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OLIVIER BONNEWIJN

GENDER,
QUEM ÉS TU?
Sobre a Ideologia de Gênero

Tradução de Teresa Dias Carneiro

Prefácio e posfácio de Pe. Rafael C. Fornasier


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SUMÁRIO

Capa
Folha de Rosto
Prefácio
Introdução
Capítulo I - O feminismo radical, terra natal
da Gender Theory
1. Feminismo liberal e feminismo
socialista
2. Feminismo marxista
3. Feminismos e liberação sexual
4. Feminismo radical
Capítulo II - O axioma fundamental da
Gender Theory
1. Distinção entre sexo e gender
a) Sexo
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b) Gender
2. Separação entre sexo e gender
3. Multiplicidade dos genders
4. Opressão universal do gender
heterossexual
Capítulo III - O projeto do Gender radical:
desconstruir para criar um mundo novo
1. Desconstrução da maternidade
2. Desconstrução da família
3. Desconstrução da linguagem
4. Rumo a um mundo pós-sexual
5. Rumo a um mundo transgender
Capítulo IV - Os aliados históricos do
Gender radical
1. Movimentos homossexuais e de
lésbicas
2. Queer theory
3. Existencialismo, ultraliberalismo,
estruturalismo e neomarxismo
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a) Perspectiva individualista:
existencialismo ateu e
ultraliberalismo
b) Perspectiva estrutural:
neomarxismo e estruturalismo
Capítulo V - Diálogo, escuta e
auto-revelação do Gender radical
1. É possível estabelecer um diálogo?
2. Espelho de espelho
3. Na aurora do século XXI
4. Dialética das máscaras e do rosto
5. Uma luz vinda de fora
Conclusão
1. Entre ser e agir
2. Os moderados do gender e os
radicais
Posfácio
Orientações do MEC em matéria de
educação sexual
Estado, família e educação sexual
Sobre o autor
PREFÁCIO

NAS DUAS ÚLTIMAS DÉCADAS, ganhou


notoriedade uma terminologia cunhada pela
chamada gender theory (teoria do gênero),
não só empregada e desenvolvida no meio
acadêmico, mas também fortemente
promovida no meio sócio-político de todo o
mundo, por um recorte freqüentemente
ativista. Em ambos os meios, busca-se
apresentar desenvolvimentos teóricos das
áreas da psiquiatria, psicologia, filosofia e
sociologia, sobretudo das últimas quatro
décadas. Segundo Tony Anatrella:
O inventor do termo “gender” é um psicólogo
americano, John Money, que nos anos 50 afirmava que a
diferença homem-mulher é devida mais à educação do
que ao biológico. Acompanha-o em seu pensar o
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psicanalista Robert Stoller, principal inventor da idéia de


separação entre sexo e gênero (1960). O sexo aparece
como uma marca do espaço corporal sem outra
conseqüência sobre a vida psíquica, enquanto que o
gênero é ao mesmo tempo a identidade sexual assinalada
pela sociedade (o masculino e o feminino) e o que o
sujeito vai escolher em sua orientação sexual. Ele poderá,
assim, ter uma identidade heterossexual, bissexual,
homossexual ou transexual e eventualmente mudar.[ 1 ]

A teoria do gênero e a terminologia que dela


deriva têm suscitado vivos e importantes
debates na sociedade atual, sobretudo
porque começam a perder espaço em alguns
países, onde já foram implementadas como
parte de um programa de educação,[ 2 ] e,
por outro lado, há projetos em outros países
que caminham no sentido de
implementá-las.[ 3 ] Contudo, parece ainda
haver uma espécie de blindagem acadêmica
quanto ao debate da questão. Qualquer
pesquisa que vá no sentido de fomentar as
questões de gênero tem as portas abertas
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para seu financiamento e sua aprovação.


Certamente, isso se atribui à necessária
reflexão sobre o papel da mulher e seus
direitos na sociedade contemporânea. No
entanto, um franco debate deveria ser aberto
justamente sobre a relação que existe entre a
reflexão sobre a mulher na sociedade
contemporânea e a adequação antropológica
das teorias que fomentam tal reflexão, ou
que dela decorrem, e que são depois
traduzidas em propostas políticas e também
econômicas, nacionais e internacionais. A
partir de uma ressignificação da abordagem
do relacionamento homem-mulher, está em
jogo toda a concepção de ser humano que se
pretende defender ou desconstruir.
O trabalho de pesquisa a seguir, de Olivier
Bonnewijn, poderá contribuir com a reflexão
do leitor sobre o assunto, delineando a
evolução histórica do tema e seus diferentes
contornos na atualidade, apoiando-se em
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alguns dos mais renomados teóricos do


assunto. Diante de uma postura que assume
a perspectiva de gênero sem um recuo
crítico, surgem vozes dissonantes, dentre
elas a voz da própria Igreja Católica, de
outras confissões cristãs e religiões, que
reagem não a qualquer teoria científica, mas
à instrumentalização ideológica que se pode
fazer de tais teorias, que, enquanto tais,
precisariam de rigorosa verificação empírica.
Recentemente, o Papa Francisco foi criticado
por denunciar tal postura, ao afirmar que:
Quanto à colonização ideológica, direi apenas um
exemplo que eu mesmo constatei. Vinte anos atrás, em
1995, uma ministra da educação pedira um grande
empréstimo para construir escolas para os pobres.
Deram-lhe o empréstimo com a condição de que, nas
escolas, houvesse um livro para as crianças de certo grau
de escolaridade. Era um livro escolar, um livro
didaticamente bem preparado, onde se ensinava a teoria
do gender.[ 4 ]
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Neste sentido, cabe se questionar


seriamente sobre tais teorias que parecem
estar a serviço não tanto da dignidade da
pessoa e de qualquer pessoa, mas de um
projeto de hegemonia política, organizado e
articulado por instituições internacionais e
nacionais. Não estariam também envolvidos
aí interesses econômicos escusos e perversos
quando, ao se tratar da teoria do gênero, se
pretende, por um lado, enfatizar a liberdade
e a autonomia do sujeito para “decidir” sobre
sua orientação sexual, ou, expressão de
gênero (como preferem alguns), e, ao mesmo
tempo – paradoxalmente – por outro lado se
dão orientações bem precisas sobre como os
sujeitos devem se comportar diante de temas
como família, sexualidade e reprodução, em
todo o mundo? Assim como alguns autores
vêm criticando o feminismo radical de ter
traído a causa da mulher, porque se atrelou à
tal teoria e se tornou seu grande promotor e
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porta-voz internacional,[ 5 ] não haveria


também uma crítica a ser feita, tanto a nível
acadêmico como a nível sócio-político, em
relação à traição da causa dos pobres quando
o assunto é teoria do gênero? Eis algumas
questões que poderão receber luzes do
estudo que segue.
Em 2008, na sua intervenção junto à ONU, o
representante da Santa Sé afirmou o
seguinte, a respeito da Declaração sobre os
direitos humanos, orientação sexual e
identidade de gênero daquela organização:
[...] as categorias “orientação sexual” e “identidade
de gênero”, usadas no texto, não encontram
reconhecimento, nem clara e partilhada definição, no
direito internacional. Se elas tivessem que ser tomadas
em consideração na proclamação e na tradução prática
dos direitos fundamentais, seriam causa de uma grave
incerteza jurídica, como também viriam a minar a
habilidade dos Estados para aderir e pôr em prática
convenções e padrões novos e já existentes sobre os
direitos humanos.[ 6 ]
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Essas categorias, que se atrelam ao emprego


do termo “gênero” que a ONU vem fazendo,
desde a Conferência de Pequim (1995), como
substitutivo de “sexo” em muitos textos
oficiais, estão sendo cada vez mais inseridas
em projetos de lei ou em outras formulações
jurídicas no Brasil. A falta de recuo crítico
quanto a tais categorias aparece flagrante
quando, por exemplo, no anteprojeto de
reforma do Código Penal se utilizam
expressões que deixam clara a instabilidade
conceitual na qual se situam os teóricos e
ativistas da gender theory. É o caso das
expressões “opção sexual” e “identidade
sexual” que aparecem ao lado das expressões
“identidade de gênero” e “orientação
sexual”.[ 7 ] Recentemente, a Convenção
Interamericana Contra Toda Forma de
Discriminação e Intolerância empregou
também os termos “orientação sexual,
identidade e expressão de gênero”.[ 8 ] No
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que diz respeito a esta convenção, afirma o


comunicado assinado por três ministros
brasileiros (Min. Antônio de Aguiar Patriota
– Relações Exteriores; Min. Luiza Bairros –
Ministra de Estado Chefe da Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial;
Min. Maria do Rosário Nunes – Ministra de
Estado Chefe da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República):
Os textos foram resultado de longa negociação, iniciada
em 2005, quando a Missão Permanente do Brasil junto à
OEA apresentou à Assembléia Geral um projeto de
resolução que criou o Grupo de Trabalho encarregado de
criar uma convenção contra o racismo e todas as formas
de discriminação [...]. O Brasil assumiu a presidência do
GT por quatro vezes e desempenhou um papel de
liderança no processo de negociação.

O comunicado continua:
A Convenção Interamericana Contra Toda Forma de
Discriminação e Intolerância, uma vez em vigor, será o
primeiro documento internacional juridicamente
vinculante a condenar expressamente a discriminação
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baseada em orientação sexual, identidade e expressão de


gênero. [...] A participação ativa do Brasil na aprovação
das Convenções é coerente com as políticas desenvolvidas
no país.

A convenção supracitada ainda não foi


firmada por países como Canadá e EUA, este
último alegando justamente não poder
firmar mais documentos juridicamente
vinculantes em âmbito internacional.
Ademais, dentre os mais de 30 países da OEA,
somente seis países a assinaram, incluindo o
Brasil.[ 9 ] Alguns gostariam de fazer valer
aqui as teorias de jogos políticos, que bem
provavelmente existem. No entanto, parece
haver certa confusão no uso dos termos e
expressões, além da já mencionada ausência
de uma definição clara e partilhada no
direito internacional. Portanto, cabe
interrogar-se sobre os conteúdos de leis,
resoluções, convenções, no Brasil e no
exterior, que venham a equiparar conceitos
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precisos e claros como “cor”, “etnia”,


“religião”, “sexo” ou “pessoa idosa ou com
deficiência”, com “gênero”, “identidade de
gênero” e “orientação sexual”. A imprecisão e
a ambigüidade referidas parecem envolver
uma adoção implícita de determinada
ideologia que tende a abolir qualquer ética
em matéria sexual, inclusive em detrimento
da família – base da sociedade, nos
expressos termos do art. 226, da
Constituição Federal –, e que “tem especial
proteção do Estado”.
Com estes questionamentos, certamente
não se pretende diminuir o valor do esforço
necessário e atual no combate à
discriminação injusta, que tenha como
conseqüência a violência e o ódio contra as
pessoas, quaisquer que sejam suas origens
ou situações de vida. Todavia, os
pesquisadores, agentes sociais e políticos,
bem como a opinião pública, devem assumir
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a tarefa de debater seriamente as razões que


parecem levar a teoria do gênero, como
ideologia e em seus paroxismos (cujo
expoente é a teoria queer), a não abordar
mais o tema da diferença sexual, nas
dimensões biológicas, psíquicas e espirituais.
Se certas expressões trazem grandes
dificuldades de significado, como as já
citadas “identidade de gênero”, “orientação
sexual” ou outras, que vão surgindo com as
variações da compreensão do que se
pretende com a utilização da linguagem em
campo sócio-político, cabe se perguntar se
deve-se banir o emprego do vocábulo
“gênero”. Jutta Burggraf afirma que:
O termo gender pode ser aceito como expressão
humana, e portanto livre, que se baseia sobre identidade
sexual biológica, masculina e feminina. É apropriado para
descrever os aspectos culturais que giram ao redor da
construção dos papéis do homem e da mulher no
contexto social.[ 10 ]
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Ademais, o instrumentum laboris (texto de


trabalho) em preparação para a assembléia
extraordinária do Sínodo dos Bispos sobre o
tema dos Desafios pastorais da família no
contexto da evangelização, ressaltava o
perigo “de uma visão unilateral e ideológica
da identidade de género”,[ 11 ] e que se faz
necessário “ir mais além das condenações
genéricas contra tal ideologia, cada vez mais
invasiva, para responder de maneira fundada
a tal posição, hoje amplamente difundida em
muitas sociedades ocidentais.”[ 12 ]
Trata-se, portanto, de reassumir
efetivamente e articuladamente (em meio
acadêmico e sócio-político) o tema da
diferença sexual, amplamente abandonado
pelos teóricos da atual perspectiva de gênero,
que engloba a relação entre o dado biológico
e cultural, levando em conta a
complementariedade do homem e da
mulher, tutelando o direito à diferença entre
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homens e mulheres e promovendo a


co-responsabilidade no trabalho e na
família.[ 13 ] Em sua Carta Pastoral sobre a
Ideologia de Gênero, a Conferência afirma:
É certo que a pessoa humana não é só natureza, mas é
também cultura. E também é certo que a lei natural não
se confunde com a lei biológica. Mas os dados biológicos
objetivos contêm um sentido e apontam para um desígnio
da criação que a inteligência pode descobrir como algo
que a antecede e se lhe impõe, e não como algo que se
pode manipular arbitrariamente. A pessoa humana é um
espírito encarnado numa unidade biopsico-social.[ 14 ]

1 Anatrella, T. Le concept de gender du point de vue


anthropolique. Origines et enjeux des théories du gender.
In. AAVV. Gender, qui est-tu? Paris, Editions de l’Emmanuel,
2012, p. 71.
2 V. o caso da Suécia, onde o debate público foi suscitado pela
provocação feita por um comediante, Harald Eia, através de
várias entrevistas com especialistas no assunto para o
programa Hjernevask (“Brainwashing”) – The Gender
Equality Paradox: https://www.youtube.com/
watch?v=p5LRdW8xw70.
3 V. o caso da França e o debate em torno ao tema. Cf. Texto
da filósofa Chantal Delsol, no Jornal Le Figaro de
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quarta-feira, 11 junho de 2014, a respeito da proposta do


governo francês de implantação do chamado ABCD de
l’égalité (da igualdade). Disponível em:
http://h.c.i.over-blog.com/
article-genre-l-etat-n-a-pas-tous-les-droits-tribune-de-chantal
4 Papa Francisco, Conferência de imprensa no voo de
Manilla a Roma, 19 de janeiro de 2015. Disponível em:
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/
january/documents/
papa-francesco_20150119_srilanka-filippine-conferenza-stam
Acesso em: 3 fev. 2015. Grifos nossos. O Papa voltou a falar
de “colonização ideológica” em sua recente visita a Nápoles,
em discurso para os jovens, no dia 21 de março de 2015.
Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/
speeches/2015/march/documents/
papa-francesco_20150321_napoli-pompei-giovani.html.
Acesso em: 1 abr. 2015.
5 A este respeito, veja-se a obra clássica de Christina Hoff
Sommers, Who stole feminism? How women have betrayed
women. New York, Simon & Schuster, 1994.
6 Secretaria de Estado da Santa Sé, 63ª Sessão da Assembléia
geral da ONU a propósito da “Declaração sobre os direitos
humanos, orientação sexual e identidade de gênero”
promovida pela presidência francesa da união europeia.
Intervenção do representante da Santa Sé, quinta-feira 18
de dezembro de 2008. http://www.vatican.va/
roman_curia/secretariat_state/2008/documents/
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rc_seg-st_20081218_statement-sexual-orientation_po.html
Acesso em 21 de novembro de 2013.
7 Cf. http://www.oas.org/en/sla/dil/
inter_american_treaties_A-69_discrimination_intolerance_si
8 Para acessar o texto em espanhol: http://www.oas.org/es/
sla/ddi/
tratados_multilaterales_interamericanos_A-69_discriminacio
9 http://www.oas.org/en/sla/dil/
inter_american_treaties_A-69_discrimination_intolerance_si
10Burggraf, J. Gênero (“Gender”). In: Pontifício Conselho
para a Família. Lexicon. Termos ambíguos e discutidos
sobre família, vida e questões éticas. Brasília, Edições da
CNBB, 2007, p. 453-461.
11 Cf. III Assembléia Geral Extraordinária do Sínodo dos
Bispos, Os desafios pastorais da família no contexto da
evangelização, Vaticano, 2014, n. 119. Disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/synod/documents/
rc_synod_doc_20140626_instrumentum-laboris-familia_po.h
12Ibid., n. 127.
13Cf. Burggraf, J. op. cit., p. 461.
14Conferência Episcopal Portuguesa. Carta Pastoral a
propósito da ideologia do gênero. Disponível em:
http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=97722
(Acesso em 19 de novembro de 2013).
INTRODUÇÃO [ 15 ]

COM RAPIDEZ E MEIOS DESCONCERTANTES, o


conceito polimorfo de gender se implantou
no cerne das políticas internacionais,
regionais, nacionais e locais, instrumentos
jurídicos, programas culturais, códigos
éticos, universidades e escolas. Ele serve
abertamente de ponto de referência para a
ONU e suas agências, como a OMS, a UNESCO e
a Comissão sobre População e
Desenvolvimento.[ 16 ] Por intermédio de
várias ONGs, foi exportado para países em
desenvolvimento,[ 17 ] onde, em vários deles,
um ministério do gender substituiu o da
família. O gender enquadra o pensamento na
Comissão de Bruxelas, no Parlamento
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Europeu, e em diferentes membros da União


Européia.
Quais são as realidades que esse novo
conceito designa?[ 18 ] O que está em jogo
nessa pergunta é considerável e influencia de
maneira profunda e durável o futuro das
pessoas e das sociedades em todas as áreas.
“O que é Gênero? Quem é você? O que diz de
si mesmo?” Muitas vozes ressoam. Só sobre
ele, um sociólogo, um filósofo e um psicólogo
podem se fazer ouvir ao mesmo tempo. Além
e aquém da diversidade das descrições,
existe uma linha de fundo comum, uma
maneira compartilhada de “ver as coisas”?
Abordaremos essa pergunta percorrendo a
terra natal do gender, isto é, o feminismo
radical (Capítulo I). Essa análise da
perspectiva histórica no início de nosso
estudo nos permitirá perceber o axioma
fundamental do gender radical (Capítulo II),
bem como seu projeto de desconstrução e
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advento de um mundo novo (Capítulo III).


Depois de breves considerações sobre os
“aliados históricos” do feminismo radical
(Capítulo V), entraremos em um “diálogo”,
ou mais precisamente numa “escuta até o
fim” do gender radical.
Em nível metodológico, cruzaremos uma
abordagem histórica com uma abordagem
lógica e sintética. Por meio do estudo do
feminismo radical e de seus aliados
históricos, queremos perceber a intuição de
base que guia os teóricos do gender radical,
penetrar no cerne da inteligibilidade de suas
idéias, encontrar seu princípio estruturante e
articulador e o movimento íntimo que o
anima, captar sua motivação existencial,
evitando toda simplificação e toda
caricatura. Em certos momentos, falaremos
sobre como as feministas radicais, de certo
modo, desposaram-se de sua maneira de
pensar. Com a ajuda de suas linguagens,
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indicaremos seu postulado inicial,


desenvolveremos suas teses e lhes
acompanharemos de forma crítica em suas
conseqüências e suas implicações de última
instância.
Ainda em nível metodológico, realizaremos
este estudo principalmente sob um ângulo
antropológico e filosófico, e não sob um
ângulo sociológico, como normalmente. “O
que é gênero?”. Estaria subjacente a nossas
pesquisas um posicionamento ou uma
premissa ideológica? Diríamos, sobretudo:
uma opção, uma maneira “humanista” de
refletir sobre o gender. É claro que não
negamos a legitimidade e a necessidade de
outras abordagens, como as que emanam das
ciências sociais, históricas, econômicas e
políticas. Mas suas análises, por mais
numerosas que sejam, não podem esvaziar a
questão filosófica da identidade, objeto
específico de nossa pesquisa atual.
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15 Este texto foi publicado na AA.VV., Gender qui est-tu?, Ed. de


l’Emmanuel, Paris, 2012.
16M. Peeters, La mondialisaion de la révolution culturelle
occidentale. Bruxelles: Institute for Intercultural Dialogue
Dynamics (Ed.), 2007.
17 Principalmente por meio do importante “Protocolo da Carta
Africana dos Direitos do Homem e dos Povos relativo aos
direitos das mulheres”, elaborado em Maputo, capital de
Moçambique, no dia 11 de julho de 2003, e ratificado daí em
diante pela grande maioria das 53 nações membros da
União Africana. Os bispos africanos, reunidos em Sínodo
em Roma em 2009, reagiram diante do que consideram
uma forma de neocolonialismo ocidental.
18Essa questão foi debatida no dia 8 de abril de 2011 no
Parlamento de Estrasburgo, pelos representantes dos 47
Estados membros da Assembleia Parlamentar do Conselho
da Europa. O objetivo não era em princípio teórico, mas
prático: a elaboração de uma nova convenção contra as
discriminações e as violências em relação às mulheres.
CAPÍTULO I
O FEMINISMO RADICAL, TERRA
NATAL DA GENDER THEORY

OS GENDER STUDIES SE DESENVOLVERAM


principalmente nos anos 70, a reboque do
movimento feminista radical
norte-americano. De um ponto de vista
histórico, ele se enraíza na “longa aventura
do feminismo, extremamente complexa e
sempre em curso”,[ 19 ] que se estende em
diferentes lugares e períodos.[ 20 ] Vejamos
sucintamente suas características principais.
1. Feminismo liberal e feminismo
socialista
A partir do século XIX, algumas mulheres se
sublevaram contra as desigualdades sociais
das quais eram vítimas, em especial no que
concernia aos salários e ao direito de voto.[
21 ] Elas queriam para si o que se quer para
todos: um tratamento justo, sem
discriminação, com efeitos legais. Nesse
sentido, depararam-se com preconceitos
socioculturais solidamente ancorados.
“Não”, clamaram em alto e bom som, “não
somos inaptas às responsabilidades públicas,
à criação artística”. Não, nosso “destino
biológico” não nos confina apenas à
maternidade, aos trabalhos diários e ao
exercício de funções subsidiárias. Não, não
queremos ser consideradas legalmente como
menores. Não, não somos detentoras de uma
natureza inferior à do homem, mais próxima
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da matéria que do espírito.[ 22 ] Não, não


pertencemos a uma subcategoria do
humano. Não, não nos definimos como uma
privação do masculino. As feministas, tanto
liberais[ 23 ] quanto socialistas, lutavam por
uma igualdade não apenas de direitos, mas
também de fatos.[ 24 ] Reformistas, elas se
engajaram na política e fizeram ouvir a sua
voz. Reclamavam mais justiça e se
organizavam para isso.
É nessa dinâmica reivindicatória do
feminismo histórico que as teorias do gender
surgem. Perceber esse ponto é capital. Os
gender studies, desde o início, tiveram um
âmbito e uma preocupação socio-políticos.
Não se trata de “pensadores de gabinete”,
porém de militantes que querem
transformar o mundo. Daí sua referência
contínua à ação eficaz e sua preocupação
com resultados concretos. O gender é um
conceito estratégico, ativo, “performativo”,
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forjado para a luta. “Os filósofos


limitaram-se a interpretar o mundo de
diferentes formas; o que importa, é
transformá-lo”.[ 25 ] Essa afirmação célebre
de Karl Marx, as feministas a retomam por
sua própria conta.
2. Feminismo marxista
Uma parte das feministas baseia sua luta
pela igualdade dos direitos em uma visão
marxista da história. Basta-lhes operar três
leves modificações, já preparadas por
Engels[ 26 ] e desenvolvidas pela Escola de
Frankfurt:
1ºsubstituir a classe proletária oprimida
pela das mulheres;
2ºsubstituir a classe capitalista opressora
pela das mulheres;
3ºsubstituir a história da luta de classes
pela da luta dos sexos.
Como, então, sair da dominação
multimilenária que os homens impõem às
mulheres? A resposta se encontra em Marx:
fazer a revolução. A classe das mulheres deve
se unir, se libertar e lutar contra a dos
homens. Deve, por exemplo, denunciar o
caráter alienante do casamento burguês, com
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sua dimensão monogâmica e indissolúvel.[


27 ] Tomar as rédeas de seu destino,
apropriar-se dos meios de produção e
preparar o advento de uma sociedade sem
classes, de paz e de prosperidade. Seu acesso
ao mundo do trabalho e da produção é, desse
ponto de vista, capital.
Essa visão marxista se distingue da dos
liberais e da dos socialistas. Ela afirma a luta
sem piedade entre os sexos como sendo a lei
da história. A relação fundamental que a
classe dos homens estabelece com a das
mulheres só pode ser uma relação de
dominação, de exploração, de alienação, de
opressão. O motor da história é a guerra dos
sexos, postulado que as tradições feministas
de origens liberais e socialistas não
partilham necessariamente. Esse é o segundo
elemento do qual se nutrem as teorias
radicais do gender: a relação entre os sexos é
invencivelmente conflituosa. Como escapar
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dessa dialética mortífera? Qual é a porta de


saída? A dominação das mulheres? Talvez
por um tempo, mas, se essa dominação das
mulheres perdurar, as relações seriam de
novo marcadas pela opressão de uma classe
pela outra.
A única saída possível, ensinarão algumas
décadas mais tarde as feministas radicais, é
suprimir a própria causa desse conflito, isto
é, a diferença dos sexos. “O objetivo
definitivo da revolução feminista deve ser
[...] não apenas acabar com o privilégio
masculino, mas também com a distinção
entre os sexos”.[ 28 ] Sem sexo, sem
dominação, sem discriminações. É preciso ir
aquém ou além da diferença homem-mulher.
O gender é concebido nessa “matriz” utópica
de uma sociedade sem classe, sem sexo.
3. Feminismos e liberação sexual
Seja ele liberal, socialista ou marxista, o
feminismo não tomou de imediato a forma
de uma reivindicação explicitamente sexual.
Porém, a partir dos anos 1960, a “questão
sexual” debutou com estardalhaço nos meios
sociais e culturais. “Faça amor, não faça a
guerra. Faça a revolução sexual. Lute pela
soberania de seus desejos e a inocência de
seus prazeres. Você tem direito a isso. Goze
sem entraves. Liberte-se da sujeição ao
pudor, de que foram vítimas durante séculos,
por ação de homens que tinham medo da sua
sexualidade, negavam-na e pretendiam
controlá-la. Viva o amor livre!”.
Muito rapidamente, no entanto, várias
feministas constataram que uma revolução
assim engendra de fato uma anarquia, uma
selva, um mercado que funciona em
benefício dos mais fortes, isto é, dos homens,
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numa sociedade dominada por eles. A


subordinação aos desejos masculinos é ainda
mais brutal do que antes. As relações sexuais
“liberadas” sujeitam as mulheres de uma
forma mais sutil do que na cultura patriarcal.
Andrea Dworkin chega a ponto de comparar
o ato heterossexual a uma “ocupação” do
corpo da mulher e aquela que se submete a
isso é uma “colaboradora”. Catherine
MacKinnon afirma que “a sexualidade está
para o feminismo assim como o trabalho está
para o marxismo: o que mais nos pertence e
que, contudo, nos é mais roubado”.[ 29 ] Em
suma, a opressão se torna mais total e mais
íntima.
Diante dessa constatação, algumas
mulheres exortam suas companheiras a
protegerem de forma ciumenta sua
independência em relação aos homens, a se
guardarem das queimaduras do “desejo
heterossexual”, a se libertarem de seus
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fantasmas masculinos para descobrirem seu


próprio universo mental. Uma série de textos
“comunitaristas” surgem. De acordo com
eles, a mulher e o homem deveriam viver em
duas “comunidades” separadas. Suas
respectivas culturas são incompatíveis,
incomunicáveis, opostas.
Seja interpretada segundo um esquema
marxista ou não, essa dinâmica sexual
feminista oferece um terceiro elemento de
compreensão dos gender studies, que
aparece nos anos 1970. Por trás da questão
de gender, de fato se esconde uma imperiosa
reivindicação de “gozar sem entraves”, de
poder exercer “livremente” qualquer prática
sexual. Mais precisamente, o gender vai
desenvolver uma concepção da sexualidade
que tende para a autonomia em relação ao
outro sexo, a um individualismo radical, a
uma independência todo-poderosa, a uma
“autosexualidade”.
4. Feminismo radical
O feminismo radical não é o único
feminismo, mas uma de suas grandes
vertentes atuais. Ele carrega em suas águas
muitos aluviões, e apresenta uma nova visão
da realidade, hipercrítica e subversiva. Seu
conceito central é o de gender, tomado de
empréstimo do psicólogo americano John
Money.
Em 1955, de fato o termo gender foi
utilizado por esse médico para designar uma
patologia: um indivíduo se sente do gênero
feminino e se comporta como tal, apesar de
ser geneticamente do gênero masculino.
Nesse caso, o indivíduo é claramente do sexo
masculino. Mas e quanto aos indivíduos
hermafroditas cujos órgãos genitais são
ambivalentes? E quanto aos indivíduos
interssexuais que se submetem a operações
quando jovens e se vêem como
39/186

“consignados” a um sexo por seus pais?


Nesses casos dolorosos, o gênero masculino
ou feminino não é nem um pouco percebido
como coincidente com o sexo. O conceito de
gender serve, nessas situações, de
ferramenta terapêutica para ajudar os
pacientes a elaborar sua identidade em
sofrimento. O mesmo se deu para o
psicanalista Robert Stoller, que estudou a
transexualidade nos anos 1960. Utilizando
esse fenômeno muito marginal, ele questiona
fortemente a norma heterossexual que ele
apresenta como fluida e instável.
Ao se afastar do ponto de vista clínico,
algumas feministas se apropriaram dessa
distinção entre sexo e gender. Uma das
primeiras foi a socióloga inglesa Ann Oakley
em seu livro Sex, Gender and Society, de
1972: “Sexo é uma palavra que se refere às
diferenças biológicas entre macho e fêmea:
as diferenças visíveis das partes genitais, as
40/186

diferenças relativas à procriação. Gender,


por outro lado, é uma questão de cultura: ele
se refere à classificação em masculino e
feminino”.[ 30 ] “Sexo” designa aqui o
aspecto estritamente biológico e inato do
indivíduo, enquanto que “gender” designa
seu aspecto sociocultural adquirido.
Várias feministas militantes se engajaram
nessa direção. Dentre elas, mencionemos
Judith Butler, cuja influência é
particularmente significativa.
Norte-americana nascida em 1956, ela se
doutorou em filosofia na Universidade de
Yale em 1984, com uma tese intitulada
Subjects of Desire. Hegelian Reflections in
Twentieth Century in France.[ 31 ] Ela se
confronta a esse respeito com vários leitores
franceses de Hegel: Kojève, Hyppolite, Sartre
e se interroga sobre a filiação hegeliana de
Foucault, Derrida, Lacan e Deleuze. Ela é
hoje professora nos departamentos de
41/186

Retórica e Literatura Comparada na


Universidade de Berkeley, na Califórnia. Sua
obra de 1990 – Gender Trouble: Feminism
and the Subversion of Identity – é referência
do feminismo radical. Ela foi traduzida em
francês em 2005: Trouble dans le genre.
Pour un féminisme de la subversion.[ 32 ]
O ano de 1995 marca uma nova etapa
importante. Realizada em Pequim, a IV
Conferência da ONU sobre a Mulher foi a
ocasião histórica de difundir essa nova teoria
em nível internacional e trabalhar em um
consenso mundial nessa área. O termo
gender aparece mais de 150 vezes no
documento final.[ 33 ]

19Carniaux, Benoît. Une généalogie de la philosophie


féministe nord-américaine. Texto não publicado, Université
de Sherbrooke, novembro de 2008, p. 4. Agradecemos
muito ao autor por nos ter comunicado os frutos de seu
importante trabalho. Agradecemos também a Marc
Timermans que compartilhou conosco o primeiro capítulo
de sua tese de doutorado em curso, Capítulo 1, “La
42/186

différence entre l’homme et la femme”, Institut d’Études


Théologiques, Bruxelles.
20O termo “feminismo” parece ter sido inventado pelo teórico
utópico Charles Fourier por volta de 1830 (cf. Bouchard,
Guy. Feminisme et philosophie: jalons, in Considérations,
vol. 7, no. 2/3, 1986, p. 24). O conceito se difundiu a partir
de 1892, após o Congresso dos Direitos da Mulher em Paris
(Groult, Benoîte. Le Féminisme au masculin. Paris, Denoël/
Gonthier, Coll. “Médiatons”, 1980, p. 16).
21Na França, seria preciso esperar até 1946 para que as
mulheres adquirissem o direito ao voto.
22Segundo Aristóteles, por exemplo, a mãe produz a matéria
enquanto que o homem produz a forma (cf. Collin,
Françoise. L’irreprésentable de la différence des sexes em
AA. VV., Catégorisation de sexe et construction scientifiques,
sob a direção de Anne-Marie Daune-Richard. Paris,
Éditions Université de Provence, 1989, p. 27-41.
23Uma de suas referências maiores é a obra de John Stuart
Mill, De l’asservissement des femmes (1869), trad. francesa
de Émile Cazelles. Paris, Éditions Avatar, 1992.
24Para tomar um exemplo na paisagem belga, assinalemos a
obra de Céline Fremault, Egaux? Pièges et réussites de
l’égalité hommes-femmes. Liège, Ed. Luc Pire, 2011, p. 13:
“O projeto deste livro parte da constatação de que é
indispensável pôr em funcionamento uma ação política
justa e eficaz, que torne eficientes as políticas da igualdade e
efetivos os direitos mais elementares das mulheres”.
43/186

25Marx, Karl. Thèses sur Feurebach. XI, in L’idéologie


allemande, trad. G. Badia. Paris, Editions sociales, 1968.
26“O primeiro antagonismo de classes que apareceu na
história coincide com o desenvolvimento do antagonismo
entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira
opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo
masculino” – Engels, Friedrich. A origem da família, da
propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 9ª Ed., 1984, p. 70-71.
27Como observarão algumas feministas, todas as mulheres
não são oprimidas da mesma forma, nem no mesmo grau.
Aliás, o “tipo” da mulher branca de classe média
heterossexual é muito opressor em relação aos outros tipos
de mulheres.
28Firestone, Shulamith. The Dialectic of Sex. New York:
Bantam Books, 1970, p. 72. “[…] assim como o objetivo final
da revolução socialista era não apenas acabar com os
privilégios da classe econômica, mas também com a própria
distinção que existia entre as diferentes classes
econômicas”.
29Scott, Joan W. Gender: une catégorie utile d’analyse
historique, in Les Cahiers du GRIF, vol. 37/38, Printemps,
1988, p. 131.
30Oakley, Ann. Sex, Gender and Society. Londres, Temple
Smith, 1972, p. 16.
31Como Judith Butler escreveu em Feminism and Subversion
of Identity, Prefácio à Edição em Brochura (Columbia
University Press, New York, 1999, p. 14): “Em certo sentido,
44/186

toda a minha obra continua a gravitar da órbita de certo


conjunto de questões hegelianas: qual é a relação entre o
desejo e o reconhecimento e como se dá que a constituição
do sujeito gere uma relação radical e constitutiva na
alteridade?”.
32Prefácio de Eric Fassin, tradução de Cynthia Kraus, La
Découverte, Paris, 2005. No Brasil, foi traduzido como
Problemas de gênero – feminismo e subversão da
identidade, tradução de Renato Aguiar, Civilização
Brasileira.
33Cf. Sallé, Lucienne. “La conférence de Beijing: quel
développement pour quelle égalité? «, in Nouvelle revue
théologique 118 (1996), p. 321-339.
CAPÍTULO II
O AXIOMA FUNDAMENTAL DA
GENDER THEORY

DEPOIS DE TER EXPLORADO EM LINHAS GERAIS a


terra natal da gender theory, estudaremos
agora a diferença entre gender e sexo, que
constitui seu axioma fundamental, seu
princípio de base.
1. Distinção entre sexo e gender
a) SEXO
Para os teóricos do gender, “sexo” designa
um dado biológico que comporta vários
parâmetros dinâmicos e evolutivos, em
íntimas interações uns com os outros. Assim,
os fatores cromossômicos ou genéricos (XX
na mulher e XY no homem) se estabelecem
desde a fecundação procriativa e engendram
o sexo gonodal, responsável pela atividade
hormonal. Os fatores somáticos ou
fenotípicos determinam os órgãos internos e
externos de reprodução. Esses diversos
fatores influenciam o organismo em sua
integralidade, inclusive o cérebro em seu
processo de estruturação e funcionamento.
Ao contrário da caricatura que por vezes se
faz, a gender theory não nega de maneira
alguma a objetividade fisiológica da
diferença dos sexos. Ela constata e elabora
48/186

sua reflexão a partir dela. É certo que alguns


autores tentaram modelar essa “matéria
bruta” a partir do zero, mas essa não é a
primeira preocupação dos teóricos do
gender. Em suma, segundo a perspectiva
profunda do gender radical, o sexo pertence
à natureza humana tomada num sentido
exclusivamente biológico. Aparece, então,
como um dado “pré-humano”, comparável
ao dado animal.
Tal definição da natureza humana reduz
consideravelmente o âmbito
tradicionalmente reconhecido desse
conceito. Ela tende a fazer desta uma
entidade abstrata, um ser de pura razão.
“Natureza”, de fato, vem de “nascer” (nasci)
em latim. Ela designa aquilo com o quê
nasce um ser, isto é, suas propriedades
originais e fundamentais, suas características
mais íntimas e mais constitutivas, sua
própria essência, seu princípio de operação
49/186

específico.[ 34 ] Ora, a natureza humana,


diferentemente da natureza animal, é plena
de espírito. Ela ordena aos homens e
mulheres a viverem e a agirem livremente,
segundo a razão e o amor. Ela é
indissociavelmente carnal e espiritual, numa
alquimia misteriosa que não parou de ser
interrogada durante séculos. A natureza
humana não é nem um pouco redutível à
pura “extensão”, no sentido cartesiano do
termo, ou ao que o olhar das ciências pode
perceber aí, ou ainda a um dado opaco
oposto à liberdade e à cultura.
O mesmo se dá no que tange ao sexo
humano. Longe de ser um “resíduo bestial”,[
35 ] este traz em si uma significação
humana. Ele está sempre repleto de
humanidade. Existe uma “profundidade”.
Friedrich Nietzsche escreveu em Além do
bem e do mal (§238): “O grau e o tipo de
sexualidade de um homem atingem os cumes
50/186

mais altos do seu espírito”. E Gustave Thibon


acrescentou: “O tipo e o grau de
espiritualidade de um homem atingem as
profundezas do sexo”.[ 36 ]
“Pouco tempo após a morte de
Michelangelo”, escreveu o Papa Bento XVI,
“Paolo Veronèse foi convocado pela
Inquisição, acusado de ter pintado figuras
inapropriadas em torno da última Ceia. O
pintor respondeu que, na Capela Sistina
também, os corpos eram representados nus,
de forma pouco respeitosa. Foi justamente o
inquisidor que tomou a defesa de
Michelangelo com uma resposta que ficou
célebre: ‘Não vês que nada há nessas figuras
que não seja do espírito?’. Vivendo na época
moderna, temos dificuldade em
compreender essas palavras, pois o corpo
nos parece uma matéria inerte, pesada,
oposta ao conhecimento da luz, da vida, do
51/186

esplendor. Ele queria mostrar com isso que


nossos corpos escondem um mistério”.[ 37 ]
Natureza, sexo, corpo. Essas realidades não
são de forma alguma redutíveis ao animal
biológico puro. Todas as gender theories
repousam, contudo, sobre essa abstração
primeira e acrítica: o sexo pertence a uma
ordem puramente materialista cujo estudo
cabe aos cientistas e técnicos da vida.
b) GENDER
O termo gender vem do latim genus,
generis e do grego genos. Ele se refere à
geração (generatio) e à origem para
identificar os seres, diferenciá-los uns dos
outros e reagrupá-los em categorias
homogêneas. No registro linguístico, ele
exprime uma classe, um grupo de indivíduos
ou de coisas a partir de uma característica
fundamental comum, a partir de uma
determinação que eles partilham. No que
52/186

concerne ao sujeito que nos ocupa, qual é a


característica comum às mulheres que lhes
distingue dos homens? Qual determinação
permite diferenciá-las do gênero masculino?
Desde sempre, o sexo, no sentido amplo e
integral do termo, ocupa um lugar essencial
nessa distinção. A humanidade é assim
dividida em gênero feminino e gênero
masculino a partir de parâmetros físicos,
psíquicos e espirituais. Os gender studies
interrogam esse critério de classificação que
eles julgam demasiado fixista,
diferencialista, biologizante, fechado. Eles
insistem, sobretudo, na elaboração da
identidade sexual com o passar dos anos e
gerações, por meio da educação recebida, da
cultura na qual o sujeito está imerso, nas
determinações sociais que o afetam, nas
forças do poder que o pressionam. A maneira
de parecer homem ou mulher não evolui com
o tempo, segundo a percepção que dele têm
53/186

os membros de uma sociedade? Estamos


totalmente de acordo: o “gênero feminino” é,
em parte, o resultado de um processo
histórico e cultural. Ele possui um aspecto
psicossocialmente “elaborado”, termo que
preferimos ao de “construído”. O século XX,
com seu extraordinário desenvolvimento das
ciências psicológicas e sociais, tem uma
consciência aguda disso. A masculinidade e a
feminilidade não decorrem apenas do inato,
mas também do adquirido. Na língua
francesa, esse adquirido sociocultural era
designado até hoje pela expressão “sexo
psicossocial”. As feministas substituíram
essa expressão pela de gender.
A distinção entre sexo e gender pretende
então lançar luz sobre o aspecto elaborado
das identidades sexuadas e papéis que lhes
são atribuídos nessa sociedade, em dado
momento de sua história. Porém, nem todos
os promotores do gender colocam em
54/186

questão o parâmetro biológico dos sexos.


Nem todos negam necessariamente a “rocha
da diferença”[ 38 ] natural entre os homens e
as mulheres. Alguns dentre eles reconhecem,
até certo ponto, a importância desse dado
inato, não escolhido, herdado no
nascimento. Porém, se engajam, sobretudo,
em contextualizar esse dado, em estudar
seus processos de maturação e de
desenvolvimento a partir de fatores culturais
e psicossociais.
Esse aspecto cultural da identidade – seja
ela individual ou coletiva – não se opõe de
forma alguma a seu aspecto natural. Pelo
contrário. Sexo e gender aparecem assim,
como dois elementos constitutivos do ser
humano, ordenados um ao outro, distintos
para as necessidades da análise, mas não
separáveis na realidade. É nessa linha que se
inscrevem as pesquisas e reivindicações de
uma série muito importante de feministas.
55/186

Contudo, ao adotar de forma não crítica a


concepção redutora do sexo humano
apresentada acima, essas feministas
“moderadas” são aos poucos levadas para o
feminismo radical. Considerando o corpo ou
a natureza numa perspectiva principalmente
biologizante e naturalista, elas tendem a
fazer repousar, cada vez mais, o peso da
identidade feminista, sobretudo sobre seu
aspecto socialmente construído. E muitas
atravessam o Rubicão sem nem saber e nem
querer de verdade. Elas não se contentam
mais em distinguir sexo e gender. Elas os
dissociam radicalmente, ocupando assim as
posições das feministas ditas “radicais”.
2. Separação entre sexo e gender
As feministas radicais de fato relativizam
tanto os dados biológicos que estes se
tornam insignificantes em relação ao gender
masculino ou feminino. O sexo é concebido
como uma natureza bruta e sem real
interesse, um neutro infra-humano, da
matéria informe, um tipo ôntico
indeterminado. Nessa perspectiva, a
diferença anatômica macho-fêmea fica
desprovida de toda significação profunda.
E ainda mais: determinados fatores
biológicos são apresentados como forças de
resistência à verdadeira humanidade das
mulheres, como condicionantes alienantes.
Natureza e cultura, longe de se inscreverem
no prolongamento uma da outra,
estabelecem nesse caos uma irredutível
relação de oposição. Shulamith Firestone
convida as mulheres a se libertarem da
57/186

“tirania da biologia”.[ 39 ] Aqui a


maternidade, mais do que toda outra
realidade, é visada.
Nessa perspectiva, o elemento do gender é
declarado absolutamente determinante. O
homem e a mulher aparecem exclusivamente
como as conseqüências de construções
sociais. Eles se definem essencialmente
como produtos convencionais, como
fenômenos artificiais, como invenções
históricas, como funções ou papéis
executados na cena do mundo. Nelas
mesmas, as categorias de masculino e
feminino não são fixadas pela diferença
sexual. O ser humano nasce “neutro”: ele se
torna “homem” ou “mulher” unicamente
pelo processo de socialização, processo que
está em grande parte nas mãos do poder
político. O gender constrói tudo. Ele
representa tudo, inclusive os próprios sexos.
É pelo gender que se cria a verdadeira
58/186

identidade dos indivíduos. “Não existe


gender mais adequado a um sexo que a
outro”.[ 40 ] “O real e a facticidade sexual
são construções fantasmáticas”.[ 41 ] Eles
não passam de substratos individuais
neutros moldados pelos genders. Então, por
que deveríamos nos limitar a dois genders?
Uma vez rompida a ligação com o sexo, não
poderíamos imaginar outros genders, outras
construções sociais?
3. Multiplicidade dos genders
Várias gender theories desmembram de
cinco a sete genders, isto é, de cinco a sete
“construções sexuais”: homossexual, lésbico,
transexual operado ou não operado,
heterossexual, bissexual, indiferenciado. Elas
pretendem escapar do modo binário de
conceber a realidade: “Não ao
heterocentrismo ou ao heterossexismo. Sim
aos comportamentos sexuais alternativos
que possuem uma legitimidade pelo menos
equivalente ao do modelo atualmente
dominante. “O eterno feminino”, “o eterno
masculino” e suas relações mútuas não
passam de fantasmas socioculturais, não de
realidades ontológicas e normativas”.
Conduzidas por sua lógica, certas feministas
afirmam que o número dessas “identidades”
é bem mais alto. Para Marie-Hélène
Bourcier, por exemplo,[ 42 ] os genders não
60/186

são dois, cinco ou sete, mas inúmeros.


Resultados de livres construções, existiriam
tantos genders quanto indivíduos. “O que
quer dizer”, comenta Michaela Marzano,
“que cada indivíduo pode construir e
inventar sua própria sexualidade, original e
incomparável, que não há nem dois sexos
nem dois genders, mas uma infinidade de
escolhas possíveis”.[ 43 ] Qualquer que seja o
substrato sexual biológico de base, o ser
humano pode, e deve, escolher seu gender e
seu funcionamento sexual. E essa escolha
pode evoluir durante a vida.
Que caminho percorrido! Que oscilação
operada! Doravante não é mais o sexo
psicossocial que se elabora na continuidade
do sexo humano, mas o gender que criou o
sexo. O gender absorve, de certa forma, o
sexo em seu movimento de absoluta
auto-afirmação e o modela à sua imagem.
Em última análise, se torna não distinguível
61/186

do sexo, como observa Judith Butler. Não


existe sexo “pré-dado” (pregiven). “O sexo é
uma categoria ‘marcada pelo gênero’
(gendered category)”.[ 44 ] Ele é uma
construção político-social e deve ser tratado
como tal. Ele é de certa forma o espelho do
gender, sua figura, sua expressão exterior.
Em suma, enquanto inicialmente o gender
designava uma classe (homem-mulher) a
partir de uma característica comum ligada
com a origem (o sexo), ele de agora em
diante remete a uma não classe (todos os
indivíduos) que possuem a mesma
característica comum (o socialmente
construído) sem ligação com a origem (o
sexo). O conceito de “gênero” muda então de
definição.[ 45 ] Ele se torna princípio de
indeterminação, de indiferenciação e
confusão entre os seres. Tudo é gender.
4. Opressão universal do gender
heterossexual
Segundo a perspectiva esboçada acima, as
identidades são, então, totalmente
constituídas pelos genders. Ora, ainda
segundo essa perspectiva, o gender
heterossexual nega essa “verdade
axiomática” há milênios, em todo canto, e
isso de um ponto de vista ao mesmo tempo
prático e teórico. Por quê? Por puro
interesse. Ele utiliza fatos exclusivamente
biológicos (o sexo masculino e o sexo
feminino) para assentar seu poder sobre
outros genders e dominá-los. Ele se apropria
de dados naturais para reivindicar o direito
de ser o único gender legítimo em nível
científico, cultural, social, político e até
mesmo antropológico, metafísico e religioso.
Ele se impõe como único “natural” e condena
63/186

impiedosamente os outros genders à


marginalidade, à patologia e à imoralidade.
À sua maneira, a gender theory reconhece
aqui que quase todas as sociedades estão
baseadas na diferença dos sexos. Mas, em
lugar de discernir aí um dado positivo,
portador de vida, ela vê uma invenção que
falseia tudo e gera um mundo enraivecido
pelos conflitos. Ela propõe assim uma “nova”
leitura dos célebres primeiros versículos do
Livro do Gênesis. “Homem e mulher ele os
criou [...] e Deus viu que isso era muito bom”
vira “Gender heterossexual o poder impôs. E
isso era muito ruim”. A gender theory
decreta um tipo de “pecado original”
político-social: a opressão universal do
gender heterossexual.
Os grandes responsáveis por esse vasto
empreendimento de mistificação opressiva,
sempre segundo essa teoria, são os
indivíduos do sexo masculino.[ 46 ] Para
64/186

garantir seu poder, estes criaram


estereótipos masculinos e femininos. Eles
instituíram entre eles relações de
dominadores e de dominados em seu próprio
proveito, segundo uma visão marxista ou não
da história. Como libertar o mundo dessa
violência da qual as mulheres são as
primeiras vítimas? Como estabelecer
relações de igualdade? A gender theory
retoma aqui as temáticas caras às feministas
socialistas, liberais, marxistas e oriundas da
liberação sexual: desigualdades, dominações,
alienações, opressões às vezes muito sutis,[
47 ] críticas de discriminações e mecanismos
de injustiça, lutas político-culturais.[ 48 ]
“Vocês estão exagerando”, objetam algumas
feministas moderadas. “Nós não nos opomos
à heterossexualidade, mas apenas às
injustiças ocultas ou expostas para quem
quiser ver”. “Certo”, respondem-lhes as
feministas radicais, “a raiz de todos os males
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não é o gender heterossexual enquanto tal.


Este é também um gender. Nesse sentido,
tem direito à existência e ao respeito, em
estrita igualdade com os outros genders.
Mas por sua composição específica, será
sempre eivado de ambigüidade. Sempre
sofrerá a tentação de se considerar como o
único supostamente fundado num nível de
direito natural e divino. A cada instante,
periga cair numa forma ou em outra de
‘diferencialismo’ que ‘essencializa’ as
diferenças biológicas macho-fêmea e que é
de fato um instrumento de assujeitamento
dos outros genders e das mulheres. Sempre
terá uma propensão para a arrogância, a
intolerância, a hegemonia, o imperialismo, a
colonização, o totalitarismo. Convém então
vigiá-lo de perto, enquadrá-lo juridicamente
e educar com atenção a progenitura oriunda
de tal gender para evitar a reprodução de
66/186

estereótipos heterossexistas”. A lógica é


perfeita!
A gender theory se baseia no seguinte
axioma: o sexo humano é em si
insignificante. Afirmar o contrário, como o
fazem os diferencialistas heterossexuais, gera
muitas violências, conflitos e alienações.
Como escapar desse empreendimento
plurimilenar imposto pelos heterossexistas?
A “salvação”, segundo os radicais do gender,
passa pela “desconstrução”, expressão
central na obra de Jacques Derrida.[ 49 ]
Trabalho de titã! Os radicais do gender
conclamam a uma nova revolução cultural,
política, jurídica, filosófica... total. Seu
objetivo, notemos bem, não é antes de tudo a
obtenção de uma igualdade de direitos entre
homens e mulheres, diferentemente das
feministas autênticas. Uma reivindicação
assim não lhes interessa em nada e poderia
até mesmo, em certos casos, se contrapor a
67/186

seus planos.[ 50 ] Sua ambição é muito mais


radical e integral: levar os seres humanos e
suas sociedades para além da diferença
homem-mulher, para além da diferença
sexual, para além do que consideram como
um insustentável resíduo do colonialismo
patriarcal e do machismo tribal.

34“Engana-se”, escreve André-Joseph Léonard, “se


subentende-se por ‘natureza’ a ideia de um dado biológico
bruto ou de uma natureza física determinista ou de um
estado primitivo de humanidade anterior à cultura. [...] Na
linguagem de Tomás de Aquino e da Igreja Católica,
‘natureza’ significa propriamente ‘o que é’ uma realidade;
em termos mais eruditos, sua ‘essência’. Se a natureza assim
compreendida, é claro que a liberdade e a cultura fazem
parte do que há ‘de essencial’, portanto da natureza, nesse
sentido amplo”. Agir en chrétien sa vie et dans le monde.
Namur, Bélgica: Éditions Fidélité, 2011, p. 17.
35Hadjadj, Fabrice. La Profondeur des sexes: Pour une
mystique de la chair. Paris: Seuil, 2008, p. 12.
36Citado por Hadjadj, Ibid., p. 18.
37Discurso pronunciado pelo Papa Bento XVI no dia 13 de
maio de 2011 por ocasião do 30º aniversário da fundação do
68/186

Instituto Pontifício João Paulo II para os estudos sobre o


casamento e a família.
38Cf. Lacroix, Xavier. De chair et de parole. Fonder la famille.
Paris: Bayard, 2007, p. 135-170.
39Firestone, Shulamith. The Dialectic of Sex: The Case for
Feminist Revolution. Nova York: Morrow, 1970, p. 12.
40Butler, Judith. “Imitation et insubordination du genre”, in
Rubin, G. S. E Butler, J. Marché du sexe. Paris: EPEL, Col.
“Les grands classiques de l’erotologie moderne”, p. 154.
41Butler, Judith. Gender Trouble, op. cit. p. 199.
42Sexpolitiques, Queer Zones 2, La Fabrique, 2005.
43Marzano, Michaela. Vers l’idifférenciation sexuelle?, in
Études (juillet 2009), p. 46.
44Butler, Judith. Gender Trouble, op. cit. p. 7-8.
45Eis porque, neste trabalho, mantivemos o termo em inglês
gender. Pela utilização voluntária dessa palavra estrangeira,
queremos manifestar a diferença em relação à concepção
clássica do termo “gênero” e contribuir assim para dar um
esclarecimento. Gender é de fato um neologismo ou mais
precisamente uma “transmutação” do conceito de “gênero”.
46Cf. capítulo seguinte.
47Segundo Christine Delphy, o conceito de opressão constitui
a base de todo estudo e de toda postura feministas. (Cf.
Bouchard, Guy. “Féminisme et philosophie: jalons”, op. cit.,
p. 48).
48O segundo sexo (1949) é emblemático para esse ponto de
vista. Simone de Beauvoir opera aí uma crítica radical dos
condicionamentos culturais forjados a um Ocidente
69/186

patriarcal. Ela reinterpreta à sua maneira a dialética


hegeliana do senhor (o homem) e do escravo (a mulher) e as
relações desiguais que resultam de seu confronto.
49Ao longo de sua obra, o filósofo francês (1930-2004)
interroga e “desconstrói” incansavelmente os pares de
oposições: fala e escrita na lingüística, razão e loucura na
psicanálise, sentido conotativo e denotativo na literatura,
masculino e feminino na antropologia. Essas diferenças,
segundo ele, têm sua origem na différance com “a”, isto é,
na atividade geradora de diferenças.
50“Achamos que nenhuma mulher deveria ter o direito de
fazer essa escolha. Não deveríamos permitir que nenhuma
mulher ficasse em casa para cuidar dos filhos. A sociedade
deveria ser totalmente diferente. As mulheres não deveriam
ter essa opção, se essa opção existir, mulheres demais a
escolherão”. (Hoff Sommers, Christine. Who Stole
Feminism? op. cit., p. 257).
CAPÍTULO III
O PROJETO DO GENDER
RADICAL: DESCONSTRUIR PARA
CRIAR UM MUNDO NOVO

NO ÂMBITO DESTE TRABALHO, não podemos


passar em revista todos os domínios
desconstruídos pelo feminismo radical: a
sociedade, a política, a cultura, a religião, a
ecologia, a ética, etc. Os gender studies são
vários: os Eco-criticism Studies, por
exemplo, ou os Black and Minority Studies,
os Postcolonial Studies, os Diaspora Studies,
os Cyberpunk and Science Fiction Studies ou
ainda os Trauma Studies. Fiéis ao nosso
ângulo específico de pesquisa, nos
contentaremos em dar as linhas gerais de
três desses domínios, que se referem mais
diretamente à identidade humana: a
maternidade, a família e a linguagem. Como
72/186

anunciado em nossa introdução, adotamos o


modo de expressão e de pensamento dessas
desconstruções, o que não significa, no
entanto, que as aceitemos. Vamos nos
contentar em acompanhar as feministas
radicais em seu empreendimento colossal.
Comecemos pela maternidade, que nos
parece emblemática e significativa em
muitos aspectos.
1. Desconstrução da maternidade
A maternidade depende da relação com um
marido? Ela está em relação com a
paternidade de um homem? De forma mais
radical ainda, a maternidade está
necessariamente ligada à feminilidade?
Essas questões, respondem as feministas
radicais, apresentam armadilhas. Elas
confundem o que decorre do sexo biológico
(a “reprodução” propriamente dita) e o que
decorre do gender construído, a saber, os
papéis femininos, a relação heterossexual
instituída, o papel maternal e sua relação
com o papel paternal. Para começar, é
preciso basear mais exatamente essas
questões nos termos a seguir: a reprodução
está necessariamente ligada à feminilidade, à
relação heterossexual e à função maternal
em sua eventual relação com a função
paternal?
74/186

Historicamente, não resta dúvida. Essa


ligação foi onipresente, com diferentes
nuances. Devido a suas predisposições
biológicas, aos indivíduos do sexo feminino
foram atribuídas a reprodução e as tarefas
ligadas a ela. Foram considerados antes de
tudo como “ventres”, como instrumentos
para perpetuar a espécie. O gender
heterossexual foi construído para esse efeito.
Ele constitui um tipo de prisão social e
cultural encarregada de subjugar uma
categoria de seres humanos num papel
sobretudo biológico (a reprodução) e de lhes
manter lá por todos os meios. Esse tipo de
gender é, portanto, o resultado de uma
relação de força, de dominação, de alienação
e de opressão apresentada ideologicamente
como uma “fatalidade”, um “destino” inscrito
na intimidade dos corpos. As conseqüências
sociais são incalculáveis.
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Neste início de século XXI, vemos o


despertar de uma nova consciência.
Assiste-se a uma progressiva libertação em
relação à tirania biológica da maternidade.
As descobertas técnicas, assim como certas
práticas sociais recém-legalizadas, são de
uma ajuda inestimável para embasar esse
ponto de vista: contracepção, legalização do
aborto, AMP (“assistência médica à
procriação”), homoparentalidade, GDS
(“gestação de substituição”, normalmente
chamada de “barriga de aluguel”). Uma
mesma lógica atravessa essas aquisições
sociais: a dissociação do que havia sido até o
momento indevidamente confundido: o sexo
e o gender.
Não se trata aqui de um jogo de conceitos.
Sociedades inteiras estão concretamente
impregnadas por essa nova forma de encarar
a realidade. Várias vidas humanas são muito
intimamente afetadas por isso. Aos poucos,
76/186

os indivíduos dotados de características


femininas recebem os meios de se libertarem
de restrições biológicas que lhes mantiveram
por longo tempo como cativos. Ainda é
preciso que esses indivíduos possam ter
acesso a essas novas técnicas e exercer seu
controle. Os indivíduos dotados de
características masculinas, com efeito,
perigam de confiscar essas ferramentas e
reforçar seu poder. Porém, a história está em
marcha e “direitos reprodutivos” foram
promulgados para combater esse perigo. As
mulheres adquiriram, enfim, a propriedade
de seus corpos e tomaram as rédeas de seu
destino. A fabricação de úteros artificiais
muito provavelmente marcará o advento de
uma nova era nessa área. Quando a
tecnologia tiver vencido com êxito esse
desafio, os indivíduos do sexo feminino
estarão enfim plenamente libertados das
servidões da reprodução. Elas poderão
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exercer sem entraves sua “livre escolha pela


reprodução”, com quem elas quiserem,
quando elas quiserem e da forma como
quiserem.
Observemos o deslizamento do vocabulário.
Não se fala mais de “procriação”, conceito
muito ligado à ilusão de um Deus criador,
mas de “reprodução”, termo que, até aqui,
pertencia principalmente ao mundo dos
animais ou dos objetos. Evita-se empregar
categorias como “pai”, “mãe”, “paternidade”,
“maternidade”, pois eles misturam nas
representações culturais o sexo e o gender. A
“mãe” não passa de uma construção
psicossocial, um papel mais ou menos
livremente endossado. É melhor falar de
função maternal, ou de maternalidade, que
pode ser exercida por um indivíduo do sexo
feminino, neutro, masculino ou mutante.
Mais radicalmente ainda, a maternalidade,
com sua referência implícita à paternalidade,
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não permanece ligada demais ao gender


heterossexual? Não seria preferível utilizar o
termo “parentalidade”? De maneira geral, é
melhor falar com palavras ou claramente
biológicas ou claramente funcionalistas (ou
então forjar a necessidade de se usá-las).
Analogamente, é necessário evitar um
vocabulário que una esses dois registros, sob
pena de ver-se perpetuar indefinidamente a
nociva dominação do gender heterossexual,
com sua corte de injustiças, violências e
opressões.
2. Desconstrução da família
A desconstrução da maternidade pressupõe
e implica a desconstrução da estrutura
familiar clássica, burguesa ou tradicional:
dois indivíduos adultos de sexos diferentes,
tendo estabelecido uma relação estável e
exclusiva e exercendo funções reprodutivas e
parentais. Ao se olhar de perto, tal
agenciamento de indivíduos humanos não é
tão inocente quanto parece à primeira vista.
Na realidade, é o produto de uma cultura em
que o homem do sexo masculino se
constituiu senhor, confinando “o sexo fraco”
às tarefas ligadas à reprodução, imaginando
para esse efeito um estereótipo feminino
determinado: o da mulher submissa, passiva,
pouco racional, próxima do biológico,
aquartelada numa casa, esposa e mãe.
Segundo essa mesma lógica, o “sexo forte” se
criou também de acordo com um estereótipo
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determinado: o do homem dominador, ativo,


racional, criativo, trabalhador, marido e pai.
Articulados um no outro, esses dois
posicionamentos forjam o gender
heterossexual de onde derivou a “família”.
Essa realidade social é, portanto,
artificialmente construída a partir de
relações de desigualdade e opressão. Ela não
é nem “natural”, nem divinamente garantida.
Ela não tem que se impor aos outros genders
como sua referência absoluta, como foi o
caso desde tempos imemoriais.
Há milênios, de fato, a família esconde de
todo o mundo, e talvez dela mesma, sua
verdadeira origem: o poder e a dominação da
classe do “sexo forte”. Ela secreta por todo
lado sua mentira de uma origem
supostamente natural ou mesmo divina e,
portanto, a única autorizada. Como vimos no
item anterior, ela é um gender hegemônico e
totalitário que não reconhece sua situação de
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gender. Ela secreta o mito segundo o qual


ela, e somente ela, estaria fundamentada no
“ser”. Sofrendo de gender-blindness
(cegueira de gender), ela se erige em norma
indiscutível e em censor impiedoso de todos
os genders.
Ora, outras configurações familiares são
possíveis, desejáveis e mesmo preferíveis.
Existem outros modelos familiares,
conseqüências e princípios de outros estilos
de vida. Várias combinações são possíveis,
por exemplo as famílias homoparentais, as
famílias monoparentais, as famílias
recompostas e as famílias surgidas de uniões
estáveis.[ 51 ] Eis porque não se pode mais
falar “da” família, no singular, como se o
modelo heterossexual burguês fosse o único,
mas das famílias, no plural, ou da família
polimórfica. E outras configurações
familiares ainda estão para serem
inventadas! Contudo, de um ponto de vista
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estratégico, no momento elas são ainda


transgressivas demais, talvez, e se
arriscariam a ser rejeitadas por uma
sociedade sempre muito afetada pelo
traumatismo heterossexista.
Esses novos modelos familiares apresentam
a grande vantagem de separarem sexo e
gender. Eles favorecem a edificação de cada
um segundo sua opção, na descontinuidade
entre o biológico e o cultural. Os filhos que
crescerem em tais configurações serão, desse
ponto de vista, afortunados. Em nome da
não discriminação, é preciso cuidar das
crianças que não tiveram a chance de
crescerem num meio heterossexista.
Programas escolares são introduzidos para
retificar os condicionamentos ideológicos
que elas sofrem em suas famílias marcadas
pelo biológico e marcadas pelo gênero. Esses
programas objetivam despertar a consciência
para imagens, conceitos e papéis
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sexo-específicos que lhes fazemos


desempenhar e que eles tendem a reproduzir
mais tarde. Convém investir de modo
prioritário na educação. O que está em jogo é
capital para a construção da sociedade do
futuro. Quaisquer que sejam as convicções
de seus pais,[ 52 ] os futuros cidadãos devem
ter acesso desde a infância, de um lado, a
uma consciência crítica do universo no qual
eles se movem, e, de outro, à liberdade de
escolha.
O ideal seria a supressão pura e simples da
família biológica, estrutura violenta e
opressiva há milênios, indo ao encontro dos
interesses mais profundos de todos os seres
humanos e das mulheres, em particular.
Mais precisamente, o ideal seria que uma
configuração assim apareça como um gender
entre os vários possíveis, que possamos
eventualmente escolher[ 53 ] com toda a
liberdade, advertidos das armadilhas e das
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ambigüidades sexistas com que essa


configuração está e estará para sempre
marcada.
3. Desconstrução da linguagem
Ligados a essa gender approach da
maternidade e das famílias, os gender
studies foram levados a tratar da linguagem
pelo que as feministas norte-americanas
chamaram de French feminists. Esses
estudos se inspiram em certas correntes
psicanalíticas e neoestruturalistas. Elas
consideram que uma linguagem expressa
sempre, mais ou menos diretamente, as
relações de poder que existem entre os
diferentes genders, seus interesses
convergentes e conflituosos. No âmbito de
nossas sociedades pós-modernas, a
linguagem é o resultado de um
posicionamento heterossexista, alienante
para as mulheres. Hegemonicamente, esse
estereótipo de linguagem “marcada pelo
gênero” modelou tudo. O mundo está
banhado, por assim dizer, nas palavras,
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numa gramática, em símbolos, num


imaginário e em concepções falocráticas. O
mesmo se dá em relação à racionalidade.
Esta porta o selo da potência masculina por
sua sistematicidade e seu esforço constante
de tudo unificar para melhor dominar.
Para Luce Irigaray, a linguagem masculina
se reconhece por sua pretensão unificadora.
Ela é terrivelmente significativa na aventura
da cultura ocidental. O gender feminino, por
outro lado, habita o espaço do não-um, da
destotalização. “A mulher”, ela fala. Mas não
“semelhante”, não o “mesmo”, não “idêntica
a si” nem a um X qualquer, etc. Fala
“fluido”.[ 54 ] Fala de maneira sugestiva,
multidimensional, móvel, circular,
subversiva – inclusive nos “espaços” de seu
discurso –, plural segundo as perspectivas
divergentes, não perdendo nunca de vista o
singular. Eis a “lógica” do feminino, bem
diferente da atribuída por certos
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movimentos feministas que reivindicam a


pura igualdade com o masculino. A mulher
deve falar “mulher”. É preciso evitar a todo
custo que ela seja assimilada ao masculino.
Haveria, segundo Luce Irigaray, uma
“essência feminina do discurso” prévia ao
gender? Sim e não. Não, na medida em que,
para essa psicanalista, a fala desempenha um
papel determinante na constituição do
sujeito. “Falo, logo sou”. É falando que sou. É
falando “homem” que sou homem e é
falando “mulher” que sou mulher. Isso quer
dizer que não há diferença essencial entre a
fala masculina e a fala feminina? Luce
Irigaray se refere a uma “física do líquido”,
que ela distingue de uma “física do sólido”.
Para Monique Wittig, essa questão não se
coloca. A “mulher universal”, ou mesmo o
“feminino”, não existe. A linguagem é
absolutamente primeira. Tudo é linguagem.
“Deus diz e assim se faz”, lemos no primeiro
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capítulo do Gênesis. Em nosso universo


desimpedido da ilusão religiosa, isso
significa: “A linguagem humana diz e assim
se faz”. Ela tem um poder criador. Ela faz o
que diz. Ela é performance ou performação.
Fazer é ordenar, fazer existir e fazer
desaparecer, instituir, constituir e destituir.
Manipulada pelos homens, a linguagem
ocidental, segundo Monique Wittig,
construiu um universo heterossexista a
partir do seguinte raciocínio ideológico: há a
ordem natural e normativa; somente o
gender heterossexual está fundamentado
sobre essa ordem; então, os outros genders
são antinaturais; então são desordenados e
ilegítimos sob todos os pontos de vista. Esse
tipo de raciocínio e de linguagem é imposto à
força de repetições compulsivas e
encantatórias. Ela se institucionalizou de
várias formas nos diferentes aspectos da vida
social, educativa, cultural, política, religiosa.
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Está historicamente na base de um sistema


opressivo e injusto em relação aos outros
genders e em relação ao próprio autêntico
gender heterossexual. É chegada a hora de
sacudir o jugo dessa potente tirania. É
preciso inventar uma nova linguagem e uma
nova gramática, substituindo, por exemplo,
todos os termos “gênero-específicos” (pai,
mãe, marido, mulher) por termos
“gênero-neutros”.
Para Judith Butler, dando prosseguimento a
Monique Wittig, que muito a inspirou, a
linguagem não tem existência prévia ao
contexto social. Ela é sempre tecida a partir
dela e dos jogos de poder que a caracterizam.
Não é de forma alguma “neutra”. Não
permite aos indivíduos humanos se
definirem por si mesmos e inventar sua
própria subjetividade. Ela é sempre
orientada e orientadora. Assim, a categoria
de “mulher”, tal como é utilizada na
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Declaração universal dos direitos do


homem de 1948, depende das estruturas da
linguagem “falocêntrica”.[ 55 ] Ela é,
portanto, um produto direto do poder
patriarcal. Como revirar esse universo
opressivo e totalitário de signos e
significações, sem cair no sentido dialético
oposto?
Judith Butler prega a subversão da
linguagem, lugar estratégico para o
surgimento de uma nova cultura: insuflar
confusão nas palavras e na compreensão dos
conceitos; nunca fixar a priori e para
sempre; promover a instabilidade
permanente da fala; anuviar todo traço de
diferença sexual no simbólico do discurso.
Nossa filosofia desvia assim o sentido da
linguagem comum, joga com enunciados
paradoxais, provoca importantes derivas
significantes, apaga as referências ao mundo
da natureza, estabelece a dúvida e a suspeita
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como únicos modos de relação legítima com


culturas passadas e atuais, insere a dissensão
no que funda e estrutura tradicionalmente as
identidades, tolda os traços familiares e
sociais, priva os sujeitos individuais e
coletivos de suas referências simbólicas,
destitui os códigos lingüísticos, esfacela a
razão, que ela qualifica de “ocidental” e de
“hegemônica”. Coerente com ela mesma, ela
reajusta e reinterpreta regularmente seus
próprios propósitos, o que os torna difíceis
de “circunscrever”.
As desconstruções das feministas radicais
jogam tudo no fogo.[ 56 ] Nenhuma área
escapa à sua lógica extremamente rigorosa,
que se desenvolve a partir de seu postulado
de base: a separação entre o sexo e o gender
e a “neutralização” dos sexos. Têm como
objetivo primeiro provocar o esfacelamento
da antiga ordem e favorecer o despertar de
um mundo novo. São revolucionárias. Como
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imaginar e apressar esse mundo futuro?


Prossigamos com sua maneira de pensar,
seus conceitos e suas linguagens.
4. Rumo a um mundo pós-sexual
Segundo as radicais do gender, os sexos não
possuem em si qualquer consistência
especificamente humana. Puramente
naturais – no sentido materialista do termo
–, não são portadores de qualquer indício
ético e muito menos metafísico. Afirmar o
contrário remete a uma impostura da
hegemonia heterossexista manipuladora. A
sociedade deve caminhar resolutamente
rumo a uma dessexualização ideológica, isto
é, rumo a um apagamento de toda distinção
fundada no sexo. Acabou-se o tempo em que
os indivíduos do sexo masculino
aprisionavam os indivíduos do sexo feminino
numa prisão biológica que decretavam como
“ontológica”. Acabou-se o tempo das
discriminações biológicas. Não, as mulheres
não estão mais próximas da natureza e os
homens não estão mais próximos da cultura.
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Não, as mulheres não são feiticeiras dotadas


de poderes naturais obscuros, a começar
pelo da reprodução.
A categoria filosófica de sexo deve,
portanto, desaparecer ou, pelo menos, ser
esvaziada de sua substância significativa
forjada pela cultura heterossexista. Ela é
uma representação nefasta que está na
origem de tantas lutas, violências e
sofrimentos. É certo que o feminismo radical
fala muito da distinção entre sexo e gender.
Mas é para aboli-la no final, em benefício
exclusivo dos genders. Essa distinção
subversiva foi elaborada para manifestar aos
olhos de todos o que estava mascarado há
milênios. Ela é um instrumento de
libertação, uma ferramenta revolucionária. O
objetivo final é uma sociedade “pós-sexual”
ou “assexual”, ou seja, uma sociedade em
que os sexos sejam totalmente constituídos
pelos genders.
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Isso quer dizer que as diferenças biológicas


inscritas nos corpos não devem mais ser
levadas em conta. Mas a seu justo lugar!
Como tais, elas são humanamente
insignificantes. Daí a possibilidade, para
quem assim decidisse, de proceder a uma
série de operações de transformação
biológica. Todavia, essa possibilidade não é
de forma alguma uma necessidade. Se for o
caso, se o gender não tivesse outra opção
além de mudar o corpo no qual é afetado,
isso seria paradoxalmente reconhecer no
corpo uma certa significação, a saber, uma
realidade que exige sua modificação. Não, os
sexos, que eles sejam operados ou não, são e
continuam a ser neutros, totalmente
produzidos pelo gender escolhido,
integralmente assimilados. Nesse sentido,
em todo rigor dos termos, não se pode dizer
que o feminismo radical promove um
modelo unissexuado ou andrógino, exceto
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talvez em algumas ocasiões por motivos


estratégicos. Não, ele encoraja todas as
sexualidades possíveis e imagináveis, desde
que estas sejam as expressões de genders
voluntariamente criados. Ele exorta os seres
humanos a “escreverem seus corpos” nessa
dinâmica.
Essa sociedade pós-sexual é, portanto,
chamada a transferir para os genders o que
as sociedades antigas indevidamente
atribuíram aos sexos. Esses genders são
evidentemente múltiplos. Cada cidadão deve
– ou deveria – livremente imaginar e decidir
seu próprio gender, seu estilo de vida, suas
preferências, sua orientação sexual, assim
como a configuração familiar. E tudo isso,
bem entendido, independentemente do sexo
biológico. Os genders se inventam ao sabor
dos projetos sociais e individuais, para além
das restrições fisiológicas dos sexos. Convém
sair de um longo passado naturalista
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alienante, se desfazer dele, favorecer o livre


surgimento de vários genders, promover sua
mobilidade e sua fluidez, encorajar as formas
inovadoras e paródicas.
Cabe ao Estado proteger e promover os
genders, evitando toda discriminação, a
começar pela baseada no sexo. Nesse
sentido, deve ficar particularmente atento e
firme em relação à configuração familiar
biologizante tradicional e às leis opressoras
que esta erigiu com o passar dos séculos. O
ser humano tem direito – e até mesmo o
dever, enquanto ser humano – de inventar
seu gender como bem entender e fazê-lo
evoluir durante a vida.
Essas afirmações não são vagas idéias
lançadas no ar. Não; com a ajuda de
importantes orçamentos, elas se difundem
por todo lado na cultura e no ensino. Elas se
inscrevem aos poucos nas legislações e são
seguidas de efeitos concretos. Assim, em
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2007, no Reino Unido foi votado um


regulamento sobre a orientação sexual que
excluiu a adoção das instituições católicas
porque elas recusaram a adoção dos genders
homossexual e lésbico. Na mesma dinâmica,
em 2010, uma lei do Distrito Federal de
Colúmbia legalizando o casamento
homossexual contém dispositivos que
forçaram a arquidiocese de Washington DC a
fechar suas instituições de adoção e parar de
oferecer alocações familiares a seus
empregados. Em março de 2011, um tribunal
do Reino Unido proferiu uma sentença
histórica proibindo um casal cristão de
adotar um filho, fundamentando somente
que eles eram desfavoráveis à
homossexualidade. O tribunal decidiu que a
liberdade religiosa não poderia suplantar o
direito que proíbe a discriminação sobre o
fundamento da orientação sexual. Mesmo se
não recebem esse nome, trata-se na
99/186

realidade de aplicações da gender theory,


ativa por trás da expressão “discriminação
sobre o fundamento da orientação sexual”.
5. Rumo a um mundo transgender
Esses novos genders, cada vez mais
protegidos e promovidos pelas leis, perigam,
contudo, levar a humanidade a aceitar novas
relações de dominação. A novas classes,
novos conflitos. Como escapar dessa
dialética de oposição? A resposta é simples:
abolindo a diferença entre os próprios
genders. “Parece inegável”, escreve Susan
Moller Okin, “que a dissolução dos papéis de
genders contribuiriam para promover a
justiça em toda a nossa sociedade”.[ 57 ] No
mesmo espírito, Monique Wittig emprega
gender no singular.[ 58 ] Não há dois
genders, nem sete nem cem. Só existe um.
Mais precisamente, há ao mesmo tempo
uma infinidade de genders e um só gender.
Segundo uma perspectiva individualista,
cada um cria e descria seus papéis como bem
entende, num caos harmonioso. Segundo
101/186

uma perspectiva mais estrutural e impessoal,


cada cidadão é criado e descriado num tipo
de jorro e efervescência onde as categorias
de genders são desenclausuradas. Sem
oposições de classes. Sem diferenças. Fim da
relação dialética entre os oprimidos e os
opressores. Fim do combate. Fim das
hostilidades milenares. A distinção entre os
inúmeros genders é transcendida. Os
genders são transgenerados.
Esse gender único não deve ser concebido
como um universal totalizante, o que seria
ainda um resíduo do colonialismo rasteiro da
razão ocidental moderna e pré-moderna.
Não, ele é um universal em perpétua
mudança, uma diversidade dinâmica
continuamente renovada, uma energia da
plasticidade indefinida, uma pura
criatividade desprovida de toda norma e de
todo modelo, uma atividade em livre
trabalho de ressignificações, uma
102/186

performatividade em perpétua
sobredeterminação de si mesma.
Esse gender, único sem ser unitário,
evoluindo para além de todos os genders, é
chamado de transgender. Ele designa
maneiras de viver para além das categorias
de sexo e gender.[ 59 ] Ele indica papéis que
constituem integralmente os atores que os
inventam. O transgender é um agir, não um
sujeito. O substrato individual só existe
nesse agir, na sua produção relativamente
fugidia e provisória. Tomemos a comparação
de uma gigantesca peça de teatro em que se
apresentam um número indefinido de
pequenas cenas, que se cruzam e se
entrecruzam, numa improvisação livre, ao
mesmo tempo cômica e trágica. Durante a
representação, cada ator não existe por si e
em si. Ele existe unicamente como papel que
a ele foi atribuído pelos outros atores. Assim,
em nosso mundo, sujeitos sem consistência
103/186

ontológica fazem existir e desaparecer seu


personagem por meio do exercício fugaz de
múltiplos genders. Mas, diferente da peça de
teatro, não há nem três sinais para marcar o
início da representação, nem os aplausos
quando a cortina abaixa. O jogo dos genders
– ou do transgender – não tem nem começo
nem fim. Ele é contínuo. Tudo é
representação no sentido ativo do termo.
Tudo é performático. Não tem ninguém por
trás dos personagens.
Tudo é teatro, ou mais precisamente, jogo
teatral. O ator mais representativo é o
travesti. Este é muito mais liberado das
restrições naturais do sexo que o transexual
– pré, pós ou não operado – ou que o
hermafrodita. Suas performances expressam
melhor que as de ninguém as do
transgender polimorfo, subjetivo, à la carte,
sem limite, indefinido, constituindo suas
orientações sexuais ao sabor de sua fantasia.
104/186

O travesti é o herói dos tempos


pós-modernos, seu profeta mais esclarecido.
Por seus desempenhos de papéis, ele coloca
em crise não somente a doutrina
heterossexista, mas também as concepções
de um gender que seriam congeladas,
unívocas, retificantes, fixistas, categóricas
demais. Seu agir traz uma subversão salutar,
no seio inclusive de teorias de gender que
seriam contaminadas pelos vírus
essencialistas ou diferencialistas.

51 Cf. Lacroix, Xavier. De chair et de parole, op. cit., p. 15-63:


“Todos os modelos familiares são válidos?”.
52Na Alemanha, pais proibiram seus filhos de participarem de
cursos compulsórios de educação sexual inspirada na
gender theory. Por esse motivo, foram condenados, em
fevereiro de 2011, a 43 dias de prisão.
53Construir uma família é, é claro, objeto de uma escolha, mas
nunca no sentido em que os mantenedores do gender
entendem. Cf. a esse respeito o belo livro de Lafitte, Jean. A
escolha da família. São Paulo, Edições Loyola, 2012.
54Irigaray, Luce. Ce sexe qui n’en est pas un. Paris: Minuit,
1977, p. 111.
105/186

55“Falocentrismo” é um neologismo forjado a partir de três


termos: “logos”, “falo” e “centrismo”.
56Nesse contexto, o Pontifício Conselho para a Família
publicou em várias línguas um Lexicon dos termos
ambíguos e controversos sobre a família, a vida e as
questões éticas. O objetivo desse Lexicon, lançado em
francês em 2005, é “fornecer um estudo e uma crítica da
teoria do gênero e de seus conceitos, fundamentada em
princípios de razão e não, em primeiro lugar, inspirar
considerações religiosas” (Natrella, Tony. Gender. La
controverse. Paris, 2011, prefácio, p. 23. Esse pequeno livro
reúne sete trabalhos sobre gender derivados do Lexicon).
57Moller Okin, Susan. Change the Family, Change the World.
In: Tune reader, March-April 1995, p. 75.
58Wittig, Monique. Le point de vue universe ou particulier, p.
112, citado por Butler, Judith, Trouble dans le genre, op. cit.
p. 88-89.
59“O termo ‘transgênero’ é utilizado para designar as vidas e
as experiências de um grupo diversificado de pessoas que
vivem fora de normas relativamente às categorias de sexo/
gênero. A comunidade das pessoas transgeneradas
compreende transexuais (pré, pós e não operados),
travestis, drag queens, passing women, hermafroditas,
stone butches e diversos fora da lei do sexo que desafiam as
taxonomias reguladoras do sexo e do gênero” (Namastè, K.
“The Politics of Inside/Out: Queer Theory,
Poststructuralism, and a Sociological Approach to
106/186

Sexuality”. In: Seidman, S. [Ed.]. Queer Theory/Sociology.


Cambridge/Oxford: Blackwell, p. 28).
CAPÍTULO IV
OS ALIADOS HISTÓRICOS DO
GENDER RADICAL

O FEMINISMO RADICAL NOS PARECEU a terra natal


do gender ou, pelo menos, da gender theory.
Contudo, constatamos que essa teoria
ultrapassa a causa das mulheres e até mesmo
que está fundamentalmente ligada ao
feminismo radical, não tanto em seu axioma
fundamental, mas em seu projeto.
Voltaremos a esse ponto em nossa
conclusão. Evocaremos agora, brevemente,
algumas correntes que compartilham as
mesmas teses.
1. Movimentos homossexuais e de
lésbicas
Aqui, os oprimidos não são em primeiro
lugar as mulheres, mas os homossexuais.
Contudo, como no feminismo radical, os
opressores continuam a ser os
heterossexuais. Estes últimos, como
proclamam os movimentos homossexuais e
de lésbicas, impõem seu modelo a todos.
Eles se consideram vivendo em
conformidade com a natureza, de maneira
verdadeira e, portanto, normativa. Fazendo
isso, eles julgam os comportamentos
homossexuais como antinaturais, anormais,
desviantes, transgressores, patológicos. Sua
recusa categórica da adoção de crianças por
um casal homossexual dá um sinal ao
mesmo tempo triste e violento.
Ora, sempre segundo esse discurso, a
atração supostamente natural pelo outro
110/186

sexo é, de fato, o resultado de um


condicionamento social, de uma construção.
Ela não é mais natural do que outra. Os
homens e as mulheres são sexualmente
polimórficos. O desejo não é em si
heterossexual. Ele é orientável de várias
formas. Tudo é gender. A homossexualidade
é um gender à parte, não uma sombra do
real, uma cópia mal feita, uma careta da
heterossexualidade. Não à homofobia, ao
medo e à discriminação do gender
homossexual. Não à heterossexualidade
obrigatória dos homens e das mulheres. Não
à marginalidade das sexualidades taxadas de
alternativas. Não ao terrorismo do gender
heterossexual. Tudo é uma questão de livre
preferência, de escolha de orientação, de
opção autônoma por um estilo de vida. Os
sistemas dominantes e dominadores
estabelecidos pelos heterossexuais são
artificiais. Eles devem ser desconstruídos, a
111/186

começar pelo da família tradicional baseada


num fato simplesmente biológico: a
diferença dos sexos. O mesmo se dá para
todas as realidades sociais e culturais.
Ao liberar as mulheres de restrições
inerentes a seu sexo, o gender lésbico oferece
o mais belo florão à cultura, contrariamente
ao gender heterossexual, que submete as
mulheres ao reino do biológico
infra-humano. A lésbica transcende seu sexo
e vive plenamente na liberdade criadora. Ela
não se define, em primeiro lugar e antes de
tudo, em relação às leis da natureza e
conforme a sua relação com um homem. Ela
se autoposiciona plenamente por si mesma e
a partir de si mesma. Se no gender
heterossexual, a categoria de mulher se
apreende em sua ligação com a do homem, a
lésbica não é uma “mulher”, propriamente
falando, mas possui outra “configuração
identitária”.[ 60 ] Assim, esse indivíduo
112/186

terceiro oferece a todos os seres humanos a


esperança de escapar da escravidão
programada da natureza e dos homens. O
lesbianismo, aqui, se percebe e se pensa
como profético.
2. Queer theory
O feminismo radical encontra um segundo
aliado no que foi denominado teoria queer.
Queer, em inglês, significa “bizarro”,
“estranho”, “torto”, “vesgo”. Na gíria, esse
adjetivo é utilizado como um insulto cujo
equivalente em francês seria “puto”,
“efeminado” ou “pederasta”. Ele qualifica
uma práxis e uma teoria que habitam o
universo da exclusão e da margem. Desse
lugar, os queers confrontam as restrições da
maioria que se autoproclama “normal”.
Apoiando-se na exceção, eles combatem a
regra, quebram os “códigos” e colocam em
questão toda identidade socialmente
normativa. Elaborada por Teresa de
Laurentis, a queer theory estréia na política
nos EUA no fim dos anos 1980, em torno da
mobilização contra a AIDS. Judith Butler, que
se considera apenas como feminista,
114/186

desempenhou um papel central no


desenvolvimento dessa teoria. A contragosto,
ela recebeu o título de “rainha do queer”.
A exclusão de que são vítimas as mulheres e
os homossexuais, afirmam os queers, é
reveladora do sistema dominador
heterossexual, que se baseia nas supostas leis
da natureza.[ 61 ] Como subverter as falsas
evidências sobre as quais se assentam as
noções de identidade, de diferença dos sexos,
de relações sociais? Como anuviar essas
referências e essas fronteiras que destilam,
há tantos séculos, suas certezas
assujeitadoras? Pela paródia, pela
teatralização e por todos os outros meios
capazes de desvelar os mecanismos de poder.
Alguns chegarão até a promover
“sexualidades alternativas”, como a
pornografia, a prostituição e as práticas
sadomasoquistas.[ 62 ] Pois, segundo os
queers, o corpo humano não possui
115/186

nenhuma verdade natural. Tudo é cultural,


tudo é gender. O corpo, a sexualidade e os
comportamentos que são atribuídos a ele
não passam de resultados de representações
convencionais e arbitrárias, historicamente
situadas. Eles são moldados por
desempenhos sociais em perpétua evolução.
3. Existencialismo, ultraliberalismo,
estruturalismo e neomarxismo
Quem cria o gender? Ou o que cria o
gender? Como nos demos conta em várias
situações, duas perspectivas se cruzam e se
conjugam: de um lado, a dinâmica
individualista estabelecida, por exemplo, no
existencialismo ateu e no ultraliberalismo;
de outro, a dinâmica sistêmica como
aparece, por exemplo, no neomarxismo e no
estruturalismo.
a)PERSPECTIVA INDIVIDUALISTA:
EXISTENCIALISMO ATEU E
ULTRALIBERALISMO
“Que é uma mulher?”,[ 63 ] pergunta-se
Simone de Beauvoir em sua célebre obra de
1949, O segundo sexo. “Nenhum destino
biológico, físico, econômico define a figura
da fêmea humana que reveste-se no seio da
sociedade: é a civilização como um todo que
117/186

elabora esse produto intermediário entre o


macho e o castrado que qualificamos de
feminino”.[ 64 ] Mesmo se a palavra ainda
não é pronunciada, o gender faz aqui sua
aparição conceitual. Para Simone de
Beauvoir, trata-se de se livrar dessa herança
pesada para se inventar como sujeito, para se
tornar o resultado sempre novo de seu
próprio projeto, para viver livre e autônoma.
Nesse sentido, “não se nasce mulher:
torna-se mulher”.[ 65 ] O existencialismo
ateu é uma tentativa de absoluta
autodeterminação de si para si.
Sob esse aspecto, convém se libertar das
restrições naturais, a começar pelas relativas
à maternidade. É claro que “a mulher, como
o homem, é seu corpo, mas seu corpo não é
ela, é outra coisa”.[ 66 ] Ele é fonte de
alienação e a mulher pode sentir mais
particularmente essa alienação a cada mês.
Ela passa por uma experiência ainda mais
118/186

nítida quando “o ovo fecundado desce ao


útero e aí se desenvolve”.[ 67 ] É certo que
Simone de Beauvoir não coloca em questão a
diferença biológica entre os sexos. Porém, ela
declara a profunda insignificância dessa
diferença.
A ênfase é posta na pura liberdade do
sujeito, o que tem uma ligação com o
pensamento ultraliberal. Há três séculos, na
verdade, a crítica liberal convoca “à
‘liberalização’ da sociedade”, isto é, à
extensão do campo máximo da autonomia
dos indivíduos. Ora, aos olhos de certos
ultraliberais, a natureza e o sexo do
indivíduo aparecem como o que freia e
restringe a autonomia total que eles
reivindicam. Como ultrapassar esse limite
biológico? Tornando-a insignificante e
proferindo o axioma do gender radical: tudo
é construção. A crítica ultraliberal, então,
leva o individualismo mais longe do que
119/186

nunca. Ela atravessa a fronteira da liberdade


encarnada. Ela convida todos a desempenhar
os papéis que desejam, a adotar todas as
“posturas” sociais que têm vontade de
assumir – em suma, a aumentar sua
autonomia para além dos limites de seu
corpo e de seu sexo.
b)PERSPECTIVA ESTRUTURAL:
NEOMARXISMO E
ESTRUTURALISMO
O ultraliberalismo desenvolve, dentro do
possível, a “liberdade” do gender. Quanto ao
seu amigo inimigo, o neomarxismo, ele
insiste na ação das estruturas
socioeconômicas e políticas. São elas as
principais operárias dos genders. Para fazer
evoluir estes últimos, é preciso então, em
primeiro lugar e antes de tudo, agir sobre as
estruturas. O neomarxismo, à sua maneira,
testemunha a realidade dos determinismos
120/186

coletivos, que, segundo essa vertente, são


anteriores à autodeterminação dos
indivíduos.
Em grande parte, o movimento
estruturalista se desenvolveu nessa
perspectiva, como, aliás, o culturalismo
construtivista. Para Michel Foucault, o
indivíduo como tal não existe. Só subsistem
as estruturas de poder, ou mais
precisamente, o exercício de relações de
poder que pertencem a todos e a ninguém. A
“realidade” é como uma rede instável em que
as múltiplas forças se enfrentam. O campo
de batalha contínua constrói o que Foucault
chama de “si” dos indivíduos. Ele forma-o,
fixa-o, mantém-no e o transforma. “O
indivíduo não é um tipo de átomo que lhe
serviria de ponto de aplicação, mas é
constituído por ele, e ele o veicula”.[ 68 ] São
os sistemas de poder que produzem os
sujeitos, e não o inverso. Somos todos
121/186

“assujeitados”, isto é, constituídos enquanto


sujeitos pelo poder. Esta é a grade de leitura
a partir da qual o filósofo francês elabora sua
História da sexualidade.[ 69 ]
Em concordância com ele, Monique Wittig
afirma: “É a opressão que cria o sexo e não o
inverso”.[ 70 ] É um poder patogênico
marcado pela heterossexualidade que
constrói socialmente os sexos –
principalmente por intermédio de um
discurso supostamente científico – e que
institui relações de dominações entre eles.
Na mesma linha, Judith Butler afirma: “o
heterossexismo e o falocentrismo são
regimes de poder que buscam estender sua
dominação pela repetição e a naturalização
de sua lógica, de sua metafísica e de sua
ontologia”.[ 71 ] Daí sua vontade de criar um
novo paradigma que escaparia ao trágico
assujeitamento dos indivíduos à
“heterossexualidade obrigatória”.[ 72 ]
122/186

60Cf. J. Heyes, Cressida. “Between Theory and Practice:


MacKinnon and Feminist Activism”, in: Line Drawings:
Defining Women through Feminist Practice. Ithaca: Cornell
University Press, 2000, p. 149.
61Marie-Hélène Boucier, por exemplo, critica violentamente
“a república straight”, isto é, o sistema de dominação da
raça branca, masculina, heterossexual (Sexpolitiques, Queer
Zones 2, La Fabrique, 2005).
62Em sua obra intitulada Unpacking Queer politics (2003),
que se pode traduzir por “Desempacotando a política
queer”, Sheila Jeffreys mostra que a promoção desse tipo de
comportamento não serve nem um pouco à causa queer e
mais amplamente à causa feminista, pois reforça na
realidade o poder do macho dominador que elas pretendem
combater.
63O segundo sexo I. Tradução Sérgio Milliet. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1970, p. 9.
64Ibid., p. 285.
65Ibid., p. 285.
66Ibid., p. 49.
67Ibid., p. 49.
68Carniaux, Benoît. Une généalogie de la philosophie
féministe nord-américaine, op. cit., p. 32.
69Foucault, Michel. História da sexualidade. 3 tomos. Trad.
Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guillon
Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
123/186

70Wittig, Monique citada por Jackson, Stevi. Récents débats


sur l’hétérosexualité: une approche féministe, in :
Nouvelles questions féministes, vol. 17, no. 3, août 1996, p.
12.
71 Butler, Judith. Gender Trouble, op. cit. p. 108.
72Ibid., p. 53.
CAPÍTULO V
DIÁLOGO, ESCUTA E
AUTO-REVELAÇÃO DO GENDER
RADICAL

NOS CAPÍTULOS ANTERIORES, conseguimos


perceber a intuição fundamental dos gender
studies, para aquém ou para além das
diversas correntes. Com a ajuda do
feminismo radical, entramos no interior da
gender theory, que é muito mais lógica e
sistemática do que deixa transparecer numa
primeira abordagem. Compartilhamos seu
movimento, seu dinamismo. Ressaltamos
seu axioma de base e seu correlato essencial:
somente o gender pertence ao
especificamente humano; correlativamente,
os diferencialistas heterossexistas estão na
origem de profundas violências. Neste
último capítulo, propomos estabelecer um
126/186

diálogo em torno da identidade humana que


decorre de tal teoria. Gender, quem é você?
1. É possível estabelecer um diálogo?
Se quisermos dialogar com os defensores do
gender radical, nos arriscamos a ouvir: “Sua
proposta, sua linguagem e seu tipo de
racionalidade emanam do gender
heterossexual. É certo que você pode debater
conosco sobre o conteúdo de um ou outro
gender, sobre sua utilidade social, sobre sua
articulação com outros genders. Você é
bem-vindo à mesa de discussão, assim como
os outros genders. Impomos-lhe, contudo,
uma restrição não negociável: você não pode
mais questionar a idéia de que tudo é gender
e, conseqüentemente, que a ‘realidade’
natural é radicalmente insignificante. O que
você chama de ‘natureza’ não pode, de forma
alguma, servir de critério de referência para
um discernimento sobre os genders. Como
diz Judith Butler: ‘Se não existe nada mais
além do gênero construído, é porque não há
128/186

nada do lado de fora, nenhuma base


epistemológica ancorada num antes
pré-cultural que possa oferecer outro ponto
de partida epistemológico para um exame
crítico das relações de genders tais como
existem’”.[ 73 ]
“Ademais, se você quiser discutir conosco,
você partirá de uma importante handicap
em relação aos outros genders”, continuam
as feministas radicais, “o seu gender se
construiu historicamente sobre um
amálgama alienante: o da natureza e da
cultura. Para dominar os outros genders, o
seu gender heterossexual decretou que era o
único fundado na natureza e julgou os outros
genders a partir desse dogma ideológico.
Agora, basta de justificativas biológicas,
essencialistas e hegemônicas. Chega de
intolerância assassina e de violências
plurisseculares que são o resultado trágico
disso. Nada é tabu, nada se impõe
129/186

absolutamente por si mesmo, exceto o fato


indiscutível de que tudo é construção social.
Se você não aceitar esse axioma
fundamental, você negará a própria condição
de toda mudança frutífera e gerará os
debates na violência ideológica”.
A menos que nos “convertamos” à
axiomática fundadora do gender radical,
nossa palavra é então desacreditada no
próprio momento em que surge. Pior ainda,
aparecemos como um fator de intolerância,
de conflitos e de problemas.
Encontramo-nos numa situação de exclusão
e de marginalização. Somos um novo tipo de
queer. Em suma, a priori não podemos pôr
em questão essa idéia reguladora segundo a
qual tudo é construção. Teríamos, assim,
uma ocasião propícia para as análises nos
referindo à experiência, à natureza no
sentido amplo do termo, às evidências
compartilhadas em geral, ao bom senso
130/186

comum, à história, aos costumes nas


diferentes culturas e tradições. Pouco
importa! Todas essas observações só fariam
acolher a tese da conspiração universal do
gender heterossexista ocidental. O gender
radical não apenas recusa toda contradição
sobre esse ponto capital, mas também
desqualifica a priori seus contraditores,
considerando-os como ideólogos nocivos.
Se tudo é socialmente construído,
poder-se-ia objetar, essa teoria não é
também o resultado de uma determinada
construção social?[ 74 ] Se tudo é
interpretação, perspectiva, jogo, papel, em
nome de quê a doutrina do gender se
apresenta? Não seria ela um produto
tipicamente ocidental de fim de último
século, que tentaria se impor em toda parte
do mundo? “É claro”, responderiam os
radicais a essa provocação. “Mas onde está o
131/186

problema? Tudo é relativo ao gender, eis o


único absoluto”.
Como questionar esse primeiro princípio?
Pois se ele for o primeiro de verdade, como
afirmam os radicais do gender, ele é
indiscutível. Um axioma, segundo a
definição do dicionário Larousse, é uma
“proposição primitiva ou uma evidência não
suscetível de demonstração e sobre a qual
está baseada uma ciência”. Só se pode
manifestar a veracidade ou a falsidade disso
por meio dos efeitos que produz. Uma
postura demonstrativa deve então ceder o
passo a uma abordagem de demonstração,
de escuta “até o fim”, de revelação dos
efeitos.
De fato, quando se está preso a um sistema
assim, não há muitas maneiras de se
dialogar. Ou se questiona seu ponto de
partida, ou se desenvolve lealmente suas
conseqüências quase mascaradas a uma
132/186

conceitualidade atormentada e de difícil


acesso. Entre o alfa e o ômega de uma teoria
coerente, não há, em geral, nenhuma falha.
Sua lógica é implacavelmente impecável e
toda crítica, de forma justa parece exterior,
superficial, curta demais. Seus dois únicos
“aterramentos” críticos possíveis residem em
seu terminus a quo e seu terminus ad quem,
à tomada de posição inicial e a seu final
último. Fiéis à nossa perspectiva, nos
limitamos aqui a questões que tocam a
identidade humana permanecendo no plano
filosófico e acolhendo, num último ponto,
uma luz teológica.
2. Espelho de espelho
Como constatamos antes, segundo a gender
theory não há um “eu” prévio às construções
sociais. Tudo é produzido pelo gender,
inclusive o “eu”. A identidade pessoal é fruto
de uma encenação, de uma mímica, de um
jogo, de uma fantasia. Ela é, por essência,
teatral. Ela se fixa, “se estabelece, se institui,
se move e se confirma”[ 75 ] durante as
representações. Ela é uma perpétua
reconstituição que, pelo processo de
reiteração, se instala no psiquismo do
indivíduo e funda a permanência de sua
condição. “O ‘eu’ é o efeito de uma certa
repetição, a que produz uma imitação de
continuidade e coerência”.[ 76 ] Daí sua
oscilação sem fim entre estabilidade e
instabilidade, papel antigo e papel futuro.
Daí também a impossibilidade radical de
uma coincidência de si mesmo consigo
134/186

mesmo, de alguma “totalização”. O “eu” é


construído e deslocado a cada instante,
numa cadeia indefinida de representações.
Contudo, para imitar alguma coisa – o
gender lésbico, por exemplo – não é preciso
que haja previamente um “eu” que possua
certa consistência ontológica? Judith Butler
nega. “O gender não é a peça que um sujeito
primeiro decidiu representar, mas o ato de
efetuar uma representação teatral que
institui, como efeito, o sujeito que ela parece
expressar”.[ 77 ] Nenhum ator preside ao que
é representado. Seria uma ilusão crer “que o
gender é o efeito de um sujeito primário
dotado de vontade”.[ 78 ] O “eu” é pura
performance ou performação. É o resultado
fantasmático de uma mímica que não reflete
nenhuma realidade. É um espelho de
espelho. Não passa de “uma aparência de
sujeito”,[ 79 ] nada mais. Na verdade, não
existe. É puro som, puro vazio. É pura
135/186

representação. É gender em contínuo


movimento, sem ser. Desse ponto de vista, o
gender travesti é altamente emblemático. “O
travesti é a verdade de todos nós. Ele revela a
estrutura imitativa do próprio gênero. Todos
nós só fazemos nos travestir e é o jogo do
travesti que nos faz compreender isso”.[ 80 ]
Este coloca em crise a gramática
heterossexual dos genders, assim como a
própria noção de gender. Da forma mais
gritante, ele manifesta que todo gender é
uma forma de drag, de disfarce. É nesse
sentido preciso que o “eu” é gender e nada
mais.
Convém então pensar as categorias relativas
à identidade fora de toda concepção
metafísica da substância. “É preciso
considerar a afirmação de Nietzsche em A
genealogia da moral (§ 13) de que ‘não
existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do
devir; ‘o agente’ é uma ficção acrescentada à
136/186

ação – a ação é tudo’”.[ 81 ] Inútil postular


um agente por trás de um ato (um ‘fazedor’
por trás do ato): “O agente é construído de
forma variável no e por meio do ato”.[ 82 ] A
identidade é performance, ou uma série
dinâmica de performances. É um tipo de
ilusão de ótica elaborada por um agir de
forma relativamente constante. O “eu sou”,
segundo Monique Wittig é “um ser
impossível, um ser que não existe, uma piada
ontológica”.[ 83 ] O gender e, portanto, toda
a realidade, não tem status ontológico. Se ele
“é algo que a gente se torna – mas uma coisa
que não pode nunca ser –, então ele é, ele
próprio, um tipo de devir ou de atividade”.[
84 ]
3. Na aurora do século XXI
“Espelho de espelho”, “piada ontológica”, “o
travesti é a verdade de todos nós”. Essas
confidências são extremamente poderosas e
lancinantes. Quando as escutamos e as
acolhemos de verdade, podemos ser
atacados de vertigem. Elas vibram em
profundas consonâncias com uma cultura
marcada pelo virtual, o “surf” nas “realidades
desessencializadas”, pelas criações
imaginárias onde cada um constantemente
se posiciona em uma ou várias “identidades”
móveis de sua escolha. O avatar, o surfista, o
nômade, a máscara, o ator “multifaces”, o
produtor ou o produto, o sem-nome e o
sem-memória, o errante, o travesti, o
jogador, todos aparecem como os novos
heróis e os novos símbolos da identidade –
ou da não-identidade – pós-moderna. Ou,
para ser mais preciso: a errância, o agir
138/186

nômade, o travestimento, o surf, a


autoprodução, o disfarce: “o gender é um
ato, uma performance [...] mais que um
aspecto essencial da identidade no cerne da
identidade”.[ 85 ]
As silhuetas em ação se movem num
universo em profundas mutações das quais
são os vetores apaixonados e os espectadores
desconcertados. Como observa Michel
Serres, atualmente a humanidade está
saindo da era neolítica, caracterizada por
uma relação com uma terra determinada.[
86 ] Ela entra numa nova fase de sua
história, marcada pelo empreendimento
amplificado do modelo técnico. “Quem sou
eu? Um artefato? Uma coisa tecnicamente
construída? Um produto cultural? Como
conceber esse corpo, que experimento ao
mesmo tempo como próximo e longe de
mim? Quem é esse ‘eu’ que fala? Ele existe de
verdade ou se trata de um simples peão
139/186

sobre o tabuleiro de xadrez, uma


engrenagem num grande mecanismo social e
até mesmo cósmico, uma estrutura
impessoal particular, um pouco mais sutil
que as outras? Na multiplicidade de nossas
existências compartimentadas, não vivemos
um sonho ou um pesadelo acordado, como já
se perguntava Parmênides?”.
Para se formular a si mesmo essas
perguntas que o assombram, o homem
contemporâneo apela, sobretudo, para as
ciências humanas e para seus discursos
operacionais. De fato, há cerca de 50 anos,
ele percebe sua identidade pessoal e
comunitária principalmente por intermédio
das concepções antropológicas elaboradas
pelas abordagens psicológicas e sociológicas.
No que concerne à identidade gender, o
filósofo Michel Boyancé fala de “prisma
sociológico”.[ 87 ] O psicanalista Tony
Anatrella, especialista em psiquiatria social,
140/186

vai no mesmo sentido. “Na teoria do gênero,


o psicológico se confunde com o sociológico
na medida em que o psicológico resulta de
uma simples adaptação relacional com o
meio ambiente. Assim, cada um é feito e
desfeito por seu meio, e não a partir de seu
ser em desenvolvimento. Assim, os processos
psíquicos e o trabalho simbólico da
interioridade se encontram evacuados em
benefício do legal e do político”.[ 88 ]
Ora, “o homem e a mulher não passam de
figuras sociológicas”[ 89 ] ou psicológicas. As
ciências humanas, enquanto tais, nunca
tiveram a pretensão de dizer tudo sobre o ser
humano. Em geral, elas têm consciência de
proceder com a ajuda de grades de análise
que fazem abstração de fatores
especificamente humanos. Seus modus
operandi são legítimos em suas ordens. Mas
se estes são absolutizados, a amplitude e a
profundidade do ser humano na sociedade se
141/186

encontrarão necessariamente empobrecidas,


reduzidas e ocultadas. Se não estivermos
suficientemente atentos aos limites inerentes
às abordagens das ciências humanas,
mergulhamos num verdadeiro drama
psicológico de conseqüências questionáveis.
Testemunha das grandes questões
veiculadas pelo século XXI, a antropologia do
gender radical também tem relação com a
derrocada das grandes ideologias. As figuras
do surf, do travestimento, da deriva, da
errância, do nomadismo e do disfarce se
apoderam com ironia de todas essas
esperanças perdidas, que não estão, porém,
menos pregadas no espírito e no corpo dos
indivíduos. Elas lhes propõem uma nova
“utopia”, um “sentido” para além do sentido,
uma causa a se abraçar após todos esses
sonhos humilhados, um combate pela
“justiça”, a ser travado contra e em relação a
todos – numa só palavra: razões para viver.
142/186

Elas parecem oferecer um último refúgio


para as liberdades maltratadas pela volta da
força do antigo destino: os imperativos do
mercado econômico, as leis das pulsões
sexuais e as restrições das estruturas de
poder. Elas dão a ilusão de escapar da vida
miserável do “último homem” denunciado
por Friedrich Nietzsche.
No simbolismo nietzschiano, de fato, esse
homem desiludido se aproveita da “morte de
Deus” instalando-se confortavelmente nos
“valores materiais”. Ele pergunta, piscando o
olho: “O que é o amor? O que é a criação? O
que é a nostalgia? O que é a estrela?” [...] Ele
se arrasta pela terra, vivendo na economia
até ficar o mais velho possível,
desvalorizando tudo. Aqui e acolá, uma
pequena dose de veneno: isso faz sonhar
agradavelmente. E no fim, por força do
veneno, para morrer agradavelmente. E
ainda trabalha-se, pois o trabalho distrai.
143/186

Mas cuida-se para que a distração não seja


cansaço. [...] Tem-se prudência e sabe-se o
que adveio; sem fim, pode-se assim zombar.
E ainda briga-se, mas rápido recompõe-se –
senão de estragar o estômago. Durante o dia,
vivem-se pequenos prazeres e, de noite, mais
ainda, mas se venera a saúde”. E a multidão
grita: “Dê-nos esse último homem,
Zaratustra, torna-nos semelhantes a esse
último homem! Super-homem, nós te
abandonaremos!”.[ 90 ]
“Não”, retrucam os defensores do gender,
“não abandonamos o ideal do super-homem.
Lutaremos contra todos que se oponham a
ele, a começar pelos sedentários da
identidade. Estes últimos crêem estabelecer
solidamente sua morada no ‘ser’, conquistam
as terras dos arredores e escravizam os
indivíduos que passam por seu território.
Plantados numa identidade que eles
apresentam como ‘natural’, esses indivíduos
144/186

são, na realidade, nômades que se ignoram,


viajantes alienados e dominadores”.
Para combater esses “sedentários”, os
radicais do gender utilizam principalmente
três causas: a do feminismo, a dos
movimentos homossexuais e a das minorias
oprimidas. Como já observamos, trata-se de
oportunidades históricas que favoreceram o
surgimento, o aprofundamento, o
desenvolvimento e a difusão da gender
theory. Mas esta última se basta por ela
mesma, nela mesma e para ela mesma.
Como tal, ela não depende de uma
determinada classe de indivíduos. Trata-se
de uma aliança histórica e estratégica.
4. Dialética das máscaras e do rosto
A antropologia gender – que se qualifica de
pós-moderna – expressa à sua maneira uma
experiência comum a todo ser humano: o
enigma da identidade, simbolizada pelo
rosto e suas múltiplas representações.
Vincent Van Gogh deixou 67 auto-retratos e
Rembrandt, 62.[ 91 ] Qual é o verdadeiro?
Qual é o mais autêntico? Qual deles os
representa melhor? É impossível escapar da
busca de seu rosto, e isso desde a idade de
seis meses, mais ou menos.[ 92 ] Toda
pessoa – e o adolescente em particular –
esquadrinha o mistério de sua identidade, ao
mesmo tempo mutante e permanente, ao
observar vários reflexos que lhe remete seu
espelho de forma invertida. Concentra sua
atenção em seus olhos, mais precisamente na
vida de seu olhar. Ele se compõe de
diferentes posturas que dizem, cada uma
146/186

delas, algo do que ele é ou do que ele não é,


sem nunca atingir totalmente a intimidade
de sua intimidade. Explora o infinito que o
constitui. Amplia as facetas de sua
personalidade desempenhando papéis diante
do espelho, às vezes até ao mesmo tempo.
Qual é a verdadeira? Qual é a falsa? Todas?
Nenhuma? Esta? Aquela?
O que se esconde “por trás” do espelho, esse
reflexo apreendido no momento “t”? Tem
alguém ali? Ou encontra-se diante de uma
fachada mais ou menos sofisticada, diante de
caretas do vazio? A qual realidade ou a qual
ficção remete essa sucessão de imagens com
o passar do tempo? Um homem velho que
vive à margem de toda civilização descobre,
um dia, no meio de destroços, um
espelhinho, estranho objeto que ele vê pela
primeira vez. Ele reconhece aí o retrato
“mágico” de seu pai, morto há muito tempo.
Nessa descoberta, ele se isola com freqüência
147/186

em sua cabana para lhe falar um segredo.


Sua mulher aos poucos cede à curiosidade e
à suspeita. Um belo dia, ela começa a
remexer nas coisas de seu marido que saiu
para pescar e encontra o quadro mágico. Ela
exclama, logo tranquilizada: “Ah, é só uma
velha!”.
A que fazem referência esses traços
esquadrinhados? A quem pertencem essas
primeiras rugas? Quem olha quem? É a
pessoa que observa seu reflexo ou o reflexo
que observa a pessoa? O culpado pode se
sentir condenado por sua própria imagem,
como mostrou magnificamente Oscar Wilde
em seu célebre romance O retrato de Dorian
Gray. Uma anedota autêntica é, desse ponto
de vista, altamente significativa. Uma
senhora vem se confessar ao cura da cidade
de Ars, famoso por sua clarividência. Ao
entrar no confessionário, ela exclama:
“Senhor cura, como estou feliz, vou poder
148/186

enfim me conhecer, eu me conheço tão mal”.


A resposta de João Maria Vianney foi ao
mesmo tempo genial e surpreendente: “Oh!
A senhora está tão feliz de se conhecer
pouco, se conhecesse a metade, não poderia
mais se suportar”. A máscara, ou o disfarce, é
uma proteção útil e às vezes indispensável
contra o desespero. Nesse caso, aparece
menos como uma forma de hipocrisia que
como um subterfúgio da misericórdia, mais
ou menos consciente, para continuar a
existir e a caminhar rumo à verdade toda.
Quem saberia transcrever o mistério dessa
dialética entre as máscaras e o rosto?
Os disfarces incessantes dos genders
expressam à sua maneira esse enigma
lancinante, excluindo a priori a existência do
rosto em proveito de uma sucessão e uma
superposição indefinida de máscaras. Quem
se encontra então diante do espelho?
Ninguém. Qual é o princípio de identificação
149/186

dessa sombra, seu princípio de unidade, de


desfragmentação, de “recolhimento”? Uma
escapada contínua, um deslocamento sem
fim, uma narrativa em abismo, um puro
movimento sem fronteira, uma borrasca ou
um suave zéfiro, uma transgressão de toda
definição. Em seu cerne íntimo, a identidade
humana consiste num turbilhão
carnavalesco que os genders recobrem com
seus sobretudos sem forro. A ficção que se
percebe diante do espelho é sem rosto, como
ilustra admiravelmente o quadro de René
Magritte de 1937, intitulado “Reprodução
proibida”. Para os radicais do gender, não há
dialética entre a pessoa e o reflexo, entre o
sujeito agente e o papel. Tudo é transgender.
O gender é, por assim dizer, “o caminho, a
verdade e a vida”. Tudo é máscara, disfarce.
Gender, quem és tu? No sentido estrito, não
há ninguém para responder: “Eis-me aqui”.
150/186

Escutam-se somente as vozes em off


fabricadas nos estúdios do gender.
Tal concepção da identidade, ou mais
precisamente da identificação, é trágica.
Qual drama se esconde por trás desses
mantos do nada, desses personagens duplos,
triplos, cêntuplos? As máscaras sempre têm
algo de assustador, com seus olhos que não
passam de buracos e seus traços congelados,
sem vida. Elas só são salvas de sua
humanidade, de seu anonimato, de suas
caretas obsessoras pela presença dos rostos
que elas dissimulam e manifestam ao mesmo
tempo. Mas, para os teóricos radicais do
gender, o rosto, símbolo eminente da pessoa
e da identidade, não existe. Por quê?
Não podemos responder até o fim essa
inquietante interrogação. Talvez estejamos
assistindo ao exagero de uma lógica que
somente alguns autores como Judith Butler
têm a perigosa coragem de ir a fundo.
151/186

Contudo, tal exagero não é contingente. Ele


não ocorre por acaso. Não, ele se situa na
necessária continuidade do postulado de
base da gender theory: a separação entre o
sexo e o gender; a insignificância absoluta do
sexo. Se vocês subscreverem essa axiomática,
serão, de forma sub-reptícia, conduzidos a
essas conclusões extremas, quer queiram
quer não, sejam vocês animados por
generosas intenções ou não. Se vocês
aceitarem essa dissociação inicial,
comprarão um bilhete para esse gigantesco
baile de máscaras, quer desejem participar
dele ou não. E estarão convidando seus
amigos. Se vocês se submeterem à gender
theory, entrarão e farão entrar num universo
sem rosto, hostil em última análise a todos
os seres humanos, inclusive para as
mulheres, os homossexuais e todas as
pessoas oprimidas cuja causa vocês
gostariam de defender. As primeiras vítimas
152/186

serão os mais fracos, isto é, as crianças e os


adolescentes, cuja identidade em elaboração
está, em geral, mais “disponível” às
manipulações ideológicas.
“Você está exagerando”, poderiam retrucar
alguns. Você dá importância demais a Judith
Butler que, aliás, é a primeira a fazer a crítica
a seus trabalhos. Todos os defensores do
gender não chegam a ir tão longe. Nem todos
aderem a essas posições extremas. Porém,
eles tomam emprestada a mesma rota e
param num ou noutro estágio de
desenvolvimento dessa teoria. O termo, em
geral pouco apreendido, mostra com uma
clareza angustiante a inumanidade
escondida do princípio fundador. A
autorrevelação do gender radical, quando é
total, não deixa pairar nenhuma dúvida.
5. Uma luz vinda de fora
Como acabamos de evocar por meio da
surpreendente réplica do cura de Ars, o baile
de máscaras eterno dos transgenders
testemunha muitos temores, desesperanças e
mágoas. Na aurora do século XXI, existe um
tipo de apelo e um desafio lançados na noite.
Como escutá-los? E, sobretudo, como abrir
um acesso a uma identidade nesse vazio dela
mesma? Quais caminhos o cristianismo foi
chamado a tomar para ir ao encontro das
pessoas marcadas pela gender theory? Eis
um esboço muito rápido de ordem teológica.
Voltemos a Rembrandt e sua maneira muito
pessoal de ver não apenas os rostos, mas
também os corpos em seu desamparo. Esse
pintor de talento incomparável “não teme as
barrigas avantajadas, pregueadas em
aventais de pele grossa e gorda, os membros
grossos, as mãos avermelhadas e pesadas, os
154/186

rostos muito vulgares. Mas essas ancas, essas


panças, essas tetas, essas massas carnudas,
esses feiosos e empregadas que ele faz passar
da cozinha à cama dos deuses e reis, ele os
impregna e os roça com raios de sol que são
só dele; ele mistura como pessoa real, o
mistério, o bestial e o divino”.[ 93 ] De qual
natureza é essa energia solar que transforma
numa misteriosa alquimia a carne suja em
ouro? Qual é essa luz que “não acrescenta
nada ao rosto, que não brutaliza, que não
busca saber se existe ainda uma máscara,
que ensina somente a ler a história nele?”.[
94 ] Qual é essa doce iluminação que torna
os personagens tão belos, são singulares, tão
únicos, quaisquer que sejam suas
proporções, sua idade, sua saúde, seus
hábitos, sua situação?
Rembrandt descobriu a origem dessa luz no
rosto e no corpo de um homem em agonia:
Jesus de Nazaré. Rembrandt é um “imenso
155/186

pintor cristão”[ 95 ] quando pede a esse


rosto, que enxugou todas as derrotas do ser e
do tempo, para responder à pergunta que o
obsidia: quem sou eu? Ele é um “imenso
pintor cristão” quando pede a esse rosto, que
saiu vitorioso da morte, do vazio e do
abandono, que responda a seu espanto sem
fim de existir pessoalmente e de ser singular
no seio de uma comunidade de seres
singulares. Ao olhar o crucificado do
Gólgota, mas também o ressuscitado de um
túmulo doravante vazio, Rembrandt atinge
pouco a pouco o segredo de sua própria
identidade em movimento, assim como a de
todos os seres humanos. Ele encontra o
caminho, sem arriscar cair na desesperança
ou no desaparecimento alienante. Eis
porque, quando ele vê os pobres da Holanda,
pode clareá-los “com uma luz diferente da
das ruas: essa claridade que não tem por
fonte o sol ou os lustres, mas que emana [...]
156/186

de Jesus”,[ 96 ] ao mesmo tempo


desfigurado e transfigurado. Rembrandt
pinta à luz da morte e da ressurreição, que
ele faz humildemente brilhar através da
carne de seus personagens.[ 97 ]
Na presença do Cristo, o homem pode de
fato se despojar sem medo de suas máscaras.
Ele não deve mais ter medo de sua
identidade em movimento ou fugir dela num
jogo exaustivo de papéis. “E nós todos”,
proclama São Paulo, aos coríntios, “que com
a face descoberta, contemplamos como num
espelho a glória do Senhor, somos
transfigurados nessa mesma imagem”.[ 98 ]
Nessa “glória”, o ser humano descobre a
significação profunda de todos os disfarces
com os quais ele se orna durante sua
existência. Estes não são engodos, mas
reveladores de sua identidade em
elaboração. Eles desvelam seu rosto ao
cobri-lo e o cobrem para melhor desvelá-lo.
157/186

73Butler, Judith. Gender Trouble, op. cit. p. 117-118.


74Cf. a refutação argumentada do “construcionismo integral”
de Hacking, Ian. Entre science et réalité. La construction
sociale de quoi?, Ed. La Découverte, 2001. Essa obra
responde à de Searle, John. La construction de la réalité
sociale, tradução francesa, Gallimard, 1998.
75Butler, Judith. “Imitation et insubordination du enre”, op.
cit., p. 150. Essa maneira de considerar o humano como
puro ator tem uma familiaridade profunda com o
nominalismo de um Guillaume d’Ockham. Na obra desse
franciscano do século XIV, com efeito, “o que chamamos de
personalidade não passa do produto laborioso do jogo
artificial de reconstrução de um quebra-cabeça. Os atos
caíram, cada um com seus contornos bizarros e
descoordenados. Tentamos fazer uma classificação deles.
Tudo isso não faz uma unidade e uma orientação. A
descontinuidade do humano é uma das conclusões
fundamentais da psicologia occamista”. (Lagarde, C. de. La
naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen Age, tome
6, L’individualisme Occamiste. Paris, 1946, p. 4).
76Butler, Judith. “Imitation et insubordination du genre”, op.
cit., p. 151.
77Butler, Judith. “Imitation et insubordination du genre”, op.
cit., p. 158.
78Ibid.
79Ibid.
158/186

80Cf. Bourcier, Marie-Hélène. “Des ‘femmes travesties’ aux


pratiques transgenres: repenser et queeriser le
travestissement”. In CLIO, Histoire, femmes et sociétés, vol.
10, 1999, p. 132. Cf. Também Butler, Judith. “Imitation et
insubordination du genre”, op. cit., p. 154.
81Butler, Judith, Gender Trouble, op. cit., Prefácio da edição
de 1999, p. 34.
82Ibid., p. 194.
83Wittig, Monique. The Mark of Gender. In: Feminism Issues
5, no. 2, 1985, p. 6.
84Butler, Judith. Gender Trouble, op. cit., p. 224.
85Carniaux, Benoît. Op. cit., p. 45.
86Cf. Serres, Michel. Le temps des crises. Paris: Editions Le
Pommier, 2009. “A proporção de seres humanos que vivem
nas cidades passa de 3% em 1800 para 14% em 1900 e mais
da metade em 2000. Os demógrafos preveem que, em 2030,
essa proporção chegará perto de 70 a 75%. Já vemos se
formar, aqui e acolá, gigantescas megalópoles” (p. 13). A
relação com a terra e com a vida é profundamente afetada.
A partir dessa chave de leitura, o filósofo francês estuda
também o desenvolvimento dos transportes e das novas
tecnologias “que mudam nossos laços”, a relação com a
saúde, a demografia e a bomba atômica.
87Boyancé, Michel. Masculin, féminin, quel avenir?. Edifa/
Mama, 2007, p. 13.
88Anatrella, Tony. Gender. La controverse, op. cit., p. 10.
89Boyancé, Michel. Masculin, féminin, op. cit., p. 15.
90Nietzsche, Friedrich. Assim falava Zaratustra, Prólogo, §5.
159/186

91Rembrandt tem, além disso, 20 retratos de sua mãe, 20 de


seu pai, 30 de sua primeira mulher e 40 de sua segunda
mulher.
92Cf. por exemplo, Dolto, Fr. E Nasio, J.-D.. L’enfant du
miroir. Paris: Payot, 2002.
93BRO, Bernanrd. La beauté sauvera le monde. Paris: Cerf, 5e
edition, 1990, p. 177.
94Ibid., p. 176.
95Ibid., p. 179.
96Ibid., p. 179.
97“Na realidade, o mistério do homem só clareia de verdade
no mistério do Verbo encarnado. [...] O Cristo manifesta
plenamente o homem a si mesmo e lhe descobre a
sublimidade de sua vocação” (Concílio Vaticano II,
Constituição Gaudium et spes, no. 22, 1965).
982Cor 3, 18
CONCLUSÃO

AO FINAL DE NOSSO ESTUDO, retomemos as


diferentes descrições do gender que
encontramos. O gender, com efeito, é um
conceito nômade e até mesmo mutante. Ele
desorienta pelas várias realidades que,
sucessivamente e ao mesmo tempo, ele
designa. Esta é sua estratégia. Contudo, é
animado por uma lógica extremamente
rigorosa, nem sempre consciente de si
mesma.
1. Entre ser e agir
O gender é construção. Ele remete mais ao
próprio ato dessa construção do que aos
seres que constroem. É um agir, uma prática,
uma práxis, uma ação, uma relação, um
papel ou uma função, no sentido dinâmico
desses termos. “Se o gender é algo que a
gente se torna – mas uma coisa que não pode
nunca ser –, então ele é, ele próprio, um tipo
de devir ou de atividade”, para retomar as
palavras de Judith Butler já citadas.[ 99 ] A
definição do gender pertence, portanto, mais
ao universo dinâmico do agir do que ao do
“estático” dos seres.
Se seguirmos sua lógica, o gender se define,
no final das contas, como o que está para
além do ser e do agir, do definível e do
indefinível, como um tipo de “buraco negro”
ou de caleidoscópio em perpétuo
movimento, que escapa a toda
162/186

conceitualização, promessa alegre e


angustiante de um mundo futuro em eterno
devir. Um mundo assim, com seus jogos de
significações sempre novos, é impossível de
prever hoje e será talvez amanhã, depois de
amanhã e ainda depois disso.
Qual é a força que move os genders? Para
alguns, principalmente relações de poder,
relações socioeconômicas de dominação,
correntes culturais ou estruturas de
linguagem. Para outros, principalmente o
autoposicionamento dos indivíduos no
interior de um dado contexto. Para outros
ainda, um misto da perspectiva estrutural e
da perspectiva individual. Notemos que um
mesmo autor pode adotar esses diferentes
pontos de vista de um mesmo tipo de jogo de
espelho.
2. Os moderados do gender e os
radicais
Essas construções, por um lado, se
inscrevem numa certa continuidade com o
dado natural da pessoa e de seu ser sexuado.
Nesse caso, o gender é considerado como
uma realidade relativa. Ele reconhece uma
significação humana e estruturante no dado
natural dos sexos e em sua diferença. Ele
oferece a ela uma hermenêutica, ressaltando
suas dimensões ou seus aspectos
“construídos”. Ele remete ao que chamamos
normalmente de “o adquirido” (em distinção
ao inato) ou o “sexo psicossocial”. Em si,
uma concepção assim do gender não coloca
em questão a diferença sexual, mas elabora
sua reflexão crítica com ela. Vários
movimentos feministas encaram o gender
nessa perspectiva.
164/186

Por outro lado, as construções sociais dos


genders podem se inscrever numa
descontinuidade e ruptura completas com o
dado natural da pessoa e de seu ser sexuado.
Nesse caso, o gender é considerado como
uma realidade absoluta. Ele constitui
totalmente o sujeito ator. Essa concepção só
é possível ao preço de uma forma de
negacionismo dos sexos. Ela pertence ao
feminismo radical, e não a todos os
feminismos.
É preciso então discernir duas grandes
concepções do gender. É preciso observar,
contudo, que essas teorias do gender –
sejam elas “moderadas” ou radicais – são
elaboradas a partir de uma concepção bem
pobre de natureza, do sexo e do corpo. Elas
tendem, por assim dizer, a esvaziar sua
substância especificamente humana e
transferi-la ao gender. A linha de
demarcação entre os diversos feminismos
165/186

não é sempre muito clara.[ 100 ] Uma


concepção unilateralmente materialista do
sexo leva insensivelmente as feministas
moderadas à vertente da radicalização, mais
ou menos a curto prazo. Como observa o
futuro Bento XVI em 2004, “a diferença
corporal, chamada de sexo, é minimizada,
enquanto que sua dimensão puramente
cultural, chamada de gênero, é ressaltada ao
máximo e considerada primordial [...].
Segundo essa perspectiva antropológica, a
natureza humana não teria em si
características que se imporiam de maneira
absoluta: cada pessoa poderia se determinar
segundo sua vontade, já que ela seria livre de
toda predeterminação ligada à sua
constituição essencial”.[ 101 ]
Gender, quem és tu? Para responder a essa
pergunta vital, esclarecemos esse conceito
polimorfo e fugaz, que se reivindica como
subversivo e gerador de confusões. Nós o
166/186

vimos nascer no terreno das feministas


(Capítulo I). Vimos surgir seu axioma
fundador: tudo é construído, o sexo é
humanamente insignificante; de forma
correlata, os “heterossexistas” que recusam
esse axioma são os principais agentes
opressores (Capítulo II). Acompanhamos
esse desenvolvimento racional da gender
theory, desconstrutor e anunciador de um
mundo novo (Capítulo III). Por fim, após
uma rápida evocação de alguns de seus
aliados (Capítulo IV), levamos essa lógica até
suas últimas trincheiras (Capítulo V). Mais
do que uma demonstração, essa amostra não
coloca radicalmente em questão a validade
de seu axioma fundador? A injustiça inicial
de que são vítimas o corpo e o sexo na
gender theory não conduz, de forma
inexorável, a um universo falsamente
burlesco de silhuetas fantasmáticas? Não
167/186

chega ela, em última análise, à “igualdade”


de todos na errância da selva dos papéis?

99Butler, Judith. Gender Trouble, op. cit. p. 224.


100Segundo C. Bigwood, “o nó da questão é renaturalizar o
corpo liberando-o da dicotomia entre natureza e cultura”
(“Renaturalizing the Body with the Help of Merleau Ponty”.
In: Welton, W. [dir.] Body and Flesh. Oxford: Blackwell,
1998, p. 103).
101Cardeal Joseph Ratzinger. Lettre à tous les évêques de
l’Église catholique sur la collaboration de l’´homme e de la
femme dans l’Église et dans le monde, 31 de maio de 2004.
POSFÁCIO

NO ÂMBITO DOS DEBATES SOBRE A teoria do


gênero, urge uma atenção especial por parte
de toda a sociedade, mas em particular da
família, à educação sexual que se deseja cada
vez mais implantar nas escolas. Existe uma
parceria crescente entre o Ministério da
Saúde e o Ministério da Educação no sentido
de se transmitir na escola orientações quanto
à educação sexual.[ 102 ] Desta parceria,
materiais pedagógicos têm sido elaborados e
propostos aos educadores. Isso tem causado
reações por parte de pais, não só daqueles
que têm e praticam uma religião, mas
também daqueles que, através do bom senso,
reagem ao conteúdo que é oferecido ou ao
169/186

modo como ele é veiculado por iniciativa


destes ministérios e secretarias.
Cartilhas são preparadas no intuito de
fornecer material de apoio aos professores e
pais. A partir de orientações em nível
nacional, percebe-se o aumento de
iniciativas por parte das secretarias estaduais
e municipais da educação, que adotam
cartilhas produzidas por grupos de estudo
sobre a orientação sexual, a chamada
diversidade de gênero, incluindo a questão
homossexual, a prevenção de doenças e a
gravidez (métodos contraceptivos) etc. A
partir da adoção destes materiais em várias
partes do Brasil, das reações de professores[
103 ] e pais, bem como das ações em âmbito
jurídico, deve-se, portanto, afirmar que nem
tudo que se propõe é positivo e
compartilhado com a visão de mundo e da
relação homem-mulher do povo brasileiro.
Identifica-se mais uma vez uma postura
170/186

ideológica e ativista por parte dos grupos ou


pessoas que são envolvidos na elaboração e
na difusão desses materiais.
Como avaliar a postura do governo através
de seus ministérios e secretarias? Que
princípios norteiam sua proposta de
educação sexual? Que conclusões podemos
tirar, não só a partir de reações isoladas, mas
também em nível coletivo e jurídico, e em
relação aos textos orientadores? Como
avaliar o papel da família e dos educadores
no âmbito destas propostas?
Orientações do MEC em matéria de
educação sexual
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação não
trata do assunto da educação sexual – ou
orientação sexual, como se prefere dizer em
atuais orientações do MEC –, nem mesmo da
questão do gênero. Já o subsídio intitulado
Parâmetros Curriculares Nacionais e os
Parâmetros Nacionais de Qualidade da
Educação Infantil, Volume 1 (2006 –
Volumes 1 e 2 e 1998 – Volume 3) prevê a
incorporação da perspectiva de gênero e da
orientação sexual,[ 104 ] não só no processo
informal, mas também no formal, ou seja,
também na grade curricular normal.
Acrescentem-se a isso as conclusões da
Conferência Nacional de Educação (2014):
Desenvolver, garantir, ampliar e consolidar políticas de
produção e disseminação de materiais pedagógicos para
as bibliotecas e espaços de leitura da educação básica
(com a colaboração de instituições de educação especial e
172/186

centros especializados nas esferas públicas e privadas,


adequados a cada faixa etária), que promovam a
igualdade racial, de gênero, por orientação sexual e
identidade de gênero; a diversidade religiosa, os direitos
reprodutivos, de prevenção a abusos e exploração sexual,
de diversidade cultural, educação alimentar [...].[ 105 ]
Inserir na avaliação de livros do Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD) e do Programa Nacional
Biblioteca da Escola (PNBE), de maneira explícita,
critérios eliminatórios para obras que veiculem
preconceitos à condição social, regional, étnico-racial, de
gênero, orientação sexual, identidade de gênero,
linguagem, condição de deficiência ou qualquer outra
forma de discriminação ou de violação de direitos
humanos.[ 106 ]

Note-se no documento a eliminação total do


vocábulo “sexo” e o fato de que, até agora, os
temas relativos ao gênero eram temas
tratados nos chamados Temas transversais
previstos pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais. Por outro lado, o Plano Nacional
de Educação, aprovado no final de 2014 no
Congresso Nacional, deixou de lado tal
173/186

terminologia quando tratou da eliminação de


“todas as formas de discriminação”.[ 107 ]
Estado, família e educação sexual
Alguns apontam hoje para uma tendência
do Estado de querer se substituir à família
no que concerne à educação das crianças,
adolescentes e jovens (postura estatizante);
por um lado, fazendo apelo aos direitos das
crianças e, por outro, criando seu próprio
departamento de planejamento familiar,
que, no fundo, não leva em conta os
interesses da família, mas tende a propor seu
ponto de vista em função de estudos de
especialistas que, muitas vezes, sequer têm a
família como horizonte ou a valorizam. Por
exemplo, num documento europeu que
aborda a questão da educação sexual, fala-se
claramente em se evitar a intromissão da
família ou da sociedade no que diz respeito
aos direitos sexuais individuais.[ 108 ] Mas,
ao mesmo tempo, conta com ela, porém, não
como primeira responsável. Também fala do
175/186

apoio do pai, da mãe e da família no


desenvolvimento das relações.
Neste documento da OMS, seção Europa,[
109 ] também há elementos justos da
compreensão da sexualidade. Interessante
notar no documento que ele faz essa
distinção entre a educação de
comportamentos sexuais, que pedem
informações sobre os mesmos, e uma real
educação sexual, que engloba também a
questão da amizade, da percepção do corpo,
e não somente a questão do funcionamento
genital e das relações sexuais. A sexualidade
tem uma definição razoável. No entanto,
tanto neste documento quanto nos
“Parâmetros Curriculares Nacionais, Tema
Transversal – Orientação Sexual”, está
ausente o aspecto de complementariedade e
uma noção maior de corpo em relação à
diferença sexual (há insistência no fato de o
corpo pertencer a si mesmo), e de seu estado
176/186

nos momentos de doença e envelhecimento,


bem como a noção de dom.
A educação da sexualidade requer uma
educação para o amor. Esta noção está
ausente das propostas de educação sexual
(muitas vezes sanitarista e contraceptiva)
comumente veiculadas, como se pode
perceber nas propostas de algumas cartilhas.
Embora haja pontos positivos em algumas
orientações do MEC, a visão da sexualidade
ainda é muito voltada para o prazer
individual, e menos para um projeto de vida,
para o sentido da sexualidade no conjunto da
realidade humana em que vive a criança, o
adolescente e o jovem. Entra-se muitas vezes
numa proposta consumista do afeto e do
prazer.[ 110 ]
Neste sentido, está também bastante
ausente a tarefa da família diante de tal
desafio. Esta, como já afirmamos, muitas
vezes não é levada em consideração e não lhe
177/186

são dadas as devidas condições para que


possa assumir suas responsabilidades
reconhecidas em textos internacionais e
nacionais. A Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1950) preceitua:
Artigo XII – Ninguém será sujeito a interferências na
sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua
correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação.
Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais
interferências ou ataques.
Artigo XXVI – 3. Os pais têm prioridade de direito na
escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus
filhos.

Nossa Constituição Federal não trata do


assunto. Mas a Lei de Diretrizes Básicas da
Educação (1996) coloca a família antes do
Estado, quando afirma que:
Art. 2º – A educação, dever da família e do Estado,
inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de
solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
178/186

A lei também pede a articulação com a


família e a comunidade e não trata da
educação sexual e da questão de gênero.
Embora nos Parâmetros Curriculares
Nacionais, em particular no tema da
orientação sexual – e, portanto, da educação
sexual – considere-se o ensino nesta área
como complementar à educação familiar,
muitas vezes existe uma inclinação a não se
considerar a família como primeira instância
educativa e, ao mesmo tempo, uma cobrança
muito grande sobre ela.[ 111 ]
Art. 4º – É dever da família, da comunidade, da
sociedade em geral e do poder público assegurar, com
absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.[ 112 ]

Uma necessária educação para o amor deve


ser abraçada, levando em conta os aspectos
fisiológico, psíquico, cultural, social e
179/186

espiritual, a partir de uma antropologia


adequada, ou seja, uma visão do homem e da
mulher que dê conta da sua dignidade
humana e sua realização como pessoa. A
família é também chamada a acompanhar o
projeto político da escola, ou ajudar a criá-lo,
quando for necessário, para aí se debater o
que se deve ou não, ou como se poderia
abordar a questão da sexualidade.

102Nos textos oficiais, fala-se mais de orientação sexual em


vez de educação sexual, o que em si já denota uma escolha
de um tipo de abordagem.
103Orley José da Silva, mestre em letras e linguística pela
Universidade Federal de Goiás (UFG), é professor na Rede
Municipal de Educação de Goiânia, mestre em Letras e
Lingüística, recentemente escreveu um texto denunciando a
introdução de cartilhas com teor ideológico ao se abordar a
questão homossexual. Disponível em:
http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/
kit-gay-volta-ampliado-as-escolas.
104Cf. MEC, Parâmetros Nacionais de Qualidade de Ensino
Infantil, vol. 1, p. 39.
105Ministério da Educação. Documento Final, 2014, p. 36.
106Ibid., p. 36.
180/186

107Cf. Lei no. 13.005, de 25 de junho de 2014, Art. 2º, inciso


III. A ressalva que se deve fazer aqui diz respeito, mais uma
vez, ao modo de se empregar a linguagem. Na verdade, o
vocábulo “discriminação” em sua primeira acepção significa
“distinção”, e só em seguida tem acepção que diz respeito ao
ato de separar alguém por preconceito. Talvez seja melhor
falar de “discriminação injusta”, para não se incorrer no
erro de muitos em não querer fazer distinções no que
concerne à contribuição maior ou menor oferecida à pessoa
e à sociedade, por exemplo, quando o assunto é avaliação
das várias formas de “família”.
108Federal Center for Health Education. Standarts For
Sexuality Education in Europe, Cologne, 2010.
109Ibidem. Ver também os Parâmetros Curriculares
Nacionais, Tema Transversal Orientação Sexual.
110Cf. Lipovetsky, G. Le bonheur paradoxal. Essai sur la
société d’hyperconsommation. Saint-Amand: Gallimard,
2006.
111Ver, por exemplo, Scherer, O. Pastoral Familiar. In:
Petrini, G.; Fornasier, R. C. Desafios e possibilidades da
família no limiar do século XXI, Brasília: Edições da CNBB,
2012.
112Estatuto da Criança e do Adolescente, 2010.
Gender, quem és tu? – Sobre a Ideologia de Gênero
Copyright © by Olivier Bonnewijn
1ª edição – janeiro de 2015 – CEDET
Título original: Gender qui est-tu?, Ed. de l’Emmanuel,
Paris, 2012 – Olivier Bonnewijn (org.); os direitos para
tradução foram cedidos à Comissão Nacional da Pastoral
Familiar, CNBB.
Foto da capa: © Juan Moyano – Mannequin Heads In An
Old Suitcase
Os direitos desta edição pertencem ao
CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e
Tecnológico
Rua Angelo Vicentin, 70
CEP: 13084-060 - Campinas - SP
Telefone: 19-3249-0580
e-mail: livros@cedet.com.br
Editor
Diogo Chiuso
Editor-assistente:
Thomaz Perroni
Tradução:
Teresa Dias Carneiro
Revisão:
Thomaz Perroni
182/186

Capa & Diagramação:


J. Ontivero
Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Diogo Chiuso
Silvio Grimaldo de Camargo
Desenvolvimento de eBook
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bonnewijn, Olivier
Gender, quem és tu? - Sobre a Ideologia de Gênero [recurso
eletrônico] / Olivier Bonnewijn; tradução de Teresa Dias
Carneiro – Campinas, SP: Ecclesiae, 2015.
eISBN: 978-85-8491-015-1
183/186

1. Igreja Católica 2. Catequese I. Autores II. Título


CDD – 282 268

Índice para Catálogo Sistemático


1. Igreja Católica – 282
2. Catequeses – 268
SOBRE O AUTOR

OLIVIER BONNEWIJN
É sacerdote na arquidiocese de
Malines-Bruxelas, Bélgica, e membro da
Comunidade Emanuel. Licenciado em
Filosofia pela Universidade Católica de
Louvain e doutor em Teologia pelo Instituto
João Paulo II em Roma.
185/186

Atualmente é professor de Ética no Instituto


de Estudos Teológicos em Bruxelas e reitor
do seminário diocesano Notre-Dame
d’Espérance.
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