1974) e O mito do pro- ment (Furtado, 1974) and The myth of progress (Du-
gresso (Dupas, 2006). Nessas duas obras, os autores pas, 2006). In both works the authors reach the same
chegam à mesma conclusão: o desenvolvimento/ conclusion: development/progress is a myth. Based
progresso é um mito. Com base na discussão sobre on the discussion of environmental issues in econ-
a questão ambiental na economia, o foco em dois omy, on the focus on two themes (the environment
temas (meio ambiente e pobreza), as diferenças and poverty), on the theoretical and methodologi-
teórico-metodológicas e os períodos históricos, pre- cal differences and on historical periods, we intend
tende-se dialogar com esses autores, procurando to establish a dialogue with these authors, trying
entender diferenças e semelhanças nas suas ideias. to understand differences and similarities in their
De modo geral, conclui-se que ambos consideram o ideas. In general, it is concluded that both consider
desenvolvimento/progresso um mito, uma vez que, the development/progress a myth, since it brings
da forma como ocorre, traz consigo a destruição da the destruction of nature and persistence of poverty
natureza e a persistência da pobreza e das desigual-
and social inequalities.
dades sociais.
Key words: Economic Theory, environment, pov-
erty.
Palavras-chave: Teoria Econômica, meio ambiente,
pobreza. JEL: O10; Q00

1
Doutorando e Mestre em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Rua Maringá, 1200, Bairro Vila Nova, Caixa Postal 371, 85605-010, Francisco Beltrão, PR, Brasil.
Bolsista CAPES – Processo nº 1409-11-5.
2
Economista, mestre em Economia Rural e doutor em Economia Política. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Av.
João Pessoa, 31, 90040-000, Porto Alegre, RS, Brasil.
Do mito do desenvolvimento econômico ao mito do progresso: uma homenagem a Celso Furtado e Gilberto Dupas

1 Introdução utilizado a palavra “mito” em seus livros. Tra-


ta-se de Celso Furtado, em O Mito do Desenvol-
Como a ideia de mito é central neste texto. vimento Econômico, e Gilberto Dupas, em O Mito
Portanto, cabe iniciar perguntando: o que é um do Progresso. Mais interessante é o fato de os li-
mito? Algumas definições mais literais encon- vros terem sido publicados em épocas diferen-
tradas nos dicionários de Língua Portuguesa tes: o primeiro, em 1974 e o segundo, em 2006.
dão conta que o mito é uma fábula, lenda, coi- Portanto, o objetivo central do ensaio é
sa que não existe na realidade, uma fantasia compreender por que esses dois autores, ape-
(Larousse, 1992). O mito pode ser uma lenda, sar de terem vivenciado períodos de “intenso”
uma narrativa que guarda um fundo de verda- desenvolvimento econômico e progresso, con-
de, um retrato simbólico de fatos amplificados sideram esses fatores uma falácia. Para tanto,
pelo imaginário ou, ainda, uma “representa- pretende-se fazer uma leitura cruzada entre
ção idealizada do estado da humanidade, no essas duas obras, à luz da discussão ambiental
passado ou no futuro” (Houaiss e Vilar, 2009, na economia, tendo como fio condutor o meio
p. 1300). A palavra mito vem do grego mythos ambiente e a pobreza. De forma secundária, o
e significa fábula. Entre outros significados, o ensaio também possui um objetivo mais didáti-
mito é uma “ideia falsa, sem correspondência co, por fazer uma homenagem aos dois autores.
com a realidade [...] representação (passada O texto está estruturado da seguinte forma:
ou futura) de um estádio ideal da humanidade a organização do texto inicia com uma apre-
[...] coisa inacreditável, fantasiosa, irreal; uto- sentação dos autores e de suas bases teórico-
pia” (Ferreira, 1999, p. 1347). metodológicas, seguido de uma contextuali-
Num significado mais filosófico do termo, zação histórica para, finalmente, apresentar
de acordo com Abbagnano (2000), é possível alguns dos argumentos centrais desenvolvidos
distinguir três significados do termo mito: “1º nas obras em questão. A quarta parte consiste
como forma atenuada de intelectualidade; 2º na tentativa de fazer uma leitura comparada
como forma autônoma de pensamento ou de entre as duas obras, fazendo relações com as
vida; 3º como instrumento de estudos sociais” questões ambientais e a pobreza, bem como a
(Abbagnano, 2000, p. 673). Para os propósitos discussão ambiental na economia.
deste ensaio, interessa o terceiro significado,
que está presente na teoria sociológica moder- 2 Celso Furtado e O Mito do
na, em que o mito possui a função de “reforçar Desenvolvimento Econômico
a tradição e dar-lhe maior valor e prestígio,
vinculando-o à mais elevada, melhor e mais O economista Celso Monteiro Furtado
sobrenatural realidade dos acontecimentos nasceu em Pombal, na Paraíba, no dia 26 de
iniciais”. Nessa concepção, o mito “nunca re- julho de 1920. Em 1944, formou-se em Direito
produz a situação real, mas opõe-se a ela, no no Rio de Janeiro, na Universidade do Brasil
sentido de que a representação é embelezada, (hoje, Universidade Federal do Rio de Janeiro),
corrigida e aperfeiçoada, expressando assim fez doutorado em Economia na Universidade
as aspirações a que a situação real dá origem”. de Sorbonne (França) e pós-doutorado em
Nas sociedades, podem constituir um mito Cambridge (Inglaterra). Foi um dos fundado-
“não só narrativas fabulosas, históricas ou res (em 1949) da Comissão Econômica para a
pseudo-históricas, mas também figuras hu- América Latina (CEPAL). Ajudou na comissão
manas (heróis, líderes, etc.), conceitos e noções CEPAL/BNDE3, que elaborou um trabalho que
abstratas (nação, liberdade, pátria, proletaria- serviu de base para o Plano de Metas (desen-
do), ou projetos de ação que nunca se realiza- volvimentista) do governo de Juscelino Kubits-
rão” (Abbagnano, 2000, p. 674-675). chek. Criou e dirigiu a Superintendência do
Dessa maneira, um mito se apresenta de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) até
maneira paradoxal, ou seja, por um lado, não 1964. Foi ministro do Planejamento no Gover-
existe, mas por outro, é desejado, perseguido, no João Goulart, mas com o Golpe de 1964 é
almejado. Assim, na discussão sobre desenvol- cassado e fica no exílio até 1979. Em 1986 as-
vimento, território e meio ambiente, chamou sume o Ministério da Cultura do governo Sar-
atenção o fato de dois autores brasileiros terem ney. Durante vinte anos lecionou em universi-

3
Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico.

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Clério Plein, Eduardo Ernesto Filippi

dades da Europa (Cambridge, na Inglaterra, e seguramente, uma prolongação do mito do pro-


Sorbonne, na França) e Estados Unidos (Yale, gresso, elemento essencial na ideologia diretora
Harvard e Columbia). Morreu aos 84 anos no da revolução burguesa, dentro da qual se criou a
atual sociedade industrial (Furtado, 1974, p. 16).
Rio de Janeiro, no dia 24 de novembro de 2004.
Celso Furtado pode ser considerado um
autor estruturalista. Entre suas principais in- Salienta que no processo de acumulação
de capital, “o impulso dinâmico é dado pelo
fluências teóricas pode-se citar, entre outros:
progresso tecnológico” (Furtado, 1974, p. 16).
Comte, Sombart, Pirrene, Weber, Manhein,
Nessa perspectiva e já com base no documento
Marx, Keynes, List, Prebisch, Myrdall, Nurske,
produzido pelo Clube de Roma em 1971 (The
Schumpeter.
Limits to Growth), destaca que:
O período histórico vivido por Celso Fur-
tado até a publicação da obra O Mito do De-
As grandes metrópoles modernas com seu ar ir-
senvolvimento Econômico, aproximadamente do respirável, crescente criminalidade, deterioração
final da Segunda Guerra Mundial (1945) até a dos serviços públicos, fuga da juventude na anti-
primeira crise do petróleo (1973), é chamado cultura, surgiram como um pesadelo no sonho de
de “anos dourados” da “era de ouro do capi- progresso linear em que se embalavam os teóricos
talismo”, marcado por profundas transforma- do crescimento. Menos atenção ainda se havia
ções/revoluções políticas, tecnológicas, econô- dado ao impacto no meio físico (Furtado, 1974,
micas, sociais e culturais (Hobsbawm, 1995). p. 16-17).
Para Harvey (2000) trata-se do período “for-
dista-keynesiano”, referindo-se à transforma- Furtado, retomando o questionamento
ção político-econômica, ou seja, ao processo de apresentado pelos autores do estudo – The Li-
produção/consumo em massa e ao interven- mits to Growth – enfatiza os limites impostos,
cionismo do Estado nos processos econômi- por um lado, pelo esgotamento dos recursos
cos. Essa fase também é conhecida como “os naturais, e por outro, aos problemas relaciona-
trinta gloriosos” (1950-1980). Do ponto de vis- dos com a poluição do meio ambiente.
ta econômico no contexto histórico brasileiro,
[...] que acontecerá se o desenvolvimento
destaca-se o período de intenso crescimento econômico, para o qual estão sendo mobilizados
durante os famosos “50 anos em 5” do gover- todos os povos da terra, chegar efetivamente a
no de Juscelino Kubitschek (1956-1961), seguido concretizar-se, isto é, se as atuais formas de vida
de um período de “estagnação” da economia dos povos ricos chegam efetivamente a univer-
(1963-1964) e a posterior retomada no “mila- salizar-se? A resposta a essa pergunta é clara,
gre brasileiro” (1968-1973). sem ambiguidades: se tal acontecesse, a pressão
Furtado (1974) inicia o livro fazendo um sobre os recursos não renováveis e a poluição do
meio ambiente seriam de tal ordem (ou alterna-
alerta sobre a influência que os mitos exercem
tivamente, o custo do controle da poluição seria
sobre a mente dos homens que pretendem com- tão elevado) que o sistema econômico mundial
preender a realidade social. “O mito congrega entraria necessariamente em colapso (Furtado,
um conjunto de hipóteses que não podem ser 1974, p. 19).
testadas [...] [e] operam como faróis que ilumi-
nam o campo de percepção do cientista social” Analisando as relações centro-periferia, o
(Furtado, 1974, p. 15). No que se refere ao de- autor aponta para as diferenças nos processos
senvolvimento econômico, destaca que: de industrialização: os países desenvolvidos
experimentaram o que na literatura ficou co-
A literatura sobre o desenvolvimento econômico nhecido como “welfare state”, ou seja, o estado
do último quarto de século nos dá um exemplo de bem-estar social, marcado pelo pleno em-
meridiano desse papel diretor dos mitos nas ciên-
prego, consumo e produção em massa, com
cias sociais: pelo menos noventa por cento do que
aí encontramos se fundamenta na ideia, que se dá
forte intervenção do Estado na economia; já
por evidente, segundo a qual o desenvolvimento nos países subdesenvolvidos permaneceu
econômico, tal como vem sendo praticado pelos uma forma de desenvolvimento baseada no
países que lideraram a revolução industrial, pode consumo de luxo de uma minoria, com gran-
ser universalizado. Mais precisamente: pretende- des desigualdades sociais.
se que os standards de consumo da maioria da
humanidade, que atualmente vive nos países [...] a industrialização que atualmente se realiza
industrializados, é acessível às grandes massas na periferia sob o controle das grandes empresas
da população em rápida expansão que formam é processo qualitativamente distinto da industri-
o chamado terceiro mundo. Essa ideia constitui, alização que, em etapa anterior, conheceram os

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Do mito do desenvolvimento econômico ao mito do progresso: uma homenagem a Celso Furtado e Gilberto Dupas

países cêntricos [...]. O dinamismo econômico no que aumentar a taxa interna de exploração. [...]
centro decorre do fluxo de novos produtos e da Assim, taxas mais altas de crescimento, longe
elevação dos salários reais que permite a expan- de reduzir o subdesenvolvimento, tendem a
são do consumo de massa. Em contraste, o capita- agravá-lo, no sentido de que tendem a aumentar
lismo periférico engendra o mimetismo cultural e as desigualdades sociais. Em conclusão: o sub-
requer permanentemente concentração da renda desenvolvimento deve ser entendido como um
a fim de que as minorias possam reproduzir as processo, vale dizer, como um conjunto de forças
formas de consumo dos países cêntricos. [...] En- de interação e capazes de reproduzir-se no tempo.
quanto no capitalismo cêntrico a acumulação de Por seu intermédio, o capitalismo tem conse-
capital avançou, no decorrer do último século, guido difundir-se em amplas áreas do mundo sem
com inegável estabilidade na repartição da renda, comprometer as estruturas sociais pré-existentes
funcional como social, no capitalismo periférico a nessas áreas (Furtado, 1974, p. 94).
industrialização vem provocando crescente con-
centração (Furtado, 1974, p. 45). Na terceira parte do livro, analisa especifi-
camente o modelo brasileiro de subdesenvol-
Nesses termos, chama atenção para o caso vimento, chamando atenção para as desigual-
particular dos países periféricos, destacando dades sociais, e coloca como objetivos:
que uma hipótese que não pode ser aceita é:
(a) investigar porque a difusão mundial do pro-
[...] segundo a qual os atuais padrões de consumo gresso técnico e os decorrentes incrementos da
dos países ricos tendem a generalizar-se em escala produtividade não tenderam a liquidar o “sub-
planetária. Esta hipótese está em contradição di- desenvolvimento”; e
reta com a orientação geral do desenvolvimento (b) demonstrar que na política de “desen-
que se realiza atualmente no conjunto do sistema, volvimento” orientada para satisfazer os altos
da qual resulta a exclusão das grandes massas que níveis de consumo de uma pequena minoria da
vivem nos países periféricos das benesses criadas população, tal como executada no Brasil, tende
por esse desenvolvimento (Furtado, 1974, p. 71). a agravar as desigualdades sociais e a elevar o
custo social de um sistema econômico (Furtado,
Finaliza a primeira parte do livro reafir- 1974, p. 95-6).
mando por que o desenvolvimento econômico
é um mito: Conclui que “a característica mais signifi-
cativa do modelo brasileiro é a sua tendência
O custo, em termos de depredação do mundo estrutural para excluir a massa da população
físico, desse estilo de vida, é de tal forma elevado dos benefícios da acumulação e do progresso
que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexo- técnico” (Furtado, 1974, p. 109).
ravelmente ao colapso de toda uma civilização, Na última parte do livro, referindo-se à
pondo em risco as possibilidades de sobrevivência “objetividade e iluminismo em economia”, o
da espécie humana. [...] a ideia de que os povos autor faz uma crítica epistemológica da “eco-
pobres podem algum dia desfrutar das formas de
nomia positiva”, sobretudo ao que chamou de
vida dos atuais povos ricos – é simplesmente ir-
realizável. Sabemos agora de forma irrefutável
“vaca sagrada dos economistas”, o Produto In-
que as economias da periferia nunca serão desen- terno Bruto (PIB).
volvidas, no sentido de similares às economias
que formam o atual centro do sistema capitalista. Por que ignorar na medição do PIB, o custo para
[...] Cabe, portanto, afirmar que a ideia de desen- a coletividade da destruição dos recursos natu-
volvimento econômico é um simples mito (Fur- rais não renováveis, e o dos solos e florestas (difi-
tado, 1974, p. 75). cilmente renováveis)? Por que ignorar a poluição
das águas e a destruição total dos peixes nos rios
em que as usinas despejam os seus resíduos? Se o
Na segunda parte do livro, Furtado analisa
aumento da taxa de crescimento do PIB é acom-
o problema do subdesenvolvimento e da de- panhada de baixa do salário real e esse salário
pendência, destacando o caráter “estrutural” está no nível de subsistência fisiológica, é de ad-
do subdesenvolvimento. Para o autor: mitir que estará havendo um desgaste humano.
[...] Em um país como o Brasil basta concentrar
O subdesenvolvimento tem suas raízes numa a renda (aumentar o consumo supérfluo em ter-
conexão precisa, surgida em certas condições mos relativos) para elevar a taxa de crescimento
históricas, entre o processo interno de exploração do PIB. [...] Em síntese: quanto mais se concentra
e o processo externo de dependência. Quanto mais a renda, mais privilégios se criam, maior é o con-
intenso o influxo de novos padrões de consumo, sumo supérfluo, maior será a taxa de crescimento
mais concentrada terá que ser a renda. Portanto, do PIB. Desta forma a contabilidade nacional
se aumenta a dependência externa, também terá pode transformar-se num labirinto de espelhos,

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Clério Plein, Eduardo Ernesto Filippi

no qual um hábil ilusionista pode obter os efeitos de Análise e Pesquisa da Presidência. Fez par-
mais deslumbrantes (Furtado, 1974, p. 116). te de conselhos do Ministério da Educação e
Cultura, do Instituto de Estudos Avançados da
De modo geral, para Celso Furtado o de- USP, do CEBRAP6 e da Fundação Getúlio Var-
senvolvimento econômico é um mito porque: gas. Morreu aos 66 anos em São Paulo, no dia
(a) não pode ser generalizado aos moldes dos 17 de fevereiro de 2009.
países desenvolvidos; (b) existem obstáculos Entre as principais influências intelectuais
do ponto de vista dos recursos naturais; (c) presentes na obra O mito do progresso, podem-
existem problemas estruturais no Brasil, onde se destacar: Adorno, Bobbio, Frank, Freud,
predomina o consumo privilegiado de poucos, Gorz, Habermas, Hirschman, Lévi-Strauss,
o que amplia as desigualdades sociais. Löwi, Marcuse, Marx, Engels, Nietzsche,
Cavalcanti (2003, p. 73) destaca que, de Rousseau, Weber, entre outros.
modo geral, nos escritos de Celso Furtado O período histórico vivenciado por Gilber-
estão presentes conceitos como dependência, to Dupas antes da publicação da obra O mito
concentração de renda, mimetismo cultural, do progresso é marcado pelo fim do período
relações assimétricas centro-periferia e mer- áureo do capitalismo de Estado (especialmen-
cado interno, sempre numa perspectiva estru- te marcado pela segunda crise do petróleo
turalista do subdesenvolvimento. Entretanto, de 1979); a abertura política no Brasil, com o
na obra O Mito do Desenvolvimento Econômico, processo de redemocratização e com o fim da
o autor “levanta duas questões não comuns”, ditadura militar em 1985; a famosa “década
consideradas inusitadas para naquele con- perdida” dos anos 1980; um processo de reto-
texto histórico: (a) os “impactos do processo mada das ideias liberais nos anos 1990 (marca-
econômico no meio físico, na natureza”; (b) a da pelo Consenso de Washington em 1989); a
“constatação do caráter de mito moderno do de- (re)ascensão dos movimentos sociais e o apro-
senvolvimento econômico”. fundamento das preocupações com a questão
ambiental, marcada por eventos como Eco-92,
3 Gilberto Dupas e Rio-92 e Rio+10.
O Mito do Progresso Já na introdução da obra, Dupas (2006)
chama atenção para o aspecto contraditório do
progresso na sociedade contemporânea.
O cientista social Gilberto Dupas nasceu
em Campinas, São Paulo, em 1943. Formou-
No alvorecer do século XXI, o paradoxo está em
se em engenharia de produção pela Politéc- toda parte. O saber científico conjuga-se à técnica
nica da Universidade de São Paulo (USP), em e, combinados – a serviço de um sistema capi-
1966, e fez pós-graduação em administração talista hegemônico –, não cessam de surpreender
de empresas (USP/Delft University), desen- e revolucionar o estilo de vida humana. Mas esse
volvimento econômico (USP/CEPAL) e eco- modelo vencedor exibe fissuras e fraturas; per-
nomia matemática (CEPAL/IPEA4). No Brasil, cebe-se, cada vez com mais clareza e perplexidade,
lecionou na PUC-RS5 e no Instituto Mauá. Foi que suas construções são revogáveis e que seus
efeitos podem ser muito perversos. A capacidade
coordenador-geral do Grupo de Conjuntura
de produzir mais e melhor não cessa de crescer e
Internacional da USP e presidente do Instituto assume plenamente a assunção de progresso, mas
de Estudos Econômicos e Internacionais. Era esse progresso, ato de fé secular, traz também
coeditor da revista “Política Externa” e mem- consigo exclusão, concentração de renda e sub-
bro do corpo editorial das revistas “Sociedad desenvolvimento (Dupas, 2006, p. 11).
y Politica” (México) e “Cahiers de la Sécurité”
(França). Foi professor visitante da Univer- O autor lança perguntas desafiadoras: “so-
sidade de Paris (França) e da Universidade mos, por conta desse tipo de desenvolvimento,
Nacional de Córdoba (Argentina). Na gestão mais sensatos e mais felizes? Ou podemos atri-
de Franco Montoro em São Paulo (1983-1987), buir parte de nossa infelicidade precisamente
Dupas foi presidente da Nossa Caixa e secretá- à maneira como utilizamos os conhecimentos
rio da Agricultura. No governo Fernando Hen- que possuímos?” (Dupas, 2006, p. 14). Retoma
rique Cardoso (1995-2002), integrou o Grupo uma ideia importante de John Stuart Mill, que

4
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
5
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
6
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Perspectiva Econômica, vol. 8, N. 1, p. 13-23, jan/jun 2012 17


Do mito do desenvolvimento econômico ao mito do progresso: uma homenagem a Celso Furtado e Gilberto Dupas

afirmava que “a distribuição do Produto Inter- do muro de Berlim e o desmoronamento final da


no Bruto de um país poderia – e deveria – ser utopia do império soviético permitiram ao capi-
orientada em razão do bem-estar geral” (Du- talismo, agora plenamente globalizado, um novo
pas, 2006, p. 15). Faz uma análise semântica discurso hegemônico batizado por alguns intelec-
tuais deslumbrados e imaturos como “o fim da
da palavra progresso, destacando, com base na
História”. Para eles, os benefícios da globalização
obra Alice no País das Maravilhas, que “o senti- dos mercados eliminaria a miséria, as guerras e
do das palavras” está associado ao “poder de o papel dos Estados nacionais mundo afora, re-
quem as pronuncia” (Dupas, 2006, p. 27). Des- alizando em curto prazo a grande utopia do pro-
taca os objetivos do seu livro: gresso [...]. Os resultados concretos estão sendo
muito diferentes; e mais uma fantasia do mito
Trata-se aqui de analisar a quem dominante- do progresso, construído como discurso hegemô-
mente esse progresso serve e quais os riscos e nico, se foi, não restando muito a comemorar
custos de natureza social, ambiental e de sobre- (Dupas, 2006, p. 90).
vivência da espécie que ele está provocando; e que
catástrofes futuras ele pode ocasionar. Mas, em Referindo-se ao “conhecimento e progres-
especial, é preciso determinar quem escolhe sua so como verdade”, destaca que “quanto mais
direção e com que objetivos (Dupas, 2006, p. 26).
cresce a capacidade de eliminar toda a misé-
ria, mais aumenta a própria miséria enquanto
Sobre a evolução do conceito de progres-
antítese da potência e da impotência” (Dupas,
so, Dupas aponta que, “em termos gerais, pro-
2006, p. 101). Lança uma questão de fundo
gresso supõe que a civilização se mova para
provocador:
uma direção entendida como benévola ou
que conduza a um maior número de existên- [...] até que ponto o homem pode afastar-se de
cias felizes” (Dupas, 2006, p. 30). Mas a ideia sua primeira natureza por ação da cultura – sua
de progresso dominante no ocidente a partir segunda natureza – sem entrar em oposição au-
da metade do século XVIII até o final do sé- todestruidora com a primeira. A tecnologia, com-
culo XIX é de que é através da ação humana ponente da segunda natureza, transforma nosso
que o progresso pode ser alcançado, não mais potencial agressivo em uma força destruidora do
pela influência de Deus. “A partir daí, os ter- planeta e de seu meio ambiente – a primeira na-
mos evolução, desenvolvimento e progres- tureza (Dupas, 2006, p. 104).
so passaram a ter o mesmo sentido, sempre
muito associados è evolução tecnológica. [...] No terceiro capítulo, em que analisa a “eco-
Mas progresso também foi, nessa fase, muitas nomia política como ciência do progresso”,
vezes, associado a crescimento econômico” Dupas aponta que “o mito do capitalismo ra-
(Dupas, 2006, p. 43-44). E, assim, a “utopia do cional previa que o progresso ocorreria conso-
progresso” foi sendo construída. Entretanto, lidando-se um ciclo virtuoso de crescimento
“aprendemos nas décadas finais do século XX econômico baseado no fordismo e no tayloris-
que progresso técnico não conduz automati- mo como processo de produção [...] apoiado
camente ao desenvolvimento humano, que a pela intervenção seletiva do Estado” (Dupas,
riqueza gerada não é repartida de modo que 2006, p. 138). Entretanto, no “estado de bem-
minimize a exclusão, as diferenças de renda e estar social”, somado à ideia shumpeteriana
de capacidades” (Dupas, 2006, p. 74). de “destruição criativa”,

O modo de produção capitalista exige permanen- Em vez da maior prosperidade geral, para que a
temente a renovação das técnicas para operar o seu engrenagem da acumulação funcionasse, assiste-
conceito motor schumpeteriano de destruição cria- se a um sucateamento contínuo de produtos em
tiva: ou seja, produtos novos a serem promovidos escala global, gerando imenso desperdício de
como objeto de desejo, sucateando cada vez mais matérias-primas e recursos naturais ao custo i-
rapidamente o produto anterior e mantendo a lógi- menso de degradação contínua do meio ambiente
ca de acumulação em curso (Dupas, 2006, p. 84). e de escassez de energia. É a opção privilegiada e
inexorável pela acumulação de capital, em detri-
Esclarece que nas últimas décadas do século mento do bem-estar social amplo (Dupas, 2006,
p. 142-143).
XX houve a retomada das ideias liberais, ou seja:

[...] uma nova doutrina – batizada de neolibera- No período mais recente, as ideias neoli-
lismo – tentou ressuscitar o conceito de progresso berais recolocam a discussão sobre um estado
associando-o à liberdade dos mercados globais e a mínimo e a ampla abertura comercial. “No en-
um ciclo benévolo da lógica do capital. A queda tanto, a abertura é pregada de forma unilateral

18 Perspectiva Econômica, vol. 8, N. 1, p. 13-23, jan/jun 2012


Clério Plein, Eduardo Ernesto Filippi

para os pobres, o que torna o esquema neoli- mais sob a ótica da ética e da moral. “Caso o de-
beral de abertura duplamente perverso, geran- senvolvimento científico e tecnológico, ao lado
do alguma vantagem para os pobres, grandes de vantagens evidentes, conduza a riscos gra-
vantagens para os ricos” (Dupas, 2006, p. 149). ves, é preciso definir como tratá-lo e controlá-
lo” (Dupas, 2006, p. 235).
A consequência desse processo foi uma sucessão Ao final do livro, referindo-se à “longa e
de crises que afetaram principalmente a América imprevisível caminhada”, o autor faz uma es-
Latina e a maioria dos grandes países da peri- pécie de síntese.
feria, provocando um aumento significativo
da exclusão social em boa parte do mundo. [...]
Apontamos, durante todo esse livro, elementos
Outro grave problema foi o aumento contínuo de
que nos parecem suficientes para desconstruir o
pobreza e concentração de riqueza mundo afora
discurso hegemônico sobre o progresso, da forma
(Dupas, 2006, p. 150-151).
como dele se apropriam as elites econômicas ao
transformá-lo – fundamentalmente – em instru-
Referindo-se aos anos mais recentes (1990- mento de legitimação da acumulação. Ao lado
2000), Dupas destaca que “foram mais um pe- dos evidentes “avanços” decorrentes dos vetores
ríodo perdido na economia latino-americana”, tecnocientíficos em marcha, alinhamos argumen-
e o único aspecto positivo “foi o controle dos tos teóricos e exemplos factuais das consequên-
processos hiperinflacionários” (Dupas, 2006, cias profundamente negativas e dos graves riscos
p. 154). Por outro lado, cresceram a pobreza, a que esse processo acarreta quanto à sobrevivência
física e psíquica futura da espécie humana, e aos
indigência, a fome, o desemprego e a informa-
equilíbrios dos frágeis sistemas que a suportam.
lidade. Nesse cenário, o capitalismo vai para Finalmente, procuramos recolocar argumen-
“a última fronteira de acumulação: o mercado tos de natureza ética e filosófica que sustentam
da pobreza” (Dupas, 2006, p. 157). visões alternativas quanto à natureza e ao sentido
No capítulo 5, “meio ambiente e o futuro da aventura humana, e que possam dar subsídios
da humanidade”, Dupas destaca que: “Para eventuais para políticas que evitem ou adiem
vários importantes cientistas, a ameaça mais uma provável “tragédia enunciada” (Dupas,
grave à humanidade nesse início de século 2006, p. 255-256).
XXI é o ataque sem trégua ao meio ambiente
decorrente da lógica da produção global e da Para o autor, depois de superada a “fase
direção dos seus vetores tecnológicos contidos keynesiana do Estado de bem-estar social”,
nos atuais conceitos de progresso” (Dupas, e removidos os “vestígios finais dos resíduos
2006, p. 219). socialistas que sobraram da queda do muro de
O autor apresenta uma preocupação com a Berlim” [...], na fase atual “os valores da nova
pressão antrópica sobre o planeta, apontando ordem estão em vigor; e são: desregulação, li-
para a relação entre crescimento da população, beralização, flexibilização, crescente fluidez e
estilo de vida (consumo) e recursos naturais. liberação dos mercados financeiros” (Dupas,
2006, p. 261).
[...] os demógrafos preveem que a população Conclui o livro falando sobre o mito do
mundial vai continuar crescendo até 2050, quan- progresso, afirmando que:
do terá atingido 8 a 9 bilhões [...]. Já sabemos
que será impossível a toda essa massa humana O progresso, assim como hoje é caracterizado nos
aspirar a um padrão de vida médio equivalente ao discursos hegemônicos da parte dominante das
do europeu e do norte-americano atual. Apesar elites, não é muito mais que um mito renovado
de esses cálculos serem controversos, há estima- por um aparato ideológico interessado em nos
tivas de que para atingir aquele padrão como mé- convencer que a história tem um destino certo – e
dia global, seriam necessários quase três planetas glorioso – que dependeria mais da omissão em-
Terra com seus recursos naturais atuais (Dupas, bevecida das multidões do que da sua vigorosa
2006, p. 225). ação e da crítica de seus intelectuais (Dupas,
2006, p. 290).
Considerando o grande avanço da ciência
e, paralelamente, de problemas associados a Portanto, para Gilberto Dupas, o mito do
essa evolução (por exemplo, todas as tecno- progresso está associado ao imenso progresso
logias da “revolução verde” na agricultura), científico e tecnológico dos anos mais recen-
alerta para a necessidade de voltar à discussão tes, o que não tem significado, necessariamen-
sobre o princípio da responsabilidade, ou princí- te, que as pessoas estejam vivendo melhor e
pio da precaução, ou seja, a tecnociência deveria sendo mais felizes, e tem trazido consigo pro-
ser tratada menos do ponto de vista da razão e blemas ambientais que colocam em xeque a

Perspectiva Econômica, vol. 8, N. 1, p. 13-23, jan/jun 2012 19


Do mito do desenvolvimento econômico ao mito do progresso: uma homenagem a Celso Furtado e Gilberto Dupas

sobrevivência futura das pessoas no planeta. substancialmente empobrecida pelo distan-


Apesar de todo “progresso”, as desigualdades ciamento crescente entre economia e ética”
sociais persistem. (Sen, 1999, p. 23). Porém, prevaleceu a chama-
da “economia positiva”, ou seja, a parte que
4 Economia, meio ambiente e possui sua origem na engenharia. A ideia de
pobreza “equilíbrio geral” da economia neoclássica ex-
pressa isso muito bem.
O debate sobre a questão ambiental na Moretto e Giacchini (2006), referindo-se às
economia inicia dentro da Escola Neoclássi- fases do estudo sobre desenvolvimento eco-
ca com a “economia dos recursos naturais” nômico, apresentam a seguinte divisão: até
– cuja principal preocupação é com o esgota- 1950, o desenvolvimento era tido como igual
mento das matérias-primas – e avança para ao crescimento, mas havia uma subdivisão,
a “economia ambiental”, também conhecida os que acreditavam que a oferta gerava a de-
como “economia da poluição” – preocupada manda (Smith, Ricardo, Mill, Marx) e os que
com as causas e os efeitos da poluição. Numa defendiam a demanda efetiva (Malthus, Key-
perspectiva mais atual está a “economia ecoló- nes, Kalecki); de 1950 até 1990 o desenvolvi-
gica”, com um enfoque institucionalista e que mento foi entendido como sendo diferente de
pretende uma construção epistemológica mul- crescimento (ideário presente entre os autores
tidisciplinar. cepalinos, ou estruturalistas, que apontavam
De acordo com Spach (1999), por um lado, para o aumento das desigualdades); depois de
a economia neoclássica estava preocupada 1990 se introduz a ideia de desenvolvimento
com os recursos e, por outro, a economia am- sustentável, incorporando a preocupação com
biental com as externalidades. Já a economia o meio ambiente.
ecológica poderia ser interpretada como uma Rist (2007) afirma que o “chavão” desenvol-
espécie de síntese dessas duas preocupações vimento é amplo e impreciso. Trata-se de um
(com outras bases metodológicas), incorpo- conjunto de crenças e pressupostos sobre a na-
rando dimensões éticas e morais, além de tureza do progresso social; porém, ninguém o
questões sociais, políticas e institucionais. define corretamente. Sempre está acompanha-
Jenkins (1998) chama atenção para o fato do de adjetivações (endógeno, humano, social,
de que os problemas ambientais também são sustentável), pois só desenvolvimento parece
éticos e institucionais, e sua solução passa por ser depreciativo. Para o autor, a essência do
mudanças nos valores (pessoais e culturais) e desenvolvimento é a grande transformação e
de uma ação institucional. Alerta para a negli- destruição do ambiente natural e das relações
gência da questão ética na discussão sobre eco- sociais com o objetivo de aumentar a produção
nomia e o meio ambiente. de mercadorias e serviços orientados pela de-
Um exemplo dessa negligência (ou contra- manda efetiva do mercado. Aparentemente, é
dição) foi o caso do tornado que devastou o uma definição escandalosa; entretanto, reflete
município de Guaraciaba (Santa Catarina, Bra- o processo histórico observado pelo autor. Esta
sil) no dia 07 de setembro de 2009. Somente 60 ideia se aproxima de Furtado e Dupas, quando
dias após o desastre natural é que o Instituto salientam que o desenvolvimento econômico e
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos o progresso são um mito, pois destroem a na-
Naturais Renováveis (IBAMA) autorizou a tureza e não acabam com a miséria.
utilização da madeira (das árvores que foram Analisando as controvérsias da noção de
arrancadas e derrubadas pelo vento) para a desenvolvimento sustentável, Ajara (2003) cha-
reconstrução das casas dos agricultores. A ma atenção para o fato de que a crise ambien-
mesma contradição á analisada por Infield e tal possui três dimensões: (i) esgotamento dos
Adams (1999) em Uganda, onde se criou um recursos; (ii) poluição; (iii) exclusão social.
parque para preservar os gorilas e nada foi fei- Infelizmente, parece que as pessoas estão “à
to para acabar com o cinturão de pobreza em margem” da questão ambiental. Essa visão é
torno do mesmo parque. resultado de uma noção dualista (sociedade x
Uma explicação para essas atitudes talvez natureza) que precisa ser superada, como de-
seja justificada pela ausência das discussões fende Santos (2008), pois é preciso entender
éticas na economia. Sen (1999) destaca que a que a relação sociedade e natureza é dialética.
economia possui duas origens: uma ligada à Esses breves comentários sobre a discussão
“ética” e outra ligada à “engenharia”; entre- ambiental na economia trazem alguns elemen-
tanto, “a natureza da economia moderna foi tos importantes para analisar as obras de Celso

20 Perspectiva Econômica, vol. 8, N. 1, p. 13-23, jan/jun 2012


Clério Plein, Eduardo Ernesto Filippi

Furtado e Gilberto Dupas. Portanto, o objetivo para o desenvolvimento econômico do Brasil,


é tentar fazer um diálogo entre as obras ante- e Dupas aponta como a pobreza tem se trans-
riormente sintetizadas à luz do debate sobre a formado na “última fronteira de acumulação
questão ambiental na economia. O fio condu- capitalista” nos anos mais recentes. Pode-se di-
tor será a comparação de dois temas: o meio zer que em ambos os autores existe uma grande
ambiente e a pobreza. A ideia é encontrar pon- preocupação ética e moral, pois verificam que
tos convergentes nessas duas obras, produ- todo o desenvolvimento e progresso “aparente-
zidas em diferentes contextos históricos, por mente alcançados” não são para todos.
autores diferentes e com distintas perspectivas Pergunta-se: será possível afirmar que
teórico-metodológicas. “desenvolvimento econômico”, de Furtado, e
Um primeiro aspecto a ser considerado é a “progresso”, de Dupas, são sinônimos? Acre-
ideia de mito presente nas obras. Para Furta- dita-se que ambos os autores estão se referin-
do, o mito é uma hipótese que não poder ser do ao mesmo processo, ou seja, o desenvolvi-
testada, mas que cumpre um papel importante mento capitalista e o papel da tecnologia no
para o cientista. Já para Dupas, o mito é um processo de acumulação. Portanto, a resposta
“ato de fé”, ou seja, que é perseguido – entre- é afirmativa.
tanto, contraditório. Nesses termos, se os autores estão se refe-
Do ponto de vista da tecnologia, ambos os rindo ao mesmo processo (em épocas diferen-
autores destacam o seu papel no processo de tes), por que consideram que esse é um mito?
acumulação capitalista, funcionando como Ambos os autores destacam que é impossível
uma espécie de “mola propulsora”. Percebe-se generalizar, para todo o planeta, o padrão de
a presença das ideias de Schumpeter em ambos. vida (consumo) dos países desenvolvidos, con-
Em relação à questão ambiental, conside- siderando os limites impostos pela natureza,
rando a época em que viveu e escreveu Furta- tanto do ponto de vista da finitude dos recursos
do, seria “normal” que essa questão passasse naturais como dos problemas inerentes à polui-
ao largo de sua obra. Entretanto, foi com certa ção. Porém, diferentemente de Furtado (ênfa-
surpresa que se percebeu a preocupação am- se econômica), Dupas apresenta uma questão
biental presente no livro O mito do desenvol- mais existencial do ser humano (filosófica): o
vimento econômico, de 1974. Conforme afirma progresso faz as pessoas mais felizes? Isso nos
Cavalcanti (2003, p. 73), “Furtado antecipou-se remete à revisão da questão ética do desenvol-
em perceber os condicionantes ambientais do vimento apresentada no início deste texto.
processo econômico contemporâneo”. Ambos É interessante observar que os dois autores
os autores demonstram preocupação com a visualizaram (vivenciaram) um grande desen-
escassez de recursos (economia dos recursos volvimento/progresso em suas épocas: Furta-
naturais) e com a poluição (economia ambien- do os “50 anos em 5” e o “milagre brasileiro”;
tal). Porém, Furtado dá mais ênfase à primeira, Dupas avanços incríveis na ciência. Entretan-
o que estava muito presente no relatório sobre to, para Furtado, apesar do crescimento da
“os limites do crescimento” de 1971 e na Con- economia do país, ele não acabou com as desi-
ferência de Estocolmo (1972). gualdades. Para Dupas, a ciência avança, mas
Os dois autores chamam atenção para uma sem conseguir resolver os problemas ambien-
variável central da economia: o PIB (Produto tais, além de as pessoas estarem mais infelizes
Interno Bruto). Furtado considera essa variá- do que antes. Isso nos remete para uma refle-
vel ilusória, pois não considera os custos am- xão sobre o que é, de fato, desenvolvimento.
bientais (esgotamento dos recursos e poluição) Com base nas duas obras analisadas, pode-se
e não mostra as desigualdades em relação à afirmar que nada do que se viu até hoje pode
apropriação do PIB. Dupas retorna a Mill, que ser considerado desenvolvimento. Então, de-
já alertava para o fato de que o PIB deveria ter senvolvimento é “um vir a ser”, em que todos
como objetivo o bem-estar geral. O que os dois serão felizes, ou é esse processo dialético e
autores percebem é que, no caso brasileiro, contraditório, como analisado pelos autores?
um alto PIB não significa que todas as pessoas
estejam desfrutando de bem-estar, pois o PIB 5 Considerações finais
não mede desigualdades.
Outra questão central para os dois autores A proposta deste ensaio foi tentar enten-
refere-se à pobreza. Ambos detectam a grande der por que dois autores, refletindo sobre o
exclusão social presente no país. Entretanto, desenvolvimento econômico e o progresso,
para Furtado o subconsumo era um problema chegaram a conclusões pessimistas sobre seus

Perspectiva Econômica, vol. 8, N. 1, p. 13-23, jan/jun 2012 21


Do mito do desenvolvimento econômico ao mito do progresso: uma homenagem a Celso Furtado e Gilberto Dupas

resultados e perspectivas. Entende-se que as legitimado nos benefícios socialmente exíguos


conclusões pessimistas de Celso Furtado e que cria e distribui (Martins, 2008, p. 13).
Gilberto Dupas estão diretamente ligadas à
constatação da dupla perversidade do proces- Portanto, a ideia do desenvolvimento como
so: de um lado, a constatação de que o desen- mito presente nas obras de Celso Furtado e
volvimento está levando ao esgotamento dos Gilberto Dupas é bastante atual e revela dois
recursos naturais e poluindo o meio ambiente lados “perversos” e contraditórios do desen-
e, por outro, sendo incapaz de acabar com a volvimento econômico e do progresso, trata-
pobreza. Trata-se de uma constatação muito dos aqui como sinônimos: esse processo é um
próxima da ideia de Rist (2007), para quem o mito, pois destrói o meio ambiente (seja pelo
desenvolvimento significa a destruição da na- esgotamento dos recursos ou pela poluição) e
tureza e das relações sociais. não foi (e não é) capaz de acabar com a pobre-
Do ponto de vista da natureza, é bastan- za e as desigualdades sociais!
te ilustrativo o relatório que foi apresentado
aos Chefes de Estado em Copenhagen em Referências
2009. Se desde 1972 existiam “preocupações”
com os problemas ambientais, agora o que ABBAGNANO, N. 2000. Dicionário de filosofia. 4ª ed.,
assusta são as “certezas” que existem sobre: São Paulo, Martins Fontes, 1010 p.
AJARA, C. 2003. As difíceis vias para o desenvolvimen-
o aumento brusco da emissão de gases cau-
to sustentável: gestão descentralizada do território
sadores do efeito estufa; o aquecimento glo- e zoneamento ecológico – econômico. Rio de Janei-
bal, provocado pela humanidade; aceleração ro, Escola Nacional de Ciência Estatística, 26 p.
do descongelamento de camadas de gelo, (Texto para Discussão nº 08).
glaciares e calotas polares; descida rápida CAVALCANTI, C. 2003. Meio ambiente, Celso Fur-
do gelo marítimo do Ártico; aumento, mais tado e o desenvolvimento como falácia. Ambien-
rápido que se pensava, do nível do mar; a te & Sociedade, VI(1):73-84.
http://dx.doi.org/10.1590/S1414-753X2003000200005
demora na ação, que pode levar a estragos DUPAS, G. 2006. O mito do progresso: ou progresso
irreversíveis; e, principalmente, acredita-se como ideologia. São Paulo, UNESP, 309 p.
que o ponto de inflexão deverá ocorrer logo, FERREIRA, A.B. de H. 1999. Novo Aurélio século XXI:
no máximo até 2020 (The Copenhagen Diagno- o dicionário da língua portuguesa. 3ª ed., Rio de Ja-
sis, 2009). neiro, Nova Fronteira, 2128 p.
Na perspectiva da questão social, um argu- FURTADO, C. 1974. O mito do desenvolvimento econô-
mico. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 117 p.
mento relevante é apresentado pelo sociólogo
HARVEY, D. 2000. Condição pós-moderna. 9ª ed., São
brasileiro José de Souza Martins no sugestivo Paulo, Loyola, 349 p.
livro “a sociedade vista do abismo”: HOBSBAWM, E. 1995. Era dos extremos: o breve sé-
culo XX: 1914-1991. São Paulo, Companhia das
O desenvolvimento econômico que gera um Letras, 598 p.
desenvolvimento social muito aquém de suas HOUAISS, A.; VILAR, M. de S. 2009. Dicionário
possibilidades, como ocorre nos países do Terceiro Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Ob-
Mundo e como ocorre no Brasil, nega-se na per- jetiva, 3008 p.
versidade das exclusões sociais que dissemina. INFIELD, M.; ADAMS, W.M. 1999. Institutional
Compromete profundamente a sua própria dura- sustainability and community conservation: a
bilidade e, de alguma forma, abre o abismo da sua case study from Uganda. Journal of International
própria crise (Martins, 2008, p. 9). Development, 11:305-315. http://dx.doi.org/10.1002/
(SICI)1099-1328(199903/04)11:2<305::AID-
JID585>3.0.CO;2-U
E mais adiante complementa:
JENKINS, T.N. 1998. Economics and the environ-
mental: a case of ethical neglect. Ecological Eco-
Em suas consequências sociais adversas, o modelo nomics, 26:151-163.
de desenvolvimento econômico que se firmou no http://dx.doi.org/10.1016/S0921-8009(97)00063-3
mundo contemporâneo leva simultaneamente a LAROUSSE. 1992. Dicionário da língua portuguesa.
extremos de progresso tecnológico e de bem-estar São Paulo, Nova Cultural, 1176 p.
para setores limitados da sociedade e a extremos MARTINS, J. de S. 2008. A sociedade vista do abismo:
de privação, pobreza e marginalização social para novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes so-
outros setores da população. Na medida em que ciais. 3ª ed., Petrópolis, Vozes, 228 p.
hoje o objetivo do desenvolvimento econômico é MORETTO, C.F.; GIACCHINI, J. 2006. Do surgi-
a própria economia, podemos defini-lo como um mento da teoria do desenvolvimento à concepção de
modelo antidesenvolvimento: o desenvolvimento sustentabilidade: velhos e novos enfoques rumo ao
econômico é descaracterizado e bloqueado nos desenvolvimento sustentável. Passo Fundo, UPF,
problemas sociais graves que gera, mais do que 18 p. (Texto para Discussão nº 06).

22 Perspectiva Econômica, vol. 8, N. 1, p. 13-23, jan/jun 2012


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