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I e II
Autor(es): Oliveira, Guiomar (coord.); Saraiva, Jorge (coord.)
Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/43101
persistente:
DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0
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IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
COIMBRA UNIVERSITY PRESS
VOL. I
LIÇÕES DE
PEDIATRIA
GUIOMAR OLIVEIRA
JORGE SARAIVA
COORDENAÇÃO
Página deixada propositamente em branco
LIÇÕES
DE
PEDIATRIA
VOLUME I
GUIOMAR OLIVEIRA
JORGE SARAIVA
COORDENAÇÃO
GUIOMAR OLIVEIRA
JORGE SARAIVA
COORDENAÇÃO
Prefácio ................................................................................................................................................. 9
Jeni Canha e H. Carmona da Mota
VOLUME I
1. Introdução à Pediatria no contexto do ensino médico................................................................. 11
Jorge Saraiva
2. A organização da rede de cuidados de Saúde Infantil e Juvenil em Portugal............................ 21
José Carlos Peixoto
3. Programa nacional de intervenção precoce................................................................................... 33
José Boavida
4. História Clínica................................................................................................................................. 41
Guiomar Oliveira
5. Medicamentos mais utilizados em pediatria e iatrogenia............................................................ 53
Carla Chaves Loureiro
6. A genética em Pediatria.................................................................................................................. 63
Jorge Saraiva
7. Meios complementares de diagnóstico em Pediatria.................................................................... 71
Cândida Cancelinha
8. Suporte básico e noções de suporte avançado de vida pediátrico.............................................. 87
Carla Pinto
9. Neonatologia..................................................................................................................................115
José Carlos Peixoto e Carla Pinto
10. Alimentação e suplementos........................................................................................................ 157
Mónica Oliva
11. Crescimento e os seus problemas................................................................................................ 171
Raquel Soares
12. Neurodesenvolvimento e comportamento.................................................................................211
Guiomar Oliveira
13. Sono normal e problemas de sono............................................................................................. 233
Núria Madureira e Maria Helena Estevão
14. Adolescência................................................................................................................................. 245
Paulo Fonseca
15. O Programa Nacional de Vacinação e outras Vacinas................................................................ 259
Fernanda Rodrigues
16. Febre.............................................................................................................................................. 273
Alexandra Oliveira
17. Exantemas..................................................................................................................................... 279
Alexandra Oliveira
18. Infeções das vias respiratórias superiores................................................................................... 295
Gustavo Januário
19. Infeções das vias respiratórias inferiores.................................................................................... 315
Patricia Mação
20. Doença alérgica........................................................................................................................... 327
José António Pinheiro
Afiliação de Autores.......................................................................................................................... 339
VOLUME II
21. Infeção urinária.............................................................................................................................. 11
Clara Gomes
22. Vómitos........................................................................................................................................... 25
Susana Almeida
23. Diarreia aguda e crónica............................................................................................................... 35
Susana Almeida
24. Dor abdominal aguda e crónica................................................................................................... 49
Ricardo Ferreira
25. Causas cirúrgicas de dor abdominal............................................................................................. 55
Maria Francelina Lopes
26. Patologia frequente em cirurgia de ambulatório........................................................................ 61
Maria Francelina Lopes
27. Ortopedia, variantes da normalidade e problemas frequentes................................................. 67
Cristina Alves
28. Obstipação, encoprese e enurese................................................................................................. 87
Mónica Oliva
29. Problemas dermatológicos mais comuns em Pediatria............................................................. 103
Gustavo Januário
30. Infeções da pele e dos tecidos moles......................................................................................... 127
Fernanda Rodrigues
31. Púrpuras/Vasculites...................................................................................................................... 139
Paula Estanqueiro
32. Bacteriémia e sépsis..................................................................................................................... 149
Andrea Dias
33. Meningite e meningoencefalite................................................................................................. 161
Ana Brett
34. Hematúria e proteinúria.............................................................................................................. 175
António Jorge Correia
35. Cefaleias....................................................................................................................................... 199
Mónica Vasconcelos
36. Poliúria e polidipsia......................................................................................................................211
Rita Cardoso
37. Anemias........................................................................................................................................ 219
Leticia Ribeiro e Tabita Magalhães Maia
38. Acidentes e Intoxicações............................................................................................................. 245
Lia Gata
39. Criança maltratada...................................................................................................................... 255
Jeni Canha
40. Fenómenos paroxísticos, crises epiléticas e epilepsias.............................................................. 267
Cristina Pereira e Conceição Robalo
41. Doenças cardíacas mais comuns.................................................................................................. 283
António Pires
42. Introdução às Doenças hereditárias do metabolismo............................................................... 297
Luísa Diogo
43. A criança submetida a transplante de órgãos sólidos................................................................311
Isabel Gonçalves
44. Imunodeficiências Primárias – Quando Suspeitar?.................................................................... 321
Sónia Lemos
45. Doença oncológica...................................................................................................................... 329
Manuel Brito e Alexandra Paul
Afiliação de Autores.......................................................................................................................... 353
9
H. Carmona da Mota
Capítulo 1.
Introdução à Pediatria no
contexto do ensino médico
1
Jorge Saraiva
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_1
CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO À PEDIATRIA NO CONTEXTO DO ENSINO MÉDICO 13
desde o último quartel do século vinte e até ao pre- O segundo país gasta mais (90€ versus 50€) ou
sente. E porquê? Em primeiro lugar pela melhoria menos (nove versus 10%) em saúde? Se uma uti-
das condições socio-económicas das populações lização adequada do orçamento em saúde do pri-
(os 40%), potenciada por medidas de medicina meiro lhe permitir ter melhores resultados do que
preventiva como os anteriormente mencionados o segundo, poderá este dizer que “isso é porque
Plano Nacional de Vacinação e Programa Nacional outro está a gastar 10% em saúde enquanto eu
de Diagnóstico Precoce (que representam os 20% apenas gasto nove; pelo que lhe recomendo que
e que serão explicitados em capítulos independen- diminua a despesa em saúde”?
tes); mas também e de forma indispensável pela Se considerarmos a despesa em saúde em
“existência de financiamento adequado, prestado- percentagem do PIB no início da segunda década
res de cuidados de saúde com excelente formação do século XXI Portugal tinha a décima primeira
e justamente remunerados, sistemas de informa- maior despesa em saúde, 11% versus a média da
ção fiáveis que sustentem a tomada de decisões e dos países da Organização para a Cooperação e
estruturas e logística que forneçam consumíveis e o Desenvolvimento Económico (OCDE) de 9,3%.
tecnologias” que permitiram obter excelentes re- Mas em valor absoluto Portugal estava em vigési-
sultados com os recursos existentes sob a liderança mo segundo lugar com 2619 USD PPPs e a média
do Dr. Albino Aroso e do Professor Doutor Torrado da OCDE era de 3322…
da Silva que me abstenho de aqui explicitar por
serem abordados em outros capítulos, em particular
o intitulado “A organização da rede de cuidados 1.2.3 Quais os resultados?
de Saúde Infantil e Juvenil em Portugal”.
Em Portugal em 2010 só sete por cento dos
prematuros com menos de 32 semanas nasceram
1.2.2 Quais foram os recursos existentes? em locais sem unidades de cuidados intensivos
neo-natais (o segundo melhor resultado da União
Portugal obteve muito melhores resultados Europeia-UE), a mortalidade fetal em Portugal
em saúde com menos despesa do que a grande foi de 3,2 por 1.000 (segundo lugar na UE), a
maioria dos países desenvolvidos. Cumpre escla- mortalidade neonatal foi de 1,6 por 1.000 (quarto
recer que a comparação deve ser preferencial- lugar depois de Islândia, Finlândia e Suécia), a
mente realizada em termos de despesa real e não mortalidade infantil foi de 2,5 por 1.000 (quarto
em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB). lugar depois de Islândia, Finlândia e Suécia).
Vejamos porquê: se num país o rendimento médio
mensal for de 500€ e a despesa em saúde de
50€ o consumo é aqui 10% do seu rendimento; 1.2.4 Quais os problemas que permanecem?
se noutro país o rendimento médio mensal for
de 1.000€ e a despesa em saúde de 90€ o con- O baixo peso ao nascimento é pior do que
sumo é aqui nove por cento do seu rendimento. a média europeia (em 2010 8,3 para 6,5 UE) e
CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO À PEDIATRIA NO CONTEXTO DO ENSINO MÉDICO 15
está a piorar acompanhando a prematuridade, o um número crescente de filhos únicos, mães me-
excesso de peso, os erros alimentares, o diminuto nos jovens, famílias monoparentais, emigração
exercício físico regular e a precocidade e excesso e desemprego. Mas para além da evolução de-
de consumo de álcool e tabaco. mográfica temos que estar conscientes da urba-
Apenas 30% dos adolescentes realizam as nização e mobilidade crescentes, das mudanças
consultas preconizadas no Programa Nacional de epidemiológicas (pandemias, reflexos das altera-
Saúde Infantil e Juvenil. ções climáticas, doenças não transmissíveis) e da
A transição dos doentes crónicos da Pediatria redistribuição das morbilidades (doenças mentais,
para as especialidades de adultos tem modelos músculo-esqueléticas, crónicas).
bem definidos mas não está implementada, a par
dos cuidados paliativos pediátricos.
Haverá ainda que procurar prever a evolução 1.2.6 O ensino da Pediatria para o mundo e
na organização dos sistemas de saúde em resulta- o futuro
do do desenvolvimento tecnológico (biomedicina
e sistemas de informação e comunicação), cui- A formação dos médicos é uma componente
dados à distância (telemedicina nomeadamente de um dos quatro pilares para o funcionamento
com a teleconsulta e a telemetria) e a distribuição adequado de um sistema de saúde já anterior-
das responsabilidades pelos vários grupos pro- mente referido: uma formação de excelência.
fissionais como na decisão médica partilhada e A formação dos médicos continua historica-
autorresponsabilização das pessoas, já designada mente sustentada no Relatório Flexner de 1910
“coprodução da saúde” ou a transferência de que estabeleceu as bases científicas da atividade
tarefas para grupos profissionais de maior aces- profissional e recentemente no modelo de ensino
sibilidade / menor diferenciação / menor custo centrado no aluno e no método de resolução de
ou menor acessibilidade / maior diferenciação / problemas.
maior custo. Para o futuro cumpre integrar duas revo-
luções. Em primeiro lugar o modelo transpro-
fissional. É uma evidência que a prestação de
1.2.5 A sociedade cuidados de saúde exige uma equipa constituída
por médicos, enfermeiros, outros técnicos de saú-
A evolução demográfica tem um impacto de, técnicos de diagnóstico e terapêutica, enge-
em toda a sociedade mas muito rapidamente nheiros, administrativos, assistentes operacionais,
na Pediatria por requerer de imediato uma reor- de entre outros. Mas cada um destes grupos é
ganização dos recursos existentes e uma rápida formado na sua escola, tem como professores e
reformulação da formação dos técnicos de saúde colegas quase exclusivamente pessoas da área
para as necessidades previsíveis a curto prazo. profissional (no caso dos alunos de medicina aulas
A realidade é a de um país com um número exclusivamente para alunos de medicina e pro-
anual de nascimentos de cerca de 80.000, com fessores maioritariamente médicos e que mesmo
16 JORGE SARAIVA
quando o não são têm como profissão dar aulas 15% ou 4,3 milhões. Esta carência é acentuada
apenas a médicos). E pretendem os formadores por uma distribuição assimétrica com uma varia-
que no dia a seguir à graduação todos estejam a bilidade nacional com uma ordem de grandeza
trabalhar harmoniosamente na equipa onde foram de 10 (num planeta em que o PIB tem valores
integrados, por certo em resultado de qualidades divergentes em 300 vezes, do Burundi para a
inatas…O desenvolvimento das aptidões e atitu- Noruega, e a despesa em saúde de 600 vezes, da
des para o exercício transprofissional deve pois ser Eritreia para os EUA), acentuada pela correlação
integrado na formação de todos os técnicos de inversa entre as necessidades e a disponibilidade.
saúde, incluindo os médicos, baseado em compe- O número de médicos e enfermeiros por 1.000
tências em sistemas de saúde com sincronização habitantes é de 4.0 mas varia desde 1.1 (África
e melhoria da integração horizontal e vertical. O subsariana) até 12.7 (Reino Unido) (na Europa
modelo transprofissional ultrapassa a formação 9,6) e a proporção de enfermeiros por médico
estritamente monoprofissional por forma a pro- é de 2:1 mas varia de 1:1 (China) até 4:1 (EUA)
mover o conhecimento, compreensão e respeito (na Europa 2:1).
dos outros grupos profissionais no obrigatório A variabilidade nacional e regional é cres-
trabalho em equipa. cente pela perversidade da menor atratividade
Em segundo lugar um médico formado em das regiões com menos recursos com a tendência
Portugal tem uma probabilidade relevante de ser para uma existência de mais técnicos de saúde nos
chamado a cuidar aqui de doentes de outras ori- locais em que eles são menos necessários. Os EUA
gens ou até de exercer a sua profissão noutro país têm quatro por cento da população mundial, oito
ou continente. Cada vez mais a adequação local/ por cento dos médicos e 17% dos enfermeiros mas
regional ou nacional pode não estar alinhada com ainda assim identificam necessidades adicionais de
outros contextos de exercício profissional quando 85.000 médicos até 2020 (para além dos atuais
as oportunidades de trabalho ocorrem cada vez 756.000, dos quais 25% não têm nacionalidade
com maior frequência num contexto diferente norte-americana) e 260.000 enfermeiros até 2025
do da formação. (para além dos atuais 3.064.000). As medidas
As pessoas procuram cada vez mais cuidados consideradas eficazes para minorar este efeito
médicos num meio diferente do da sua residência como incentivos no local de formação, política
e o turismo médico tem um aumento anual de de recrutamento para a formação, bolsas, “bon-
20%. Um terço das crianças intervencionadas no ding”, políticas remuneratórias, desenvolvimento
Programa Nacional de Transplantação Hepática profissional contínuo e integração familiar têm
Pediátrica não é de nacionalidade portuguesa. tido até ao momento efeito limitados.
Existe globalmente uma enorme carência O papel da Pediatria no Mestrado Integrado
de técnicos de saúde adequadamente treinados: em Medicina é substancialmente diferente da es-
segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) pecialidade de Pediatria nos cuidados de saúde
existem atualmente nove milhões de médicos e 18 em Portugal. Esta última tem como objetivo pre-
milhões de enfermeiros mas são necessários mais parar médicos especialistas com conhecimentos,
CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO À PEDIATRIA NO CONTEXTO DO ENSINO MÉDICO 17
aptidões e atitudes para garantir cuidados de objetivos é a referenciação para cuidados hos-
saúde de qualidade às crianças que requeiram pitalares de casais em que sejam identificados
cuidados hospitalares, seja por suspeita ou con- fatores de risco). Da mesma forma a preparação
firmação de doença aguda grave, de complicação da promoção e vigilância de saúde infantil deve
preocupante de doença aguda ou crónica, ou de começar na consulta pré-natal realizada pelo
doença crónica que pela sua gravidade ou natu- médico que será o futuro médico assistente da
reza requer referenciação hospitalar. Inicia a sua criança, em geral o médico especialista em me-
intervenção com a sub-especialidade de neona- dicina geral e familiar dos pais. No entanto esta
tologia em colaboração com a subespecialidade última não se encontra ainda prevista no atual
de medicina materno-fetal da especialidade de Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil.
ginecologia-obstetrícia, no diagnóstico e terapêu- O ensino da Pediatria no Mestrado Integrado
tica fetal, e prolonga-se até aos 18 anos com o em Medicina em Coimbra na segunda década
culminar do processo anteriormente iniciado de do século XXI tem ainda que garantir os conhe-
transição de adolescentes com doença crónica cimentos, aptidões e atitudes necessários para o
para uma especialidade de adultos. exercício da profissão noutros locais e num futuro
A formação pré-graduada em Pediatria tem a médio e longo prazo. Há países, nomeadamente
assim que tomar em consideração a preparação de europeus, em que o modelo de vigilância médica
todos os médicos, não apenas os futuros pediatras das crianças pressupõe que seja sempre da res-
e outros especialistas exclusivamente dedicados às ponsabilidade de um especialista em Pediatria. E o
crianças, como os cardiologistas pediátricos, os papel de outros técnicos de saúde, nomeadamen-
cirurgiões pediátricos e os pedopsiquiatras mas, no te enfermeiros e psicólogos, pode vir a redistribuir
contexto nacional, os futuros médicos assistentes responsabilidades sobre qual o responsável pela
das crianças portuguesas – médicos especialistas vigilância e promoção de saúde em áreas como as
em medicina geral e familiar -, os especialistas em vacinações, a alimentação ou a monitorização e
órgãos e sistemas que participarão com frequência rastreio dos problemas do neurodesenvolvimento.
na prestação de cuidados de saúde hospitalares a Evidentemente que o resultado final utilizará
crianças, como a cirurgia cardiotorácica, a derma- não apenas os programas de formação específica,
tologia, a oftalmologia ou a otorrinolaringologia, habitualmente designados de internato médico,
e até especialidades exclusivamente de adultos como o plano de desenvolvimento profissional
nomeadamente pelo papel que são chamadas a que cada um irá construir – mas também aqui,
desempenhar no processo de transição de adoles- quer para maximizar o aproveitamento da for-
centes com doenças crónicas das especialidades mação pós-graduada quer para cada um saber
pediátricas para a medicina de adultos. escolher o que deve priorizar para a sua formação
A preparação de uma gravidez deve iniciar-se individual é imprescindível acautelar que é agora,
na consulta pré-concepcional, da responsabilida- enquanto alunos universitários, que são reunidas
de do médico especialista em medicina geral e as condições adequadas para garantir o sucesso
familiar do casal (recordando aqui que um dos nesse futuro próximo.
18 JORGE SARAIVA
A 29 de janeiro de 2011 foi realizada a trans- O ensino médico da Pediatria no Porto ini-
ferência para as atuais instalações, tendo passado ciou-se no ano letivo 1917/1918 com o Prof. Dias
a integrar o Centro Hospitalar e Universitário de de Almeida e depois, em 1919, o Prof. António
Coimbra em um de abril de 2011. Foi o primeiro de Almeida Garrett, inicialmente no Hospital de
edifício construído de raiz para hospital pediátrico Santo António (onde mais tarde se reiniciou, no
em mais de um século em Portugal e permitiu o âmbito do Instituto de Ciências Biomédicas Abel
alargamento do atendimento (que anteriormente Salazar) e depois no Hospital de São João.
tinha sido até aos 10 anos e depois até aos 12) Em Coimbra o primeiro professor de Pediatria
ao grupo etário dos 13 aos 17 anos inclusive. foi o Prof. Morais Sarmento, no ano letivo
O primeiro registo documental de autono- 1917/1918, a que se sucederam os Professores
mia da Pediatria no ensino médico universitário é Elísio de Moura, João Porto, Lúcio de Almeida,
de julho de 1841 quando Frederik Theodor Berg José dos Santos Bessa e, a partir do ano letivo
foi nomeado diretor médico de um orfanato em 1974/1975, o Prof. Henrique Carmona da Mota
Estocolmo (e que transformaria num verdadeiro bem assim como pouco depois o Prof. Torrado da
hospital pediátrico em 1849) a par de responsável Silva e posteriormente a Professora Jeni Canha.
pelo ensino da Pediatria tendo orientado como Nos cursos de medicina criados posterior-
Professor de Pediatria do Real Instituto Médico- mente o ensino da Pediatria está presente desde
Cirúrgico de Carolinska desde abril de 1845 a o seu início.
Clínica Pediátrica formalmente instituída em maio
do mesmo ano.
A realização em Lisboa de 19 a 26 de abril de Leitura complementar
1906 do XV Congresso Internacional de Medicina
permitiu a aprovação de uma proposta do Prof. Crisp N, Chen L. Global Supply of Health Professionals. N
Jaime Salazar de Sousa para “que o ensino ci- Engl J Med 2014;370:950-957.
rúrgico e médico da Pediatria seja oficial em Bessa JS. “Breve História do Hospital Pediátrico de Coimbra.”
todas as Faculdades e Escolas de Medicina” o Revista da Fundação Bissaya-Barreto, 1987;2(4):5-13.
que veio a acontecer com a reforma do ensino Norvenius SG, Randers B. “150th Anniversary of the creation
de 1911 sendo que a nomeação do Prof. Jaime of the first Chair of Paediatrics in the world.” Acta Paeditr
Salazar de Sousa para professor de Pediatria da 1997;86: 443-447
Faculdade de Medicina de Lisboa ocorreu no ano OECD (2013), Health at a Glance 2013: OECD Indicators,
letivo 1916/1917. O ensino médico da Pediatria OECD Publishing.http://dx.doi.org/10.1787/health_glan-
em Lisboa transitou depois sucessivamente para ce-2013-en.
o Hospital Escolar de Santa Marta, com o Prof.
Castro Freire, e para o Hospital de Santa Maria,
tendo-se reiniciado no Hospital de Dª Estefânia
o ensino da Faculdade de Ciências Médicas de
Lisboa.
Capítulo 2.
A organização da rede
de cuidados de Saúde Infantil
e Juvenil em Portugal
2
José Carlos Peixoto
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_2
CAPÍTULO 2. A ORGANIZAÇÃO DA REDE DE CUIDADOS DE SAÚDE INFANTIL E JUVENIL EM PORTUGAL 23
A maioria dos países com padrões de desen- Há 25 anos, em Portugal, uma conjuga-
volvimento humano semelhantes ao nosso, me- ção feliz de vários fatores, que passamos a
lhorou consideravelmente as taxas de mortalida- descrever para memória futura, esteve na base
de infantil (TMI) a partir dos anos 70, figura 1.. A deste sucesso, nomeadamente: i) a vontade
melhoria das condições de vida contribuiu para política em investir na estruturação da Saúde
esta evolução favorável generalizada. Contudo, Materna e Infantil (SMI) face à situação precária
em Portugal, outros fatores justificaram a queda de Portugal no ranking dos indicadores da SMI,
significativa da TMI verificada a partir dos anos relativamente aos parceiros da União Europeia
90. Na verdade, Portugal foi o país que mais (UE); ii) o envolvimento na solução de um con-
reduziu a TMI evoluindo da pior taxa da Europa junto de líderes visionários que já conheciam a
para passar a integrar, de forma sustentada, o realidade do país, sentiam o problema e sabiam
grupo dos países com as TMI mais baixas do mun- as soluções; iii) a nomeação em 1989 da pri-
do, figura 2. Esta queda deve-se à diminuição meira Comissão Nacional da Saúde Materna e
progressiva das taxas de mortalidade neonatal Infantil (CNSMI); iv) a visão estratégica correta e
e neonatal precoce, exatamente as que depen- a conceção competente do Programa Nacional
dem menos das condições socioeconómicas e da Saúde Materna e Infantil (PNSMI); e v) a co-
muito mais da organização e desempenho dos municação e o envolvimento dos profissionais
cuidados de saúde. como executores deste projeto.
Figura 1. Evolução da taxa da mortalidade infantil em Portugal e países da OCDE (1988 -2009).
24 JOSÉ CARLOS PEIXOTO
Figura 4. Intervenções necessárias para consolidar a baixa Figura 5. Organização dos Circuitos Assistenciais.
sustentada da Mortalidade Infantil.
autonomia concedidas pelos sucessivos conse- PNSMI, potenciando-o sem colidir com as virtudes
lhos de administração da ARS, permitiu conso- da nova reforma. Com base neste Despacho foi
lidar a Regionalização de Cuidados Perinatais e possível “reativar” as UCF, repor-lhes o suporte
Pediátricos na Região Centro, figuras 6, 7, modelo legal, adaptá-las aos novos modelos de gestão,
invejável, difícil de implementar e consolidar, re- manter a interface entre os cuidados de saúde
comendado pelas sociedades científicas por ser o primários e os hospitalares, consolidar as relações
mais eficiente, evitando a dispersão dos serviços inter-hospitalares e a referenciação para as áreas
mais diferenciados. diferenciadas. Pela primeira vez foram constituí-
A ação continuada das Comissões Regionais das as UCF inter-hospitalares tanto na vertente
permitiu a elaboração do Despacho 9872/2010 materna e neonatal como na vertente pediátrica
que defende e permite dar continuidade ao e adolescente figuras 7 e 8.
30 JOSÉ CARLOS PEIXOTO
As “novas” UCF estão adaptadas à atual or- Reconhecer o PNSMI como um património
ganização dos Cuidados de saúde primários sendo nacional, é uma obrigação de todos os profissio-
a estrutura de eleição para atenuar e corrigir as nais de saúde que devem continuar a ser os seus
iniquidades em saúde detetadas em Portugal e advogados, e os seus executores e promover a sua
referidas no relatório da OCDE em 2015. integração nos Planos de ação dos Diretores de
A revisão do PNSIJ e a informatização do Serviço, dos Presidentes dos Conselhos Clínicos,
BSIJ e da Notícia de Nascimento e a prometida dos responsáveis das Sociedades Cientificas e das
informatização do Boletim de Saúde da Grávida Ordens profissionais.
são instrumentos fundamentais para avaliar e dar
coesão a esta assistência. PS: Se não assumirmos este Dever de Cidadania,
Os indicadores de contratualização para se abdicarmos da gestão clínica, se nos deixarmos
os cuidados da saúde primários e hospitalares conduzir por uma gestão exclusivamente
atualmente em curso, orientados preferencial- economicista, inconscientemente seremos
mente para a avaliação da produção, devem ser induzidos a praticar uma medicina baseada em
adaptados ao acesso e qualidade assistencial dos indicadores de produção, desviando-nos da
circuitos assistenciais e deverão incluir a avalia- essência da nossa profissão e talvez sejamos
ção dos resultados da qualidade dos cuidados de obrigados a reescrever esta história começando
saúde prestados e garantir as funções das UCF. por “era uma vez”. José Carlos Cabral Peixoto.
CAPÍTULO 2. A ORGANIZAÇÃO DA REDE DE CUIDADOS DE SAÚDE INFANTIL E JUVENIL EM PORTUGAL 31
3
José Boavida
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_3
CAPÍTULO 3. PROGRAMA NACIONAL DE INTERVENÇÃO PRECOCE 35
SENTIDO DA EVOLUÇÃO
População-alvo Crianças dos 0-3 anos Crianças dos 0-5 anos
com “deficiência” Com perturbação do desenvolvimento
e/ou risco e famílias
Contexto Centros de estimulação Contextos naturais
Centros terapêuticos (casa, jardim de infância, etc.)
Instituições Base comunitária
Práticas “Pronto-a-vestir” “Feitas por medida”
Individualizadas
Papel dos profissionais Peritos / decisores Facilitadores
e = =
famílias Recetores passivos de serviços Participantes ativos / decisores
Objectivos / resultados Desenvolvimento da criança Prevenção
Remediação da deficiência Compensação / adaptação (deficiência)
“Empowerment” / capacitação das famílias
Trabalho de equipa Multi / interdisciplinar Trandisciplinar
(com inclusão da família)
Enquadramento Centrada na criança Centrada na família
filosófico da IP Baseada nos “défices” Baseada nas “forças”
isoladamente com uma criança pequena com pro- situações mais graves, contrariamente aos pro-
blemas de desenvolvimento, a IPI evoluiu para uma blemas ligeiros do desenvolvimento, os ganhos
gama de serviços individualizados, “centrados na mensuráveis a este nível são infelizmente pe-
família”, prestados por equipas transdisciplinares quenos. Atualmente, os resultados são medidos
numa base comunitária. O quadro 1 mostra o sen- não só pela evolução do desenvolvimento da
tido da evolução da IPI nos últimos anos. criança mas também pelos ganhos da família
O alvo dos serviços passou a incluir para em termos de autonomia, independência e
além das crianças com problemas estabelecidos competências.
do seu desenvolvimento, crianças de alto risco, A grande mudança concetual da IPI nos
biológico ou ambiental. últimos anos e a mais difícil de implementar,
Não se preconiza hoje um contexto tipo para tem sido a evolução a partir de serviços cen-
a IPI. Há que considerar uma variedade de fatores trados na criança, de acordo com um modelo
na escolha do ambiente ótimo para intervir numa médico-terapêutico, para serviços centrados
criança particular: tipo de problemas, recursos na família, com base em modelos de desen-
existentes, disponibilidade da família, entre ou- volvimento ecológico e transacional. A IPI tem
tros. O domicílio, o infantário, o centro de saúde que ter em conta as importantes contribuições
ou qualquer outro local na comunidade podem da unidade familiar, assim como os fatores de
ser perfeitamente adequados, desde que sejam stresse que a afetam (sejam sociais, financeiros
contextos naturais. ou psicológicos) e a capacidade de adaptação
Cada criança apresenta necessidades únicas a novos desafios. É importante reconhecer que
e vive numa família também única, com recursos as capacidades parentais são um fenómeno do
e prioridades diferentes de todas as outras. Só desenvolvimento e um processo evolutivo que
práticas individualizadas podem dar resposta a coincide com as aquisições de desenvolvimento
cada caso. da criança e que os pais podem desenvolver e
Uma das principais mudanças concetuais da melhorar. De facto, o conceito de IPI “centrada
IPI nos últimos anos tem a ver com o crescente na família” tem na sua base três pressupostos:
reconhecimento da necessidade duma relação
entre pais e profissionais, menos hierárquica e 1. Todos os pais têm competências ou são
mais colaborativa. Tradicionalmente os profissio- capazes de as desenvolver.
nais assumiam um papel de peritos e decisores 2. A IPI deve ser prestada de forma a que
enquanto as famílias eram vistas como recetores os pais possam evidenciar as suas com-
passivos de serviços. petências.
Relativamente aos objetivos e aos resulta- 3. A intervenção deve ir de encontro às
dos esperados com a IPI também houve igual- necessidades identificadas pela família,
mente uma clara evolução. Os primeiros progra- de forma a promover um sentimento de
mas de IPI focavam-se quase exclusivamente no controlo sobre as suas vidas e as dos seus
desenvolvimento da criança, sabendo-se que nas filhos.
38 JOSÉ BOAVIDA
Preconizam-se hoje práticas baseadas nas três exemplos específicos, pela qualidade das suas
forças, contrariamente às práticas baseadas nos práticas: Munich (Alemanha), Vasterás (Suécia) e
défices, para as quais todos estamos profissional- Coimbra (Portugal).
mente mais preparados. A família deve ser enca-
rada pelos profissionais como parte da solução e O modelo concetual baseado numa inter-
não parte do problema. venção ecológica e centrada na família e a es-
trutura do PIIP que incluía equipas concelhias de
IPI, coordenadas por uma equipa distrital envol-
3.2.4 Legislação vendo em ambos os níveis elementos dos três
ministérios, iniciou uma mudança paradigmática
3.2.4.1 Projeto Integrado de Intervenção na IPI em Portugal, que culminou na publicação
Precoce do Distrito de Coimbra (PIIP) – em 1999 do Despacho Conjunto 891/99, dos
Um percursor do modelo nacional Ministérios da Saúde, Educação e Segurança
Os anos 90 foram dos mais produtivos no Social, primeira legislação a regulamentar a prá-
campo da intervenção precoce em Portugal. Em tica da IPI no país. A aprovação em 6 de Outubro
pouco mais de uma década, a IPI evoluiu de um de 2009 do Decreto-Lei 281/2009, na sequência
serviço emergente, prestado numa lógica de in- dum processo de avaliação do anterior despacho,
tervenção centrada na criança, para uma área criou o Sistema Nacional de Intervenção Precoce
de rápido crescimento, com um enquadramento na Infância.
concetual completamente diferente.
Parte desta evolução foi desencadeada pela 3.2.4.2 Sistema Nacional de Intervenção
implementação em 1989 do Projeto Integrado Precoce na Infância (SNIPI)
de Intervenção Precoce do Distrito de Coimbra
(PIIP), um programa de IPI de base comunitária, 3.2.4.2.1 Linhas Gerais
que tinha por objetivo prestar serviços individua- O Decreto-lei 281/09 de 6 de Outubro, criou
lizados e abrangentes, a crianças pré-escolares formalmente o SNIPI, que tem por objetivo “ga-
com necessidades especiais e famílias, envolvendo rantir condições de desenvolvimento das crianças
Saúde, Educação e Segurança Social. O Centro dos 0 aos 6 anos, com funções ou estruturas do
de Desenvolvimento da Criança do Hospital corpo que limitam o crescimento pessoal, social, e
Pediátrico de Coimbra esteve envolvido em to- a participação nas atividades típicas para a idade,
dos os momentos do processo, da conceção à bem como das crianças com risco grave de atraso
implementação, ficando por isso inequivocamente no desenvolvimento”.
ligado à história da IPI em Portugal. O SNIPI é desenvolvido através da atuação
A Agência Europeia para o Desenvolvimento coordenada dos Ministérios do Trabalho e da
da Educação em Necessidades Especiais publicou Solidariedade Social (MTSS), da Saúde (MS) e da
em 2005 uma avaliação detalhada da situação da Educação (ME), com envolvimento das famílias e
IPI na União Europeia e no seu relatório destacou da comunidade.
CAPÍTULO 3. PROGRAMA NACIONAL DE INTERVENÇÃO PRECOCE 39
4
Guiomar Oliveira
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_4
CAPÍTULO 4. HISTÓRIA CLÍNICA 43
grupo I, II ou III – serviço de urgência ou ato médico. Deve iniciar-se de um modo formal e
consulta de agudos e internamento); se- amistoso, em espaço próprio e condigno. O mé-
guimento hospitalar em colaboração com dico, previamente, deve saber quem vai receber,
os cuidados de saúde primários (doença e estar a par da informação disponível. Deve estar
crónica, preocupação…). identificado e apresentar-se. É útil saber o nome da
criança, idade, de onde vem, uma ou outra carate-
Em Portugal a CSIJ tem por base uma es- rística “positiva” que possa ser utilizada como frase
trutura organizativa bem sedimentada, com uma inicial “quebra gelo”. Deve falar calmamente e com
experiência de quase 25 anos, através da imple- linguagem adaptada à circunstância (cuidado com
mentação do Programa Nacional de Vigilância a utilização de termos médicos não compreensíveis,
em Saúde Infantil e Juvenil (PNSIJ) (primeiro em mas deve-se utilizar linguagem diferenciadora da
1992) pela Direção Geral da Saúde do Ministério população geral; é um médico…). Saber ouvir sem
da Saúde. As revisões subsequentes deram-se em pressas (ou pelo menos não dar a perceber…).
2002, 2005 e a última em 2013. Registar (pode ser mentalmente) o importante da
No atual PNSIJ (http://www.dgs.pt/?cr=24430) história e também as preocupações dos pais ou da
o número e a periodicidade de consultas de vigilân- criança, que deveremos reter, para esclarecimento
cia recomendadas são: primeiro ano de vida – sete posterior. Mostrar conhecimento e profissionalis-
(primeira semana de vida, 1, 2, 4, 6, 9 e 12 meses de mo, dirigir o “diálogo” sem ser fundamentalista.
idade); entre o 1 e os 3 anos – quatro consultas (15 e Deve seguir-se uma ordem, mas poderemos usar
18 meses, 2 e 3 anos); dos 4 aos 5 – duas consultas o oportunismo “se vier à conversa”. A experiência
(4 e 5 anos); entre os 6 e os 9 anos – duas consultas mostra que devemos ser cautelosos nas conclu-
[6 ou 7 anos (final 1º ano do 1º ciclo) e 8 anos]; sões, o que parece à primeira informação, pode
dos 10 aos 18 anos - três consultas [10 anos (início não ser; aguardar a emissão de “opinião” para o
2º ciclo),12/13 anos e 15/18 anos]. Detalhes dos fim, depois da história completa. Até lá, vamos
objetivos, estrutura, temas de conversa e cuidados formulando hipóteses que vamos rejeitando ou
antecipatórios destas consultas, constam na última apurando, mas só para nós. A família espera que
edição do Boletim de Saúde Infantil e Juvenil (BSIJ) no final se comprometa com um parecer clínico,
que deve ser de leitura obrigatória (disponível mas fundamentado (pela história natural, pela fi-
nas maternidades ou centros de saúde). siologia ou fisiopatologia). Se explicarmos de um
modo compreensível a fundamentação para a nos-
Apesar desta calendarização prévia da cro- sa hipótese, a consulta torna-se psicoterapêutica.
nologia das consultas, não deveremos perder o Este nível exige muito conhecimento e experiência.
sentido do oportunismo e examinar a criança
quando for conveniente. A mensagem a reter para os alunos é
que PRATIQUEM a HC, sempre que possível,
O diálogo entre o médico e a família/criança, quanto mais vezes, melhor. Não há histórias
para realização da HC, deve ser encarado como um iguais.
CAPÍTULO 4. HISTÓRIA CLÍNICA 45
emocional do médico deve ser adequado à situa- bem com a alimentação, o sono, o crescimento,
ção, não pode perder o domínio. o neurodesenvolvimento e o comportamento de
O curso do interrogatório é uma arte. O entre outros temas pediátricos.
equilíbrio entre o dirigismo necessário do médico,
naquela circunstância clínica, e a permissividade 5.Antecedentes pessoais
da catarse “daquele doente” deve ser conseguido. 5.1. Pré e perinatais
Mais uma vez as perguntas “oportunas - fora de Pré e perinatais: Gravidez (gesta nº) - du-
guião” podem ajudar nesta relação. Um cuidado ração, incidentes e factores de risco, ecografias,
que recomendo é que não se deve repetir per- diagnóstico pré-natal; parto (para nº), local, tipo,
guntas que obriguem a respostas já múltiplas intercorrências, qualidade da adaptação imediata
vezes dadas, e que podem ser facilmente obtidas à vida extrauterina (índice de Virgínea Apgar),
em documentos escritos fiáveis (por exemplo no cuidados na sala de parto, necessidade de rea-
BSIJ, os factos relativos ao período pré-natal…). nimação, somatometria (classificação de acordo
Podemos esclarecer dúvidas, mas já neste en- com idade gestacional - assinalar tabelas usadas);
quadramento…anteriormente referiu que, está primeiros dias de vida - permaneceu junto da mãe?
registado que…pode-me esclarecer se… (ou necessidade de internamento em unidade de
Nesta fase ir observando o estado emocional cuidados intensivos neonatais? Motivo e evolução
da criança e da família…(tranquilos, preocupados, a - ver resumo de alta - normalmente anexo no
confiar?), de modo a adequar os passos seguintes. BSIJ), quantos dias permaneceu na maternidade,
Os dados semiológicos “chave” devem ser se mamava bem. Incidentes neonatais: icterícia
escalpelizados: o quê, quanto, quando começa- (história, níveis máximos de bilirrubina, necessi-
ram (primeiro dia de doença – nem sempre fácil dade de fototerapia ou exsanguíneotransfusão).
de obter, cabe ao médico essa decisão), 2º, 3º… Resultado de otoemissões acústicas. Registar as
onde, como (súbito, progressivo) … vacinas administradas na maternidade a idade do
A interação semiológica, evolução e sequência “rastreio neonatal” e o resultado.
dos acontecimentos: primeiro a febre ou o exante-
ma? Primeiro o vómito ou a dor? (ajudar a esclarecer, Muito importante: integrar aqui os conhe-
mas não se deve sugerir ou induzir a resposta…). cimentos de obstetrícia e neonatologia.
Questionar sobre a medicação prescrita (regis- Consultar lição de neonatologia.
tar o fármaco por denominação comum internacio-
nal – DCI), a posologia (mg/Kg/dia), se conseguiu 5.2.História alimentar
tomar (vomitou, cuspiu…) e outras medidas tera- História alimentar: aleitamento - tipo;
pêuticas instituídas. Registar o efeito verificado. diversificação alimentar - quando e como,
Apesar da história se dirigir para uma situa- reações adversas. Alimentação atual (exem-
ção clínica específica, não deveremos deixar de plo da véspera, se padrão normal). Especificar
fazer brevemente uma revisão por sistemas or- suplementos mineralo - vitamínicos e respe-
gânicos e perguntas genéricas sobre se está tudo tivas doses.
CAPÍTULO 4. HISTÓRIA CLÍNICA 47
Muito importante: integrar aqui os conhe- Muito importante: integrar aqui os conhe-
cimentos de alimentação. cimentos de vacinas.
7.6 Avaliação clínica da acuidade auditiva 7.12 Períneo, genitais e ânus: inspeção e
e visual (ver lição de neurodesenvolvimento palpação (ver lição patologia frequente em
e comportamento). cirurgia de ambulatório), avaliar estadío
pubertário (ver lição de adolescência).
7.7 Pele, mucosas e fâneros (cabelos, pelos
e unhas): morfologia, cor, hidratação, 7.13 Membros, coluna e articulações:
tumorações, angiomas, alterações da morfologia geral (dismorfologia), simetria,
pigmentação. mobilidade, sinais inflamatórios, pesquisar
sinais de anomalias do desenvolvimento da
7.8 Cabeça/face: morfologia geral (ver anca. Pulsos femorais. (ver lição de Ortopedia
dismorfologia), fontanelas e suturas, olhos variantes da normalidade e problemas
(distância interocular, pálpebras, estrabismo, frequentes).
epicanto, nistagmos, pupilas, córnea,
conjuntiva e esclerótica), ouvidos (morfologia 8. Resumo
pavilhões auriculares, otoscopia), nariz Deve ser conciso e conclusivo. Deve relevar
(morfologia, permeabilidade aérea), boca os factos que pela sua positividade, ou negativi-
(morfologia, mucosas, dentes, úvula, palato, dade, sejam importantes relativamente à queixa
orofaringe, amígdalas e pilares amigdalinos). que traz a criança ao médico e aos dados que
foram detetados através da anamnese e da ob-
7.9 Pescoço: morfologia geral (ver servação global.
dismorfologia), mobilidade, tumefações,
adenopatias, tiroide. 9. Lista de problemas
A flexão da nuca é por sistema verificada, Escrevê-los por ordem de relevância no con-
assim como a pesquisa dos restantes sinais texto “desta” história.
meníngeos (de relevo em contextos febris).
10. Hipóteses de diagnóstico
7.10 Tórax: morfologia geral (ver Destacar apenas as plausíveis “desta” his-
dismorfologia), sinais de dificuldade tória.
respiratória, auscultação cardiopulmonar Discuti-las “telegraficamente” tendo em
(ritmo cardíaco, sopros, murmúrio vesicular conta os diagnósticos diferenciais. Ou seja em
e ruídos adventícios) e percussão. cada uma das hipóteses de diagnóstico do pro-
blema ou “doença”, listar os dados que estão a
7.11 Abdómen: inspeção geral, palpação favor e os que estão contra.
superficial e profunda (fígado, baço, massas, Poderá ser necessário realizar exames com-
defesa, dor – caraterísticas), percussão e plementares de diagnóstico (ECD) ou NÃO…
auscultação. Verificar sinais de irritação Ter em conta que a requisição de um ECD
peritoneal. (decisão médica exclusiva) deve ser justificada.
50 GUIOMAR OLIVEIRA
Ou seja, o seu resultado deve interferir na deci- prescritos em SOS devem seguir o mesmo rigor e re-
são médica subsequente, senão for o caso, pedir gistar uma informação clara de quando administrar.
para quê? Situações clínicas a vigiar: especificar.
Sinais ou sintomas de alarme que devem
11.Exames complementares motivar nova observação médica, “neste” con-
de diagnóstico texto: especificar.
O pedido deve ser adequado à situação clí-
nica (i.e. radiografia do tórax projeção póstero- 15. Informação sobre prognóstico
-anterior ou antero-posterior? Sumária de urina História natural da doença ou problema (por
- método de colheita?) e a sua justificação ex- exemplo: variante do normal).
pressamente assinalada.
Leitura complementar
Mota HC. Para uma história clínica (I). Acta Pediatr Port
2011;42(1):43-8.
Mota HC. Para uma história clínica II. Acta Pediatr Port
2011:42(2):84-9.
Carrilho EM. História clinica em pediatria. In: Palminha JM,
Carrilho E. Orientação diagnóstica em pediatria: dos si-
nais e sintomas ao diagnóstico referencial. Lisboa: Lidel;
2002-2003.
Mota HC. Bases do raciocínio clinico. In: Palminha JM, Carrilho
E. Orientação diagnóstica em pediatria: dos sinais e sin-
tomas ao diagnóstico referencial. Lisboa: Lidel; 2002-
2003. p 57-60.
History and examination. In:Lissauer T, Clayden G. Illustrated
Textbook of Paediatrics. 4th ed. Elsevier Health Sciences.
2011. p 13-29.
Capítulo 5.
Medicamentos mais utilizados
em pediatria e iatrogenia
5
Carla Chaves Loureiro
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_5
CAPÍTULO 5. MEDICAMENTOS MAIS UTILIZADOS EM PEDIATRIA E IATROGENIA 55
esforço respiratório podem levar a menor ativi- está a ser dada à forma de utilização dos fármacos.
dade metabólica. Outras NOCs têm sido elaboradas especificamente
O RN, nos primeiros 15 dias de vida, tem um para as crianças como as NOCs – Diagnóstico e
metabolismo baixo que é seguido de um aumento Tratamento da Otite Média Aguda, da Amigdalite
dramático relacionado com as maiores dimensões Aguda e Profilaxia da Endocardite Bacteriana em
relativas do fígado na criança. Entre o primeiro Idade Pediátrica.
e o décimo ano de vida a oxidação microssomal Os esclarecimentos prestados à família são
hepática é superior à do adulto determinando fundamentais na dispensabilidade de prescrição
que vários fármacos tenham semividas mais curtas de um fármaco ou no cumprimento de um regi-
na criança (e.g. fenobarbital, fenitoina, teofilina). me posológico pouco prático. Também algumas
dificuldades inerentes à criança devem ser con-
5.2.1.4 Excreção sideradas – se pode ser utilizado, com a mesma
A função renal está imatura no RN de ter- eficácia, um fármaco por via oral deve evitar-se
mo e pré-termo mas aumenta significativamente uma administração parentérica dolorosa. Mas se a
entre o terceiro e o sexto mês de vida atingindo via oral está inviabilizada, por vómitos persistentes
os valores de filtração glomerular do adulto até ou recusa na sua deglutição, por exemplo, uma via
aos 12 meses. alternativa deve ser obrigatoriamente considerada.
Avanços recentes na farmacologia clínica Os fármacos mais utilizados em Pediatria e
pediátrica têm permitido que os fármacos estejam reanimação neonatal, respetivas vias de adminis-
mais bem estudados para cada grupo etário, a po- tração e doses recomendadas, estão disponíveis
sologia seja adequada a cada fase de crescimento para consulta nos quadros 1 e 2.
e os efeitos secundários melhor estabelecidos. No
entanto, muito há ainda a fazer.
Para além da questão da aprovação de um 5.2.2 Iatrogenia
fármaco para crianças, não podemos esquecer
outras: será que é mesmo necessário prescrever A iatrogenia é uma das causas de reações
um fármaco? Que dose vamos utilizar? Com que adversas a fármacos.
periodicidade? Durante quanto tempo? Vai inter- Para além dos vários fatores de risco associados
ferir com outros fármacos previamente prescritos? a erros de prescrição e administração de fármacos
E a criança/família vão aderir à terapêutica? em geral (erros de prescrição eletrónica ou manual,
Muitas vezes a resposta está relacionada não erros de leitura de rótulo, erros de troca de fárma-
com o fármaco em si mas com a doença para cos…), outros há que aumentam o risco de reações
que é utilizado (e.g. amoxicilina para amigdalite adversas em crianças, especificamente: as diferenças
estreptocócica ou pneumonia pneumocócica, ibu- farmacocinéticas e carência de informação específica
profeno como antipirético ou anti-inflamatório). já abordadas; a necessidade de calcular doses indi-
A Norma de Orientação Clínica (NOC) – Duração de vidualizadas de acordo com a idade/peso/superfície
Terapêutica Antibiótica – demonstra a atenção que corporal/doença específica; a necessidade de preparar
CAPÍTULO 5. MEDICAMENTOS MAIS UTILIZADOS EM PEDIATRIA E IATROGENIA 59
Anticonvulsivantes
Carbamazepina oral 10-30mg/kg/d, id Iniciar com 5-10mg/kg
Níveis séricos 4-12mcg/ml
Diazepam oral, retal, 0,2-0,3mg/kg/dose, id Retal : <1A: 2,5mg/dose
ev 0,5mg/kg/dose, id 1-3A: 5mg/dose
0,1-0,3mg/kg/dose >4A: 5-10mg/dose
Midazolam oral, 0,1-0,5mg/kg/dose, 1-4id
retal, 0,1-0,3mg/kg/dose, 1-4 id
nasal, 0,2-0,4mg/kg/dose, 1-4 id
ev 0,1-0,2mg/kg/dose, 1-4 id
Valproato de sódio oral 20-30mg/kg/d, 2 id Iniciar com 10-15mg/kg
Antihistamínicos
Clemastina ev, im 0,025mg/kg/dose, 1-2 id
oral <6A: 1mg, >6A: 3mg
Desloratadina oral 1-6A: 1,25mg, id
6-12A: 2,5mg, id
>12A: 5mg, id
Ebastina oral 6-12A: 5mg, id
>12A: 10mg, id
Hidroxizina oral 1-2mg/kg/d, 2-4 id Tem efeito sedativo
Levocetirizina oral 2-6A:2,5mg/d, 2 id
>6A: 5mg/d, id
Rupatadina oral >6A:5mg, >12A:10mg, id
Antiácidos, antieméticos, antiulcerosos
Omeprazole oral 0,6-0,7 mg/kg, 1-2 id
Ranitidina oral >6M: 2-4mg/kg/d, 2-3 id
Sucralfato oral <2A:250mg, 3-4 id: antes das refeições
2-12A:500mg, >12A:1g
Broncodilatadores
Brometo ipratrópio neb <3A:125, 3-5A:250, >5A:500 pMDI : 60-120mcg 3-12 id
mcg/dose, 4-8 id
Procaterol neb 0.8mcg/kg/dose, 2-4 id xarope(5mg/ml):0.25ml/kg/dose
Salbutamol neb 75-150mcg/kg/dose 4-6 id, de acordo com necessidade
pMDI 300-800mcg/dose
Terbutalina inal 1-4mg, 4-6 id de acordo com necessidade
Corticoides
Budesonida inal 100-200mcg, 1-2 id
Dexametasona oral 0.15-0.6mg/kg/dose Laringite estridulosa
ev, im 0.08-0.3mg/kg, 1-4 id Anti-inflamatório
Fluticasona inal 50-200mcg/dose, 1-2 id
Metilprednisolona oral 1-2mg/kg/dose, 1-2 id
ev 30mg/kg Traumatismo medular
Prednisolona oral, ev 1-2mg/kg, 1-3 id
Diuréticos
Furosemida oral 1-4mg/kg, 1-4 id ev: 0.5-1mg/kg/dose, 1-4 id
Laxantes
Citrato de sódio retal 1 id, máximo 3 dias
Glicerina retal 1 id, sos
Lactulose oral <1A: 2.5ml, 1-5A: 5ml,
5-10A:10ml/dose, 1-2 id
Macrogol oral >2A:1saquetas, id
>7A: 1-2 saquetas, id
CAPÍTULO 5. MEDICAMENTOS MAIS UTILIZADOS EM PEDIATRIA E IATROGENIA 61
Vitaminas
Vitamina C <6 M: 25 mg, id
oral
7–12M: 30 mg, id
1–8A: 35 mg, id
> 9A: 40 mg, id
Vitamina D oral Profilaxia: Doses terapêuticas superiores,
1-12M: 400-600U, id de acordo com patologia
Polivitamínico oral Protovit N®: 8 gotas/d (6-10gotas, id)
Dagravit®: Lactentes: 4-8 gotas, crianças: 8-11 gotas, id
Centrum junior®: 4-12A: 1 comprimido mastigável, id
Outros – Reanimação, intoxicações, anemia
Adenosina ev 50mcg/kg/dose Bólus rápido – taquicardia supraventricular
Adrenalina im 0.01ml/kg/dose (1:1 000) Auto injetor de adrenalina:
ev 0.1ml/kg/dose (1:10 000) Anapen®/Epipen® 0.15mg
neb 1-5ml/dose (diluído SF) (<25kg); 0.3mg (>25kg)
Ácido acetilsalicílico oral 10-15mg/kg/dose, 1-4 id Analgesia
75-90mg/kg, 4 id Anti-inflamatório
3-5mg/kg, id Anti-agregante plaquetar
Atropina ev, im 10-20mcg/kg/dose
Acetilcisteina oral 140mg/kg Antidoto do paracetamol
ev 150mg/kg (doses iniciais)
Carvão ativado oral <1A: 1g/kg/dose
1-12A:1-2g/kg/dose
Fenilefrina 2.5mg/ml nasal 1-6A: 1-2gotas, 3-4id Máximo 5 dias
6-12A: 2-3gotas, 3-4id
Ferro oral 3-6mg/kg/d, 2-3 id Absorção potenciada por vit C
Flumazenil ev 10mcg/kg/dose Antagonista de benzodiazepinas
Naloxona ev 5-10mcg/kg/dose Antagonista de opiáceos
Soluto hidratação oral oral Bioral-suero® Ad libitum
Dioralyte®:1sq/200cc água Conservar no frigorífico após
Miltina electrolit® preparação/abertura
d-dia, cc- cm cúbicos, ev- endovenoso, id - número tomas por dia, im - intramuscular, inal-inalação, neb-nebulização, pMDI- Pressurized Metered Dose Inhaler, sq-saqueta.
manipulados ou diluições com consequentes altera- Nas patologias que necessitam de terapêuti-
ções da estabilidade; compatibilidade e biodisponibi- ca farmacológica, a posologia deve ser adaptada
lidade; e a necessidade, de instrumentos de medição à idade da criança e à doença. Deve, sempre, ser
precisos e de sistemas de administração específicos. ponderado o risco/benefício da utilização, ou não,
Com frequência, os efeitos iatrogénicos es- de cada tratamento. E às vezes (muitas vezes)
tão relacionados não com o princípio ativo mas esperar sem intervir também é tratar.
com os excipientes. A prescrição deve ser acompanhada de ex-
Alguns destes riscos não se colocam ape- plicação oral e escrita de forma a evitar erros.
nas a nível hospitalar mas também no domicílio: Sempre que uma prescrição inclua um dis-
facilmente se trocam as doses ou frequência de positivo terapêutico deve ser feito o ensino ou
administração de gotas, xaropes, pomadas… revisão da técnica de utilização do mesmo.
Vários são os exemplos de iatrogenia com con- Atualmente, a investigação farmacológica
sequências graves: i) o uso prolongado de vasocons- em crianças tem aumentado mas ainda apresenta
tritores nasais pode resultar numa rinite iatrogénica, muitos desafios e, em muitas situações, perma-
enquanto o seu uso em doses elevadas pode causar necem órfãos terapêuticos.
efeitos simpaticomiméticos iatrogénicos; ii) o nime-
sulide, inibidor seletivo da enzima ciclo-oxigenase-2
com atividade antipirética mais rápida e prolongada Leitura complementar
que o paracetamol e o ibuprofeno, foi associado a Wittich CM, Burkle CM, Lanier WL. Ten common questions
hepatotoxicidade rara mas grave, pelo que o seu uso (and their answers) about off-label drug use. Mayo Clin
não é recomendado; iii) o risco de efeitos adversos Proc 2012;87(10)982-90
neurológicos da metoclopramida (sintomas extra- Walter DC. Off-label and unlicensed prescribing for children:
piramidais agudos e discinesia tardia irreversível) é have we made any progress? Br J Clin Pharmacol 2007;
superior nas crianças. Eventos cardiovasculares em 64(1): 1–2
crianças com intervalo QT longo determinam uma WHO Model Formulary for Children 2010. www.who.int/
restrição do uso do fármaco a situações específicas; selection_medicines/list/WMFc
iv) o síndrome de Reye, caracterizado por encefalo- Anjos R, Bandeira T, Marques JG. Formulário de Pediatria.
patia aguda não inflamatória e insuficiência hepática Lisboa 2004
gorda degenerativa, resulta da utilização de ácido Levine SR et al. Guidelines for preventing medication errors
acetilsalicíco em crianças com doença aguda vírica, in pediatrics. J Pediatr Pharmacol Ther 2001;6:426-42
respiratória ou digestiva. Turner MA, Catapana M, Hirschfeld S, Giaquinto C. Pediatric
drug development: The impact of evolving regulations.
5.3 FACTOS A RETER Adv Drug Delivery Rev 2014;73:2-13
6
Jorge Saraiva
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_6
CAPÍTULO 6. A GENÉTICA EM PEDIATRIA 65
das variações de sequência requer ainda hoje o sintomatologia, em idade pediátrica ou apenas
recurso à metodologia de Sanger. No entanto após a maioridade; identificação de alteração pa-
existe um tipo de mutação (a expansão do togénica sem terapêutica específica estabelecida
número de tripletos) que não é identificado com início de sintomatologia em idade pediátri-
por estes métodos. ca ou apenas após a maioridade; identificação
Em ambos os casos (array e NGS) a infor- de alteração que apenas aumenta ou diminui a
mação obtida abrange todo o genoma, apenas probabilidade de manifestação de determinada
com as limitações já anteriormente referidas. doença; identificação da probabilidade de uma
A maior delas em ambos os métodos reside na determinada terapêutica farmacológica ser ou
frequente dificuldade de interpretação, nomea- não eficaz e vir ou não a ter efeitos secundários
damente quando a alteração identificada não graves, para uma doença presente ou ausente;
está classificada como uma variante do normal identificação do risco de transmissão de uma
ou uma mutação confirmada. É necessário ga- doença hereditária a um filho. A necessidade
rantir que cada uma das variações identificadas de estabelecer previamente regras quanto à in-
nestas circunstâncias é adequadamente analisada formação que será ou não transmitida, em que
utilizando toda a informação disponível em bases contexto e quando (nomeadamente quanto a in-
de dados específicas, na família (relacionando formação obtida em testes realizados a menores
a sua presença ou ausência com o fenótipo de mas apenas relevantes para a vida adulta) deve
cada indivíduo) em modelos que prevêm in silico anteceder obrigatoriamente a realização deste
a proteína produzida pelo gene com a presença tipo de testes genéticos.
da alteração em avaliação ou, quando existem re-
cursos para tal, em modelos celulares ou animais. Determinismo genético
Adicionalmente é obrigatório acautelar des- de doenças frequentes
de o início a forma como a informação obtida é A hipertensão arterial, a diabetes mellitus, as
(ou não é) transmitida. Uma vez que se trata de dislipidémias, a asma, o cancro, a perturbação do
metodologias que avaliam globalmente o geno- espetro do autismo e muitas outras situações são
ma, independentemente do contexto clínico, é problemas de saúde frequentes e heterogéneos
necessário estabelecer um consenso prévio sobre quanto à etiologia. A perturbação do espetro
os procedimentos a adotar quanto a alterações do autismo tem uma frequência estimada de até
patogénicas identificadas mas não relacionadas um por cento e uma hereditabilidade de 50%.
com a indicação médica para a realização do teste. Nalguns casos de autismo a hereditabilidade é de
Pode ser obtida informação com utilidade clínica 100%: a presença de uma variação de sequência
presente ou futura, em contexto individual ou patogénica, uma microdeleção ou uma micro-
reprodutivo que podemos classificar da seguin- duplicação é suficiente para a manifestação do
te forma: identificação de alteração patogénica fenótipo; em muitos outros casos é a coexistência
suscetível de melhoria do prognóstico se tera- de várias das alterações referidas que determina a
pêutica específica for iniciada antes do início da probabilidade maior ou menor da doença existir
68 JORGE SARAIVA
– e nalguns casos esta probabilidade é também impacto global positivo. A estratificação genética
modulada pelo sexo feminino ou masculino do da população em grupos de risco mais elevado
indivíduo sendo regra geral a existência de um e mais baixo é geralmente apresentado como
efeito protetor no sexo feminino. E na grande uma oportunidade de, no primeiro, aumentar a
maioria a causa continua a ser desconhecida. Este motivação para a prevenção e oferecer o rastreio
modelo aplica-se com adaptações específicas a e o diagnóstico precoce.
quase todas as doenças frequentes. Neste grupo de doenças a confirmação ou
Alguns casos, uma minoria, são uma conse- exclusão da presença de uma etiologia genética
quência quase obrigatória da presença de uma faz-se habitualmente em casos selecionados pela
única variação de sequência génica patogénica, maior probabilidade de um resultado positivo. São
herdada de um dos progenitores ou de novo (5% considerados os fatores individuais e familiares
no caso das doenças oncológicas mais frequentes). que determinam a realização de testes genéticos
Noutras situações a variação de sequência e a sua escolha.
génica é indiferente para a saúde do indivíduo Assim é no caso da seleção de doentes com
exceto se exposto a um fator ambiental. A fe- diabetes mellitus para realização dos testes mole-
nilcetonúria é o resultado da exposição a um culares de diabetes tipo - Maturity onset diabetes
aminoácido de um indivíduo com ausência de of the young (MODY). Ou a seleção dos casos
produção de uma enzima funcionante. Para além de cancro da mama para testes moleculares nos
deste exemplo em que a doença está presente genes BRCA1 e BRCA2. Evidentemente que ha-
apenas mas sempre que se verificam as duas con- verá que tomar em consideração por um lado
dições (o fator ambiental e o genético) muitos que existem outros genes que determinam uma
outros casos existem em que ambos interferem maior suscetibilidade; e que quando se estabelece
na probabilidade de manifestação da patologia: como critério de inclusão uma mulher que tem
a doença celíaca exige a exposição ao glúten e uma probabilidade igual ou superior a 10% de
a presença de um alelo específico do sistema ter uma mutação patogénica num dos dois genes
de histocompatibilidade mas a presença de am- referidos estamos a excluir a sua realização em
bos não origina obrigatoriamente a presença da mulheres com uma alteração desse tipo apenas
doença. O tabagismo é um fator de risco para o porque a probabilidade de ter um resultado posi-
cancro do pulmão mas existe cancro do pulmão tivo é inferior a 10%. Nestes cenários a existência
na sua ausência; e uma variação de sequência ou não de um limiar e o seu valor são o resultado
génica, indiferente para os não fumadores, de- da disponibilidade dos testes e, desejavelmente,
termina que nos fumadores a probabilidade de da acessibilidade com equidade: enquanto não
ter cancro do pulmão seja de seis ou 12%. Numa houver disponibilidade, por motivos tecnológicos,
perspetiva populacional esta informação pode organizacionais ou económicos, para realizar o
ser classificada como desnecessária, uma vez teste a todas as mulheres são selecionados os
que a recomendação para a adoção de estilos casos com maior probabilidade de ter um resul-
de vida saudável, incluindo não fumar, tem um tado positivo.
CAPÍTULO 6. A GENÉTICA EM PEDIATRIA 69
Noutras situações a avaliação das vantagens de saúde, em particular dos diferenciados, pelo
e inconvenientes da utilização de testes genéticos que está sobrerepresentado nas consultas e in-
resulta na recomendação atual de realizar alguns ternamentos hospitalares. As doenças raras po-
em determinados diagnósticos: está indicado rea- dem afetar qualquer órgão ou sistema, algumas
lizar um Microarray-based comparative genomic delas podem ser diagnosticadas in uteru e são
hybridisation (array CGH) e a determinação do maioritariamente hereditárias pelo que suscitam
número de tripletos do gene FMR1 a todos os a intervenção de todas as especialidades médicas
indivíduos com défice intelectual de etiologia e cirúrgicas no seu diagnóstico e terapêutica. Por
desconhecida, com taxas de resultados positi- estes motivos é uma falácia atribuir a responsa-
vos respetivamente de 15 a 25% e de dois a bilidade do diagnóstico e terapêutica de todas
quatro por cento. A sequenciação exómica total as doenças raras a alguns centros de referência.
estabeleceria o diagnóstico etiológico em outros Em idade pediátrica, período da vida em que
25% dos casos, o que deve ser analisado em duas ocorrem as primeiras manifestações das doenças
perspetivas complementares: o conhecimento raras, um terço dos doentes internados tem uma
atual permite identificar uma causa genética do doença rara e estes internamentos são mais pro-
défice intelectual em 50% dos casos; mas metade longados e têm uma mortalidade quatro vezes
destes não terá acesso à metodologia laborato- superior.
rial enquanto não for confirmada a sua utilidade Em Portugal a legislação e normas em vigor
clínica, nomeadamente com a sensibilidade e a estabelecem que em todos os casos em que se
interpretação dos resultados, e, o que se anteci- efetue um teste genético o médico deve realizar
pa mais problemático, disponibilizar os recursos aconselhamento genético antes e depois da sua
organizacionais e económicos necessários. realização; e que sempre que se confirme o diagnós-
tico de uma doença genética as famílias devem ser
Determinismo genético referenciadas à especialidade de genética médica.
de doenças raras Estes princípios aplicam-se aos testes gené-
As doenças raras são todas as que têm uma ticos de diagnóstico e de farmacogenética. No
prevalência inferior a um em 2.000 (5/10.000). caso da sua realização em menores é exigido
Apesar de cada uma delas, por definição, ser inco- um consentimento escrito assinado por um dos
mum são muito numerosas, mais de 8.000, e em pais ou tutores. Os testes genéticos de hetero-
80% a etiologia é genética. Epidemiologicamente zigotia, pré-sintomáticos e de suscetibilidade e
pode assim afirmar-se que seis a oito por cento ainda em contexto de diagnóstico prénatal e
da população terá uma doença rara durante pré-implantação exigem ainda o cumprimento
a sua vida. Em Portugal cada médico da espe- de determinações específicas quanto à especia-
cialidade de medicina geral e familiar poderá ter lidade habilitada a realizar o pedido e/ou a forma
na sua lista de utentes mais de uma centena de de arquivo da informação obtida. Existem ainda
pessoas com uma doença rara. Este grupo de restrições específicas aplicáveis às pessoas sem
pessoas recorre com mais frequência a cuidados autonomia.
70 JORGE SARAIVA
7
Cândida Cancelinha
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_7
CAPÍTULO 7. MEIOS COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO EM PEDIATRIA 73
hipocromia traduz-se pela diminuição da colo- eosinófilos e basófilos. O primeiro elemento dife-
ração normal dos GV. Note-se que, salvo raras renciado é o mieloblasto; seguem-se os estádios
excepções (e.g., esferocitose), não há hipercromia, de promielócito, mielócito e bastonete. Somente
porque concentrações superiores a 36% reduzem os bastonetes e neutrófilos maduros têm capaci-
a solubilidade da hemoglobina, podendo levar dade funcional plena de fagocitose, quimiotaxia
à sua cristalização. Expressa-se em g/dl ou %. e destruição bacteriana. Quando se verifica um
O número de reticulócitos é a contagem de aumento no número de bastonetes diz-se que há
GV imaturos no sangue periférico. O seu número um “desvio à esquerda”, mais comum na pato-
encontra-se elevado quando a produção medular logia infeciosa. Além disso, a relação do número
de GV aumenta. A sua contagem é útil para dis- absoluto de neutrófilos imaturos / número abso-
tinguir situações hipoproliferativas (e.g. anemia luto de neutrófilos totais ≥ 0,2 é mais sugestiva
ferropénica) e hiperproliferativas (e.g. hemorragia de infeção bacteriana.
e hemólise). (Ver lição de anemia) Terapêutica com corticóides, anti-inflama-
tórios não esteróides e anticonvulsivantes podem
Leucócitos dar alterações destes valores.
O estudo dos leucócitos baseia-se nos se- Valores diminuídos podem indicar depres-
guintes parâmetros: contagem, morfologia, pro- são medular por diferentes mecanismos, como
porções relativas, maturação e modificações na infeções agudas graves, situações auto-imunes,
inflamação. A contagem normal de leucócitos oncológicas ou imunodeficiências.
varia consoante a faixa etária. A fórmula leuco-
citária determina a importância de uma infeção, Plaquetas
tendo em conta as alterações dos diferentes tipos A variação normal da contagem das pla-
de glóbulos brancos, e avalia ainda a capacidade quetas é de 150 a 400 x 10 9/L. A trombocitose
de resposta à infeção. pode ocorrer, por exemplo, em associação com
As principais causas de leucocitose são: doenças mieloproliferativas (linfomas e leucemias),
infeção/inflamação, traumatismo/stresse e leu- processos inflamatórios crónicos, infeções crónicas
cemia/linfoma. Há algumas situações que são e doença de Kawasaki. As situações de trombo-
acompanhadas pelo aumento de um tipo espe- citopenia são mais commumente de etiologia au-
cífico de leucócito. Frequentemente, as infeções toimune, infeciosa ou doença hemoproliferativa.
bacterianas acompanham-se de neutrofilia, as Valores inferiores a 50.000/mm3 estão associados
víricas de linfocitose e as parasitárias e alérgicas a maior risco de hemorragia espontânea.
de eosinofilia. Sobretudo em situações neoplá-
sicas, além da contagem dos leucócitos, é fun- Esfregaço do sangue periférico (ESP)
damental o estudo morfológico e imunológico A avaliação do ESP é uma parte importante
destas células. no estudo de doenças hematológicas, infecciosas
A granulocitopoiese corresponde ao pro- e auto-imunes. Embora um diagnóstico especí-
cesso de formação dos leucócitos – neutrófilos, fico possa ser sugerido com base em resultados
CAPÍTULO 7. MEIOS COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO EM PEDIATRIA 75
obtidos por métodos automáticos, muitas doen- o acompanhamento de doenças agudas. No en-
ças têm uma contagem celular normal, mas a tanto, a VS é muito utilizada como indicador de
morfologia celular é anormal. Situações como doenças orgânicas e na monitorização de proces-
anisocitose (variações do tamanho dos GV), sos inflamatórios mais arrastados (e.g., doença
poiquilocitose (variações da forma dos GV) ou inflamatória intestinal, febre reumática e vascu-
anisocromia (variações da cor dos GV) só po- lites). No caso específico do acompanhamento
derão ser avaliadas através da realização de de doenças infeciosas crónicas ou subagudas,
um esfregaço. Outra patologia a destacar é o como na osteomielite e na tuberculose, é útil para
síndrome hemolítico urémico, cujo ESP revela avaliação da resposta à terapêutica.
alterações morfológicas dos GV características Valores superiores a 20 mm/na primeira hora
(fragmentação, forma de “capacete”) que faci- são considerados elevados.
litam o diagnóstico.
Tempos de coagulação
Velocidade de sedimentação eritrocitária (VS) O tempo de tromboplastina parcial ativada
Este teste mede a velocidade de sedimenta- (TTPA) avalia defeitos da via intrínseca da coa-
ção dos GV/eritrócitos suspensos com o agregado gulação, podendo identificar a deficiência dos
anticoagulante, no período de uma hora. A VS fatores VIII, IX, XI e XII. É útil também no controle
não representa o doseamento de uma substância do uso terapêutico de heparina e na avaliação da
específica. O seu aumento resulta da alteração presença de anticoagulantes circulantes. Pode
nas concentrações de várias proteínas de fase também apresentar-se alterado quando ocorre
aguda, que atrasam a sedimentação dos GV e comprometimento da via final comum (X, V, II e I).
favorecem a formação de «rouleaux”. A toma de anticoagulantes, antibióticos
A proteína mais importante neste processo (tetraciclinas) e corticóides pode influenciar os
é o fibrinogénio, cuja concentração aumenta até resultados da TTPA.
duas a quatro vezes do normal nos processos O tempo de protrombina (TP) é útil na ava-
inflamatórios agudos. As imunoglobulinas são liação da via extrínseca, podendo estar elevado
outras proteínas que interferem neste fenóme- na deficiência isolada do fator VII, na presença de
no, com relevância nos processos inflamatórios anticorpos inibidores circulantes e em patologias
crónicos. A VS depende ainda de outros fatores, que afetem o processo de absorção, síntese e
como o tamanho, o número e a forma dos GV. É, metabolização da vitamina K. Pode apresentar-se
por isso, um indicador muito sensível de doença, alterado também, quando ocorre comprometi-
embora seja pouco específico. mento da via final comum (X, V, II e I).
Outra condicionante são as características As drogas anticoagulantes orais atuam sobre
das próprias proteínas de fase aguda. O facto os fatores da coagulação pertencentes ao sistema
de terem uma semivida relativamente longa e extrínseco da coagulação. Como teste de referên-
poderem ser «consumidas» durante o processo cia para o acompanhamento da anticoagulação
patológico, torna o valor da VS pouco útil para oral, o TP não fornecia a uniformidade desejada
76 CÂNDIDA CANCELINHA
entre diferentes laboratórios. Por esse motivo, conversão excessiva em fibrina, como acontece
estabeleceu-se a recomendação para a utilização nos quadros de coagulação intravascular disse-
mundial do International Sensibility Index (ISI) e a minada. Pode também apresentar-se diminuído
conversão dos seus resultados em International nos casos de fibrinólise primária e secundária ao
Normalized Ratio (INR). O INR é obtido através uso de agentes fibrinolíticos.
de um cálculo que divide o TP do doente pelo TP
de um conjunto de plasmas normais, elevado ao 7.2.2 Bioquímica
ISI, tornando-o um valor padronizado.
São alguns os fatores que podem alterar Proteína C-reactiva
os resultados do INR tais como: medicação com A proteína C-reactiva (pCr) é uma proteí-
corticóides, anti-inflamatórios, citostáticos, diu- na plasmática, sintetizada pelo fígado, sendo um
réticos, salicilatos e imunossupressores, de entre reagente de fase aguda. A sua função fisiológica
outros. é a de se ligar à fosfocolina que se expressa na
Um valor de TTPA prolongado na presen- superfície de células mortas ou lesadas (e em
ça de TP normal indica possível deficiência dos alguns tipos de bactérias), para iniciar a sua eli-
fatores XII, XI, IX e VIII. Pelo contrário, TTPA minação ao ativar o sistema de complemento e
normal na presença de TP prolongado indica células que procedem à fagocitose.
compromisso do fator VII. Quando ambos estão É um constituinte normal do soro humano,
alterados, indicam alteração da via final comum, que em condições normais se mantém em con-
ou seja, dos fatores X, V, II e I. Se ambos os centrações inferiores a 1 mg/dL.
tempos forem normais não sugerem qualquer A elevação da pCr inicia-se entre as quatro
alteração da coagulação com exceção da alte- e as seis horas após o contacto com o agente
ração do fator XIII. infecioso ou numa situação de lesão tecidual,
sendo o valor máximo atingido entre as 24 e as 48
Fibrinogénio horas. Após este período assiste-se à sua redução
O fibrinogénio (fator I) é uma glicoproteína que é concomitante com a resolução do processo
sintetizada no fígado envolvida na etapa final infecioso/inflamatório, sendo que na ausência de
da cascata da coagulação, convertendo-se em factores estimulantes a semi-vida desta proteína
fibrina, sob a ação da trombina. Além do seu é de aproximadamente 19 horas.
papel na coagulação, é uma importante proteína Pelo facto de apresentar elevações mais
na resposta de fase aguda, podendo estar ele- significativas nas infeções bacterianas compa-
vada em diferentes patologias, como processos rativamente às víricas, este método auxiliar de
inflamatórios e infeciosos agudos, traumatismos, diagnóstico é útil na prática clínica como com-
neoplasias e situações de pós-operatório. plemento à decisão de introduzir ou não antibio-
Pode ocorrer diminuição do fibrinogénio terapia. A literatura demonstra inúmeros estudos
por défice na produção hepática (hepatopatias da utilidade do doseamento da pCr por métodos
graves) ou por aumento de consumo, com a sua quantitativos na distinção etiológica dos quadros
CAPÍTULO 7. MEIOS COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO EM PEDIATRIA 77
de meningite, pneumonia e artrite, com resultados diagnóstico de sépsis, e o seu doseamento deve
que confirmam a sua eficácia. ter em conta o tempo de evolução da doença.
No entanto a PCT tem certas vantagens compa-
Procalcitonina (PCT) rativamente à pCr, como seja o facto de alterar
Em condições normais, a PCT está presente pouco nas infeções virais e nas doenças inflama-
em concentrações muito baixas na circulação (<0,1 tórias sistémicas, mas por outro lado a PCT pode
ng/mL), permanecendo no interior das células da não sofrer alterações em infeções limitadas a um
tiróide como principal precursor da calcitonina. órgão. A pCr por sua vez é um exame rápido e
Nos processos inflamatórios, há um aumento barato, de fácil interpretação que está disponível
significativo da sua produção e libertação por em quase todos os laboratórios.
tecidos extra-tiroideus. Nestas situações, os níveis A determinação simultânea destes dois bio-
séricos aumentam no espaço de três a quatro marcadores, aumenta a especificidade, embora
horas, atingindo um pico em seis horas, e esta- também incremente os custos associados.
bilizando às 24, podendo os níveis permanecer
elevados até às 48 horas. Glicémia
Nas infeções bacterianas limitadas a um O objetivo deste doseamento é proceder ao
órgão, em geral não se observa elevação signi- estudo do metabolismo dos hidratos de carbo-
ficativa da sua concentração, mas nos processos no, ao diagnóstico de diabetes mellitus (ver lição
bacterianos graves, como a sépsis, podem ser poliúria e polidipsia) e à avaliação de situações
encontrados níveis muito elevados de PCT. de hipoglicémia.
Em infeções víricas apresenta pequenas ele- A hipoglicémia em idade pediátrica associa-
vações, geralmente até 0,5 ng/ml. No entanto -se a uma grande variedade de etiologias relacio-
em infeções bacterianas invasivas pode atingir nadas com problemas metabólicos e hormonais.
valores superiores a 100 ng/ml. Surge mais frequentemente no período neonatal,
Vários estudos realizados principalmente em sobretudo nos primeiros dois a três dias após o
países europeus, têm evidenciado a utilidade deste parto. A incidência é mais elevada em filhos de
biomarcador no diagnóstico precoce de sépsis. mães diabéticas, prematuros e em situações de
Além disso, a monitorização dos níveis de PCT restrição do crescimento intra-uterino. A hipogli-
tem revelado ser útil na avaliação do prognóstico cémia é definida independentemente da existência
destes casos. Vários estudos têm demonstrado ou não de sintomas: no lactente e na criança com
que a resolução do quadro sético se correlaciona um valor de glicose no sangue total inferior a 50
com a diminuição dos níveis séricos de PCT, por mg/dL. No RN os valores são diferentes (ver lição
outro lado a persistência de valores elevados está de neonatologia).
associada a uma evolução clínica desfavorável. A hiperglicémia para além da diabetes,
Comparativamente poder-se-á afirmar que pode surgir também na pancreatite, síndrome
a pCr e a PCT são marcadores biológicos com de Cushing, feocromocitoma, stresse agudo e
capacidade discriminativa muito semelhante no corticoterapia.
78 CÂNDIDA CANCELINHA
Valores aumentados podem indicar desidra- Valores aumentados podem indicar insufi-
tação, insuficiência renal aguda/crónica, hiper- ciência renal ou supra-renal.
natrémia, hiperaldosteronismo primário, acidose Valores diminuídos surgem na diarreia, má
tubular renal ou hiperparatiroidismo. absorção, pancreatite, queimaduras graves, die-
Valores diminuídos podem surgir em quadros ta pobre em magnésio ou na terapêutica com
gastrointestinais (vómitos incoercíveis e diarreia), diuréticos.
insuficiência renal crónica, nefrite, insuficiência
supra-renal e fibrose quística. Creatinina
A creatinina é um produto da degradação
Fosfatémia da fosfocreatina no músculo, e é geralmente
Os três principais mecanismos que interfe- produzida numa taxa praticamente constante
rem com os níveis de fosfato sérico são: redis- pelo corpo que é diretamente proporcional à
tribuição do fósforo do espaço extracelular para massa muscular do indivíduo. Através da medi-
o intracelular, alteração na absorção de fosfato da da creatinina do sangue, do volume urinário
(intestino) e na excreção de fosfato (rim). O do- das 24 horas e da creatinina urinária é possível
seamento utiliza-se para avaliação em situações calcular a taxa de filtração glomerular, que é um
de desequilíbrio eletrolítico, doenças renais e parâmetro utilizado para avaliar a função renal.
identificação de alterações endócrinas, ósseas Utiliza-se para deteção de disfunção renal, mo-
e de metabolismo do cálcio (como em situações nitorizar o doente com insuficiência renal e para
de suspeita de raquitismo). ajuste terapêutico de fármacos potencialmente
Valores aumentados podem indicar altera- nefrotóxicos.
ção do metabolismo do osso, hipoparatiroidismo O exercício físico ou ingestão excessiva de
e insuficiência renal. Frequentemente os níveis proteínas podem alterar os resultados, aumen-
de cálcio estão diminuídos pela precipitação do tando o nível sérico da creatinina.
fosfato com o cálcio nos tecidos.
Valores diminuídos ocorrem na acidose tu- Ureia
bular renal, hiperparatiroidismo, desnutrição e A ureia forma-se principalmente no fígado,
síndromes de má absorção. sendo filtrada pelos rins e eliminada na urina ou
pelo suor, onde é encontrada abundantemente;
Magnesémia constitui o principal produto terminal do metabo-
O magnésio participa como co-fator em lismo proteico no ser humano. O seu doseamento
mais de 300 reações enzimáticas, contribuindo é útil para avaliação da função renal e nos quadros
para a produção de energia e coadjuvando a de desidratação.
regulação dos níveis de cálcio, cobre, zinco, po- Valores aumentados podem indicar aumento
tássio e vitamina D. Determina-se para avaliar da destruição de proteínas no organismo incluindo
o balanço eletrolítico e as funções do nervo e queimaduras extensas, doença renal, obstrução
do músculo. urinária ou desidratação.
80 CÂNDIDA CANCELINHA
Valores diminuídos podem indicar insufi- Estas enzimas são libertadas no sangue em
ciência hepática, desnutrição ou sobrehidratação. grandes quantidades quando há lesão da mem-
brana do hepatócito, não sendo contudo neces-
Albumina sária a sua necrose. Deste modo a correlação
Constitui a principal proteína plasmática, dos níveis de aminotransferases com o grau de
sendo sintetizada pelos hepatócitos. A albumina lesão hepatocelular é baixa. Assim, a elevação
é fundamental para a manutenção da pressão absoluta das aminotransferases tem grande sig-
oncótica, necessária para a distribuição adequada nificado diagnóstico, mas não prognóstico, nas
dos líquidos corporais entre o compartimento hepatopatias agudas.
intra e extravascular. A membrana basal do glo- TGP e TGO são indicadores sensíveis de
mérulo renal permite a filtração de uma quan- lesão hepática em diferentes tipos de doenças.
tidade mínima de albumina, contudo a maior Mas deve ser enfatizado que ter níveis mais altos
parte é reabsorvida pelos túbulos contornados que o normal dessas enzimas não indica, neces-
proximais. sariamente uma doença hepática estabelecida.
O seu doseamento pode ser feito no san- A interpretação dos níveis elevados destes bio-
gue, urina ou liquido cefalo raquídeo (LCR), e tem marcadores requer a integração com a clínica e
como objetivo a deteção de perdas excessivas restante avaliação laboratorial.
renais (sendo a principal causa o síndrome ne- Valores aumentados podem indicar hepatite
frótico), défices nutricionais crónicos, défices de aguda ou crónica, lesão hepática induzida por
absorção e insuficiência hepática. A sua elevação fármacos, esteatose hepática, lesão do múscu-
no LCR pode ocorrer em doenças auto-imunes, lo cardíaco, pancreatite, cirurgia recente, trom-
particularmente no síndrome de Guillain-Barré, boembolismo pulmonar, miopatia e traumatismo
caracterizado pela dissociação entre a albumina muscular, de entre outras possibilidades.
e a contagem celular.
Gama-glutamil transferase
Transaminase glutâmico oxalacética / A gama glutamil transferase (GGT) é uma
transaminase glutâmico pirúvica enzima envolvida na síntese proteica, na regulação
A transaminase glutâmico oxalacética (TGO), dos níveis teciduais de glutatião e transporte de
também denominada de aspartato aminotrans- aminoácidos entre membranas. A quase totalida-
ferase (AST), está presente no citoplasma e mi- de da GGT é encontrada no fígado mas também
tocôndrias de muitas células, sobretudo, do existe nos rins, cérebro, e pâncreas. No fígado,
fígado, coração, músculo esquelético, rins, pân- esta enzima está localizada nos canalículos dos
creas e GV. A transaminase glutâmico pirúvica hepatócitos e, particularmente, nas células epite-
(TGP), ou alanina aminotransferase (ALT) é encon- liais dos ductos biliares. Devido a esta localização
trada quase exclusivamente em células hepáticas, característica, a enzima surge elevada em qua-
pelo que é mais específica que a TGO nas doenças se todas as alterações hepatobiliares, sendo um
deste órgão. dos testes mais sensíveis no diagnóstico destas
CAPÍTULO 7. MEIOS COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO EM PEDIATRIA 81
condições. Nas células do parênquima hepáti- (bilirrubina conjugada ou direta), para se tornar
co, a enzima localiza-se tipicamente no retículo hidrossolúvel e ser eliminada pelos canais biliares
endoplasmático liso, estando sujeita a indução através do aparelho digestivo.
microssomal hepática, o que faz dela um marca- O seu doseamento visa a avaliação da
dor sensível a agressões hepáticas induzidas por conjugação e eliminação hepática e do grau de
medicamentos e pelo álcool. destruição eritrocitária. É útil no diagnóstico e
São de esperar valores aumentados nas evolução dos quadros de icterícia, anemia e obs-
doenças hepáticas em geral, nas pancreatites, trução biliar e para determinação da indicação de
no enfarte agudo do miocárdio, hipertiroidismo, fototerapia no recém-nascido (os limites variam
estados pós-operatórios e no uso de medicamen- com a idade gestacional e dias de vida) – ver
tos hepatotóxicos ou capazes de ativar a indução lição de neonatologia. A presença de bilirru-
enzimática (barbitúricos, fenitoína, antidepressivos binúria sugere a presença de situações clinícas
tricíclicos, paracetamol). que cursem com colestase.
filtrada ultrapassa a capacidade de reab- (GV, leucócitos, células tubulares), cilindros, bac-
sorção tubular, situação que ocorre geral- térias e cristais. A presença de leucocitúria (mais
mente apenas com glicémias acima de180 que oito leucócitos /campo) e bactérias em urina
mg/dL (i.e.diabetes mellitus) ou se existe fresca colhida de modo assético são indicadores
disfunção do tubo contornado proximal de infeção urinária.
(e.g. síndrome de Fanconi);
Teste rápido de urina (Combur® teste)
vi) cetonúria: deteta a presença de acetoa- O teste rápido à urina destina-se a identificar
cetato e acetona excretados na urina em em poucos segundos componentes anormais na
caso de: cetoacidose diabética, jejum pro- urina, através de um método semiquantitativo. A
longado, vómitos ou exercício extremo; identificação é efetuada com recurso a uma tira
teste que é imersa em urina.
vii) nitritos: a presença de nitritos na urina A tira reage e identifica a presença, concen-
resulta da redução dos nitratos (origem tração ou quantidade de alguns componentes tais
alimentar) a nitritos por ação de enzimas como: densidade, pH, presença de proteínas, GV,
bacterianas. A sua presença numa urina leucócitos, nitritos, glicose, corpos cetónicos, bi-
acabada de colher (fresca) é fortemente lirrubina e urobilinogéneo.
sugestiva de infeção urinária (elevada
especificidade mas baixa sensibilidade); 7.2.4 Líquido cefalorraquideo
viii) esterase leucocitária: é produzida pelos A punção lombar (PL) destina-se a colher
neutrófilos e constitui um sinal de piúria, liquor cefalorraquideo (LCR) para o estudo de
sendo um exame muito específico. A cau- meningite, meningoencefalite, patologia auto-
sa mais frequente de piúria é a infeção -imune e/ou desmielinizante do sistema nervoso
urinária; central, suspeita de Guillan-Barré e de pseudo-
tumor cerebri (medição da pressão de saída do
ix) bilirrubina e urobilinogénio: a urina em LCR, através da utilização de um manómetro).
condições normais não contém quantida- No estudo do LCR procede-se a exame visual,
de mensurável de bilirrubina; a sua presen- análise química, exame citológico e cultural. Pode
ça indica colestase uma vez que se trata considerar-se a necessidade de realizar estudos
de bilirrubina conjugada (hidrossolúvel). de identificação de vírus e outros germens por
O urobilinogénio eleva-se em situações de técnicas de biologia molecular; de moléculas es-
hemólise e doença hepatocelular. pecíficas de situações desmielinizantes ou autoi-
munes; e a pesquisa de bandas oligoclonais ou
A avaliação microscópica da urina pode ser do perfil de imunoglobulinas.
feita através de observação ao microscópio ou por O exame visual do LCR passa pela clas-
citometria de fluxo, permitindo identificar células sificação do aspeto da amostra que deve ser
84 CÂNDIDA CANCELINHA
observada em local com boa iluminação e pode bactérias piogénicas e, na suspeita de meningite
ser então definido como normal (límpido ou tuberculosa, a coloração de Ziehl-Nielsen e cultura
água de rocha), ou como levemente turvo, tur- em meio específico.
vo ou turvo-leitoso, de acordo com a presença
de células sanguíneas, microrganismos ou taxas 7.2.5 Microbiologia
elevadas de proteínas ou lípidos. A amostra é
considerada xantocrómica quando, após centri- O setor da microbiologia está dirigido para
fugação, tem tonalidade que varia entre rosa, o diagnóstico de infeções bacterianas, realizando
amarelo ou laranja, o que ocorre pela presença não só a pesquisa do agente por exame cultural
de hemoglobina ou por concentrações elevadas e por pesquisa de antigénios específicos, como
de proteínas ou bilirrubina. No caso de punções também o teste de suscetibilidade aos antimi-
traumáticas, o LCR torna-se hemático, o que crobianos (quando aplicável). Para o diagnóstico
pode interferir com a contagem de células e o por exame cultural, é essencial a manutenção da
doseamento de proteínas. viabilidade da bactéria, pelo que é de particular
O exame citológico permite a contagem importância que a colheita seja efetuada antes
de leucócitos, de GV e de células teciduais. do início da antibioterapia e que as normas de
A contagem diferencial de leucócitos é uma etapa colheita e transporte sejam cumpridas para que
fundamental da análise laboratorial, auxiliando a não haja morte ou inibição do crescimento bac-
estabelecer o diagnóstico etiológico, consoante teriano. Só a partir do exame cultural podemos
o predomínio de polimorfonucleares (a favor de realizar o teste de suscetibilidade aos antimi-
bactérias) ou mononucleares (a favor de vírus). crobianos. A sensibilidade desta metodologia
Os valores de referência dependem da idade da é elevada mas a sua desvantagem é o tempo
criança (ver lição de meningite e meningoencefalite). de resposta que, geralmente, é de 48 horas ou
Na análise química o doseamento da glicose superior.
e das proteínas do LCR são indispensáveis para
diagnóstico etiológico das infeções do SNC, de- Hemocultura
vendo, no entanto, ser feita a sua correlação com Tem como objetivo confirmar a presença
os valores plasmáticos. No síndrome de Guillan- de bactérias patogénicas na via sistémica e ava-
Barré a composição do LCR caracteriza-se pela liar a sensibilidade de um microrganismo a um
dissociação albumino-citológica (hiperproteinor- painel de antibióticos, através da realização do
ráquia com contagem celular normal). antibiograma.
Em fase inicial de doença, a análise citoquí- Em Pediatria, o volume ideal de sangue a
mica do LCR pode ser normal, devendo por isso ser processado ainda não está bem definido, mas
os resultados ser interpretados em conjunto com os dados da literatura demonstram que há uma
a clínica e restantes exames complementares. relação direta positiva entre o volume de sangue
A análise microbiológica do LCR inclui o exa- obtido e a taxa de positividade das hemoculturas.
me direto com coloração de Gram e a cultura para Estudos anteriores já demonstraram que amostras
CAPÍTULO 7. MEIOS COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO EM PEDIATRIA 85
8
Carla Pinto
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_8
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 89
(B), circulação (C), neurológico/disability (D) e ventilação ineficaz. Na criança maior, os músculos
na exposição/ambiente (E). Na via aérea (A): a intercostais estão mais desenvolvidos e contribuem
cabeça dos lactentes é grande, proporcionalmente mais para a mecânica ventilatória. As costelas es-
ao corpo, o que associado a um occipital mais tão mais ossificadas e agem como um suporte
proeminente tende a provocar flexão do pescoço rígido, menos suscetível de colapsar em situações
em decúbito dorsal, causando obstrução; a face de esforço respiratório marcado. Na insuficiência
e a boca de um lactente são pequenas e a lín- respiratória em crianças mais pequenas pode haver
gua relativamente grande obstruindo facilmente retrações (tiragem) significativas a nível esternal e
a via aérea numa criança inconsciente; o lacten- intercostal, pela maior colapsabilidade da grelha
te é um respirador nasal preferencial durante os costal. Esta retração é menos evidente em crianças
primeiros seis meses de vida, pelo que qualquer mais velhas mas se estiver presente, indica grave
obstrução nasal por infeção respiratória com se- compromisso respiratório. A frequência respiratória
creções ou anatómica como a atresia das coanas é mais elevada em lactentes e crianças pequenas,
pode aumentar o esforço respiratório e levar a como resposta a taxas metabólica e de consumo
insuficiência respiratória; em crianças com menos de oxigénio superiores. Relativamente à circula-
de oito anos, a laringe é afunilada, com a secção ção (C) também há especificidades: a volémia do
mais estreita a nível da cartilagem cricoide, pelo recém-nascido é de 80 mL/kg, diminuindo com a
que, nas situações de obstrução da via aérea por idade até 60 a 70 mL/kg no adulto. Num recém-
corpo estranho (OVACE) não devem ser tentadas -nascido de três kilos, a volémia é de 240 mL e
manobras de remoção do corpo estranho pois este num lactente de seis meses, com seis kilos, será
pode encravar na zona mais estreita da laringe; à volta de 480 mL. Estes valores provam como as
de acordo com a lei de Poiseuille, a resistência é crianças são suscetíveis à perda de fluidos, dada
inversamente proporcional à quarta potência do a sua reduzida volémia.
raio, assim nos lactentes reflete-se ainda mais a A frequência cardíaca pelos mesmos motivos
redução do diâmetro da via aérea (i.e. secreções) também é mais elevada nas crianças. Já a pres-
com grande impacto na resistência ao fluxo de ar são arterial é mais baixa nas crianças pequenas
para os pulmões. A respiração (B) avaliada atra- em relação às mais velhas e adolescentes. Uma
vés da mecânica respiratória também se modifica das dificuldades em lidar com as crianças mais
com a idade. No lactente, as costelas são menos pequenas do ponto de vista Neurológico (D)
rígidas, mais flexíveis e os músculos intercostais é a comunicação. Deve-se lidar com as crian-
são relativamente fracos e ineficazes comparati- ças doentes de forma empática e adequada à
vamente ao diafragma. Este é o principal músculo idade, pois é natural que se sintam assustadas,
respiratório do lactente; obstáculos mecânicos à particularmente se estão em ambiente estranho.
contração do diafragma, de origem abdominal É importante explicar a situação à criança de for-
(distensão gástrica, oclusão intestinal, pneumo- ma clara e percetível e deve permitir-se aos pais
peritoneu) ou torácica (hiperinsuflação por bron- ficar junto aos seus filhos, mesmo durante a pres-
quiolite, asma ou corpo estranho) podem levar a tação de cuidados mais complexos ou avançados.
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 91
Na avaliação neurológica existe uma escala de Uma função respiratória normal implica
coma de Glasgow modificada para uso em crian- uma oxigenação e ventilação adequadas através
ças abaixo dos 5 anos, dada a sua imaturidade em da membrana alvéolo-capilar. A ventilação-minu-
termos de comunicação. Uma avaliação rápida do to, dependente do volume corrente (volume de ar
estado neurológico e de consciência da criança inspirado num ciclo respiratório) e da frequência
pode ser efetuada na primeira abordagem usando respiratória (FR), é o principal determinante da
o método AVDS (Alerta, Voz, Dor e Sem resposta) remoção de dióxido de carbono. Uma respiração
em conjunto com o diâmetro e reação pupilares e normal necessita de um esforço mínimo. A fre-
a postura da criança. Esta escala avalia a resposta quência respiratória varia com a idade, Quadro
da criança a estímulos. É importante garantir um 1. O volume corrente espontâneo mantem-se em
exame completo da criança na avaliação do item cerca de sete a nove mL/kg durante toda a vida.
exposição - ambiente (E). As roupas devem ser Pode ser avaliado qualitativamente através da aus-
removidas, tendo o cuidado de proteger do frio, e cultação pulmonar, procurando ouvir a entrada de
respeitar a intimidade. Devem procurar-se indícios ar em todas as zonas pulmonares e observando
que permitam entender a doença/problema. Os a expansão torácica com a respiração.
dados da história são colhidos recorrendo à mne- Do ponto de vista fisiológico, a insuficiên-
mónica AMPLE (Alergia, Medicamentos, história cia respiratória é habitualmente definida como:
médica Prévia, Last meal, Eventos e ambiente). incapacidade do sistema respiratório manter uma
O peso é importante porque os fármacos pressão parcial de oxigénio – PaO2 superior a 60
para crianças são prescritos com base no seu peso mmHg com uma fração de oxigénio inspirado
corporal. Numa situação de emergência não há – FiO2 de 21% (ar ambiente); correspondendo
tempo ou condições para pesar a criança. A fór- aproximadamente a uma saturação periférica
mula seguinte, aplicável entre um e os dez anos de oxigénio - SpO2 de 90% ou uma pressão par-
de idade, dá-nos um peso aproximado em função cial de dióxido de carbono – PaCO2 inferior a 60
da idade da criança: Peso (kg)=2x [idade em mmHg. Esta definição implica a realização de uma
anos + 4]. gasometria arterial que pode ser difícil de obter
e pouco fiável nas crianças. Para além disso, uma
8.2.3 Reconhecimento da criança criança com dificuldade respiratória pode conse-
gravemente doente guir manter os gases do sangue dentro de limites
relativamente normais, à custa de um aumento do
O reconhecimento e a abordagem precoce esforço respiratório. Quando os mecanismos de
da criança gravemente doente evitam a progres- compensação (aumento da frequência respirató-
são para uma situação de paragem cardio-respi- ria, cardíaca e utilização dos músculos acessórios)
ratória, reduzindo a morbilidade e mortalidade. A falham, a deterioração pode ser muito rápida e
identificação de uma criança gravemente doente a paragem cardio-respiratória iminente tem que
e as intervenções subsequentes devem seguir os ser antecipada. Para haver um bom fluxo de ar e
princípios ABCDE. uma ventilação-minuto adequada, a via aérea
92 CARLA PINTO
Quadro 1. Valores normais de Frequência Respiratória, Frequência Cardíaca e Pressão Arterial em lactentes e crianças (valores
médios, com os superiores e inferiores entre parênteses).
(A) tem que estar desobstruída e estável. Se a via Na respiração (B) deve ser avaliada a fre-
aérea está em risco e instável, pode ficar obstruí- quência respiratória, o trabalho respiratório (ti-
da (i.e. numa criança inconsciente em respiração ragem, utilização dos músculos acessórios, ade-
espontânea, a queda da língua pode obstruir a jo nasal, balanceio da cabeça e contração dos
via aérea). A entrada de ar deve ser avaliada ob- músculos da parede anterior do tórax), a eficácia
servando os movimentos respiratórios e torácicos, da respiração através da estimativa do volume
ouvindo os sons respiratórios e ruídos junto ao corrente pela expansão torácica, auscultação e
nariz e boca (ou por auscultação) e sentindo o deteção de ruídos adicionais, a oxigenação (cia-
movimento de ar junto ao nariz e boca. nose central ou palidez; SpO2) e os efeitos da
As crianças com dificuldade respiratória insuficiência respiratória noutros órgãos (coração:
procuram posições que otimizem a capaci- aumento da frequência cardíaca; cérebro: altera-
dade respiratória. Na obstrução da via aérea ção do estado de consciência; pele: má perfusão
superior adotam muitas vezes uma posição periférica). Constituem sinais de alarme: a de-
de extensão do pescoço, para melhorar a pressão do estado de consciência, a hipotonia,
permeabilidade da via aérea. Noutras situa- a redução do esforço respiratório, a cianose ou
ções, muitas vezes sentam-se inclinadas para palidez extrema - apesar de oxigénio suplementar,
a frente e apoiadas nos braços. Esta posição e a sudorese.
melhora a utilização de músculos acessórios. Num lactente, a taquipneia pode ser o pri-
Deve permitir-se à criança adotar a posição meiro sinal de insuficiência respiratória. Uma
mais confortável e/ou melhor para a permea- queda súbita da frequência respiratória numa
bilização da via aérea. criança com doença aguda é um achado muito
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 93
Pré-carga
Resistência Vascular
Sistémica
Relações entre variáveis que afetam o débito cardíaco e variáveis que afetam a pressão arterial
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Figura 3. Cabeça na posição neutra e elevação do queixo no Figura 4. Extensão da cabeça e elevação
lactente. do queixo na criança pequena.
a eficácia da seguinte pode ficar comprometi- Figura 5. Extensão da cabeça e elevação do queixo na
criança maior.
da. Em todas as emergências é essencial avaliar
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 97
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Figura 6. Manobra de subluxação da mandibula. Figura 7. Insuflações iniciais no lactente, com a técnica boca
a boca-nariz.
rapidamente a situação e garantir primeiro a segu- da mandíbula é utilizada para abertura da via
rança dos reanimadores e depois a da criança. O aérea na criança quando é necessária imobilização
modo adequado de o fazer é estabilizar a cabeça, da coluna cervical. O reanimador coloca as mãos
colocando uma mão na fronte e utilizar a outra nos dois lados da cabeça. As extremidades de dois
mão para abanar o braço da criança ou puxar ou três dedos de cada mão colocam-se debaixo
o cabelo. Ao mesmo tempo, deve chamar-se o dos ângulos da mandibula, elevando-a, com os
nome da criança em voz alta e dizer-lhe “Acorda!” polegares cuidadosamente apoiados nos malares,
ou perguntar-lhe “Estás bem?”. Nunca se deve figura 6. Para maior estabilidade, os cotovelos do
sacudir a criança. Se não houver resposta, deve-se reanimador devem estar apoiados na superfície
iniciar SBV imediatamente. Se outra pessoa estiver em que a criança esta deitada.
disponível, deve ativar o SEM (número europeu
universal - 112). Respiração (B)
Após permeabilizar a via aérea é necessário,
Permeabilizar a via aérea (A) avaliar a eficácia da respiração espontânea, que
A permeabilização da via aérea pode ser efe- deve demorar menos de dez segundos, vendo os
tuada de dois modos: posicionamento da cabeça movimentos torácicos e abdominais, ouvindo sons
e subluxação da mandibula. Em lactentes, a cabe- e ruídos respiratórios junto à boca e nariz e sen-
ça deve ser colocada na posição neutra (eixo da tindo o movimento de ar junto à boca e nariz. Se
orelha alinhado com o eixo do tronco - figura 3). a criança não respira eficazmente ou tem apenas
Na criança é necessário efetuar mais extensão da respiração agónica, o reanimador deve efetuar cinco
cabeça, figuras 4 e 5. A manobra de subluxação insuflações iniciais com ar expirado, mantendo a via
98 CARLA PINTO
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Figura 8. Insuflações iniciais na criança com Figura 9. Palpação do pulso braquial e pesquisa de sinais
a técnica boca-a-boca. de circulação no lactente.
A eficácia das insuflações iniciais avalia- Figura 10. Palpação do pulso carotídeo na criança.
-se observando a elevação e descida do tórax.
O reanimador deve adaptar a pressão e volume
das insuflações às características da criança para
garantir expansão torácica com cada insuflação. necessita de compressões torácicas. Deve-se obser-
var se há sinais de circulação: movimento, tosse ou
Circulação (C) respiração normal ou palpar um pulso central. A pal-
Após as insuflações iniciais o reanimador deve pação do pulso central, sobretudo para leigos, pode
avaliar se a criança tem circulação espontânea ou se causar dúvidas por isso a decisão de continuar o SBV
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 99
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Figura 11. Localização do apêndice xifoide na junção Figura 13. Compressões torácicas no lactente: técnica do
das costelas inferiores. Adaptado de ERC abraço (dois polegares).
a técnica do abraço pois permite um melhor débito Figura 14. Compressões torácicas na criança pequena:
técnica de uma mão.
cardíaco, mas é muito pouco provável que um rea-
nimador único, consiga executá-la de modo eficaz,
fazendo insuflações corretas sequencialmente.
da reanimação ou o reanimador fica demasiado Figura 15. Compressões torácicas na criança maior: técnica
de duas mãos.
exausto para continuar.
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 101
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Figura 16. Algoritmo do Suporte Básico de Vida Pediátrico, Figura 17. Utilização de um DAE na criança,
RCP - Reanimação cardio-pulmonar. após um minuto de SBV.
Figura 4.10
Algoritmo da sufocação
102 CARLA PINTO
Avaliar gravidade
necessita de desfibrilhação, um DAE standard seja muito provável uma causa cardíaca).
pode ser usado. Para crianças com menos de oito Em qualquer circunstância, não conectar
anos ou de 25 kg, deve ser idealmente usado o DAE antes de ter efetuado um minuto
um DAE com dispositivo atenuador. No entanto, de SBV;
se não estiver rapidamente disponível nem um 3. ligar o DAE e conectar os elétrodos (pe-
desfibrilhador manual nem um com atenuador, diátricos se adequado). Se houver mais
um DAE standard pode ser usado em crianças que um reanimador, continuar SBV;
com menos de oito anos. Os elétrodos dos DAE’s 4. seguir as indicações verbais e visuais do DAE;
são colocados: um à direita do esterno e outro na 5. assegurar que ninguém toca na vítima
linha medio-axilar á esquerda. Na sequência de enquanto o DAE analisa o ritmo;
utilização de um DAE deve-se, figura 17: 6. se estiver indicado choque, garantir que
ninguém toca na vítima, pressionar o
1. garantir que o reanimador, a vítima e ou- botão quando indicado, continuar SBV
tros presentes estão em segurança; até serem detetados sinais de circulação;
2. iniciar SBV. Se há dois ou mais reanima- 7. se não estiver indicado um choque, re-
dores, um continua com o SBV enquanto tomar de imediato o SBV. Continuar a
o outro chama ajuda e traz o DAE, se seguir as indicações do DAE;
disponível. No caso de um reanimador 8. continuar SBV até chegar ajuda, a vítima
único, deve chamar ajuda e trazer o DAE iniciar respiração normal, ou o reanima-
após um minuto de SBV (a menos que dor ficar exausto.
Tabela 4.1
Sinais de sufocação
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 103
Sinais gerais
Episódio testemunhado deve aplicar pancadas interescapulares. Se
Tosse ou engasgamento as pancadas interescapulares não resolvem a
Início súbito, sem outros sinais de doença
obstrução, devem iniciar-se compressões to-
História recente de comer ou brincar com objetos pequenos
rácicas no lactente ou abdominais na criança.
Tosse eficaz
Choro ou resposta verbal a perguntas Estas manobras simulam a tosse e aumentam
Tosse bem audível a pressão intra-torácica para desalojar o corpo
Capaz de inspirar bem antes de tossir
estranho. Na técnica das pancadas interescapu-
Completamente alerta
Tosse ineficaz lares no lactente, o reanimador deve apoia-lo
Incapaz de vocalizar em decúbito ventral com a cabeça mais baixa,
Tosse silenciosa, inaudível
para que a gravidade ajude na sua remoção. Se
Incapaz de respirar
Cianose
o reanimador está sentado ou ajoelhado deve
Nível de consciência diminuído conseguir apoiar o lactente de modo seguro ao
seu colo. A cabeça deve ser apoiada colocando
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Quadro 2. Sinais de sufocação. mandibula e um ou dois dedos da outra mão
no mesmo ponto do outro lado da mandibula.
É importante ter-se cuidado para não exercer
Obstrução da via aérea por corpo estranho pressão nos tecidos moles debaixo da mandibu-
ou sufocação la, o que poderia aumentar a obstrução da via
A maioria das situações de sufocação em aérea. Devem dar-se até cinco pancadas secas
lactentes e crianças ocorre enquanto brincam ou com a base de uma mão, nas costas, entre as
comem e, por isso, são muitas vezes observadas, omoplatas do lactente, figura 19. Na criança,
o que permite que sejam tomadas rapidamente as pancadas interescapulares também são mais
medidas se necessário. Deve suspeitar-se de sufo- eficazes se esta estiver com a cabeça para bai-
cação se: o início é súbito, não há outros sinais de xo. Se a criança é pequena, deve ser colocada
doença, há história recente de estar a comer ou ao colo do reanimador, como um lactente. Se
a brincar com objetos pequenos imediatamente isso não for possível, deve apoiar-se a crian-
antes do início dos sintomas, quadro 2. ça numa posição inclinada para a frente e dar
as pancadas interescapulares. Se as pancadas
Na abordagem da sufocação, figura 18, é não removerem o corpo estranho, e a criança
necessário avaliar a eficácia da tosse e o estado continuar consciente, o reanimador pode usar
de consciência da criança. compressões torácicas no lactente, ou abdo-
Se a criança tosse eficazmente, não são minais na criança. As compressões abdominais
necessárias quaisquer manobras. Deve-se en- (manobra de Heimlich) não devem ser usadas
corajar a tosse e observar. Se a tosse é ineficaz, em lactentes. Na técnica das compressões to-
chamar ajuda e avaliar o nível de consciência. rácicas no lactente, o reanimador deve deita-lo
Se a criança está consciente, o reanimador em decúbito dorsal, com a cabeça mais baixa,
104 CARLA PINTO
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Figura 19. Pancadas interescapulares no lactente consciente. Figura 21. Compressões torácicas no lactente consciente.
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Figura 20. Manobra para voltar o lactente. Figura 22. Compressão abdominal na criança.
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 105
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Figura 23. Trabalho de equipa. Figura 26. Extensão com elevação do queixo aumenta a
patência da via aérea, elevando a porção anterior da língua.
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Figura 24. Criança inconsciente; a queda da língua produz Figura 27. Hiperextensão causa obstrução da via aérea.
obstrução da via aérea.
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Figura 25. Após um ano de idade, a extensão do pescoço Figura 28. Flexão do pescoço também causa obstrução
melhora a patência da via aérea. da via aérea.
106 CARLA PINTO
colocando o dorso ao longo do seu braço livre uma tentativa de o remover com uma única
e apoiando o occipital sobre a mão, figuras 20 passagem de um dedo. Não tentar limpezas
e 21. O lactente fica assim apoiado ao longo do com o dedo de um modo cego ou repetido, já
braço do reanimador, por sua vez apoiado na que podem causar lesões ou empurrar o objeto.
coxa. Localiza-se a referência para a compressão
torácica (metade inferior do esterno cerca de 8.2.5 Suporte avançado de vida pediátrico
um dedo acima do apêndice xifoide). Devem
ser efetuadas até cinco compressões. Estas são A abordagem do suporte avançado de vida
semelhantes às compressões torácicas do SBV, pediátrico (SAV pediátrico) é estabelecida seguin-
mas mais secas e a um ritmo mais lento. do o ABCDE. No A e B deve-se permeabilizar a via
Nas compressões abdominais na criança, aérea, otimizar a ventilação, assegurar um correta
o reanimador coloca-se de pé ou ajoelhado oxigenação (iniciar com FiO2 de100%) e monitori-
atrás desta e passa os seus braços por baixo zar a SpO2 com oximetria de pulso. Para otimizar a
dos braços da criança, envolvendo o tronco ventilação pode ser necessário utilizar adjuvantes
pela frente. O reanimador fecha um punho e da via aérea e executar a técnica de ventilação
coloca-o entre o umbigo e o apêndice xifoi- com máscara e insuflador. A intubação traqueal
de. Apertando esse punho com a outra mão, não será descrita nesta lição pois em contexto
o reanimador puxa de modo seco para trás e de paragem cardio-respiratória deve ser apenas
para cima aplicando até cinco compressões ab- efetuada por profissionais treinados. A abordagem
dominais, figura 22. É preciso ter cuidado para da circulação (C) na paragem cardio-respiratória
não aplicar pressão sobre o esterno e a grelha inclui as compressões torácicas (técnica igual ao
torácica que provoque trauma. Se o corpo es- descrito no SBV), monitorização com ECG, SpO2 e
tranho não for expelido e a criança se mantiver pressão arterial, obtenção de um acesso vascular
consciente, continuar a sequência de pancadas e desfibrilhação. Na figura 23 pode ser observado
interescapulares e compressões (torácicas em o trabalho de equipa nesta situação.
lactentes e abdominais nas outras crianças),
chamar ajuda, ou mandar chamar. Se o corpo A permeabilidade da via área deve ser asse-
estranho tiver sido expulso, avaliar a situação gurada de acordo com a abordagem do SBV. Nas
clinica. Uma parte do objeto pode permanecer figuras 24 a 28 pode ser observada a importância
no trato respiratório e causar complicações. As do posicionamento da cabeça a que já se chamou
compressões abdominais podem causar lesões a atenção previamente.
internas, por isso todas as vítimas devem ser
observadas em meio hospitalar. Se uma criança A faringe pode ser obstruída por secreções,
com OVACE está inconsciente, o reanimador vómito ou sangue. Pode ser necessário usar um
deve deita-la numa superfície dura e plana, equipamento de aspiração para permeabilizar
iniciar SVB e pedir ajuda. Pode-se abrir a boca, a via aérea. Este inclui um aspirador fixo, geral-
procurar o objeto e se facilmente visível, fazer mente com regulador da pressão negativa, um
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 107
orifício lateral que se oclui intermitentemente. Nas Figura 29. Vias orofaríngeas.
crianças com reflexo de engasgamento presente a
aspiração deve ser efetuada com precaução pelo
risco de induzir o vómito. Uma aspiração mais
prolongada ou enérgica pode causar estimulação
vagal com bradicardia.
As vias orofaríngeas (cânulas de Guedel)
ou adjuvantes da via aérea, podem ser úteis na
criança inconsciente sem reflexo de engasgamen-
to, figuras 29 a 31. Deve ser utilizado um tama-
nho correto, figura 30, avaliado pela distância
entre os incisivos e o ângulo da mandibula, para
evitar o agravamento da obstrução, trauma ou © European Ressuscitation Council - www.erc.edu - 2017_NGL_008
desencadear laringoespasmo. Na criança, a via Figura 30. Estimativa da dimensão apropriada de via orofarín-
gea (dos incisivos ao ângulo da mandibula).
orofaríngea deve ser introduzida com cuidado e
sem forçar para não lesar o palato mole. Pode
ser inserida diretamente com a concavidade para
baixo, usando uma espátula ou uma lâmina de
laringoscópio para baixar a língua. Após inser-
ção de uma via orofaríngea, deve verificar-se a
patência da via aérea e administrar oxigénio, ou
ventilar, consoante necessário.
Uma máscara de oxigénio com reservatório é a Figura 31. Via orofaríngea colocada.
108 CARLA PINTO
Epiphysis Periosteum
Growth plate
Cortex
Nutrient artery
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Figuras 34 e 35. A máscara é segura com uma mão com a Figura 37. Dispositivo tipo berbequim para inserção
técnica “E-C clamp”, com abertura simultânea da via aérea. de agulha intra-óssea.
Forma-se um “E” com o terceiro, quarto e quinto dedos na
mandibula e um “C” com o polegar e indicador na máscara.
Após a abordagem da via aérea (A) e respi- e choque descompensado. As localizações anató-
ração (B), segue-se a circulação (C). A obtenção micas para introdução de agulhas IO são:
de um acesso venoso é essencial nos primeiros
minutos da reanimação, mas não deve interromper 1.abaixo dos seis anos: superfície antero-
as compressões e a ventilação. Este acesso pode -interna da tíbia, 2 a 3 cm abaixo e para
ser conseguido por via intravenosa periférica ou dentro da tuberosidade;
por via intra-óssea (IO). Esta última é a via de 2. seis anos ou mais: na face interna da tíbia
escolha nos casos de paragem cardio-respiratória 3 cm acima do maléolo interno ou na
110 CARLA PINTO
face lateral externa do fémur, 3 cm acima 4. Imobilizar o membro com a mão não do-
do côndilo lateral ou na face anterior da minante (garantir que a mão não fica por
cabeça do úmero (adolescentes). baixo do membro).
5. Com a mão dominante, o reanimador
Estes locais permitem evitar as placas de segura firmemente a agulha num ângulo
crescimento dos ossos longos (metáfises), figura de 90º em relação à pele já preparada.
36. A agulha atravessa o periósteo e o córtex até 6. Avançar a agulha com movimentos firmes
à cavidade medular. A inserção da agulha IO e de rotação a 90º, até ter uma sensação
a primeira administração de fluidos podem ser de cedência, no momento em que o cór-
dolorosas. Em crianças conscientes, a pele e o pe- tex é atravessado. A agulha deve entrar
riósteo devem ser infiltrados com lidocaína a 1%. aproximadamente um a dois cm. Se for
A técnica de inserção de agulha intra-óssea usado um dispositivo automático tipo
consiste em: berbequim, colocar a agulha firmemen-
te na pele e começar a ativar o motor
1. Identificar o local de entrada. sem forçar, figura 37. Parar quando se
2. Limpar a pele circundante com uma so- sente ceder. O comprimento introduzido
lução de base alcoólica. depende do tipo de dispositivo usado.
3. Infiltrar a pele, até ao periósteo, com li- 7. Após remover o mandril, conectar um cur-
docaína a 1% (em crianças conscientes). to prolongador com uma torneira de três
Figura 42. Algoritmo do SAV pediátrico. RCP - reanimação cardio-pulmonar; FV - fibrilhação ventricular; TV - taquicardia ventricular;
AESP - atividade elétrica sem pulso
Figura 5.13
114 CARLA PINTO
Paragem cardíaca: ritmo não desfibrilhável
Ventilar / Oxigenar
Acesso Vascular IO / IV
Fármacos Intubação
Figura 5.10
Paragem cardíaca: ritmo desfibrilhável
Ventilar / Oxigenar
Acesso Vascular IO / IV Amiodarona Amiodarona
Fármacos 5 mg/kg 5 mg/kg
Intubação
Figura 44. Algoritmo pediátrico para ritmos desfibrilháveis. IO - intra-ósseo; IV - intravenoso; CPR - cardiopulmonary ressuscitation;
ROSC - return of spontaneous circulation.
Capítulo 9.
Neonatologia
9
José Carlos Peixoto
e Carla Pinto
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_9
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 117
quinta semana após fertilização. Nesta altura as residuais, pela síntese de peptídeos, glicogénio,
vilosidades estão constituídas, a grande maioria esteróides, e hormonas que regulam as funções
submersas no espaço inter-vilositário e algumas da placenta e dos sistemas fetais e maternos
delas atingindo o trofoblasto extravilositário. Até (figura 2).
aqui o saco vitelino substituiu a função da pla- Período fetal inicia-se na oitava semana
centa no fornecimento dos principais nutrientes após a fertilização e termina no final da gestação.
ao feto. As duas circulações nunca se misturam. Depois de um período em que predominaram a
O sinciciotrofoblasto, parede fetal do trofoblasto, hiperplasia e a organogénese, segue-se uma fase
é um epitélio especializado que cobre toda a de crescimento linear na estatura, crescimento
árvore das vilosidades, atingindo uma área de logarítmico no peso e maturação de todos os
12 a 14 m no final da gestação. É responsável
2
órgãos e sistemas. A formação de urina inicia-
pelo transporte de gases, nutrientes e produtos -se entre a nona e a décima segunda semana
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 119
mas a nefrogénese só está completa cerca das reabsorção tubular de sódio aumenta. Metade
35 semanas de gestação. A urina fetal passa a do LPF é deglutida e a outra é eliminada para a
ser o constituinte principal do líquido amniótico cavidade amniótica. As funções protetoras do
(LA). O débito urinário aumenta de 12 para 28 LA são bem conhecidas, evitam traumatismos
mL/hora entre as 32 e as 38 semanas de IG. O e deformações do feto. Atualmente conhecem-
líquido pulmonar fetal (LPF) é também um cons- -se também algumas funções nutritivas, sendo
tituinte do LA podendo corresponder a cerca de responsável por 10 a 15% dos nutrientes para o
um terço do seu volume. O feto deglute cerca feto. Oligoâmnios é a designação usada quando
de um litro de LA por dia e cerca de 170 mL de o volume de LA está reduzido, podendo ser pro-
LPF. A síntese do LPF é ativa, processa-se a nível vocado por insuficiência placentar habitualmente
alveolar, é dependente dos canais de cloro e tem associado a restrição do crescimento, alteração
uma composição diferente do LA. No primeiro da função renal do feto com oligúria ou rotura de
trimestre a osmolaridade do LPF é semelhante membranas com perda de LA. As consequências
à dos sangues materno e fetal quando o papel poderão ser graves como hipoplasia pulmonar
das membranas é predominante. Entretanto essa secundária, defeitos posturais e riscos de defor-
osmolaridade vai diminuindo à medida que a mações. Polidrâmnios será o excesso de volume
120 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO
quando o óbito ocorre após a 28ª semana 9.2 RECÉM-NASCIDO NA SALA DE PARTOS
de gestação. Os óbitos fetais tardios são
frequentemente designados por nados 9.2.1 Transição fisiológica da vida
mortos. intra para a extrauterina
extrauterina. A pressão parcial de oxigénio mais ii) clearance do líquido pulmonar fetal
alta é encontrada na veia umbilical e ronda os (LPF) - são vários os mecanismos que
55±7 mmHg. Apesar da baixa tensão de oxigénio contribuem para a clearance do LPF
no feto, há uma adequada oxigenação tecidular como o parto, a respiração inicial e a
que decorre de três fatores: a hemoglobina fetal compressão do tórax. O aumento da ten-
tem maior afinidade para o oxigénio quando com- são de oxigénio após o parto aumenta a
parada com a do adulto; menor taxa metabólica expressão do gene que regula os canais
e de consumo de oxigénio (o feto não necessita de sódio do epitélio pulmonar e a sua
de manter a termorregulação pois esta é assegu- capacidade de transportar sódio promo-
rada pela mãe, muitas funções fisiológicas estão vendo a reabsorção do LPF. Os primeiros
reduzidas como o trabalho respiratório, digestão movimentos respiratórios efetivos do RN
e absorção intestinais, reabsorção tubular renal); geram pressões hidrostáticas negativas,
o fluxo sanguíneo está estruturado de modo a que promovem a deslocação do LPF para
que os órgãos vitais (fígado, coração e cérebro) o espaço intersticial e posteriormente
recebam sangue com um conteúdo relativamente para a vasculatura pulmonar. A compres-
alto de saturação de oxigénio. são do tórax, antigamente tida como o
A baixa tensão de oxigénio mantém a arqui- principal fator de clearance do LPF, é hoje
tetura da circulação fetal causando vasoconstrição considerada como desempenhando um
pulmonar, o que mantém a resistência vascular contributo reduzido;
pulmonar elevada, promovendo o shunt direito- iii) alterações circulatórias - após o au-
-esquerdo através do FO e do DA (canal arterial). mento da perfusão pulmonar e da pres-
são sistémica ocorre o encerramento do
Para que a transição decorra com sucesso FO e do DA com redução e posterior
quando o cordão umbilical é clampado após o desaparecimento dos shunts direito-es-
nascimento, devem verificar-se alterações rápidas querdo da circulação fetal. Após a clam-
na função cardiopulmonar, tais como: pagem do cordão umbilical, a placenta
é removida da circulação, resultando na
i) expansão pulmonar - com os primeiros subida da pressão sistémica neonatal.
movimentos respiratórios efetivos, o ar Simultaneamente com a expansão pul-
começa a mobilizar-se com a descida da monar há diminuição da resistência vas-
pressão intratorácica. O aumento da pres- cular e da pressão pulmonar. Estas duas
são inspiratória expande o alvéolo e es- alterações promovem o shunt esquerdo-
tabelece a capacidade residual funcional. -direito e condicionam um aumento do
A expansão pulmonar também estimula fluxo sanguíneo pulmonar e do volume
a libertação de surfatante, que reduz a de ejeção do ventrículo esquerdo, me-
tensão alveolar, aumenta a compliance e lhorando a saturação de oxigénio ce-
estabiliza a capacidade residual funcional; rebral. Com o aumento da expansão e
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 125
Ductus arterosus
Placenta
Cordão umbilical
Ductus venosus
com mecónio, sofrimento fetal agudo, ad- importantes: antecedentes maternos e familiares,
ministração à mãe de opioides até quatro história obstétrica anterior e atual e exame obje-
horas antes do parto, parto instrumentado tivo na sala de partos que será pormenorizado à
(fórceps ou ventosa) ou cesariana. frente. A história familiar nomeadamente a exis-
tência de anomalias congénitas e consanguinida-
9.2.2 Sala de Partos de devem ser pesquisadas. Na história obstétrica
anterior devem ser incluídos: gestações e partos
Preparação da sala, colheita da história anteriores e a sua evolução. A história obstétrica
clínica e antecipação do risco atual e materna inclui aspetos sociais. Deve-se
Na sala de partos a antecipação do risco é conhecer o contexto social: o nível socioeconó-
fundamental. Antes do parto deve ser elaborada mico, se a mãe é adolescente, se consume tabaco
uma história clínica detalhada para detetar fatores ou drogas ilícitas. Estes poderão colocar o RN
de risco, ser verificado todo o material de reani- em risco. Existem patologias maternas e ingesta
mação e as condições da sala de partos para a de fármacos que podem afetar o feto, ou ser
receção do RN incluindo a temperatura ambiente. responsáveis por complicações pós-natais: hiper-
Pelo menos um profissional de saúde deve tensão arterial, diabetes, infeção urinária, trom-
estar designado para assegurar cuidados ao RN e bocitopenia, hipertiroidismo, tuberculose, infeção
deve estar disponível um Pediatra com treino em por vírus da imunodeficiência humana, miastenia
reanimação neonatal. Nos casos de maior risco, gravis, distrofia miotónica, lupus eritematoso sis-
acima referidos, deve estar presente desde o início témico, e toma de fármacos anti-tiroideus, citos-
um Pediatra de preferência com diferenciação em táticos, ansiolíticos, antidepressivos, entre outros.
Neonatologia. O equipamento necessário para É importante avaliar se a gravidez foi vigiada.
a reanimação deve ser previamente verificado: Idealmente devem ocorrer pelo menos seis con-
aquecedor radiante, fonte para administração de sultas. Considera-se não vigiada quando houve
oxigénio, aspirador, laringoscópio, auto-insuflador três ou menos consultas. É imprescindível verificar
manual e máscara, vários tamanhos de tubos en- o resultado dos seguintes exames laboratoriais:
dotraqueais e fármacos. grupo de sangue e Rh, teste de Coombs indireto
Os RN prematuros têm maior risco de asfixia se Rh negativo, glicémia, serologias seriadas nos
e de necessitar de reanimação, particularmente os três trimestres de acordo com as recomendações
que nascem com menos de 1000g. Se for possível da Direção-Geral da Saúde e em função do risco,
quando se prevê o parto de um RN prematuro rastreio do Streptococcus do grupo B (efetuado
e o tempo o permitir deve-se dar preferência a entre as 35 e as 37 semanas de idade gestacional).
transferência in útero para uma maternidade di- É ainda fundamental saber o resultado das eco-
ferenciada. grafias efetuadas cujos objetivos são no primeiro
trimestre a determinação da idade gestacional,
A história clínica relativa ao recém-nascido, da corionicidade e de marcadores de cromos-
no momento do parto, tem três componentes somopatias (ossos do nariz e translucência da
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 127
principais objetivos avaliar a necessidade de rea- melhor a adaptação. No bebé saudável, no primeiro
nimação e o modo de adaptação à vida extra- minuto, a pontuação máxima é habitualmente de
-uterina, excluir malformações congénitas major nove, uma vez que a coloração da pele se apresenta
e lesões de parto traumático. O RN deve ser pe- com cianose periférica (acrocianose) motivada por
sado, mas na sala de partos não é necessário “frio”, cotando 1. Um valor aos cinco minutos infe-
nem desejável avaliar o perímetro craniano nem o rior a sete, obriga à sua repetição de cinco em cinco
comprimento que ficam reservados para o dia se- minutos até aos 20 minutos de vida, assim como
guinte, quando há maior estabilidade fisiológica. da implementação de medidas que o normalizem.
A frequência cardíaca pode ser determinada pela
As guidelines de 2015 da American Heart auscultação ou pela palpação do cordão umbili-
Association (AHA) e da American Academy of cal (menos sensível mas pode ser útil em caso de
Pediatrics (AAP)/ ILCOR para a reanimação do RN reanimação quando apenas estiver presente só um
incluem uma avaliação rápida, baseada nas se- profissional de saúde na sala de partos).
guintes questões: i) o RN é de termo?, ii) o RN está
a respirar ou a chorar?, iii) o RN tem bom tónus
muscular?. Se a resposta a todas estas questões Pontuação
0 1 2
for sim, então o RN não precisa de reanimação. Frequência Ausente <100 bpm >100 bpm
cardíaca
O Índice de Apgar foi introduzido por Respiração Ausente Irregular Regular, choro
Virginia Apgar, de forma a avaliar rapidamente Tónus Hipotonia Flexão das Ativo
o RN nos seus primeiros minutos de vida. Não é muscular extremidades (movimentos
usado para guiar a necessidade de reanimação de braços
e pernas)
mas para avaliar a adaptação fisiológica imediata Resposta Ausente Gemido Choro
do RN à vida extra-uterina. A sua determinação aos vigoroso
é efetuada nos 1º, 5º e 10º minutos de vida, ou estímulos
Cor da pele Palidez/ Cianose Rosado
mais. Avaliam-se cinco critérios clínicos: fre- Cianose periférica
quência cardíaca (ausente - 0, inferior a 100 bati- central (acrocianose)
mentos por minuto -1, superior a 100 batimentos bpm - batimentos por minuto
possam nascer numa maternidade diferenciada saco de silicone para evitar a perda de água, de
de forma a otimizar os cuidados. Será feita uma eletrólitos e de calor. Também é necessária pausa
breve descrição daquelas que, na ausência de alimentar e a colocação de sonda nasogástrica
diagnóstico pré-natal devem ser obrigatoriamente para descompressão. Em ambos os casos é neces-
detetadas na sala de partos pelas suas implicações sário a transferência precoce para uma unidade
terapêuticas específícas e urgentes. diferenciada com Cirurgia Pediátrica. Idealmente
deveriam ter sido transferidos in útero.
As fendas do palato e/ ou do lábio são
relativamente frequentes e podem ser observa- A hérnia diafragmática congénita con-
das pela inspeção. Pode ser necessário palpar o siste na herniação dos órgãos abdominais para
palato para detetar uma fenda submucosa que a cavidade torácica através de um defeito pos-
não é visivel. As fendas podem ser isoladas (não tero-lateral do diafragma. É mais frequente à
sindromáticas) ou associadas com outras ano- esquerda. A sua incidência é de 1 para 2.500
malias fazendo parte de um síndrome genético nascimentos. O diagnóstico pré-natal é frequente
(sindromáticas). e desejável para que o parto possa ocorrer numa
maternidade diferenciada. Se não for diagnostica-
O onfalocelo é uma herniação através do da previamente, deve suspeitar-se ao nascimento
cordão umbilical do conteúdo abdominal cober- quando ocorrem sinais de dificuldade respirató-
ta por uma membrana. Tem uma incidência de ria grave, sons cardíacos audíveis à direita e ab-
2 para 10.000 nados-vivos. Em 50% dos casos dómen escavado. Está proscrita a ventilação
associa-se a anomalias do cariótipo ou a síndro- com máscara. A precocidade e a gravidade da
mes genéticos. O seu prognóstico depende do apresentação dependem do grau de hipoplasia
tamanho da lesão, grau de hipoplasia pulmonar pulmonar e hipertensão pulmonar e das malfor-
e insuficiência respiratória e de outras malforma- mações associadas. O seu tratamento inclui entu-
ções associadas. Após o nascimento o onfalocelo bação traqueal, descompressão gastro-intestinal
deve ser coberto com compressas estéreis em- com sonda naso-gástrica, medidas adequadas
bebidas em soro fisiológico morno para impe- para a hipertensão pulmonar e ventilação suave.
dir a perda de fluidos. Deve ser colocada sonda A cirurgia deve ser diferida até controlo da hiper-
nasogástrica para descompressão, e administrar tensão pulmonar.
fluidos intravenosos com glicose uma vez que
estes RN não se podem alimentar por via diges- A atrésia do esófago pode ocorrer com
tiva. No gastrosquisis o intestino exterioriza-se ou sem fístula entre o topo proximal ou distal
através de um defeito na parede abdominal do (ou ambos) do esófago e a traqueia. Em 85%
lado direito do cordão umbilical, sem membrana. dos casos a fístula ocorre entre o esófago distal
Pode associar-se a atrésia intestinal e os RN são e a traqueia. A sua incidência é de 1 para 3.000
LIG em 10 a 20% dos casos. Deve-se colocar o nascimentos. O seu diagnóstico pré-natal é difícil
intestino à vista ou a parte inferior do RN num mas deve suspeitar-se em caso de polidrâmnios.
130 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO
peso de nascimento for inferior a 1500g ou 1 mg de atrésia esofágica sem suspeita pré-natal.
se for superior). Esta hemorragia vitamina K Mas cuidado que esta anomalia deve ser cli-
dependente pode ser classificada de acordo nicamente excluída antes de colocar o bebé à
com o momento de apresentação: precoce (0 mama (pesquisar acumulação de secreções na
a 24 horas de vida), clássica (um a sete dias) e boca e história de polidrâmnios), uma vez que
tardia (duas a 12 semanas). A forma precoce é não está indicada por rotina a colocação de
habitualmente grave e ocorre sobretudo quando sonda gástrica para testar a patência esofágica
as mães durante a gravidez ingerem fármacos ao nascimento.
que interferem com o metabolismo da vitamina Logo na sala de partos deve-se ter o cuida-
K como alguns anti-epilépticos e a isoniazida. do de promover o aleitamento materno imple-
A clássica é caracterizada pelo aparecimento mentando as medidas de sucesso bem conheci-
de hemorragia gastrointestinal ou do cordão das como sejam: o contacto precoce “pele com
umbilical. A forma tardia é a mais preocupante pele” entre o RN e a mãe após o nascimento;
e pode manifestar-se com hemorragia intracra- aleitamento frequente e precoce no período pós
niana em 30 a 60% dos casos. Tende a ocorrer parto; bem como um suporte à amamentação
em RN que não fizeram profilaxia e sobretudo por profissionais habilitados em caso de difi-
se são alimentados com leite materno. Os RN culdades.
têm risco de carência fisiológica de vitamina K
uma vez que a passagem desta vitamina por São critérios para o RN ser colocado
via transplacentar e a sua reserva hepática são junto da mãe, dispensando vigilância em
limitadas, o seu trato intestinal é relativamente unidade de cuidados especiais: ser de termo
estéril e leva algum tempo a colonizar com bac- ou prematuro tardio; ter peso de nascimento
térias que têm um papel importante na síntese adequado (superior a 1.800g); terem sido excluí-
de vitamina K 2 e o leite materno é uma pobre das malformações major; ter tido boa adaptação
fonte desta vitamina. à vida extra-uterina; ter capacidade de mamar
e ser capaz de manter estabilidade térmica.
Os RN saudáveis de termo ou prematuros
tardios devem permanecer junto da mãe para O período de transição entre a vida intra
promoção da vinculação entre a mãe e o RN e extra uterina ocorre nas primeiras quatro a
através do contacto “pele com pele” e pelo seis horas após o nascimento. Nesta fase o RN
início precoce do aleitamento materno. A pri- deve ser avaliado a cada 30 a 60 minutos. Deve
meira mamada do RN deve começar ainda na ser registada a temperatura axilar (alvo 36,5 a
sala de partos, tão precoce quanto possível pois 37,5ºC nos RN sem asfixia), a frequência cardía-
também previne as hipoglicémias. Outra vanta- ca (normal 120 a160 bpm; pode reduzir durante
gem da primeira mamada ocorrer ainda na sala o sono), a frequência respiratória (normal 40
de partos é a possibilidade da sua observação, a 60 cpm), a côr da pele e mucosas, e o tónus
sendo particularmente útil na deteção de casos muscular.
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 133
Asfixia Perinatal
A asfixia perinatal pode resultar de dife-
rentes incidentes que levam a uma interrupção
no fluxo sanguíneo normal do cordão umbilical
tais como: prolapso com compressão do cordão
umbilical, descolamento da placenta, hipóxia e
hipotensão, insuficiência placentar ou reanimação
ineficaz. Na resposta inicial à hipóxia há um
aumento compensatório da frequência respiratória
e cardíaca, assim como da pressão arterial. Os
movimentos respiratórios podem cessar de segui-
da (apneia primária) e a frequência cardíaca e a
pressão arterial diminuem. O período inicial de
apneia tem a duração de 30 a 60 segundos. Se
o insulto se mantém seguem-se respirações tipo
gasping (cerca de 12 por minuto). Posteriormente,
surge a apneia secundária ou terminal com
descida mais abrupta da frequência cardíaca e Figura 6. Sequência de eventos fisiológicos de asfixia no
modelo animal. De notar a subida da frequência
da pressão arterial, figura 6. Quanto mais pro-
cardíaca como resposta à reanimação eficaz.
longada a duração da apneia secundária, maior
será o risco de lesão de órgãos. Numa fase inicial
e apesar da descida da frequência cardíaca, o
débito cardíaco e a pressão arterial mantêm-se reanimação que necessitam de ser mais vigo-
normais por vasoconstrição, sendo poupados da rosas e invasivas na segunda. Todos os esforços
hipoperfusão os órgãos vitais nobres (coração devem ser efetuados para que a reanimação seja
e cérebro). Durante a fase de apneia primária é o mais efetiva possível de forma a evitar o desen-
possível iniciar a respiração com estímulos físicos. volvimento de encefalopatia hipóxico-isquémica
O primeiro sinal de recuperação da apneia é o e o risco de sequelas no neurodesenvolvimento
aumento da frequência cardíaca, seguido da ele- daí decorrentes.
vação da pressão arterial. O tempo e as medidas O diagnóstico de asfixia é definido segundo
de reanimação necessárias para que ocorram res- os critérios da ACOG pela acidose do sangue do
pirações rítmicas espontâneas estão dependentes cordão (pH <7,0 ou défice de base ≤ -12 nos 60
da duração da apneia secundária. minutos após o nascimento), índice de Apgar infe-
Só conseguimos distinguir apneia primá- rior a 3 ou 5, respetivamente ao 5º e 10º minutos
ria da secundária pela resposta às medidas de de vida, e necessidade de reanimação contínua
134 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO
durante os primeiros 10 minutos de vida. Após a circulação através de compressões torácicas (C) e
publicação de três ensaios clínicos multicêntricos administrar drogas (D) como a adrenalina e/ ou ex-
randomizados e controlados em RN de termo há pansores de volume. Inicialmente o RN é colocado
indicação para a implementação de hipotermia de baixo de aquecedor radiante sobre o colchão
moderada (temperatura retal de 33,5ºc) nas pri- de reanimação previamente aquecido, envolvido
meiras seis horas de vida e durante 72 horas nos em panos quentes, que vão sendo substituídos en-
bebés com encefalopatia hipóxico-isquémica mo- quanto se seca de forma a não estarem húmidos.
derada a grave uma vez que reduz a probabilidade Apesar de envolto nos panos o RN não deve estar
de morte e de sequelas no neurodesenvolvimento totalmente coberto para que se possa observar.
a longo prazo. Pretende-se obter uma temperatura cutânea de
36,5ºC (electrodo cutâneo). Para permeabilizar a
Reanimação neonatal via aérea o RN deve ser posicionado com a cabeça
Os passos básicos A, B, C, D da reanima- em posição neutra ou ligeiramente em exten-
ção também se aplicam no período neonatal. são. O pescoço não deve estar hiperextendido
No entanto há aspetos particulares a salientar. nem fletido, figura 7. A aspiração imediatamente
As decisões são tomadas segundo um algoritmo após o parto é reservada para as situações em
do European Ressuscitation Council Guidelines que há obstrução óbvia da via aérea ou respira-
2015 - Newborn Life Support, que se baseia no ção ineficaz. Deve ser aspirada primeiro a boca
tempo de resposta a procedimentos de reanima- e depois o nariz (sondas adequadas) com uma
ção padronizados e na avaliação da respiração e pressão não demasiado elevada (não exceder os
da frequência cardíaca. É utilizado um período -150 mmHg). A aspiração do esófago, estômago
de 30 segundos para se instituir um determina- e até da orofaringe não deve ser efetuada por
do procedimento de reanimação e avaliar o seu rotina por risco traumático e pela possibilidade
resultado de forma a decidir se é necessária a in- de causar estimulação parassimpática (vagal)
tervenção subsequente. A monitorização da SpO2 que pode desencadear apneia e/ou bradicardia
usando a oximetria de pulso deve ser efetuada nas atrasando a recuperação do RN. O processo de
seguintes circunstâncias: respiração ineficaz ou secar e aspirar gentilmente o RN, efetuado na
apneia, cianose central persistente ou frequência fase inicial, habitualmente produz estimulação
cardíaca inferior a 100 bpm. Não são necessárias adequada para desencadear os movimentos respi-
medidas de reanimação adicionais se a respiração ratórios. Outras medidas de estimulação seguras
espontânea for eficaz e se a frequência cardíaca adicionais podem incluir pequenos piparotes na
for superior a 100 bpm. É fundamental que cada planta dos pés e massajar o dorso. Se após duas
passo seja otimizado, pois o sucesso das medi- ou mais tentativas de estimulação adicional o RN
das posteriores está na dependência da anterior. continua em apneia, deve ser iniciada ventilação
Os passos da reanimação são: aquecer e secar o com pressão positiva.
RN, estimular, desobstruir a via aérea (A) se neces- O tempo que deve decorrer para o RN ser co-
sário, assegurar respiração eficaz (B), assegurar a locado na mesa de reanimação, posicionar, aspirar
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 135
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Figura 7. Posicionamento para manter a via aérea permeável. Figura 8. Técnica de ventilação com pressão positiva com
máscara e auto-insuflador.
pressões cardíacas. Pode ser a primeira opção Figura 9. Técnica das compressões torácicas.
nos casos de hérnia diafragmática congénita,
nos prematuros com extremo baixo peso e para
a administração de surfatante nos prematuros. cardíaca não for detetável ou se for inferior a 60
Esta técnica deve ser efetuada por Pediatras e/ou bpm considerar a obtenção de um acesso venoso
Neonatologistas experientes e a sua descrição (cateter na veia umbilical) e a administração de
está fora do âmbito desta lição. Reavaliar os drogas (adrenalina e/ou expansores de volume).
movimentos respiratórios, se forem eficazes mas A adrenalina é administrada na dose inicial de
os batimentos cardíacos não forem detetáveis 10 microgramas/kg (0,1 mL /kg na diluição de
ou inferiores a 60 bpm, devem-se iniciar com- 1:10.000) por via intravenosa. A sua adminis-
pressões torácicas. Deve-se comprimir no terço tração através do tubo endotraqueal é menos
inferior do esterno, numa linha imaginária logo recomendada e requer doses mais elevadas (50
abaixo dos mamilos, com os dois polegares; os a 100 microgramas/kg). A adrenalina pode ser
restantes dedos circundam o tórax, apoiados na repetida (em doses 10 a 30 microgramas/kg) e
parte posterior. O objetivo é reduzir o diâme- considerada a utilização de bicarbonato de sódio
tro antero-posterior da caixa torácica em cerca se não houver melhoria. A expansão com volume
de um terço em cada compressão, figura 9. é efetuada com soro fisiológico na quantidade
As guidelines atuais recomendam uma relação de 10 mL /kg; esta conduta é muito importante
de três compressões torácicas para uma venti- na primeira fase de situações de hipovolémia
lação de modo a atingir 90 compressões e 30 como no descolamento da placenta até estar
insuflações por minuto. Deve-se reavaliar a fre- disponível concentrado de glóbulos vermelhos.
quência cardíaca a cada 30 segundos podendo A reanimação deve ser descontinuada se
usar-se a monitorização com eletrocardiograma o RN não mostrar sinais de vida (ausência de fre-
(avaliação mais rápida e precisa). Se a frequência quência cardíaca ou esforço respiratório) após dez
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 137
minutos de reanimação correta. Disponibiliza-se resultante de hipóxia intra-uterina; pode ser normal
o algoritmo da reanimação neonatal na figura 10. nos casos de fetos em posição pélvica), era prática
comum aspirar a orofaringe dos RN para evitar o
9.2.4 Situações especiais síndrome de aspiração meconial – pneumopatia
química, no entanto os estudos vieram demonstrar
RN prematuro que esta prática não era benéfica. Perante um RN
Quando se prevê um parto prematuro são vigoroso com líquido amniótico meconial não se
necessários recursos adicionais. Nos bebés com deve aspirar a via aérea. Nos RN não vigorosos com
IG inferior a 32 semanas, devem ser usados sa- líquido amniótico meconial espesso, que pode ser
cos de polietileno para os envolver de forma a obstrutivo, considerar a aspiração e entubação tra-
manter a temperatura corporal, além disso, nos queal. Deve ser destacada a necessidade de iniciar
RN com IG inferior a 28 semanas, a temperatura ventilação sem demora, nos primeiros minutos de
da sala deve ser superior a 25ºC. Os que têm vida nos RN que não respiram ou que o fazem de
menos de 30 semanas de IG são mais suscetíveis um modo ineficaz.
ao défice de surfatante (desenvolvem doença da
membrana hialina), pelo que deve haver equipa- Depressão por opioides
mento para fornecer pressão positiva (continuous Se foram administrados opioides na mãe
positive airway pressure - CPAP) e administrar durante o trabalho de parto, sobretudo em doses
surfatante se houver sinais de dificuldade respi- repetidas, por via intravenosa, e a última menos
ratória. Devem existir também fontes de ar com- de quatro horas antes do nascimento, o RN pode
primido, misturadores de oxigénio e oxímetros de apresentar depressão respiratória. Pode ser ne-
pulso para permitir uma adequada monitorização cessário para além da ventilação com pressão
da concentração de oxigénio administrada, de positiva ministrar naloxona como antídoto (200
forma a reduzir a lesão oxidativa resultante da microgramas por via intramuscular) que tem uma
exposição excessiva a este agente terapêutico. resposta altamente eficaz e imediata. A naloxona
Deve estar disponível uma incubadora de trans- está contraindicada nos RN filhos de mães toxico-
porte previamente aquecida particularmente se dependentes que consomem opioides pelo risco
os RN estão ventilados e a unidade de cuidados de despoletar síndrome de privação cuja clínica
intensivo é distante da sala de partos. pode incluir irritabilidade, tremor, febre, manifes-
tações gastrointestinais e convulsões.
Líquido amniótico com mecónio
Na presença de líquido amniótico meconial 9.2.5 Problemas precoces
(Liquido amniótico que em vez de ter uma cor
clara normal é esverdeado, resultante de dejeção Sinais de síndrome de dificuldade
in-útero de mecónio – conteúdo intestinal normal respiratória (SDR)
do feto que é verde e viscoso) que pode traduzir so- Os sinais de síndrome de dificuldade respira-
frimento fetal (por aumento da peristalse intestinal tória incluem taquipneia (frequência respiratória
138 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO
EUROPEAN
RESUSCITATION Suporte de Vida
Neonatal
COUNCIL
(Aconselhamento pré-natal)
Informação da equipa e verificação do
equipamento
Nascimento
Secar o bebé
Manter a temperatura
Ligar o cronómetro ou anotar a hora
Reavaliar
Se a FC não aumenta 60 s
verificar expansão torácica
Manter temperatura
Durante
Se o tórax não expande: SpO2 pré-ductal todo o
Verificar posição da cabeça aceitável
tempo
Ponderar controlo da via aérea c/ 2 pes- 2 min 60 %
soas e outras manobras 3 min 70 % avaliar:
Repetir insuflações 4 min 80 % “Preciso
Monitorização SpO2 ± ECG 5 min 85 % de
Avaliar se há resposta 10 min 90 %
ajuda?”
Se a FC não aumenta
verificar expansão torácica
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Publicado em - www.erc.edu
Outubro 2015 - 2017_NGL_008
pelo European Resuscitation Council vzw, Emile Vanderveldelaan 35, 2845 Niel, Belgium
Copyright: © European Resuscitation Council vzw Referência de produto: Poster_NLS_Algorithm_PRT_20150930
Figura 10. Algoritmo para reanimação neonatal. SpO2 - Saturação periférica de oxigénio; ECG - Eletrocardiograma; FC - Frequência cardíaca.
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 139
United States of America: McGraw-Hill education; 2014. O aleitamento materno é recomendado por
The Newborn infant - chapter 2. causa dos benefícios tanto para o bebé como
http://www.uptodate.com/pt/home/uptodate para a mãe, exceto quando medicamente contra-
Overview of the routine management of the healthy new- -indicado, como em filhos de mães com infeção
born infant por vírus da imunodeficiência humana (HIV) ou
http://www.uptodate.com/pt/home/uptodate em alguns casos de abuso de drogas.
Physiologic transition from intrauterine to extrauterine life Todos os hospitais devem cumprir as
Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais, Hospital de São orientações principais sugeridas em 1990 pela
Francisco Xavier. Neonatologia, Manual Prático. 1º Edição. UNICEF/OMS na Declaração de Innocenti para
Lisboa: Saninter; 2012. promover o sucesso do aleitamento materno,
tais como: ter uma norma escrita sobre alei-
tamento materno transmitida regularmente a
toda a equipa; treinar e motivar a equipa para
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 141
implementar esta norma, informar as mães so- aumento da produção de bilirrubina (aumento
bre as vantagens da amamentação, ensinar a do número e diminuição da semi-vida dos eri-
reconhecer os sinais de fome e de saciedade e trócitos); diminuição da depuração da bilirrubi-
treinar a técnica de amamentação; promover na (imaturidade enzimática - ao sétimo dia de
a vinculação mãe-filho, o contacto pele com vida a atividade da glucoruniltransferase uridino
pele na sala de parto e criar condições para o difosfoglucorunato-UGT é 1% da do adulto); e
início da amamentação na primeira hora de vida; pelo aumento da circulação entero-hepática.
garantir a amamentação em horário livre, a pe- A icterícia fisiológica só surge depois
dido, tendo em atenção que em média mamam das 24 horas e deverá estar resolvida até às
entre oito a 12 vezes por dia; devem mamar só duas semanas de vida. A icterícia com início mais
quando pedem mas a duração entre as refeições precoce (primeiro dia de vida) ou para além das
não deve exceder as quatro horas; a duração duas semanas exige avaliação, e até que se prove
total da mamada é variável (10 a 30 minutos); o contrário não é fisiológica. Na icterícia fisioló-
tentar esvaziar uma mama e oferecer sempre a gica não há incompatibilidade de grupo sanguí-
segunda (o bebé pode aceitar ou não); iniciar a neo ABO nem do fator Rh; está sob aleitamento
amamentação de um modo alternado entre a materno exclusivo; as fezes são coradas; a urina
mama direita e a esquerda independentemente tem coloração normal; não há sinais de doença;
se o bebé mamou de uma mama ou das duas; a progressão ponderal é normal e os níveis de BT
evitar a introdução de mamilos artificiais e da sérica estão abaixo do P 95 do normograma em
chupeta até que o processo de lactação esteja horas de Bhutani (Figura 11).
bem estabelecido (ver lição de alimentação e Crianças com BT ≥P 95 ou suspeita de doença
suplementos). hemolítica exigem um doseamento posterior de
BT e uma avaliação dirigida para determinar a
9.3.3 Icterícia: evitar a hiperbilirrubinémia etiologia da icterícia que já não é considerada
fisiológica.
Quase todos os RN atingem níveis de bi- A icterícia do leite materno tem sido
lirrubina total (BT) >1 mg/dL (17 micromol/L) e tradicionalmente definida como a persistência
mais de metade desenvolve icterícia fisiológica, de «icterícia fisiológica» para além da primeira
coloração amarela da pele, visível com valores de semana de idade. Inicia-se geralmente após os
BT superiores a 5 mg/dL (85 micromol/L). primeiros três a cinco dias de vida, sobrepondo-
A bilirrubina resulta do catabolismo das -se com a fisiológica (nos casos em que esta co-
proteínas do heme. A bilirrubina não conjuga- -exista); atinge um pico sérico de BT dentro de
da, circula na sua maioria ligada à albumina até duas semanas após o nascimento e mantém-se
ser captada pelo hepatócito para ser conjugada até às três a 12 semanas de vida. A causa prin-
e depois excretada. A icterícia neonatal fisio- cipal parece ser devida a um excesso de Beta-
lógica é causada por alterações neonatais nor- glucoronidase responsável pela desconjugação
mais no metabolismo da bilirrubina incluindo: o da bilirrubina direta o que facilita a reabsorção,
142 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO
Figura 11: Nomograma de Bhutani dos valores da bilirrubina total sérica (Micromol/L)
em horas em RN saudáveis de termo ou próximo do termo.
Figura 12.Método de Kramer para deteção da Figura 13. Bilirrubina cutânea-BT(tc) nas primeiras 96 horas.
hiperbilirrubinémia neonatal. Adaptado de: MAISELS et al. Adaptado de: Maisels MJ, Kring E. Transcutaneous bilirubin in
The Natural History of Jaundice in Predominantly Breastfed the first 96 hours in a normal newborn population of > or =
Infants. Pediatrics 2014;134:e340–e345 35 weeks’ gestation. Pediatrics 2006; 117: 1169-1173.
os campos pulmonares e o esperado será ouvir mur- Os sopros associados com cardiopatias têm ha-
múrio vesicular simétrico. Sons respiratórios anor- bitualmente uma intensidade superior ao grau
mais e assimetrias são raros na ausência de sinais de III, segundo tom anormal, frequentemente são
SDR. Em bebés com doença respiratória, o gemido pansistólicos, audíveis no bordo esquerdo do es-
às vezes é audível somente com o estetoscópio. terno, com alteração dos pulsos femorais e com
A auscultação cardíaca é efetuada em simultâ- sinais clínicos associados (cianose central ou sinais
neo, em todas as áreas do precórdio, bem como no de insuficiência cardíaca como taquipneia, taqui-
dorso e nas axilas. Avalia-se a frequência, o ritmo, o cardia, cansaço na mamada e hepatomegália).
primeiro e segundo tons cardiacos e a presença de É importante reconhecer as características e
eventual sopro. A frequência cardíaca é, normalmen- funcionalidades dos sopros funcionais: são sopros
te entre 120 a 160 bpm, mas pode diminuir para 85 com intensidade de grau II ou inferior, localizados
a 90 em alguns bebés nascidos de termo durante no bordo esternal esquerdo, com segundo tom
o sono. Os tons cardíacos são ouvidos melhor ao normal, sem cliques audíveis; os pulsos são nor-
longo do bordo esternal esquerdo. O predomínio mais e não há outras alterações clinicas.
dos tons cardiacos à direita sugere dextrocardia e Os pulsos femorais devem ser palpados ain-
exige a exclusão de hérnia diafragmática à esquerda. da com o RN calmo. Quando estão diminuídos
O primeiro tom é causado pelo encerramento quase podem indicar coartação da aorta. Se os pulsos
simultâneo das válvulas tricúspida e mitral e é melhor femorais forem anormais, devem ser igualmente
audível no ápice. O segundo tom é mais audível no avaliados os pulsos braquiais, radiais e pediosos.
bordo esternal superior esquerdo e é causada pelo Ao despir gradualmente, examina-se o pes-
encerramento das válvulas pulmonares e da aorta. coço, verifica-se a mobilidade e postura, exclui-se
É normalmente desdobrado. a existência de torcicolo, palpam-se as clavículas,
Os sopros cardíacos podem ser sistólicos, observam-se os membros, mãos, pés e dedos,
diastólicos, sisto-diastólicos, a intensidade é gra- avaliando proporções e simetria; observa-se o
duada numa escala de I a VI e podem auscultar-se abdómen, a cor, a forma, a distensão, percute-se
apenas num dos quatro focos. para distinguir macicez de timpanismo e palpa-se
Nos primeiros dias após o nascimento, a para identificar eventual/ais organomegália/s, dor
maioria dos recém-nascidos tem sopros habitual- ou defesa e avalia-se o cordão umbilical.
mente transitórios e benignos. Nas primeiras 24 Observam-se os genitais, o meato uretral,
horas a persistência do canal arterial (PCA) é a a presença dos testículos nas bolsas escrotais no
causa mais frequente de sopros; se persiste para rapaz e a permeabilidade do hímen na rapariga
além de 24 horas a estenose do tronco pulmonar e confirma-se a permeabilidade do ânus.
é mais provável, quando a maioria dos canais Observa-se o dorso, as estruturas ósseas e
arteriais foi encerrada. O murmúrio de PCA é pele da coluna e rastreia-se eventual disrafismo
contínuo, geralmente mais audível sob a clavícula espinhal oculto.
esquerda (segundo espaço intercostal), mas pode Já totalmente despido observa-se a cor e
irradiar para baixo no bordo esternal esquerdo. a textura da pele, pesquisam-se as marcas de
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 147
bem apoiadas). As viagens longas devem ser de- mínima, pelo interior, de 60 cm e não devem ter
sencorajadas na criança prematura enquanto esta aberturas superiores a seis cm. O colchão deve
não tiver um bom controlo cefálico. ser firme e estar bem ajustado ao tamanho da
cama; iii) manter a cabeça do lactente sempre
Transporte da criança a partir dos 12 meses destapada, não usar almofadas, edredões, brin-
As crianças têm a cabeça grande e pesada quedos ou peças de roupa que possam cobrir o
relativamente à dimensão corporal, bem como lactente. A roupa da cama deve ficar ao nível do
uma fragilidade marcada da região cervical pelo tronco e presa debaixo do colchão; iv) dormir com
que devem viajar em sistemas de retenção virados os pés a tocar o fundo da cama (dispor a roupa
para trás até aos três ou quatro anos de idade de da cama de forma a não cobrir a cabeça); v) evitar
modo a evitar traumatismo craneo-encefálicos. É o sobreaquecimento - manter a temperatura do
preferível instalarem-se nos lugares de trás do auto- quarto entre os 18 e os 21ºC, a roupa da criança
móvel. Nesta idade, circular no lugar da frente está e da cama devem estar adequadas à estação do
proscrito sempre que houver airbag frontal ativo. ano e ao local; vi) não dormir na cama dos pais;
Depois dos quatro anos e quando pesam mais de 15 vii) evitar exposição tabágica. A exposição ao
kg, as crianças podem viajar viradas para a frente, fumo do tabaco aumenta o risco de SMSL; viii)
numa cadeira de apoio, ou num banco elevatório quando está acordado, o bebé pode ser colocado
com costas. Nestas cadeiras, o cinto de segurança noutras posições; brincar em decúbito ventral é
do automóvel, colocado como no adulto, prende aconselhado, fortalece os músculos do pescoço.
a criança em simultâneo com a cadeira.
9.3.9 Atuar em caso de engasgamento
As crianças devem ser transportadas, de uma
maneira geral, no banco de trás; os cintos internos Segurar o lactente numa posição de cabeça
(arnês) serem apertados e ajustados diariamente para baixo, no colo ou apoiado na coxa. A cabeça
para não ficarem folgados nem torcidos; a ca- do bebé é segura colocando o polegar da mão
deira deve ser fixa corretamente com o cinto de (do braço que segura a criança) no ângulo da
segurança do automóvel ou com o sistema Isofix. mandíbula e um ou dois dedos da mesma mão
no mesmo ponto do outro lado da mandíbula.
9.3.8 Prevenção da síndrome Aplicar com a mão livre até cinco pancadas secas
da Morte Súbita do Lactente (SMSL) nas costas, entre as omoplatas, no sentido de
aliviar a obstrução.
As recomendações para a prevenção da
SMSL são: i) dormir em decúbito dorsal; ii) não 9.3.10 Higiene
adormecer o bebé em superfícies moles (colchão
mole, sofás, cama de adultos, alcofas). O berço Banho
deve ser seguro, sólido e estável, sem arestas ou Não é necessário dar banho diário. Se o fi-
outras saliências. As grades devem ter uma altura zer por prazer mútuo, utilizar de preferência um
152 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO
R A S T R E I O D E C A R D I O PAT I A CO N G É N I TA
P O R OX I M E T R I A D E P U L SO
Figura 15. Rastreio de Cardiopatia congénita por oximetria de pulso. Protocolo em uso na Maternidade Bissaya Barreto.
SpO2 - Saturação periférica de oxigénio.
gel suave com pH neutro e sem perfumes nem assepsia é garantida no corte e na manipulação do
aditivos. cordão umbilical, podem ser dispensados os antis-
séticos. Deve ser mantido limpo e seco (não cobrir
Cordão Umbilical com a fralda, não colocar compressas, não aplicar
O risco de infeção (onfalites) depende da quali- emolientes). Quando estiver sujo deve lavar-se com
dade da assistência ao parto e pós-natal. Quando a água e sabão, secar com compressa e expor ao “ar”.
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 153
para evitar readmissões hospitalares e garantir e do lábio inferior; abanar os braços e as pernas
uma assistência global adequada. quando chora; apresentar respiração irregular e
O BSIJ deve ser preenchido com os dados da periódica desde que não se acompanhe de sinais
filiação; data e hora de nascimento; dados obstétri- de SDR; obstrução nasal sem compromisso fun-
cos (pré-natais) relevantes e complicações perinatais; cional; soluçõs, espirros, eructações e bocejos;
Índice de Apgar; peso de nascimento, comprimento reflexo de Moro espontâneo – resposta a sons;
e perímetro cefálico; vacinas realizadas; data do esforço pletórico durante a defecação; pele seca
diagnóstico precoce, se efetuado na maternidade; com descamação especialmente nas mãos e nos
resultado do rastreio auditivo e do rastreio de car- pés; estrabismo intermitente.
diopatias congénitas; os dados relevantes do exame De igual modo é indispensável ensinar os
objetivo; o registo de intercorrências; se tomou leite pais/família a identificar e como proceder me-
adaptado e o peso à saída da maternidade. diante sinais de alarme, que são: icterícia a agra-
var; SDR; apneia; convulsão – fenómeno critico;
9.3.14 Primeira consulta após choro inconsolável; irritabilidade ou prostração
a alta da maternidade persistente; dificuldade ou recusa mantida em
mamar; febre ou hipotermia; vómitos repetidos
A alta do RN cada vez é mais precoce, ocor- ou biliares; má progressão ponderal – perda
rendo antes das 48 horas após o parto. A AAP superior a 10% do peso de nascimento.
recomenda que todo o RN alimentado exclusiva-
mente com leite materno no momento da alta, Deste modo a primeira consulta após a alta
deve ser visto por um Pediatra ou outro profis- da maternidade deve ser orientada para:
sional experimentado entre o terceiro e o quinto 1. Avaliar o estado geral de saúde do RN, ras-
dias de vida. Se tal não for possível é preferível trear sinais de alarme, avaliar a progres-
adiar a alta. são da icterícia (ver método de Kramer) e
Esta consulta é sugerida para evitar as read- do peso (comparar com o peso de alta e
missões hospitalares potencialmente evitáveis que do nascimento), avaliar sinais de desidra-
ocorrem em média até ao quinto dia de vida e tação, confirmar se o bebé tem dejeções
três dias após a alta. Os motivos mais frequentes espontâneas e micções normais e corrigir
de internamento são a icterícia, a desidratação, as dificuldades na alimentação.
as alterações hidroeletrolíticas e os problemas 2. Estabelecer uma relação com o enfermei-
com a alimentação. A primiparidade, a morbili- ro/médico/pediatra de família, orientar
dade materna, a prematuridade e o baixo peso o plano de vigilância de acordo com o
ao nascer são fatores de risco comuns de read- Programa Nacional de Saúde Infantil e
missões hospitalares justificadas. No entanto é Juvenil (PNSIJ), esclarecer os pais acerca
fundamental reconhecer e reforçar a informação dos critérios para recorrer aos serviços
sobre as variantes do normal e queixas frequentes de urgência/emergência e programar as
de situações normais, tais como: tremor do queixo imunizações.
156 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO
10
Mónica Oliva
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_10
CAPÍTULO 10. ALIMENTAÇÃO E SUPLEMENTOS 159
Fisiologia
Ao longo da gravidez a mama, sob influência
hormonal, diferencia-se de modo a ficar apta a Figura 1. Reflexo neuroendócrino envolvido na produção de
leite materno.Adaptado de Manual de aleitamento materno.
produzir leite. Este processo ocorre em todas as
Comité Português para a UNICEF/Comissão Nacional
mulheres independentemente do tamanho da Iniciativa Hospitais Amigos dos Bebés 2012.
mama.
160 MÓNICA OLIVA
A B
Tendo presente estas noções é fácil com- permanece entre muitas a noção de que este
preender que a introdução de qualquer suple- leite é fraco ou insuficiente para o recém-nascido.
mento, ao reduzir a estimulação e ao favorecer o O leite maduro é rico em hidratos de carbono e
não esvaziamento da mama, inibe a produção de lípidos, importantes para a saciedade do bebé.
leite. Este é um dos motivos pelos quais não está
aconselhada a administração de outros líquidos Técnica de amamentação
como chá ou até água durante o aleitamento O correto posicionamento a mamar é funda-
exclusivo. Quando um lactente mama o suficiente mental para o sucesso do aleitamento, garantindo
para satisfazer as suas necessidades calóricas, já uma extração eficaz de leite e evitando o apare-
está a receber água suficiente para responder cimento de problemas mamários como fissuras,
também às suas necessidades hídricas, mesmo ingurgitamento e mastite. A mãe deve dar de ma-
num ambiente quente e seco. mar num lugar calmo, confortavelmente sentada
ou deitada. O bebé e a mãe devem ficar frente a
Composição do leite frente e a boca alinhada com o mamilo. Tocando
A composição do leite materno vai sofrendo com o mamilo na parte média do lábio inferior o
várias modificações ao longo de toda a lactação, bebé abrirá bem a boca. Nessa altura a mãe deve
adaptando-se às necessidades do bebé. Chama- introduzir dentro da boca o mamilo e grande parte
se colostro à secreção mamária dos primeiros da aréola (figura 2). A língua fará então movimen-
quatro dias; é rico em sódio, cloro e proteínas tos ondulantes, espremendo a aréola e o mamilo
com funções protetoras como imunoglobulinas e contra o palato duro, removendo o leite acumulado
lactoferrina. É importante informar a mãe desta nos seios galactóforos situados por baixo da aréola.
função preventiva de infeções, dado que ainda Só assim a sucção será eficaz.
CAPÍTULO 10. ALIMENTAÇÃO E SUPLEMENTOS 161
lesões mamárias ou tuberculose ativa, não deve destinam – leite para lactentes (leite 1) e leite de
amamentar mas a produção de leite deve ser transição (leite 2).
estimulada. O aleitamento materno está contrain- Os leites 1 ou para lactentes estão indi-
dicado na infeção materna por vírus da imuno- cados como suplemento ou substituto do leite
deficiência humana, na psicose materna ou nos materno nos primeiros seis meses de vida, po-
recém-nascidos com doenças metabólicas como dendo no entanto continuar a ser usados até aos
a galactosémia ou a fenilcetonúria. 12 meses. Segundo uma revisão sobre leites e
A grande maioria dos fármacos é compatível fórmulas infantis em Portugal, realizada em 2012
com a amamentação mas evitar medicamentos e publicada na revista da Sociedade Portuguesa
desnecessários é a melhor regra a seguir. de Pediatria, os leites 2 ou de transição apre-
São considerados contraindicações os citos- sentam uma densidade energética e proteica
táticos, os radiofármacos e as drogas de abuso. praticamente sobreponível à das fórmulas para
lactentes mas um teor de cálcio, fósforo e ferro
10.2.2 Leites ou fórmulas infantis superior, estando apenas recomendados a partir
do sexto mês e até aos 12-24 meses. Existem ainda
Quando não é possível a amamentação, leites especiais e fórmulas infantis com proteína
por ausência ou insuficiência de leite materno, de soja que poderão ser usados em situações
quando este está contraindicado ou quando a clínicas bem definidas.
mãe não quer amamentar, existem no mercado Mas, por mais evoluída que seja a tecnolo-
leites ou fórmulas infantis. Estes substitutos do gia… o leite materno será sempre único.
leite humano são produtos elaborados a partir do Recomenda-se a preparação de fórmulas
leite de vaca, nutricionalmente seguros. Ao longo infantis no momento. Até aos quatro ou seis
dos anos têm sido sucessivamente modificadas meses poderá ser usada água potável fervida
tendo como objetivo satisfazer as necessidades ou engarrafada aquecida e o biberão e a tetina
nutricionais e mimetizar o perfil de crescimento, devem estar esterilizados. Por cada 30 ml de
de composição corporal, de marcadores bioquí- água adiciona-se uma colher medida rasa
micos e funcionais do lactente alimentado com de pó, colocando-se em primeiro lugar o
leite materno. São exemplo de modificações in- volume total de água. O cálculo de volume
troduzidas o enriquecimento em α-lactalbumina de leite a preparar para cada refeição tem em
bovina (permitindo uma redução do teor e uma conta as necessidades diárias em água de um
melhoria da qualidade proteica), a hidrólise mais lactente (150 ml/Kg/dia até ao volume máximo
ou menos extensa das proteínas, a adição de 1000 ml/dia), a dividir pelo número total de re-
nucleótidos, a adição de ácidos gordos polinsa- feições diárias.
turados de cadeia longa, de oligossacáridos e de Quando o motivo para a introdução do leite
bactérias probióticas. adaptado foi a hipogalactia, o bebé deverá em to-
Os leites ou fórmulas infantis são classifi- das as refeições, primeiro mamar nas duas mamas
cados de acordo com o grupo etário a que se e só depois ser oferecido o biberão. Deste modo
164 MÓNICA OLIVA
A administração de novos alimentos, sempre de nitrato e fitato, razão pela qual só deverão
por colher, deverá ser feita de forma gradual, ser introduzidos a partir dos nove a doze meses.
introduzindo um novo elemento cada três a cinco Devem ser adicionados 5 a 7,5ml de azeite cru a
dias para se identificarem eventuais intolerâncias cada dose de caldo ou puré de legumes uma vez
alimentares, oferecendo-o repetidamente até ser que este alimento não contém gordura e os lípidos
aceite, sem forçar. Desde sempre os pais devem são necessários na estruturação das membranas
aprender e respeitar sinais de saciedade da criança celulares e na maturação do sistema nervoso cen-
(fecha a boca, encosta-se para trás, vira a face tral, retina e sistema imunológico.
indicando que não quer comer mais). Em alternativa o primeiro alimento a ser
Todas estas etapas constituem períodos introduzido pode ser o cereal sob a forma de
críticos de aprendizagem, que irão permitir a in- farinha, enriquecida em ferro. Existem no mer-
trodução de paladares e texturas diferentes e de cado farinhas lácteas (contém leite de fórmula
alimentos cada vez mais sólidos, até à integração pelo que devem ser reconstituídas com água) e
na alimentação da família que deverá acontecer não lácteas, para serem preparadas com leite
por volta dos 12 meses. materno ou com o leite que o lactente está a
Face ao exposto e de acordo com as re- efetuar. Podem ainda ser isentas de glúten (se
comendações da Sociedade Europeia de elaboradas a partir de milho ou arroz) ou com
Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição e da glúten (mistura de cereais). A introdução dos
Comissão de Nutrição da Sociedade Portuguesa cereais com glúten está associada temporalmente
de Pediatria, publicadas em 2012, a diversificação à expressão clínica de doença celíaca em crianças
alimentar pode iniciar-se a partir do quarto mês, com predisposição genética. O glúten poderá ser
preferencialmente próximo dos seis meses e nunca introduzido a partir dos quatro meses completos
depois desta data. Nos prematuros, para a intro- (17 semanas).
dução de novos alimentos deve ser tida em con- A carne, o peixe e o ovo fornecem proteínas
sideração a idade corrigida e não a cronológica. de elevado valor biológico. A carne é também
Uma vez que é importante estimular o treino uma fonte importante de minerais de elevada
de sabores não doces, os autores defendem co- biodisponibilidade como o zinco e o ferro e de
meçar com um caldo ou puré de legumes embora ácidos gordos polinsaturados de cadeia longa,
possa ser com a farinha. A partir deste momento pelo que deve ser introduzida aos seis meses.
esta refeição substitui uma das refeições de leite O peixe poderá iniciar-se a partir do sétimo mês.
embora nos primeiros dias, se necessário, ainda Inicialmente com peixes mais magros como a pes-
possa ser completada com o leite. cada, o linguado, a solha e a faneca. O salmão,
A batata, a cenoura, a abóbora, a cebola, o devido ao seu elevado teor em gordura, deverá ser
alho, o alho francês, a alface, a curgete, o brócolo introduzido depois dos 10 meses e em pequenas
e a couve branca, são os mais utilizados para se porções. Inicialmente a carne é administrada no
iniciar a diversificação. O espinafre, o nabo, a caldo/puré de legumes, cerca de 20 a 30g uma
nabiça, a beterraba e o aipo contêm elevado teor vez ao dia. A partir do sétimo mês não adicionar
166 MÓNICA OLIVA
mais de 20g de carne ou peixe por refeição em pode ser oferecido a partir dos nove meses em
duas refeições por dia. A textura deve ser pro- substituição da papa.
gressivamente menos homogénea para estimular A água deverá ser a única bebida a ser ad-
a mastigação, aos nove meses podem passar a ministrada, várias vezes ao dia, desde o início da
ser oferecidos com arroz branco ou massa e le- diversificação.
gumes cozidos. Não está recomendada a adição de sal, açúcar
A partir do nono mês, a gema do ovo poderá ou mel durante o primeiro ano de vida, pois para
alternar com a carne ou o peixe, adiando-se a além dos efeitos negativos a curto prazo, treina a
introdução da clara para depois dos 11 meses. criança a procurar estes sabores ao longo da vida.
A fruta poderá ser introduzida por volta do Para a confeção da refeição a família deve
quinto ou sexto mês, crua ou cozida, como com- optar por alimentos de boa qualidade, isentos
plemento da refeição de caldo ou puré mas não de contaminação por microrganismos patogé-
deve constituir uma refeição. Maçã, pêra e banana nicos ou substâncias nocivas, manipulando-os
são habitualmente os primeiros frutos a serem de forma higiénica, servindo-os de imediato ou
introduzidos. Devem ser oferecidos isoladamente armazenando-os de forma segura.
para treinar o paladar e não sob a forma de sumo Os “boiões” são alimentos infantis elaborados
que tem várias desvantagens: efeito laxante, ano- à base de frutos, legumes, carne ou peixe. Apesar
rexiante, cariogénico e deseducador da paladar, de nutricionalmente adequados e sem risco de
pois habitua desde cedo a criança a bebidas doces. contaminação bacteriana, não devem substituir os
Durante o primeiro ano de vida dever-se-ão evitar alimentos preparados em família, reservando-se o
frutos potencialmente alergogénicos ou liberta- seu uso para situações pontuais como uma viagem;
dores de histamina como o morango, a amora, o respeitando sempre as indicações de utilização e
kiwi e o maracujá. Pelo risco de asfixia também conservação indicadas no rótulo.
não devem ser dados alimentos redondos e duros As dietas restritivas como vegan ou macro-
como frutos secos, amendoins, pipocas, passas, biótica apresentam um risco elevado de carências
tremoços, entre outros. nutricionais (vitamina B12, folato, ferro, zinco,
As leguminosas secas cozidas poderão ser ácidos gordos e aminoácidos essenciais) pelo que
introduzidas entre os nove e os onze meses, bem estão desaconselhadas durante o primeiro ano
demolhados, inicialmente sem casca e em peque- de vida, período de rápido crescimento e desen-
nas quantidades. volvimento e por isso particularmente sensível a
O leite de vaca em natureza tem um elevado estes défices.
teor de sódio, fósforo, gordura saturada e é pobre
em ácidos gordos essenciais, ferro e vitaminas. 10.2.4 Alimentação após
Além disso, pode causar lesão da mucosa intes- o primeiro ano de vida
tinal com hemorragia microscópica pelo que não
deve ser introduzido como fonte láctea principal Facilmente percebemos pelo exposto a impor-
antes dos 12 meses. Contudo, o iogurte natural tância de um aconselhamento alimentar correto
CAPÍTULO 10. ALIMENTAÇÃO E SUPLEMENTOS 167
durante o primeiro ano de vida, promovendo a mais do que as suas necessidades. Além
tolerância e o consumo de alimentos saudáveis, disso, o efeito da publicidade televisiva
evitando carência de micronutrientes e excesso de pode induzir a criança mais velha a in-
macronutrientes, para que a criança saudável se gerir alimentos nutricionalmente dese-
torne num adulto, também ele saudável. quilibrados;
A recomendação de que ao ano de idade a - evitar uma dieta monótona e nutricional-
criança passa a fazer a alimentação da família e mente incompleta (aporte excessivo de
em família, pressupõe que esta seja nutricional- proteína animal, açucares de absorção
mente adequada, o que frequentemente não se rápida e gordura saturada) e promover
verifica. Alguns conselhos poderão ser: o consumo de vitaminas e fibra;
- não substituir alimentos ou refeições por
- fazer a refeição em família, durante a qual leite, não dar leite antes de ir dormir e
a criança vê os outros elementos a comer durante a noite. O aporte lácteo diário
os alimentos que lhe são oferecidos. Esta depois do primeiro ano não deve ultra-
medida ajuda a diminuir a relutância em passar os 500 ml por dia;
aceitar novos sabores, que se acentua - não substituir refeições equilibradas por
a partir do primeiro ano (neofobias ali- lanches ricos em hidratos de carbono
mentares); como pão, bolachas ou doces.
- respeitar desde sempre o apetite da
criança. Em períodos de doença ou de Na adolescência são frequentes erros ali-
crescimento mais lento o apetite será mentares como: ausência do pequeno-almoço,
menor (é disso exemplo a anorexia fi- ingestão regular de fast food, substituição de
siológica do segundo ano de vida que refeições por snacks hipercalóricos, excesso de
corresponde a uma fase de menor velo- consumo de carne em detrimento do peixe, redu-
cidade de crescimento global e por isso ção do aporte de leite, fruta e legumes e aumento
menor necessidade energética). Os pais das bebidas açucaradas, por vezes com cafeína.
devem preocupar-se com a qualidade É pois necessário continuar a rever o regime
dos alimentos oferecidos, garantindo alimentar nas consultas de vigilância de saúde
uma oferta variada; a criança determina infantil e juvenil não esquecendo que, mais im-
a quantidade a ingerir. Recorda-se a sábia portante do que o que se diz, é o que se faz … e
frase do Pediatra Nicolau da Fonseca – “ que a criança imitará o comportamento alimentar
comida forçada é comida rejeitada”; da família.
- a refeição deve ser um momento de pra-
zer, de convívio, pelo que a televisão 10.2.5 Suplementos
deve estar desligada. Os ecrãs distraem
a criança não permitindo que esta note os A vitamina D é um micronutriente, con-
sinais de saciedade acabando por ingerir siderada por muitos como uma hormona, uma
168 MÓNICA OLIVA
vez que pode ser sintetizada na pele através da proteínas incluindo enzimas e da hemoglobina.
exposição solar. A sua principal função é a re- Ao contrário do ferro não hémico de origem
gulação do metabolismo fosfo-cálcico, promo- vegetal, o ferro hémico da carne tem uma boa
vendo a absorção de cálcio para uma adequada biodisponibilidade sendo por isso uma boa fonte
mineralização óssea, evitando o raquitismo e a alimentar deste mineral. A deficiência de ferro
osteomalácia. Recentemente muitos estudos su- constitui a carência nutricional isolada mais fre-
gerem o envolvimento desta vitamina numa série quente a nível mundial e a principal causa de
de outras funções. anemia na infância. Vários estudos demonstraram
Tendo em conta que a exposição solar direta uma associação entre anemia sideropénica, atraso
está desaconselhada durante o primeiro ano de de desenvolvimento psicomotor e alterações de
vida e que poucos alimentos são naturalmente ricos comportamento a longo prazo. O elevado ritmo
nesta vitamina, recomenda-se desde os primeiros de crescimento e desenvolvimento cognitivo que
dias de vida, a suplementação oral com 400UI por ocorre nos primeiros três anos de vida, tornam as
dia de vitamina D durante o primeiro ano. crianças desta faixa etária particularmente sensí-
O Flúor é um mineral ubíquo, encontrado veis a esta carência. São considerados fatores de
no solo, na água, nas plantas e animais e por isso risco para défice de ferro e anemia sideropénica: o
um constituinte normal da alimentação. Tem um baixo peso de nascimento, a clampagem precoce
papel fundamental na prevenção e tratamento do cordão umbilical, o género masculino, o baixo
da cárie dentária da criança e do adulto. Esta consumo de alimentos ricos em ferro durante a
ação é essencialmente tópica, após a erupção diversificação alimentar, a ingestão excessiva de
do dente, fortalecendo o esmalte e inibindo a leite vaca e o baixo nível socioeconómico. De en-
atividade da placa bacteriana. Em Portugal, não tre as medidas recomendadas para prevenir esta
está recomendada a suplementação sistémica com carência salienta-se a necessidade de suplementar
flúor mas sim a sua aplicação tópica logo após com ferro (1 a 2mg/Kg/dia) os recém-nascidos com
a erupção do primeiro dente. Os pais devem ser baixo peso de nascimento (≤2.500g) durante os
aconselhados a escovar os dentes duas vezes ao primeiros seis meses de vida. A partir dessa idade
dia, uma das quais antes de deitar. Devem usar passa a ser fundamental a diversificação alimentar
um dentífrico fluoretado com 1000-1500 ppm com um alimento rico em ferro como por exemplo
numa gaze, dedeira ou escova macia, de tamanho a carne, não dar leite vaca durante o primeiro
adequado à boca da criança. A quantidade de ano e restringir o seu consumo até máximo de
dentífrico depende da idade da criança, desde 500ml/dia até aos três anos. Os prematuros com
a erupção até aos seis anos deve ser igual ao peso de nascimento ≤1.800g necessitarão de do-
tamanho da unha do quinto dedo da criança e a ses ligeiramente superiores (2 a 3mg/Kg/dia) que
partir daí cerca de um centímetro. poderão manter durante o primeiro ano de vida.
O Ferro apesar de ser um oligoelemento Exceto em situações clinicas particulares,
ou seja constitui menos de 0,01% do peso cor- não estão recomendados quaisquer outros su-
poral, é um importante componente de inúmeras plementos, nomeadamente polivitamínicos, nem
CAPÍTULO 10. ALIMENTAÇÃO E SUPLEMENTOS 169
para o prematuro após as 40 semanas de idade “Não comemos nutrientes, comemos ali-
corrigida, mas sim uma alimentação adequada. mentos e estes devem ser nutricionalmente
adequados à idade da criança, mas tam-
10.3 Factos a reter bém bem conservados, bem cozinhados,
variados e apetecíveis e, logo que possível,
• Sempre que possível o aleitamento materno consumidos em família, pois a alimenta-
deverá manter-se em exclusivo até próxi- ção dos humanos é também um ritual de
mo dos seis meses e durante o primeiro sociabilização, uma experiência de comu-
ano de vida. nicação.”
• Alguns lactentes poderão necessitar de ali-
mentos complementares ao leite materno Gonçalo Cordeiro-Ferreira. Os principais er-
antes dos seis meses (mas não antes dos ros alimentares. Guerra A (ed): Alimentação
quatro) de modo a garantir um cresci- e Nutrição no Primeiros Anos de Vida.7º
mento e neurodesenvolvimento normais. Workshop Nestlé Nutrition.
• A diversificação alimentar deve ser funda-
mentada na evidência científica existente,
mas respeitando as particularidades da 10.4 EXEMPLOS PRÁTICOS
criança e da família.
• A ordem de introdução dos outros alimentos, 1 – Calendário alimentar possível para di-
sempre por colher, deve ser flexível e escalo- versificação aos quatro meses:
nada; a complexidade e a textura das refeições
devem progredir em paralelo com o desenvol- Idade Tipo e número de
refeições, em média
vimento de competências alimentares.
< 4 meses Leite a pedido, de preferência
• A exposição oral aos alimentos de forma materno, 8 a 12
regular e gradual favorece a sua tole- 4 meses 1 de caldo de legumes ou 1 de farinha
rância. 4 a 6 de leite
5 meses 1 de puré com carne + fruta
• As dietas vegetarianas restritivas devem
1 de farinha
ser evitadas durante o primeiro ano vida. 3 a 5 de leite
• É fundamental promover alimentação sau- 7 meses 2 de puré com carne ou peixe + fruta
1 de farinha
dável em todas as consultas de vigilância
2 a 4 de leite
de saúde infantil e juvenil.
8 meses alimentos mais grumosos: carne/
• Está recomentada a suplementação universal peixe, batata/massa/arroz cozidos
esmagados à parte com legumes
com vitamina D durante o primeiro ano de
≥ 9 meses 2 de puré com carne ou peixe
vida, a suplementação com ferro ao lactente
ou gema de ovo + fruta
com baixo peso de nascimento e a aplica- 1 de farinha ou iogurte natural
2 a 3 de leite
ção tópica de dentífrico fluoretado desde
12 meses integrar na alimentação da família
a erupção do primeiro dente.
170 MÓNICA OLIVA
11
Raquel Soares
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_11
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 173
da idade e do estadio pubertário. Na terceira população de referência, e pese menos que 85%
fase, o período pubertário, há um novo incre- desses mesmos rapazes.
mento da velocidade de crescimento, dependente As curvas de crescimento da Organização
sobretudo dos esteroides sexuais (androgénios Mundial de Saúde (OMS) são atualmente con-
e estrogénios) produzidos pelas gónadas, que sideradas as mais adequadas para monitorizar
amplificam a ação também importante do eixo o crescimento e o estado de saúde infantil, in-
HC-IGF-1. O surto de crescimento inicia-se nas tegrando o Boletim de Saúde Infantil e Juvenil
raparigas tipicamente por volta dos dez anos e (BSIJ) português desde 2013. Foram construídas
nos rapazes pelos 12. O fim do processo de cres- a partir de dados antropométricos de crianças
cimento dá-se com o encerramento das epífises, saudáveis de seis países de diferentes continen-
que resulta da ação dos esteroides sexuais nas tes, sob aleitamento materno (LM) exclusivo ou
cartilagens de crescimento. predominante até aos quatro ou seis meses e
Quando ocorre uma perturbação em algum beneficiando de condições ambientais conside-
dos fatores descritos, podemos observar altera- radas ótimas. Para a sua construção foi conside-
ções no crescimento, que assumem maior rele- rada a avaliação longitudinal de crianças desde
vância se ocorrerem em períodos de crescimento o nascimento até aos 24 meses, e transversal
rápido, como é compreensível. dos 18 aos 71 meses. As curvas anteriormente
utilizadas, e ainda presentes nos BSIJ das crianças
Curvas de crescimento nascidas antes de 2013 (as do Nacional Center
A maioria das crianças saudáveis cresce den- for Health Statistics (NCHS) desde 1981 e as do
tro de um padrão previsível de peso, estatura e Center for Disease Control and Prevention (CDC)
perímetro craniano. O conhecimento dos padrões desde 2000), são consideradas menos adequadas,
normais de crescimento permite a identificação sobretudo por terem sido construídas com base
precoce de desvios patológicos e evita investiga- em lactentes alimentados predominantemente
ções desnecessárias em crianças com variantes da com fórmulas lácteas nos primeiros meses de vida.
normalidade. O crescimento humano normal é As curvas da OMS, mais ajustadas ao crescimento
pulsátil, alternando surtos de progressão rápida real, identificam menor número de crianças com
com outros mais lentos. peso abaixo do P5 no primeiro ano de vida, já que
Para avaliar o crescimento de determinada os lactentes alimentados com LM exclusivo têm
criança comparamo-lo, habitualmente, com cur- ganho ponderal mais elevado nos primeiros três
vas padrão de percentis. O percentil (P) indica a meses, mas desaceleram a seguir. Por outro lado,
posição (ordenação) de cada criança em relação coloca um número superior de crianças acima do
à população padrão, expectavelmente saudável. P 95, o que pode representar uma vantagem, pela
Por exemplo num menino de 18 meses cujo peso identificação mais precoce de excesso de peso,
esteja no P15, estima-se que pese o mesmo ou problema atual de elevada prevalência.
mais que 15% dos meninos da mesma idade da As curvas da OMS integradas no BSIJ (Anexo
1) contemplam apenas os percentis 3, 15, 50, 85 e
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 175
97, que correspondem aproximadamente a -2, -1, 0, do período de recuperação do crescimento nestas
+1 e +2 desvio-padrão (DP) da média populacional. crianças ser variável (depende da idade gestacional,
Com base nos valores antropométricos da OMS, o do peso nascimento, da raça/etnicidade e de outros
CDC construiu curvas até aos 24 meses distribuídos fatores), geralmente corrige-se o peso até aos
por mais percentis: P2, P5, P10, P25, P50, P75, P90, P95, 24 meses, a estatura até aos 40 meses e o pe-
P 98 (curvas CDC-OMS acessíveis em:http://www. rímetro craniano até aos 18 meses. É necessário
cdc.gov/growthcharts/who_charts.htm#The%20 lembrar que, durante as primeiras semanas de vida,
WHO%20Growth%20Charts). Estas curvas, per- a velocidade de crescimento de um prematuro é
mitem uma deteção mais facilitada de desvios do superior à de um bebé que nasceu de termo.
crescimento, pelo que será com base nestas que Para determinadas patologias, tais como
apresentaremos posteriormente algumas definições. trissomia 21, síndrome de Turner, síndrome de
Klinefelter e acondroplasia, estão disponíveis cur-
De notar, que na avaliação inicial do cres- vas específicas que permitem melhor avaliação do
cimento em bebés ex-prematuros, até às 50 padrão de crescimento destes e de outros grupos
semanas de idade pós-concecional, são recomen- com especificidades genéticas.
dadas as curvas de Fenton 2013 (acessíveis em
http://www.ucalgary.ca/fenton/2013chart). Estas Avaliação do crescimento
permitem também avaliar o crescimento intrau- As medidas antropométricas mais usa-
terino (pré-natal) com base na somatometria ao das para avaliação do crescimento são o
nascimento. Após as 50 semanas, deverão ser peso, a estatura (comprimento e altura) e o
utilizadas as curvas da OMS, pois permitem a com- perímetro craniano. A sua determinação deve
paração com crianças de termo saudáveis. Nestes ser sempre efetuada de forma correta (verificar
casos é necessário fazer o ajuste dos parâmetros se foi correta) e os valores registados no BSIJ e
de crescimento calculando a idade corrigida: nas curvas de percentis relativas à idade e sexo.
Para uma correta interpretação, é indispen-
Idade corrigida = sável conhecer os limites da normalidade, identi-
idade cronológica - [40 semanas - idade gestacional] ficando os períodos de maior velocidade de cres-
cimento. Apresentam-se no quadro 1 algumas
Por exemplo, um ex-prematuro que nasceu regras práticas de interpretação do crescimento
com 32 semanas de idade gestacional, aos 10 sem recurso a tabelas de percentis.
meses de idade cronológica, terá uma idade cor-
rigida de 8 meses. Peso
Um RN de termo pode perder até 7 a 10%
Podem assim traçar-se duas curvas paralelas, do peso de nascimento (PN) nos primeiros dias
uma referente à idade cronológica e outra à idade de vida. Nos RN normais a perda de peso cessa
corrigida. Apesar de não ser consensual até que pelo quinto dia, recuperando habitualmente o
idade se deve fazer a correção, e a taxa e duração PN pelos 10 a 14 dias de vida.
176 RAQUEL SOARES
Quadro 1. Regras práticas e valores médios de evolução do peso, comprimento/estatura e perímetro craniano.
Segue-se um aumento médio diário entre 20 devendo contudo ser cuidadosamente investiga-
a 30g por dia, durante os primeiros seis meses. dos os casos em que o aumento ponderal seja
São considerados anormais aumentos inferiores inferior a 1Kg por ano.
a 20g por dia no primeiro semestre, e inferiores a Para determinação correta do peso, é
10g por dia no segundo. O crescimento ponderal necessário que a criança pequena esteja des-
passa depois a ser progressivamente mais lento, pida e sem fralda, considerando uma variação
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 177
c) Para medir o perímetro craniano deve ser usada uma b) A altura deve ser avaliada com a criança em posição ortos-
fita métrica mole e inextensível, de largura máxima de 1cm, tática, com os braços relaxados ao lado do corpo, descalça,
passando por cima da arcada supraciliar e pela protuberância calcanhares bem apoiados no chão, dedos apontados para
occipital externa. Deve ser calculada a média de três avalia- fora formando um ângulo de 60º, cabeça mantida com olhar
ções, considerando aproximação em mm. para a frente com bordos inferiores das órbitas no mesmo
plano horizontal dos meatos auditivos externos, com a cabeça,
omoplatas, nádegas e calcanhares a tocar a superfície do esta-
diómetro, preferencialmente após uma inspiração forçada.
Figura 1. Processo de medição do comprimento (a), altura (b) e perímetro craniano (c).
de 10g; nas outras, manter apenas a roupa uma etapa de crescimento rápido. Para o cresci-
interior e a variação a considerar é de 100g. mento linear, os dois primeiros anos de vida são
um período de ajuste de acordo com o potencial
Estatura genético, podendo encontrar-se uma mudança
Ao nascimento, um RN de termo mede em de percentil em quase dois terços das crianças
média 50cm, seguindo-se nos primeiros anos, normais (considerando os percentis 5, 10, 25,
178 RAQUEL SOARES
Caso 1: rapaz de 9 meses que mede 70 cm (P15) (A); Caso 2: rapaz de 18 meses que mede 76 cm (P3) (A);
o seu peso ideal será 8 kg (P15) (B); a sua idade estatural é de 13 meses (B);
sendo o seu peso real de 6 Kg (< P3) (C), se o seu peso real for de 9 kg, o seu peso para a
verifica-se que tem 75% do peso ideal. idade cronológica está no P3 (C),
mas o peso para a estatura (idade estatural) estará
no P15 (D).
Quadro 2. Causas possíveis de má progressão ponderal de acordo com o mecanismo fisiopatológico subjacente.
Aporte inadequado
- Ingestão alimentar inadequada (quantidade insuficiente, negligência ou maus tratos, preparação incorreta do leite de
fórmula, alimentos inadequados à idade, excesso de sumos de fruta, alimentação restritiva);
- Técnica alimentar inadequada;
- Hipogalactia materna;
- Doença do refluxo gastroesofágico;
- Problemas mecânicos (fenda do palato, obstrução nasal, hipertrofia dos adenoides, lesões dentárias);
- Disfunção da sucção ou deglutição (patologia neurológica ou neuromuscular, distúrbios da motilidade esofágica);
- Conflito alimentar;
- Perturbação do comportamento alimentar;
- Anorexia secundária a doença cardiopulmonar, infeção crónica, imunodeficiência, obstipação;
- Perturbação mental do cuidador;
- Problemas económicos.
Absorção inadequada ou aumento das perdas
- Malbsorção (fibrose quística, doença celíaca, alergia às proteínas do leite de vaca ou outra, doença inflamatória intestinal,
intolerância à lactose, giardíase);
- Doença hepática ou biliar;
- Patologia renal crónica;
- Vómitos (gastroenterite infeciosa, hipertensão intracraniana, insuficiência suprarrenal);
- Diarreia infeciosa;
- Obstrução trato gastrointestinal (estenose hipertrófica do piloro, malrotação, hérnia);
- Síndrome do intestino curto.
Aumento das necessidades ou utilização inadequada
- Hipertiroidismo;
- Neoplasias;
- Doença inflamatória intestinal;
- Doença crónica sistémica (artrite idiopática juvenil);
- Infeção crónica ou recorrente (infeção urinária, tuberculose, toxoplasmose);
-Problemas metabólicos crónicos (diabetes mellitus, doenças hereditárias do metabolismo, insuficiência suprarrenal);
- Insuficiência respiratória crónica (fibrose quística, displasia broncopulmonar);
- Síndrome de apneia obstrutiva do sono;
- Doença cardíaca congénita ou adquirida.
o crescimento por um período de pelo me- Para identificar a causa de MPP, é necessário
nos seis meses, devendo considerar-se MPP perceber que a nutrição adequada depende do
se houver: i) perda de peso, após um perío- balanço entre o aporte fornecido, a absorção e a
do de crescimento normal; ii) diminuição da utilização dos nutrientes, as perdas urinárias ou
velocidade de crescimento ponderal, isto é, gastrointestinais e as necessidades metabólicas
mudança de canal de crescimento; iii) aumento do organismo (Quadro 2).
ponderal lento, muito inferior ao P 5; e iv) peso A história clínica terá de se iniciar por
e estatura proporcionais, mas muito inferiores uma correta e exaustiva avaliação da alimentação
à estatura alvo. atual (ingesta): qualidade, quantidade, forma de
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 185
Figura 5. MPP por doença celíaca. Menina com quadro clínico de diarreia e MPP; ao exame objetivo apresentava distensão ab-
dominal importante, massas musculares pobres e pregas de desnutrição nadegueiras; recuperação ponderal após dieta sem glúten.
preparação, horário, ambiente em que é feita a com um percurso invulgar que podem indicar
refeição e atitude perante os alimentos (apeti- imunodeficiência.
te, recusa, preferências e restrições alimentares, A avaliação do neurodesenvolvimento e
relação com texturas, suspeita de alergias ou ve- comportamento é também fundamental. Défices
getarianismo). Depois perceber se existem perdas neurológicos, mesmo que ligeiros, podem inter-
anómalas através do conhecimento da tolerância ferir com a capacidade da criança se alimentar.
alimentar (vómitos ou regurgitações) e das ca- Não poderá ser esquecida também a carate-
raterísticas das dejeções e micções. Questionar rização do ambiente psicossocial em que a criança
a presença de sintomas gerais, como febre e está inserida. Situações de pobreza, abuso de
astenia, e efetuar revisão dos vários aparelhos álcool e drogas, depressão parental, conflitos fa-
e sistemas que permitirá identificar sinais ou miliares, estilo parental mal adaptativo, são causas
sintomas orientadores de doença orgânica es- importantes de aporte nutricional desajustado.
pecífica subjacente. No exame objetivo deverão ser pesquisa-
Nos antecedentes pessoais, não esquecer dos sinais de desnutrição, como diminuição das
fatores de risco para MPP como a prematuridade, massas musculares e das pregas glúteas, ou de
RCIU e a exposição intrauterina a etanol ou fárma- défices específicos como, e.g. palidez cutâneo-
cos, bem como doenças crónicas existentes que -mucosa e cabelo quebradiço na anemia. Sinais
possam afetar a ingestão, absorção ou consumo da doença de base poderão estar presentes,
excessivo de energia, ou infeções frequentes ou como a distensão abdominal nas doenças com
186 RAQUEL SOARES
malabsorção como é o caso da doença celíaca O tratamento da MPP deverá ser sempre
(Figura 5), alterações da auscultação pulmonar específico, dependendo da causa identificada.
na fibrose quística, dismorfismos típicos em al- Se após análise da trajetória do crescimento
gumas doenças genéticas e lesões sugestivas de ponderal, não parece haver anomalias e o exame
negligência ou maus tratos. objetivo for normal, a família deve ser tranquiliza-
da, evitando a alimentação forçada ou a prescri-
A investigação com exames complemen- ção indiscriminada de suplementos nutricionais ou
tares raramente revela uma causa orgânica na vitamínicos. É necessário reforçar os princípios de
ausência de história clínica e sinais no exame ob- uma dieta saudável e comportamento alimentar
jetivo sugestivos, pelo que esta deve ser sempre adequado: qualidade e variedade dos alimentos,
sequencial e orientada. No entanto, nas crianças respeito pelo horário das refeições e pelo apeti-
com clínica subtil, em que os dados obtidos não te, não substituir refeições, nomeadamente com
são claramente orientadores, poder-se-á consi- produtos lácteos, e evitar conflitos à refeição.
derar na primeira abordagem a realização do No outro extremo dos problemas de peso
hemograma, que permite rastrear anemia, temos o excesso de peso e a obesidade, cuja
da velocidade de sedimentação e proteína prevalência tem vindo a aumentar em todo o
C reativa, como elementos rastreadores de mundo condicionando o aparecimento em idade
infeção ou inflamação, e ainda da sumária pediátrica de doenças outrora só encontradas no
de urina e urocultura, para excluir infeção adulto, como a hipertensão, insulinorresistência,
urinária ou doença renal. A investigação mais diabetes e dislipidémia. As definições, de acordo
dirigida deverá ser ponderada caso a caso po- com a OMS, apresentam-se no quadro 3.
dendo incluir avaliação sérica da ureia, creati-
nina, ionograma, albumina, proteínas totais, Quadro 3: Definições de excesso de peso e obesidade,
nas curvas da OMS.
enzimas hepáticas (que permitem avaliar função
renal e hepática, mas também o estado nutri-
cional), gasometria (para excluir alteração do Percentil do IMC
equilíbrio ácido base, particularmente acidose), < 5 anos 5 a 19 anos
doseamento da Imunoglobulina A total e anti- Excesso de peso >P 97 >P 85
corpos antitransglutaminase e antigliadina (para Obesidade >P 99 >P 97
à estatura alvo familiar na fase de crescimento, colheita de sangue após jejum de 12 horas, para
embora a estatura final venha a ser a esperada. determinação do perfil lipídico (colesterol total,
Sobretudo nas raparigas, pode observar-se tam- lipoproteína de baixa densidade - LDL, lipopro-
bém uma idade óssea aumentada e um desen- teína de alta densidade - HDL, triglicerídeos), da
volvimento mais precoce da puberdade. glicose e insulina e das transaminases (transami-
Uma história clínica completa nestes doentes nase glutâmico-oxalacética - TGO, transaminase
com excesso de peso ou obesidade, deve incluir glutâmico-pirúvica - TGP).
descrição da evolução do crescimento, inquéri- Outros exames deverão ser solicitados caso
to alimentar (refeições, qualidade, quantidade, a caso mediante suspeita clínica de causas secun-
ambiente), atividade física (desporto escolar e dárias, sendo estas bastante mais raras (1 a 5%).
extracurricular, tempos livres, tempo de exposição Deve suspeitar-se de síndromes genéticos (e.g.
ao ecrã), hábitos de sono, história psicossocial síndrome de Prader-Willi) quando estão presen-
(imagem corporal, rendimento escolar, bullying, tes dismorfismos típicos, atraso desenvolvimento
contexto familiar) e uma revisão da semiologia por psicomotor e baixa estatura, ou de síndromes de
sistemas orgânicos que permita identificar even- obesidade monogénica (e.g. mutação do recetor
tuais comorbilidades. Nos antecedentes pessoais 4 da melanocortina ou défice de leptina) se iden-
valorizar fatores de risco para obesidade com a tificada obesidade grave de início precoce. As
diabetes gestacional, baixo peso de nascimento crianças com distúrbios endócrinos (e.g. hipotiroi-
ou macrossomia ao nascer. É reconhecido que dismo, síndrome de Cushing, défice de hormona
influências nutricionais e ambientais em períodos de crescimento) apresentam geralmente baixa
críticos do crescimento, nomeadamente desde estatura ou desaceleração do crescimento linear
a gestação até aos dois anos de vida, podem e hipogonadismo. Alguns fármacos poderão tam-
ter efeitos permanentes na predisposição para bém ser responsáveis por aumento de peso (e.g.
o desenvolvimento de obesidade (programação corticoides, antipsicóticos, valproato de sódio).
metabólica). Nos antecedentes familiares avaliar O tratamento da obesidade primária
a presença de obesidade, diabetes mellitus tipo baseia-se na prescrição de hábitos saudáveis ali-
2 (DM2), hipertensão arterial (HTA), dislipidémia mentares e de atividade física. É fundamental
ou doença cardiovascular precoce. O exame ob- estabelecer um plano alimentar individualizado,
jetivo permite identificar HTA, acantose nigricans, equilibrado, com refeições frequentes, limitan-
estrias, adipomastia e hepatomegália. do o tamanho das porções, excluindo alimentos
As principais comorbilidades associadas à de elevada densidade energética (e.g. bebidas
obesidade em pediatria são as psicológicas (bai- açucaradas, doces, snacks). Devem limitar-se as
xa autoestima, isolamento social e depressão), atividades sedentárias (o tempo de televisão ou
as endócrinas (insulinorresistência ou na obesi- de videojogos deve ser inferior a duas horas por
dade grave a DM2), a HTA, a dislipidémia e a dia) e incluir no plano exercício físico programa-
esteato-hepatite não alcoólica. Desta forma, na do extraescolar, bem como outras atividades na
avaliação analítica destes doentes, deve constar a rotina diária, como caminhadas em família.
188 RAQUEL SOARES
Uma vez que a criança está em crescimento, puberdade e o surto de crescimento a ele asso-
o objetivo da intervenção pode não ser a perda ciado varia de família para família. O padrão de
de peso, mas tão-somente a sua manutenção, maturação nos pais deve ser sempre averiguado:
sobretudo na criança mais jovem, o que levará saber a idade de menarca na mãe e a idade de
só por si à normalização do IMC. aparecimento de caracteres sexuais secundários
no pai. Nas crianças com ACC verifica-se uma
11.2.2.2 Anomalias da estatura velocidade de crescimento estatural mais lenta
A estatura final da criança é fortemente con- que o normal nos dois a três primeiros anos
dicionada pela genética, havendo uma probabili- de vida, normalizando depois até à puberdade,
dade de 95% de se situar na zona percentual da mas seguindo um “corredor” mais baixo que o
estatura dos seus pais. previsto pela EAF, em regra nunca muito inferior
As principais causas de baixa estatura após ao P 5. Próximo da idade da puberdade, verifica-
os dois primeiros anos de vida são variantes do -se uma aceleração de crescimento e maturação
crescimento normal: baixa estatura familiar dos seus pares, o que faz notar ainda mais a
(BEF) e atraso constitucional do crescimento diferença de estatura da criança em questão.
e puberdade (ACC). Ao avaliar a criança nesta fase identifica-se uma
Filhos de pais baixos serão mais baixos que idade óssea em atraso. A puberdade com o seu
a média da população, mas terão velocidades de surto de crescimento vem a ocorrer dois a três
crescimento normais e serão perfeitamente saudá- anos mais tarde, fazendo com que a estatura
veis. Falamos de BEF quando a estatura é baixa, se aproxime da geneticamente programada. Na
mas adequada ao padrão da família (Figura 6). maioria dos casos, este padrão de crescimento
descrito é retratado num dos pais ou familiares
Também o ritmo de crescimento está próximos pelo que, após exclusão de patologia,
geneticamente determinado. O momento da a família deverá ser tranquilizada.
BEF ACC
História familiar Um ou mais familiares com BE Maturação tardia
Início Baixa estatura e baixo peso ao nascimento Estatura e peso normais ao nascer
Desaceleração simultânea do peso e da estatura
entre os 3 – 6 meses e os 18 – 24 meses
Velocidade de crescimento Normal Normal
Idade óssea Adequada à idade cronológica Inferior à idade cronológica
Adequada à idade estatural
Puberdade Em idade normal Diferida dois a três anos
Estatura final Baixa, mas adequada ao potencial genético Normal
190 RAQUEL SOARES
Baixa estatura define-se como o compri- relação entre o peso e a estatura, a somatometria
mento ou estatura inferior a dois desvios padrão ao nascimento, o padrão de crescimento dos pais
(2DP) abaixo da média para a idade e o sexo. Na e irmãos, a presença de dismorfismos e a avaliação
prática devemos considerar que poderá existir das proporções corporais.
anomalia do crescimento linear quando se ob-
serva: i) crescimento estatural inferior ao P3; ii) A evidência de dismorfismos pode orientar
crescimento estatural muito inferior à estatura para a pesquisa de síndromes específicos que
alvo familiar (<1,5DP); iii) cruzamento inferior de cursam com baixa estatura como são exemplos os
dois percentis major na estatura; iv) velocidade síndromes de Turner, de Noonan, de Prader-Willi
de crescimento: entre os dois e os quatro anos e a trissomia 21, entre outros. No síndrome de
inferior a 5,5 cm/ano, entre os quatro e os seis Turner as caraterísticas fenotípicas típicas
anos inferior a 5 cm/ano, e entre os seis anos e nem sempre estão presentes, pelo que o ca-
a puberdade inferior a 4 cm/ano nos rapazes e riótipo deve ser estudado em todos os casos
inferior a 4,5 cm/ano nas raparigas. de baixa estatura no sexo feminino.
Nestes casos deverá ser sempre cuidado- A avaliação da somatometria ao nascimento
samente avaliada a trajetória de crescimento, a permite identificar crianças com RCIU. Naquelas
RCIU: restrição de crescimento intra-uterino; IMC: índice de massa corporal. IRC: insuficiência renal crónica; DII: doença
inflamatória intestinal; HC: hormona de crescimento. (Adaptado de Crescimento normal e patológico - Manual prático de avaliação
— Fontoura M, Fonseca M, Moura LS. Crescimento normal e patológico. Manual prático de avaliação. Apoio Pfizer)
em que não se verifica um crescimento de re- de crescimento e um atraso da idade óssea. Na sua
cuperação estatural até aos quatro anos, deve suspeita deverá ser doseada a IGF-1 e a IGFBP-3,
ser efetuada uma investigação para exclusão de que estarão abaixo dos valores normais. A confir-
outras causas de baixa estatura, já que, na sua mação é feita através de um teste de estimulação
ausência, estas serão candidatas a terapêutica da HC efetuado apenas em centros especializados
com hormona de crescimento. e o tratamento passa pela administração da HC.
O cálculo do IMC é útil no estudo de baixa Outras indicações para terapêutica com HC, estão
estatura. Se for baixo orienta para a presença de registadas no quadro 5. O excesso de cortisol,
doença prolongada com compromisso nutricional; quer por aumento de produção endógena pela
se for normal ou elevado sugere uma doença glândula suprarrenal (síndrome de Cushing), quer
endócrina. na corticoterapia de longa duração, determina
A malnutrição carencial ou secundária a também diminuição da velocidade de crescimento
doença orgânica condiciona inicialmente apenas estatural, verificando-se associadamente aumento
a diminuição do peso, com redução da relação ponderal.
peso/estatura. Se a malnutrição se mantiver,
a síntese de IGF-1 é inibida afetando deste Quadro 5. Indicações para terapêutica com hormona
de crescimento.
modo a velocidade de crescimento estatu-
ral e a idade óssea. São exemplos clássicos a
doença celíaca, a doença inflamatória intestinal, - RCIU com ausência de crescimento de recuperação
a insuficiência renal crónica ou até défices graves até aos quatro anos
- Défice de HC
de aporte, este último mais frequente em países
- Insuficiência renal crónica
subdesenvolvidos. A doença celíaca, porém, - síndrome de Turner
pode ter como forma de apresentação a baixa - síndrome de Prader Willi
estatura isolada.
As causas endócrinas são responsáveis por
apenas 1 a 5% das baixas estaturas, sendo mais Na baixa estatura desproporcionada,
comuns o hipotiroidismo, o défice de hormona incluem-se as displasias ósseas e as alterações
de crescimento e o síndrome de Cushing. do metabolismo fosfo-cálcio. As displasias ósseas
No hipotiroidismo adquirido (tiroidite de são um grupo heterogéneo de doenças que se
Hashimoto), verifica-se baixa estatura com peso caraterizam por anomalias da cartilagem e cres-
normal ou elevado, a que se associa uma redução cimento ósseo, resultando em baixa estatura com
na velocidade de crescimento com cruzamento desproporção entre tronco, membros e crânio.
inferior de percentis e idade óssea muito dimi- O seu estudo inclui a realização de radiografias
nuída relativamente à cronológica (Figura 6). A do esqueleto e investigação genética e molecular.
nível laboratorial a TSH está elevada e a T4 livre São exemplos a acondroplasia que se apresenta
diminuída. No défice de hormona de crescimento logo ao nascimento com membros curtos, ma-
verifica-se também uma diminuição da velocidade crocefalia, base nasal achatada, mão em tridente
192 RAQUEL SOARES
e lordose lombar; e a osteogénese imperfeita saúde primários ou pelo pediatra assistente, de-
que também se caracteriza por membros curtos vendo haver referenciação para a endocrinologia
e macrocefalia, mas que associa hiperlaxidez li- pediátrica sempre que seja considerada necessária
gamentar, extremidades deformadas, escoliose, uma orientação mais detalhada.
escleróticas azuis e evidência radiológica de múl- A referenciação à consulta por estatura
tiplas fraturas e calos ósseos. Nestes casos de anormalmente elevada é muito menos comum.
baixa estatura desproporcionada pode também Alta estatura define-se como comprimento
suspeitar-se de raquitismo quando está presente ou estatura superior a 2DP acima da média
hipotonia, encurvamento dos membros inferiores ou superior ao P 97, para a idade e o sexo. Será
e bossas frontais. considerada uma variante do normal se o seu
Na suspeita de doença orgânica em crianças valor se encontrar dentro da estatura alvo pre-
com baixa estatura, os exames complementares vista (alta estatura familiar) ou de acordo com o
deverão ser efetuados de forma criteriosa de acor- padrão de maturação da família. A obesidade,
do com os dados clínicos (Quadro 6). como já foi descrito, pode condicionar tam-
A avaliação inicial das situações de baixa bém uma estatura elevada, sendo a sua causa
estatura deverá ser efetuada nos cuidados de nutricional. São causas menos frequentes as
Caso 1: Macrocefalia familiar em criança com Caso 2: Microcefalia em criança com atraso
exame neurológico e desenvolvimento normais, de desenvolvimento psicomotor.
pai com PC > 2SD.
As curvas da OMS são atualmente consi- Condições médicas que perturbem o es-
deradas as mais adequadas para monitorizar o tado de saúde de uma criança, podem ter re-
crescimento. percussões no crescimento. Quando o processo
Peso, estatura, PC e IMC deverão ser siste- do crescimento não evolui dentro dos padrões
maticamente avaliados nas consultas de vigilância previstos, é importante realizar anamnese diri-
de saúde infantil e juvenil e analisados de acordo gida e detalhada, avaliação conjunta das traje-
com a sua progressão nas curvas de percentis tórias do peso, estatura e perímetro craniano e
para a idade e sexo. um cuidadoso exame objetivo, para distinguir
A dentição primária surge entre os seis e os variantes do normal de situações patológicas.
dez meses e a definitiva inicia-se por volta dos Na base de uma MPP reside uma nutrição
seis anos, havendo variação individual. desadequada que pode ser explicada por: aporte
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 195
A N E XO 1
CURVAS DE CRESCIMENTO DA OMS
PROGRAMA NACIONAL DE SAÚDE INFANTIL E JUVENIL 2013
12
Guiomar Oliveira
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_12
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 213
A compreensão da base, e dos fatores deter- Alfred Binet e Terman Simon, criaram o
minantes do desenvolvimento psicomotor (DPM) conceito de quociente de inteligência (QI), pos-
e comportamento infantil, bem como o seu modo teriormente aplicável por outros autores ao de-
de avaliação e intervenção tem sido objeto de senvolvimento psicomotor - quociente de de-
múltiplas teorias. senvolvimento (QD) nas idades pré, e escolar.
Este valor quantitativo, resulta da razão entre
Da vasta literatura, destaco alguns pontos o nível da idade mental (funcional) do indivíduo
que considero de grande utilidade para o conhe- (obtida através de avaliação formal com provas
cimento do tema e para a prática clínica. padronizados das funções desenvolvimentais e
cognitivas) e a sua idade cronológica. Na gene-
Arnold Gesell, da Universidade de Yale, ralidade das provas, os valores normais destes
considerou o DPM e o comportamento como quocientes variam entre a média de 100 (idade
214 GUIOMAR OLIVEIRA
mental sobreponível à cronológica), e dois desvios em que o professor/mentor, passo a passo, vai
padrão (DP-15); 100±30. conduzindo e modelando estratégias até o seu
“aprendiz” alcançar o seu potencial máximo.
Jean Piaget, estudou as bases biológicas do
desenvolvimento infantil e postulou que a criança Maria Montessori, deu-nos conta de perío-
aprende através de uma interação ativa com o seu dos sensíveis do desenvolvimento, como corres-
meio ambiente, antecipando as teorias atuais do pondendo a fases etárias da criança em que as
active learning, e do construtivismo. Descreveu aprendizagens de determinadas capacidades são
estádios neurodesenvolvimentais, sequenciais, cla- naturais – janelas de oportunidade; como é o
rificando o modo como a criança compreende e caso da aquisição da linguagem nos primeiros
interfere no mundo em que habita. anos de vida.
perda de oportunidade. Deve-se reter que o abordagem desta área: vigilância versus rastreio
meio ambiente, o “ensino” ou modelos de apren- do DPM e do comportamento.
dizagem, condicionam a arquitetura cerebral e a
sua função, e que o binómio Nature/Nurture A monitorização ou vigilância, “develop-
é bidirecional e indissociável. mental surveillance”, carateriza-se por um proces-
so contínuo e flexível de observações qualificadas,
Concluindo, a aprendizagem e a aquisição nas consultas de rotina, sem ter que recorrer a
progressiva das diferentes capacidades psicomo- testes. Deve-se ouvir as preocupações dos pais
toras e comportamentais depende de processos acerca do desenvolvimento e comportamento da
neuromaturacionais que decorrem de uma com- criança, colher a história clínica, observar cuida-
plexa e natural interação, bidirecional, entre fato- dosamente a criança neste contexto, identificar
res biológicos e ambientais. O equilíbrio dinâmico fatores de risco ou de proteção e proceder ao
entre eles, pode ser ameaçado por múltiplas cau- registo sucessivo dos dados. Poucos minutos serão
sas, ou por uma combinação entre elas, tornando necessários se tudo estiver bem.
a criança doente ou com essa vulnerabilidade. Já rastreio, “screening”, subentende a apli-
cação de um teste breve, desenhado para identi-
ficar problemas específicos desta área, em idades
12. 2 DESCRIÇÃO DO TEMA consideradas ideais (chave) para o efeito.
i) Avaliar o DPM e o comportamento decom- Sabemos que, na criança normal, apesar das
posto em quatro áreas fundamentais, enormes variações interindividuais, o neurode-
que correspondem a atividades especifi- senvolvimento evolui de um modo sequencial e
camente humanas (figura 1): uniforme nas diferentes áreas que o compõem.
1.Postura e motricidade global - pos- Como exemplos: a criança segura a cabeça, senta-
tura ereta e marcha. -se e só depois se sustenta de pé; compreende vá-
2.Visão e motricidade fína - visuomo- rias palavras, mais tarde verbaliza-as e só então diz
tricidade/coordenação óculo-manual/ frases; o desenho da cruz antecede o do quadra-
visão-manipulação. do; comer com as mãos precede o uso da colher.
3.Audição e linguagem. A aquisição de diferentes capacidades de um
4.Comportamento e adaptação social modo não sequencial – desvios do desen-
– atividades da vida diária/autonomia, volvimento – é habitualmente sinal precoce de
relações sociais, emoção e compor- patologia. É o caso da criança que parece ter
tamento. muita força nos membros inferiores, mas ainda
ii) Realizar avaliações seriadas, na mesma não segura a cabeça (hipotonia axial com espas-
criança, de modo a registar o perfil se- ticidade dos membros inferiores); e outra que é
quencial e evolutivo, a “velocidade de capaz de verbalizar marcas de carros e os números
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 217
Figura 2. Atividades características dos diversos escalões etários (ver detalhes no texto).
(adaptado Henrique Carmona da Mota, Lições de Pediatria, 2002).
das portas, mas não responde a ordens simples Certamente que qualquer função em défice, a seu
(como te chamas? Quantos anos tens?). A reter tempo interferirá negativamente na aquisição das
que a compreensão linguística (linguagem receti- capacidades globais. O DPM só para facilitação
va) deve ser superior à fala (linguagem expressiva). de análise se divide em áreas, na verdade estão
interligadas.
A velocidade em adquirir conhecimentos
e competências é relativamente uniforme nos Quando a velocidade de desenvolvimento
diferentes domínios, embora cada criança possa global é uniforme, mas anormalmente lenta,
ter áreas fortes e fracas (precoce na motricidade afastando-se entre dois ou mais DP abaixo da
global, tardia na linguagem). No entanto, dife- média, pelo menos em duas áreas, consideramos
renças significativas entre áreas (superior a 15%), estar perante uma situação clínica de atraso do
com velocidades de aquisição não uniformes desenvolvimento psicomotor global (ADPMG).
– dissociação entre áreas – sugerem a presença
de patologia específica (atraso somente na área A progressão em todas as áreas é indispen-
da linguagem – surdez ou distúrbio da comuni- sável para que a criança atinja total autonomia
cação e interação social; atraso só na área moto- pessoal (tomar conta dela), doméstica (ser au-
ra – paralisia cerebral, doença neuromuscular?). tónoma em casa) e social (independência total).
218 GUIOMAR OLIVEIRA
Todavia, nem todas têm o mesmo valor preditivo fase pré e escolar, as provas do grafismo (figuras
relativamente à capacidade futura de desempenho geométricas), o desenho da figura humana, a
intelectual e social. construção com cubos, a reprodução de padrões
no espaço e a resolução de problemas apresentam
A postura e motricidade global, depende uma boa correlação com as capacidades cogniti-
essencialmente da maturação e mielinização do vas, sendo esta área a base das provas formais de
sistema nervoso, de um sistema motor e sensorial avaliação da inteligência não-verbal (realização).
funcionante e pouco do estímulo do meio am-
biente. Tem pouca correlação com a inteligência A audição e linguagem, é a função que
futura, embora o atraso nas aquisições motoras mais se correlaciona com o nível intelectual futuro.
possa ser um sinal precoce de disfunção neu- Para que uma criança fale, tem que ouvir falar,
ronal global. Desde o primeiro escalão, repre- saber e querer comunicar, compreender e in-
sentado pelo recém-nascido que, em decúbito terpretar os símbolos sonoros-fonemas e produzir
ventral levantou pela primeira vez a cabeça, até palavras (processamento central), e ter uma infra-
à perfeita coordenação necessária para a corrida -estrutura neuro muscular que lhe permita falar
e o salto, cada período etário tem o seu desem- (emitir palavras). A avaliação da linguagem usada
penho motor pré-programado de acordo com a no sentido lato de comunicação, não deve iniciar-
neuromaturação. -se apenas com o aparecimento das primeiras
palavras; antes existem os comportamentos pré-
A visão e motricidade fina – visuomo- -linguisticos (o alerta, o sorriso social, a atenção
tricidade, tem por base a visão, a coordenação conjunta – olhar alternado entre o bebé e o adulto
óculo-manual (motricidade fina) e a sua integra- para o foco de interesse, o galreio com vocalização
ção a nível cognitivo para resolver problemas, e reciproca, o imitar, o apontar – protoimperativo
desempenhar tarefas. Esta é uma das áreas que para pedir e protodeclarativo para mostrar…)
mais se correlaciona com a capacidade intelectual. que são considerados atualmente, verdadeiros
O atraso persistente nas aquisições deste âmbito marcadores neuromaturacionais da cognição so-
deve levantar a suspeita de défice intelectual, uma cial humana. A demora no aparecimento destes
vez excluídos problemas de acuidade visual signi- marcadores da comunicação e interação social
ficativos, ou motores (mais raros). Neste domínio, pode ser o primeiro sinal de uma perturbação
nos primeiros meses de vida é sobretudo a inte- do espetro do autismo. Atraso, em simultâneo,
ração visual que é avaliada. O bebé vê e observa nas aquisições da linguagem e visuomotoras
o que o rodeia (fixa a luz e pessoas, sobretudo sugere uma perturbação do desenvolvimento
faces - olhos). No segundo semestre já é capaz intelectual ou défice intelectual.
de manipular objetos enquanto os observa; no
final do primeiro ano resolve problemas (capaz de O comportamento e adaptação social, e
procurar um objeto escondido, ou arranjar modo as aquisições das atividades da vida diária-auto-
de tirar um objeto dum frasco). Mais tarde na nomia, ao contrário das competências motoras,
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 219
dependem largamente de fatores ambientais 13, 90% até aos 15 e 97.5% até aos 18 meses
como seja a expectativa social, o treino e os mo- (considerada a idade limite da normalidade; 2DP
delos educacionais. Embora sendo necessários para além da idade média).
pré-requisitos cognitivos e motores para estas
aquisições, são sobretudo fatores culturais que Uma nota importante, nas crianças que
condicionam padrões comportamentais de auto- nasceram prematuras a idade a considerar na
nomia alimentar e de higiene. A sua avaliação, avaliação do DPM deve ser a idade corrigida,
deve ser interpretada no contexto global do de- até fazerem dois anos. Um bebé com 9 meses de
senvolvimento tendo sempre em conta o que é idade cronológica, que nasceu de 28 semanas de
exigido à criança, no seu meio. idade gestacional em vez das 40 [40 – 28 (tem
menos 12 semanas – 3 meses)], o DPM esperado
Antes de avançarmos para a avaliação dos deve ser o de 6 meses.
marcos do DPM, em idades consideradas chave,
vamos rever alguns conceitos estatísticos neces- Conhecer as idades médias de aquisição de
sários na interpretação dos resultados. Avalia-se competências consideradas “marcos do neuro-
a criança e compara-se o seu desempenho com desenvolvimento”, e a sua variabilidade, é uma
o de populações padrão estudadas para o efeito. matéria indispensável para avaliar uma criança.
A idade média (mediana) de aquisição de De seguida abordaremos este conteúdo.
determinada capacidade é aquela em que metade
da população padrão, dessa idade, adquiriu essa Avaliação do neurodesenvolvimento
competência. Por exemplo, a idade média em que e interpretação dos resultados
se espera que uma criança ande sem apoio é aos Em qualquer consulta deve ser feita a monitori-
12 meses de idade cronológica, o que significa zação do DPM e do comportamento, já se abordou
que até aos 12 meses, 50% dos lactentes adquire esse conceito previamente. O médico deve ter o
a marcha. cuidado de assinalar na página do desenvolvi-
mento do Boletim de Saúde Infantil e Juvenil
As idades limite de aquisição de determi- (BSIJ) a idade em que são adquiridas as competên-
nada competência situam-se ao nível de dois DP cias assinaladas (e.g. sorri; anda sem apoio; aponta
afastados da média. Ou seja, uma criança com com o indicador…) tal como regista os percentis
desenvolvimento precoce adquirirá determinada do crescimento e outros dados clínicos de relevo.
competência antes da idade considerada média Este registo é de extrema relevância.
para o efeito. Se for depois, e ultrapassar a idade Numa criança de idade pré-escolar (3 a 4 anos)
correspondente a dois DP da média, a suspeita que recorra à consulta por queixas de compor-
de existir um problema deve ser colocada, e essa tamento disruptivo (birras, agitação psicomoto-
hipótese estudada. Tendo como exemplo a idade ra) ou por atraso de linguagem, o conhecimento
de aquisição da marcha sem apoio: 25% fazem-no prévio da evolução do DPM é essencial. De facto,
até aos 11 meses, 50% até aos 12, 75% até aos os pais raramente recordam com precisão as idades
220 GUIOMAR OLIVEIRA
das aquisições básicas do DPM, e seria de extrema síndromes dismórficos) são evidentes nos pri-
importância conhecê-las, uma vez que são verda- meiros anos de vida. Têm habitualmente uma
deiros marcos neuromaturacionais como é o caso repercussão marcada no desenvolvimento mo-
da idade em que a criança andou, apontou e iniciou tor, sensorial e nas capacidades pré-linguísticas.
as primeiras palavras, de entre outras competên- Na idade pré-escolar (entre os dois e os cinco
cias. Se se tratar de um caso de atraso de desen- anos), manifestam-se as formas moderadas das
volvimento Psicomotor Global (ADPMG), o que é patologias anteriores. Nesta fase, os défices têm
provável, seria de esperar que estas competências sobretudo reflexo nas aquisições da linguagem,
tivessem surgido tardiamente. Desconhecendo esta na capacidade gráfica (grafismo em atraso) e de
informação a história torna-se mais difícil. resolver problemas, e no comportamento que se
torna disruptivo (agitação psicomotora, irritabi-
O rastreio do DPM deve ser feito em idades lidade, birras, desafio e oposição). A perturba-
chave, ou sempre que houver queixas deste foro. ção de espetro do autismo (diferentes níveis de
gravidade), apresenta-se claramente nesta idade
Uma nota prévia neste ponto. Quando por uma combinação de défices na comunicação
os défices na aquisição das competências psico- e nas relações sociais (entre pares e adultos – a
motoras são graves, são os pais que se queixam criança não olha, não pede, não partilha), que se
ao médico, logo nos primeiros meses. Nos casos associa a comportamento rígido com tendência
em que as dificuldades são discretas, estas podem para interesses e atividades repetitivas e desvian-
passar despercebidas aos pais, e aos profissionais tes (abanar as mãos, rodopiar objetos, fixação no
de saúde e da educação. Neste contexto é que os movimento repetido – máquina de lavar roupa,
rastreios têm justificação de existir. Na verdade, fascínio por botões de comandos, fios, números,
se só recorrermos à monitorização, cerca de dois letras, marcas…). As perturbações específicas do
terços dos casos de anomalias ligeiras e mesmo desenvolvimento da linguagem (muito comuns)
moderadas não são detetadas. também se diagnosticam nesta idade. Nestes ca-
Só mais tardiamente na idade escolar, as sos só o potencial linguístico está afetado, todas
crianças serão referenciadas ao médico por difi- as outras competências estarão intactas.
culdades de aprendizagem escolar ou por pro-
blemas de comportamento desajustado como a Teoricamente poderíamos considerar que
perturbação de hiperatividade e défice de atenção numa população infantil bem seguida todas as
e a recusa escolar. Salientar que a intervenção patologias do neurodesenvolvimento congénitas
precoce e específica dirigida ao problema de (a grande maioria) deveriam ser conhecidas antes
cada criança não deve ser protelada. da entrada para o primeiro ciclo escolar. No pe-
ríodo de idade escolar, somente as dificuldades
Os problemas de neurodesenvolvimento específicas de aprendizagem escolar e défices
graves (défice intelectual grave, autismo grave, muito discretos de funções cognitivas superiores
paralisia cerebral, surdez profunda, cegueira e (memória de trabalho, função executiva, atenção,
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 221
o tórax. Salta alternadamente num e nou- da boa sensibilidade (85%) e especificidade (93%),
tro pé. apresenta um valor preditivo positivo baixo o que
2.Constrói escada de 10 cubos. Copia o qua- leva a ter alguma atenção nos casos com resulta-
drado e o triângulo. Conta cinco dedos do positivo. Não se deve portanto, prescindir da
de uma mão e nomeia quatro cores. observação da criança e do esclarecimento das
3. Sabe o nome completo, a idade, morada respostas dadas, aliás como é de boa prática mé-
e habitualmente a data de nascimento. dica antes de referenciação. A cotação da escala
Tem vocabulário fluente e articulação ge- é muito rápida (dois minutos). São considerados
ralmente correta – pode haver confusão resultados positivos quando há falha em pelo
nalguns sons. menos três das 23 perguntas, ou em duas das seis
4. Veste-se sozinha. Lava as mãos e a cara consideradas críticas (acessível em: http://www.
e limpa-se sozinha. Escolhe os ami- dgs.pt/?cr=24430 , Programa Nacional de Saúde
gos. Compreende as regras do jogo. Infantil e Juvenil, páginas 91 e 92).
Comportamento cada vez mais coope-
rante. Face a uma suspeita de atraso ou desvio
nas aquisições do desenvolvimento psicomotor
Sinais de alarme há que ter em conta que os limites do normal
4 a 5 anos são muito amplos e que o “comportamento” e
Linguagem incompreensível, não mantém a “colaboração” da criança durante uma prova
conversa, não compreende, não faz perguntas. poderão ser afetados por inúmeros fatores.
Problemas do comportamento (birras excessivas; Por tudo isto, antes de alarmar a família,
comportamento repetitivo; agitação psicomotora). convém repetir a avaliação num prazo razoável
Tem estrabismo ou suspeita de défice visual. (um a três meses, se for na idade pré-escolar,
no lactente o intervalo de verificação tem que
Para rastreio da perturbação do espectro ser inferior). Por vezes assiste-se a recuperações
do autismo, propõe-se a aplicação de um breve notáveis.
questionário Modified Checklist for Autism in
Toddlers (M-CHAT) aos 18 e/ou 24 meses que A perda (regressão) de aquisições previa-
se encontra disponível em (http://mchatscreen. mente adquiridas, se confirmada e mantida, deve
com/wp-content /uploads/2015/05/M-CHAT_ ser sempre interpretada como um sinal de doença
Portuguese2.pdf), assim como a respetiva cota- do neurodesenvolvimento.
ção. É um questionário muito simples composto
de 23 perguntas (resposta sim ou não) que de- Perante um atraso nas aquisições do DPM,
vem ser preenchidos pelos pais/cuidadores, não global, ou de uma área em particular, há que
necessitando de qualquer preparação prévia. A tentar interpretar onde reside o problema. De um
validade desta escala tem sido bem estudada no modo simplista podemos raciocinar de acordo
grupo etário entre os 16 e os 30 meses. Apesar com o esquema da figura 3.
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 227
13
Núria Madureira
e Maria Helena Estevão
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_13
CAPÍTULO 13. SONO NORMAL E PROBLEMAS DE SONO 235
as fases de sono REM e NREM, durando os ci- infantil e juvenil. Os horários de sono devem
clos de sono cerca de 50 minutos. Estes ciclos ser regulares e adequados à idade da criança,
vão-se tornando mais longos à medida que a respeitando a variabilidade individual. As ses-
criança cresce, até atingir os 90 a 110 minutos. tas devem também ser adaptadas à idade e ao
Com o crescimento a duração total de sono nas desenvolvimento da criança e, quando já só há
24 horas vai diminuindo bem como a proporção uma sesta, esta deve ser realizada no início da
de sono REM e inversamente há um aumento de tarde e durar no máximo duas horas. Antes de
sono NREM. dormir devem ser evitadas bebidas estimulantes,
No quadro 1 descrevem-se as principais ca- refeições pesadas ou exercício físico. A rotina
raterísticas do sono em função da idade. de ir para a cama deve ser consistente, de curta
Durante o primeiro ano de vida é funda- duração e com atividades calmas e agradáveis.
mental estabelecer medidas de higiene do sono. O ambiente em que se dorme também é impor-
O primeiro passo é garantir adequada educação tante, não devendo existir televisão, computador
parenteral nas consultas de vigilância de saúde ou telémovel no quarto.
Idade Sono
0 - 2 meses Duração de sono - 10 a 19 / 24 horas.
Períodos de sono alternados com uma a duas horas de vigília, determinados pela fome
e saciedade e sem padrão diurno/noturno.
Padrões de sono irregulares.
2 - 12 meses Duração de sono - 12 a 13 / 24 horas.
Período de sono noturno de nove a dez horas. Diminuição progressiva do número de
sestas diurnas, de quatro a duas.
Desenvolve-se a capacidade de adormecer sozinho.
1 - 3 anos Duração de sono - 11 a 13 / 24 horas.
Passa a haver apenas uma sesta durante o dia (habitualmente por volta dos 18 meses).
3 - 6 anos Duração de sono – 9 a 10 /24 horas.
Em idade variável desaparecem as sestas. Cerca de 26% das crianças de quatro anos
e 15% das de cinco anos necessita de sesta.
6 - 12 anos Duração de sono – 9 a 10 /24 horas.
Adolescência Duração de sono - 8 a 9 / 24 horas.
Com a puberdade há um atraso fisiológico na produção da melatonina que condiciona
o início do sono cerca de duas horas mais tarde do que é habitual. Os adolescentes
têm tendência a estar mais alerta à noite e a acordar mais tarde.
com a presença dos pais e após alguns metade da noite, há memória para o episódio, e as
minutos continua a dormir; crianças acordam completamente, estando assus-
3. Despertares confusionais (entre os seis tadas e com medo de voltar a dormir. Nestes casos
meses e os sete anos) - fenómenos de iní- é importante tranquilizar e transmitir segurança.
cio lento e duração mais prolongada, em Os pesadelos são frequentemente confundidos
que não há alterações comportamentais, com terrores noturnos, as características que os
respostas autonómicas ou componente distinguem são apresentadas no quadro 3.
motor relevante; a criança tem um ar
assustado, com olhar vago e um discurso Insónias
confuso e lentificado. A insónia define-se como a dificuldade no
início do sono, na sua consolidação ou qualidade.
Na abordagem das parassónias do NREM é Pode surgir em qualquer idade e ter múltiplos
importante tratar fatores precipitantes e tran- fatores desencadeantes.
quilizar a família, explicando que a única in- Nos primeiros anos de vida, importa des-
tervenção deve ser garantir a segurança e que tacar a insónia comportamental da infância,
a criança/adolescente não deve ser acordado. em que há uma perturbação do funcionamento
Se as características não forem típicas (vários diário da criança ou da família associada ao pro-
episódios por noite, horário não habitual, mo- blema de sono.
vimentos estereotipados, posturas distónicas No subtipo sleep-onset association, a
ou memória lúcida para o episódio) deve ser criança (seis meses a três anos) tem dificulda-
equacionado o diagnóstico diferencial com cri- de em adormecer sozinha e apresenta múltiplos
ses epiléticas. despertares durante a noite. A partir dos seis
meses, os lactentes têm capacidade para ador-
As parassónias do período REM mais fre- mecer sozinhos. Se aprenderem a adormecer em
quentes são os pesadelos. Ocorrem na segunda determinadas condições (como, por exemplo,
CAPÍTULO 13. SONO NORMAL E PROBLEMAS DE SONO 239
Devem ser excluídas doenças que cursem atraso na produção da melatonina que ocorre
com dor ou necessidade de tomar medicação na puberdade. Tipicamente estes adolescentes
durante a noite, psiquiátricas (como a depres- adormecem tarde e se for possível acordam tarde,
são) e distúrbios do sono como a perturbação sendo, nestas circunstâncias, a duração de sono
respiratória obstrutiva do sono ou o síndrome normal. Clinicamente há insónia inicial (quando
de pernas inquietas. A privação de sono pode o adolescente tenta adormecer a uma hora so-
também estar relacionada com má higiene do cialmente aceitável mas que não corresponde à
sono - horários irregulares, horário tardio de ir altura em que tem sono) e dificuldade em acordar
dormir e/ou presença e uso de televisão, compu- de manhã (se tiver que ser num horário não de-
tador ou telemóvel. sejado) podendo condicionar absentismo escolar,
sonolência diurna excessiva com sestas durante o
O síndrome de atraso de fase é um dis- dia, dificuldades escolares e perturbações com-
túrbio do ritmo circadiano que causa insónia e portamentais ou do humor. No tratamento do
sonolência excessiva diurna na adolescência. A sua síndrome de atraso de fase é fundamental a
etiologia ainda não é completamente conhecida. motivação do adolescente e da família e podem
Parece haver uma anomalia na regulação do ciclo ser utilizados ajustes de horários de ir dormir e
sono-vigília, endógena e/ou condicionada por acordar, exposição à luz ou administração de me-
fatores ambientais, e que está relacionada com latonina, figura 3.
CAPÍTULO 13. SONO NORMAL E PROBLEMAS DE SONO 241
Na hipersónia verdadeira existe uma dimi- comportamental e fármacos para controlar a so-
nuição da capacidade de alerta, com sonolência nolência (como o metilfenidato) e a cataplexia
excessiva diurna e sono noturno prolongado. São (como a venlafaxina).
situações raras, cujo exemplo é a narcolepsia.
A narcolepsia é uma perturbação crónica do Perturbação respiratória
SNC com desregulação do ciclo sono-vigília e obstrutiva do sono
intrusão do sono REM na vigília. Manifesta-se
habitualmente na segunda década de vida, mas Na perturbação respiratória obstrutiva
pode surgir mais cedo. A etiologia é desconhecida, do sono existe uma diminuição da patência da via
sendo o mecanismo fisiopatológico mais provável aérea superior que, em conjunto com a hipotonia
a destruição autoimune de células do hipotála- muscular do sono, condiciona um aumento da
mo produtoras de hipocretina, em indivíduos resistência à entrada do fluxo aéreo. Em idade
com suscetibilidade genética (presença do alelo pediátrica, os fatores de risco mais frequentes são
HLA DQB1*06:02). Clinicamente há sonolência a hipertrofia adenoamigdalina (causa principal),
excessiva diurna e, frequentemente mais tarde, a obesidade, a prematuridade, as malformações
cataplexia, alucinações hipnagógicas (ao adorme- craniofaciais ou os dismorfismos faciais minor, a
cer) ou hipnopômpicas (ao acordar) e paralisia do rinite alérgica, a laringomalácia e o refluxo-gas-
sono. A cataplexia, paradigmática da narcolep- tro-esofágico (RGE). A perturbação respiratória
sia, é uma redução súbita e reversível do tónus obstrutiva do sono pode apresentar-se com uma
muscular, desencadeada por um estímulo como a gravidade em crescendo que vai desde o ressonar
gargalhada ou o susto. Pode haver dificuldades de primário, passando pelo síndrome de resistência
aprendizagem, perturbações do comportamento das vias aéreas superiores (SRVAS) e síndrome de
ou do humor. Nas crianças, é difícil equacionar hipoventilação obstrutiva (SHO), culminando no
a hipótese de narcolepsia, já que pode apenas síndrome de apneia obstrutiva do sono (SAOS).
existir sonolência excessiva diurna, e esta ser in- Ressonar é o sintoma cardinal do quadro
terpretada como necessidade fisiológica de sesta obstrutivo respiratório, e consiste no ruído resul-
ou preguiça da criança. O diagnóstico assenta na tante da vibração da orofaringe decorrente da tur-
realização de um estudo poligráfico do sono para bulência do fluxo aéreo na presença do aumento
excluir outras causas de sonolência, e de um teste da resistência na via aérea superior. Quando não
de latência múltipla do sono em que se avalia o há outros eventos respiratórios associados fala-se
grau de sonolência diurna e a ocorrência no iní- em ressonar primário.
cio do sono da fase REM. É efetuada também a No outro extremo do espectro clínico está o
pesquisa do HLA DQB1*06:02 que está presente SAOS. Nesta situação, o aumento da resistência
em 90% dos casos mas é inespecífico. Pode ser condiciona episódios de diminuição (hipopneias)
necessário efetuar o doseamento da hipocretina-1 ou ausência (apneias) do fluxo aéreo, havendo
no líquido cefalorraquidiano, que está diminuída. esforço respiratório e hipoxémia e/ou hipercapnia.
Do tratamento fazem parte estratégias de terapia Os episódios terminam em microdespertares, em
242 NÚRIA MADUREIRA E MARIA HELENA ESTEVÃO
que o aumento do tónus dos músculos dilatadores mais pequenas, problemas de comportamento
da faringe permite o restabelecimento do fluxo ou dificuldades de aprendizagem), metabólicas
aéreo. Durante a noite, repetem-se as hipopneias/ (síndrome metabólico) ou cardiovasculares (hiper-
apneias e microdespertares condicionando frag- tensão arterial, hipertensão pulmonar ou even-
mentação do sono. tualmente cor pulmonale). Em crianças pequenas,
No SRVAS, o aumento da resistência ao flu- pode também existir má progressão ponderal,
xo aéreo condiciona esforço respiratório e micro- relacionada com o aumento do consumo ener-
despertares, sem que haja apneias, hipopneias, gético decorrente do esforço respiratório, com a
hipoxémia ou hipercapnia. No SHO, existe uma diminuição do apetite e com alterações na pro-
obstrução parcial do fluxo de ar, com esforço dução do factor de crescimento - insuline-like
respiratório, sem apneias ou hipopneias, mas com growth factor.
hipercapnia.
O exame objetivo pode ser normal, nomea-
O SAOS, o SRVAS e o SHO, quadro 4, po- damente se a criança for observada durante o dia.
dem levar a complicações neurocomportamentais Se a causa for a hipertrofia adenoamigdalina, a
(sonolência diurna ou hiperatividade em crianças criança apresenta habitualmente fácies adenoideu
com respiração de predomínio oral, palato alto e em idade pediátrica é recente mas estima-se que
ogivado e amígdalas hipertrofiadas. A avaliação possa afetar cerca de 2% das crianças/adoles-
da morfologia facial é fundamental, devendo ser centes a partir dos oito anos. Nestas idades, o
procurados dismorfismos faciais minor (micro/ diagnóstico é dificultado pela descrição pouco
retrognatia, hipoplasia do andar médio da face, clara dos sintomas, podendo as crianças refe-
desvio do septo nasal) ou sinais de patologia rir dor ou haver apenas resistência em ir para a
alérgica como a prega nasal ou a hipertrofia dos cama, insónia inicial ou sono agitado. A história
cornetos nasais. familiar é frequentemente positiva e o fator de
Se a clínica for típica e ao exame objetivo risco mais comumente associado é a diminuição
forem evidentes sinais de hipertrofia adenoamig- das reservas de ferro. Se a ferritina for inferior a
dalina, o diagnóstico do SAOS é clínico. Noutras 50 ng/ml, está indicado a administração de ferro
circunstâncias, pode ser necessário recorrer ao (6 mg/kg/dia) durante seis meses.
estudo poligráfico do sono. Este exame é rea-
lizado durante o sono noturno e consiste no Os distúrbios rítmicos do movimento
registo, análise e interpretação de diferentes caraterizam-se pela ocorrência de movimentos
variáveis neurofisiológicas, cardio-respiratórias estereotipados, rítmicos e repetitivos da cabeça
e comportamentais durante o sono. Durante o (headbanging ou headrolling) ou do corpo (bo-
estudo é possível identificar esforço respiratório, dyrocking) ao adormecer e/ou durante os micro-
apneias, hipopneias, hipoxémia, hipercapnia ou despertares do sono. Estes movimentos são um
fragmentação do sono. mecanismo de auto-adormecimento que, habi-
O tratamento depende da causa subjacente. tualmente, desaparece com o crescimento (90%
Como a hipertrofia adenoamigdalina é a principal regride até aos quatro anos). Deve ser explicado
causa, a abordagem terapêutica mais frequente aos pais a sua benignidade, recomendadas me-
é a adenoamigdalectomia. A redução do peso, o didas de higiene do sono e de segurança.
tratamento da rinite alérgica ou do RGE podem
também estar indicados. Em alguns casos pode O bruxismo ou “ranger” dos doentes é uma
ser necessário recorrer à ventilação não invasiva. entidade que, com frequência, preocupa os pais.
Consiste em movimentos repetitivos involuntários
Distúrbios do movimento e não funcionais, que habitualmente desapare-
relacionados com o sono cem com a erupção da dentição definitiva. A sua
O síndrome de pernas inquietas é um fisiopatologia não é completamente conhecida,
distúrbio neurológico em que ocorrem sensações descrevendo-se fatores de risco como má oclu-
desconfortáveis nos membros inferiores acompa- são dentária, rinite alérgica, ansiedade, paralisia
nhadas por urgência, praticamente irresistível, cerebral ou história familiar positiva. Se ocorrer
em mexer as pernas. Estes sintomas agravam- frequentemente pode causar erosão dentária,
-se à noite e com a inatividade e aliviam com o dores faciais ou na articulação temporomandibu-
movimento. O reconhecimento desta entidade lar, cefaleias e eventualmente sintomas diurnos
244 NÚRIA MADUREIRA E MARIA HELENA ESTEVÃO
relacionados com má qualidade do sono. Nestes O síndrome de pernas inquietas pode ocorrer
casos a criança/adolescente deve ser referenciada em crianças/adolescentes e cursar com queixas
para tratamento dentário. de difícil caracterização nos membros inferiores,
insónia inicial e sono agitado.
Os distúrbios rítmicos do movimento são
13.3 FACTOS A RETER situações benignas e desaparecem com o cres-
cimento.
A higiene do sono é fundamental e deve ser A hiperatividade pode ser uma manifestação
promovida desde o período neonatal. de défice de sono na criança mais pequena e,
A avaliação do sono faz parte das consultas por outro lado, cerca de um quarto das crianças
de vigilância de saúde infantil e juvenil. com esta perturbação tem problemas de sono.
As parassónias são situações benignas e Ressonar não é normal; a sua investigação
transitórias, sendo fundamental a tranquilização etiológica e abordagem terapêutica precoce são
dos pais e a instituição de medidas de higiene fundamentais.
de sono. A criança com síndrome de apneia obstrutiva
A insónia comportamental da infância pode do sono grave pode ter uma observação normal
causar resistência em ir dormir, dificuldade em durante o dia.
adormecer e/ou os múltiplos acordares noturnos; A perturbação respiratória do sono na infân-
medidas de higiene de sono e estratégias de te- cia pode constituir um fator de risco cardiovascular
rapia comportamental adequadas à criança e à para a vida adulta.
família são fundamentais. A presença de atraso de crescimento inexpli-
A hipersónia verdadeira é rara; as principais cado, alterações do comportamento/hiperativida-
causas de sonolência excessiva diurna estão rela- de, dificuldades de aprendizagem/concentração
cionadas com privação ou perturbação do sono devem evocar a presença de um problema de
noturno. sono.
Capítulo 14.
Adolescência
14
Paulo Fonseca
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_14
CAPÍTULO 14. ADOLESCÊNCIA 247
GHRH - Growth Hormone-Releasing Hormone; GH - Growth Hormone; IGF-1 - Insulin-like growth factor 1; IGFBP-3 - Insulin-like growth
factor-binding protein 3; GnRH - Gonadotropin-Releasing Hormone; FSH - Follicle-Stimulating Hormone; LH - Luteinizing Hormone
Quadro 1. Modificações hormonais pubertárias e suas principais ações (adaptado Medicina de la Adolescencia
Atención Integral. 2ª edición. Ergon, 2012)
250 PAULO FONSECA
sobre a energia existente e a armazenada no cor- 11,5 anos e no sexo masculino pelos 13,5 anos,
po. Tem vindo a ser associada à hipótese de servir não só numa idade cronológica diferente, mas
como sinal metabólico para o início da puberdade. também numa fase de maturação sexual diferente
As principais modificações hormonais pubertárias, (estádio de Tanner II a III na rapariga e III a IV no
e as suas ações essenciais, encontram-se resumidas rapaz - estádios de Tanner descritos no quadro 2).
na Quadro 1. O rápido crescimento constatado durante a
puberdade é, carateristicamente, desarmonioso
- Crescimento e maturação biológica e desproporcionado, o que contribui para que
durante a puberdade: o adolescente possa apresentar dificuldades na
O início e a velocidade de progressão das aceitação destas modificações corporais. Cresce
alterações físicas características da puberdade em primeiro lugar o segmento inferior do corpo,
têm grande variabilidade inter-individual, com iniciando-se pelas extremidades dos membros e
uma tendência consistente para o início progres- com evolução no sentido proximal.
sivamente mais precoce (cerca de três a quatro O encerramento das epífises ocorre mais pre-
meses por cada decénio). cocemente no sexo feminino, entre os 16 e os 17
Em média, a rapariga inicia a puberdade anos, enquanto no sexo masculino ocorre pelos
pelos 11,2 anos (9 a 13,4) e o rapaz pelos 11,6 21, permitindo desta forma ao rapaz adquirir um
anos (9,5 a 13,5), sendo de esperar que decorra ganho estatural superior. Outra diferença signifi-
por um período de cerca de 50 a 60 meses. cativa entre os sexos, a nível somático, é o facto
Em ambos os sexos existe uma progressão de a rapariga atingir maior diâmetro pélvico que
sequencial das alterações físicas características da o rapaz, podendo constatar-se a relação inversa
puberdade, nomeadamente no que diz respeito no que diz respeito ao diâmetro biacromial.
ao crescimento somático, modificação da com- A avaliação do crescimento durante a pu-
posição corporal e maturação sexual. berdade está dependente da avaliação do peso
O crescimento constatado durante este perío- e da estatura, avaliando o peso para a idade, a
do da vida depende essencialmente da GH e dos estatura para a idade e o peso para a estatura
fatores de crescimento a ela associados (IGF-1 e (índice de massa corporal), comparando-os com
IGFPB-3), embora outras hormonas estejam também as curvas de crescimento existentes para o efeito.
implicadas, como é o caso das hormonas sexuais. Podem ser comparadas as medições indi-
Trata-se do segundo pico de maior veloci- viduais com medições já existentes dos pais e
dade de crescimento estatural do indivíduo, com irmãos, podendo ser determinada a estatura alvo
uma duração média de 24 a 36 meses (superior no familiar (em centímetros), obtida pela soma das
sexo masculino), podendo durante este período estaturas de ambos os pais, em cm, à qual se
atingir-se cerca de 20 a 25% da estatura final (20 a adiciona 13 no sexo masculino e se subtrai 13 no
23 cm para a rapariga e 24 a 27 cm para o rapaz) feminino, dividindo o total por dois.
e cerca de 40% da densidade mineral óssea do Deve ser avaliada a velocidade de crescimento
adulto. No sexo feminino ocorre, em média, pelos (em centímetros/ano), obtida através da diferença,
CAPÍTULO 14. ADOLESCÊNCIA 251
em cm, entre duas medições (em tempos diferen- dos 11 anos, diferindo do rapaz em cerca um
tes), dividida pelo intervalo, em meses, entre essas ano, o que conduz também a diferenças a nível
duas medições, multiplicando o total por 12. do desempenho psicossocial.
Pode ser necessária a avaliação da idade Mas é a maturação sexual que na verdade
óssea (maturação do osso), possível através da evidencia melhor as modificações biológicas ou
análise da radiografia da mão e punho do membro físicas características da puberdade. No sexo fe-
não dominante, comparada com imagens padrão minino, a modificação corporal que traduz o início
existentes em atlas para o efeito (i.e. Greulich e da maturação sexual é o aumento do volume
Pyle; Tanner e Whitehouse). da glândula mamária, vulgarmente denominada
Durante a puberdade, são também espe- de botão mamário, resultado das modificações
radas modificações da composição corporal do hormonais já descritas. A evolução progressiva da
indivíduo, ocorrendo um pico de ganho ponderal maturação biológica feminina, caraterizada pelo
que poderá atingir até os 50% do peso do adulto. progressivo desenvolvimento do tecido mamário,
Existindo, também neste aspeto, diferenças entre do pelo púbico e axilar, dos órgãos genitais e
os sexos, com os rapazes a aumentarem, em mé- pelo início das menstruações (menarca), tem uma
dia, cerca de 7 a 8 Kg a mais que as raparigas. Por duração média de quatro anos (1,5 a 8 anos).
outro lado, durante a puberdade a percentagem Esta evolução pode, em parte, ser também guia-
de gordura corporal aumenta na rapariga e dimi- da através dos diversos estádios pubertários de
nui no rapaz, sabendo-se que esse acréscimo se Tanner, os quais se encontram descritos no qua-
reveste de particular importância para a normal dro 2. A menarca ocorre no estádio IV em cerca
homeostasia hormonal feminina, influenciando de 56% das raparigas e no estádio III em 20%.
de forma muito direta a idade da menarca, para A idade da sua ocorrência dependerá de fatores
a qual parece ser necessária a existência de cerca genéticos, raciais, ambientais, sócio-económicos
de 17% de gordura corporal. e da composição corporal, surgindo cerca de dois
É também esperado um maior desenvolvi- anos após o pico de velocidade de crescimento
mento do sistema cardiovascular e respiratório que caracteriza o estirão pubertário.
no rapaz, com maior capacidade vital e valores No sexo masculino, as modificações do volu-
de tensão arterial mais elevados do que na rapa- me testicular marcam o início da puberdade, sen-
riga. O hematócrito e a hemoglobina são outros do típico desta fase um volume testicular superior
bons exemplos das diferenças entre sexos, ambos ou igual a 4 ml. É de esperar, durante a puberdade
com valores superiores no rapaz, sendo que es- masculina, o progressivo desenvolvimento dos
tes sofrem modificações consideráveis também testículos, do pénis, do pelo axilar, facial, cor-
em função do grau de maturação biológica ou poral e da pilosidade púbica, bem marcados nos
pubertária. estádios de Tanner (quadro 2). Uma forma correta
No que diz respeito à maturação do SNC, o e prática para a avaliação do volume testicular,
pico médio de maturação do lobo frontal é mais será o método comparativo através do uso de um
precoce na rapariga em que ocorrendo por volta orquidómetro (figura 1).
252 PAULO FONSECA
adolescente. Esta avaliação é também importan- processo de maturação tardia da região ventro-
te para a mais correta interpretação de alguns medial do córtex pré-frontal, reconhecida como
resultados laboratoriais, e não só, para os quais essencial na capacidade do individuo em avaliar e
os valores médios, ou de referência, precisam ponderar o risco e o benefício dos seus atos; bem
ser interpretados em função do desenvolvimento como a evidência do facto de que o cérebro do
biológico, habitualmente tendo em conta os es- adolescente, perante situações de elevada tensão
tádios pubertários de Tanner, como são os casos, emocional, ativa a região límbica (responsável
já conhecidos, do hematócrito ou da fosfatase pelo comportamento emotivo) em vez das áreas
alcalina, ou até mesmo das necessidades ener- corticais executivas que ainda não se encontram
géticas basais. mielinizadas. Ou seja, é reconhecida a base or-
gânica que justifica a impulsividade e a falta de
14.2.2 Desenvolvimento psicossocial noção das consequências, que facilita os conflitos
Apesar da grande variabilidade interindivi- e os comportamentos de risco que alguns ado-
dual no que diz respeito ao desenvolvimento físi- lescentes manifestam.
co/pubertário do adolescente, este ocorre segun- Mas para melhor julgar o Dps dos ado-
do um padrão, mais ou menos bem definido, que lescentes, torna-se útil dividir este período em
permite a sua avaliação e monitorização objetivas. três fases de acordo com modelos comporta-
Já o desenvolvimento psicossocial (Dps), processa- mentais esperados relativamente a: conquista de
-se de um modo ainda mais amplo não sendo independência face aos pais; comportamento
possível determinar-lhe um modelo que possa face aos pares e códigos de conduta de grupo;
ser aplicavél a todos os adolescentes. De facto, importância e aceitação da própria imagem cor-
a transição para a idade adulta, nas suas verten- poral; e estabelecimento da identidade sexual,
tes biológica, social, emocional e intelectual, não vocacional, intelectual e moral. A adolescência
ocorre de forma contínua, uniforme ou síncrona, precoce, dos 10 aos 13 anos; adolescência
o que torna o Dps de difícil monitorização. média, dos 14 aos 17; e adolescência tardia
Embora a adolescência seja descrita, tantas dos 18 aos 21 anos.
vezes, como um período de extrema instabilidade, A adolescência precoce desenvolve-se a
quase uma “psicose normal”, na verdade a maioria par das transformações físicas típicas da puber-
(cerca de 80%) dos adolescentes não evidencia dade, sabendo-se que estas ocorrem mais cedo
problemas relevantes do comportamento, logo, nas raparigas e, por conseguinte, também as al-
os grandes conflitos neste período, nem são ha- terações emocionais e psicossociais características
bituais, nem “normais”. desta fase serão mais precoces no sexo feminino.
Por outro lado, nestes últimos anos, a neu- A adolescência média é caraterizada pela
rociência tem revolucionado a compreensão do emergência de grande variedade e intensidade
Dps do adolescente, com base em novos conheci- de sentimentos, em que é dada uma impor-
mentos acerca da fisiologia da maturação cerebral. tância muito significativa aos valores do grupo
Como exemplos, reporta-se o conhecimento do de pares, o que modela de forma objetiva os
254 PAULO FONSECA
comportamentos dos adolescentes durante esta Já no que diz respeito a patologias orgâni-
etapa. cas, “clássicas”, com expressividade na adoles-
A adolescência tardia é a etapa final do cência, e que motivam morbilidade significativa,
Dps, caraterizada pela conquista de autonomia poderemos enumerar a patologia respiratória
psicossocial e pelo reconhecimento de uma iden- (i.e. asma, rinite alérgica e outros) e o excesso
tidade própria do adolescente e adulto jovem. ponderal ou obesidade, com ou sem síndroma
Considera-se que se as duas fases anteriores metabólica associada, como sendo as patologias
decorreram de forma “saudável”, e mantendo- atualmente mais frequentes (dados da Consulta de
-se o suporte adequado da família e dos pares, Medicina do Adolescente do Hospital Pediátrico
este será um período tranquilo de transição final de Coimbra, 2012).
para as competências psicossociais características Patologias emergentes, e muito ligadas à
do adulto. adolescência, têm vindo a ganhar relevo na úl-
O quadro 3 resume as características psicos- tima década, sendo exemplos: a dependência
sociais mais relevantes da adolescência de acordo da internet, do telemóvel ou dos videojogos; os
com as suas três fases. riscos comportamentais inerentes ao uso abusivo
Ainda relativamente às caracteristicas do de chats e das redes sociais; wiite ou o polegar de
Dps do adolescente poderemos contudo listar Blackberry, pelo uso excessivo desses equipamen-
alguns “sinais de alarme”, quadro 4, que evocam tos; a vigororexia ou ortorexia, que constituem a
a hipótese de desvio patológico a este processo preocupação excessiva com a prática de exercício
de desenvolvimento, e os quais devem levar à ou com a alimentação saudável, respetivamente,
procura de uma avaliação especializada. com o intuito de manter o corpo “saudável”; os
“consumos” de peças de vestuário ou de com-
14.2.3 Patologia no adolescente ponentes eletrónicos ou de informática, de entre
outras.
É de salientar que eventuais desvios patológi- Já no que diz respeito às principais causas de
cos do Dps estão na origem das principais causas morte na adolescência em Portugal, sobreponíveis
de morbilidade e mortalidade neste grupo etário. a todo o continente europeu, são os acidentes que
Segundo dados da OMS, cerca de 10 a 20% ocupam o primeiro lugar (15.9/100.000 habitan-
dos adolescentes europeus poderão padecer de tes, entre os 15 e os 19 anos, dados do Instituto
algum tipo de transtorno do foro mental, onde Nacional de Estatística, 2008), seguidos do sui-
as síndromes depressivas adquirem grande relevo. cídio (219 suicídios entre 2001 e 2005, no grupo
Por outro lado, comportamentos desajustados e etário dos 14 aos 24 anos, dados do Núcleo de
ou patológicos de violência, consumo de subs- Estudos do Suicídio). Como é do conhecimento
tâncias psicoativas ou de índole suicidária são geral, estas são causas de morte potencialmente
muito preocupantes, podendo levar a um Dps evitáveis, pelo que os aspetos relacionados com o
desajustado do adolescente e ao sério compro- desenvolvimento biopsicossocial dos adolescentes
misso da sua saúde futura. se revestem de especial importância no sentido
CAPÍTULO 14. ADOLESCÊNCIA 255
Independência
Adolescência Menor interesse pelas atividades com os pais e maior relutância em aceitar os seus
precoce conselhos ou críticas; sem grupo de suporte alternativo (vazio emocional). Consequente
maior possibilidade de humor e comportamento instável.
Adolescência Ainda menor interesse pelas atividades no agregado familiar ou dos pais; mais tempo
média dedicado ao grupo de pares. Consequente maior frequência dos conflitos com os pais.
Adolescência Melhor integração na família e sociedade; maior importância dos valores da família e dos
tardia pais; melhor aceitação dos conselhos e orientações dos pais; autonomia nas decisões e
melhor capacidade de compromissos.
Pares e Grupo
Adolescência Amizades fortes e solitárias com pares do mesmo género, o que pode gerar dúvidas
precoce quanto à orientação sexual e possibilidade de relacionamentos homossexuais; grande
coesão aos pares e às suas condutas, podendo levar à experimentação e aos consumos.
Adolescência Maior envolvimento na subcultura do grupo, com clara adoção de códigos de conduta
média do grupo (ie:valores, vestuário, piercings, tatuagens e outros), participação em atividades
de grupo (ie:culturais, desportivas, sociais, anti-sociais, delinquentes e outras); relações
amorosas (ie:namoros, experimentação sexual predominantemente heterossexual).
Adolescência Menor interesse pelos valores do grupo; mais confortável com os seus próprios valores;
tardia maior investimento na relação com uma pessoa, permitindo uma capacidade de partilha
e de intimidade; seleção dos relacionamentos em função de interesses comuns.
Imagem corporal
Adolescência Preocupações e incertezas relativamente ao corpo e suas modificações, levando à
precoce comparação com os outros; interesse na anatomia e fisiologia sexual/genital, pelo que
as dúvidas sobre maturação e função sexual são comuns.
Adolescência Melhor aceitação do seu corpo, mas preocupação em ser ou tornar-se atraente para
média os outros; pressão social e mediática face a silhuetas “ideais” e consequente risco do
desenvolvimento de perturbações do comportamento alimentar.
Adolescência tardia Menor preocupação com o próprio corpo e imagem corporal, exceto se existirem anomalias
físicas relevantes.
Identidade
Adolescência Ganho de competências cognitivas e pensamento abstrato; adolescente sonhador com
precoce vocações idealísticas e pouco concretizáveis; desafio à autoridade; necessidade de privacidade;
emergência de sentimentos de índole sexual, com expressão na masturbação; impulsividade
e procura de gratificação imediata, o que leva aos comportamentos de risco e acidentes.
Adolescência Mais ciente dos seus próprios sentimentos, assim como dos outros; melhor capacidade
média criativa e intelectual; constatação de aspirações vocacionais prévias irrealistas e consequente
risco de baixa autoestima e depressão; sentimentos de omnipotência / imortalidade, com
consequente menor noção do perigo e maior risco de acidentes.
Adolescência tardia Consciência racional e realística; estabelecimento de metas vocacionais realistas e objetivas;
início da autonomia económica; afirmação da identidade e dos seus valores morais,
religiosos e sexuais; capacidade de compromissos.
H Casa Onde e com quem vive; Árvore genealógica; Dinâmica familiar (ie: relacionamentos,
(Home) regras, castigos e outros); Adulto de referência; Antecedentes familiares relevantes.
E Educação Escola (ou trabalho): ano, local, aproveitamento; Relacionamento com colegas e
(Education) professores; Planos futuros.
E Hábitos Padrão alimentar (ie: diário alimentar das últimas 24 horas); Imagem corporal e
alimentares sua aceitação.
(Eating habits)
A Atividades lúdicas Hobbies, desporto, grupo de pares; Amizades; Modos de diversão, saídas noturnas,
(Activities) segurança.
protegendo a intimidade do adolescente, em ga- diversas formas de alcançar tais objetivos, sen-
binete com cortina ou biombo, estando o adoles- do a abordagem do tipo HEADSS uma das mais
cente acompanhado, ou não, em função da sua conhecidas e aplicadas entre nós, podendo-se
própria vontade. Deve também ser adaptado à acrescentar itens a abordar em função da prática
idade, ao género e às circunstâncias particulares e experiência do médico.
de cada um. O HEADSS é um acrónimo em que cada uma
A avaliação biopsicossocial, não necessa- das suas letras traduz um tema de conversa a ex-
riamente realizada logo na primeira consulta plorar durante a consulta do adolescente, sendo
ou em todas as consultas, tem como principais a ordem de abordagem definida pelo médico,
objetivos detetar eventuais problemas não ver- habitualmente começando-se pelos temas mais
balizados espontaneamente e identificar fatores “fáceis” ou para os quais se sente mais “pre-
protetores e de risco de cada individuo. Existem parado”. No quadro 5 estão descritos os temas
258 PAULO FONSECA
15
Fernanda Rodrigues
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_15
CAPÍTULO 15. O PROGRAMA NACIONAL DE VACINAÇÃO E OUTRAS VACINAS 261
TB – tuberculose; VHB – vacina contra vírus da hepatite B; Hib – vacina contra Haemophilus influenzae tipo b; TDPa – vacina contra
difteria, tétano e tosse convulsa (acelular); para grávidas, uma dose em cada gravidez, administradas entre 20 a 36 semanas de ges-
tação; VIP – vacina injetável contra a poliomielite; Pn13 – vacina conjugada peumocócica 13 valente; MenC - vacina conjugada contra
Neisseria meningitidis grupo C; VASPR – vacina contra sarampo, papeira e rubéola; HPV – vacina contra Papiloma vírus humano; Td
– vacina contra tétano e difteria
com o mesmo antigénio (nova dose de vacina ou indivíduos vacinados em relação à doença
agente microbiológico), responderão rapidamente alvo. Estes estudos ocorrem em condi-
com produção de anticorpos. A primeira é desig- ções controladas, habitualmente antes
nada resposta primária e a produção de anticor- do licenciamento da vacina;
pos demora cerca de duas semanas; a segunda -fase 4: avaliação de segurança e efetivida-
designa-se por memória imunológica e é muito de, isto é de que forma a vacina prote-
mais rápida podendo a produção de anticorpos ge contra a doença alvo quando utili-
ocorrer em poucos dias. zada na vida real, fora de estudos com
A resposta imunológica à vacina é habitual- condições controladas. É influenciada
mente avaliada através dos níveis de imunoglo- pela cobertura vacinal e para algu-
bulina G (IgG) sérica embora nem sempre haja mas vacinas pela imunidade de grupo.
correlação entre este valor e a proteção conferida. A avaliação da segurança está presente em
Esta resposta depende da idade, sendo menor e todas as fases e a sua monitorização per-
de curta duração no primeiro ano de vida. Sendo manecerá enquanto a vacina for utilizada.
esta uma idade em que é mais elevado o risco de
algumas doenças infeciosas, para algumas vacinas Considera-se que houve erradicação de uma
é necessário administrar várias doses no primeiro doença quando ocorreu interrupção da sua trans-
ano de vida, seguidas de dose (s) de reforço depois missão a nível mundial, na presença de um bom
dos 12 meses. sistema de vigilância epidemiológica. Até hoje foi
Noutros casos, como por exemplo no sa- conseguida apenas a erradicação da varíola.
rampo, a vacinação não é feita no primeiro ano A eliminação de uma doença infeciosa é
de vida pela possível interferência dos anticorpos definida pela ausência de casos endémicos num
maternos (adquiridos in útero e ainda presentes) determinado país ou área geográfica por um pe-
na resposta imunológica da criança e a segun- ríodo mínimo de 12 meses, na presença de um
da dose serve para ultrapassar falências vacinais bom sistema de vigilância epidemiológica. Só pode
primárias que ocorrem em 5 a 10% das crianças. ser declarada pela OMS após a ausência de casos
O desenvolvimento de uma vacina envolve endémicos no país ou nessa área geográfica por
estudos muito prolongados no tempo, com um um período de pelo menos 36 meses. Considera-se
componente laboratorial e depois em humanos. transmissão endémica a transmissão contínua
Este inclui quatro fases: (de agente microbiológico indígena ou importado)
num determinado país ou área geográfica durante
-fase 1: avaliação de segurança e doses; um período igual ou superior a 12 meses.
-fase 2: avaliação de segurança e imunoge- O sarampo é uma doença com possibilida-
nicidade que mede o título de anticor- de de eliminação porque existe uma vacina efe-
pos produzidos; tiva e segura e tem transmissão exclusivamente
-fase 3: avaliação de segurança e eficácia, inter-humana. Na Europa, a OMS definiu o ano
isto é de que forma a vacina protege os de 2007 como meta para a sua eliminação mas
CAPÍTULO 15. O PROGRAMA NACIONAL DE VACINAÇÃO E OUTRAS VACINAS 265
esta data foi sendo sucessivamente alterada 15.2.3 Tipos de vacinas, locais anatómicos
e a situação epidemiológica agravou-se nos e vias de administração
últimos anos, ocorrendo surtos na maioria dos
29 países europeus sob vigilância, incluindo As vacinas podem ser vivas atenuadas ou
Portugal. inativadas (Quadro 3). As vacinas vivas estão ge-
ralmente contraindicadas na gravidez, sendo as
Os programas de vacinação conduziram inativadas consideradas seguras para o feto. Em
a uma dramática redução da incidência da po- algumas circunstâncias de alterações imunitárias,
liomielite, tendo a OMS declarado interrupção as vacinas vivas estão contra-indicadas devido
da sua transmissão em várias áreas do mundo. ao risco de doença provocada pelas estirpes va-
No entanto, em 2014, ainda existiam três países cinais. A vacinação destes doentes deve sempre
(Afeganistão, Nigéria e Paquistão) endémicos para ser decidida e efetuada sob orientação do médico
esta doença. assistente e de especialista com formação em
O desaparecimento de alguns tipos de mi- infecciologia pediátrica.
crorganismos pela vacinação pode levar à sua Além do(s) antigénio(s), as vacinas têm na
substituição por outros tipos designando-se por sua composição adjuvantes (i.e. alumínio) que
fenómeno de substituição. aumentam a resposta imunológica, conservantes
(i.e. tiomersal), antibióticos, estabilizadores (i.e.
A redução das taxas de cobertura vacinal gelatina), emulsionantes e resíduos (i.e. proteínas
pode levar ao ressurgimento de doenças con- de ovo).
troladas ou eliminadas tal como aconteceu re- As vias de administração podem ser injetável
centemente com o sarampo em vários países (subcutânea, intradérmica ou intramuscular) ou
do mundo. mucosa (oral ou nasal) (Quadro 3).
ID – intradérmica; SC – subcutânea; IM – intramuscular; VASPR – vacina contra sarampo, papeira e rubéola; TB – tuberculose; DTPa
– vacina contra difteria, tétano e tosse convulsa (acelular); VIP – vacina injetável contra a poliomielite; VHB – vacina contra vírus da
hepatite B; HPV – vacina contra Papiloma vírus humano; Hib – vacina contra Haemophilus influenzae tipo b; MenC - vacina conjugada
contra Neisseria meningitidis grupo C; Pn13 – vacina conjugada peumocócica 13 valente
Antes dos 12 meses são administradas na simultaneamente, antes ou depois de outra vacina
coxa pela quantidade de massa muscular, sen- inativada ou viva.
do exceção a vacina BCG que é administrada na Pelo contrário, a resposta imunológica a uma
parte superior do braço esquerdo. Não são dadas vacina viva injetável pode ficar comprometida
na nádega pelo risco de lesão do nervo ciático. se for administrada com um intervalo inferior a
Existem locais anatómicos definidos para cada va- quatro semanas após outra vacina viva injetável.
cina para promover boas práticas e facilitar a A administração de duas ou mais vacinas vivas
vigilância farmacológica de efeitos secundários. injetáveis deve então ser feita no mesmo dia ou
É possível administrar em simultâneo mais com um intervalo de pelo menos quatro semanas.
do que uma vacina no mesmo membro, em locais
distantes entre si em 2,5 a 5 cm. 15.2.5 Contraindicações à vacinação
MenC: Rotavírus:
Após a introdução desta vacina conjugada É um dos agentes mais frequentes de gas-
houve rápida redução da doença invasiva causada troenterite aguda nos primeiros anos de vida e
pelo grupo C e não se observou aumento dos a quase totalidade das crianças terá pelo menos
outros tipos. Além do efeito direto demostrou-se um episódio até aos 5 anos de idade, sendo
CAPÍTULO 15. O PROGRAMA NACIONAL DE VACINAÇÃO E OUTRAS VACINAS 269
mais frequente entre os seis e os 24 meses. Há dos seis meses e nas crianças com patologia crónica.
duas vacinas disponíveis desde 2006, que podem Em Portugal estão disponíveis vacinas trivalentes
ser administradas a partir das seis semanas de inativadas que incluem na sua composição dois
vida e devendo os esquemas estar completos às subtipos de vírus influenza A e um tipo de influen-
24 (Rotarix®) e 32 semanas (Rotateq®). Estão za B. A OMS monitoriza continuamente a infeção
incluídas em programas de vacinação universal pelo vírus da gripe e faz recomendações anuais
em mais de 80 países e a experiência da sua sobre os tipos de vírus que devem ser incluídos na
utilização demonstrou uma diminuição muito vacina em cada época. A vacinação contra a gripe
importante dos internamentos e observações por é recomendada pela Direção Geral da Saúde (DGS)
gastroenterite aguda por rotavírus. Esta redução para grupos de risco nos quais a gripe pode ser
também se verificou em grupos não vacinados, particularmente grave, nomeadamente nas crianças
parecendo sugerir um efeito de imunidade de com mais de seis meses e adolescentes com as
grupo. A monitorização da utilização das duas seguintes patologias: doenças crónicas cardiovascu-
vacinas demonstrou para ambas um pequeno lares, pulmonares, renais, hepáticas, hematológicas
aumento do risco de invaginação intestinal, que (hemoglobinopatias), metabólicas, neurológicas;
parece ser menor quando a vacinação é feita imunodepressão primária, secundária a doença
mais cedo. (infeção VIH, asplenia ou disfunção esplénica) ou
secundária a terapêutica; terapêutica prolongada
Varicela: com salicilatos; diabetes mellitus; doença neuromus-
É uma doença altamente contagiosa, predo- cular ou esquelética com compromisso da função
minando na infância. Os adolescentes são mais respiratória; transplantação de órgãos sólidos ou
suscetíveis a formas graves de doença. Há duas medula óssea; adolescentes grávidas, que em ou-
vacinas comercializadas, para serem administra- tubro estejam no segundo ou terceiro trimestre da
das depois dos 12 meses, em duas doses. A sua gravidez; obesidade mórbida; contactos próximos
utilização demonstrou elevada efetividade, não se de grupos de risco; residentes ou internados por
acompanhando de aumento de zoster. No entanto, períodos prolongados em instituições prestadoras
com base em resultados de modelos matemáticos, de cuidados de saúde.
a OMS alerta para o risco de coberturas vacinais
baixas (inferiores a 80%) reduzirem a infeção na Hepatite A:
infância mas poderem desviá-la para grupos etários Portugal é considerado um país de baixa en-
mais velhos, com maior risco de complicações. demicidade para esta doença, estando a vacina
indicada em crianças e adolescentes que viajem
Gripe: para países com endemicidade intermédia ou alta,
O vírus influenza pode causar infeção em qual- com patologia hepática crónica, candidatos a trans-
quer grupo etário, mas com taxas de incidência mais plante de órgão, infetados por VIH, hemofílicos
elevadas em crianças. A maior taxa de hospitaliza- ou a receber hemoderivados ou que pertençam a
ção e de complicações ocorre nos lactentes abaixo comunidade onde seja detetado um surto.
270 FERNANDA RODRIGUES
HPV para rapazes: dos seis meses de idade. Estas razões levaram à
A vacina contra o HPV também pode ser recomendação da vacinação da mulher grávida
administrada a rapazes. Estes beneficiam da imu- em vários países e a sua utilização mostrou que
nidade de grupo se a cobertura vacinal nas ra- é segura e efetiva para a proteção da mãe, do
parigas for muito elevada. No entanto há muitos feto, do recém-nascido e do pequeno lactente.
países com coberturas baixas ou que não utilizam A reemergência da infeção por Bordetella
a vacina e os homens que têm sexo com ho- pertussis nos últimos anos, com quadros graves
mens não beneficiam de forma significativa da e com mortalidade no recém-nascido e pequeno
vacinação do sexo feminino. A carga da doença lactente, levou vários países, entre os quais se
por HPV no homem é relevante, nomeadamente encontra Portugal a recomendar a vacina acelular
para os condilomas genitais e não há rastreios contra a tosse convulsa durante cada gestação,
implementados de cancros associados ao HPV. entre as 20 e as 36 semanas, idealmente até às
32 semanas. Os resultados demonstraram a sua
15.2.8 Vacinação da grávida segurança e elevada efetividade na prevenção
da doença naqueles grupos etários. Neste caso,
Algumas doenças preveníveis pela vacinação a principal razão para a vacinação da grávida é a
apresentam maior morbilidade e mortalidade na proteção da criança e não da mãe.
grávida e podem associar-se a aborto espontâ- Vacinas contra Streptoccocus do grupo B e
neo, anomalias congénitas, prematuridade e baixo vírus sincicial respiratório estão atualmente a ser
peso ao nascer. desenvolvidas para uso na gravidez.
A vacinação da grávida permite proteger a
mulher prevenindo a doença durante a gravidez 15.2.9 Desafios
e permite proteger o feto, o recém-nascido e
o lactente por transferência de IgG através da A eliminação e controlo de doenças leva ao
placenta e transferência de IgA através do leite esquecimento e desvalorização das mesmas, o
materno. A prevenção da doença na mãe leva que, associado a mitos poderá levar a uma menor
também a menor exposição do recém-nascido à adesão à vacinação, com o risco de ressurgimento
infeção, protegendo-o dessa forma. de doenças já controladas ou eliminadas.
Os programas de imunização da grávida
contra o tétano materno e neonatal começaram
na década de 80 em países em desenvolvimento 15.3 FACTOS A RETER
e mostraram ser seguros e muito efetivos na pre-
venção da doença na mãe e no recém-nascido. A vacinação resultou em extraordinários
As mulheres grávidas com infeção pelo vírus ganhos em saúde, com erradicação, eliminação
influenza apresentam maior risco de doença grave e controlo de várias doenças infeciosas.
e o feto também pode ser afetado. A vacina da Mas, só é possível erradicar, eliminar e
gripe está licenciada para utilização apenas depois controlar as doenças infeciosas preveníveis pela
CAPÍTULO 15. O PROGRAMA NACIONAL DE VACINAÇÃO E OUTRAS VACINAS 271
Leitura complementar
16
Alexandra Oliveira
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_16
CAPÍTULO 16. FEBRE 275
periférica), aumento da frequência cardíaca e res- clinica detalhada e um exame objetivo minucioso.
piratória. Por oposição, a descida da temperatura A anamnese deve incluir o tempo de evolução
é clinicamente caraterizada por pele quente/hi- da febre, o máximo de temperatura, a resposta
perémia, sudação, sensação de calor, procura de aos antipiréticos, os intervalos entre a sua admi-
ambiente fresco e remoção de roupa (resultado nistração, o estado geral da criança em apirexia,
da vasodilatação periférica). outros sintomas associados (respiratórios, gas-
Na febre, as citoquinas pirogénicas aumen- trointestinais, urinários, entre outros) e o con-
tam também a síntese de proteínas de fase aguda texto epidemiológico. O exame objetivo deve ser
pelo fígado, diminuem o ferro sérico e o zinco, completo, com particular atenção à impressão
causam leucocitose e aceleram a proteólise mus- clínica da criança, presença de exantema e sinais
cular esquelética. A PGE2 também é responsável de irritação meníngea. Os antecedentes pessoais
pelas mialgias e artralgias que podem existir con- e familiares também são importantes.
comitantemente com a febre. São sinais tranquilizadores se a criança
A febre como parte da resposta inflamatória brinca, apresenta sorriso fácil, acalma ao colo,
tem um papel no combate à infeção. Tem como tem apetite e fica com o comportamento quase
potenciais benefícios a inibição do crescimento de habitual na fase de apirexia.
algumas bactérias e vírus e o aumento da atividade São sinais de alarme: a presença de febre
imunitária que ocorre perante temperaturas mais no recém-nascido ou no lactente de idade infe-
elevadas. No entanto, tem como desvantagem o rior a três meses, má impressão clínica, recusa
desconforto associado resultante do aumento da alimentar quase total, prostração, exantema no
atividade metabólica, do consumo de oxigénio, da início do quadro febril, petéquias/púrpura, con-
produção de dióxido de carbono e do aumento vulsão/sinais de irritação meníngea, má perfusão
da atividade cardiovascular e respiratória. periférica mantida/instabilidade hemodinâmica,
gemido, sinais de dificuldade respiratória, vómi-
16.2.3 Causas de febre tos incoercíveis, febre muito elevada/difícil de
controlar, pseudoparalisia de um membro/dor
Na maioria dos casos, a febre resulta de uma articular/óssea, apreensão excessiva dos pais e
doença infeciosa benigna autolimitada de etiolo- febre prolongada.
gia viral ou bacteriana (rinofaringite, amigdalite,
otite média aguda, bronquiolite, gastroenterite). Após a história clínica e o exame objetivo
Menos frequentemente, a febre pode estar asso- minucioso, deve ser possível identificar a causa de
ciada a doenças mais graves (pneumonia, pielo- febre (e tratar de acordo com esta) ou distinguir
nefrite aguda, meningite, sépsis). Habitualmente, as crianças com um quadro febril não preocupan-
nestes casos existem sinais de alarme que des- te das que apresentam sinais de apreensão. Na
pertam a preocupação da família e do médico. criança com febre sem foco e com má impressão
Para o esclarecimento da causa da febre clínica é obrigatório proceder ao internamento
é fundamental a elaboração de uma história para vigilância. Deve obter-se um acesso venoso
CAPÍTULO 16. FEBRE 277
e efetuar investigação etiológica ponderada caso xarope (40 mg/mL), supositórios (125, 250, 325 e
a caso (sumária de urina/urocultura, hemograma, 500 mg) e comprimidos (500 mg e 1 g). Apesar
proteína C reativa, hemocultura, radiografia do de ser um fármaco seguro, pode apresentar to-
tórax, estudo do líquido cefalorraquidiano). De xicidade gástrica, cutânea e hepática (grave, se
acordo com os resultados, a conduta terapêutica associada a doses elevadas). O ibuprofeno é um
adequada deve ser colocada em prática. anti-inflamatório não esteroide, eficaz e seguro
na dose de 5 a 10 mg/kg/dose (máximo 600mg)
16.2.4 Terapêutica com intervalos de administração de 6 a 8 horas,
atua em 60 minutos, obtém o pico de efeito em 3
É fundamental transmitir aos pais que a febre horas e a duração é de 6 a 8 horas. Em Portugal
é uma resposta fisiológica, na maioria das vezes estão disponíveis diferentes formulações: suspen-
provocada por doenças benignas e autolimitadas. são oral (20 mg/mL), supositórios (75, 150 mg)
As medidas iniciais para reduzir a temperatura e comprimidos (200, 400, 600 mg). Apesar de
consistem em aumentar o aporte de líquidos e seguro, pode causar toxicidade gástrica, redução
promover o repouso. A utilização de banhos de da adesão plaquetar, trombocitopenia, disfunção
água tépida e compressas de água fria apenas renal e síndrome de Stevens-Johnson.
conseguem diminuir ligeiramente a temperatura A utilização de terapêutica alternada
periférica e aumentam o desconforto e “tremor”. com paracetamol e ibuprofeno é comum, mas
A terapêutica com antipirético deve ser pondera- não existe qualquer vantagem em termos de
da caso a caso de acordo com a situação clínica segurança ou eficácia.
(grau de desconforto, doença subjacente, entre
outros). Deve ser dada informação por escrito
relativamente aos antipiréticos a utilizar (doses 16.3 CONCLUSÃO
e intervalos) e alertar para a colocação da medi-
cação em local fora do alcance das crianças. Os A febre é um sintoma normal que ocorre em
principais antipiréticos utilizados em idade pediá- resposta à infeção. Não existe um valor exato de
trica são o paracetamol e o ibuprofeno. Ambos temperatura corporal que possa ser definido como
inibem a enzima ciclo-oxigenase que converte o febre, dada a variabilidade intra e interpessoal. Na
ácido araquidónico em prostaglandina, impedindo maioria dos casos, resulta de uma doença infecio-
os efeitos desta em aumentar o “set-point” da sa benigna autolimitada de etiologia viral ou bac-
temperatura corporal. O paracetamol é um fár- teriana e menos frequentemente está associada a
maco seguro e eficaz na dose de 10 a 15mg/kg/ doenças mais graves. Para o seu esclarecimento é
dose (máximo 1 g) com intervalos de administra- fundamental uma história clinica detalhada e um
ção de 4 a 6 horas (máximo 5 vezes ao dia), atua exame objetivo minucioso com identificação de
em cerca de 30 minutos, com o pico do efeito sinais tranquilizadores e de alarme. A terapêutica
em duas horas e a duração de 4 a 6 horas. Em inicial da febre consiste em aumentar o aporte
Portugal estão disponíveis diferentes formulações: de líquidos e promover o repouso. A terapêutica
278 ALEXANDRA OLIVEIRA
com antipirético deve ser ponderada caso a caso pseudoparalisia de um membro/dor articular/
de acordo com a situação clínica e os principais óssea, apreensão excessiva dos pais e febre pro-
antipiréticos utilizados em idade pediátrica são longada.
o paracetamol e o ibuprofeno. Na criança com febre sem foco e com má
impressão clínica é obrigatório proceder ao inter-
namento para vigilância, obter um acesso venoso
16.4 FACTOS A RETER e efetuar investigação etiológica ponderada caso
a caso.
A febre é a elevação anormal da temperatura A terapêutica da febre consiste em aumen-
corporal (geralmente um grau Celsius acima da tar o aporte de líquidos, promover o repouso e
temperatura habitual do indivíduo) e é parte de utilização de antipiréticos (caso a caso).
uma resposta biológica específica. A terapêutica alternada com paracetamol
A medição axilar é fiável desde que rea- e ibuprofeno não tem qualquer vantagem em
lizada em duas ocasiões diferentes com inter- termos de segurança ou eficácia.
valo de 60 minutos e com colocação correta
do termómetro. Leitura complementar
Clinicamente, traduz-se por “tremor” gene- Ward MA. Fever in infants and children: Pathophysiology and
ralizado, sensação de frio, “arrepios”, procura de management. UpToDate. 2016. Disponi ́vel em: < http://
ambiente mais quente e agasalhos, acrocianose www.uptodate.com/online>. Acesso em: 01/08/2016.
e pele marmoreada, aumento da frequência car- Sullivan JE, Farrar HC. Fever and Antipyretic Use in Children.
díaca e respiratória. Pediatrics 2011, 127(3): 580-87.
Habitualmente, decorre de uma doença in-
feciosa benigna autolimitada de etiologia viral
ou bacteriana e menos frequentemente está as-
sociada a doenças mais graves.
É fundamental uma história clinica detalhada
e um exame objetivo minucioso.
Sinais de alarme: a presença de febre no
recém-nascido ou no lactente de idade inferior a
três meses, má impressão clínica, recusa alimentar
quase total, prostração, exantema no início do
quadro febril, petéquias/púrpura, convulsão/sinais
de irritação meníngea, má perfusão periférica
mantida/instabilidade hemodinâmica, gemido,
sinais de dificuldade respiratória, vómitos incoer-
cíveis, febre muito elevada/difícil de controlar,
Capítulo 17.
Exantemas
17
Alexandra Oliveira
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_17
CAPÍTULO 17. EXANTEMAS 281
Figura 5. Lesões vesiculares em criança com varicela. Figura 6. Lesões em fase de crosta em criança com varicela.
Fotografia do autor. Fotografia do autor.
crianças com risco de varicela de maior gravidade O exantema pode ser macular, maculopapular
(nos imunodeprimidos, nas complicações como ou vesicular (vesiculas circundadas por um halo
pneumonia, encefalite, meningite, na varicela neo- eritematoso) e podendo ocorrer simultaneamente.
natal, nos adolescentes com mais de 12 anos, no Envolve as mãos (dorso dos dedos, área interdigi-
segundo caso na mesma família, em menores tal, palmas), pés (dorso dos dedos, bordo lateral
de seis meses, nas crianças sob terapêutica com dos pés, plantas e tornozelos), nádegas, coxas e
corticoides orais ou inalados ou com salicilatos). A braços. O enantema apresenta erosões aftosas
dose a utilizar é de 20 mg/kg por via oral (máximo dolorosas (sobretudo na língua e mucosa bucal)
de 800 mg/dose), administrado 4 vezes por dia, que podem estar associados a recusa alimentar.
durante cinco dias. O quadro desaparece em cinco a dez dias.
A complicação mais frequente é a diminui-
Doença mãos-pés-boca ção da ingesta com necessidade de hidratação
A doença mãos-pés-boca é frequente nos endovenosa. Outras complicações são raras, no-
meses de verão e outono. O principal agente meadamente pneumonia, miocardite, meningite
etiológico é o vírus Coxsackie A16 (vírus de RNA e encefalite.
pertencente à família Picornaviridae). A trans- O diagnóstico é clínico através da história
missão é feita através de gotículas respiratórias clínica e exame objetivo. A terapêutica é sinto-
ou contacto direto com outro material infetado. mática, nomeadamente analgesia.
O período de incubação é de três a seis dias.
Pode existir pródromo de febre, rinorreia, Prurigo estrófulo
dor abdominal e diarreia com um a dois de du- O prurigo estrófulo é uma reação de hiper-
ração. Tipicamente, a doença apresenta-se com sensibilidade à saliva de artrópodes (mais comu-
exantema e enantema (isolados ou associados). mente ácaros, pulgas e mosquitos), embora muitas
CAPÍTULO 17. EXANTEMAS 287
Doença de Kawasaki
A Doença de Kawasaki (ver lição doenças
cardíacas mais comuns) é uma das vasculites mais
frequentes em idade pediátrica. É mais frequente
no sexo masculino e em crianças com idade in-
ferior a cinco anos (é rara antes dos seis meses).
Trata-se de uma doença inflamatória sistémica que
Figura 7. Criança com lesões de prurigo com sobrinfeção nos afeta sobretudo as artérias de calibre médio, em
membros inferiores. Fotografia de Guiomar Oliveira.
particular as artérias coronárias. A sua etiologia
é desconhecida. O diagnóstico é baseado na evi-
vezes não haja noção das picadas desencadeantes. dência de inflamação sistémica (febre) associada
É mais frequente em crianças dos dois aos dez a sinais de inflamação mucocutânea, que podem
anos e manifesta‑se sobretudo nos meses quen- não surgir simultaneamente e não apresentam
tes. Tipicamente, as lesões (pápulas com ou sem nenhuma ordem de aparecimento em particu-
vesícula associada ou vesículas ou bolhas sem lar. São critérios de diagnóstico a presença de
pápula) ocorrem nas áreas expostas de forma febre elevada inexplicável com duração igual ou
assimétrica e agrupada (membros, cintura, mais superior a cinco dias associada a quatro ou mais
raro na face) (figura 7). São muito pruriginosas, dos seguintes achados: conjuntivite bilateral não
levando frequentemente a escoriação. As lesões exsudativa, mucosite oral (queilite, hiperemia da
surgem minutos a horas após a picada e desapa- orofaringe, língua em “framboesa”), exantema
recem em algumas semanas com lesão residual polimorfo (habitualmente nos primeiros dias de
hipo ou hiperpigmentada. A reativação de lesões doença como eritema perineal com descamação,
prévias pode ocorrer após uma nova picada, ex- seguido de exantema macular, morbiliforme no
plicando as lesões múltiplas após picada única. tronco e nas extremidades), edema e/ou eritema
As infeções cutâneas (impetigo e/ou celulite) po- das mãos e pés (seguido de descamação com iní-
dem complicar o prurigo. O diagnóstico é clínico, cio na região periungueal), linfadenopatia cervical
baseado na história clínica e no aspeto típico das (habitualmente unilateral e com diâmetro superior
lesões. O tratamento consiste na prevenção das a 1,5cm) (figura 8). Apesar de não ser critério de
picadas (repelentes, roupa protetora, redes, eli- diagnóstico, o eritema do local de inoculação da
minação dos artrópodes dos animais infestados vacina do BCG é frequente nos países onde esta
e do ambiente) e no controlo do prurido com vacina integra o Programa Nacional de Vacinação,
corticoide tópico e/ou anti-histamínico oral. Nos como é o caso de Portugal. Também os achados
casos complicados por sobreinfeção bacteriana, cardíacos não fazem parte dos critérios exigidos
288 ALEXANDRA OLIVEIRA
Urticária
A urticária é um motivo frequente de ob-
servação médica. É caracterizada pela existência
de elementos cutâneos com relevo, eritematosos,
circunscritos e associados a prurido. Podem ocor-
rer em qualquer área corporal num espaço de
minutos, aumentarem de dimensões, fundirem-
-se e desaparecerem espontaneamente ou após
Figura 8. Criança com doença de Kawasaki – visível a queilite tratamento.
e a adenopatia cervical. Fotografia de Guiomar Oliveira.
O angioedema tem uma localização mais
profunda ao nível da derme e do tecido celu-
para o diagnóstico, mas a presença de dilatação lar subcutâneo. É menos pruriginoso, pode ser
das artérias coronárias é muito sugestiva desta acompanhado de uma sensação de pressão e a
doença, quando associada à clínica atrás referi- pele pode apresentar-se eritematosa e quente.
da. Quando a criança não apresenta o quadro As localizações mais frequentes do angioede-
completo, o diagnóstico de doença de Kawasaki ma (edema localizado) são as regiões periorais
atípica ou incompleta deve ser considerado. - lábios/periorbitárias, os pavilhões auriculares,
Laboratorialmente, a elevação da proteína os genitais e as extremidades (mãos e pés).
C reativa e da velocidade de sedimentação são É diferente do edema generalizado por não afe-
comuns, tal como a existência de trombocitose. tar as zonas de declive e poder ser assimétrico.
A terapêutica inicial recomendada inclui ad- A urticária e o angioedema podem apresentar-se
ministração de imunoglobulina endovenosa (2g/ simultaneamente ou isoladamente.
kg a perfundir em 10 a 12 horas) e aspirina (30 A urticária pode ser classificada em aguda
a 50mg/kg/dia, 4 vezes ao dia) em regime de ou crónica, de acordo com a duração ser inferior
internamento. A eficácia da imunoglobulina é ou superior a seis semanas, respetivamente.
superior se efetuada nos primeiros sete a dez dias Existem múltiplos agentes que causam a
de doença. Após resolução da febre e redução urticária, contudo, na maioria dos casos são de
dos parâmetros inflamatórios, a dose de aspirina difícil identificação. A urticária aguda pode ser
reduz para 3 a 5mg/kg/dia (efeito antiplaquetar). classificada em: i) IgE mediada; ii) associada a
As complicações desta doença resultam do agentes infeciosos; iii) mediada por complemen-
envolvimento cardiovascular e incluem aneuris- to; iv) associada a alterações do metabolismo do
mas das artérias coronárias, insuficiência cardía- ácido araquidónico; e v) a agentes desgranulantes
ca, enfarte agudo do miocárdio e arritmias. A dos mastócitos. Em idade pediátrica, as causas
mortalidade é rara e a morbilidade a longo prazo mais frequentes são os agentes infeciosos (vírus
CAPÍTULO 17. EXANTEMAS 289
Exantema purpúrico
O exantema purpúrico é constituído por
lesões cutâneas eritemato-violáceas que não Figura 9. Criança com meningococcémia nas primeiras
horas de febre em que apenas é visível escasso exantema
desaparecem à digitopressão. Quando são
maculopapular. Fotografia de Guiomar Oliveira.
punctiformes, com diâmetro inferior a dois mi-
límetros denominam-se petéquias (exantema
petéquial) se ultrapassam os 5 a 10 mm são que posteriormente evolui para petequial/
equimoses. Este exantema pode ter como causa purpúrico (figura 10). As petéquias são mais
disrupção da integridade vascular (traumatismos, frequentes no tronco e nos membros infe-
infeções, vasculites, doenças do colagénio) ou riores e não desaparecem à digitopressão.
alterações da hemóstase (trombocitopenia, alte- Estas petéquias podem coalescer e originar lesões
ração da função plaquetar, deficiência de fatores purpúricas e equimóticas. Para além do exantema,
da coagulação ou alteração das suas funções). ao exame objetivo a criança apresenta alteração
Perante a sua presença é fundamental iden- do estado geral e numa fase mais avançada insufi-
tificar as crianças com mau estado geral, nas ciência circulatória com taquicardia e hipotensão.
quais o exantema pode ser manifestação de Deve-se pesquisar sinais de irritação meníngea,
doença grave, nomeadamente meningococé- como rigidez da nuca, sinal de Brudzinski e de
mia (infeção sistémica causada pela Neisseria Kernig. É fundamental atuar rapidamente perante
meningitidis). Clinicamente, a meningococémia a suspeita desta doença, com administração de
carateriza-se pelo início súbito de sintomas inespe- bólus de cristaloide isotónico (soro fisiológico)
cíficos como febre, odinofagia, náuseas, vómitos, 20mL/kg para reversão do choque e antibiotera-
cefaleias e mialgias. Existe uma rápida progres- pia (ceftriaxone ou cefotaxime) imediata. Poderá
são para choque, falência multiorgânica e ser necessário também a utilização de fármacos
morte se não for implementado tratamento vasoativos de acordo com a resposta inicial. Esta
urgente dirigido. terapêutica não deverá ser atrasada por dificulda-
O exantema associado que pode sur- de na colheita de produtos biológicos para diag-
gir nas primeiras horas da febre, numa fase nóstico (nomeadamente hemocultura), dada a sua
inicial pode ser maculopapular (figura 9), gravidade da doença e o benefício da terapêutica
290 ALEXANDRA OLIVEIRA
B
Figura 13- Lesão de inoculação e adenopatia satélite na
região do pescoço em criança com febre escaro nodular.
Fotografia de Guiomar Oliveira.
à formulação pediátrica (suspensão oral) e uma ao exame objetivo que pode ser encontrada é
semivida longa, com a vantagem da administra- o edema palpebral bilateral, sem conjuntivite e
ção ser apenas de uma dose única diária durante sem proteinúria.
três dias. Laboratorialmente, o hemograma apresenta
linfocitose com presença de linfócitos atípicos
Mononucleose infeciosa no esfregaço de sangue periférico. Também é
O vírus Epstein-Barr é o principal agente comum existir elevação das transaminases na
responsável pela mononucleose infeciosa. O ser fase aguda. A confirmação diagnóstica pode ser
humano é o único reservatório conhecido deste feita por serologia com a presença de anticorpos
vírus e a transmissão ocorre através da saliva. específicos na fase aguda e tardia da doença ou
O período de incubação é de 30 a 50 dias. por identificação do vírus por PCR.
A doença é autolimitada e é mais frequente O tratamento da doença é de suporte (anal-
em adolescentes. Caracteriza-se por mal-estar, gésicos/antipiréticos). Em casos mais graves (hiper-
fadiga, odinofagia, cefaleias (habitualmente re- trofia amigdalina que condiciona a permeabilidade
trorbitárias), mialgias, náuseas e dor abdominal. da via aérea) pode estar indicado a administração
Pode apresentar-se com um início mais insidioso de corticoide (1 a 2mg/kg/dia de prednisolona du-
de uma a duas semanas ou de forma mais sú- rante três a sete dias, por via oral ou endovenosa).
bita. Os sintomas persistem habitualmente por
duas a três semanas, mas a fadiga pode ser mais 17.3 FACTOS A RETER
prolongada. Frequentemente, ao exame objeti-
vo encontra-se faringite, linfadenopatias gene- O exantema é um motivo frequente de ob-
ralizadas e hepatoesplenomegalia. A faringite é servação em idade pediátrica.
exsudativa, pode estar associada a petéquias e Tem múltiplas etiologias, sendo a mais fre-
ser acompanhada por hipertrofia marcada das quente a doença infeciosa viral autolimitada.
amígdalas dificultando a deglutição. A linfadeno- Uma história clínica detalhada e um exame
patia afeta os gânglios cervicais posteriores (mais físico minucioso permitem na maioria das vezes
comumente), mas também os gânglios cervicais estabelecer o diagnóstico diferencial.
anteriores, submandibulares, axilares e inguinais. Na maioria dos casos, a terapêutica é apenas
São gânglios móveis que podem ser dolorosos. A sintomática.
esplenomegalia é comum, com o baço palpável Atender particularmente aos quadros
cerca de dois a três centímetros abaixo do rebordo clínicos que denunciam doenças graves ou
costal e podendo ser doloroso. Associado a este com necessidade de intervenção específica.
quadro clínico, pode ocorrer exantema eritema-
toso maculopapular generalizado em três a 15% Leitura complementar
dos casos. A taxa de exantema aumenta, quando Fölster-Holst R, Kreth HW. Viral exanthems in childhood –
a criança/adolescente é medicado erroneamente infectious (direct) exanthems. Part 1: Classic exanthems.
com amoxicilina (cerca de 80%). Outra alteração J Dtsch Dermatol Ges. 2009;7(4):309-16.
294 ALEXANDRA OLIVEIRA
18
Gustavo Januário
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_18
CAPÍTULO 18. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS SUPERIORES 297
Figura 1. Consumo Europeu de antimicrobianos em 2010. Adaptado de European Centre for Disease Prevention and Control.
Surveillance of antimicrobial consumption in Europe, 2010. Stockholm: ECDC, 2013.
298 GUSTAVO JANUÁRIO
Quadro 1. Antimicrobianos utilizados no tratamento da otite média aguda. Adaptado de Diagnóstico e Tratamento da Otite Média
Aguda na Idade Pediátrica. Norma da Direção Geral da Saúde, 2012.
Figura 2. Algoritmo de atuação na OMA. Adaptado de Diagnóstico e Tratamento da Otite Média Aguda na Idade Pediátrica. Nor-
ma da Direção- Geral da Saúde, 2012. OMA – otite média aguda; ORL – otorrinolaringologia.
CAPÍTULO 18. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS SUPERIORES 303
clínicos estritos que descrevem sinais e sintomas Haemophilus influenza e Moraxella catarrhalis.
e padrões temporais de uma IVRS, sendo funda- O Staphylococcus aureus é raramente isolado nos
mental diferenciar RSA com sintomas persistentes aspirados em crianças com RSA mas, por razões
de episódios sequenciais de NFA, estabelecendo desconhecidas, é um patogéneo significativo nas
claramente a ausência de melhoria dos sintomas. complicações orbitárias e intracranianas da RSA.
Por outro lado o exame objetivo na RSA é muitas Com exceção da sinusite aguda maxilar associa-
vezes inespecífico e pouco informativo e os exa- da a infeções de origem dentária, os germens
mes imagiológicos não distinguem IVRS de RSA anaérobios respiratórios também são causa rara
pelo que não devem ser requisitados. de RSA. A comercialização e a utilização global
A fisiopatologia da RSA caracteriza-se por de vacinas conjugadas contra o Streptococcus
inflamação e edema da mucosa do óstio do seio pneumoniae e Haemophilus influenzae alterou
promovida por uma IVRS, e numa sequência de substancialmente a taxa relativa destas bactérias
eventos que envolve a diminuição da drenagem sendo atualmente as etiologias principais da RSA
de secreções por disfunção ciliar, a existência os serótipos não vacinais de Streptococcus pneu-
de uma pressão negativa ao nível dos seios pe- moniae e Haemophilus influenza não tipáveis.
rinasais que favorece a aspiração de muco e Recomenda-se tratamento da RSA com ABs,
de bactérias da NF e que finalmente culmina reservando a hipótese de observação adicional
na obstrução funcional e mecânica dos óstios e durante três dias apenas para a RSA persistente.
subsequente multiplicação bacteriana que ca- As crianças que apresentam um início grave de
racterizam a RSA. RSA têm presumivelmente uma infeção bacteria-
A etiologia microbiológica da RSA foi esta- na porque febre de valor superior a 39ºC e que
belecida há cerca de 30 anos por estudos que se coexiste com pelo menos três dias consecutivos
apoiavam na aspiração direta do seio maxilar em de rinorreia purulenta, não é consistente com o
crianças com sinais e sintomas compatíveis com padrão bem documentado de NFA. De forma si-
RSA. As bactérias mais frequentemente isoladas milar, as crianças com curso agravado de RSA têm
na época foram o Streptococcus pneumoniae uma evolução clínica que não é consistente com
(30% dos casos) e o Haemophilus influenzae e a melhoria progressiva da NFA não-complicada
a Moraxella catarrhalis (20% cada) sendo que 25 (quadro 2).
a 30% dos aspirados foram estéreis. Apesar de
algumas autoridades recomendarem a obtenção O tratamento AB da RSA de primeira linha
de culturas do meato médio, na tentativa de de- consiste na amoxicilina em alta dose (80 a 90
terminar a etiologia da infeção do seio maxilar, mg/Kg/dia, de 12 em 12 horas, por via oral)
não existe qualquer dado comparativo entre tais durante dez a 14 dias ou pelo menos durante
culturas e as culturas do seio maxilar. Pelo con- sete dias após controlo dos sintomas. A amoxi-
trário, existem dados que indicam que o meato cilina com clavulanato (formulação 14:1 e com a
médio de crianças saudáveis está frequentemen- posologia de amoxicilina já referida) é o AB de
te colonizado por Streptococcus pneumoniae, segunda linha (primeira linha segundo alguns
304 GUSTAVO JANUÁRIO
Quadro 2. Tratamento da rinosinusite bacteriana aguda. Observação versus antimicrobianos. Adaptado de Wald ER, et al. Clinical
Practice Guideline for the Diagnosis and Management of Acute Bacterial Sinusitis in Children Aged 1 to 18 Years. Pediatrics, 2013.
Figura 3. Grande anel linfático de Waldeyer-pirogof que consiste nos adenoides (localizados superiormente na NF), nas amígdalas
palatinas (lateralmente na orofaringe) e nas amígdalas linguais (inferiormente na hipofaringe e recobertas pela mucosa no terço
posterior da língua). Adaptado de Functional Anatomy of the Airway (http://clinicalgate.com/functional-anatomy-of-the-airway/).
Quadro 3. Antimicrobianos utilizados no tratamento da amigdalite aguda a Streptococcus do grupo A AASGA . Diagnóstico e
Tratamento da Amigdalite Aguda na Idade Pediátrica. Norma da Direção- Geral da Saúde, 2012.
De acordo com a NOC de AA (figura 6), pe- familiares de febre reumática aguda, ou glome-
rante uma criança com idade igual ou superior a rulonefrite pós-estreptocócica ou choque tóxico
três anos com AA e epidemiologia e clínica suges- estreptocócico e no doente com hipersensibilida-
tivas da etiologia SGA, deverá ser realizado TDAR de tipo 1 aos β-lactâmicos de forma a permitir a
e prescrito AB no caso de este ser positivo. No realização do antibiograma.
entanto, se a epidemiologia e a clínica forem suges- Perante uma AASGA confirmada o AB de
tivas de etiologia viral (rinorreia, tosse, rouquidão, primeira linha é a amoxicilina (50 mg/Kg/dia, de
úlceras orais ou diarreia), deverá ser assumido AA 12 em 12 horas, por via oral, durante dez dias)
vírica e não deverá ser realizado TDAR. A cultura devido à sua eficácia (o SGA é universalmente
da orofaringe reserva-se assim às crianças e adoles- sensível à penicilina), espetro estreito, perfil de
centes com epidemiologia e manifestações clínicas segurança, bom paladar e baixo custo. Se não for
sugestivas de AASGA e presença de uma ou mais possível a administração de AB por via oral, ou
das seguintes situações: TDAR não disponível; TDAR não é expectável que a criança cumpra a totali-
negativo e contacto com infeção confirmada por dade do tratamento, a penicilina G benzatínica
SGA; TDAR negativo e antecedentes pessoais ou (600.000 U, se peso inferior a 27 kg e 1.200.000
308 GUSTAVO JANUÁRIO
Figura 6. Algoritmo de atuação na amigdalite aguda. Adaptado de Diagnóstico e Tratamento da Amigdalite Aguda na Idade Pediátrica.
Norma da Direção Geral da Saúde, 2012.AA – amigdalite aguda; SGA - Streptococcus do grupo A; TDAR - teste diagnóstico antigénico rápido.
ameaçadoras da vida nas crianças, sobretudo sido igualmente estudada de forma extensa no
nas pequenas. tratamento da LTA e na presença de dificuldade
A gravidade da obstrução da VA superior respiratória moderada a grave comprovou-se que
é avaliada pelo grau de retração supraesternal e tratamentos repetidos com adrenalina nebulizada
subcostal, pela frequência respiratória, pela fre- resultam numa diminuição da necessidade de en-
quência cardíaca, pelo grau de agitação, pela pre- tubação. Se houver suspeita ou confirmação de
sença de sinais como cansaço e exaustão devido sobreinfecção bacteriana dever-se-á utilizar ABs
ao esforço respiratório e pela existência de cianose com atividade contra Staphylococcus aureus, SGA,
central que é indicativa de hipoxémia grave e da Streptococcus pneumoniae, Haemophilus Influenza
necessidade de intervenção emergente. A mo- e Moraxella catarrhalis.
nitorização da saturação periférica de oxigénio
é o melhor método de medição da hipoxémia. 18.2.6 Epiglotite aguda
Antes do século XX todas as doenças “croup-
-like” eram assumidas como difteria. Atualmente o A epiglotite define-se como uma inflamação
termo “croup” é usado para designar um número da epiglote e das estruturas supraglóticas adja-
de doenças respiratórias (quadro 4) que se caracte- centes. O edema supraglótico reduz o calibre da
riza pela existência de estridor (som monofônico via aérea superior, causando um reduzido fluxo
ouvido predominantemente na inspiração) de grau de ar turbulento durante a inspiração e resultando
variável, tosse estridulosa (descrita como “tosse num som característico designado por estridor.
de cão”), rouquidão (devido à inflamação da A obstrução da via aérea, que pode causar uma
laringe) e grau variável de dispneia. paragem cardio-respiratória, pode ser rapidamen-
A quase totalidade dos casos de croup te progressiva e os sinais de obstrução grave da
são, de facto, laringotraqueítes agudas (LTA) ou via aérea superior poderão estar ausentes até às
croups espasmódicos, e afetam tipicamente fases finais da doença, altura em que a obstrução
crianças abaixo dos seis anos de idade com um da via aérea é quase total.
pico de incidência entre os sete e os 36 meses. Em crianças previamente saudáveis a etiolo-
O tratamento da LTA e do croup espas- gia da epiglotite é de origem bacteriana. A causa
módico consiste na utilização de corticoides e mais frequente é o Haemophilus influenzae tipo b
de adrenalina nebulizada. O tratamento com (Hib) apesar da diminuição drástica do número de
corticoides é atualmente recomendado e várias casos após introdução da vacina conjugada contra
meta-análises de ensaios randomizados têm con- esta bactéria. Outras bactérias que podem tam-
sistentemente demonstrado uma melhoria sig- bém causar epiglotite são outros Haemophilus in-
nificativa sintomática das crianças tratadas com fluenza (tipos A, F e não-tipáveis), o Streptococcus
estes. Os regimes mais bem estudados são os que pneumoniae e o Staphylococcus aureus.
utilizam a dexametasona por via oral (0,6 mg/Kg) A epidemiologia da epiglotite alterou-se ra-
em dose única ou budenosido nebulizado (2 mg). dicalmente após a introdução da vacina contra o
A adrenalina nebulizada (diluição 1:1000) tem Hib, sendo as principais modificações a diminuição
310 GUSTAVO JANUÁRIO
Quadro 4. Classificação, definição e características clínicas das doenças “croup-like”. Adaptado de Cherry JD. Clinical practice.
Croup. New England Journal of Medicine, 2008.
CAPÍTULO 18. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS SUPERIORES 311
LTA Epiglotite
drástica da incidência e a idade média do diag-
Início Dias Horas
nóstico ter passado para mais tarde, dos três para
Coriza Sim Não
os seis a doze anos.
Tosse Sim, estridulosa Não, ligeira
A suspeita de epiglotite constitui uma
Ingestão Sim Não
emergência médica, sendo essencial o reconhe- de líquidos
cimento e o tratamento imediato. As característi- Sialorreia Não Sim
cas clínicas dependem da idade e da gravidade, Aparência Boa ou mediana Tóxica
sendo que a criança se apresenta classicamente Febre < 39ºC >39ºC
com dificuldade respiratória e estridor, assumindo Estridor Sim Sim
uma posição característica de sentada e imóvel, Voz e Rouquidão Abafada,
recusando muitas vezes o toque ou a posição choro relutância
em falar
de decúbito, com inclinação anterior do tronco,
LTA - laringotraqueíte aguda; ºC – graus Celsius
hiperextensão do pescoço e elevação do mento,
numa tentativa de maximizar o diâmetro de uma
via aérea obstruída. A sialorreia está muitas ve- Quadro 5. Características clínicas da Laringotraqueíte aguda
e Epiglotite. Adaptado de Lissauer T, et al. Illustrated Text-
zes presente e a tosse está tipicamente ausente.
book of Paediatrics. 4th Edition, 2011.
É característico o início súbito de febre alta, su-
perior a 39ºC, odinofagia e disfagia graves, voz
abafada e aparência tóxica. inclui outras causas de obstrução aguda da
A tentativa de visualização da epiglote VA superior, nomeadamente LTA (quadro 5),
com o auxílio de espátula, bem como a reali- traqueíte bacteriana, abcesso periamigdalino
zação de radiografias laterais do pescoço não e retrofaríngeo, angioedema e difteria.
devem ser efectuadas, uma vez que poderão O tratamento da epiglotite consiste, como
precipitar obstrução total da via aérea e para- já referido, no controlo emergente da via aérea
gem cárdio-respiratória, sendo a atitude fun- e da sua patência, seguido da administração de
damental o controlo da via aérea com entuba- ABs apropriados à etiologia, nomeadamente
ção programada, recorrendo, se necessário, a de uma combinação de uma cefalosporina de
intensivistas e a anestesistas pediátricos com terceira geração (ceftriaxone ou cefotaxime)
experiência em permeabilizar via aérea (VA) com uma penicilina antiestafilocócica (fluclo-
difícil. A visualização de uma epiglote ede- xacilina).
maciada e eritematosa durante a entubação
confirma o diagnóstico. Exames complementa- 18.3 FACTOS A RETER
res, nomeadamente hemograma, marcadores
de infeção sistémicos, cultura do exsudato da A prescrição racional de ABs é atualmente
epiglote e hemocultura só deverão ser efetua- um dos grandes desafios da medicina.
dos após estabilidade clínica e controlo da Globalmente, e especificamente em Portugal,
VA. O diagnóstico diferencial de epiglotite assiste-se a uma excessiva prescrição de ABs em
312 GUSTAVO JANUÁRIO
19
Patrícia Mação
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_19
CAPÍTULO 19. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS INFERIORES 315
Figura 1. Hiperinsuflação e atelectasia do lobo superior Figura 2. Hiperinsuflação e horizontalização dos arcos
direito. Imagem do autor. costais. Imagem do autor.
da doença é em média uma semana, no entanto (segmentar ou mesmo lobar), que podem ser
podem persistir sintomas respiratórios como tosse confundidas com pneumonia, Figuras 1 e 2.
durante mais de quatro semanas em 10% dos
casos, dependendo da idade, da gravidade da Os testes rápidos para identificação de an-
doença, das co-morbilidades de alto risco e do tigénios virais (Imunofluorescência ou Enzyme-
agente etiológico. Linked Immunosorbent Assay) e as técnicas mo-
O diagnóstico de BQL é clínico, baseado leculares de diagnóstico viral (Polimerase chain
na anamnese, nas alterações no exame objeti- reaction – PCR) efetuados nas secreções brônqui-
vo, na idade da criança e na epidemiologia. Os cas ou da orofaringe permitem conhecer o agente
exames complementares de diagnóstico só estão etiológico, mas devem ser utilizados apenas em
indicados em casos particulares. estudos epidemiológicos ou de investigação e pela
A realização de radiografia do tórax pode ser possibilidade de isolamento do doente internado
considerada se a evolução for atípica, se houver com BQL.
dúvidas no diagnóstico ou evidência de compli- A gasometria é útil apenas no doente com
cações. As alterações radiológicas são variáveis e critérios de internamento em cuidados intensivos.
inespecíficas, e incluem sinais de hiperinsuflação O hemograma, doseamento da proteína
pulmonar com horizontalização dos arcos costais C reativa e estudos bacteriológicos (cultura de
e abaixamento do diafragma, atelectasias, áreas secreções brônquicas, hemocultura, urocultura)
de espessamento peribrônquico e opacidades podem ser utilizados na suspeita de complicações
CAPÍTULO 19. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS INFERIORES 317
então: a frequência respiratória (FR), medida du- para reobservação médica e como medidas te-
rante um minuto; o impacto na alimentação e grau rapêuticas: a desobstrução nasal (utilização de
de hidratação; a presença de apneia (baseada na soro fisiológico nasal, sem recurso a fármacos
observação ou história sugestiva, sobretudo se descongestionantes); elevação da cabeceira da
a idade for inferior a seis semanas); a hipoxémia cama/berço a 30º e manutenção de bom estado
determinada por oxímetro de pulso; a frequên- de hidratação e nutrição através de fracionamento
cia cardíaca; o estado de consciência; o grau de das refeições.
dificuldade respiratória com base na presença Não está provada a eficácia de nebulizações
de tiragem, incapacidade para vocalização ou com salbutamol, adrenalina, brometo de ipratró-
gemido; e o grau de ventilação apreciado pela pio, ou soro salino hipertónico. Estas medidas
expansão torácica e auscultação pulmonar. terapêuticas podem ser consideradas em casos
Existem múltiplas escalas clínicas que foram individuais, sob vigilância médica.
desenvolvidas para avaliar a gravidade da doença Os corticóides, cinesiterapia respiratória e os
em contexto de investigação, no entanto na prá- antibióticos também não estão indicados.
tica clínica a sua utilidade é limitada. Em casos de maior gravidade, a prescrição de
oxigénio de alto fluxo (aquecido e humidificado)
Na maioria dos casos de BQL são suficientes ou ventilação não invasiva, pode ser efetuada
medidas de suporte para manter a oxigenação e em algumas unidades hospitalares, de acordo
hidratação. com a preparação da respetiva unidade e com
A s orientações atuais, da A ssociação os protocolos específicos.
Americana de Pediatria (AAP) publicadas em O prognóstico é favorável na grande maioria
2014 e a norma da Direção-Geral da Saúde dos doentes.
(DGS) atualizada em 2015, recomendam para A prevenção da BQL, quer na comunidade,
o doente internado: quer associada aos cuidados de saúde, é funda-
mental.
• Oxigenoterapia: quando se verifique SpO2 Salienta-se a importância da lavagem das
inferior ou igual a 90 a 92% com ar am- mãos antes e após o contacto com os doentes
biente; na redução da transmissão da doença. É reco-
• Hidratação: adequada às necessida- mendada também a limitação de contactos com
des hídricas, por sonda naso-gástrica, os doentes e o internamento em quartos de
na criança com dificuldade respiratória isolamento nos casos em que seja isolado o VSR.
progressiva ou incapacidade alimentar; e A evicção do tabagismo passivo, que aumen-
em alternativa por via endovenosa, par- ta a suscetibilidade e agrava o prognós tico da
ticularmente no doente crítico. doença, e o incentivo do aleitamento materno
que se associa a menor gravidade e taxas mais
Na alta para o domicílio há que explicar a reduzidas de internamento, são cuidados que
evolução natural da doença e dos sinais de alarme se devem fomentar.
CAPÍTULO 19. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS INFERIORES 319
Quadro 3. Distribuição dos agentes etiológicos mais frequentes de PAC de acordo com a idade.
mais sensível e específico de pneumonia, e a sua para a avaliação do estado geral do doente, do
ausência permite praticamente excluir o diagnós- grau de hidratação, e dos sinais de síndrome
tico. Não esquecer que a frequência respiratória de dificuldade respiratória (presença de pelo
é variável em função da idade, da temperatura e menos dois dos sinais clínicos: taquipneia, tira-
da ansiedade da criança. gem, adejo nasal, gemido e cianose).
As crianças mais velhas podem referir A oximetria de pulso, é um método objetivo
dor torácica pleurítica (agrava com a respi- de avaliação da saturação periférica de oxigénio,
ração) e em alguns casos dor abdominal recomendado nos doentes com sinais de dificul-
(dor referida dos lobos inferiores do pulmão) dade respiratória.
ou também dor no ombro ou rigidez da O diagnóstico de PAC é essencialmente
nuca, quando a pneumonia se localiza aos lo- clínico. Não há indicação para a realização de
bos superiores. exames complementares de diagnóstico por ro-
Como já foi referido, o quadro clínico não tina em crianças que não apresentem critérios
é suficientemente específico para estabelecer o de internamento.
diagnóstico etiológico da pneumonia, no entanto A radiografia do tórax pode ser útil
alguns achados podem ser mais sugestivos de para confirmar o diagnóstico e avaliar a
determinada etiologia (quadro 4). existência de complicações. A incidência ha-
Após colheita da anamnese, deve ser efetua- bitualmente recomendada é a postero-anterior,
do um exame objetivo completo com destaque uma vez que permite melhor visualização do
322 PATRÍCIA MAÇÃO
Figura 3. Condensação lobar no hemitórax esquerdo, Figura 4. Infiltrado intersticial bilateral com reforço peri-hilar.
com broncograma aéreo. Imagem do autor. Imagem do autor.
id – número tomas por dia, PO – via oral, EV – via endovenosa, Amox-clav – Amoxicilina e ácido clavulânico. Adaptado de “Do we know
when, what and for how long to treat? Antibiotic therapy for pediatric community-acquired pneumonia. Pediatr Infect Dis J 2012”
orientações atuais da DGS, publicadas em 2015 (ht- necessário controlo radiológico ou laborato-
tps://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs/orientacoes- rial em crianças previamente saudáveis e com
-e-circulares-informativas/orientacao-n-0072015- boa evolução clínica. Nas pneumonias redondas
-de-26012015.aspx) recomendam a sua utilização (condensações) e complicadas, ou em caso de
nas primeiras 48 horas após o aparecimento dos sintomas persistentes, o controlo radiológico
sintomas em casos selecionados (critérios de gravi- devera ser efetuado quatro a seis semanas após
dade clínica ou doença progressiva, em portadores a alta.
de doença crónica grave ou descompensada e em Nas crianças com PAC grave, empiema, der-
doentes internados). rame pleural complicado ou abcesso pulmonar é
O seguimento das crianças com PAC baseia- obrigatório o seu seguimento até à recuperação
-se em critérios de gravidade, nas alterações radio- clinica e radiológica total ou quase total.
lógicas, na recorrência da doença e persistência A prevenção da PAC é importante e possí-
dos sintomas. vel. Devem ser fortemente recomendadas medi-
A radiografia de tórax só necessita ser das de prevenção de contágio, como a lavagem
repetida se houver agravamento do quadro das mãos. A imunização para Hib, Bp, Sp e in-
ou perante suspeita de complicações. Não é fluenza tem revelado eficácia na diminuição da
326 PATRÍCIA MAÇÃO
20
José António Pinheiro
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_20
CAPÍTULO 20. DOENÇA ALÉRGICA 329
de proteínas, probióticos e prebióticos, ácidos – Asma Induzida por Esforço (AIE) ou Asma
gordos ómega-3, vitamina D e antioxidantes. A Induzida por Alergénios (AIA). Com o cresci-
imunoterapia específica (SIT) para um determi- mento, as formas mistas são a regra.
nado alergénio é apontada por alguns autores Podemos então considerar o diagnóstico
como o único meio de travar a marcha alérgica, clínico de asma em Pediatria perante uma criança
evitando novas sensibilizações. que teve pelo menos três episódios de dispneia
expiratória, ou pieira, ou tosse equivalente asmá-
tica de predomínio noturno. Resposta positiva aos
20.2 DESCRIÇÃO DO TEMA broncodilatadores inalados é uma boa ajuda ao
diagnóstico. A exclusão de outras patologias com
As principais doenças alérgicas em Pediatria clínica semelhante é obrigatória, mas geralmen-
são: asma; rinite alérgica; anafilaxia; aler- te não são necessários exames complementares.
gia alimentar; alergia a fármacos; alergia a Recorde-se que o diagnóstico é clínico, o estudo
insetos; dermatite atópica; urticária e an- alergológico serve apenas para detetar a atopia.
gioedema. No lactente e no pré-escolar o diagnóstico dife-
rencial faz-se sobretudo com a broncopneumonia
20.2.1 Asma viral ou por bactérias atípicas e com o refluxo
gastro-esofágico. Raramente a fibrose quística se
Habitualmente começa antes dos dois anos apresenta como uma asma sem que haja outras
de idade, com uma bronquiolite viral. No entanto, manifestações da doença.
ao contrário desta situação de causa infeciosa, Na asma há hiperreatividade brônquica e
a criança asmática repete o mesmo quadro de inflamação crónica, mas geralmente o doente
dispneia expiratória quando inicia outro catarro não apresenta sintomas. Estes surgem nas cri-
respiratório. Não se deve usar o termo «bronquio- ses ou exacerbações – tosse, pieira, dispneia
lites de repetição» pois a bronquiolite raramente expiratória, aperto torácico. Os vírus respiratórios
se repete. Passará a designar-se Asma Induzida são os principais desencadeantes de crise em
por Vírus (AIV) e, a partir do segundo episó- todas as idades. As bactérias atípicas (Mycoplasma
dio, deverão ser usados nessas agudizações os pneumoniae e Chlamydia) raramente são respon-
broncodilatadores inalados e mesmo os corticoi- sáveis. Outros desencadeantes são os alergénios
des orais se necessário. Recordamos que estes a que o doente está sensibilizado (ácaros, pólens,
medicamentos não fazem parte da terapêutica animais domésticos) e os irritantes inespecíficos
da bronquiolite, são fármacos usados nas crises (sobretudo o fumo de tabaco). Fatores emocio-
de asma. Este fenótipo de AIV é o mais comum nais desencadeiam crise em alguns doentes que
na criança, mesmo na asma alérgica. Cerca de apresentam tosse, pieira ou mesmo dispneia com
25% das crianças apresenta sibilância recorrente o riso, o choro ou apenas stresse emocional (não
em idade pré-escolar. Raramente a doença surge confundir com a dispneia ansiosa e hiperventila-
mais tarde, com predomínio de outros fenótipos ção, que não cursam com broncospasmo). Quando
CAPÍTULO 20. DOENÇA ALÉRGICA 331
algum destes fatores predomina, permite definir primeiro medicamento a usar na crise – salbuta-
um fenótipo clínico desse doente. mol ou terbutalina, conforme o dispositivo que o
Na idade escolar e no adolescente é muito doente é portador e com o qual está familiarizado.
frequente o broncospasmo ou AIE. Em regra, todo Mesmo no SU é aconselhável o doente usar o seu
o doente asmático, quando inquirido, reconhece broncodilatador com o seu dispositivo, mas em
sintomas relacionados com o exercício físico – dor doses superiores. Quando a crise não cede a doses
ou aperto retro-esternal, dispneia, tosse ou pieira. generosas de broncodilatador, com dispositivo
A atividade física mais asmogénica consiste na e técnica adequados, teremos que combater o
corrida ao ar livre, frio e seco, sem aquecimento edema e a inflamação que se associam ao bron-
prévio e nos desportos de inverno. Os sintomas cospasmo. Associa-se um corticoide sistémico por
descritos obrigam o doente a interromper o exer- via oral – prednisolona, metilprednisolona, dexa-
cício ou a abrandar o ritmo. Raramente se recorre metasona ou deflazacort. A dose de referência
à prova de esforço em laboratório para confirmar para a prednisolona é de 1 a 2 mg/kg/dia (máximo
o diagnóstico - a clínica e a prova terapêutica 50 mg) em ciclo curto de três a cinco dias, sem
são suficientes. O professor de Educação Física, necessidade de desmame. Muito raramente se
treinador ou instrutor estará informado e o jovem recorre à via intravenosa, que não tem vantagens
sabe como e quando se automedicar – em regra sobre a via oral, exceto em casos de intolerância
com um broncodilatador inalado, quinze minutos ou recusa. Durante o ciclo de corticoide oral, os
antes do esforço. O inalador estará sempre dis- broncodilatadores são mantidos na dose habitual.
ponível. Quando o broncodilatador pré-esforço Os broncodilatadores inalados mais usados são os
não é suficiente, recorre-se a medicação diária agonistas dos recetores beta (β2) de curta duração
preventiva com corticoide inalado ou antagonista de ação (SABA) - salbutamol (pressurizado ou em
dos leucotrienos. pó) e a terbutalina (apenas disponível em pó).
O tratamento da crise de asma é iniciado O formoterol, agonista beta de longa duração
precocemente, logo que surge o primeiro sinto- (LABA) pelo seu início de ação igualmente rápido,
ma – um aperto torácico, como vimos, ou ape- será uma alternativa nos doentes que já o usam
nas tosse, irritativa, com agravamento noturno. em terapêutica de fundo, preventiva. O brometo
A dispneia expiratória pode traduzir-se apenas de ipratrópio, anticolinérgico com reduzida ação
por um prolongamento do tempo expiratório, broncodilatadora, aumenta o efeito dos agonistas
sobretudo nos primeiros anos de idade. A pieira beta, estando indicado em segunda linha, sempre
e os correspondentes sibilos predominam na ex- em associação. A via inalatória é a via de eleição
piração. A ausência de sibilos e o apagamento do para os broncodilatadores, pois permite um tra-
murmúrio vesicular são sinais de crise grave. Num tamento tópico, com menos doses, mais rápido e
Serviço de Urgência (SU) a saturação periférica de eficaz e com menos efeitos secundários, podendo
oxigénio (SpO2) é sempre avaliada, sendo deci- administrar-se doses repetidas em curtos interva-
siva para a administração de oxigénio. Em todas los de tempo. Recorre-se a câmaras expansoras
as circunstâncias, o broncodilatador inalado é o para os inaladores pressurizados sempre que o
332 JOSÉ ANTÓNIO PINHEIRO
doente não domina a técnica de coordenação dois fármacos no mesmo inalador. Há casos exce-
mão-pulmão, como é o caso das crianças. cionais de asma grave, de difícil controlo em que,
A terapêutica de controlo da asma, pre- mesmo depois de otimizada toda a terapêutica, o
ventiva ou de fundo, baseia-se no combate aos seu cumprimento por parte do doente, a técnica
fatores desencadeantes das crises. A dessensi- inalatória e a evicção dos fatores agravantes, não
bilização alergénica (imunoterapia específica) é se consegue controlar a doença. Ponderamos en-
usada nalguns casos de asma ou outras doenças tão associar um anticorpo monoclonal anti-IgE
alérgicas mediadas por IgE. É dirigida à alergia (omalizumab) – esta terapêutica é de uso exclusivo
em si, não à doença asmática, que nem sempre em meio hospitalar, muito dispendiosa, requer
é alérgica. Muitos doentes têm a asma contro- via injetável (subcutânea) com doses periódicas
lada sem necessidade de medicamentos preven- (quinzenais ou mensais) e por tempo prolongado
tivos – raras e leves exacerbações, sem recorrer (anos). Nenhum medicamento usado na asma é
a SU, sono e atividade sem restrições, incluindo isento de efeitos secundários eventuais. Porém,
exercício físico, as provas funcionais respiratórias usando as doses e as associações preconizadas
(espirometria) não mostram um padrão obstrutivo; e respeitando as normas para cada grupo etário,
usam apenas um broncodilatador em S.O.S. e a terapêutica é segura, mesmo usada a longo
passam semanas ou meses sem deles necessitar. prazo, sem consequências futuras.
Nos casos em que a asma não está controlada ou A terapêutica inalatória é, como dissemos,
está parcialmente controlada teremos que recor- de eleição, tanto para o tratamento das crises
rer a medicamentos preventivos, de forma contí- como de manutenção. Exige domínio da técnica
nua, diária. Em primeira linha usam-se corticoides por parte do doente e da família, sendo impres-
inalados (budesonida, fluticasona). Nas crianças cindível que os profissionais de saúde façam o
em idade pré-escolar com AIV o montelucaste é ensino e verificação de erros, bastante frequentes,
uma alternativa ao corticoide inalado, podendo aliás. Não se pode prescrever um medicamento
usar-se em monoterapia ou em associação. Em inalado sem exemplificar e confirmar que o doente
todos os doentes, o controlo da asma é baseado aprendeu e colabora, testando a sua competência
em degraus terapêuticos, procurando a medica- e adaptando o dispositivo a cada grupo etário e
ção mínima que controle a doença, satisfazendo individualmente. Na idade pré-escolar usam-se os
os critérios de asma controlada descritos acima. inaladores pressurizados (metered-dose inhaler
Até atingir esse controlo, sobem-se degraus te- - pMDI) com câmara expansora. Esta tem uma
rapêuticos, aumentando as doses de corticoide máscara facial acoplada que facilita a inalação
inalado, associando antagonistas dos recetores nos primeiros anos de vida. Pelos três ou quatro
dos leucotrienos (montelucaste é o mais usado em anos a criança já consegue inalar pelo bocal da
Pediatria) ou associando agonistas dos recetores β câmara. Os pMDI contêm uma mistura do fármaco
com longa duração de ação (formoterol ou salme- com gás pressurizado, libertando-o sob a forma
terol). Nestes casos a medicação de controlo será de spray. Só no adolescente treinado poderão ser
dupla ou tripla, havendo dispositivos que contêm usados diretamente, sem câmara. A partir dos
CAPÍTULO 20. DOENÇA ALÉRGICA 333
cinco ou seis anos, a maioria das crianças aprende chegar a cinco ou dez espirros, intervalados de
a inalar medicamentos em forma de pó seco (dry alguns segundos.
Powder Inhaler-DPI) – o fármaco encontra-se em O doente coça o nariz com a palma da mão,
contentores de pó muito fino que é inalado à num movimento ascendente descrito como sau-
custa de um dispositivo com bocal, exigindo um dação alérgica, o que causa uma típica prega
fluxo inspiratório suficiente para o transportar até transversal na pirâmide nasal e um nariz arrebita-
à árvore brônquica. São muito práticos, portáteis do, com bordos grossos nas abas nasais. Quando
e os mais usados desde a idade escolar à adoles- coça sem mão, faz esgares ou caretas. O prurido
cência, incluindo adultos. Uma referência final aos do palato e da faringe provoca sons guturais e
nebulizadores, que só são usados em SU, para pigarro. À nasoscopia vê-se hipertrofia dos cor-
administrar grandes doses de broncodilatadores netos inferiores, que estão inflamados, azulados
em casos graves ou em doentes incapazes de ou pálidos, por vezes recobertos por muco filante.
usar inaladores. Junto às pálpebras inferiores há zonas violáceas ou
acastanhadas, conferindo um aspeto olheirento,
20.2.2 Rinite alérgica devido à congestão venosa da rinossinusite que
acompanha a rinite, e que é a responsável pela dor
A rinite é a doença alérgica mais prevalente. e tensão frontal e malar. As pálpebras inferiores
Coexistindo quase sempre com a asma (80% dos têm uma dupla prega (pregas de Dennie-Morgan)
doentes asmáticos têm rinite como co-morbilida- que confere uma facies atópica caraterística.
de) pode existir de forma isolada, constituindo Na idade pré-escolar a rinite associa-se ge-
por si um fator de risco para o desenvolvimento ralmente a otite seromucosa.
de asma (cerca de 30% dos doentes com rinite A rinoconjuntivite alérgica (RCA) pode ser
têm ou virão a ter asma). Uma rinite não tratada sazonal (polínica) ou perene, dependendo da ex-
ou mal controlada pode ser responsável por uma posição ao alergénio. Nas alergias indoor (ácaros,
asma mal controlada. Afeta também a qualidade animais domésticos) havendo um contacto diário,
de vida e a escolaridade. peranual, com os alergénios, o componente obs-
Os sintomas são característicos – prurido, trutivo costuma ser predominante. Nas alergias
obstrução ou congestão, rinorreia e espirros. outdoor (pólens) o contacto é sazonal e tornam-
O prurido é referido ao nariz, olhos, faringe, pa- -se mais evidentes a rinorreia, espirros e prurido.
lato mole e por vezes aos ouvidos. A obstrução Com base na duração de sintomas, classifica-se
nasal compromete o fluxo, obrigando a respiração como persistente ou intermitente (mais/menos de
bucal, sobretudo noturna, geralmente acompa- quatro dias por semana ou mais/menos de qua-
nhada de roncopatia ou mesmo apneia do sono. tro semanas por ano); ou episódica (i.e. contacto
A rinorreia é serosa ou seromucosa, anterior e esporádico com um alergénio).
posterior (provocando um fungar repetido ou Os anti-histamínicos (AH) melhoram sobre-
uma tosse produtiva crónica). As salvas de espirros tudo o prurido, tendo algum efeito sobre a rinor-
ou crises esternutatórias são típicas, podendo reia e os espirros, mas não sobre a obstrução.
334 JOSÉ ANTÓNIO PINHEIRO
Usam-se sobretudo por via oral e apenas estão vago. O diagnóstico é clínico e o contacto recente
indicados os AH não-sedativos, de segunda ge- com um alergénio conhecido para aquele doente
ração (loratadina e desloratadina; cetirizina e le- facilita a decisão. A terapêutica é de emergência,
vocetirizina; ebastina; rupatadina). São úteis nas mesmo em caso de dúvida – administra-se adre-
agudizações, de acordo com a exacerbação dos nalina por via intramuscular na face externa
sintomas, mas também em períodos prolongados da coxa, na dose de 0,01 mg/kg (a dose máxima
(meses). Melhoram também os sintomas oculares. pediátrica é de 0,3 mg). A adrenalina, também
A azelastina é um AH tópico, nasal ou ocular chamada epinefrina, tem uma concentração de
atuando por ação local nos mesmos sintomas 1mg/ml (milesimal) pelo que usamos na prática
que os AH orais. a dose de 0,01ml/kg (ou seja 0,1ml por cada 10
Os corticoides tópicos (budesonida, flutica- kg de peso). Esta dose é repetida passados dez
sona, mometasona) atuam sobre todos os com- minutos na ausência de resposta. Em caso de cho-
ponentes da rinite, sendo imprescindíveis quando que ou paragem cárdio-respiratória procede-se às
há grande hipertrofia dos cornetos, obstrução medidas de reanimação. É necessário canalizar
e redução dos fluxos nasais. Devem usar-se por uma veia e, em caso de broncospasmo, administrar
períodos prolongados (várias semanas) sendo se- broncodilatadores por via inalatória. Os corticoides
guros em Pediatria. Porém a técnica de adminis- sistémicos e os anti-histamínicos só são usados
tração e a aceitação em idade pré-escolar limitam depois de tomadas estas medidas, já que têm um
o seu uso nos primeiros anos de vida. início tardio de ação.
Os principais alergénios causadores de anafi-
20.2.3 Anafilaxia laxia são os alimentos – proteínas do leite de vaca,
frutos de casca rija, frutos frescos, amendoim,
É uma reação alérgica sistémica grave, de peixe, marisco e ovo. A anafilaxia a medicamentos
hipersensibilidade imediata, que ocorre minutos ou é rara e às vacinas é excecional.
poucas horas após exposição a um alergénio, tem A alergia ao látex pode causar anafilaxia,
início súbito e sintomas progressivos, podendo che- sobretudo no bloco operatório, quando se desco-
gar ao choque e, potencialmente, ser fatal. Afeta nhece que o doente é alérgico. É mais frequente
vários órgãos em simultâneo. Na pele e mucosas em doentes submetidos a várias intervenções ci-
cursa com prurido, urticária e angioedema labial rúrgicas e nos doentes com espinha bífida (alga-
e palpebral, raramente da língua e da úvula. A liações repetidas). Obriga à evicção de qualquer
hipotensão, hipotonia e a síncope são frequentes, contacto com objetos de borracha, à preparação
devendo ser feito o diagnóstico diferencial com prévia de uma sala de operações “latex-free” e à
síncope vasovagal. Podem associar-se sinais res- exclusão de alergia cruzada a alguns alimentos –
piratórios (pieira, dispneia, estridor) ou digestivos castanha, kiwi, banana, pêssego, abacate, entre
(vómitos, cólicas e diarreia). Nos primeiros anos outros – conhecida como síndrome látex-frutos.
de vida deve valorizar-se a má impressão clínica – Uma forma rara e poucas vezes reconhecida
criança hipotónica e hiporreativa, pálida, com olhar de anafilaxia é a Food Dependent Exercise Induced
CAPÍTULO 20. DOENÇA ALÉRGICA 335
Anaphylaxis (FDEIA). Como o nome indica trata-se antecedentes pessoais é usual relatar-se um con-
de uma anafilaxia que surge durante o esforço tacto precoce com PLV nos primeiros dias de vida,
físico mas que está dependente de um alergénio quase sempre um “biberão de leite adaptado
alimentar previamente ingerido, a que o doente na Maternidade” responsável pela sensibilização
em geral está sensibilizado. A anafilaxia só ocorre (priming). O mecanismo imunológico nestes casos
na sequência ingestão-exercício, pelo que a pre- é mediado por IgE, como se pode evidenciar por
venção passa pelo afastamento temporal dos dois testes epicutâneos (Prick test ou Prick-to-Prick)
fatores desencadeantes (não praticar esforços nas ou pela elevação das IgE séricas específicas das
duas ou três horas que se seguem à ingestão do proteínas do leite de vaca (caseína, beta-lactoglo-
alimento identificado, em regra o trigo e outros bulina, alfa-lactalbumina, as principais). Quando
cereais, leguminosas ou leite). a APLV não é mediada por IgE as manifestações
Todo o doente com risco ou com passa- clínicas são mais inespecíficas – má progressão
do de anafilaxia deve fazer-se acompanhar de ponderal, diarreia, hematoquésia (por retocolite),
auto-injetor de adrenalina, sendo a família e os irritabilidade e cólicas abdominais. Em caso de
professores informados das indicações e técnica dúvida, a prova de provocação oral (PPO) após
de administração. Na escola ou infantário haverá um período de exclusão de PLV na dieta será
um auto-injetor acessível. sempre o meio gold standard para o diagnóstico.
O tratamento da APLV consiste na substituição
20.2.4 Alergia alimentar do aleitamento por fórmulas com proteínas ex-
tensamente hidrolisadas (eHF); excecionalmente
Trata-se de uma reação imunológica, em recorre-se a fórmulas de aminoácidos. A APLV
regra mediada por IgE, a uma proteína alimentar pode ainda surgir num lactente amamentado,
específica. Leite de vaca, ovo, peixe, frutos frescos, sendo as PLV veiculadas pelo leite materno (LM).
frutos de casca rija, mariscos, amendoim são os É uma situação rara, estando indicada a exclusão
alimentos mais vezes implicados. de produtos lácteos da dieta materna, mantendo
A alergia às proteínas do leite de vaca o LM. A aquisição de tolerância é testada se-
(APLV) representa cerca de metade das alergias quencialmente pela monitorização das IgE séricas
alimentares em idade pediátrica. É uma alergia específicas, pelos testes cutâneos e finalmente
transitória na grande maioria dos casos, visto que por uma PPO negativa. Recordamos que qualquer
80 % das crianças adquire tolerância nos primei- doente com APLV não pode ingerir nenhum ali-
ros três anos de idade. Só em 20% dos casos a mento que contenha proteína de LV ou de outros
alergia persiste. A apresentação clínica habitual é leites não testados (i.e. de cabra). As fórmulas à
uma urticária que surge nos primeiros meses de base de proteína de soja são uma alternativa nos
vida, após a ingestão de leite de fórmula ou papa casos em que há uma alergia persistente mediada
láctea num lactente exclusivamente alimentado por IgE, mas deverá sempre ser feita uma prova
com leite materno. Por vezes há angioedema ou de tolerância prévia em meio hospitalar. Como
vómitos associados, raramente anafilaxia. Nos é evidente, um doente com APLV pode ingerir
336 JOSÉ ANTÓNIO PINHEIRO
Leitura complementar
GINA - Global Initiative for Asthma. www.ginasthma.org.
ARIA - Allergic Rhinitis and its Impact on Asthma. www.
whiar.org.
PRACTALL - Practical Allergy - consensus report. Allergy 2008;
63:5-34 .
ICON - International consensus on pediatric asthma. Allergy
2012; 67: 976–997.
Norma DGS nº 016 de 27/09/2011, atualizada a 14/6/2012
www.dgs.pt.
Manual para a abordagem da sibilância em idade pediátrica
www.dgs.pt.
Afiliação
de Autores
GUIOMAR OLIVEIRA JORGE SARAIVA
Susana Almeida
susana.almeida.coimbra@gmail.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Gastroenterologia e Nutrição Pediátrica
Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Serviço de Pediatria Médica do Hospital Pediátrico
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Tabita Maia
Tabita.Maia@chuc.min–saude.pt
Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
Assistente Hospitalar de Hematologia Clínica
Unidade de Eritropatologia e Distúrbios do Ferro
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente Convidada da Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
CIÊNCIAS
DA SAÚDE
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
COIMBRA UNIVERSITY PRESS
VOL. II
LIÇÕES DE
PEDIATRIA
GUIOMAR OLIVEIRA
JORGE SARAIVA
COORDENAÇÃO
Página deixada propositamente em branco
LIÇÕES
DE
PEDIATRIA
VOLUME II
GUIOMAR OLIVEIRA
JORGE SARAIVA
COORDENAÇÃO
GUIOMAR OLIVEIRA
JORGE SARAIVA
COORDENAÇÃO
Prefácio ................................................................................................................................................. 9
Jeni Canha e H. Carmona da Mota
VOLUME I
1. Introdução à Pediatria no contexto do ensino médico................................................................. 11
Jorge Saraiva
2. A organização da rede de cuidados de Saúde Infantil e Juvenil em Portugal............................ 21
José Carlos Peixoto
3. Programa nacional de intervenção precoce................................................................................... 33
José Boavida
4. História Clínica................................................................................................................................. 41
Guiomar Oliveira
5. Medicamentos mais utilizados em pediatria e iatrogenia............................................................ 53
Carla Chaves Loureiro
6. A genética em Pediatria.................................................................................................................. 63
Jorge Saraiva
7. Meios complementares de diagnóstico em Pediatria.................................................................... 71
Cândida Cancelinha
8. Suporte básico e noções de suporte avançado de vida pediátrico.............................................. 87
Carla Pinto
9. Neonatologia..................................................................................................................................115
José Carlos Peixoto e Carla Pinto
10. Alimentação e suplementos........................................................................................................ 157
Mónica Oliva
11. Crescimento e os seus problemas................................................................................................ 171
Raquel Soares
12. Neurodesenvolvimento e comportamento.................................................................................211
Guiomar Oliveira
13. Sono normal e problemas de sono............................................................................................. 233
Núria Madureira e Maria Helena Estevão
14. Adolescência................................................................................................................................. 245
Paulo Fonseca
15. O Programa Nacional de Vacinação e outras Vacinas................................................................ 259
Fernanda Rodrigues
16. Febre.............................................................................................................................................. 273
Alexandra Oliveira
17. Exantemas..................................................................................................................................... 279
Alexandra Oliveira
18. Infeções das vias respiratórias superiores................................................................................... 295
Gustavo Januário
19. Infeções das vias respiratórias inferiores.................................................................................... 315
Patricia Mação
20. Doença alérgica........................................................................................................................... 327
José António Pinheiro
Afiliação de Autores.......................................................................................................................... 339
VOLUME II
21. Infeção urinária.............................................................................................................................. 11
Clara Gomes
22. Vómitos........................................................................................................................................... 25
Susana Almeida
23. Diarreia aguda e crónica............................................................................................................... 35
Susana Almeida
24. Dor abdominal aguda e crónica................................................................................................... 49
Ricardo Ferreira
25. Causas cirúrgicas de dor abdominal............................................................................................. 55
Maria Francelina Lopes
26. Patologia frequente em cirurgia de ambulatório........................................................................ 61
Maria Francelina Lopes
27. Ortopedia, variantes da normalidade e problemas frequentes................................................. 67
Cristina Alves
28. Obstipação, encoprese e enurese................................................................................................. 87
Mónica Oliva
29. Problemas dermatológicos mais comuns em Pediatria............................................................. 103
Gustavo Januário
30. Infeções da pele e dos tecidos moles......................................................................................... 127
Fernanda Rodrigues
31. Púrpuras/Vasculites...................................................................................................................... 139
Paula Estanqueiro
32. Bacteriémia e sépsis..................................................................................................................... 149
Andrea Dias
33. Meningite e meningoencefalite................................................................................................. 161
Ana Brett
34. Hematúria e proteinúria.............................................................................................................. 175
António Jorge Correia
35. Cefaleias....................................................................................................................................... 199
Mónica Vasconcelos
36. Poliúria e polidipsia......................................................................................................................211
Rita Cardoso
37. Anemias........................................................................................................................................ 219
Leticia Ribeiro e Tabita Magalhães Maia
38. Acidentes e Intoxicações............................................................................................................. 245
Lia Gata
39. Criança maltratada...................................................................................................................... 255
Jeni Canha
40. Fenómenos paroxísticos, crises epiléticas e epilepsias.............................................................. 267
Cristina Pereira e Conceição Robalo
41. Doenças cardíacas mais comuns.................................................................................................. 283
António Pires
42. Introdução às Doenças hereditárias do metabolismo............................................................... 297
Luísa Diogo
43. A criança submetida a transplante de órgãos sólidos................................................................311
Isabel Gonçalves
44. Imunodeficiências Primárias – Quando Suspeitar?.................................................................... 321
Sónia Lemos
45. Doença oncológica...................................................................................................................... 329
Manuel Brito e Alexandra Paul
Afiliação de Autores.......................................................................................................................... 353
9
H. Carmona da Mota
Capítulo 21.
Infeção urinária
21
Clara Gomes
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_21
CAPÍTULO 21. INFEÇÃO URINÁRIA 13
de termo estima-se uma prevalência de 1.1% mas, ser valorizados. Nas crianças mais velhas, o qua-
na criança até aos dois anos de idade com febre, dro clássico é a presença de febre e lombalgia
sobe para 5%. mas a febre isolada é também uma forma de
Aos 16 anos estima-se uma incidência acu- apresentação comum.
mulada no sexo feminino de 11,3% versus 3,6% Pela clínica inespecífica o diagnóstico dife-
no masculino. rencial entre cistite e PNA nem sempre é fácil.
As crianças de raça caucasiana apresentam Dum modo geral considera-se PNA ou ITU alta,
uma prevalência de ITU superior às de raça negra. a ITU com febre, a ITU em criança com menos
de dois anos e a ITU associada a lombalgia. Na
21.2.3 ITU recorrente criança com dois ou mais anos, a ITU sem febre
denomina-se cistite.
As raparigas têm maior predisposição para Nas crianças com menos de três anos, cor-
ITU recorrente do que os rapazes assim como as retamente vacinadas, com febre (superior a 38
crianças que têm a primeira ITU em idade preco- graus) sem foco, a PNA é a causa mais frequente de
ce. Estima-se que ¾ das crianças com uma ITU infeção bacteriana grave. Urina turva ou com odor
no primeiro ano de vida, e 40% das raparigas e fétido devem evocar o diagnóstico. Em crianças
30% dos rapazes, com primeira ITU após o ano com mais de dois anos podem existir outros sinais
de vida, irão repetir outro episódio. As raparigas e sintomas como disúria, polaquiúria, ou lombalgia.
têm maior probabilidade de recorrência de ITU Na história clínica podem identificar-se al-
com a idade, o que não acontece nos rapazes. guns dados que sugerem ITU associada a pa-
Para efeitos de investigação imagiológica tologia grave subjacente: jacto urinário fraco,
considera-se ITU recorrente pelo menos duas PNA, história sugestiva ou confirmada de ITU prévia,
três cistites, ou uma PNA e uma cistite. febre recorrente de etiologia desconhecida, diag-
nóstico pré-natal de malformação nefrourológica,
21.2.4 Diagnóstico história familiar de refluxo vesico-ureteral (RVU)
ou doença renal, obstipação, sinais de disfunção
Clínica miccional, massa abdominal, lesão medular ou
Para o diagnóstico de ITU é necessário com- má evolução ponderal.
provar a presença de bactérias na urina e existirem
queixas clinicas. A cistite manifesta-se habitualmente por
A PNA é mais frequente nas crianças mais disúria, polaquiúria, dor supra-púbica ou incon-
pequenas e o principal sinal é a febre. Nos lacten- tinência urinária, sem febre. No entanto, este
tes pode acompanhar-se de sintomas inespecífi- quadro semiológico pode dever-se a outras pa-
cos como irritabilidade, vómitos e má progressão tologias como vulvovaginite, parasitose intestinal
ponderal e nos recém-nascidos pode nem existir ou alterações funcionais da micção.
febre e sinais e sintomas como letargia, recusa Assim, a suspeita clínica de ITU na criança
alimentar, gemido ou icterícia prolongada devem exige sempre a realização de análises de urina.
CAPÍTULO 21. INFEÇÃO URINÁRIA 15
Adaptado de National Collaborating Centre for Women’s and Children’s Health, Commissioned by the National Institute for Health
and Clinical Excellence. Urinary tract infection in children: diagnosis, treatment and long-term management. London: RCOG Press;
2007; Practice parameter: the diagnosis, treatment and evaluation of the initial urinary tract infection in febrile infants and young
children. American Academy of Paediatrics. Paediatrics 1999; 103:843-52.IC- intervalo de confiança.
correta (com água e sabão e não desinfetante) sendo necessário confirmar com novas colhei-
e substituição periódica do saco coletor (de 30 tas. A urocultura positiva é indispensável para
em 30 minutos). o diagnóstico de ITU, mas isolada não permite
A colheita por punção vesical (PV) aspirativa, o diagnóstico nem consegue avaliar a gravidade
suprapúbica, é a técnica ideal para evitar a conta- da infeção. Apenas os dados clínicos combinados
minação da urina em crianças mais pequenas. No com a urocultura permitem o diagnóstico seguro
entanto, é um procedimento invasivo, doloroso e de ITU.
nem sempre consegue obter urina, o que pode
ser melhorado se for guiado com ecografia. A bacteriúria assintomática é um exemplo
A algaliação é um método também invasi- da presença de bactérias na urina sem sintomas
vo, tecnicamente mais fácil de executar e menos – não deve ser considerada uma ITU e não exige
doloroso do que a PV, mas não é isento do ris- tratamento.
co de contaminação e no rapaz pode provocar A sua prevalência é significativa: 2 a 3% nos
traumatismo uretral. Tal como na colheita por recém-nascidos do sexo masculino, 1.5 a 2% nos
jato médio, deverá ser desperdiçada a primeira lactentes e 0.8 a 2% em meninas com mais de
porção de urina. dois anos com um pico de prevalência nas rapari-
gas em idade escolar. Habitualmente confirma-se
A urocultura da colheita por saco coletor em uroculturas consecutivas crescimento signi-
só deve ser valorizada se fôr negativa – não per- ficativo do mesmo gérmen, único e que não se
mite diagnóstico de ITU devido à elevada taxa acompanha de alterações do sedimento urinário,
de contaminação. A PV, o cateterismo e o jato nomeadamente piúria, exceto nalgumas situações.
médio são as únicas técnicas consideradas assé- Habitualmente não condiciona complicações
ticas e que devem ser usadas para confirmar o mesmo se associada a RVU, e por isso o tratamen-
diagnóstico de ITU e como técnicas de colheita to é desnecessário e contraindicado pelo risco de
inicial nos doentes que necessitam de tratamento selecionar estirpes mais agressivas.
antibiótico urgente.
Tipicamente a ITU é provocada por um úni- Como nem sempre é fácil o diagnóstico di-
co microorganismo. Cada bactéria dá origem a ferencial entre cistite e PNA alguns exames labo-
uma colónia. Para o diagnóstico laboratorial de ratoriais podem ajudar: a proteína C reativa ou a
ITU é necessária uma elevada concentração de procalcitonina elevadas e a presença de leucocito-
colónias na amostra urinária que vai depender se neutrófila são a favor do diagnóstico de PNA.
do método da colheita da urina: por saco e jato A hemocultura pode também ser positiva,
médio considera-se positiva se ≥ 100.000 (105) sobretudo em pequenos lactentes com maior risco
colónias por ml de urina, por PV e por cateterismo de bacteriémia.
se ≥ 1.000 (103) bactérias/ml. O cintigrama renal com ácido dimercapto-
Quando a urina é contaminada podem existir succínico (DMSA) marcado com tecnécio 99-m
culturas mistas de bactérias e contagens inferiores efetuado na fase aguda, é o exame de eleição
CAPÍTULO 21. INFEÇÃO URINÁRIA 17
de curta duração seguida da via oral versus a via para as crianças com PNA e tratamento curto (três
EV exclusiva durante todo o tratamento. Assim, a cinco dias) para as crianças imunocompetentes
os doentes com ITU febril, sempre que o estado com ITU não febril.
geral o permita e sem patologia nefro-urológica
subjacente, podem ser tratados de modo seguro Nos quadros 2 e 3 resume-se o protocolo
por via oral. usado no Hospital Pediátrico de Coimbra. O tra-
Quando se inicia pela administração paren- tamento empírico da cistite pode ser efetuado
teral esta deve manter-se até o doente melhorar com amoxicilina+ácido clavulânico por via oral.
clinicamente, ficar apirético e conseguir tolerar Agentes orais como ácido nalidíxico e ni-
a medicação oral. trofurantoína, que são excretados na urina mas
Nos recém-nascidos o risco de urosépsis é não proporcionam níveis séricos adequados, não
maior (12 a 30%), pelo que neste grupo é mais devem ser administrados para tratar ITU febril
seguro que o tratamento seja parentérico em re- nas quais o envolvimento do parênquima renal
gime de internamento durante sete a dez dias. é elevado assim como o risco de bacteriémia.
Vários estudos têm demonstrado eficácia em
tratamentos de curta duração (dois a quatro dias) Vários estudos observacionais têm demons-
na erradicação das bactérias em crianças com ITU trado que após o início do tratamento não são
não febril. Não existem muitos dados em crianças necessários controlos analíticos de urina se a evo-
com PNA mas a tendência é para reduzir o tempo lução clínica for favorável nas primeiras 48 horas.
de antibioterapia. As recomendações atuais vão No entanto, se houver má evolução clínica
no sentido de tratamento longo (sete a dez dias) sem resolução dos sintomas após 48 a 72 horas
CAPÍTULO 21. INFEÇÃO URINÁRIA 19
ou se o gérmen isolado não for sensível ao antibió- recorrente e nas crianças com anomalias urológi-
tico instituído, a terapêutica empírica inicial deve cas e risco de PNA até à cirurgia.
ser revista e adaptada ao resultado do antibio- Os fármacos mais adequados são o trime-
grama. Outras causas para a falência terapêutica toprim, cotrimoxazol, cefadroxil, cefatrizina ou
podem incluir uropatia obstrutiva e abcesso renal; nitrofurantoína, administrados no terço da dose
nestas circunstâncias a ecografia renal e vesical terapêutica, numa toma oral à noite.
pode ser útil.
21.2.7 Outras terapêuticas
21.2.6 Profilaxia
A disfunção vesical, alteração frequente em
Nos últimos anos o uso de antibioterapia raparigas entre os quatro e os 12 anos, é uma
profilática, em dose baixa (habitualmente 1/3 da causa de ITU. Depois de excluídas causas neuroló-
dose terapêutica) por rotina, após a primeira ITU gicas e urológicas, deve-se investir na terapêutica
tem sido contestado. Vários estudos, com algu- não farmacológica com o reforço de ingestão
mas falhas metodológicas, não têm demonstrado hídrica adequada, micções regulares e completas e
claramente redução da recorrência de ITU e da controle da obstipação. Pode ser necessária tera-
cicatriz renal nas crianças sob profilaxia versus pêutica farmacológica com oxibutinina ou outros
placebo, exceto em situações de RVU mais in- fármacos de acordo com o tipo da disfunção.
tenso onde parece ter algum efeito benéfico. Na
verdade, evidência científica recente sugere que o Os processos inflamatórios do parênquima
RVU diagnosticado após ITU febril ou sintomática renal na fase aguda da PNA estão relacionados
submetido a profilaxia com cotrimoxazol reduziu com a génese da cicatriz renal que tem sido o
em 50% a recorrência de ITU, principalmente a enfoque da investigação e tratamento. Alguns
febril e a associada a disfunção vesical, mas não estudos têm avaliado o papel potencial de agentes
teve efeito na redução de cicatriz renal. anti-inflamatórios como corticóides (dexametaso-
A prática mais consensual consiste na admi- na e metilprednisolona) associados aos antibióti-
nistração de profilaxia em determinadas situações cos na fase aguda. Os resultados parecem apontar
como crianças com RVU intenso (≥ a grau III), ITU para redução do risco de cicatriz renal sem afetar
20 CLARA GOMES
a taxa de recorrência da ITU. Esta pode vir a ser e lesão crónica (cicatriz) com sensibilidade muito
uma vertente terapêutica com interesse clínico. superior à da ecografia e eco doppler. Estudos
experimentais demonstram que atinge uma sen-
21.2.8 Investigação imagiológica sibilidade de 85 e especificidade de 95% face ao
resultado histopatológico.
O objetivo principal na investigação imagio- De um modo geral considera-se anormal
lógica após uma ITU consiste em detetar anoma- se existe uma redução da função dum rim rela-
lias congénitas ou adquiridas do rim e do trato tivamente ao outro superior a 5% ou evidência
urinário ou RVU que são fatores de risco para ITU de zonas de hipocaptação cortical com distor-
recorrente e lesão renal. ção ou perda do contorno renal normal. Estas
Nos últimos anos a investigação de ITU tem alterações podem ser agudas e resolverem, ou
sido um dos temas mais controversos com ten- permanecerem. O cintigrama renal tardio, que
dência a ser simplificada. deve ser efetuado pelo menos seis meses após
o episódio de ITU, permite fazer o diagnóstico
A ecografia renal, um exame inócuo, de diferencial: a existência de defeitos de captação
fácil acesso é um exame de primeira linha na nesta fase representa cicatrizes que permanecerão
avaliação após uma ITU. É pouco sensível para como sequelas.
o diagnóstico de PNA e de RVU. Contudo, per- Em crianças com menos de dois anos com
mite identificar dilatação das vias urinárias ou PNA e maior risco de desenvolver cicatriz renal, o
alterações como localização, assimetria renal ou cintigrama renal na fase aguda (primeiros cinco a
alterações vesicais e ajuda a orientar os exames sete dias após o início da febre) pode ser útil para
posteriores. orientar a estratégia diagnóstica posterior – neces-
As indicações mais consensuais para a reali- sidade de cistografia ou cintigrama renal tardio.
zação de ecografia são: em crianças com menos Um DMSA normal durante o primeiro episódio
de dois anos com primeiro episódio de PNA; em de ITU febril exclui a presença de RVU intenso
qualquer criança com ITU febril recorrente; crian- sem risco de cicatriz posterior. Pelo contrário um
ças com uma ITU e história familiar de doença DMSA alterado na fase aguda é preditivo de RVU
renal ou urológica, má progressão ponderal ou significativo com maior risco de recorrência da
hipertensão arterial e falência de resposta a te- ITU e de cicatriz renal.
rapêutica antibiótica apropriada. Na prática, a indisponibilidade do DMSA nos
A ecografia com doppler aumenta a sensibi- primeiros dias de ITU febril em muitos centros,
lidade para o diagnóstico de PNA, mas é menos limita o seu uso.
disponível e mantem escassa sensibilidade para
detetar RVU. A cistografia direta é o exame ideal para
diagnosticar RVU. Pode ser radiológica, isotópi-
A cintigrafia renal com DMSA é o método ca ou ecográfica. O procedimento consiste na
de eleição para identificar lesão renal aguda (PNA) introdução de produto de contraste (radiológico,
CAPÍTULO 21. INFEÇÃO URINÁRIA 21
o atraso no tratamento eficaz, a ITU recorrente, Definiam ITU atípica como toda a ITU manifesta-
o RVU intenso e a uropatia obstrutiva são os da com doença grave, jato urinário fraco, massa
fatores de risco para lesão definitiva – a cicatriz abdominal ou vesical, creatinina sérica elevada,
renal. É esta lesão sequelar que pode condicio- septicémia e infeção por microorganismos que
nar hipertensão arterial, proteinúria persistente e não a Escherichia coli ou ITU que não responde
evolução para insuficiência renal terminal e que ao tratamento em 48 horas. Sugeriam ainda a
passou a ser o foco que assume maior relevância possível necessidade de realização de cistografia
na orientação da ITU. nas crianças entre os seis meses e os três anos
Nos últimos anos tem-se questionado o inte- com ITU atípica ou recorrente e dilatação pie-
resse da cistografia de rotina em todas as crianças localicial na ecografia renal, jato urinário fraco,
com ITU. O diagnóstico do RVU e a possibilida- ITU não causada pela Escherichia coli e história
de de correção cirúrgica parecia ser a solução familiar de RVU.
para prevenir lesão renal. No entanto, depois Em 2011 foram publicadas as orientações
do entusiasmo inicial nos anos 80, começou a da Academia Americana de Pediatria que dei-
verificar-se que muitos casos de RVU resolviam xaram de recomendar a cistografia de rotina
espontaneamente, e que algumas crianças em para todas as crianças com a primeira ITU febril
que se resolvia cirurgicamente o RVU, continua- e a propõem apenas após a segunda ITU, exce-
vam a ter ITU repetida e noutras, mesmo sem to se existirem circunstâncias clínicas atípicas
ITU aparente, as lesões renais evoluíam. Alguns ou complexas ou se a ecografia renal revelar
defeitos renais atribuídos a cicatriz eram na ver- hidronefrose, cicatrizes renais ou achados su-
dade lesões displásicas pré-natais. O papel do gestivos de RVU de grau elevado (IV ou V) ou
RVU não é então suficiente nem necessário para de uropatia obstrutiva.
o desenvolvimento da lesão cicatricial, e a eficácia
do tratamento do RVU na prevenção de cicatriz A tendência atual é realizar cistografia nas
também é controverso em vários estudos. crianças com dois ou mais episódios de PNA e
Assim, apesar do risco de cicatriz renal poder nas crianças com uma PNA e história familiar
aumentar com RVU mais intenso, não é claro nos de doença renal ou urológica, ou má progres-
estudos, que o benefício, em diagnosticar e tratar são ponderal, ou hipertensão arterial, ou se a
o RVU por rotina em todas as crianças, ultrapasse ecografia renal ou o cintigrama renal revelarem
os riscos e custos inerentes. alterações.
As guidelines do National Institute for Health Tradicionalmente a cistografia era diferida
and Clinical Excellence (NICE) publicadas em 2007 pelo menos três a quatro semanas após a ITU
constituíram uma mudança radical na orientação para evitar falsos positivos de RVU. Atualmente
da ITU com redução significativa na investiga- preconiza-se que a altura em que é feita não
ção imagiológica. Estas orientações sugeriam a influencia a presença ou a gravidade do RVU,
cistografia nas crianças com idade inferior a seis podendo ser efetuada durante o tratamento da
meses e ITU recorrente (definição atrás) ou atípica. ITU, logo que a criança esteja assintomática.
CAPÍTULO 21. INFEÇÃO URINÁRIA 23
22
Susana Almeida
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_22
CAPÍTULO 22. VÓMITOS 27
Designa-se por «vómito», a expulsão forçada O vómito em idade pediátrica surge ge-
do conteúdo gástrico pela boca, resultado de uma ralmente associado à gastroenterite aguda, no
resposta autonómica organizada. Trata-se de um entanto, é um sintoma inespecífico, podendo cor-
sintoma muito frequente em idade pediátrica. responder à apresentação inicial de patologias
A regurgitação por refluxo gastro esofágico, infeciosas, extra digestivas (infeção respiratória
tão frequente no primeiro ano de vida, é frequen- alta, pielonefrite, meningite, septicémia); de ano-
temente confundida com o vómito. Por questões malias digestivas (refluxo gastro esofágico, este-
didácticas, será também abordada nesta lição. nose hipertrófica do piloro, invaginação intestinal,
atresia intestinal, volvo e outras oclusões como Embora tratando-se de um sintoma muito
hérnia encarcerada); de lesões intracranianas (por inespecífico, uma história clínica e exame objetivo
hipertensão intracraniana) e de doenças endócri- cuidadosos são geralmente reveladores da causa
nas e metabólicas. A classificação etiológica por subjacente aos vómitos.
faixa etária pode ser útil e está pormenorizada Na colheita da anamnese devem abordar-se
no Quadro 1. os seguintes aspetos:
Estímulos centrais
Vestibular
Infecioso
Cortical
Fármacos
Hormonais
Metabólicos
Estímulos periféricos
Estimulação faríngea
Irritação da mucosa gástrica
Distensão gástrica e intestinal
Nem sempre a ingestão de corpos estra- Mais frequente entre os três e os dezoito
nhos é presenciada. Geralmente há referência meses de vida. Deve-se ao movimento telescópico
a quadro inicial de dificuldade respiratória com de uma ansa intestinal proximal para o lúmen
noção de engasgamento, seguida de sialorreia, de uma ansa mais distal, originando obstrução,
queixas variáveis de disfagia e sensação de im- edema e hipoperfusão da mucosa. O local mais
pacto esofágico. Em alguns casos a criança fica frequente de invaginação é a transição ileocólica.
inicialmente assintomática, sobrevindo vómitos Acima dos dois anos de idade, ou em localizações
posteriormente (corpo estranho intra gástrico). mais atípicas, deve pensar-se em patologias da
mucosa que funcionem como cabeça da invagina-
22.2.2 Estenose hipertrófica do piloro (EHP) ção (pólipos, tumores, doença celíaca, púrpura de
Henoch Schonlein, divertículo de Meckel). A clíni-
Deve-se à hipertrofia da musculatura circu- ca de apresentação de uma invaginação intestinal
lar do piloro, com obstrução do lúmen. É mais consiste em episódios paroxísticos de vómitos, dor
frequente entre a terceira e a sexta semanas de abdominal podendo acompanhar-se de dejeções
vida. Os vómitos são projetados e não biliares, com muco e sangue e má impressão clínica. Entre
e o bebé tem fome após o vómito (ao contrário os episódios a criança fica geralmente letárgica
do que ocorre nos quadros infeciosos). Não são e recusa alimentar-se.
acompanhados por diarreia nem febre. São fatores O diagnóstico estabelece-se geralmente com
de risco história familiar de EHP, sexo masculino, recurso à ecografia abdominal, e em mãos expe-
primeira gestação e toma prévia de eritromicina. rientes, o enema com ar ou soro fisiológico resolve
A apresentação clássica é de um pequeno lactente geralmente a invaginação sem recurso à cirurgia
desidratado, com sinais de má progressão ponde- (desinvaginação hidrostática ecoguiada). A taxa
ral, com alcalose metabólica hipoclorémica, hipo- de recorrência de reinvaginação após redução eco
volémia, hipoglicémia e hipocaliémia. Felizmente guiada é de cerca de 10%, devendo por esse mo-
a maioria dos casos apresenta-se sem desidra- tivo manter-se o internamento durante 24 horas.
tação significativa e sem alterações eletrolíticas
ou do equilíbrio ácido-base. Ao exame objetivo 22.2.4 Hérnia inguinal
poderá observar-se em período pós prandial a
designada oliva pilórica, uma formação arredon- Embriologicamente o peritoneu estende-se
dada palpável à direita da coluna na localização pelos anéis inguinais externo e interno em direção
CAPÍTULO 22. VÓMITOS 31
22.2.7 Síndrome dos vómitos cíclicos a idade, embora algumas crianças desenvolvam
migraine clássica na idade adulta.
O síndrome dos vómitos cíclicos é uma per-
turbação funcional gastrointestinal de etiologia 22.2.8 Refluxo gastroesofágico (RGE) e
desconhecida, caracterizada por episódios súbitos, doença do refluxo gastroesofágico (DRGE)
recorrentes e paroxísticos de náusea e vómitos
incoercíveis, de duração variável e autolimitada. O refluxo gastroesofágico é uma perturba-
Nos intervalos entre as crises os doentes estão ção funcional frequente em lactentes, traduz-se
tipicamente assintomáticos. O crescimento não é clinicamente pela regurgitação, que consiste na
geralmente afetado, dado que durante o intervalo expulsão de conteúdo gástrico pela boca sem
entre crises recuperam o apetite e o peso perdido. esforço. A ocorrência de vómitos neste contexto
É mais frequente no sexo feminino, e embora não é frequente (a definição de vómito implica
possa surgir em qualquer idade, é habitual entre expulsão forçada do conteúdo gástrico). O RGE
os cinco e os nove anos de idade. Uma crise é não complicado não necessita de investigação
geralmente precedida por um pródromo, durante imagiológica nem endoscópica, e o tratamento
o qual a criança refere sensação de episódio emi- compreende apenas medidas gerais.
nente, fica letárgica, seguindo-se uma sensação Quando pela sua frequência, intensidade
de náusea intensa que precede os vómitos, que ou composição, o refluxo supera a capacidade
classicamente são projetados e numerosos (até defensiva da mucosa esofágica, dando origem a
seis por hora), podendo tornar-se biliares ou até esofagite, ou a sintomas extra digestivos pertur-
hemáticos (síndrome de Mallory Weiss). Durante badores para a criança (apneias no recém nas-
o episódio são frequentemente referidas cefaleias, cido, pieira recorrente nocturna, má progressão
foto e fonofobia. A criança permanece deitada, ponderal...) passa a designar-se por doença do
pode não deglutir a saliva ou pelo contrário ingerir refluxo gastroesofágico.
pequenos golos de água fria e açucarada para O RGE do lactente é um fenómeno fisiológi-
alívio da náusea. Após um período de tempo va- co, que se intensifica durante os primeiros quatro
riável os vómitos cessam e a criança retoma a sua meses de vida, para depois melhorar significativa-
atividade e apetite normais. Em muitos casos os mente até aos seis meses. Pelos 15 meses de idade
progenitores identificam fatores desencadeantes, os episódios de regurgitação serão excecionais.
geralmente emoções fortes, quer positivas quer Esta evolução sintomatológica é explicada
negativas. O tratamento é sobretudo de supor- por caraterísticas anatómicas do pequeno lacten-
te, evitando a desidratação. Pode recorrer-se a te (menor capacidade gástrica, «incompetência»
antieméticos como o ondansetron e fármacos fisiológica do angulo de His), aspetos nutricionais
ansiolíticos na tentativa de abortar a crise. Como (alimentação exclusivamente líquida e a intervalos
a etiopatogenia não é conhecida, o tratamento muito frequentes), e pela permanência prolongada
de base não está estabelecido. Relativamente ao na posição em decúbito. A melhoria significativa
prognóstico, as crises tendem a melhorar com das regurgitações depois do primeiro semestre
CAPÍTULO 22. VÓMITOS 33
relaciona-se positivamente com a introdução dos A DRGE é rara nos primeiros três meses de
sólidos na alimentação e a maturação neuroló- vida, em lactentes saudáveis.
gica com aumento do tónus axial, permitindo a Existem dois mecanismos fisiopatológicos para
posição sentada. explicar as complicações do RGE. Complicações se-
O tratamento do RGE não complicado ba- cundárias ao pH ácido e conteúdo em pepsina do
seia-se em medidas gerais: material regurgitado e complicações devidas princi-
palmente ao fenómeno mecânico da regurgitação,
Recomendações dietéticas mesmo quando o pH não é acido. Excetuando a
• Fracionamento das refeições. esofagite, que é sobretudo pH ácido dependente,
• Logo que possível, evitar refeições no- todas as outras parecem ter contribuição dos dois
turnas (após o primeiro mês de vida). mecanismos fisiopatológicos descritos.
• Recurso a fórmulas lácteas anti regur- Assim a DRGE pode manifestar-se com:
gitação (reduzem apenas o volume das
regurgitações, não intervindo nos me- • Sintomas e sinais que evocam esofagite
canismos de refluxo. A utilizar em casos (sialorreia persistente associada a recu-
esporádicos, por indicação de Pediatra). sa alimentar e choro durante a refeição;
disfagia, pirose, ardor retroesternal e ra-
Medidas posicionais ramente vómitos hemáticos na criança
Têm um papel fundamental na prevenção mais velha e no adolescente).
das regurgitações e da maioria das possíveis com- • Apneias ou Apparent Life-Threatening
plicações. Deve recomendar-se a posição ereta ao Event (ALTE) Brief Resolved Unexplained
colo durante os 30 minutos após cada refeição Events (BRUE) no prematuro e recém
e a elevação da cabeceira a mais de 30º. A utili- nascido.
zação de «berços anti refluxo» começa a ganhar • Pieiras de repetição e tosse noturna.
popularidade e possuem para além da inclinação • Pneumonias de repetição (mais fre-
da cabeceira ideal, um sistema de retenção in- quente em crianças com atraso de de-
corporado, que evita o deslizamento do lactente senvolvimento psicomotor e doenças
para o fundo da cama. neurológicas).
O tratamento com fármacos procinéticos, • Laringite ou disfonia sem outra causa evi-
dada a sua relativa ineficácia em ensaios clínicos dente, raramente no pequeno lactente
e possíveis efeitos secundários (perturbações do pode ser causa de otites de repetição
rimo cardíaco, sintomas neurocomportamentais) (evidência controversa).
está reservado para casos pontuais, e deve ser • Mais raramente associa-se a má progres-
orientado por um especialista na área. são ponderal, anemia ou uma manifesta-
O tratamento com fármacos antiácidos, na ção neurocomportamental designada por
ausência de evidência sólida de esofagite está Síndrome de Sandifer com opistótonus
contraindicado. e desvio lateral do pescoço.
34 SUSANA ALMEIDA
Leitura complementar
“Vomiting in Children”. L. Chandran, M. Chitkara. Pediatrics
in Review 2008, 29 (6).
Capítulo 23.
Diarreia aguda e crónica
23
Susana Almeida
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_23
CAPÍTULO 23. DIARREIA AGUDA E CRÓNICA 37
Diarreia Inflamatória
23.2 DESCRIÇÃO DO TEMA Lesão enterocitária com diminuição da ca-
pacidade de absorção (i.e.doença inflamatória
23.2.1 Mecanismos fisiopatológicos do intestino).
auto limitado, exceto na infeção parasitária que apresenta um quadro típico de diarreia aguda que
frequentemente se prolonga na ausência de tra- se prolonga para além do esperado, ou que após
tamento. um período de melhoria volta a apresentar deje-
Nos países industrializados a etiologia virusal ções diarreicas. Está frequentemente associado a
é a mais comum em todas as idades. Os agen- vírus que invadem e destroem o topo das vilosida-
tes mais frequentes são o rotavirus, adenovirus des intestinais, onde se encontram a maioria das
e norovirus. dissacaridases. Esta perda enzimática secundária
A via de transmissão das gastroenterites origina uma diarreia osmótica por malabsorção
infecciosas é a fecal-oral. Alguns adenovirus en- da lactose. Com a recuperação das vilosidades e
téricos transmitem-se também por via aérea. Os reposição das dissacaridases a criança volta a tole-
gérmens que são infeciosos com inóculos peque- rar normalmente a lactose. O diagnóstico é clínico,
nos (Rotavirus, Escherichia coli, Shigella, Giardia mas em caso de dúvida pode determinar-se o pH
lamblia, Amoeba) podem ser transmitidos de fecal (que será ácido) e a presença de substân-
pessoa a pessoa. cias redutoras nas fezes. A redução transitória de
ingestão de produtos lácteos ou a utilização de
23.2.2.1 Gastroenterite aguda virusal fórmulas sem lactose controlam os sintomas, até
O Rotavirus é o agente principal, e é mais à recuperação da mucosa.
frequente nos meses de inverno. O período de
incubação é curto, de um a três dias. O pico de 23.2.2.3 Gastroenterite aguda bacteriana
incidência atinge as crianças com menos de dois É mais frequente no verão e no outono.
anos, e é mais frequente nos infantários e insti- O período de incubação é variável e depende
tuições de solidariedade social. do agente: uma a seis horas se a causa for o
O início dos sintomas é súbito, com vómitos, Staphylococcus aureos e Bacillus cereus; um a três
febre e dor abdominal ligeiras e diarreia aquosa dias se for a Salmonella enteritidis, Escherichia
com perda de grande quantidade de líquidos, coli enterotoxigénica, Shigella e Yersinia ente-
condicionando facilmente desidratação. Em cerca rocolytica; uma a duas semanas no caso de ser
de um terço dos casos existe catarro superior Salmonella thyphi ou parathyphi.
concomitante ou prévio. As gastroenterites bacterianas associam-se
O mecanismo da diarreia é predominante- geralmente a febre alta, dor abdominal importante
mente osmótico, por lesão de células vilositárias e dependendo do mecanismo fisiopatológico da
com perda de dissacaridases. Este processo é auto diarreia à presença de muco e/ou sangue nas fezes.
limitado e completamente reversível, sendo a du- As bactérias que invadem a mucosa intes-
ração habitual do quadro de uma semana. tinal ou produzem citotoxinas provocam uma
diarreia predominantemente inflamatória, com
23.2.2.2 Síndrome pós gastroenterite aguda presença de muco e sangue (Salmonella, Shigella,
É uma complicação da GEA, mais frequen- Campylobacter, Yersinia, Escherichia coli enteroin-
te entre os seis meses e os três anos. A criança vasora)
CAPÍTULO 23. DIARREIA AGUDA E CRÓNICA 39
*% peso corporal perdido; ** frequência cardíaca (FC); *** tempo de recoloração capilar (TRC)
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Quadro 2 - Composição dos diversos solutos de rehidratação oral e outros líquidos utilizados em contexto de diarreia aguda.
raras (diarreias congénitas, tumores enterocro- quadro de dor abdominal recorrente, que alivia
mafins, linfangiectasia intestinal) que não serão caracteristicamente com a defecação e que se
abordadas nesta lição. associa a alteração do tipo ou frequência das
Apesar da definição mais vezes referida na dejeções. É frequente o agravamento em perío-
literatura considerar um limite temporal superior dos de stresse. As queixas não são noturnas, a
a duas semanas de duração, alguns autores de- criança cresce bem e as dejeções podem conter
fendem um tempo de evolução que ultrapasse as muco mas a presença de sangue coloca em causa
quatro semanas, evitando assim investigações des- o diagnóstico. Clinicamente distinguem-se três
necessárias em quadros de diarreia prolongados subtipos, com predomínio de diarreia, predomínio
mas auto limitados (síndrome pós-gastroenterite). de obstipação ou mistos. Para estabelecer este
Do ponto de vista prático, a maioria das diagnóstico devem cumprir-se critérios bem esta-
patologias que se manifesta com diarreia crónica belecidos (critérios de Roma IV) e excluir-se causas
têm impacto no estado nutricional e crescimento, orgânicas que justifiquem o quadro (doença ce-
e apresentam-se com outros sinais e sintomas que líaca, doença inflamatória intestinal, intolerância
permitem distingui-las entre si. Essa distinção à lactose). O tratamento passa pela explicação da
entre diarreia crónica com e sem rebate no doença à criança e aos pais e na tranquilização.
crescimento, é fundamental na prática clínica. A maioria dos casos melhora com medidas gerais
Patologias que geralmente não se asso- de controlo do stresse (desporto em geral, ioga).
ciam a má progressão ponderal e/ou estatu-
ral: síndrome do intestino irritável; intolerância 23.2.3.2 Intolerância primária a lactose
primária à lactose; hipersensibilidade às proteínas É uma entidade de transmissão autossómi-
do leite de vaca não IgE mediada; erros alimen- ca recessiva, que condiciona a perda progressi-
tares (diarreia osmótica por abuso de sumos, va da atividade da lactase. A sua prevalência é
sorbitol, xilitol); variável, sendo de aproximadamente 10 a 20%
Patologias habitualmente associadas em idade adulta, nos países mediterrânicos.
a má progressão ponderal e/ou estatural: É uma entidade rara antes da adolescência tardia.
doença celíaca; doença inflamatória intestinal; A lactose não digerida é metabolizada pelas bac-
giardíase; fibrose quística. térias do cólon aumentando a produção gasosa,
e os carbohidratos não digeridos atuam como
23.2.3.1 Síndrome do intestino irritável substâncias osmoticamente ativas provocando
É uma perturbação funcional do intestino, diarreia. Clinicamente caracteriza-se por distensão
mais frequente no sexo feminino, em idade escolar abdominal e flatulência, diarreia aquosa e ácida.
e na adolescência, embora os sintomas possam O diagnóstico pode estabelecer-se realizando uma
ter início no segundo ano de vida. A etiopato- prova de evicção de lactose, com completa re-
genia é multifactorial, resultando da interação solução das queixas em dois a três dias, seguida
entre fatores genéticos, ambientais, psicosociais de uma reintrodução com reprodução da clínica.
e o eixo cérebro-intestino. Caracteriza-se por um O teste do hidrogénio marcado no ar expirado,
44 SUSANA ALMEIDA
permite fazer o diagnóstico de malabsorção des- resolução da sintomatologia com a dieta, o diag-
te carbohidrato após ingestão de um preparado nóstico de certeza exige uma prova de provocação
com lactose. O tratamento consiste na evicção oral cerca de quatro semanas depois. A HPLV é uma
da lactose da dieta. doença de bom prognóstico, em que a maioria dos
lactentes tolera a proteína do leite de vaca aos 12
23.2.3.3 Hipersensibilidade às proteínas meses, e excecionalmente alguns persistirão com
do leite de vaca não IgE mediada dieta de evicção até aos três anos.
A hipersensibilidade às proteína do leite
de vaca não IgE mediada (HPLV) é uma doença 23.2.3.4 Doença celíaca
imuno-mediada, com tradução clínica entre as A doença celíaca (DC) é uma enteropatia
duas semanas e os seis meses de vida, sendo autoimune causada por uma intolerância total e
mais frequente aos dois meses. Pode manifestar- permanente ao glúten em indivíduos com predis-
-se como uma retocolite (o mais frequente), uma posição genética. A sua prevalência é de 1:100
enterocolite (envolvimento do intestino delgado) a 1:200, sendo portanto uma doença frequente.
ou atingimento de todo o tubo digestivo (muito Pode manifestar-se em qualquer idade, e a forma
raro). A apresentação típica da retocolite é a do de apresentação é muito variável, sendo consi-
lactente alimentado com leite materno, com bom derada uma doença multissistémica.
estado geral e boa progressão ponderal, que surge Nos primeiros anos de vida predominam as
com diarreia com muco e sangue, habitualmente formas de apresentação digestiva com anorexia,
precedida de cólica. O quadro clínico será mais diarreia crónica, distensão abdominal, desnutri-
exuberante no lactente alimentado com fórmu- ção com perda acentuada das massas musculares,
las para lactentes, e na enterocolite haverá má muito evidente a nível glúteo, e irritabilidade. As
progressão ponderal. Por definição, esta forma manifestações digestivas nas crianças em idade
de alergia à proteína do leite de vaca não tem escolar e adolescentes são menos exuberantes que
envolvimento sistémico nem respiratório, embora nos primeiros anos e podem confundir-se com
os lactentes afetados possam apresentar eczema a síndrome do intestino irritável. Em crianças de
atópico. Existem com frequência antecedentes idade escolar, adolescentes e adultos, são mais
familiares de atopia. frequentes as formas de apresentação monossin-
O diagnóstico baseia-se na clínica, apoiada tomáticas, como anemia refratária ao ferro oral,
por uma prova de evicção de proteínas do leite de hipertransaminasémia isolada, baixa estatura iso-
vaca e outras que possam condicionar reacção cru- lada, atraso pubertário, amenorreia, obstipação
zada, como a soja e os frutos secos. Para tal deve refratária, artralgias e osteoporose, hipoplasia do
recorrer-se a uma fórmula extensamente hidroli- esmalte dentário, aftas de repetição, fadiga crónica
zada, ou à evicção na dieta materna dos referidos entre outras, pelo que é importante um elevado
alergenos se o aleitamento for materno exclusivo. nível de suspeição para estabelecer o diagnóstico.
As fórmulas parcialmente hidrolisadas ou à base Existem grupos de risco para DC, onde o diagnós-
de soja não são recomendadas. Constatando-se tico é realizado por rastreio (familiares de primeiro
CAPÍTULO 23. DIARREIA AGUDA E CRÓNICA 45
de forma descontínua. Pode envolver qualquer pela corticoterapia ou alimentação oral polimérica
segmento do tubo digestivo, desde a boca até exclusiva (preferencialmente). Todos os doentes
ao ânus. A forma de apresentação depende do deverão iniciar tratamento com imunossupressor
grau de inflamação e do segmento do tubo di- (azatioprina e/ou fármacos anti inibidores dos
gestivo atingido. Na ileite terminal, a anemia e fatores de necrose tumoral - anti TNF).
febre vespertina, associados a perda ponderal e à
diminuição da velocidade de crescimento podem 23.2.3.7 Colite ulcerosa
ser os únicos sintomas. Quando o atingimento é Na colite ulcerosa existe um atingimento
ileo-cólico é típica a diarreia crónica com muco contínuo da mucosa intestinal pelo processo in-
e sangue, acompanhada de dor abdominal, sin- flamatório, com início no reto e extensão proximal,
tomas constitucionais (astenia, anorexia, perda que frequentemente atinge todo cólon, em idade
ponderal, febre) e rebate no crescimento. Quando pediátrica (pancolite). A forma de apresentação
presente, a doença perianal fistulizante é uma mais frequente é a diarreia crónica com muco e
complicação da doença que tem grande impac- sangue, acompanhada de dor abdominal, sin-
to na qualidade de vida. As manifestações extra tomas constitucionais e rebate no crescimento.
intestinais podem também ser o primeiro sinto- São frequentes as queixas de diarreia noturna e
ma da doença, ou surgir em qualquer altura da tenesmo. As manifestações extra-intestinais mais
sua evolução (artrite periférica, eritema nodoso, frequentemente associadas à colite ulcerosa são
episclerite, úveite, litiase renal). a colangite esclerosante, pioderma gangrenoso,
O diagnóstico da doença de Crohn está de- eritema nodoso, artrite periférica e espondilite
pendente do reconhecimento de clínica compatí- anquilosante, uveíte e episclerite. Na colite ul-
vel, corroborada por alguns marcadores analíticos cerosa de longa evolução (mais de dez anos) é
de inflamação crónica (anemia, leucocitose, trom- importante o rastreio do carcinoma coloretal.
bocitose, velocidade de sedimentação globular, e O diagnóstico da colite ulcerosa à semelhan-
proteína C reativa sérica aumentadas e calprotec- ça da doença de Crohn, baseia-se na suspeita
tina fecal aumentada) e da exclusão de infeções clínica e achados laboratoriais compatíveis com in-
(Campylobacter, Yersinia, Salmonella) que possam flamação cónica, embora em casos de atingimento
mimetizar o quadro. A doença é confirmada pelo exclusivamente distal (proctite, proctosigmoidite)
exame endoscópico do tubo digestivo, que deverá os marcadores de inflamação possam estar mini-
incluír uma endoscopia digestiva alta e uma colo- mamente alterados. Deve pedir-se coprocultura
noscopia com ileoscopia. O aspeto macroscópico para exclusão de etiologia infecciosa.
da mucosa intestinal é muito característico, com A doença é confirmada pelo exame en-
ulcerações lineares, pseudopólipos e placas de doscópico do tubo digestivo, que deverá incluír,
fibrina de atingimento descontínuo. O estudo em idade pediátrica, à semelhança da doença
histológico da mucosa intestinal permite fazer de Crohn, uma endoscopia digestiva alta e uma
o diagnóstico. O tratamento inicial tem como colonoscopia com ileoscopia. O aspecto macros-
objetivo a entrada em remissão e pode passar cópico da mucosa intestinal é muito caracteristico,
CAPÍTULO 23. DIARREIA AGUDA E CRÓNICA 47
com edema, perda do padrão vascular e erosões/ O tratamento por via oral é eficaz, e pode realizar-
ulcerações que atingem toda a mucosa, de for- -se com metronidazol 15 mg/kg/dia (máximo de
ma contínua. O estudo histológico da mucosa 750 mg), 3 tomas diárias, durante 5 a 7 dias;
intestinal permite confirmar o diagnóstico. O tra- albendazol 15 mg/kg/dia (máximo de 400 mg),
tamento inicial tem como objetivo a entrada em toma diária única, 5 dias; tinidazol 50 mg/kg (má-
remissão e pode passar pela administração de ximo de 2 g), dose única.
corticoterapia oral ou endovenosa dependendo
da extensão e da gravidade da doença, ou pela 23.2.3.9 Fibrose quística
utilização de compostos aminosalicilados 5-ASA A fibrose quística, com uma incidência na
nas formas mais distais. Nas colites extensas em população caucasiana entre 1:3.500 e 1:5.500
idade pediátrica é aconselhável o tratamento com recém-nascidos, é uma doença genética de trans-
imunossupressor, geralmente a azatioprina em missão autossómica recessiva, resultante de mu-
conjunto com messalasina em dose de manu- tações do gene regulador do transportador iónico
tenção. A utilização de anti TNF está sobretudo de membranas da fibrose quistíca (CFTR). Das
indicada em casos refratários à corticoterapia. múltiplas mutações conhecidas a mais frequente
é a F508del. Trata-se de uma doença crónica,
23.2.3.8 Giardíase com envolvimento de vários orgãos e sistemas,
A Giardia lamblia é um parasita unicelular com uma morbilidade e mortalidade importantes.
flagelado que invade o intestino delgado pro- O prognóstico tem vindo a melhorar na última
vocando atrofia vilositária e consequentemente década com a introdução de novas terapêuticas,
malabsorção. A infeção tem um periodo de in- como os antibióticos inalados, técnicas de cine-
cubação de uma a duas semanas e a clínica de siterapia respiratória e a otimização nutricional.
apresentação é muito variável, desde quadros li- O gene CFTR tem diversas funções, sendo o
geiros, semelhantes a uma gastroenterite comum, transporte de cloro e sódio através das membra-
ou mesmo assintomática, até diarreia crónica com nas celulares o mais importante. Está distribuído
má progressão ponderal, distensão abdominal e por numerosos epitélios (respiratório, seios peri-
anemia. As dejeções são fétidas, abundantes e -nasais, glândulas sudoríparas, pâncreas, tubo
pálidas, podendo existir esteatorreia. As formas digestivo, sistema reprodutivo, fígado e vias bi-
de apresentação mais graves atingem sobretudo liares e epitélio renal), com produção de secre-
doentes com malnutrição prévia, com défice de ções espessas, o que explica a sintomatologia
IgA ou outras imunodeficiências. A giardiase é multissistémica. No entanto, são as complicações
uma causa importante de diarreia do viajante. respiratórias (infeções de repetição, bronquiec-
A idade de apresentação mais frequente é entre o tasias) e as digestivas, descritas de seguida, que
segundo semestre de vida e os dois anos. O diag- mais condicionam o curso da doença em idade
nóstico estabelece-se pela presença de quistos de pediátrica.
Giardia nas fezes, ou muito raramente, pelo acha- As manifestações digestivas podem iniciar-se
do de trofozoitos em biópsias duodeno-jejunais. durante o período neonatal, com ileos meconial
48 SUSANA ALMEIDA
24
Ricardo Ferreira
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_24
CAPÍTULO 24. DOR ABDOMINAL AGUDA E CRÓNICA 51
outras etiologias podem estar envolvidas e não de abdómen cirúrgico, nomeadamente oclusão
podem ser esquecidas pois o atraso diagnóstico intestinal. Para além das características da dor, é
acarreta acréscimo de morbilidade e até de mor- muito importante inquirir acerca dos fatores que
talidade. São exemplo as situações associadas a precipitam, agravam ou aliviam, assim como a
a hemorragia digestiva, oclusão ou perfuração progressão dos sintomas associados. Por exemplo,
intestinal, mas também causas extra-digestivas em relação ao vómito, classicamente nas situações
que põem em risco a vida como a miocardite ou cirúrgicas a dor precede o vómito e por vezes alivia
pericardite, cetoacidose diabética e outras causas com o mesmo, enquanto nas situações médicas o
de hipoperfusão intestinal e ainda as vasculites e vómito precede a dor e esta é menos cíclica.
o sindrome hemolítico-urémico.
As situações médicas e cirúrgicas mais fre-
Diagnóstico quentemente envolvidas na dor abdominal aguda
Uma história clínica detalhada e uma ob- (GEA e apendicite aguda, respetivamente) muitas
servação clínica minuciosa são primordiais para vezes apresentam uma progressão de sintomas
a orientação diagnóstica. No entanto, em muitos clássicos que importa conhecer, embora algumas
casos o diagnóstico definitivo não é conseguido vezes possam ter uma apresentação atípica. Na
após uma única observação, pois numa fase inicial GEA habitualmente há febre a preceder ou desde
a clínica pode ser demasiado inespecífica, pelo o início do quadro, anorexia, náusea ou vómitos
que a vigilância, as observações seriadas e o uso que por vezes podem ser incoercíveis mas rara-
judicioso de alguns exames complementares são mente são biliares. O abdómen pode apresentar-
fundamentais. -se com distensão ligeira a moderada mas não
No que diz respeito à semiologia diagnóstica localizada e habitualmente os ruídos abdominais
da dor abdominal, embora esta seja frequentemen- estão aumentados de frequência mas não de tim-
te mal definida, as lesões com origem no esófago bre. As dejeções são líquidas e abundantes caso
distal e estômago apresentam dor epigástrica, as a infeção seja predominantemente do intestino
do intestino delgado apresentam dor na região delgado (frequentemente por rotavírus ou vírus
abdominal mediana ou peri-umbilical e as do cólon Norwalk - género Norovirus). Quando a infeção
nos quadrantes abdominais inferiores. As lesões afeta predominantemente o intestino grosso (co-
relacionadas com a obstrução intestinal são clas- lite infeciosa), as dejeções podem ser de pequena
sicamente do tipo cólica com ou sem intervalo quantidade, com muco e/ou sangue e nestes casos
livre e acompanhadas de vómitos que poderão ser a etiologia bacteriana é mais provável (Salmonela,
biliares se a obstrução é abaixo da ampola de Vater. Campylobacter, Escherichia coli, de entre outros).
Um exemplo clássico em Pediatria de oclusão do Na apendicite aguda habitualmente há anorexia
tubo digestivo sem vómitos biliares é a estenose e a dor tem um padrão de evolução muito típica,
hipertrófica do piloro, mas habitualmente a dor dependendo da intensidade da inflamação, da
não é um sinal predominante. Um doente com progressão do quadro e das estruturas anató-
vómitos biliares deve sempre levantar a suspeita micas e fibras nervosas envolvidas na condução
CAPÍTULO 24. DOR ABDOMINAL AGUDA E CRÓNICA 53
do estímulo nervoso. Inicialmente a dor é mal ulcerosa duodenal. O exame abdominal é de im-
definida e surda de localização peri-umbilical e portância primordial, sendo todos os seus aspetos
só depois progride para uma dor do tipo parietal, igualmente importantes (inspeção, auscultação,
intensa e bem localizada à fossa ilíaca direita. palpação e percussão). Na palpação abdominal o
local que previsivelmente seja mais doloroso deve
A anamnese e o exame objetivo devem ob- ser deixado para último, para não perdermos a
viamente ser completos, dada a multiplicidade de confiança da criança, sem a qual toda a observa-
etiologias médicas e cirúrgicas potencialmente ção fica comprometida. Logo quando vamos ini-
envolvidas. Claro, não devem ser esquecidos os ciar a palpação podemos detetar algumas pistas:
dados epidemiológicos que possam sugerir etio- o doente com dor abdominal real habitualmente
logia infeciosa (viagens, coabitantes com a mes- está a olhar para as nossas mãos, com receio que
ma sintomatologia), nem os dados relacionados a palpação desencadeie dor, enquanto o doente
com a medicação, por exemplo, anti-inflamatórios com dor por ansiedade ou com simulação não
não esteroides (gastrite), anti-epiléticos, imunos- olha para as nossas mãos e por vezes nem sequer
supressores (pancreatite) ou com antecedentes olha para nós, está relativamente alheio ao que
cirúrgicos (bridas). estamos a fazer. Para além dos pontos dolorosos
O rebate sobre o estado geral e hemodinâ- clássicos, é obrigatório procurar sinais de irritação
mico é um dado essencial, pois podem estar em peritoneal, visceromegálias, massas palpáveis ou a
causa situações que exijam um esclarecimento presença de ascite ou de ar livre intra-peritoneal.
rápido (volvo intestinal, invaginação intestinal, A obstipação é uma causa relativamente
hemorragia digestiva significativa). A presen- frequente de dor abdominal (aguda e crónica).
ça de febre traduz habitualmente infeção ou Muitas crianças obstipadas podem apresentar de-
inflamação e está presente nos casos médicos jeções diárias ou em dias alternados, o que por
mais precocemente do que nos casos cirúrgicos. vezes pode atrasar o diagnóstico de obstipação.
O doente grave pode apresentar-se muito irrita- O diagnóstico de obstipação não deve basear-se
do (ou pelo contrário prostrado), com gemido e apenas na frequência das dejeções, pois este crité-
com alteração do tempo de reperfusão capilar, rio por vezes é enganador. Deve inquirir-se acerca
sugerindo mau preenchimento vascular. Nas si- dos hábitos defecatórios para identificar restantes
tuações de dor parietal com irritação peritoneal características: esforço ao defecar, consistência
habitualmente o doente tenta manter-se imóvel, das fezes, diâmetro das mesmas. Apesar de terem
enquanto nas situações de dor visceral mexe- dejeções diárias que por vezes até parecem ser
-se com frequência não apresentando posição diarreicas (falsa diarreia da obstipação), algumas
de conforto. A presença de icterícia e/ou colúria crianças apresentam retenção fecal significativa.
com ou sem acolia sugerem fortemente um en- A palpação abdominal permite identificar feca-
volvimento hepatobiliar. Por outro lado, a dor lomas retidos e em alguns casos está indicada a
epigástrica em barra com irradiação para o dorso radiografia simples do abdómen para avaliação
pode indiciar patologia pancreática ou doença da massa fecal.
54 RICARDO FERREIRA
Por vezes a chave para o diagnóstico causal patologia cuja incidência tem vindo a aumentar
encontra-se fora do abdómen, como já foi dito de forma consistente entre nós. Na suspeita de
anteriormente. É o caso da púrpura de Henoch- doença inflamatória intestinal, os marcadores
Schönlein, uma doença clássica da Pediatria. Por inflamatórios podem ajudar, particularmente na
vezes a dor abdominal precede o exantema que doença de Crohn, nomeadamente a velocidade
tem distribuição e características típicas, pelo que de sedimentação e a proteína C reactiva, mas
a criança pode apresentar dor tipo cólica e até também a trombocitose e a anemia normocrómica
sintomas sub-oclusivos e dejeções com muco e normocítica (anemia da doença crónica). Na doen-
sangue e só quando surge o exantema e/ou al- ça de Crohn por vezes não está presente a tríade
terações articulares é que o diagnóstico se torna clássica (dor abdominal, diarreia e emagrecimento)
óbvio. e a dor abdominal crónica associada a paragem
Os exames complementares a realizar evi- no crescimento ou atraso pubertário podem ser
dentemente devem ser orientados pela história os únicos sinais clínicos. Na suspeita de oclusão
clínica. São úteis não apenas para o diagnóstico, ou de perfuração intestinal, a radiografia sim-
mas também para a deteção de complicações. ples do abdómen continua a ser fundamental. De
A pesquiza de vírus nas fezes, pela rapidez do preferência deve ser obtida de pé (em alternativa
seu resultado é um excelente exame a pedir nos se deitado, solicitar com raios horizontais). Ter
casos em que há dúvida acerca da presença de atenção ao ar livre intra-abdominal (que com o
GEA. Já a coprocultura tem pouco interesse prá- doente de pé se pode coletar na região subdia-
tico, não deve ser solicitada por rotina até porque fragmática direita), à presença de níveis hidroá-
mesmo na diarreia aguda bacteriana nem sempre reos, mas também à distribuição das ansas, que
está indicada a antibioterapia. A ecografia ab- sendo muito assimétrica pode também ser uma
dominal é um exame facilmente disponível, sem pista para sub-oclusão.
radiações e em mãos experientes é altamente No que diz respeito à terapêutica da dor
informativo. É particularmente útil na suspeita de abdominal, esta vai depender do diagnóstico em
invaginação intestinal, onde tem uma acuidade causa. No entanto, não é raro não se conseguir
diagnóstica elevada e até pode ser terapêutica identificar a etiologia para a dor abdominal. Por
(redução hidrostática da invaginação). Permite vezes esta torna-se recidivante, podendo con-
também diagnosticar uma série de situações mé- figurar um quadro de patologia funcional (dor
dicas e cirúrgicas e suas complicações (patologia abdominal funcional recorrente) cujas caracte-
hepatobiliar e pancreática, nefro-urológica, apen- rísticas se encontram agrupadas na classificação
dicite aguda, malrotação intestinal, ascite). Nos internacional dos distúrbios funcionais do apare-
últimos anos tem-se revelado extremamente útil lho digestivo, desenvolvida e atualizada periodi-
na suspeita diagnóstica de doença inflamatória camente por um grupo de peritos internacionais
intestinal (doença de Crohn e colite ulcerosa), (Critérios de Roma IV).
Capítulo 25.
Causas cirúrgicas de dor abdominal
25
Maria Francelina Lopes
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_25
CAPÍTULO 25. CAUSAS CIRÚRGICAS DE DOR ABDOMINAL 57
Não esquecer
No exame físico no pequeno lactente com
sinais de dor tipo cólica e ou vómitos nunca esque-
cer a observação e palpação das regiões inguinais.
Capítulo 26.
Patologia frequente em
cirurgia de ambulatório
26
Maria Francelina Lopes
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_26
CAPÍTULO 26. PATOLOGIA FREQUENTE EM CIRURGIA DE AMBULATÓRIO 63
26.1 DESCRIÇÃO DO TEMA (60% dos casos), mas pode ser esquerda (30%)
ou bilateral (10%). Esta patologia é diagnosticada
26.1.1 Hérnias em idade pediátrica num terço dos casos no primeiro ano de vida, com
maior frequência no recém-nascido prematuro ou
Em idade pediátrica as localizações mais com baixo peso. O conteúdo habitual da hérnia no
frequentes de hérnias da parede abdominal são sexo masculino é uma ansa de intestino, ou rara-
a região inguinal, umbilical e linha branca. mente uma franja de epíploon, que se exterioriza
A hérnia da linha branca ou epigástrica através do “processus vaginalis” não obliterado,
é a menos frequente das hérnias da parede ab- enquanto no sexo feminino é o ovário, ou uma ansa
dominal. Manifesta-se como pequena tumefação de intestino, que se exterioriza através do canal
supra umbilical localizada a qualquer nível da linha de Nuck patente. Os pais habitualmente relatam
branca. O seu conteúdo habitual é uma franja de uma tumoração intermitente, na região inguino-
epíploon que pode ficar aprisionado num defeito -escrotal no menino, ou inguino-labial na menina,
congénito da linha branca e originar desconfor- que se manifesta ou aumenta de tamanho com o
to. Não cura espontaneamente e tem indicação choro ou com o esforço. A hérnia não encarcerada
cirúrgica eletiva para herniorrafia sob anestesia geralmente causa apenas desconforto. O encarce-
geral. Não deve ser confundida com a diástase ramento herniário é evidenciado por tumefação
dos retos, uma situação de abaulamento global da dura e dolorosa à palpação na região inguinal
linha branca supra umbilical, causada pelo afasta- acompanhada ou não de sintomas de obstrução
mento dos músculos retos abdominais e que evolui intestinal. O diagnóstico é clínico, feito com base no
espontaneamente para a cura com o crescimento. relato dos pais e na palpação de um espessamento
A hérnia umbilical é frequente no recém- inguinal ou de uma tumefação com as localizações
-nascido. É mais frequente na raça negra rela- já mencionadas. Os principais diagnósticos dife-
tivamente à caucasiana (90% versus 10%). Na renciais no sexo masculino incluem o hidrocelo,
maioria das crianças (95% dos casos) encerra o quisto do cordão e o varicocelo, enquanto no
espontaneamente até aos três anos de idade. sexo feminino inclui o quisto de canal de Nuck.
Geralmente a hérnia umbilical é assintomática, re- A hérnia inguinal requer tratamento cirúrgico. Na
querendo apenas observação. O encarceramento ausência de complicações, a correção cirúrgica
é excecional. Em caso de persistência do orifício (herniotomia ou herniorrafia) é eletiva e atempada
herniário, a herniorrafia eletiva está indicada entre para prevenir o desenvolvimento de complicações
os quatro e os cinco anos de idade. que podem ter consequências graves, tais como o
A hérnia inguinal é a principal causa de encarceramento e o estrangulamento.
cirurgia por hérnia da parede abdominal em idade
pediátrica. É quase sempre de origem congénita 26.1.2 Hidrocelo
(99% dos casos) e afeta aproximadamente 1 a 5%
das crianças. É mais frequente no sexo masculino e No hidrocelo ou no quisto do cordão há
é, habitualmente, unilateral e de localização direita acumulação de líquido peritoneal na bolsa escrotal
64 MARIA FRANCELINA LOPES
ou em quisto inguino-escrotal ao longo de “pro- testículo retrátil é uma situação fisiológica tem-
cessus vaginalis” patente em criança do sexo porária em que habitualmente não está indicada
masculino. O hidrocelo uni ou bilateral é muito a intervenção cirúrgica.
frequente nos recém-nascidos e habitualmente A normal descida do testículo da sua posição
evolui para a resolução espontânea durante os retroperitoneal para a bolsa escrotal começa na
primeiros seis meses de vida ou até aos três anos vida fetal. A prevalência de bolsa escrotal vazia
de idade. O diagnóstico é clínico, não sendo ne- é especialmente alta (30%) no recém-nascido
cessários exames complementares de diagnóstico. prematuro. Aproximadamente 3% dos recém-
Habitualmente há aumento do volume da bolsa -nascidos de termo apresenta bolsa escrotal vazia,
escrotal ao longo do dia, sendo esta mais visível diminuindo para 1% aos seis meses de idade e
ao final do dia. O principal diagnóstico diferencial mantendo a mesma prevalência após o primeiro
é a hérnia inguino-escrotal, sendo que a transilu- ano de vida.
minação permite, habitualmente, o diagnóstico de O TMD é, com maior frequência, unilateral
hidrocelo. A cirurgia eletiva (laqueação e seção alta e localizado à direita, mas em aproximadamente
do “processus vaginalis”) apenas está indicada se 10% dos casos é bilateral. A avaliação em consulta
a patologia persistir após os três anos de idade. de cirurgia pediátrica inicia-se pelos seis meses de
O quisto do canal de Nuck ocorre no sexo idade. O diagnóstico baseia-se na história clínica
feminino e equivale ao quisto do cordão no sexo e na palpação inguino-escrotal, não estando indi-
masculino. A tumoração palpável na região in- cada a realização de ecografia antes da primeira
guinal é habitualmente móvel e indolor e o trata- observação pela cirurgia pediátrica. Dos TMD, ha-
mento cirúrgico (laqueação e seção alta do canal bitualmente em 80% dos casos palpa-se testículo
de “Nuck”) é realizado eletivamente após os três no canal inguinal e em 20% dos casos este não se
anos de idade se a patologia persistir. palpa. Na criança com testículo palpável no canal
inguinal faz-se o diagnóstico de TMD se não se
26.1.3 Bolsa escrotal vazia conseguir tracionar o testículo para a bolsa ou
se, uma vez tracionado até a bolsa, o testículo
A bolsa escrotal vazia é um problema fre- subir para o canal inguinal logo que largado. Nas
quente em pediatria que habitualmente corres- crianças com testículo não palpável este pode ser
ponde a uma das seguintes entidades: testículo atrófico, não existir (agenesia) ou ter localização
não descido (denominado na cirurgia pediátrica intra-abdominal, estando então indicada a ecogra-
portuguesa por testículo maldescido) ou testí- fia abdominal e escrotal para o seu diagnóstico.
culo retrátil. O diagnóstico diferencial entre as O tratamento do TMD é cirúrgico. A opera-
duas situações faz-se pela história clínica e pela ção está indicada entre o primeiro e o segundo
palpação da região inguino-escrotal, sendo da ano de vida. Consiste na orquidopexia (reposicio-
maior importância a sua distinção, uma vez que namento cirúrgico do testículo na bolsa escrotal,
o testículo maldescido (TMD) é uma situação habitualmente por via inguinal) ou na orquidec-
patológica que requer tratamento cirúrgico e o tomia de um testículo atrófico.
CAPÍTULO 26. PATOLOGIA FREQUENTE EM CIRURGIA DE AMBULATÓRIO 65
Nas situações de localização testicular intra- normal do prepúcio à glande. A resolução es-
-abdominal, ou não identificação do testículo, está pontânea da fimose fisiológica ocorre em 89%
indicada laparoscopia para diagnóstico e trata- dos casos nos primeiros três anos de idade e em
mento. Na orquidopexia realiza-se a laqueação 95% a 99% nos primeiros 16 anos. A indicação
e seção do “processus vaginalis” quase sempre para tratamento com corticosteroide tópico pode
patente (90% dos casos) e o testículo é fixado à colocar-se a partir dos três anos de idade se existi-
bolsa escrotal com pontos de sutura reabsorvíveis. rem manifestações de balanites de repetição (pelo
A orquidopexia pode reduzir, mas não previne, menos dois episódios). Nestas, a massagem do
complicações potenciais a longo prazo, como a prepúcio com um creme (ou pomada) de beta-
infertilidade e a neoplasia maligna do testículo. metasona a 0,5mg/g, aplicada duas vezes por dia
A orquidopexia facilita a vigilância de maligniza- durante quatro a seis semanas, e a manutenção
ção testicular ao permitir a palpação testicular. de fisioterapia no banho após paragem do fárma-
O risco de malignidade do testículo (seminoma) co resolve 95% das situações. Por vezes os pais
é quarenta vezes mais elevado nos homens com referem, além da impossibilidade de retrair o pre-
antecedentes de TMD em comparação com a púcio, a formação de um balão durante a micção,
população masculina sem TMD, justificando-se o que é normal. Nos casos de fimose fisiológica
vigilância pós-operatória a longo prazo. assintomática a criança deverá ser referenciada
A distinção entre TMD palpável na região a partir dos oito anos de idade para a consulta
inguinal e o testículo retrátil (variante do normal, de cirurgia pediátrica. A avaliação nesta consulta
sem indicação cirúrgica) faz-se pelos seguintes poderá indicar, em primeira fase, a corticoterapia
critérios de diagnóstico: 1) o testículo vem à bolsa tópica; se persistir fimose, a intervenção cirúrgica
quando tracionado e aí permanece por algum (circuncisão ou prepucioplastia) será indicada na
tempo quando largado; 2) o testículo tem dimen- maioria dos casos até aos doze anos de idade.
sões normais; 3) há história de que o testículo re- A fimose patológica (cicatricial) caracteriza-
side espontaneamente na bolsa por períodos. Na -se pela existência de sinais de cicatrização no
maioria dos casos de testículo retrátil a situação orifício prepucial. Esta é, na maioria das vezes,
evolui para a cura espontânea até à adolescên- pós-traumática, provocada pelo ferimento do pre-
cia. Nos raros casos em que o testículo retrátil púcio após a sua retração forçada, mas pode ser
evolui para TMD está indicada a orquidopexia, consequência de situações clínicas inflamatórias,
justificando-se vigilância a longo prazo. como por exemplo seguindo-se a balanites de
repetição ou por balanite xerótica obliterante.
26.1.4 Fimose A fimose cicatricial tem indicação cirúrgica (cir-
cuncisão ou prepucioplastia) independentemente
Na fimose há um aperto do prepúcio que da idade.
impede a sua retração e impossibilita a exposição O principal diagnóstico diferencial com a
completa da glande. A fimose é habitualmente fimose fisiológica é a existência de aderências
fisiológica nos primeiros anos de vida, por fusão balanoprepuciais. Neste caso estas desaparecem
66 MARIA FRANCELINA LOPES
espontaneamente ao longo dos primeiros anos ocorre poucas horas depois, após completa recu-
de vida não havendo indicação para a sua lise. peração anestésica e após tolerância de ingestão
A fimose não deve ser confundida com a de alimentos. O controlo pós-operatório é reali-
parafimose, situação em que o encarceramento zado na consulta de cirurgia pediátrica entre uma
da glande em prepúcio retraído necessita de tra- a três semanas após a cirurgia.
tamento urgente, procedendo-se á manipulação
prepucial e seu reposicionamento normal sobre
a glande. 26.2 FACTOS A RETER
27
Cristina Alves
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_27
CAPÍTULO 27. ORTOPEDIA, VARIANTES DA NORMALIDADE E PROBLEMAS FREQUENTES 69
Figura 1. Linha de prisão de Harris observada na tíbia distal de criança de sete anos e sete meses após ter sofrido uma artrite sép-
tica do tornozelo. A linha é paralela à fise de crescimento, inferindo-se assim que ocorreu um insulto em determinado momento,
seguido de recuperação da atividade fisária. Também se observa linha de Harris no perónio distal. Imagem do autor.
Figura 2. O ângulo de progressão do pé é estimado Figura 3. Rotações interna e externa das ancas avaliadas
pela observação da criança a caminhar. A variabilidade com a criança em decúbito ventral. A variabilidade
da normalidade é mostrada a verde. da normalidade é mostrada a verde.
ou ‘pés para fora’ são, na sua maioria, variantes crescimento está associado com rotação lateral,
da normalidade, que não carecem de qualquer é expectável que a anteversão femoral e a torção
tratamento, mas causam ansiedade significativa tibial melhorem com o tempo. Em contraste, a
à família. torção lateral da tíbia geralmente agrava com o
Versão, em ortopedia, é um termo que des- crescimento.
creve variações normais de rotação do membro, Na abordagem dos problemas torsionais, é
enquanto torsão significa versão além de ± 2 necessário estabelecer um diagnóstico correto e
desvios-padrão da média, sendo ‘anormal’ e lidar de forma eficaz com a família.
correspondendo a uma «deformidade». De salien- A história é importante na avaliação da re-
tar que o membro inferior gira externamente com percussão deste problema e na exclusão de ou-
a idade, com diminuição da anteversão femoral tros. É importante ter conhecimento do seu início,
e aumento da versão externa da tíbia. da gravidade, da limitação funcional e do trata-
O membro inferior gira em sentido medial mento prévio. A história do neurodesenvolvimento
(interno) durante a sétima semana fetal, para é essencial, para excluir patologia neuromuscular.
conduzir o hallux para a linha média. Com o É importante saber a história familiar, dado que os
crescimento, a anteversão femoral diminui para problemas rotacionais são geralmente herdados.
cerca de 30˚ ao nascimento e 10˚ na maturida- A observação do perfil rotacional permite
de, podendo ser maior no sexo feminino e em obter as informações necessárias para estabelecer
algumas famílias. Com o crescimento, a tíbia gira o nível e a gravidade de qualquer problema de
lateralmente de cerca de 5˚ ao nascimento para torção na criança. Para isso é necessário avaliar
cerca de 15˚ na maturidade esquelética. Porque o quatro aspetos: marcha e corrida da criança
CAPÍTULO 27. ORTOPEDIA, VARIANTES DA NORMALIDADE E PROBLEMAS FREQUENTES 75
Figura 4. A. Em decúbito ventral, e deixando o pé cair para a Figura 5. Pé aduto, com Figura 6. Pé normal, com
sua posição de repouso natural, é possível verificar o ângulo bordo externo curvo. bordo externo recto.
coxa-pé e a forma do pé.
Figura 8. Os valores normais para o ângulo do eixo do joelho, Figura 9. Joelho varo (genu varum): observa-se aumento da
com ± 2 desvios-padrão (adaptado de Heath e Staheli, 1993). distância intercondiliana (entre os côndilos femorais mediais).
qualquer tentativa para controlar a forma como no intervalo normal são fisiológicas. O intervalo
a criança caminha, se senta ou dorme, contribui da normalidade para o ângulo de alinhamento
apenas para gerar frustração e conflito entre a do joelho altera-se com a idade.
criança e os pais. Sapatos ortopédicos, palmi- No segundo ano de vida, é frequente o genu
lhas ou talas noturnas são ineficazes e não varum (Figura 9), enquanto o genu valgum é co-
têm qualquer benefício a longo prazo. mum pelos três a quatro anos (Figura 10).
Enquanto a torção tibial interna melhora com Na avaliação de uma criança com genu va-
o tempo, a torção tibial externa tende a agravar e rum ou valgum é importante estabelecer o início
pode estar associada a dor no joelho, que surge da deformidade, se houve lesão ou doença prece-
na articulação patelofemoral e é presumivelmen- dente, se a deformidade é progressiva, se existem
te causada pelo desalinhamento do joelho. Este fotografias antigas ou radiografias disponíveis
fenómeno é mais acentuado quando a torção para rever, qual a saúde geral da criança, se a
tibial externa se associa a torção femoral interna, dieta é adequada e se existem outros membros
produzindo um ‘síndrome do mau-alinhamento’. da família afetados.
27.2.4.2 Pé plano
O pé plano caracteriza-se por uma grande
área de contato plantar. Está geralmente associado
a um calcanhar valgo e a uma redução na altura do
arco longitudinal. Pode ser fisiológico ou patológi-
co. O fisiológico é flexível e constitui uma variante
da normalidade; o patológico apresenta alguma
rigidez, e, geralmente, necessita de tratamento.
O pé plano flexível ou fisológico está pre-
sente em quase todas as crianças, e em cerca
de 15% dos adultos. O pé plano é muitas vezes
familiar, sendo mais frequente nas sociedades
em que as pessoas usam sapatos, nos obesos e
nos indivíduos com laxidez articular generalizada.
Em ortostatismo, o pé encontra-se plano e o
calcanhar pode mostrar valgo. O arco reaparece
quando a criança se coloca em pontas dos dedos,
observando-se uma concomitante varização do Figura 11. Pé plano flexível, que não necessita qualquer
tratamento.
calcanhar (Figura 11).
78 CRISTINA ALVES
Figura 16. Protocolo de rastreio selectivo da DDA em Figura 17. Sinal de Ortolani: é possível sentir um ‘clunk’, por
Portugal, para crianças com factores de risco e sinais de vezes audível, correspondente à redução da anca.
instabilidade da anca.
Figura 18A. Limitação da abdução da anca esquerda em Figura 18B. Ecografia da anca: Luxação da cabeça femoral.
lactente.
Figura 20. Protocolo de utilização da tala de Pavlik, seguido no Serviço de Ortopedia Pediátrica do Hospital Pediátrico- CHUC.
Hospital Pediátrico de Coimbra, a radiografia é uti- que dificulte uma eventual redução fechada ou
lizada geralmente só após essa idade e/ou quando aberta.
a ecografia é de difícil execução ou não permite a Em crianças com idade superior a seis meses
visualização adequada de todas as estruturas (figura ou falência de tratamento com tala de Pavlik, está
19). Numa anca displásica, o ângulo alfa (ângulo indicada a redução fechada ou aberta. No Serviço
entre o ilíaco e o teto acetabular) é inferior a 60º. de Ortopedia Pediátrica do Hospital Pediátrico –
Na abordagem de crianças com DDA, os CHUC, os pais podem escolher entre redução fe-
principais objetivos são o diagnóstico precoce, a chada gradual por programa de tracção no arco ou
redução da luxação, evitar a necrose avascular, redução sob anestesia geral no Bloco Operatório,
e corrigir a displasia residual. com tenotomias do adutor longus ± psoas e gesso
Até aos seis meses de idade, a tala de Pavlik, pelvipodálico. Em crianças com idade superior a 18
que permite o movimento em flexão e abdução meses, além da redução aberta, são geralmente
da anca, pode ser aplicada no tratamento da DDA necessárias osteotomias do fémur e/ou ilíaco. Se
(Figura 20). É necessário monitorizar a criança a obtenção de uma redução concêntrica da anca
clínica e imagiologicamente. Se a anca não estiver é fulcral, evitar a necrose avascular é de extrema
reduzida em duas a três semanas, este tratamento importância, já que esta complicação altera o
deve ser abandonado, para evitar deformidade da crescimento femoral proximal, cria deformidade,
cabeça femoral ou fixação da anca em posição e leva a artrite degenerativa prematura.
84 CRISTINA ALVES
Após a cirurgia, a criança deve ser cuida- O pé boto trata-se preferencialmente pelo
dosamente acompanhada para avaliar o efeito Método de Ponseti, sendo a taxa de sucesso su-
do tempo sobre o crescimento, a redução, e o perior a 90% para o pé boto idiopático. A cor-
desenvolvimento acetabular. A frequência de es- reção gradual é conseguida pela manipulação e
tudos radiográficos é individualizada, de acordo engessamento, segundo o Método de Ponseti
com a gravidade da DDA e a evolução. (Figura 22). O equino é a última deformidade a ser
corrigida, geralmente através de uma tenotomia
27.2.5.4 Pé Boto percutânea do tendão de Aquiles. Quando reti-
O pé boto é uma deformidade congénita rado o ultimo gesso, é aplicada uma ortótese de
complexa que inclui componentes de cavo, aduto, Dennis-Bowne, com duas botas unidas por uma
varo, equinismo e rotação medial do pé (Figura 21). barra, que visa manter o pé corrigido e deve ser
A deformidade ocorre em aproximadamente 1 em mantida durante o periodo noturno até a criança
1000 nascimentos, é bilateral em metade dos casos, ter cinco anos de idade.
e afeta mais frequentemente o sexo masculino. O pé boto deve ser diferenciado do me-
tatarso aduto e varo. Esta é a deformidade
A etiologia do pé boto é multifatorial. Pode mais frequente do pé e caracteriza-se por uma
ser idiopático ou estar associado com outras ano- convexidade do bordo lateral do pé. Está as-
malias congénitas, defeitos do neuro-eixo, ano- sociado com a displasia da anca em 2% dos
malias do sistema urinário ou sistema digestivo, casos, pelo que é essencial um exame clínico
e outros problemas músculo-esqueléticos. cuidado.
CAPÍTULO 27. ORTOPEDIA, VARIANTES DA NORMALIDADE E PROBLEMAS FREQUENTES 85
28
Mónica Oliva
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_28
CAPÍTULO 28. OBSTIPAÇÃO, ENCOPRESE E ENURESE 89
ou na substituição do leite materno por leite de cuidadores (punição, rejeição,…). Este tipo de
fórmula. incontinência fecal resolve após tratamento da
obstipação.
A idade de controlo do esfíncter anal e de Nos restantes casos, verifica-se uma perda
treino da defecação varia de criança para criança. voluntária de fezes, sem retenção fecal. As fe-
Aos quatro anos, 98% das crianças apresenta zes são de características normais, as perdas são
esta competência pois o desenvolvimento neuro- intermitentes. Está frequentemente associada a
-psico-social atingido, permite-lhes ter a perceção distúrbios de oposição e desafio ou de conduta.
da sensação de defecação, a compreensão da
pressão social para que a dejeção ocorra no local 28.1.3 Fisiopatologia
apropriado, a ativação dos músculos voluntários
envolvidos na continência fecal e a procura do Os clínicos devem estar familiarizados com
bacio/sanita. a fisiopatologia da obstipação funcional, pois só
Uma má experiência no momento de retirar a assim poderão explicá-la à criança e aos pais -
fralda pode determinar obstipação crónica e incon- etapa fundamental para aumentar a adesão ao
tinência fecal subsequente. É importante aguardar tratamento.
pela maturação de cada criança e que este treino
decorra num ambiente tolerante e construtivo. O desencadeante mais frequente da obsti-
pação é uma dejeção dolorosa que pode resultar
As raras causas orgânicas de obstipação po- de fezes muito duras ou de uma fissura anal. Na
derão ser: neuropáticas (doença de Hirschsprung), criança pequena, uma dejeção dolorosa no bacio
anatómicas (ânus anterior), endócrinas (hipotiroi- ou na sanita leva frequentemente à evicção desses
dismo), imunológicas (doença celíaca, alergia às locais. Essa aversão pode ainda dever-se a um
proteínas do leite de vaca), metabólicas (hipercal- treino da defecação prematuro e/ou coercivo.
cémia), entre outros exemplos. Na criança mais velha verifica-se frequentemen-
te indisponibilidade para defecar, ou por querer
Cerca de 90% dos casos de incontinência continuar a brincar, ou por recusa em utilizar
fecal são secundários a obstipação funcional com casas-de-banho fora de casa.
impactação fecal. Nesta situação as fezes elimi- O medo de defecar e o seu adiamento
nadas são habitualmente mais moles e ocorrem conduzem a retenção fecal voluntária, da qual
habitualmente durante o dia. Frequentemente, a resulta estagnação fecal mantida. Estas fezes so-
criança mais velha sente-se envergonhada, evitan- frem reabsorção progressiva de água, adquirindo
do situações em que poderá ficar mais exposta dimensões maiores e tornando-se cada vez mais
como ir a acampamentos ou à escola. O impacte duras. Neste ponto instala-se um ciclo vicioso
negativo causado depende do efeito que tem na que agrava a retenção fecal.
autoestima da criança, do grau de ostracismo A distensão progressiva do reto e das suas
social por parte dos colegas e da atitude dos terminações nervosas leva à perda da sensibilidade
CAPÍTULO 28. OBSTIPAÇÃO, ENCOPRESE E ENURESE 91
contrai as nádegas e o pavimento pélvico, faz Muitas crianças com obstipação e encoprese
hiperextensão dos membros inferiores, cruza-os também têm enurese e por vezes refluxo vesico
alternadamente e adota outras posturas bizarras, ureteral, que pode levar a infeções urinárias de
fazendo-o frequentemente longe da vista dos repetição; comorbilidades frequentes mas que po-
adultos. Não é raro os pais interpretarem ”soi- dem indicar causa orgânica. Por outro lado algumas
ling“ como resultado de higiene insuficiente por doenças cursam com obstipação, nomeadamente,
parte da criança; outros interpretam-no como diabetes mellitus, hipotiroidismo, hiperparatiroidismo,
sendo diarreia. paralisia cerebral e neurofibromatose. A realização de
Os principais sinais e sintomas acompanhan- medicação crónica com anticolinérgicos, antiepiléti-
tes da obstipação são: dor abdominal ou à defe- cos, anti-inflamatórios não esteroides, suplementos
cação, distensão abdominal, anorexia, náuseas, de cálcio e ferro também pode estar na origem da
vómitos (se ausência de dejeções há vários dias). obstipação.
Nos antecedentes pessoais é necessário ques- Quanto aos antecedentes familiares, a exis-
tionar sobre a eliminação de mecónio. Perante um tência de obstipação noutros elementos da famí-
atraso (após as primeiras 48 horas de vida), deve-se lia (particularmente na mãe) e de doenças como
suspeitar de oclusão intestinal (atrésia, mal-rotação, hipotiroidismo, doença celíaca e fibrose quística
volvo intestinal), doença de Hirschsprung ou fibrose são relevantes.
quística. Recorde-se que a eliminação de mecónio
ocorre às 24h em 90% dos recém-nascidos de Por último, não esquecer a história psicos-
termo e às 48h em mais de 99%. social, designadamente, alterações no ambiente
A idade em que a criança adquiriu o controlo familiar e/ou escolar, comportamentos de oposi-
de esfíncteres e como decorreu o treino também ção, viagens recentes, suspeita de abuso sexual,
é importante. entre outros.
É fundamental a garantia de que a criança apre-
senta um crescimento estato-ponderal e um desen- O exame objetivo deve ser completo.
volvimento psicomotor adequados. Emagrecimento Distensão abdominal e/ou pregas de desnutrição
ou má progressão ponderal são a favor de causa à inspeção, bem como uma cicatriz de cirurgia
orgânica. prévia, representam sinais de alarme. A inspe-
O conhecimento do tipo de alimentação é par- ção peri-anal revela frequentemente fezes e pode
ticularmente importante: aporte diário de água e mostrar achados que justifiquem a retenção fecal,
fibra, idade de início e cronologia da diversificação como fissura anal (localização habitual às 6/12h)
alimentar, pela possibilidade de no lactente se tratar e anusite infeciosa. Constituem sinais de alarme
de uma obstipação secundária a doença celíaca ou à inspeção peri-anal: ânus anterior, prolapso re-
alergia às proteínas do leite de vaca. tal (obstipação grave, fibrose quística), fístula ou
É importante questionar sobre antecedentes abcesso (doença de Crohn). A inspeção da região
de infeções urinárias e/ou incontinência urinária. sacro-coccígea visa excluir lesões sugestivas de
CAPÍTULO 28. OBSTIPAÇÃO, ENCOPRESE E ENURESE 93
intestinal diário consiste em ensinar a criança A desimpactação fecal deve ser realizada
a defecar num horário regular, cinco a dez mi- preferencialmente por via oral, recorrendo em
nutos após duas ou três refeições, aproveitando primeira linha aos laxantes osmóticos. Os laxan-
o reflexo gastro-cólico, relaxadamente e com tes estimulantes podem ser utilizados nos casos
apoio adequado dos pés. Esta medida é impor- refratários ou nos casos de intolerância aos la-
tante para horizontalizar o ângulo ano-retal, xantes osmóticos.
facilitando assim a dejeção. Os laxantes osmóticos orais tais como a lac-
A criança mais velha deve ser incentivada a tulose, o macrogol e o hidróxido de magnésio, têm
registar num diário as suas dejeções e eventuais como principal função aumentar a concentração
episódios de incontinência fecal. Este registo en- de água nas fezes, diminuindo a sua consistência
volve ativamente a criança no processo terapêu- e facilitando a sua eliminação. Não provocam
tico e permite melhor avaliação pelo médico na dependência.
consulta subsequente. Os laxantes estimulantes orais, como o bi-
O reforço positivo das dejeções em local sacodilo e o senne, têm como mecanismo de
apropriado é muito importante, sobretudo na ação o aumento da peristalse intestinal no íleon
criança que está a iniciar o treino da defecação. terminal e no cólon, diminuindo a absorção e
aumentando a secreção de água e eletrólitos
A alimentação destas crianças deve ser pela mucosa do cólon. Os seus principais efeitos
saudável, rica em fibras solúveis e com ingestão adversos são cólicas, melanosis coli reversível
adequada de líquidos. Contudo, o aumento do seu e possibilidade de dependência em uso pro-
consumo para além da dose diária recomendada longado.
não está comprovadamente associado a maior A desimpactação exclusiva por via retal
eficácia do tratamento. deve ser evitada. O uso de microclisteres, su-
positórios e enemas são procedimentos rela-
Em relação à terapêutica farmacológica, a tivamente invasivos, associados a maior risco
desimpactação fecal é normalmente a primeira de iatrogenia e dano psicológico. Têm como
medida necessária antes do início da terapêutica de vantagem permitir uma dejeção num tempo
manutenção, sendo mandatória nos casos em que e espaço adequados, sendo particularmente
existe incontinência fecal. A impactação fecal é úteis nas impactações agudas observadas nos
então definida pela presença de um ou mais dos serviços de urgência.
seguintes aspetos: incontinência fecal, massa dura
localizada nos quadrantes inferiores do abdómen A terapêutica de manutenção visa evitar
durante o exame físico, ampola retal dilatada com a reacumulação de fezes e o reaparecimento de
abundante quantidade de fezes no toque retal e comportamentos de retenção; consiste no uso
quantidade excessiva de fezes no cólon identificada diário de laxantes osmóticos como terapêutica
pela radiografia abdominal, nos casos em que está de primeira linha. O período mínimo de trata-
indicada a sua realização. mento é de dois a três meses, tempo necessário
CAPÍTULO 28. OBSTIPAÇÃO, ENCOPRESE E ENURESE 95
para o reto readquirir o seu diâmetro e sensibi- Mais de metade dos indivíduos seguidos em
lidade habituais. A dose ideal é a que permite a hospitais terciários ficam assintomáticos após um
passagem, pelo menos uma vez por dia, de fezes ano de tratamento e cerca de 65 a 70% depois de
de consistência normal, sem efeitos secundários dois. No entanto, mesmo sob tratamento farma-
relacionados com a dose de fármaco utilizada. cológico e comportamental inicial intensivo, cerca
Os laxantes estimulantes não são habitualmente de um terço das crianças irá manter obstipação
usados como terapêutica diária, contudo podem após cinco anos de seguimento e algumas até
ser utilizados de forma intermitente nos casos após a adolescência. Outro dado importante é
de obstipação grave e refratária, preferencial- que aproximadamente metade das crianças tra-
mente sob a supervisão de gastroenterologista tadas tem uma recidiva nos cinco anos seguintes.
pediátrico. O aparecimento de obstipação antes dos 12 meses
e a presença de incontinência fecal são indicado-
Deve ser explicado aos pais que o processo res de pior prognóstico.
de tratamento é lento (duração habitual superior
a seis meses), caracterizando-se por avanços e 28.1.8 Factos a reter
recuos naturais. Tentativas precoces de suspen-
são farmacológica associam-se a maior taxa de • A obstipação é um diagnóstico com ele-
recidiva. vada prevalência em Pediatria.
• Após o período neonatal 90 a 95% das
Outros tratamentos obstipações são funcionais.
A maioria das crianças e adolescentes com • Em 90% dos casos a encoprese é secun-
obstipação são tratados com as medidas educa- dária à obstipação.
cionais, correção do tipo de alimentação e a te- • A história clínica completa é fundamental
rapêutica convencional previamente descritas. No para o diagnóstico e identificação de si-
entanto, nalgumas crianças o tratamento médico nais de alarme.
é prolongado e pouco eficaz, podendo ser ne- • Raramente são necessários exames com-
cessário intervenção em regime de internamento. plementares de diagnóstico.
Casos refratários poderão ser candidatos a outras • O tratamento deve ser precoce e tem como
modalidades terapêuticas. objetivo a desimpactação, a prevenção da
reacumulação fecal e a criação de hábitos
28.1.7 Prognóstico intestinais regulares.
• A educação da criança e da família, uma
A obstipação e a incontinência fecal, apesar alimentação saudável e o uso de laxantes
de ”benignas“ na sua etiopatogenia e potencial- osmóticos constituem os três pilares do
mente tratáveis, estão associadas a compromisso tratamento.
da qualidade de vida e repercussões sociais im- • O prognóstico depende da eficácia da
portantes. intervenção.
96 MÓNICA OLIVA
Mecanismo Fisiopatologia
monossintomática ou não. É então necessário
Défice noturno de Poliúria noturna
saber a frequência de noites molhadas, o número
vasopressina
Hiperatividade ↓ Capacidade
de episódios/noite e o horário em que ocorrem, a
noturna do detrussor vesical noturna facilidade para despertar com episódios enuréticos
Limiar elevado Não acordam com a ou outros estímulos. A quantidade, o horário e o
de despertar distensão vesical ou com tipo de líquidos ingeridos também é importante
a contração do detrussor
saber. Por exemplo, bebidas com cafeína podem
ter um efeito diurético e causar hiperatividade da
Quadro 2. Mecanismos patogénicos envolvidos na enurese bexiga. A presença de polidipsia e/ou polifagia,
monossintomática.
de alterações do jato urinário, do volume de urina
ou da capacidade de retenção; a presença de in-
continência urinária diurna, de disúria, polaquiúria
28.2.2 Fisiopatologia ou urgência miccional; hematúria ou história de
litíase; obstipação e/ou encoprese; cefaleias, con-
A enurese monossintomática é quase sem- vulsões ou ausências, podem sugerir existência
pre uma situação benigna, explicada por um ou de patologia orgânica.
mais dos mecanismos fisiopatogénicos listados Devem ser identificados fatores predispo-
no quadro 2. nentes como antecedentes familiares de enurese,
características da família, conflitos familiares, nas-
Raramente a enurese pode ser um sintoma cimento de um irmão ou morte de um familiar,
de uma doença orgânica tal como acontece na mudança de escola ou residência, internamento
infeção urinária, nas malformações nefrouroló- recente, entre outros.
gicas, na insuficiência renal, na hipercalciúria, na Deve ser questionado se já foi realizada algu-
diabetes insípida central ou nefrogénica, na dia- ma investigação e/ou terapêutica e os respetivos
betes mellitus, em doenças do sistema nervoso resultados.
central, doenças neurológicas lombossagradas É também necessário avaliar a existência de
ou epilepsia. comorbilidades que podem ter um papel impor-
tante na patogénese e serem responsáveis por
28.2.3 Diagnóstico ausência de resposta à terapêutica instituída.
São exemplo: a obstipação, presente em cerca
Mais uma vez é fundamental realizar uma de um terço dos casos, infeções urinárias de re-
história clinica completa e detalhada. Esta permi- petição (indicador de disfunção vesical), patologia
tir-nos-á fazer o diagnóstico de enurese e identi- do neurodesenvolvimento ou psiquiátrica como
ficar sinais de alarme. perturbação de hiperatividade e défice de aten-
Na anamnese deve ser recolhida informa- ção, ansiedade, depressão; distúrbios do sono
ção que permita classificar a enurese como con- como o síndrome de apneia obstrutiva do sono
tinua ou intermitente, primária ou secundária, e parassónias.
98 MÓNICA OLIVA
Por último é fundamental avaliar como é enurese. Assim é importante analisar a densidade
que a criança e família lidam com este problema urinária (diabetes insípida), glicosúria e cetonúria
(indiferença? vergonha? culpa? castigos? prémios (diabetes melitus), leucocitúria e presença de ni-
pelas noites secas?), a perturbação que causa na tritos (infeção urinária), hematúria e proteinúria
qualidade de vida e no sono de ambos e a atual (doença renal).
motivação de todos. Perante uma enurese não monossintomática,
na suspeita de doença orgânica, ou na ausência
O exame objetivo da criança enurética é de resposta ao tratamento, outros exames po-
habitualmente normal. No entanto este deve ser derão ser necessários e deverão ser solicitados
minucioso para identificar alterações anatómi- caso-a- caso: sumária de urina com sedimento
cas ou neurológicas que possam ser responsáveis urinário e urocultura, ecografia reno-vesical, es-
pela enurese. Deve-se prestar especial atenção à tudo urodinâmico, entre outros.
avaliação do crescimento, da tensão arterial, dos
genitais, da região lombossagrada e efetuar um 28.2.5 Tratamento
exame neurológico. Um atraso estatural pode
acompanhar uma insuficiência renal crónica ou A intervenção deverá iniciar-se pela educa-
outras doenças nefrourológicas que cursam com ção. É necessário explicar à criança e à família o
poliúria. Muitas nefro e uropatias acompanham-se normal funcionamento do trato urinário inferior
de hipertensão arterial. Alterações dos genitais e a patogenia da enurese, salientado que se trata
e da região lombossagrada podem associar-se a de um problema comum que afeta muitas crianças
malformações urológicas. No abdómen, a palpa- e que ninguém é culpado, pelo que a criança não
ção de globo vesical pode indicar obstrução e a deve ser castigada.
presença de fita cólica, obstipação. Alterações da Deverão então ser aconselhadas medi-
marcha, dos reflexos osteotendinosos, da força das comportamentais: assegurar a ingestão
ou tónus muscular dos membros inferiores, da adequada de líquidos durante o dia, limitar o
sensibilidade perineal ou do tónus do esfíncter seu consumo no final do dia e restrição total
anal sugerem patologia neurológica. uma hora antes de deitar; evitar bebidas com
cafeína, alimentos com elevado teor proteico
28.2.4 Exames complementares ou sal; incentivar micções regulares durante o
de diagnóstico dia (quatro a sete/dia) e a última mesmo antes
de deitar. Solicitar o registo das noites secas/
Na avaliação inicial de uma enurese noturna molhadas num calendário. Esta medida tem um
primária monossintomática o único exame neces- efeito psicoterapêutico por si só e permite avaliar
sário é uma análise sumaria de urina ou um teste de forma mais objetiva a resposta às medidas
rápido de urina (tira-teste). Este exame simples, instituídas. Está desaconselhado o uso de fralda
barato e universalmente disponível permite ex- e não é necessário acordar a criança durante a
cluir algumas doenças que podem cursar com noite para urinar.
CAPÍTULO 28. OBSTIPAÇÃO, ENCOPRESE E ENURESE 99
Alguns casos resolvem apenas com esta É a estratégia mais eficaz no tratamento
abordagem. Nesta fase o médico e/ou a família de enurese com uma taxa de sucesso estimada
poderão decidir não progredir na intervenção. em 66 a 70%.
Para além destas medidas gerais, que de- Desmopressina: análogo sintético da vaso-
vem ser instituídas a toda a criança enurética, pressina, diminui a produção noturna de urina e
existem duas opções terapêuticas de primeira por isso é particularmente útil nas crianças com
linha: o alarme e a administração de desmo- poliúria noturna e capacidade vesical normal. Está
pressina. também indicada quando não há motivação para a
Antes dos sete anos não é previsível uma prescrição do alarme ou este não foi eficaz. Cerca
taxa de resposta ao tratamento superior à taxa de de um terço das crianças tem resposta completa e
remissão espontânea da enurese. Contudo este 40% parcial. O potencial de cura é baixo, com uma
pode ser iniciado antes, se o impacte da enurese taxa de recaída elevada. Consoante a formulação
na criança ou na família for negativo. utilizada deverá ser administrado meia a uma hora
Nos casos em que também existem sintomas antes da última micção, ao deitar. É um fármaco
diurnos ou obstipação, estes devem ser tratados seguro, com poucos efeitos secundários, mas se
em primeiro lugar pois poderão ser responsáveis a criança ingerir uma quantidade excessiva de
pela falência do tratamento. líquidos, há risco de intoxicação hídrica, hipona-
trémia e convulsões. Por este motivo recomenda-
Alarme: dispositivo que emite um sinal, -se reduzir a ingestão de líquidos à noite e a sua
habitualmente sonoro, quando o sensor colo- restrição uma hora antes da administração da
cado na roupa interior, humedece. A criança desmopressina e nas oito horas seguintes.
deve acordar com o alarme, ir à sanita terminar
a micção, ajudar na mudança de lençóis e voltar A escolha da terapêutica deve ser discuti-
a aplicar o alarme. Este processo tem que ser da com a família tendo em conta o mecanismo
monitorizado por um adulto para garantir que fisiopatogénico subjacente, as características da
a criança cumpra todos estes passos e simples- criança e a motivação familiar. Perante uma crian-
mente não desligue o alarme e volte a ador- ça com poliúria noturna associada a capacidade
mecer. Pretende-se com este dispositivo criar vesical normal a desmopressina será a melhor
uma resposta condicionada à repleção vesical, opção. Nos outros casos deve-se recomendar o
sendo necessário o seu uso diário. Segundo al- alarme. Na ausência de resposta a um dos trata-
guns autores, o alarme também pode aumentar a mentos deve ser oferecido o outro ou até a sua
capacidade vesical durante a noite. Por requerer associação. Se mesmo assim mantiver enurese
o envolvimento da criança e da família, está ape- é necessário verificar se o tratamento foi feito
nas indicado quando ambos estejam motivados. corretamente, se não se trata de enurese não
É uma boa opção para crianças sem poliúria e monossintomática, que requer outro tipo de in-
com capacidade vesical reduzida. tervenção; se existe alguma comorbilidade como
100 MÓNICA OLIVA
obstipação que deverá ser tratada. Nesta fase, se tratamento a instituir. Permitem ainda identificar
ainda não foi feito, é necessário um diário miccio- famílias pouco motivadas.
nal e pode estar indicada investigação adicional.
O passo terapêutico seguinte será a prescri- Avaliação e orientação das crianças com
ção de um anticolinérgico (terapêutica de segunda enurese secundária devem seguir esta mesma
linha). O fármaco mais utilizado é a oxibutinina, abordagem, tentando identificar e se possível
que atua diminuindo a atividade do detrussor orientar o fator desencadeante.
e aumentando a capacidade vesical. É particu-
larmente útil na enurese não monossintomática 28.2.6 Prognóstico
mas pode ser usada na enurese noturna com
capacidade funcional reduzida, nomeadamente Trata-se habitualmente de uma situação
em associação à desmopressina. benigna, embora uma proporção significativa
A imipramina, um antidepressivo tricí- continue a molhar a cama durante a adolescên-
clico, antigamente muito usada no tratamento cia e alguns até à idade adulta. Este facto pode
da enurese constitui atualmente uma opção de ter um impacte negativo considerável na criança/
terceira linha, a ser utilizada apenas em centros adolescente e na sua família, tornando nestes
diferenciados, tendo em conta o seu potencial casos o tratamento mandatório.
efeito cardiotóxico, podendo ser fatal em caso O efeito negativo depende da limitação que
de intoxicação. causa nas atividades do dia-a-dia (por exemplo
ir dormir a casa de um amigo, ir acampar), da
Eventualmente antes de iniciar o tratamento autoestima da criança, do grau de ostracismo
ou sempre que falhar a primeira opção é útil por parte dos colegas e da forma como os pais
solicitar aos pais e à criança o registo de dados ou cuidadores lidam com esta situação.
objetivos num diário miccional. Durante pelo
menos dois dias deve ser contabilizado o volume 28.2.7 Factos a reter
das micções e de líquidos ingeridos e durante
uma semana registar os episódios de enurese • A enurese é um problema frequente em
(com determinação do volume de urina perdi- idade pediátrica.
do), de incontinência urinária diurna, eventuais • Embora habitualmente benigna, pode
sintomas das vias urinárias inferiores e hábitos causar alterações importantes na auto-
intestinais. -estima da criança e na dinâmica familiar.
Os diários fornecem dados objetivos, ajudam • Os três mecanismos patogénicos envolvi-
a identificar crianças com enurese não monossin- dos são a existência de poliúria noturna,
tomática ou que necessitam de investigação (por hiperatividade do músculo detrussor e um
exemplo com polidipsia), o mecanismo patogéni- limiar de despertar aumentado.
co preponderante (capacidade vesical diminuída • Na avaliação inicial de uma criança com
ou poliúria noturna) e assim escolher o melhor enurese monossintomática recomenda-se
CAPÍTULO 28. OBSTIPAÇÃO, ENCOPRESE E ENURESE 101
Leitura complementar
Roda J, Rubino G, Lapa P, Oliva M. Obstipação e Incontinência
Fecal na Criança. Saúde Infantil 2012; 34(1): 25-30.
Neveus T, Eggert P, Evans J, et al. Evaluation of and treat-
ment for monosymptomatic enuresis: a standardization
document from the International Children’s Continence
Society. J Urol 2010;183(2): 441-447.
Tabbers MM, DiLorenzo C, Berger MY, et al. Evaluation
and Treatment of Functional Constipation in Infants
and Children: Evidence-Based Recommendations from
ESPGHAN and NASPGHAN. JPGN 2014;58:258-274.
Benninga MA, Nurko S, Faure C, et al. Childhood
Functional Gastrointestinal Disorders:Neonate/Toddler.
Gastroenterology 2016:1443-1455.
Hyman JS, Di Lorenzo C, Saps M, et al. Childhood
Functional Gastrointestinal Disorders:Child/Adolescents.
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Vande Walle J, Rittig S, Bauer S, et al. Practical consen-
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Pediatr 2012;171(6): 971-983.
Capítulo 29.
Problemas dermatológicos
mais comuns em pediatria
29
Gustavo Januário
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_29
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 105
Figura 1. Corte transversal da superfície cutânea. São três as camadas que constituem a pele: epiderme (estrato córneo é o mais
superficial), derme e a gordura subcutânea.
106 GUSTAVO JANUÁRIO
A B
29.2.1.3 Lanugo
O lanugo corresponde ao pêlo, suave e
delicado, não-pigmentado e sem medula cen-
tral (figura 3). É o primeiro pêlo formado pelo
folículo piloso fetal e possui dois períodos de
crescimento que terminam em dois períodos
de queda. O primeiro período de queda ocor-
re in-útero por volta dos sete a oito meses de
gestação, e o segundo surge perto do termo
da gestação ou mesmo após o nascimento.
Figura 3. Lanugo no recém-nascido. O lanugo é um indicador útil na determina-
Fotografia de Luís Januário.
ção da idade gestacional, fazendo parte in-
clusivamente de algumas das escalas construí-
das com esse propósito (Ballard modificada).
mistura de células epiteliais que descamaram, A presença de lanugo num RN é assim caraterís-
sebo e por vezes cabelo. Tem funções de lubri- tico do pré-termo onde se mostra exuberante,
ficação e atua como barreira de permeabilidade cobrindo os ombros e a totalidade do dorso.
na proteção da pele do líquido amniótico que A parte distal dos membros é menos atingida.
a rodeia. A sua espessura aumenta com a ida- O envolvimento da face pode ser bilateral e ex-
de gestacional, embora os RN pós-termo não tenso. Mais tarde o lanugo desaparece, em pri-
se apresentem com vérnix, e a sua coloração meiro lugar na zona inferior do dorso e depois
alterada pode ser uma pista que denuncia so- nas restantes. A substituição de lanugo por pêlo
frimento fetal. terminal ocorre nos primeiros meses de vida.
como nos ombros e nos membros, podendo ser inferior (linha nigra), a rodear a aréola do mamilo,
únicas ou múltiplas, medir poucos milímetros ou na axila e na base ungueal. É mais comum no
ultrapassar os dez centímetros (figura 4). A cor RN de raça negra e tem um carácter transitó-
azulada da melanose dérmica é o resultado do rio. Esta hiperpigmentação deve-se sobretudo
efeito Tyndall (absorção da luz do comprimento à ação estimuladora da hormona melanocítica
de onda vermelho e reflexão da luz de compri- (MSH). Em certas ocasiões o padrão de hiper-
mento de onda azul pelo pigmento melanínico pigmentação não tem origem hormonal (hiper-
que é castanho e profundo). O seu diagnóstico queratose por trauma mecânico in-utero), o que
diferencial prende-se com outras formas de hi- se traduz na existência de bandas horizontais de
perpigmentação dérmica como os nevos de Ito hiperpigmentação no abdómen e no dorso. Este
(localizado nos braços ou nos ombros) e de Ota tipo de hiperpigmentação também é transitório.
(localizado na região bucinadora ou no olho) ou O diagnóstico diferencial faz-se sobretudo com
com equimoses. Trata-se de uma situação be- a hiperplasia congénita da supra-renal que exige
nigna, cuja tendência é a de desaparecer por diagnóstico precoce, mas que se acompanha de
volta dos cinco anos se localizada às zonas típicas um quadro clínico típico (ver lição de vómitos).
referidas, podendo persistir quando localizada
noutras áreas. 29.2.1. 6 Cutis marmorata e Arlequim
A imaturidade do RN pode manifestar-se
29.2.1.5 Hiperpigmentação dérmica pela exibição de anomalias distintas do fluxo
Trata-se da coloração negra transitória que sanguíneo cutâneo. Assim a constrição capilar e
é observada na região genital (grandes lábios e venular, em resposta ao frio, produz um padrão
escroto), em estrias lineares na região abdominal violáceo reticulado típico, que quando ocorre
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 109
A B
em zonas mais acrais (distais) que centrais pode secundária a imaturidade hipotalâmica. Apesar
produzir uma coloração violácea intensa ou azul de benigno a existência deste fenómeno para
das mãos, pés e lábios - fenómeno conhecido além do período neonatal deverá levar a uma
como acrocianose. É típica do RN pré-termo, investigação causal.
tendo caráter transitório e melhoria rápida após
aquecimento. A sua tendência a recorrer diminui 29.2.1. 7 Eritema tóxico neonatorum
com a idade. O diagnóstico diferencial faz-se com É considerada por muitos autores como a
situações patológicas como a cutis marmorata erupção benigna mais comum no período neo-
telangiectásica congénita e as cardiopatias con- natal e pode existir em até metade dos RN de
génitas cianóticas (cianose central). termo. Correlaciona-se com a idade gestacional
Arlequim é um fenómeno raro em que a e com o peso de nascimento, sendo raro em
quantidade de fluxo sanguíneo difere marcada- pré-termos e naqueles que nascem com menos
mente entre o lado direito e o esquerdo do corpo de 2500 gramas. Surge habitualmente entre as
com demarcação evidente na linha média (figura primeiras 24 a 48 horas de vida, embora estejam
5). Ocorre quando o RN se encontra em decúbito descritos casos em que está presente ao nasci-
lateral, em que o lado dependente exibe vasodi- mento e outros em que aparece após os dez dias
latação, sendo marcadamente mais vermelho que de vida. Habitualmente as lesões desvanecem
a metade superior. A face e os órgãos genitais num período que poderá atingir os sete dias.
podem ser poupados. Estes episódios duram se- A erupção clássica é a de uma mácula, pápula
gundos, mas podem ter uma duração de minutos, ou pústula amarelada com um a três milímetros
sendo facilmente reversíveis. O mecanismo fisiopa- de maior diâmetro que se encontra rodeada por
tológico subjacente é a disautonomia autonómica, um halo eritematoso irregular (figuras 6 a) b)).
110 GUSTAVO JANUÁRIO
A B
Figuras 10. Ectasias vasculares na pálpebra direita “beijos de anjo” (a) e na região da nuca “picadas de cegonha” (b). Fotografia do
autor e de Manuel Salgado.
Condições que excluem EA – Doenças que fazem diagnóstico diferencial com EA:
• Escabiose
• Eczema seborreico
• Eczema de contacto
• Ictioses
• Psoríase
• Imunodeficiência
Figura 14. Dermatite da Fralda Irritativa Primária. Figura 15. Dermatite da fralda candidiásica.
Fotografia do autor. Fotografia do autor.
Candida albicans. O ambiente húmido e quente afetada ao ar, se a temperatura ambiente o permi-
favorece a proliferação desta levedura que ao tir. A higiene diária deverá consistir na lavagem da
penetrar o estrato córneo, activa a via alterna do região com água morna e algodão e na utilização
complemento e induz um processo inflamatório, de produtos de ação suave e com efeito emolien-
com alteração do aspecto da dermatose em que te, não se recomendando, por rotina, toalhetes de
surge descamação, pápulas, pústulas e atingi- limpeza uma vez que poderão ser irritantes. Poder-
mento das pregas (figura 15). A diarreia crónica se-á igualmente aplicar, em cada muda de fralda,
ou o uso de antibioterapia de largo espetro são um creme barreira ou uma pasta com óxido de
duas situações que frequentemente favorecem a zinco. As preparações com ácido bórico e pó de
infeção por Candida albicans. talco deverão ser evitadas pela sua toxicidade e
capacidade de provocar granulomas. O controlo da
No quadro 4 é apresentado o diagnóstico sobreinfeção é fundamental mas não deverão ser
diferencial de algumas patologias que podem utilizados antimicrobianos de forma “preventiva”
causar DF. e a infeção por Candida albicans deverá apenas ser
considerada em dermatites com mais de três dias
O tratamento da DF tem como objetivos man- de evolução e sob as medidas recomendadas. O
ter a área seca, limitar a mistura e a dispersão da tratamento da DF candidiásica consiste na aplicação
urina e das fezes, reduzir o seu contacto com a pele, tópica de nistatina ou derivados do imidazol.
evitar a irritação e a maceração e manter, sempre
que possível, um pH ácido, respeitando a máxima 29.2.2.4 Hemangiomas Infantis
“pouca humidade e muito ar”. Para tal recomenda- Os hemangiomas infantis (HI) são os tumo-
-se mudanças frequentes da fralda e expor a zona res de tecidos moles mais comuns na infância.
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 123
Trata-se de uma proliferação benigna do tecido de crescimento rápido que dura habitualmente
endotelial que ocorre entre quatro a dez por cento três a seis meses mas que se pode prolongar até
das crianças com idade inferior a um ano (figuras aos 24 meses. Segue-se então um período de
16 a) b)). São mais frequentes em caucasianos, estabilização e de involução espontânea, que é
no sexo feminino, em prematuros e nos recém- lenta e gradual e que não deixa habitualmente
-nascidos de baixo peso. A biopsia das vilosidades sequelas (redundância cutânea, telangiectasias
coriónicas constitui igualmente um factor de risco e tecido fibroso). Apesar de serem muitas vezes
para o seu aparecimento. Caracterizam-se por causadores de stresse familiar, exacerbado pelo
um perfil evolutivo e um padrão de crescimento uso incorreto por parte dos pais e cuidadores
típicos. Estão geralmente ausentes ao nascimento, da informação disponível on-line, os HI têm, na
embora em alguns casos possa estar presente uma maioria das situações, um prognóstico excelente
lesão precursora, sendo evidentes nas primeiras e uma resolução espontânea com bom resultado
semanas de vida assistindo-se então a uma fase cosmético.
A B
Em cerca de 10% dos lactentes com HI po- (superiores a 2 mg/Kg/dia). As taxas de resposta
derá ser necessário instituir algum tipo de trata- eram variáveis (30 a 80%) com melhorias duas a
mento, para além da vigilância habitual. Assim três semanas após o início do tratamento, mas os
preconiza-se intervenção terapêutica no caso de efeitos secundários eram múltiplos (fácies cushin-
HIs com risco de vida associado (localização nas goide, insónia, irritabilidade, alteração do cresci-
vias respiratórias superiores e hemangiomatose mento, hipertensão e cardiomiopatia hipertrófica).
hepática, com risco associado de insuficiência A cirurgia reserva-se habitualmente para situações
respiratória e insuficiência cardíaca de alto dé- muito pontuais, nomeadamente HIs pediculados.
bito); na presença de complicações locais como Recentemente foi descrito um tratamento
hemorragia (raramente é significativa), ulceração utilizando o propranolol, um beta-bloqueador não
(comum, sobretudo no lábio, pescoço e região selectivo, que veio revolucionar a abordagem dos
genital) e necrose; na presença de compromisso HIs. Graças à sua excelente eficácia, comprovada
das funções sensitivas (no caso de HIs localizados num ensaio randomizado e controlado, rapida-
à região peri-ocular com compromisso da abertura mente se tornou no tratamento de primeira linha
palpebral, ou na proximidade do meato auditivo); dos HI. É atualmente o tratamento recomendado
ou na presença de risco cosmético significativo pelas principais sociedades científicas estando dis-
que poderá levar a deformidades permanentes (lo- poniveis protocolos de orientação. O propranolol
calização na asa nasal, lábio superior ou auricular). deverá ser utilizado durante a fase proliferativa
O tratamento dos HIs, reservado para as e os seus efeitos terapêuticos são consistentes e
situações anteriormente descritas, era classica- rápidos alterando a história natural dos HIs. É um
mente efetuado utilizando corticoides sistémi- fármaco com boa tolerância clínica embora os
cos, sendo habitualmente necessário doses altas efeitos secundários habitualmente associados ao
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 125
Leitura complementar
National Institute for Clinical Excellence. Management of
atopic eczema in children from birth up to the age of
12 years. London: NICE; 2007.
Eichenfield LF et al. Guidelines of care for the management
of atopic dermatitis. J Am Acad Dermatol. 2014.
Léauté-Labrèze C, Dumas de la Roque E, Hubiche T, Boralevi F,
Thambo JB, Taïeb A. Propranolol for severe hemangiomas
of infancy. N Engl J Med. 2008.
Lawley LP, Siegfried E, Todd JL. Propranolol treatment for
hemangioma of infancy: risks and recommendations.
Pediatr Dermatol. 2009.
Capítulo 30.
Infeções da pele e dos tecidos moles
30
Fernanda Rodrigues
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_30
CAPÍTULO 30. INFEÇÕES DA PELE E DOS TECIDOS MOLES 129
A úlcera está coberta por uma crosta de cor ama- A lavagem das mãos é fundamental para
relada e tem bordos elevados violáceos. prevenir a disseminação da infeção.
As crianças podem regressar à escola 24 horas
A cultura de pús ou exsudato de lesões de após instituição de tratamento antibiótico adequa-
impétigo ou éctima está habitualmente recomen- do, devendo ser cobertas as lesões exsudativas.
dada para identificação e monitorização dos gér- Dada a gravidade clínica, o SSSS exige in-
mens e suas suscetibilidades mas o tratamento ternamento. O tratamento é com antibiótico en-
sem esta investigação é aceitável nos casos clínicos dovenoso com atividade contra Staphylococcus
com manifestações típicas. Não estão indicados aureus (flucloxacilina).
outros exames complementares.
Quando diagnóstico de SSSS é colocado, 30.2.1.2 Foliculite, carbúnculo e furúnculo
devem ser efetuadas culturas de sangue, da na- Agente etiológico mais frequente:
sofaringe, do umbigo ou qualquer outro foco sus- Staphylococcus aureus.
peito de infeção. As bolhas intactas são estéreis.
O objetivo do tratamento do impétigo é redu- São um grupo de infeções que têm em co-
zir a transmissão e desconforto, devendo na forma mum a sua origem nos folículos pilosos.
não bolhosa ser utilizado um antibiótico (flucloxa- As lesões de foliculite estão localizadas ao
cilina) com atividade para Staphylococcus aureus e folículo piloso, com reação tecidular mínima, e
Streptococcus pyogenes, pois ambos podem estar com pús na epiderme. São habitualmente peque-
envolvidos. Sempre que for efetuada cultura, o nas (inferiores a 5mm de diâmetro), múltiplas,
antibiótico deverá ser ajustado a este resultado. agrupadas, eritematosas por vezes com pústula
Uma revisão da Cochrane de 2012, concluiu que há no centro da lesão e com prurido.
evidência de que a mupirocina e o ácido fusídico A coalescência de vários folículos inflamados
tópicos são igualmente ou mais eficazes de que o com drenagem purulenta designa-se carbúnculo.
tratamento com antibiótico oral para esta infeção, Quando o processo envolve o folículo piloso
quando se trata de lesões únicas ou em número e o material purulento se estende aos tecidos
limitado. Por falta de estudos em impétigo extenso, adjacentes (derme e tecido celular subcutâneo),
não é claro se a antibioterapia oral é superior à com formação de pequenos abcessos, designa-
tópica nestes casos. Estas são também as reco- -se furúnculo.
mendações da Sociedade Americana de Doenças A cultura do material purulento das lesões
Infeciosas (IDSA), atualizadas em 2014. No caso pode ser efetuada mas o tratamento sem esta
de lesões numerosas ou surtos deverá utilizar-se investigação é aceitável nos casos clínicos com
antibioterapia oral para reduzir a transmissão. manifestações típicas.
O tratamento do éctima deverá ser sempre oral. As lesões de foliculite são habitualmente
A duração da terapêutica tópica é de cinco auto-limitadas, não necessitando tratamento.
dias e da terapêutica oral para impétigo ou éctima Poderá ser instituído tratamento tópico com áci-
deverá ser de sete. do fusídico se persistentes.
132 FERNANDA RODRIGUES
O carbúnculo e furúnculo são tratados com frequentemente numa área de pele traumatizada
incisão e drenagem. Antibioterapia com flucloxaci- que permite a entrada das bactérias. A área atin-
lina poderá ser associada nos casos com manifes- gida apresenta-se com edema, eritema, calor e
tações sistémicas, lesões múltiplas, resposta clínica dor, tem limites mal definidos e não tem bordos
inadequada à incisão e drenagem e em doentes elevados. Pode ocorrer em qualquer local do corpo
com co-morbilidades. A duração do tratamento mas os membros são os locais mais frequentemen-
depende da resolução clínica, sendo habitual- te envolvidos. Pode variar em gravidade, desde
mente suficientes cinco a sete dias. formas localizadas a outras mais extensas com
manifestações sistémicas como febre. A evolução
30.2.1.3 Dermatite perianal estreptocócica é habitualmente mais lenta do que a da erisipela.
Agente etiológico: O diagnóstico é clínico. A realização de
Streptococcus pyogenes. hemocultura ou aspiração da lesão com agulha
têm pouca utilidade em quadros ligeiros, sendo
Caracteriza-se por um eritema perianal de a percentagem de positividade muito baixa. A
bordos bem definidos, com exsudação, prurido, hemocultura ou cultura de pús podem ser úteis
dor local e dor à defecação, ocorrendo por vezes em quadros com manifestações sistémicas, lesões
dejeções com sangue, fissuras anais e obstipação. extensas ou existência de co-morbilidades.
Não há febre ou outra sintomatologia sistémica. O tratamento deverá ser feito com fluclo-
Atinge predominantemente crianças entre os xacilina oral, podendo nos casos mais graves ser
seis meses e os dez anos, sendo mais frequente necessária a via endovenosa. A duração depende
no sexo masculino. da resposta clínica, sendo habitualmente adequa-
O diagnóstico clínico poderá ser confirmado dos cinco a dez dias.
através da cultura do exsudato local.
O tratamento deverá ser feito com amoxicilina. 30.2.1.5 Erisipela
Apesar de não haver resistências do Streptococcus Agente etiológico:
pyogenes à penicilina, por razões não bem escla- Streptococcus pyogenes.
recidas, por vezes esta infeção não resolve com
este tratamento. Se tal ocorrer, a segunda escolha A erisipela localiza-se à camada superficial
deverá ser amoxicilina e ácido clavulânico. da derme, com grande envolvimento linfático.
O início dos sintomas é habitualmente súbito e
30.2.1.4 Celulite inclui manifestações sistémicas tais como febre e
Agentes etiológicos mais frequentes: mal-estar. Apresenta-se com edema, rubor, calor
Staphylococcus aureus e dor. A área atingida tem bordos elevados e
e Streptococcus pyogenes. limites bem definidos. A pele pode ter aspeto de
casca de laranja, por vezes com vesículas. Mais
Caracteriza-se por uma inflamação da derme tarde, ocorre descamação e pigmentação. Por
profunda e do tecido celular subcutâneo. Surge vezes associa-se a linfangite.
CAPÍTULO 30. INFEÇÕES DA PELE E DOS TECIDOS MOLES 133
As extremidades inferiores são as mais fre- cutânea vermelho-arroxeada para áreas de cor
quentemente atingidas. azul-acinzentada por trombose venosa com ne-
O diagnóstico é clínico. A hemocultura ou crose tecidular, por vezes com bolhas.
cultura de exsudato podem ser úteis em quadros Como se trata de uma infeção grave com
com manifestações sistémicas, lesões extensas ou manifestações sistémicas, deverá ser efetuada
co-morbilidades. avaliação laboratorial com hemograma, proteína C
O tratamento de primeira linha é a penicilina. reativa e hemocultura. Deverá ser sempre efetuada
Quando há manifestações sistémicas deverá ser colheita de material biológico (exsudatos, produ-
endovenoso, passando para oral logo que haja tos de drenagem cirúrgica) para identificação do
melhoria clínica. gérmen por cultura e/ou biologia molecular. Na
Se houver dificuldade em distinguir erisipela suspeita de fasceíte necrotizante a ressonância
de celulite deverá ser escolhido um antibiótico magnética (RM) é o melhor exame para carate-
com atividade contra Streptococcus pyogenes e rizar as lesões.
Staphylococcus aureus (flucloxacilina). Esta infeção tem uma elevada morbilidade
A duração do tratamento depende da res- e mortalidade. É necessária terapêutica médica e
posta clínica, sendo cinco a dez dias habitual- cirúrgica com fasciectomia e remoção dos tecidos
mente adequado. necrosados. Quando se suspeita de infeção por
Streptococcus pyogenes, o tratamento antibiótico
30.2.1.6 Fasciíte necrotizante deverá ser com penicilina associada a clindamicina.
Agente etiológico mais frequente: Os potenciais benefícios deste último antibiótico
St r e p t o c o c c u s pyogenes; outros: são o facto de grandes inóculos e lenta prolifera-
Staphylococcus aureus, estreptococcus ção bacteriana levarem a uma menor expressão
anaeróbios; polimicrobiana. das proteínas de ligação à penicilina, tornando os
β-lactâmicos potencialmente menos ativos (Eagle
É uma infeção do tecido celular subcutâneo effect). Além disso, ao contrário dos β-lactâmicos,
progredindo rapidamente pela fascia superficial, e a sua atividade antimicrobiana não é afetada pelo
que se pode estender à fascia profunda e músculo, inóculo, tem efeito prolongado após última ad-
com necrose maciça do tecido celular subcutâ- ministração e atua sobre as bactérias inibindo a
neo. Ocorre habitualmente como extensão de síntese de toxinas. Poderá ser suspensa após de-
uma lesão cutânea, que em alguns casos pode saparecimento da febre e estabilização do doente.
ser uma lesão banal. Na criança pode estar as- Dada a gravidade desta infeção, quando há
sociada a varicela, queimadura, picada de inseto, possibilidade de haver outros microrganismos en-
traumatismo ou eczema. A apresentação inicial volvidos, o tratamento antibiótico deve incluir um
pode ser semelhante à da celulite mas com dor β-lactâmico com inibidor de β-lactamases (por
muito intensa e poucos sinais inflamatórios visí- exemplo: piperacilina-tazobactam) ou um carba-
veis. Associa febre alta, prostração, mau estado penemo associado a clindamicina e vancomicina.
geral. Evolui rapidamente de uma tonalidade A terapêutica deverá ser posteriormente ajustada
134 FERNANDA RODRIGUES
Quadro 1. Agentes etiológicos bacterianos mais frequentes em infeções da pele e tecidos moles e respetiva antibioterapia.
administração ao segundo caso na família, nos na infância. O homem é único hospedeiro co-
quais a doença é habitualmente mais grave do nhecido. É transmitido pelo contato direto pele-
que no primeiro). -a-pele, podendo ocorrer em qualquer parte do
O reaparecimento da febre no decurso da corpo. Pode também ser transmitido através de
doença deve fazer pensar em complicações, no- auto-inoculação ao tocar numa lesão ou através
meadamente infeções da pele e tecidos moles de fomites nas toalhas de banho. Está descrita
tais como celulite e fasceíte necrotizante, onde o associação de molusco contagioso com a fre-
Streptococcus pyogenes e Staphylococcus aureus quência de piscinas.
estão habitualmente envolvidos. O período de incubação é habitualmente
entre duas e seis semanas.
30.2.2.2 Herpes zoster Causa uma infeção localizada caraterizada
Agente etiológico: por lesões papulares da cor da pele, de 2 a 5
vírus varicela-zoster (VZV). mm de diâmetro, com uma superfície brilhante
e umbilicação. Pode existir prurido. Por vezes as
O Herpes zoster resulta da reativação de lesões apresentam-se visivelmente inflamadas,
uma infeção latente do VZV no gânglio sensorial. podendo ser um sinal de regressão, não devendo
Carateriza-se por pápulas eritematosas que rapi- tal aspeto ser confundido com infeção bacteriana.
damente evoluem para vesiculas dolorosas, que Pode aparecer em qualquer parte do corpo,
geralmente ocorrem em um dermátomo torácico exceto nas palmas e plantas. As áreas mais fre-
ou lombar. Ocasionalmente pode haver algumas quentemente atingidas incluem o tronco, axilas,
vesículas dispersas localizadas a alguma distância fossas antecubital e poplítea.
do dermátomo envolvido. Passados três a quatro Em crianças saudáveis, geralmente desapa-
dias as lesões vesiculares evoluem para pústula e rece espontaneamente com resolução completa
crosta. Aos sete a dez dias já não são consideradas entre seis a doze meses. Numa minoria de casos
infeciosas. A dor é habitualmente menos intensa persiste por períodos mais longos. A maioria das
na criança do que no adulto. lesões de molusco contagioso resolve sem cica-
O diagnóstico é clínico. O benefício da tera- trizes. Esta natureza auto-limitada e a escassez
pêutica antivírica não é claro, podendo acelerar de evidência que definitivamente apoie a inter-
a resolução das lesões cutâneas quando iniciada venção terapêutica, levantam questões sobre a
nas primeiras 72 horas de doença. necessidade de tratamento. As vantagens deste
incluem limitação da progressão das lesão, redu-
30.2.2.3 Molluscum contagiosum ção do risco de transmissão para outras pessoas,
Agente etiológico: resolução do prurido quando presente, prevenção
Molluscum contagiosum. de cicatrizes que podem resultar de lesões trau-
matizadas ou secundariamente infetadas.
O Molluscum contagiosum é um poxvírus A remoção com uma cureta resulta em re-
que provoca uma infeção cutânea muito comum solução imediata da lesão embora por vezes seja
138 FERNANDA RODRIGUES
necessária mais do que uma sessão. Pode causar sempre que possível porque permitem conhecer os
desconforto e ser muito demorada. Existe uma microrganismos envolvidos e suas suscetibilidades
extensa lista de tratamentos tópicos. aos antimicrobianos. Outros exames complemen-
tares são necessários apenas em alguns casos. As
30.2.2.4 Verrugas palmo-plantares infeções bacterianas são habitualmente causadas
Agente etiológico: por Staphylococcus aureus e Streptococcus pyoge-
Papilomavírus humano (HPV). nes. Algumas podem ser tratadas com antibiótico
A manifestação clínica mais comum da infe- tópico, outras com antibiótico sistémico e outras
ção por HPV são as verrugas. Existem muitos tipos necessitam também de incisão e drenagem. Como
de HPV, que tendem a infetar locais específicos o tratamento antibiótico inicial é sempre empíri-
do corpo. O HPV tipo 1 geralmente origina as co, devemos conhecer as suscetibilidades locais
verrugas plantares. e nacionais de forma a poder fazer a escolha
Esta infeção ocorre pelo contacto pele-a- mais adequada, ajustando-a depois aos exames
-pele em locais macerados ou de trauma predis- microbiológicos efetuados.
pondo à inoculação, podendo no entanto também
ocorrer em pele normal. Leitura complementar
O período de incubação é de dois a seis Long S, Pickering L, Prober C. Bacterial skin infections. Skin
meses. Infections. Principles and Practice of Pediatric Infectious
As verrugas podem ter diferentes formas, Diseases. 4th ed. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2012.
apresentar-se como lesão única ou em grupo. Cherry J, Demmler-Harrison G, Kaplan S, Steinbach W,
O diagnóstico é clínico. Têm aspeto de pequena Hotez P. Skin and Soft-Tissue Infections. Feigin and
formação dura encastoada na planta do pé, so- Cherry’s Textbook of Pediatric Infectious Diseases. 7th
bretudo nas áreas de pressão. São habitualmente ed. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2013.
dolorosas. Stevens DL, Bisno AL, Chambers HF, et al. Practice guidelines
A remissão espontânea das verrugas ocorre for the diagnosis and management of skin and soft tissue
em até dois terços dos doentes dentro de dois infections: 2014 update by the Infectious Diseases Society
anos. A recorrência é comum. O tratamento mais of America. Clin Infect Dis. 2014;59:e10-52.
usado em pediatria é o ácido salicílico local, em-
bora existam outras opções.
31
Paula Estanqueiro
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_31
CAPÍTULO 31. PÚRPURAS/VASCULITES 141
No primeiro mecanismo estão enquadrados a car- presente ao nascimento e pode estar associada
bamazepina, o cloranfenicol e o ácido valpróico. com alterações esqueléticas.
Entre os fármacos que podem induzir mecanismos
imunes estão o trimetoprim-sulfametoxazol e a 31.2.2 Púrpura por alteração da função
fenitoína. das plaquetas
As doenças neoplásicas na criança que As alterações da função plaquetária podem
causam infiltração da medula óssea podem apre- ser hereditárias ou adquiridas (fármacos).
sentar-se com púrpura por trombocitopenia como Das causas hereditárias constam: as deficiên-
a leucemia, histiocitose e neuroblastoma. cias congénitas em glicoproteínas da membrana
Nos adolescentes com trombocitopenia é plaquetar como a trombastenia de Glanzmann (gp
mais provável que se trate de uma doença crónica, IIbIIIa) e a doença de Bernard-Soulier (gp Ib) que
devendo ser consideradas as doenças autoimu- causam defeitos na agregação plaquetar; e outras
nes associadas com trombocitopenia como o LES, doenças como o síndrome de Chediak-Higashi
a imunodeficiência comum variável e síndromes em que ocorre uma deficiência nos grânulos das
linfoproliferativos autoimunes, particularmente plaquetas e uma libertação deficitária de adeno-
se as citopenias são múltiplas. sina difosfato (ADP) e serotonina, essenciais para
Há doenças hereditárias raras (anemia de a agregação e formação do tampão plaquetário.
Fanconi, síndrome trombocitopenia e ausência de Nas causas adquiridas, fármacos como a
rádio (TAR), síndrome de Wiskott-Aldrich, trombo- aspirina inibem a síntese de prostaglandinas e
citopenia amegacariocítica congénita, síndrome de previnem a libertação de ADP e tromboxano A2
Bernard-Soulier, doença von Willebrand tipo IIB, essenciais à agregação plaquetar; assim como o
doenças associadas ao MYH-9) que também estão ibuprofeno e outros anti-inflamatórios não este-
associados à diminuição da produção de plaquetas. roides (AINEs), a furosemida, a nitrofurantoina, a
A anemia de Fanconi carateriza-se por heparina e os bloqueadores simpáticos também
pancitopenia, hiperpigmentação e manchas café interferem na função plaquetária.
com leite, baixa estatura, anomalias esqueléticas
e várias anomalias sistémicas. As alterações he- 31.2.3 Púrpura por deficiência ou alteração
matológicas geralmente surgem após os dois a funcional dos fatores de coagulação
três anos de idade. A púrpura pode ser a primeira manifestação
O síndrome de Wiskott-Aldrich é uma clínica da deficiência congénita dos fatores de coa-
doença recessiva ligada ao cromossoma X que gulação (hemofilia A (VIII), hemofilia B (IX) e doença
apresenta eczema, microtrombocitopenia e infe- de von Willebrand), ou adquirida (sépsis, doença
ções recorrentes secundárias a imunodeficiência. hepática, deficiência de vitamina K e urémia).
A sobrevida curta das plaquetas neste síndrome As hemofilias são doenças hemorrágicas
resulta de uma anomalia intrínseca das plaquetas. de hereditariedade ligada ao cromossoma X que
A trombocitopenia amegacariocítica con- afetam o género masculino. A gravidade destas
génita carateriza-se por trombocitopenia grave doenças depende da quantidade de fator circulante
CAPÍTULO 31. PÚRPURAS/VASCULITES 145
funcional (doença grave <1%, moderada 1 a 5%, de proteína C e S em quadros de infeções ví-
ligeira >5%). A hemofilia A é a mais frequente e ricas ou bacterianas graves. As proteínas C e S
estima-se que ocorra num em cada 5000 nados são glicoproteínas dependentes da vitamina K com
vivos do sexo masculino. As hemofilias geralmente propriedades antitrombóticas e profibrinolíticas.
apresentam-se no RN com cefalohematoma grave, As manifestações clínicas são equimoses
hemorragia gastrointestinal ou umbilical, sendo extensas bem delimitadas com halo inflamató-
raras as manifestações purpúricas. Na hemofilia rio, localizadas predominantemente em zonas
grave as hemorragias espontâneas são frequentes, de pressão, que evoluem para bolhas e escaras
enquanto nas formas moderadas e ligeiras as perdas necróticas, e rapidamente progridem para uma
hemáticas surgem geralmente na sequência de trau- CID com trombose, complicações neurológicas e
matismos ou cirurgias. A hemartrose (hemorragia falência multiorgão.
intra-articular) dos joelhos, cotovelos e tornozelos
é a manifestação mais frequente, apesar da he- 31.2.4 Púrpura por fatores vasculares
morragia poder acontecer em qualquer localização.
A doença hemorrágica congénita mais fre- Vasculites
quente é a de von Willebrand (~1% da popula- A vasculite é definida pela presença de in-
ção). Resulta de alterações quantitativas ou qualita- flamação em vasos sanguíneos, resultante de
tivas do fator de von Willebrand. É de transmissão um processo primário ou secundário a doença
hereditária autossómica dominante, com penetrân subjacente. O fenótipo clínico e a gravidade da
cia variável. Deve suspeitar-se desta anomalia pe- vasculite são muito variáveis e dependentes do
rante uma situação clínica de equimoses fáceis, tipo e localização dos vasos envolvidos e da ex-
hemorragia das mucosas (epistaxis, menorragia) e tensão da inflamação. A púrpura palpável resulta
hemorragia prolongada após extração dentária. Ao da inflamação dos pequenos vasos cutâneos (vas-
contrário da hemofilia, as hemorragias articulares culite leucocitoclástica), que origina extravasa-
ou musculares são muito raras. mento de eritrócitos para a pele. Nas entidades
A púrpura fulminans é um síndrome raro que envolvem pequenos e médios vasos estão
de trombose intravascular e enfarte hemorrágico presentes nódulos subcutâneos, púrpura e livedo
da pele rapidamente progressiva e acompanhada reticularis fixo; nas vasculites de grandes vasos
por CID. Apresenta-se habitualmente no período ocorre ulceração e necrose.
neonatal e está associada a défice de proteína C. A maioria das vasculites cutâneas da criança
Os indivíduos heterozigóticos podem ser assinto- é primária sendo a mais frequente a púrpura de
máticos ou apresentar trombose venosa na vida Henoch-Schönlein. As vasculites podem ser se-
adulta, enquanto os défices homozigóticos têm cundárias a infeção, doença maligna, exposição
níveis muito baixos de proteína C e risco elevado a fármacos e doenças reumáticas como o LES e
de púrpura fulminans. a dermatomiosite juvenil. Só ocasionalmente as
Os lactentes e crianças maiores podem ter vasculites causam púrpura palpável, devendo
um quadro semelhante por défice adquirido no entanto considerar-se a possibilidade de LES,
146 PAULA ESTANQUEIRO
dermatomiosite, granulomatose com poliangeí- clínica em 50% dos doentes. O exantema é de-
te (anteriormente designada Granulomatose de pendente da força da gravidade e da pressão
Wegener), na presença de lesões que sugiram e por isso predomina nos membros inferiores e
uma vasculite cutânea secundária. A poliarterite nádegas, com distribuição simétrica, mas pode
nodosa, a arterite de Takayasu ou a doença de ser mais disperso. As lesões podem ser predomi-
Kawasaki geralmente não se apresentam com le- nantemente purpúricas, petequiais ou com padrão
sões purpúricas. misto, e podem surgir por surtos. Nas crianças
O diagnóstico das vasculites é desafiante e pequenas é frequente o edema das extremidades
implica um alto índice de suspeição pois os achados e nas mais velhas o edema escrotal equimótico.
clínicos iniciais podem ser inespecíficos como febre, Cerca de 70% tem artralgias ou artrite (si-
mal-estar, emagrecimento, mialgias ou artralgias. métrica), afetando uma ou mais articulações,
À medida que o quadro progride as lesões dos sobretudo os tornozelos e os joelhos. As manifes-
vasos que são os achados mais caraterísticos (exan- tações gastrointestinais estão presentes em 60%
tema purpúrico ou outro), ou lesão de órgãos es- dos casos, com dor periumbilical, podendo ocorrer
pecíficos (glomerulonefrite, por exemplo), ou a nalguns casos melenas e invaginação intestinal.
deteção de certos anticorpos como os anticorpos O envolvimento renal (glomerulonefrite) pode
anticitoplasma de neutrófilos (ANCA) aumenta a ocorrer em até 40% dos casos com hematúria
suspeita de um processo inflamatório vascular. microscópica isolada ou associada a proteinúria e
O diagnóstico de vasculite deve ser consi- raramente é a expressão inicial da doença. Outras
derado em crianças e adolescentes com sintomas manifestações raras podem ser neurológicas (cefa-
sistémicos persistentes e evidência de disfunção leias, convulsões, hemorragias), pulmonares (he-
multiorgão. morragia pulmonar ou pleural), orquite e uretrite.
A púrpura de Henoch-Schönlein (PHS) é O desenvolvimento de lesão renal ocorre
a vasculite mais comum em pediatria com uma habitualmente nas primeiras quatro semanas após
incidência anual estimada de 10 a 20 por 100.000, o início da PHS. Das crianças que persistem com
habitualmente autolimitada e de bom prognósti- alteração do sedimento urinário para além do
co. É uma vasculite de pequenos vasos, mediada primeiro mês de doença, cerca de 30% tem re-
por IgA, com ativação da via alternativa do com- solução completa até ao terceiro mês. O risco
plemento, que afeta mais frequentemente a pele, de doença renal crónica está relacionado com a
as articulações, o trato gastrointestinal e os rins. apresentação da clínica inicial, sendo inferior a
Cerca de 75% dos casos ocorre entre os três e 2% naqueles que manifestaram apenas hema-
os dez anos, e é duas vezes mais frequente no túria e/ou proteinúria mínima e até 10 a 20%
género masculino. Segue um padrão sazonal com nos casos em que surgiu síndrome nefrítico e
um pico no inverno e existe uma infeção prévia do nefrótico. Os fatores de risco para nefrite incluem:
trato respiratório superior em 30 a 50% dos casos. idade da criança superior a sete anos, púrpura
A púrpura não trombocitopénica (presente com duração superior a um mês e presença de
em 100% dos casos) é a primeira manifestação hemorragia intestinal.
CAPÍTULO 31. PÚRPURAS/VASCULITES 147
O diagnóstico de PHS é clínico, não existindo A doença de Kawasaki (DK) é uma doença
nenhum teste laboratorial específico. Na apresen- inflamatória autolimitada associada a vasculite que
tação típica não é necessário efetuar qualquer afeta predominantemente as artérias de médio
biópsia. A biópsia renal pode ter utilidade prog- calibre, particularmente as artérias coronárias. Não
nóstica, estando indicada apenas nos casos que se se descreve aqui este tema por ser abordado nas
acompanham de síndrome nefrótico ou nefrítico lições 17 – exantemas e 41 – doenças cardíacas
com deterioração rápida da função glomerular. mais comuns.
A biópsia cutânea revela uma vasculite leucoci-
toclástica com deposição de IgA nas paredes dos 31.2.5 Púrpura por outras causas
vasos sanguíneos. Além das vasculites, outras causas adquiridas
O curso da doença geralmente é autolimi- de púrpura vasculogénica incluem as infeções
tado a duas a quatro semanas, mas um terço (por lesão direta dos vasos sanguíneos como na
dos casos pode apresentar duas ou três recidivas meningococcémia e riquetesioses) e causas mecâ-
consecutivas, e em 10% estima-se que surjam nicas (por aumento da pressão venosa de retorno,
recidivas tardias. O tratamento habitualmente é como ocorre nas petéquias de esforço na face,
sintomático. Os corticosteroides são utilizados na após um acesso intenso de tosse ou vómito).
nefrite grave, mas o seu uso inicial não a previne. Entre as causas congénitas inclui-se por
Nos lactentes e crianças até aos dois anos exemplo a fragilidade vascular, por alterações no
com bom estado geral e lesões purpúricas de colagénio, no síndrome de Ehlers-Danlos (hipere-
aparecimento súbito, associados a edema das lasticidade cutânea, hipermobilidade articular e
extremidades envolvendo particularmente o dorso fragilidade cutânea e dos vasos) e a telangiectasia
das mãos e pés, deve considerar-se o diagnóstico hemorrágica hereditária.
de edema agudo hemorrágico da infância
(síndrome de Finkelstein). Trata-se de uma vascu- 31.2.6 Avaliação da criança com púrpura
lite leucocitoclástica autolimitada dos pequenos Na avaliação de um doente com púrpura é ne-
vasos da derme, geralmente pós-infeciosa, sem cessário realizar uma história clínica completa e um
envolvimento visceral e raramente com depósi- exame físico sistematizado e cuidadoso. Na história
tos de IgA. A distribuição das lesões purpúricas clínica deve inquirir-se sobre petéquias ou equimoses
extensas, com palidez central, afeta a face e as fáceis, e outras manifestações hemorrágicas como
extremidades. A duração é autolimitada a uma a gengivorragias, epistaxis, melenas e hematúria.
três semanas e o tratamento é sintomático. A presença de febre sugere em primeiro lugar uma
Nos casos “atípicos” de PHS deve-se suspeitar etiologia infeciosa (a excluir infeção bacteriana), mas
de outras formas de vasculites, cuja terapêutica se for prolongada e associada a emagrecimento,
e prognóstico são totalmente diferentes, como a palidez e adenopatias considerar sempre a hipóte-
poliarterite nodosa e as vasculites ANCA positivo se de doença neoplásica. Avaliar outros sintomas
em que o exantema pode evocar a PHS. Pela sua ra- acompanhantes como exantemas, dor abdominal,
ridade na criança não serão abordadas neste texto. diarreia e artralgias. É importante averiguar infeções
148 PAULA ESTANQUEIRO
32
Andrea Dias
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_32
CAPÍTULO 32. BACTERIÉMIA E SÉPSIS 151
prendem-se com os limites relativos à quantifica- era identificada a Neisseria meningitidis (NM).
ção dos sinais vitais, sendo a hipotensão um sinal A vacinação dos lactentes com vacinas conjugadas
tardio em pediatria, dada a capacidade da criança contra Hib e SP veio alterar de forma dramática
manter o débito cardíaco, através do aumento da a prevalência de doença invasiva por estes mi-
frequência cardíaca, durante períodos de tempo crorganismos, reduzindo para menos de 1% a
prolongados. incidência de bacteriémia oculta em crianças com
Segundo este consenso define-se SIRS pela bom estado geral que se apresentam com febre.
presença de pelo menos dois dos quatro indica-
dores (sendo necessário alteração da temperatura O objectivo da avaliação de uma criança com
ou da contagem de leucócitos): a) temperatura bom estado geral, sem aparente foco de infeção,
central > 38.5ºC ou <36ºC; b) leucocitose ou leu- é identificar uma infeção bacteriana e/ou risco
copenia, ou mais de 10% de leucócitos imaturos; de infeção oculta grave que exija investigação
c) taquicardia (frequência cardíaca superior a dois adicional e terapêutica antibiótica urgente. Deve
desvios padrão do valor médio para a idade, na fazer parte da avaliação por rotina destas crianças
ausência de estímulo ou drogas), ou aumento a realização de uma história clínica completa, in-
inesperado da frequência cardiaca em mais de 30 vestigando a duração da febre e periodicidade, al-
minutos a quatro horas; ou se em lactentes com teração do estado geral ou da atividade, sinais ou
menos de um ano a presença de bradicardia não sintomas acompanhantes como tosse, dificuldade
explicada de outra forma; d) frequência respiratória respiratória, vómitos, dor abdominal ou sintomas
superior a dois desvios padrão do valor médio para urinários. Devemos também questionar acerca
a idade ou necessidade de ventilação mecânica dos antecedentes patológicos, nomeadamente
em situação aguda, não relacionada com doença perceber se existe algum fator predisponente
neuromuscular ou anestesia. para infeção grave (asplenia, imonodeficiência,
Define-se sépsis quando estamos peran- doença crónica); bem como o estado vacinal.
te um quadro de SIRS associado a uma infeção As crianças com menos de seis meses de idade,
suspeita ou confirmada. pelo seu estado imunitário e por terem ainda
vacinação incompleta, terão um risco acrescido
32.2.2 Avaliação de bacteriémia oculta.
O exame físico deve também ser rigoroso.
Nalguns países, antes da imunização por Uma criança com febre poderá apresentar um re-
rotina contra os gérmens Haemophillus influen- lativo bom estado geral ou, pelo contrário, ter um
zae tipo b (Hib) e o Streptococcus pneumoniae “ar doente”, revelando-se prostrada, hipotónica,
(SP), a frequência de bacteriémia oculta era de com sinais de má perfusão periférica (extremida-
5% nas crianças febris dos três aos 36 meses de des frias, tempo de reperfusão capilar superior a
idade com relativo bom estado geral, sendo os dois segundos, marmoreado cutâneo), pálida e/
principais germens isolados o SP em 80%, o Hib ou cianosada. Neste caso, até prova em contrário,
em 20% e numa pequena percentagem de casos a criança tem uma infeção bacteriana e como tal
CAPÍTULO 32. BACTERIÉMIA E SÉPSIS 153
deve ser internada e fazer uma avaliação detalha- de leucóticos tem sensibilidade e especificidade
da: frequência cardíaca, frequência respiratória, reduzidas como indicador de infeção bacteriana
saturação periférica de oxigénio (SpO2), sinais de grave, sobretudo quando outros germens, como o
dificuldade respiratória (SDR), auscultação pulmo- Staphylococcus aureus, se tornam mais frequentes.
nar e cardíaca, avaliação abdominal e musculo- Estudos na era após introdução da vacina anti-
-esquelética, pesquisa de sinais meníngeos e de -pneumocócica sete valente revelaram que uma
alterações cutâneas. Seguidamente devem ser rea- contagem de leucócitos >15.000/μl tem um valor
lizados os exames complementares de diagnóstico preditivo positivo de apenas 1.5 a 3.2% para a pre-
(ECD) adequados, sempre orientados pelos achados sença de bacteriémia oculta. De forma semelhante
do exame objectivo, e iniciar terapêutica empírica um estudo australiano publicado em 2014, revelou
apropriada, caso esteja indicada. Fazem normal- que em crianças abaixo dos cinco anos de idade
mente parte dos ECD: hemograma com leucogra- um limiar de contagem de leucócitos de 15.000/
ma, biomarcadores de fase aguda de inflamação μl falhava na identificação de quase metade de
como a proteína C reactiva (pCr) e a procalcitoni- infeções bacterianas graves (sensibilidade 47% e
na (PCT), hemocultura, sumária de urina tipo II e especificidade de 76%), corroborando a opinião
urocultura (colheita por método assético) e análise de vários autores que consideram a contagem de
citoquímica e cultura de líquido cefalorraquídeo leucócitos insuficiente como método isolado para
(LCR), se suspeita de meningite. A realização de deteção de doença infeciosa grave. No entanto,
radiografia de tórax será decidida caso a caso, valores de leucócitos >20.000/μl apresentam uma
perante a suspeita de infeção respiratória baixa. sensibilidade superior a 90%, tornando muito pro-
A extrema importância de detetar uma infeção vável a presença de uma infeção bacteriana grave.
grave e potencialmente ameaçadora da vida não Os níveis séricos de pCr e de PCT elevam-
deve ser dissociada dos potenciais efeitos adver- -se na presença de infeção bacteriana. Apesar
sos da realização de ECD excessivos e invasivos e da elevação da PCT parecer ser mais precoce,
da instituição de terapêuticas desnecessárias, que os valores de sensibilidade e especificidade para
levam ao aumento da resistência aos antibióticos. deteção de infeção grave continuam a revelar-se
O julgamento clínico deve sempre guiar a nossa muito variáveis. Uma meta-análise de cinco estu-
decisão na avaliação destas crianças. dos incluindo 1.379 crianças com febre até aos
Não existe um teste de diagnóstico ideal, nem 36 meses concluiu que valores de pCr <20mg/l
uma conjugação deles que permita com 100% de e PCT<0.5ng/ml apresentavam uma sensibilidade
certeza identificar as crianças com febre que apre- >80% e especificidade de 70% para baixo risco
sentam bacteriémia oculta e que portanto estão em de infeção bateriana grave.
risco de desenvolver um quadro sético. Vários estu- Um estudo levado a cabo com 72 crianças
dos identificaram um risco acrescido de bacteriémia com febre entre um e os 36 meses revelou que a
oculta por SP entre as crianças não imunizadas com acuidade diagnóstica da contagem leucocitária, da
leucocitose ≥15.000/ul e contagem de neutrófilos pCr e da PCT são semelhantes à realização de um
≥10.000/ul. No entanto, isoladamente, a contagem score clínico na avaliação da criança com febre.
154 ANDREA DIAS
sobreviventes apresentem sequelas a longo prazo, causas bacterianas de purpura fulminans como
nomeadamente perturbações do neurodesenvol- o SP, Staphyilococcus aureus e outros gérmens
vimento, surdez e necessidade de amputações gram negativos. Na presença de choque deve
dos membros, por lesão vascular. ser feita uma reanimação agressiva, com fluidos
Os mecanismos responsáveis pela passagem endovenosos, e proceder como na abordagem
de colonização a doença invasiva não são to- de uma criança gravemente doente.
talmente conhecidos, no entanto pensa-se que Embora seja fundamental isolar o microrga-
resulte de uma combinação entre a virulência do nismo para uma diagnóstico preciso e definitivo
microrganismo, fatores ambientais e suscetibilida- e instituição das medidas de saúde pública, as
de do indivíduo, nomeadamente asplenia e défice colheitas não devem atrasar o início da terapêutica
dos fatores terminais da cascata do complemento. antibiótica. A nível laboratorial ocorre normalmente
A clínica de apresentação pode progredir de uma elevação dos parâmetros de inflamação de
forma fulminante levando a falência multiorgânica fase aguda, no entanto não devemos esquecer
e morte em poucas horas. Daí ser fundamental que uma contagem leucocitária normal/baixa pode
um elevado índice de suspeição para iniciar o estar presente e ser um factor de mau prognóstico.
tratamento em tempo oportuno. Geralmente, as Caso não seja possível a realização de culturas
primeiras quatro a seis horas de doença podem prévia à administração de antibiótico, podemos
mimetizar sintomas de envolvimento do aparelho recorrer posteriormente às técnicas de biologia
respiratório superior como constipação, faringite, molecular de reação em cadeia da polimerase
associando-se febre, anorexia, náuseas, vómitos (PCR), com elevada sensibilidade e especificidade.
e irritabilidade abaixo dos cinco anos e cefaleias A punção lombar só deve ser realizada, na
nas crianças mais velhas. Desenvolve-se geral- fase inicial, caso a criança não apresente sinais ou
mente nas primeiras horas de febre um exantema sintomas que a contra-indiquem, nomeadamente
maculopapular disperso e muitas crianças refe- purpura, discrasia sanguínea, choque, insuficiência
rem uma dor inespecífica na perna “leg pain”. respiratória, hipertensão intracraniana, ou sinais
Nas situações de meningite pode estar presente neurológicos focais. Devem completar-se sete dias
exantema num quarto dos casos. O exantema de tratamento antibiótico.
clássico, purpúrico, está presente em 40 a 80% A replicação da NM na corrente sanguínea
dos casos de sépsis meningocócica. Mesmo que leva a uma grande libertação de endotoxinas, com
aparentemente possa parecer uma doença vírica, ativação do sistema imunitário e lesão do endo-
estas crianças devem ser mantidas sob vigilância, télio microvascular, que origina vasoconstrição/
uma vez que os sinais de sépsis, choque sético ou dilatação, coagulação intravascular disseminada
meningite se podem desenvolver rapidamente. e depressão miocárdica. São preditores de mau
Perante suspeita, devem obter-se culturas prognóstico: temperatura central baixa, choque
e ser iniciado antibiótico, geralmente ceftria- na apresentação, contagem leucocitária <5.000/
xone ou cefotaxime, em dose meníngea, uma μl, trombocitopenia <100. 000/μl e purpura ful-
vez que não se podem excluir ab initio outras minans.
156 ANDREA DIAS
Dias depois do início da doença (4 a 12), O diagnóstico inicial de sépsis é sempre clí-
uma inflamação dos tecidos secundária à depo- nico, dada a sua potencial gravidade e necessi-
sição de complexos antigénio-anticorpo pode dade de iniciar terapêutica atempada. Os sinais e
complicar 6 a 15% dos casos de doença me- sintomas são inespecíficos e muitas vezes o início
ningocócica. Estas reações de hipersensibilidade é insidioso, tornando-se imperativo um elevado
tipo III manifestam-se como artrite, vasculite, irite, índice de suspeição. Os sinais e sintomas mais
epiesclerite, pleurite e pericardite, ressurgindo frequentes são: irregularidades da temperatura
concomitantemente febre e elevação dos bio- corporal, alteração do estado geral e da perfusão
marcadores de inflamação. cutânea, dificuldades alimentares, instabilidade
cardiorespiratória, convulsões e desequilíbrio gli-
32.2.4 Bacterémia e sépsis cémico. Por vezes, é possível identificar um foco
no recém-nascido (RN) para a infeção, nomeadamente celulite, abcesso,
onfalite, meningite ou osteomielite.
No RN, a sépsis é causa de elevada taxa A sépsis neonatal pode dividir-se em dois
de morte e incapacidade, mesmo em cerca de síndromes distintos relativamente à idade de apre-
39% daqueles que são atempadamente tratados sentação: precoce e tardia. A de início precoce
com antibiótico, não se verificando redução ocorre nos primeiros cinco a sete dias de vida e
da mortalidade nas últimas décadas, apesar é normalmente uma doença sistémica fulminan-
do uso de antibióticos de largo espectro e da te, que evolui rapidamente para choque sético e
melhoria dos cuidados de saúde. A frequência morte. A transmissão do gérmen é feita intraparto
varia inversamente com a idade gestacional, através do trato genital da mãe. A sépsis de início
podendo atingir 60% dos RN prematuros. Os tardio ocorre a partir do quinto dia de vida. Tem
consensos para definição de sépsis pediátrica geralmente um início mais insidioso e não se rela-
estabelecidos em 2005 excluem os RN pré-ter- ciona com complicações obstétricas. Normalmente,
mo, não existindo definições clinicas claras para associada à sépsis, ocorre meningite. As bactérias
esta faixa etária. As definições usadas para os responsáveis são as adquiridas do tracto genital
adultos e para as crianças não podem ser ex- materno assim como germens adquiridos através
trapoladas para o RN. No adulto e mesmo na do contacto humano e com material contaminado,
criança mais velha é dada muita relevância à sendo a transmissão feita de forma horizontal.
presença de hemoculturas positivas. No entanto, Os principais fatores de risco apontados para a
isto só será válido quando são colhidas várias ocorrência de sépsis neonatal são: prematuridade
amostras e com volume sanguíneo adequado, o e baixo peso ao nascimento, rotura prolongada de
que se torna difícil no RN. Por outro lado, nesta membranas, febre intraparto ou infeção materna.
faixa etária o número de colónias bacterianas Dada a inespecificidade dos sinais e sinto-
é muitas vezes baixo e verifica-se uma maior mas é importante fazer o diagnóstico diferen-
suscetibilidade à infeção pela imaturidade do cial com outras patologias do RN: taquipneia
sistema imunitário. transitória, aspiração meconial, pneumonia,
CAPÍTULO 32. BACTERIÉMIA E SÉPSIS 157
Leitura complementar
Sepsis. In: Gomella TL, Cunningham MD, Eyal FG. Neonatology,
management, procedures, on-call problems, diseases and
drugs. USA, 7th edition, Mc Graw Hill Education 2013.
Doern GV. Blood cultures for the detection of bacteremia.
UpToDate 2014.
Allen CH. Fever without a source in children 3 to 36 month
of age. UpToDate 2014.
Neviere R. Pathophysiology os sepsis. UpToDate 2014.
Pomerantz WJ, Weiss SL. Systemic inflammatory response
syndrome (SIRS) and sepsis in children: definitions, epide-
miology, clinical manifestations and diagnosis. UpToDate
2014.
Feverish ilness in children under 5 years. NICE guidelines 2014.
Goldstein B, Giroir B, Randolph A, et al. International pedia-
tric sepsis consensus conference: definitions for sepsis
and organ dysfunction in pediatrics. Pediatr Crit Care
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Capítulo 33.
Meningite e meningoencefalite
33
Ana Brett
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_33
CAPÍTULO 33. MENINGITE E MENINGOENCEFALITE 163
Streptococcus grupo B, Escherichia coli) adquiridos a mais baixa de sempre. Tal pode-se justificar em
por transmissão vertical, e no período neonatal parte pela quase ausência de casos de doença pelo
tardio, em que já pode ocorrer transmissão no- grupo C desde a introdução da vacina no PNV. Foi
socomial ou da comunidade. No entanto, até aos recentemente comercializada uma vacina contra o
três meses poderá ocorrer infeção por agentes grupo B, desenvolvida por vacinologia reversa, sendo
adquiridos da flora genital materna. A Listeria a cobertura pela vacina contra o meningococo B
monocytogenes, causa muito rara de meningite estimada em 78% para as estirpes circulantes na
grave, deve ser sempre incluída no diagnóstico Europa. Existem ainda vacinas polissacarídeas ou
diferencial de meningite abaixo dos três meses e conjugadas contra os restantes grupos.
particularmente no período neonatal. Com a introdução da vacina contra o Hib,
Após os três meses de vida, os principais este cocobacilo gram negativo tornou-se numa
agentes bacterianos são o Streptococcus pneu- etiologia rara de meningite, não tendo sido subs-
moniae (SP) e a Neisseria meningitidis (NM). tituído por outros serotipos capsulares.
O Streptococcus pneumoniae é um diplo- Estas três bactérias (NM, SP e Hib) possuem
coco gram positivo com mais de 90 serotipos uma cápsula polissacárida e capacidade de colo-
conhecidos, dos quais cerca de 12 a 15 causam nizar a nasofaringe, sem provocar reação local ou
a maioria dos casos de patologia na criança, pro- sistémica. O Streptococcus pneumoniae coloniza
vocando doença principalmente abaixo dos dois cerca de 50% das crianças abaixo dos dois anos
anos de vida. A vacina anti-pneumocócica agora e 8% dos adultos. Já a Neisseria meningitidis é
incluída no PNV protege contra 13 dos serotipos comensal em 8 a 20% das pessoas saudáveis,
que habitualmente provocam doença invasiva. em particular adolescentes e adultos jovens.
Observou-se uma importante redução no número A transmissão destes agentes é por gotículas
de casos por serotipos vacinais, embora tenham ou secreções das vias respiratórias, sendo os
ocorrido um pequeno número por serotipos não portadores a principal fonte de transmissão da
vacinais (substituição). bactéria.
A Neisseria meningitidis é um diplococo gram
negativo cujo único reservatório é o homem. A qua- Existem vários fatores que aumentam o risco
se totalidade dos casos de doença são provocados de meningite: imunodeficiência, contacto com
pelas estirpes capsuladas dos grupos A, B, C, W doente com meningite por NM ou Hib, infeção
e Y. Na Europa predominam os serogrupos B e recente (vias respiratórias superiores), viagem à
C. É no grupo de crianças abaixo dos cinco anos África sub-sahariana onde a infeção por NM é
que há maior incidência de doença invasiva me- muito frequente, traumatismo craniano pene-
ningocócica, particularmente no primeiro ano de trante – fratura da base, otorraquia, rinorraquia,
vida. Atualmente o grupo B é o mais frequente em presença de implantes cocleares ou de quisto
Portugal, representando mais de 70% dos casos dermóide e derivação ventriculoperitoneal.
nos últimos 12 anos. A taxa de incidência global de Perante situações especiais, como imunode-
doença em 2014 foi de 0,527/100 000 habitantes, ficiência por défice de complemento ou défice na
CAPÍTULO 33. MENINGITE E MENINGOENCEFALITE 165
imunidade humoral, alterações anatómicas como consoante se tratem de lactentes ou outras idades
quisto dermóide ou mielomeningocelo, poderão (quadro 2). Estes sinais são muitas vezes precedi-
estar implicados na meningite outros agentes dos de sintomas de infeção respiratória superior.
etiológicos (i.e. Neisseria meningitidis nos défices
de complemento; Staphylococcus epidermidis e
Lactentes Crianças
Staphylococcus aureus nos quistos dermóides).
Instabilidade térmica Febre
(febre ou hipotermia) Cefaleias
Fisiopatologia
Letargia Fotofobia
A meningite bacteriana é transmitida princi- Dificuldade Náuseas
palmente por via hematógena mas, em algumas respiratória, apneia Vómitos
situações, pode ocorrer por contiguidade (pato- Icterícia Anorexia
logia otorrinolaringológica como otite, mastoidite Recusa alimentar Confusão
ou sinusite; celulite orbitária,...), ou por solução Vómitos, diarreia Letargia
Convulsões Irritabilidade
de continuidade como por exemplo na fratura
Irritabilidade Sinais meníngeos
da base do crânio.
Fontanela anterior
As bactérias que colonizam a mucosa do
abaulada (hipertensa)
hospedeiro, invadem e, com os fatores de virulên-
cia que possuem, conseguem sobreviver na cor-
Adaptado de Recomendações da Sociedade de Infecciologia
rente sanguínea, atravessando a barreira hemato- Pediátrica e da Sociedade de Cuidados Intensivos Pediátricos
-encefálica e multiplicando-se a nível do líquido da SPP - Meningites agudas bacterianas
Os sinais meníngeos são difíceis de observar em pediátrica, principalmente em lactentes e até aos dez
recém-nascidos e lactentes. Como tal é importante anos de idade. O pico anual de incidência é desde
valorizar outros sintomas, descritos no quadro 2. o final da Primavera ao início do Outono, embora
Nos casos mais avançados podem estar pre- ocorram casos esporádicos ao longo do ano.
sentes sinais de hipertensão craniana, que incluem: A causa mais comum de meningite viral
parésia do III, IV e VI pares cranianos, cefaleias, são os enterovírus (poliovírus, echovírus e os
fontanela anterior abaulada, alteração do estado coxsackievírus), sendo responsáveis por 85 a 95%
de consciência e edema papilar (sinal raro, implica dos casos. Outros vírus que podem ser causa de
excluir outros diagnósticos como abcesso, trom- meningite viral são os parechovírus, herpesvírus,
bose do seio venoso ou empiema subdural). Em arbovírus e vírus influenza, entre outros.
algumas situações o doente pode apresentar sinais
neurológicos focais como hemiparésia, paralisia Fisiopatologia
facial e alterações visuais. Cerca de um quarto Relativamente ao principal agente de menin-
dos doentes pode ter convulsões nas primeiras 48 gite viral, o enterovírus, a forma de transmissão
horas, tipicamente tónico-clónicas generalizadas. é fecal-oral, embora também possa ocorrer por
Os doentes podem apresentar um exan- gotículas respiratórias. Há uma infeção inicial das
tema purpúrico, mais frequente nas infeções superfícies mucosas do trato respiratório e gas-
por NM. As lesões são mais frequentes nas trointestinal, seguido de replicação viral nos gân-
extremidades, podem ser precedidas de glios linfáticos regionais. Posteriormente ocorre a
exantema macular, e habitualmente evoluem virémia primária, com disseminação do vírus pelos
em horas no início do quadro febril. diferentes órgãos, como fígado, baço e coração,
onde há replicação e início dos sinais e sintomas
de infeção. É durante a virémia secundária que
33.2.2 Meningite vírica há passagem transendotelial do vírus a nível dos
vasos dos plexos coróides, meninges e cérebro,
A meningite vírica é definida como uma com consequente meningite.
infeção do SNC associada a sinais de irritação A fisiopatologia dos restantes vírus pode ser
meníngea, mas sem disfunção neurológica (em um pouco diferente, particularmente no grupo
contraste com as encefalites) ou evidência de dos herpesvirus (citomegalovírus - CMV e Epstein
bactérias no LCR, numa criança que não realizou Barr vírus- EBV), em que a disseminação pode ser
antibioticoterapia. É mais comum que a meningi- por via hematógena, por extensão direta após
te bacteriana e traduz habitualmente um quadro infeção da mucosa nasofaríngea ou através de
de menor gravidade, geralmente autolimitado. vias neuronais.
quatro semanas precedentes, viagens recentes, disfunção cognitiva e convulsões, que podem
piqueniques ou outras atividades recreativas, con- ser focais. As manifestações clínicas diferem de
tacto com animais e insetos (carraças, mosquitos, acordo com a área afetada do SNC, com o agente
entre outros) e contacto com pessoas doentes. etiológico e fatores intrínsecos do hospedeiro.
Pela sazonalidade de algumas infeções, é impor- A criança pode apresentar pródromos como
tante contextualizar a estação do ano em que a exantema, lesões vesiculares, escara ou infeção
meningoencefalite é diagnosticada. respiratória, entre outros, que podem fornecer
pistas relativamente ao agente etiológico.
Fisiopatologia Podem surgir complicações decorrentes da
A encefalite aguda primária ocorre por meca- encefalite, como status convulsivo, edema cere-
nismo direto, com replicação do agente infecioso bral, síndrome de secreção inapropriada da hor-
no SNC, sendo atingida principalmente a substân- mona anti-diurética (SIADH), falência cardiorres-
cia cinzenta. A invasão direta pode ocorrer como piratória e coagulação intravascular disseminada.
complicação de uma meningite vírica, secundária
a virémia ou por via retrógrada através dos nervos 33.2.4 Diagnóstico diferencial
periféricos (HSV, vírus da raiva).
Também pode tratar-se de uma encefalite Perante uma criança com sintomas de infe-
pós-infeciosa. Esta ocorre duas a quatro semanas ção do SNC, as prováveis etiologias de meningite
após outra doença infeciosa ou vacinação, por ou meningoencefalite (bacteriana, vírica, outras)
uma resposta imunológica que atinge predomi- devem ser avaliadas. Nem sempre é evidente,
nantemente a substância branca, com alterações numa fase inicial, qual o agente mais provável.
da mielina. Não se identifica o agente no SNC. No caso da presença de sinais neurológicos
Considera-se que a encefalite pós-infeciosa cor- focais é importante considerar outros diagnósticos
responde a cerca de um terço dos casos de en- como abcesso cerebral, tumor cerebral ou hemor-
cefalite aguda. ragia subaracnoideia. Principalmente nos doentes
com disfunção neurológica, deve-se colocar o diag-
Manifestações clínicas nóstico diferencial com doenças desmielinizantes
Para além dos sintomas já descritos que do SNC, encefalite autoimune, encefalopatias me-
também se manifestam num quadro de menin- tabólicas e intoxicações, entre outras.
gite (quadro 2), nomeadamente febre, cefaleias,
náuseas e vómitos, estão também presentes 33.2.5 Diagnóstico
sinais de disfunção neurológica, com alte-
ração do estado de consciência, alterações A abordagem inicial de uma criança com
de comportamento e/ou da personalidade, infeção do SNC implica estabilizar o doente, obter
sinais neurológicos focais (afasia, hemiparé- um a dois bons acessos venosos e monitorizar.
sia, hemianópsia, entre outros), alterações Só devem ser realizados exames complementares
na sucção e deglutição, manifestações de de diagnóstico posteriormente.
CAPÍTULO 33. MENINGITE E MENINGOENCEFALITE 169
As análises sanguíneas podem incluir, de acor- intracraniana, presença de défices neurológicos fo-
do com a clínica: hemograma, provas de coagula- cais ou infeção cutânea no local da punção. Nestas
ção, glicémia, ionograma, ureia e creatinina, fun- situações deve ser realizada tomografia computo-
ção renal e hepática, gasometria, lactato, proteína rizada crânio-encefálica para excluir complicações,
C-reativa/procalcitonina e hemocultura (positiva mas este procedimento não deve atrasar o início
em mais de metade dos casos, de acordo com os do tratamento empírico com antimicrobianos, que
microorganismos: 80% de Hib e 50% de SP e NM). deve ser o mais cedo possível.
No caso de suspeita de meningoencefalite, poderá A PL pode ser realizada com o doente dei-
ter interesse, em casos particulares, a realização tado ou sentado, devendo o local da punção
de serologias para CMV, EBV, Mycoplasma pneu- ser a nível da crista ilíaca, entre os espaços in-
moniae, Borrelia burgdorferi ou outros agentes, tervertebrais lombares (L): L3-L4 ou L4-L5. As
bem como o estudo molecular do genoma do características típicas do LCR consoante os tipos
microorganismo por polymerase chain reaction de meningite estão representadas no quadro 4.
(PCR) para vírus nas secreções nasofaríngeas. Na suspeita de meningite bacteriana é fun-
A punção lombar (PL) é o exame de diag- damental a realização do exame direto do LCR
nóstico nas infeções do SNC. No entanto, está com coloração gram, mas se este for negativo
contraindicada em situações de instabilidade he- não exclui o diagnóstico. A esterilização do LCR
modinâmica, alterações da coagulação, alteração ocorre cerca de uma hora após tratamento com
do estado de consciência, sinais de hipertensão antibiótico adequado no caso da NM e quatro a
RN – recém-nascido
dez horas no caso do SP. É também útil o estudo enterovírus e, de acordo com a clínica e epide-
molecular por PCR no LCR para pesquisa de NM e miologia, para outros microrganismos. No caso
SP. Atualmente considera-se a determinação dos da PCR para HSV, esta pode ser negativa nos
antigénios capsulares como um exame com sensi- primeiros dias de doença, pelo que poderá
bilidade diagnóstica baixa para os microoganismos ser necessário repetir a PL se a suspeita clí-
mais comuns. Na suspeita de meningite vírica, nica se mantiver.
pode também ser solicitado o estudo molecular Nos doentes com meningoencefalite é
por PCR para enterovírus. recomendada a realização de outros exames.
Embora o quadro 3 seja orientador na in- O eletroencefalograma (EEG) é um marcador pre-
terpretação da análise do LCR, é necessário ter coce e sensível de disfunção cerebral, embora
em atenção que na meningite vírica pode ocorrer pouco específico. Em 87 a 96% dos casos existe
inicialmente predomínio de polimorfonucleares, lentificação focal ou difusa. No caso particular da
surgindo horas depois a preponderância típica de encefalite herpética, cerca de 75% dos doentes
linfócitos (daí o nome meningite vírica ou linfocitá- apresenta alterações típicas no EEG, com anoma-
ria). Já na meningite bacteriana, numa fase muito lias lentas temporais e atividade periódica. A gravi-
precoce, um valor normal de células não exclui dade das alterações no EEG pode correlacionar-se
esta etiologia e pode até haver predomínio de com a deterioração do estado de consciência e
linfócitos na fase inicial (embora raro), sobretudo as alterações observadas desaparecem mais len-
nos casos em que os doentes já tenham inicia- tamente que a sintomatologia. Idealmente deve
do tratamento antibiótico. A pleocitose também ainda ser realizado exame de neuroimagem, sen-
pode não ser significativa, e algumas meningites do a ressonância magnética crânio-encefálica o
bacterianas podem ter glicorráquia normal, numa exame mais sensível e específico.
fase inicial, nunca se devendo esquecer a análise
da relação do valor da glicorráquia com o da 33.2.6 Tratamento
glicémia doseada em simultâneo. De referir
que, em alguns casos, o tempo para normalização Nas infeções do SNC, é fundamental a esta-
das alterações no LCR pode ser longo. bilização hemodinâmica, a correção dos distúrbios
Relativamente às meningoencefalites, as hidroelectrolíticos, da hipoglicémia e da coagulo-
alterações no LCR são semelhantes às encontra- patia se existirem. O tratamento de suporte inclui
das na meningite vírica, com glicorráquia nor- repouso, controlo da febre e da dor e elevação da
mal, proteínas normais ou ligeiramente elevadas cabeceira a 30º. É necessário monitorizar os sinais
e tipicamente a contagem de 50 a 200 células/ de edema cerebral e hipertensão intracraniana,
mm3, embora possa ultrapassar as 1000. A pre- bem como de convulsões, e tratar estes eventos
sença de eritrócitos no LCR pode ser sugestiva graves imediatamente.
de infeção por HSV. Devem ser sempre realizados O tratamento antimicrobiano deve ser sem-
gram e cultura, mas é importante a execução de pre iniciado o mais precocemente possível. Tendo
estudo molecular por PCR no LCR para HSV e em conta as suas especificidades, irá ser abordado
CAPÍTULO 33. MENINGITE E MENINGOENCEFALITE 171
lactente com idade inferior a três meses deve-se 33.2.7 Complicações e prognóstico
manter antibioticoterapia por um período entre
os 14 e os 21 dias. Depois desta faixa etária o Atualmente, nos países desenvolvidos, a
tratamento deve manter-se entre os sete e os mortalidade causada por um quadro de meningite
dez dias. bacteriana devidamente tratada é aproximada-
mente de 5% (mais elevada no período neonatal
A administração de corticoides na meningite e na meningite pneumocócica). Em cerca de 15 a
bacteriana é controversa. A dexametasona modula 25% dos casos ocorrem sequelas, nomeadamente
a resposta inflamatória mediada por citoquinas, alterações de comportamento e cognitivas, défices
havendo benefício demonstrado na sua adminis- neurológicos (epilepsia, défices motores, parali-
tração nos casos em que se suspeita de meningite sia cerebral), diminuição da acuidade auditiva ou
por Hib (reduz número de casos de surdez), mas défices visuais.
o mesmo não se verifica na infeção por SP. No Os fatores de mau prognóstico na me-
entanto, os efeitos adversos atribuídos à corticote- ningite bacteriana são: doença em recém-nas-
rapia como dissimular a clínica, exacerbar a febre cidos e lactentes com idade inferior a seis meses,
após a sua suspensão e diferir a esterilização do défice imunitário, presença de sinais neurológicos
LCR (principalmente na meningite pneumocócica), focais e/ou coma (escala de Glasgow inferior a
têm colocado dúvidas quanto ao seu benefício. 13) na apresentação clínica, tipo e virulência do
microrganismo (mais virulentos: gram negativos,
Meningoencefalite SP e microrganismos multirresistentes aos antimi-
Perante uma suspeita de encefalite/menin- crobianos), glicorráquia <20 mg/dL na admissão,
goencefalite, é fundamental iniciar terapêutica atraso no diagnóstico e no início do tratamento,
com aciclovir o mais rapidamente possível, pois a atraso na esterilização do LCR e aparecimento
infeção por HSV pode ser devastadora. Contudo, de convulsões tardias (>72 horas após início da
até ser possível excluir uma meningite bacteriana, antibioticoterapia).
está recomendada a associação com cefriaxone. O prognóstico de encefalite depende da
De acordo com a clínica e epidemiologia, idade do doente, das alterações neurológicas na
poderá ser necessário associar terapêuticas especí- admissão e do agente causal. São fatores de mau
ficas para determinados agentes. Por exemplo, na prognóstico: infeção em recém-nascido ou pe-
suspeita de infeção por Mycoplasma pneumoniae queno lactente, escala de Glasgow inferior a 6,
deve-se prescrever ciprofloxacina ou levofloxacina infeção causada por HSV ou Mycoplasma pneu-
(esta última com melhor penetração no SNC), moniae, atraso no início do tratamento e ausência
embora não haja evidência que o antibiótico altere de melhoria do traçado do EEG.
o prognóstico neste quadro infecioso. A encefalite por HSV, se não for adequa-
A duração do tratamento vai depender do damente tratada, tem muito mau prognóstico,
microrganismo isolado. No caso da encefalite her- com taxas de morbilidade (atraso global do de-
pética é recomendada uma duração de 21 dias. senvolvimento psicomotor, epilepsia, entre outras
CAPÍTULO 33. MENINGITE E MENINGOENCEFALITE 173
34
António Jorge Correia
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_34
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 177
de cilindros hemáticos e os eritrócitos são na sua a hipertensão arterial, doença renal crónica ou
maioria dismórficos (acima de 80%). Associa-se proteinúria, deve ser investigada de forma rápida.
com frequência a proteinúria (> ++). Na hematúria microscópica assintomáti-
A hematúria macroscópica de causa extra- ca com proteinúria deve-se avaliar o grau da
glomerular tem coloração de sangue vivo ou rosa, proteinúria quantitativamente, proteinúria em
a sua cor pode não ser uniforme e serem visíveis mg/metro2 /hora (mg/m2 /h) ou qualitativamente
coágulos, não existindo ao exame microscópico da através da relação Proteinas urina /Creatinina urina
urina cilindros hemáticos e os eritrócitos dismór- (Prot u /Cr u). Se a proteinúria for de nível nefró-
ficos são raros ou inexistentes (abaixo de 20%). tico (> 40 mg/m2/h ou Protu/Cru> 200 mg/
mmol) orienta para origem glomerular. Se for
Factos a reter na hematúria macroscópica: de nível ligeiro ou moderado pode ter origem
• A infeção do trato urinário é a causa mais tubulointersticial ou vascular. Na hematúria mi-
comum de hematúria macroscópica. croscópica sintomática as manifestações clínicas
• Na presença de hematúria macroscópica associadas podem ser gerais (febre, mal estar,
deve-se iniciar uma investigação urgente. dor abdominal), inespecíficas (exantema, púr-
• A hematúria induzida pelo exercício físico pura, artrite, icterícia, alterações respiratórias
não está associada a doença renal. ou gastrointestinais) ou específicas do aparelho
• Se associada a alteração da função glo- urinário (sintomas micionais, enurese, edema,
merular, proteinúria ou hipertensão ar- hipertensão arterial).
terial a orientação deve ficar a cargo de
nefrologista pediátrico. Factos a reter na hematúria microscópica:
• Só cerca de 30% das crianças continua
A hematúria microscópica assintomá- a ter hematúria microscópica seis meses após
tica isolada é a forma de apresentação mais o achado inicial.
frequente, muitas vezes descoberta num exame • A criança com hematúria microscópica
de urina com tira reagente. É necessário confir- associada a insuficiência renal, protei-
mar a hematúria através de exame microscópico núria significativa ou hipertensão tem
e comprovar a sua existência em três amostras risco de ter uma causa preocupante
obtidas com intervalo de duas a quatro semanas. devendo ser referenciada ao nefrolo-
Se a avaliação inicial destas crianças não revela o gista pediátrico e investigada de forma
diagnóstico etiológico, recomenda-se um período rápida.
de seguimento de um a dois anos apenas com • A etiologia da hematúria varia em função
exame de urina, para determinar se persiste a da idade.
hematúria microscópica, antes de prosseguir es- • As causas de hematúria dividem-se ha-
tudo com exames mais invasivos. A relação cálcio/ bitualmente em dois grandes grupos:
creatinina da urina, permite avaliar se existe hiper- glomerular e não glomerular, renal e
calciúria. Se a hematúria microscópica se associa extra-renal, quadro 1.
180 ANTÓNIO JORGE CORREIA
O diagnóstico de hematúria na criança tem renal progressiva e/ou irreversível (uropatias mal-
como objetivo confirmar a sua existência, iden- formativas, tumores).
tificar a causa e reconhecer a gravidade do pro- Uma história clínica detalhada e precisa com
cesso, identificando alterações com risco de vida uma análise de urina e do sedimento urinário dão
para o doente e que requerem atuação urgente informações que permitem localizar a hematúria
(hipertensão arterial, insuficiência renal aguda) e (trato urinário alto versus baixo) e a urgência da
eliminar causas que possam originar deterioração avaliação.
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 181
colorimétrico com maior sensibilidade que as tiras doentes diabéticos, hipertensos e com redução
reativas (5 a 10 mg/dl) e que deteta todo o tipo da massa glomerular.
de proteínas. Tem falsos positivos: urina muito Existem quatro mecanismos para a excre-
concentrada, contrastes radiológicos e medica- ção excessiva de proteínas na urina: aumento
mentos (penicilinas, cefalosporinas, sulfamidas da filtração glomerular, inadequada reabsorção
e tolbutamida). Os falsos negativos são: urina tubular, por sobrecarga (overflow) e aumento da
muito diluída ou muito alcalina. Para pesquisar secreção tubular. Segundo a sua origem a protei-
proteinúria tubular ou microalbuminúria são ne- núria classifica-se em glomerular, tubular e por
cessários métodos específicos como técnicas de sobrecarga de filtração.
radioimunoanálise ou nefelometria. Designa-se a proteinúria de seletiva, se a
percentagem de albumina na urina é superior a
Proteinúria fisiológica: 85% do total da proteinúria. A proteinúria não
Considera-se fisiológica uma eliminação seletiva deve-se a lesões renais mais graves.
até 100 mg/m /dia ou <4 mg/m /hora. Quando
2 2
de filtração (rara em pediatria). A principal cau- diurese, presença de edemas, hipertensão arterial,
sa de proteinúria glomerular grave ou nefrótica infeção estreptocócica recente ou história familiar
na criança é o síndrome nefrótico de lesões de doença renal sugerem uma doença renal subja-
glomerulares mínimas. Menos frequentes são cente com proteinúria persistente. Outros sinais ou
outras causas como: glomeruloesclerose seg- sintomas como febre, púrpura, exantemas, artrite,
mentar e focal, glomerulonefrite membranosa, dor abdominal são sugestivos de uma nefropatia
mesangial, pós‑estreptocócica, nefropatia a IgA, associada a uma doença sistémica.
e nefrite em contexto de infeção por vírus da A primeira atitude perante o achado de pro-
imunodeficiência humana (VIH) ou da hepatite B. teinúria numa tira reativa é repetir a análise de
Nos lactentes considerar como causa provável os urina. Muitas vezes o episódio de proteinúria é tran-
sindromes nefróticos congénitos tipo finlandês e sitório. Confirmada a proteinúria em duas análises
a esclerose mesangial. O lúpus eritematoso sisté- de urina, se a criança está assintomática, realizar
mico, a púrpura de Henoch-Shönlein, as vasculites teste da proteinúria ortostática. Consiste em dosear
e os quadros autoinflamatórios, podem ser causa a relação proteínas/creatinina na primeira urina
de proteinúria na criança. da manhã obtida em casa em decúbito, antes de
A biópsia renal em crianças com proteinúria se levantar (tendo esvaziado a bexiga ao deitar
isolada está indicada se a proteinúria for superior na noite anterior) e repetir o exame na amostra
a 500 mg/m /dia, excluída a proteinúria ortos-
2
de urina após umas horas em posição de pé. Um
tática ou quando surge hipertensão arterial ou valor normal na amostra de urina em decúbito e
alterações da função renal. alterado após horas em ortostatismo indica pro-
São causas de proteinúria tubular primária: teinúria ortostática, que requer controlo anual.
proteinúria tubular isolada, familiar ou esporá- Se a relação proteínas/creatinina urinária
dica, associada a hipercalciúria (sindrome de persiste alterada nas duas amostras de urina
Dent), sindrome de Fanconi primário. São causas considera-se a proteinúria persistente, que
de proteinúria tubular secundária: sindrome de requer uma avaliação rigorosa com o objetivo
Fanconi secundário, doença poliquística, doença de identificar a causa. Começar com o exame
mitocondrial, intoxicação por metais pesados, do sedimento urinário procurando sinais de le-
nefrite túbulo-intersticial, uropatias obstrutivas são glomerular ou do parênquima renal como a
e necrose tubular aguda. hematúria e a piúria. Quantificar a proteinúria
Na avaliação da criança com proteinúria de 24 horas, determinar a creatinina, ureia e iões
começar por realizar uma história clínica e exame séricos como exames complementares básicos. Só
físico orientados para determinar a etiologia. A depois, em função destes resultados, do quadro
proteinúria que surge durante um episódio febril, clínico e da evolução, se prossegue a investigação:
depois de exercício físico intenso, no contexto proteínas totais, proteinograma, imunoglobulinas,
de uma convulsão, situações de stresse ou cirur- complementos, teste de infeção estreptocócica,
gia recente é sugestiva de proteinúria transitó- anticorpos anti-nucleares (ANA), serologias de
ria. Alterações na cor da urina e do volume da hepatite B, C e VIH, assim como ecografia renal.
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 185
30%). A proteinúria geralmente é inferior a 1g/L. Dado que dois sinais clinicos (hipertensão
Complicações raras como urémia (necessidade de e oligúria) vão condicionar todas as medidas
diálise <5%), insuficiência cardíaca congestiva terapêuticas, é absolutamente necessário, numa
(<5%) e encefalopatia hipertensiva (excecional) criança com suspeita glomerulonefrite aguda, sa-
estão igualmente descritas. ber se eles estão presentes ou não.
A determinação da tensão arterial só pode
Sub-clínica (~50%): ser bem efetuada numa criança se a braçadeira
Hematúria microscópica associada a redu- cobrir cerca de 2/3 do braço. De contrário, os
ção de C3. A tensão arterial pode ser normal valores encontrados são falsos; é pois necessário
ou elevada. Nos surtos epidémicos é a forma de dispor de braçadeira com medidas (5 e 12 cm)
apresentação mais frequente. adequadas às dimensões do doente.
A forma mais fiel e mais prática de saber
Síndrome nefrótico (<4%): da existência de uma diminuição importante da
Proteinúria intensa é pouco frequente em diurese é a determinação do peso da criança
idade pediátrica, sendo uma apresentação mais em dias seguidos e até duas vezes por dia.
frequente em adultos. Perante um doente com uma sintomatologia
sugestiva de glomerulonefrite aguda, a investiga-
GMN rapidamente progressiva (<2%): ção inicial deve incluir análise sumária de urina,
Azotémia progressiva e oligúria. Biópsia renal pesquisa de focos de infeção estreptocócica, estu-
com proliferação extracapilar, com crescentes na do do complemento e avaliação da função renal.
microscopia ótica. A análise de urina com sedimento urinário
indica-nos em todos os casos a presença de he-
Nas formas mais graves de glomerulone- matúria e, frequentemente, cilindrúria eritrocitária
frite aguda, a retenção de água e de eletrólitos e proteinúria. A pesquisa da proteinúria (relação
pode originar insuficiência cardíaca, hiperkalié- Prot/Creat, na primeira urina da manhã) é positiva
mia, acidose, hiperfosfatémia e hipocalcémia. em cerca de 97% dos casos. Durante a fase aguda
A retenção de água e de eletrólitos, por um da doença, a urémia está aumentada (superior a
lado, e de produtos azotados por outro, podem 6 mmol/L) em cerca de 90% dos doentes. Com
motivar hipertensão e, na ausência de trata- estes três exames, com a clínica e com a noção
mento, o estado mais temido: a encefalopatia exata da tensão arterial e das variações do peso
hipertensiva com convulsões, edema cerebral, da criança que refletem a diurese, consegue-se
coma e morte. na maioria dos casos fazer o diagnóstico e tratar
Na grande maioria dos casos a evolução dos adequadamente.
doentes é bem mais moderada, o que não justifica Dois outros exames são importantes (so-
banalizarmos os casos de glomerulonefrite aguda. bretudo no diagnóstico diferencial com o sín-
Todos necessitam de vigilância clínica regular, não drome nefrótico): 1) Doseamento da globu-
só durante a fase aguda, como depois. lina beta-1-C ou terceiro componente do
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 189
complemento (C3) que se encontrará baixo A realização de biópsia renal está reservada
durante a fase aguda da glomerulonefrite agu- para os casos cuja apresentação clínica, investiga-
da pós-estreptocócica. O resultado é normal no ção laboratorial ou evolução seja atípica.
síndrome nefrótico idiopático. No estudo do
complemento (C3, C4, CH50), o valor de C3 Tratamento:
está diminuído em mais de 90% dos casos nas O tratamento na fase aguda influencia con-
duas primeiras semanas de doença e o C4 está sideravelmente a morbilidade e mortalidade pre-
quase sempre normal (baixa inicial discreta e coce da doença. Deve incluir medidas de suporte
transitória). 2) Doseamento das proteínas séricas (tratamento da infeção estreptocócica, repouso,
e em particular da albuminémia que, na grande restrição de líquidos e sal) e outras dirigidas a
maioria dos casos de glomerulonefrite aguda potenciais complicações como a hipertensão ar-
(cerca de 93%) estará normal (acima de 35 g/L), terial com dieta sem adição de sal, diuréticos de
enquanto se verificará uma hipoalbuminémia no ansa (furosemida), bloqueadores dos canais de
síndrome nefrótico. cálcio (nifedipina).
A pesquisa de infeção estreptocócica é Na glomerulonefrite rapidamente progressi-
efetuada através do doseamento do TASO, anti- va está indicada corticoterapia (iniciar com “pul-
-DNAse B e cultura do exsudato faringeo ou da sos” de metilprednisona) e imunossupressores.
pele; a elevação dos títulos de anticorpos contra As resinas permutadoras de iões estão in-
antigénios estreptocócicos, em duas determina- dicadas na hiperkaliémia isolada. Se houver as-
ções com 2 a 3 semanas de intervalo, é mais fide- sociação de urémia progressiva e/ou congestão
digna para o diagnóstico do que um TASO isolado circulatória ou persistência de hiperkaliémia, está
≥ 250 U. Dos anticorpos anti-estreptococos: o indicada diálise.
TASO eleva-se na primeira semana (máximo 2 a A maioria dos casos de glomerulonefrite
4 semanas) e normaliza em 6 a 12 meses. Nas aguda apresenta uma evolução benigna. Nestes
infeções cutâneas eleva-se apenas o anti-DNAse casos, a atitude mais importante é avaliar cuida-
B (eleva-se de forma mais rápida). dosamente a clínica. Se a criança não apresentar
As alterações da função renal (creatinina, uma sintomatologia intensa e se, sobretudo, não
ureia), de eletrólitos (hiperkaliémia), cálcio e fós- houver hipertensão nem oligúria, após a con-
foro, gasimetria correlacionam-se diretamente firmação laboratorial do diagnóstico poderá ser
com a gravidade da lesão renal. A sobrecarga seguida ambulatoriamente. Para eliminar pos-
hidrossalina pode ser desproporcionada ao nível síveis focos de infeção estreptocócica, deverá
de insuficiência renal aguda (IRA). O hemograma, administrar-se amoxicilina (50 mg/kg/dia dividida
proteínas plasmáticas e perfil lipídico devem em três tomas) durante 10 dias ou penicilina
também fazer parte da investigação. Ecografia benzatínica G intramuscular dose única 600
renal, radiografia do torax e ecografia cardíaca 000 U antes dos cinco anos; e 1 200 000 após os
devem fazer parte da investigação das formas de cinco anos. A criança deve permanecer em casa
apresentação mais graves. durante a fase aguda, com dieta sem adição de
190 ANTÓNIO JORGE CORREIA
sal, reduzindo a atividade mas não é necessário executados dois exames: proteinúria e sedimen-
um repouso estrito. O peso deverá ser avaliado to urinário. Uma hematúria microscópica pode
semanalmente, bem como a tensão arterial, o persistir durante anos sem que isso implique um
que implica um controlo clínico. prognóstico mais reservado ou qualquer forma
de tratamento.
Quando internar na glomerulonefrite A persistência de hematúria macroscópica
aguda pós-estreptocócica: mais de três semanas, de hipertensão ou de pro-
Está indicada hospitalização sempre que a teinúria significativa para além de seis meses, deve
criança apresentar: hipertensão arterial, oligú- fazer suspeitar uma evolução menos favorável.
ria, sinais clínicos graves (edema generalizado, A criança deverá ser enviada a uma consulta de
creatinina sérica elevada, alterações eletrolíticas, nefrologia pediátrica afim de proceder ao exa-
convulsões, alterações do ritmo cardíaco) ou qual- me mais detalhado da função renal e eventual
quer outro sinal que indique tratar-se de uma biópsia renal.
forma não benigna. A mortalidade na fase aguda Segundos episódios de GNAPE são raros.
é excecional e o prognóstico é favorável para a Isto pode dever-se à persistência de anticorpos
maioria das crianças. para os antigénios estreptocócicos associados
a nefrite.
Evolução:
A resolução das manifestações clínicas, em Prognóstico:
geral, é rápida. O edema resolve em cinco a dez O prognóstico na fase aguda é excelente,
dias e a tensão arterial normaliza habitualmente com evolução favorável e completa resolução em
após duas a três semanas. A hematúria macros- 95% casos. Cerca de 4% curam com um ligeiro
cópica desaparece em uma a três semanas e a défice da função renal. A mortalidade na fase
microscópica após 12 meses; a proteinúria nos aguda é muito rara (pode ocorrer por hiperka-
primeiros dois a três meses. O valor de C3 nor- liémia, edema do pulmão…). Estudos de segui-
maliza após oito a dez semanas. mento longos (10 a 20 anos), revelam a presença
As principais complicações com influência na de alterações urinárias (proteinúria e hematúria
mortalidade são: IRA com necessidade de diálise microscópica) em 5 a 20%. Considerar a possi-
(<5%); insuficiência cardíaca, edema agudo do bilidade de doença renal crónica (<1%) sempre
pulmão (raro) e encefalopatia hipertensiva (ex- que a hematúria e proteinúria persistam mais de
cecional). um ano.
Uma vez passada a fase aguda (desapare-
cimento dos sintomas clínicos, normalização da 34.2.4 Nefropatia IgA
ureia plasmática e do C3) o doente deverá con-
sultar regularmente, por exemplo uma vez por A nefropatia a IgA teve a primeira descri-
mês durante os primeiros três meses, e a seguir ção em 1968 (Berger). Pode surgir em qualquer
cada seis meses. Nestas consultas deverão ser idade, mas é mais comum na segunda e terceira
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 191
décadas de vida, sendo rara abaixo dos três anos. nefropatia a IgA existe elevação sérica da IgA, su-
Tem predomínio no sexo masculino (65%) e é gerindo o diagnóstico. No entanto, esta elevação
mais frequente na raça caucasiana. A forma de sérica da IgA não é suficiente para o diagnóstico,
apresentação clínica mais frequente é o apa- que deve ser feito com biópsia renal. Como a
recimento de hematúria macroscópica, muitas apresentação clínica não permite o diagnóstico
vezes precepitada por uma infeção respiratória é importante dosear o C3, TASO e anticorpos
alta. O intervalo entre a infeção precipitante e anti-nucleares para excluir outras causas.
o início da hematúria macroscópica é de um a A semelhança histológica entre a nefropatia
dois dias, em contraste com o intervalo médio de IgA e a nefrite da PHS sugere uma relação
de duas semanas entre a infeção estreptocócica patogénica estreita entre estas duas entidades.
e o início da GNAPE. Na apresentação clínica, O prognóstico da nefropatia de IgA na crian-
além da hematúria macroscópica, pode surgir ça é melhor do que nos adultos.
como: hematúria microscópica assintomática e
proteinúria; sindrome nefrítico agudo; síndrome Factos a reter na Nefropatia de IgA:
nefrótico (<10%); síndrome nefrótico-nefrítico • Em regra apresenta-se com hematúria
e mais raramente glomerulonefrite rapidamente macroscópica um a dois dias após uma
progressiva com crescentes (>50% dos gloméru- infeção respiratória alta.
los) e insuficiência renal aguda (necrose tubular • A maioria das crianças afetada tem he-
com cilindros hemáticos intratubulares e gloméru- matúria microscópica persistente.
los pouco alterados). • O prognóstico é melhor do que nos adul-
A patogenia é desconhecida, mas está de- tos. As crianças mais jovens e as que não
monstrado que os depósitos de IgA no mesângio apresentam hematúria macroscópica têm
pertencem à subclasse IgA1. A IgA1 é anómala melhor prognóstico a longo prazo.
(defeito de glicosilação), induz formação de auto-
-anticorpos e imunocomplexos circulantes com 34.2.5 Síndrome nefrótico
deposição no mesângio (proliferação celular, liber- O síndrome nefrótico (SN) é a manifesta-
tação de mediadores inflamatórios, complemen- ção clínica de alterações bioquímicas produzidas
tos). A lesão anatomo-patológica mais frequente por lesão glomerular que tem como ponto funda-
é a glomerulonefrite proliferativa mesangial (hi- mental a alteração da permeabilidade da parede
percelularidade mesangial e aumento da matriz capilar glomerular, dando origem a uma proteinú-
mesangial), mas as lesões podem variar de lesões ria intensa com hipoalbuminémia. As manifesta-
mínimas a proliferação endocapilar/extracapilar ções clínicas são devidas a esta hipoalbuminémia.
generalizada. O SN idiopático é aquele que não é se-
O diagnóstico de nefropatia a IgA só pode cundário a nenhuma doença causal, sendo
ser feito, com certeza, demonstrando os depósitos ele a única manifestação de doença, devendo
granulares de IgA predominantes no mesângio excluir-se deste o SN iniciado no primeiro ano
glomerular. Em menos de 20% das crianças com de vida, cujas características etiopatogénicas e
192 ANTÓNIO JORGE CORREIA
evolução clínica são diferentes e lhe conferem uma e ao modo de resposta ao tratamento. Por outro
entidade especial. A importância desta diferença lado, a administração de corticoides de uma forma
tem implicação no tratamento a realizar no SN prolongada implica riscos: baixa estatura, altera-
secundário e no SN no primeiro ano de vida. ções da face, acne, osteoporose, estrias cutâneas,
suscetibilidade às infeções.
Definição:
O SN é caracterizado por hipoalbuminé- Factos a reter no síndrome
mia, proteinúria maciça e edema. A hiperco- nefrótico idiopático:
lesterolémia que acompanha habitualmente o SN, • Mais comum no sexo masculino,
não é constante. O SN idiopático define-se como nos árabes e indianos.
uma doença glomerular primária com proteinúria> • Pico de incidência entre os dois
40 mg/m /hora, albuminémia <2,5 g/dL e edema
2
e os cinco anos.
generalizado. A sua incidência é 17,5 a 20 novos • A lesão histológica mais comum
casos por ano e por milhão de crianças entre os é a doença de lesões mínimas.
0 e os 14 anos de idade. • Evidências indiretas implicam, na sua
O SN idiopático atinge, em regra, crianças etiologia, componentes genéticos.
de um a seis anos, iniciando-se por edema,
progressivamente mais intenso, acompanhados Fisiopatologia do síndrome sefrótico:
de oligúria e aumento excessivo de peso. Não Na sequência dum processo imunológico
há hematúria macroscópia e a tensão arterial é cuja natureza não é ainda perfeitamente conheci-
normal. Há proteinúria maciça e hipoalbuminémia. da, origina-se uma lesão da membrana glomerular
A hipercolesterolémia e hipertrigliceridémia são aumentando-lhe a permeabilidade. Este aumento
frequentes. de permeabilidade origina uma perda de proteí-
Antes do emprego dos antibióticos, o SN nas na urina. Esta albuminúria maciça e repetida
idiopático (que constitui 85% dos casos em durante alguns dias leva a uma hipoalbuminémia
Pediatria) era uma doença grave com uma taxa e, secundariamente, a uma diminuição da pressão
de mortalidade de cerca de 67%. Estas crianças oncótica e a uma diminuição do volume plasmá-
morriam, na maior parte das vezes de infeção (por tico circulante. Daqui resultam três fenómenos:
exemplo peritonite pneumocócica). Curiosamente,
já nesta época, 33% destas crianças entravam 1. Como resultado duma hipovolémia, há
espontanemante em remissão após o primeiro diminuição da filtração glomerular, por-
episódio. A utilização dos corticoides reduziu a tanto uma insuficiência renal pré-renal
mortalidade a cerca de 5%. mais ou menos grave.
Apesar dos resultados obtidos com os 2. A própria hipovolémia (contração do volu-
corticoides, ainda subsistem muitos pontos de me extracelular) tem uma ação direta no
interrogação no que se refere aos mecanismos tubo proximal aumentando a reabsorção
imunológicos que estão na base do SN idiopático do sódio.
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 193
Leitura complementar
Avner ED, Ed. Pediatric Nephrology. 6th Ed. Springer - Verlag
Heidelberg; 2009.
Capítulo 35.
Cefaleias
35
Mónica Vasconcelos
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_35
CAPÍTULO 35. CEFALEIAS 201
podem ser sintoma de uma grande variedade são sempre um sinal de alerta e obriga a suspeitar
de patologias, sendo nesta idade mais comuns de uma possível hemorragia intra-craniana.
as secundárias a infeções. Um doente pode, no
entanto, ter uma cefaleia primária que tenha
sido exacerbada por uma causa secundária (i.e.
“Life-threatening”
cefaleia pós-traumática num doente com enxa- • Infeção sistema nervoso central (meningite,
queca). Numa pequena percentagem de casos encefalite, abcesso cerebral)
(0,4 a 4%) uma cefaleia aguda ou crónica pode • Hemorragia subaracnoideia
(trauma, malformações vasculares,
ser o sintoma de apresentação de uma doença distúrbios hematológicos)
intracraniana grave. • Traumatismos (acidentais ou não):
hemorragia intracraniana
• Hidrocefalia
Factos a reter:
• Disfunção de shunt ventriculo-peritoneal
As cefaleias agudas são aquelas que mais Causas de cefaleias recorrentes incluem
frequentemente recorrem ao serviço de urgência, a enxaqueca, síndromes periódicos associados à
quadro 1. Na grande maioria dos casos são crian- enxaqueca, a cefaleia tipo tensão, “cluster heada-
ças com febre associada a síndromes gripais ou che”, disfunção temporo-mandibular e a causada
infeções respiratórias superiores. Nestes casos, é por fármacos e drogas.
sempre essencial excluir uma infeção do sistema As cefaleias com evolução progressi-
nervoso central, nomeadamente uma meningite. va são sempre motivo de preocupação e obri-
As cefaleias de grande intensidade descritas como gam a excluir um processo orgânico com hi-
lancinantes, “a pior cefaleia alguma vez sentida”, pertensão intra-craniana, nomeadamente lesão
CAPÍTULO 35. CEFALEIAS 203
cefaleia tipo enxaqueca de grande intensidade e desequilíbrio, de início súbito, em que a criança
duração superior a 72 horas. parece ficar assustada e com medo, chegando
por vezes a vomitar. Têm intensidade máxima
Equivalentes de enxaqueca. no seu início, a criança pode ser incapaz de se
Nas crianças existem síndromes diferentes manter em pé, fica pálida, deitando-se no chão
que podem ser considerados como variantes da ou agarrando-se a alguém; mantém-se sempre
enxaqueca, sendo o seu diagnóstico difícil por- consciente. Os episódios geralmente são raros,
que a sintomatologia frequentemente não inclui duram minutos e podem recorrer a intervalos
cefaleias. Os síndromes episódicos que podem ser irregulares.
associados a enxaqueca ou síndromes periódicos O torcicolo paroxístico benigno carate-
da criança incluem a perturbação gastro-intestinal riza-se por episódios recorrentes de inclinação
recorrente (vómitos cíclicos, enxaqueca abdomi- lateral da cabeça, por vezes com ligeira rotação,
nal), a vertigem paroxística benigna da criança e que resolvem espontaneamente em minutos ou
o torcicolo paroxístico benigno. dias. Ocorrem em lactentes e crianças pequenas,
O síndrome de vómitos cíclicos é carac- com um pico de incidência entre os dois e os oito
terizado por episódios recorrentes de vómitos meses. A cabeça da criança pode ser colocada
e náuseas intensas que ocorrem de uma forma em posição neutra durante os ataques, apesar
estereotipada, duram geralmente um a dois dias, de alguma resistência poder ser encontrada. Por
sendo muito caraterística a natureza ciclíca com vezes está associado a palidez, irritabilidade, mal-
que surgem. São tipicamente auto-limitados, com -estar, vómitos e ataxia.
períodos de completa normalidade entre estes
episódios. A idade de início é aproximadamente 35.2.5 Cefaleias de tensão
de cinco anos e geralmente desaparecem por
volta dos dez anos. A história e o exame físico São uma causa comum de cefaleias na crian-
não revelam sinais de doença gastro-intestinal. ça e no adolescente, sendo a idade média de
A enxaqueca abdominal é uma situação início aos sete anos, tendo mais de metade destes
recorrente, idiopática, caraterizada por dor abdo- doentes também enxaqueca. A dor é tipicamen-
minal episódica da linha média, que se manifesta te bilateral, tipo pressão ou aperto, predomínio
em episódios que duram entre duas a 72 horas, vespertino, de intensidade ligeira a moderada e
com normalização entre estes. A dor é moderada que não agrava com a atividade física de rotina.
a intensa, interferindo nas atividades da vida diária Não está associada a náuseas ou vómitos, mas
e associada a sintomas vasomotores, náuseas e fono ou fotofobia podem estar presentes.
vómitos. Para o diagnóstico de cefaleias de tensão de
A vertigem paroxística benigna é uma acordo com os critérios da ICHD-3, são necessá-
perturbação da infância e da idade escolar (em- rios pelo menos dez episódios com as seguintes
bora possa ocorrer em crianças mais velhas) em características: cefaleia com duração de 30 mi-
que surgem episódios breves e recorrentes de nutos a sete dias; cefaleia com pelo menos dois
206 MÓNICA VASCONCELOS
dos seguintes sinais: localização bilateral, tipo da sinusite, mas geralmente não é necessária.
pressão / aperto (não pulsátil), intensidade ligeira É frequente, quando solicitada por outros moti-
a moderada, não agravada com a atividade roti- vos, mostrar evidência de sinusite assintomática.
neira; ambos: ausência de náuseas e/ou vómitos,
fotofobia ou fonofobia. 35.2.7 História clínica
vespertino, noturno; dias da semana). É impor- difícil e é subestimado. Além disso, é mais fácil
tante pesquisar a presença de pródromos (sin- para uma criança queixar-se de dores de cabeça
tomas que precedem ou anunciam a crise), de do que referir que tem um sono de má qualidade.
sintomas associados (náuseas, vómitos, fotofobia, Assim, o sintoma “cefaleia” deve ser avaliado de
fonofobia,...), factores de alívio ou agravamen- diferentes pontos de vista, incluindo uma ava-
to (ingestão de determinados alimentos, jejum liação cuidadosa da higiene do sono e dos seus
prolongado, sono excessivo, sono não reparador, problemas (a cefaleia matinal pode ser um sinal
stresse, ciclo menstrual, esforço físico), alterações de apneia obstrutiva do sono nas crianças!).
de comportamento e qual a resposta aos anal-
gésicos. A mudança de posição da cabeça e as 35.2.7.2 Exame físico
manobras de Valsalva que agravam de modo claro É importante a realização de um exame
a cefaleia, devem levar à suspeição de uma pato- objetivo completo com observação cutânea (i.e.
logia que curse com hipertensão intracraniana. O manchas café-com-leite, entre outras), percussão
sucesso escolar, as dificuldades de aprendizagem, dos seios faciais, avaliação da tensão arterial e um
a exigência posta nos resultados escolares pelo exame neurológico cuidadoso que inclua estado
próprio ou pela família, a sobrecarga de horários mental, nervos cranianos, reflexos e provas de
e atividades extra-curriculares, a prática despor- coordenação. A fundoscopia é fundamental para
tiva, as relações com os pares, a personalidade excluir a presença de papiledema, atrofia ótica
da criança e outros fatores psico-sociais também ou hemorragias retinianas; a ausência de edema
podem ser relevantes para o diagnóstico. papilar não exclui completamente a possibilidade
Não nos devemos esquecer de inquirir sobre de hipertensão intra-craniana.
a qualidade do sono. Nos últimos anos tem-se
dado grande importância à relação estreita que 35.2.7.3 Exames complementares de
existe entre o sono e cefaleias. Sabemos que as diagnóstico
perturbações do sono estão associadas a cefaleias Uma história clínica cuidadosa e reavalia-
e que episódios de cefaleia podem ocorrer durante ções regulares são os principais fatores e os que
e após o sono e em relação com vários ciclos de apresentam melhor custo-eficácia, mesmo em
sono. Por outro lado, as próprias cefaleias podem crianças em idade pré-escolar. Um exame normal
interferir no sono e estar associadas a vários tipos apresenta uma relação fortemente positiva com a
de problemas, que incluem um sono insuficiente, ausência de um processo intracraniano grave em
dificuldades em adormecer, ansiedade relacionada doentes pediátricos e adultos e permite excluir
com o sono, sono agitado, despertares noturnos, na grande maioria dos casos a necessidade de
pesadelos e fadiga durante o dia. Sabemos que investigação adicional.
um excesso de sono, a sua privação, um sono O electroencefalograma (EEG) raramente é
de má qualidade ou de duração inadequada são informativo nos casos de cefaleias e a presença de
fatores desencadeantes de cefaleias. Nas crianças, alterações inespecíficas pode confundir o normal
a perceção de um problema de sono por vezes é processo diagnóstico.
208 MÓNICA VASCONCELOS
A Punção Lombar (PL) deve ser realizada Têm indicação para exame de neuroimagem
nos casos de suspeita de infeção/inflamação do as cefaleias com as seguintes características:
sistema nervoso central, alterações na pressão patologia antecedente (tumor operado, deri-
do líquido cefalorraquídeo e nos doentes imu- vação ventrículo-peritoneal); idade inferior a três
nocomprometidos. Na suspeita de uma lesão anos; padrão progressivo ou alteração recente das
estrutural focal com efeito de massa, em que características da cefaleia; presença de cefaleias e
o risco de herniação é elevado, a PL pode estar vómitos matinais; agravamento por manobras de
contra-indicada e deve ser precedida de um Valsalva, tosse ou mudanças bruscas de posição;
exame de neuroimagem. instalação aguda de cefaleia lancinante; latera-
O exame de neuroimagem deve ser fei- lização fixa ou localização occipital persistente;
to apenas em casos selecionados e sempre em alterações no exame neurológico.
função da história clínica, nomeadamente nos
casos de cefaleia de grande intensidade de início 35.2.8 Tratamento
recente, alteração do padrão de cefaleia, cefa-
leia crónica progressiva e qualquer alteração no A terapêutica da cefaleia deve ser individua-
exame neurológico. A ressonância magnética lizada, tendo em consideração o grau de inter-
crânio-encefálica é o método imagiológico de ferência na vida diária da criança. Deve incluir a
escolha, enquanto que a TAC-CE é uma mais evicção de fatores desencadeantes, o tratamento
valia em situações de emergência ou quando a das crises e, se necessário, tratamento profilático.
ressonância não está disponível ou está contra- O plano de tratamento deve ter em conside-
-indicada (i.e. uso de pacemaker). ração estratégias de natureza farmacológica e não
As guidelines da American Academy of farmacológica de acordo com o comprometimen-
Neurology e “ Practice Committee of the Child to funcional da cefaleia e sintomas associados.
Neurology Society” recomendam a realização Nem todas as crianças necessitam de terapêutica
de exame de neuroimagem nos seguintes casos: farmacológica.
alterações no exame neurológico, apresentação O tratamento não farmacológico implica
atípica (vertigem, vómitos incoercíveis ou des- medidas de higiene do sono e hábitos de vida sau-
pertares noturnos por dor), evolução recente dáveis (alimentação adequada, prática de exercício
(menos de seis meses), alteração recente do tipo físico); evitar fatores desencadeantes conhecidos
de cefaleia, agravamento progressivo da dor, (jejum prolongado, stresse, certos alimentos,...);
idade inferior a seis anos, ausência de história permitir que a criança fique num quarto escuro,
familiar de cefaleia primária, cefaleia occipital, sem ruídos, e, eventualmente, recorrer a técnicas
cefaleia de novo numa criança imunocompro- de relaxamento e biofeedback. O repouso em
metida; primeira ou pior cefaleia sentida pela ambiente adequado (com pouca luminosidade
criança, sinais e/ou sintomas sistémicos, cefa- e silencioso) e um breve período de sono são
leias associadas a confusão, alteração do estado muitas vezes eficazes para abortar uma crise de
de consciência ou sinais neurológicos focais. enxaqueca. Na infância esta medida é mais fácil de
CAPÍTULO 35. CEFALEIAS 209
adotar do que na idade adulta, pelo que deve ser Não esquecer de garantir que a criança não apre-
encorajada, evitando assim a utilização excessiva senta nenhuma contra-indicação para o uso do
de analgésicos. propranolol (asma, diabetes, patologia cardíaca).
O tratamento sintomático da dor deve O tratamento do estado de mal migranoso
ser administrado precocemente após o início das implica o repouso em quarto escuro e silencioso,
queixas, sendo o fármaco de primeira linha o hidratação endovenosa, antieméticos/procinéticos
ibuprofeno numa dose de 7,5 a 10 mg/kg. A sua (metoclopramida, clorpromazina), corticoterapia
eficácia é superior à do paracetamol e de mais e valproato de sódio endovenoso.
rápida ação. Não deve ser usado mais de duas
a três vezes por semana pelo risco de cefaleia Leitura complementar
por abuso medicamentoso - atenção à cefaleia Cefaleia no Serviço de Urgência – protocolo do Hospital
rebound por analgésicos! Pediátrico.
Se a criança tiver náuseas e vómitos pode-
mos recorrer à terapêutica retal com analgésicos
ou, eventualmente, a anti-eméticos (metoclopra-
mida, ondansetron).
Os triptanos (agonistas dos receptores 5-HT
da serotonina) podem ser usados em casos sele-
cionados em adolescentes com enxaqueca, no-
meadamente o almotriptano, o sumatriptano e
o zolmitriptano nasal ou oral.
O tratamento profilático da enxaqueca
está reservado para os casos em que as crises são
frequentes (superior a uma a duas por semana
ou a três a quatro vezes por mês), com implica-
ções nas atividades da vida diária (faltas à escola)
ou quando existem crises de grande intensidade
ou complicadas (i.e. enxaqueca hemiplégica).
É importante pedir à criança para fazer um registo
“diário” das cefaleias, para ter um conhecimento
correto da sua frequência e para depois avaliar a
resposta ao tratamento. Os medicamentos mais
habitualmente utilizados são o propranolol, a
flunarizina e, nos adolescentes, a amitriptilina, o
topiramato e o valproato de sódio. O tratamento
deve ser feito durante um período de quatro a
seis meses, com introdução e suspensão graduais.
Capítulo 36.
Poliúria e polidipsia
36
Rita Cardoso
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_36
CAPÍTULO 36. POLIÚRIA E POLIDIPSIA 213
de um défice absoluto na produção de insulina mg/dl com ou sem cetonémia e cetonúria. Pode
por destruição das células beta pancreáticas e também haver aumento da hemoglobina A1C
na tipo 2, inicialmente há resistência à ação da (HbA1C≥6,5%).
insulina e posteriormente há um défice relativo da O melhor teste de rastreio consiste na realiza-
sua produção. Apesar da incidência da diabetes ção de uma glicémia capilar e de um teste rápido de
tipo 2 ter vindo a aumentar nas últimas décadas, urina para pesquisa de glicosúria e cetonúria. Sempre
associada ao aumento da obesidade nas crianças que possível deve ser também, ou em alternativa à
e jovens, a diabetes tipo 1 continua a ser a causa cetonúria, pesquisada a cetonémia que é detetada
mais frequente de diabetes mellitus em idade mais precocemente que a cetonúria e normaliza
pediátrica. antes, sendo útil na monitorização do tratamento.
Na diabetes tipo 1 encontram-se presentes os auto
A incidência da DM tipo 1 tem vindo também anticorpos (anti insulina, anti descarboxílase do ácido
a aumentar principalmente nas crianças com ida- glutâmico, anti ilhéus de Langherans).
de inferior a cinco anos. A patogénese combina As crianças com suspeita deste diagnóstico
fatores de risco genéticos (complexo major de devem ser referenciadas de imediato a um
histocompatibilidade do cromossoma 6) a fatores serviço de urgência de Pediatria pelo risco de
ambientais que despoletam o processo autoimune vida associado.
de destruição de células β. Os auto anticorpos
podem estar presentes anos antes da manifes- 36.2.2.2 Diabetes insípida
tação da doença. Excreção de um volume elevado urina diluí-
O défice de produção de insulina está asso- da. Que se caraterizada por densidade urinária
ciado a hiperglicémia com incapacidade da glicose <1.010 ou osmolaridade urinária <300 mOsm/
entrar nas células e aumento da excreção renal de kg; osmolaridade plasmática> 290 mOsm/kg com
glicose (glicosúria) com diurese osmótica associa- osmolaridade urinária <300 mOsm/kg.
da. Surge então a sintomatologia característica A diabetes insípida (DI) tem uma incidência
conhecida como os três Ps, poliúria, polidipsia de 3/100.000 na população em geral com pre-
e polifagia. A incapacidade de utilização da gli- dominância discreta no género masculino (60%).
cose leva a utilização dos lípidos como fonte de
energia alternativa resultando na produção de Diabetes insípida central
corpos cetónicos, que por sua vez pode resultar Também designada como neuro-hipofisária
em cetoacidose. À data do diagnóstico a maioria ou neurogénica está associada a um défice de
dos doentes apresenta sinais de desidratação e secreção da hormona antidiurética. Pode estar as-
podem apresentar acidose metabólica (hiperventi- sociada a malformações cerebrais congénitas (5 a
lação) e um hálito cetónico típico (cheiro a maçã). 10%), trauma, tumores e cirurgia hipofisária (50%
Perante a sintomatologia típica o diagnós- das causas adquiridas), infeções do sistema nervo-
tico é feito associando uma glicémia em jejum ≥ so central, histiocitose de células de Langerhans
126 mg/dl ou em qualquer altura do dia ≥ 200 (10% das causas adquiridas), encefalopatia
CAPÍTULO 36. POLIÚRIA E POLIDIPSIA 215
hipóxico-isquémica, destruição autoimune das cé- por base um aumento na ingesta de água com
lulas produtoras de HAD ou pode ser idiopática (10 supressão da HAD e produção de quantidade
a 20%). Raramente, em menos de 10%, existem de urina equivalente à ingesta de água. A poliú-
casos familiares (formas autossómicas dominantes; ria melhora durante a noite com diminuição do
síndrome DIDMOAD-diabetes insípida, diabetes aporte de água. Pode ocorrer em doentes com
mellitus, atrofia ótica e surdez-deafness), inferior patologia psicológica/psiquiátrica ou com lesões
a 10%. Os eletrólitos podem ser normais já que hipotalâmicas que afetem o centro da sede. Uma
a criança com acesso e capacidade para ingerir osmolaridade plasmática> 295 mOsm/kg e sódio
água não tem hipernatrémia. O início da poliúria é sérico> 143 mEq/L com ingestão de água ad libi-
rápido. O volume de urina é elevado, está presente tum exclui esta etiologia.
nictúria e há preferência por ingestão de água
gelada. Nestes casos há resposta à desmopressina 36.2.3 Diagnóstico e diagnóstico diferencial
(fármaco análogo da vasopressina-HAD).
Clínica: irritabilidade; má progressão pon-
Diabetes insípida nefrogénica deral; anorexia; obstipação; febre intermitente;
Ocorre por diminuição da capacidade de cefaleias; desidratação grave nas doenças corren-
concentração renal por resistência à ação da HAD. tes banais, ambiente quente ou na ausência de
Pode ser adquirida (mais comum e menos grave) ingestão de água; dilatação de ureteres e bexiga;
ou familiar. convulsões e coma.
As formas adquiridas podem estar asso-
ciadas a distúrbios metabólicos (hipercalcémia, Nos recém-nascidos e lactentes é difícil de-
hipocaliémia), doença renal crónica, uropatia pós- tetar poliúria e polidipsia, pode ocorrer irritabili-
-obstrutiva e fármacos (lítio, rifampicina). dade mantida, vómitos, fraldas muito molhadas,
As formas familiares estão relacionadas com necessidade muito frequente de mamar, pele seca,
mutação do recetor V2 da vasopressina na forma extremidades frias e insuficiente aumento ponde-
ligada ao cromossoma X (manifestam-se habitual- ral ou mesmo convulsões e choque hipovolémico.
mente no primeiro ano de vida) ou da aquapo- O diagnóstico dos tipos parciais de diabetes
rina 2 na forma de hereditariedade autossómica insípida pode ser difícil e as formas familiares
dominante (mais tardia). podem manifestar-se de modo progressivo com
O diagnóstico implica a demonstração da agravamento da poliúria e polidipsia nos primeiros
incapacidade de concentração renal na presença seis anos de vida.
de um doseamento de HAD normal e não respon-
dem à introdução da desmopressina. Anamnese - questões importantes a colocar:
Há aumento do volume de urina ou aumento
Polidipsia primária do número de micções?
Também designada como polidipsia psi- Há polidipsia ou formas estranhas de saciar
cogénica. Ocorre mais em adolescentes e tem a sede?
216 RITA CARDOSO
Quadro 1. Interpretação dos parâmetros analíticos em quadro de poliúria, polidipsia sem glicosúria.
devendo fazer uma alimentação saudável como Conclusão, em caso de clínica de poliúria
qualquer criança da mesma idade, mas com li- e polidipsia:
berdade alimentar.
Os pais e as crianças devem receber educação • Confirmar poliúria (medir densidade uri-
terapêutica adequada e permanente para promover nária e pesar).
o melhor controlo metabólico que irá impedir ou • Pode ser causada por diurese de água (os-
atrasar as complicações que podem estar associadas molaridade urinária < plasmática) ou osmó-
à diabetes mellitus (agudas-hipoglicémia ou cetoa- tica (osmolaridade urinária ≥ plasmática).
cidose; crónicas-retinopatia, nefropatia, neuropa- • Excluir infeção urinária e diabetes me-
tia e patologia cardiovascular). O rigor terapêutico llitus (glicémia, cetonémia, glicosúria e
é particularmente importante nestas idades pelo cetonúria).
tempo de evolução natural que a doença vai ter. • Fazer avaliação da ureia, creatinina, gaso-
Os adolescentes constituem um grupo de metria, cálcio, sódio sérico, osmolaridade
difícil abordagem pelas alterações hormonais exis- sérica, osmolaridade urinária. Ponderar
tentes nesta fase associadas a insulinorresistência e prova de restrição hídrica.
maior dificuldade no controlo das glicémias e pelos
comportamentos de fraca adesão à terapêutica.
36.3 FACTOS A RETER
Diabetes insípida central
Desmopressina: análoga da vasopressina, Não deixar de suspeitar de diabetes melli-
administrada por via oral a cada 8 a 12 horas, tus perante uma criança com poliúria e polidip-
início de ação em 15 a 30 minutos, em alternativa sia, devendo ser avaliadas: glicémia e glicosúria,
pode ser usada a via intranasal ou endovenosa. cetonúria/cetonémia.
Não deve ser administrada insulina fora
da urgência pediátrica (risco de edema cere-
Diabetes insípida nefrogénica bral). Deve ser iniciada de imediato hidratação
Acesso livre à água. endovenosa com soro fisiológico.
Correção dos distúrbios metabólicos, sus- A diabetes insípida apesar de rara é uma
pensão de fármacos que estejam a usar. causa importante de poliúria na criança.
Nas formas familiares são recomendados O ionograma normal não exclui o diagnós-
diuréticos tiazidicos, amiloride e indometacina e tico de diabetes insípida.
efetuada restrição de sódio na dieta. Estes casos É fundamental saber diagnosticar diabetes
se forem diagnosticados precocemente, com tra- mellitus e diabetes insípida e referenciar de ime-
tamento adequado podem ter desenvolvimento diato a um serviço de Pediatria.
e esperança de vida normais apesar de apresen- A investigação e abordagem da diabetes me-
tarem má progressão ponderal e baixa estatura llitus e insípida devem ficar a cargo de especialistas
pela má nutrição associada à polidipsia mantida. nas áreas de endocrinologia/nefrologia pediátrica.
Capítulo 37.
Anemias
37
Leticia Ribeiro
e Tabita Magalhães Maia
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_37
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 221
Os níveis de Hb são mais elevados no perío- Os GV têm uma vida média de 120 dias, por
do neonatal (Quadro 1), decrescem até por volta isso o RDW deve ser interpretado de um ponto
do segundo mês de vida, sobem gradualmente de vista dinâmico: na fase de instalação ou recu-
até aos 15 a 18 anos de idade e mantêm-se es- peração de uma sideropenia é elevado, porque
táveis no adulto. A partir da adolescência a Hb há GV normocíticos e outros microcíticos, numa
é cerca de 1,5 g mais elevada no sexo masculino sideropenia grave e prolongada é baixo, porque
(Quadro 2). já todos os GV são microcíticos, Figura 2.
222 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA
A- anos, CHCM - concentração de hemoglobina globular média, F- feminino, Hb- hemoglobina , HGM-hemoglobina globular
média, Htc-hematócrito, M-masculino, M- meses, VGM- volume globular médio.
Adaptado de Daliman, P. R.: In Pediatrics, 16th ed. Rudolph, A (ed.), New YorK Appleton-Century Crotts 1977, p. liii.
Figura 1. Parâmetros hematológicos e RDW na sideropenia Figura 2. O RDW é o primeiro parâmetro a subir na resposta
e na β-talassemia minor. Na sideropenia há GV de tamanho ao tratamento com Ferro (Fe). No histograma da imagem da
normal e outros microcíticos (VGM baixo): RDW elevado; na direita pode observar-se um alargamento da base devido à
talassemia os GV são uniformemente mais pequenos (VGM coexistência de duas populações de GV, uma microcítica e
baixo): RDW ligeiramente elevado. Para os mesmos valores de outra normocítica.
VGM e HGM, na sideropenia os níveis de Hb são mais baixos
e o RDW é mais elevado.
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 223
sideropenia
Adquiridas processo inflamatório crónico
intoxicação pelo chumbo
Hipocrómicas talassemia
e microcíticas algumas Hbs instáveis
Congénitas alterações congénitas do metabolismo do
heme - anemias sideroblásticas
alterações congénitas do metabolismo do ferro - IRIDA
défice de vitamina B12
Megaloblásticas
défice de ácido fólico
doença hepática
alcoolismo
hipotiroidismo
Macrocíticas secundárias a drogas
Não
algumas anemias hemolíticas
megaloblásticas
falência medular - anemia deseritropoiética congénita
anemia aplástica
síndrome mielodisplásico
anemia de Blackfan-Diamond
anemias hemolíticas
Normocrómicas hemorragia aguda
e normocíticas hiperesplenismo
doença renal crónica
num determinado momento, sofrendo variações Após exclusão de sideropenia, uma hipocromia
diurnas consideráveis. A taxa de saturação da e microcitose, com ou sem anemia, é fortemente
transferrina tem baixa sensibilidade e especifici- sugestiva de talassemia e deve ser realizado um
dade, deve ser determinada em jejum e pode ter estudo de Hbs com doseamento de Hb A2 e de Hb F.
interesse na avaliação da sobrecarga de ferro, no Perante uma anemia hipocrómica e micro-
diagnóstico da anemia das doenças inflamatórias cítica ligeira a moderada, uma prova terapêutica
e de algumas alterações congénitas do metabo- com Fe oral é a forma mais eficaz de confirmar
lismo do ferro. A dosagem da concentração de o diagnóstico de sideropenia, Figura 3. Deve-se
zinco-protoporfirina está aumentada quando há reavaliar a Hb e o RDW entre duas a quatro sema-
diminuição da síntese do heme: sideropenia, ane- nas depois do início da terapêutica marcial; nos
mia das doenças inflamatórias e na intoxicação casos em que a anemia é mais grave a reavaliação
pelo chumbo. deve ser feita dentro de uma semana.
Se não houver resposta, e a ferritina for deve iniciar-se com doses baixas e infusões lentas,
normal ou elevada, suspeitar de uma talassemia porque podem ocorrer reações anafiláticas graves.
ou de uma anemia das doenças inflamatórias
(em caso de proteína C reativa e/ou velocidade Profilaxia da sideropenia
de sedimentação elevadas); se ferritina reduz é A anemia por carência de Fe na criança pode
porque o Fe não está a ser administrado ou não ter consequências nocivas a curto e a longo pra-
está a ser absorvido em quantidade que supere zo, pelo que a sua profilaxia é prioritária. No
as perdas. Verificar se o ferro está a ser tomado primeiro ano de vida há algumas normas básicas
de forma correta (excluir erros alimentares), se há que devem ser seguidas: i)promover o aleitamen-
perdas hemorrágicas abundantes e, se necessário, to materno, sempre que possível, ou o leite de
investigar doença celíaca ou perdas sanguíneas fórmula suplementado com Fe; ii) ingerir cereais
ocultas. enriquecidos com Fe na altura da diversificação
alimentar, ou fazer suplementação com Fe oral (2
Tratamento da sideropenia a 3 mg/kg/dia) entre os 6 e os 24 meses; iii) não
Sideropenia, com ou sem anemia, deve ser administrar leite de vaca em natureza antes do
tratada com sulfato ou gluconato ferroso oral, na ano de vida, nos casos em que não seja possível
dose de 3 a 4 mg/kg/dia na criança e 100 a 200 evitá-lo, proceder a suplementação de Fe oral; iv)
mg/dia nos adolescentes. A prescrição de doses os RN de baixo peso devem ser suplementados
elevadas de Fe é contraproducente, uma vez que a com Fe oral na dose de 2 mg/kg/dia a partir do
capacidade de absorção é limitada e provoca efeitos primeiro ou segundo mês de vida.
secundários que levam ao abandono da terapêutica.
Para ser mais bem tolerado, e bem absorvido, o Fe O leite materno tem um bom teor de Fe
deve ser acompanhado com uma refeição que con- que é facilmente absorvível (elevada biodispo-
tenha alimentos ricos em ácido ascórbico (vitamina nibilidade), no entanto, alguns estudos sugerem
C), nomeadamente citrinos e saladas. Os fitatos, o que mesmo as crianças alimentadas com leite
leite e o chá inibem a sua absorção. materno necessitam de suplementação com Fe.
A terapêutica deve ser mantida entre 4 a Nas crianças que vivem em más condições
6 meses, findos os quais se houver recidiva da socioeconómicas é aconselhável fazer um hemo-
anemia é porque a quantidade de Fe administrada grama para rastreio de anemia. Se é detetada
não foi suficiente para preencher os depósitos no sideropenia, para além da terapêutica com Fe
sistema reticulo-endotelial (SRE), ou porque as oral e desparasitação, devem ser corrigidos os
perdas continuam a ser abundantes ou o aporte/ erros alimentares.
absorção de ferro são deficientes. Nas jovens com menorragias é aconselhável
Na sideropenia prolongada e grave a capaci- que, para além de um seguimento por ginecolo-
dade de absorção de Fe no intestino é baixa, por gia, sejam aconselhadas a tomar Fe pelo menos
atrofia da mucosa intestinal, e pode ser necessário um a dois meses por ano, para evitar recidiva
administrar o Fe por via parenteral. A terapêutica da anemia.
228 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA
b-Talassemias a-Talassemias
A síntese de cadeias globínicas b depende Para a síntese das cadeias globínicas a há
da expressão de um gene localizado no cromos- dois genes homólogos, a2 e a1, em cada cromos-
soma 11 (b/b). Este gene pode ter mutações, mais soma 16 (aa/aa). As a-talassemias resultam,
frequentemente pontuais, que impossibilitem a mais frequentemente, da deleção de um ou dos
síntese de cadeias – mutações bo, ou que apenas dois genes num dos alelos.
reduzem a quantidade de cadeias sintetizadas – Nas populações portuguesa e africana são
mutações b+. mais frequentes as deleções de um só gene (-a3.7)
e (-a4.2). A heterozigotia (-a3.7/aa) cursa sem
- Se só um dos alelos do gene estiver mutado anemia e com VGM e HGM no limite inferior
(heterozigotia), há uma anemia ligeira, da normalidade. A homozigotia (-a/-a) cursa
230 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA
com anemia ligeira, hipocrómica e microcítica, A definição das formas major e intermédia
semelhante à β-talassemia minor, mas com Hb é clínica e pode ser difícil distingui-las na altura
A 2 e Hb F com percentagens normais. A deleção do diagnóstico. A identificação das mutações
de dois genes num mesmo alelo é frequente nos permite confirmar o diagnóstico, estabelecer o
orientais (--SEA). prognóstico e evitar transfusões intempestivas
nas formas intermédias.
O problema na prática clínica Os doentes com b-talassemia major ou inter-
média devem ser suplementados com ácido fólico.
b-Talassemias A sobrevida dos doentes com as formas
O estado de portador de β-talassemia (b− graves de b-talassemia é condicionada pela
-talassemia minor) não é patológico, se os por- sobrecarga de ferro que provoca uma falência
tadores apresentarem sintomas deve ser procu- multiorgânica, nomeadamente hipogonadismo,
rada outra etiologia. Têm uma anemia ligeira, diabetes, hipotiroidismo e miocardiopatia. Para
hipocrómica e microcítica, com Hb A 2 >3,5% e diminuir a hemossiderose devem fazer quelação
Hb F normal ou ligeiramente elevada. do ferro com infusões subcutâneas de desferro-
A b-talassemia intermédia é habitualmen- xamina, durante oito a dez horas entre quatro a
te diagnosticada na infância. Cursa com esple- cinco vezes por semana, ou tomar diariamente
nomegália, anemia hemolítica moderada (Hb:7-9 um quelante oral – deferiprone ou deferasirox.
g/dL), VGM e HGM baixos, com RDW e taxa de O tratamento mais indicado é o transplante de
reticulócitos elevada, Hb A 2 >3,5%, Hb F entre medula óssea, doada de um familiar compatível.
10 a 60%. No esfregaço de sangue periférico Após o diagnóstico de b-talassemia é funda-
há uma anisopoiquilocitose e hipocromia muito mental explicar aos pais a sua forma de transmis-
acentuadas, com muitos micrócitos. são, com vista à prevenção do aparecimento das
A gravidade do quadro clínico é heterogé- formas graves da doença. Um casal em que ambos
nea, dependendo do tipo de mutações. A anemia os elementos são portadores de b-talassemia,
é, em geral, bem tolerada mas agrava em situa- tem 25% de probabilidade, em cada gestação,
ções de infeção. As crianças têm, habitualmente, de ter uma criança com b talassemia major ou b
um quadro clínico mais grave, podendo neces- talassemia intermédia (dependendo do tipo de
sitar de algum suporte transfusional e eventual mutações).
esplenectomia.
A b-talassemia major apresenta-se nos a-Talassemia
primeiros meses de vida com palidez, anorexia, Nas populações portuguesa e africana as
má progressão ponderal, hepatoesplenomegália formas graves de a-talassemia são muitíssimo
e anemia grave, mal tolerada, dependente de raras, porque as mutações mais frequentes são as
transfusões. Praticamente só sintetizam Hb F e deleções de apenas um dos genes a (-a3.7 ou -a4.2).
uma percentagem irrelevante de Hb A 2, podendo Na população de origem oriental são fre-
formar pequenas quantidades de Hb A (b /b ).
o +
quentes as formas intermédias e graves de
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 231
Figura 4. Após terapêutica com Ferro, uma anemia ligeira, hipocrómica e microcítica, com ferritina normal, é suspeita de talasse-
mia. O doseamento de Hb A 2 elevado permite confirmar uma β talassemia minor. Os parâmetros hematológicos dos pais podem
Na doença da Hb H (--/-a) os GV têm in- sua regulação permitiu descrever novas, e raras,
clusões de Hb H que podem ser observadas num entidades que cursam com anemia sideropénica
ESP com coloração supra-vital. congénita que não responde à terapêutica com
ferro oral. As formas mais comuns são: a Iron-
37.3.5 Alterações congénitas Refractory Iron Deficiency Anaemia (IRIDA) e a
do metabolismo do heme doença da ferroportina.
A IRIDA tem transmissão autossómica re-
De entre as alterações congénitas da síntese cessiva e caracteriza-se por anemia hipocrómica
do heme as mais comuns são as anemias sidero- e microcítica moderada a grave, com ferritina e
blásticas congénitas. São doenças raras, com uma percentagem de saturação da transferrina baixas.
gravidade heterogénea, caracterizadas por anemia É refractária ao Fe oral e responde parcialmente
hipocrómica e microcítica com RDW elevado, dimor- ao Fe endovenoso.
fismo acentuado no sangue, ferritina e percentagem A doença da ferroportina tem transmissão
de saturação de transferrina elevadas, deseritro- autossómica dominante e resulta de uma redução
poiese e sideroblastos em anel na medula óssea. de síntese da ferroportina, uma proteína de trans-
A forma mais frequente e mais moderada tem porte transmembranar do Fe, com consequente
transmissão ligada ao cromossoma X: as crianças do acumulação de Fe no SRE e uma eritropoiese
sexo masculino podem ter a doença e as do sexo femi- deficiente em Fe. O quadro clínico é heterogé-
nino podem ser homozigóticas, o que é muito raro, ou neo mas, em geral, há anemia hipocrómica e
ser portadoras, no entanto, devido a uma lionização microcítica moderada, ferritina sérica elevada e
desequilibrada do cromossoma X em favor do alelo percentagem de saturação da transferrina baixa.
mutado, as portadoras podem apresentar a doença, Na presença de uma anemia sideropénica
mais frequentemente a partir da quarta década de que, comprovadamente, não responde ao Fe oral,
vida. Alguns doentes respondem parcialmente à ad- o doente deve ser enviado a uma consulta de
ministração da piridoxina. As principais complicações Hematologia.
estão associadas a sobrecarga de ferro, o que obriga
a monitorização regular e tratamento quelante. 37.4 Variantes de hemoglobina
As formas autossómicas recessivas são mais
graves, apresentam-se no primeiro ano de vida As variantes de Hb (Quadro 5) resultam
com esplenomegália, anemia e sobrecarga de Fe de mutações pontuais nos genes das cadeias
e podem ser sindrómicas. globínicas a, b ou g conduzem à substituição
de um ou mais aminoácidos (aa); menos fre-
37.3.6 Alterações congénitas quentemente são devidas a deleções, inserções
do metabolismo do ferro ou fusão de genes. O seu fenótipo é muito
variável, porque depende do tipo de aa subs-
Os avanços recentes na elucidação do me- tituído e do local em que este se localiza na
tabolismo do Fe e das proteínas envolvidas na cadeia globínica.
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 233
Variantes de Hb Clínica
Hb S Portadores AS – assintomáticos, hematologicamente normais
SS; SC; SD; HbS/b-talassemia - drepanocitose
Hb D Punjab Portadores AD – assintomáticos, hematologicamente normais
Homozigóticos DD – anemia ligeira
Heterozigóticos compostos HbD/b-talassemia – anemia ligeira hipocrómica e microcítica
Heterozigóticos compostos SD - drepanocitose
Hbs instáveis Anemia hemolítica
Hbs com alteração Alta afinidade - poliglobulia
da afinidade Baixa afinidade - cianose
Hbs M Cianose
Hbs com fenótipo Hb Lepore – anemia hipocrómica e microcítica
de talassemia Hb E - hipocromia e microcitose
Hb Constant Spring- hipocromia e microcitose
a nível ósseo, pulmonar, renal, esplénico, sistema bacterianos capsulados. Em geral cada doente tem
nervoso central e genital (priapismo). os seus locais habituais de dor, se a dor é atípica
Os fenómenos de vaso-oclusão surgem, devem ser feitos os procedimentos necessários
maioritariamente, na sequência de um quadro para o diagnóstico etiológico.
febril, desidratação ou mudanças bruscas de Só se deve proceder a transfusão de GV
temperatura. Deve ser instituída, de imediato, se houver agravamento significativo da anemia.
uma analgesia eficaz e administrados líquidos em Em caso de transfusão, devem ser selecionadas
abundância. As infeções devem ser prontamen- unidades de concentrado de eritrócitos (CE) sem
te tratadas com antibióticos com cobertura para Hb S, com fenótipo alargado compatível e com
agentes capsulados, uma vez que estes doentes pouco tempo de colheita.
têm hipoesplenismo/asplenia funcional.
O sequestro esplénico que é uma das causas
Avaliação diagnóstica mais comuns de morte nas crianças com drepa-
Os portadores de Hb S (AS) não têm alte- nocitose, caracteriza-se por um súbito e rápido
ração dos parâmetros hematológicos e apenas aumento de volume do baço, por retenção
podem ser identificados com um estudo de Hbs de uma grande quantidade de sangue, que pro-
e um teste de solubilidade da Hb S. voca uma anemia aguda e necessita de transfu-
Os doentes com drepanocitose têm uma são imediata. Contudo, não se deve transfundir
anemia hemolítica moderada (Hb: 6-8g/dL), com agressivamente porque o sangue retido no baço
reticulocitose e células falciformes (drepanócitos) vai voltar à circulação e o hematócrito final não
no ESP. No estudo de Hbs detetam-se apenas as deve ser superior a 30%. A sequestração é tão
Hb S e Hb F. O teste de solubilidade confirma o maciça e desencadeia-se tão rapidamente que
diagnóstico. muitas vezes os doentes morrem antes de chegar
A dupla heterozigotia Hb S/b talassemia tem ao hospital. Os pais devem ser alertados para a
um fenótipo semelhante à homozigotia SS, mas possibilidade de ocorrência destas situações e
a anemia é hipocrómica e microcítica. O estudo devem ser ensinados a localizar o baço.
hematológico dos pais ajuda a fazer o diagnóstico
diferencial, porque um deve ter uma b talassemia A aplasia eritroide transitória (infeção por par-
minor e o outro ser portador de Hb S. vovirus B19), caracteriza-se por uma diminuição
rápida da Hb, sem alteração do volume esplénico,
Tratamento das complicações agudas crise vaso-oclusiva ou contexto infecioso aparente.
mais frequentes Os doentes apresentam reticulocitopenia – a con-
Na crise vaso-oclusiva óssea há procedimen- tagem de reticulocitos é importante em todos os
tos básicos que é obrigatório seguir: hidratação, doentes com febre e/ou agravamento da anemia
analgesia eficaz, oxigenação, evitar o frio, tratar a e habitualmente há uma serologia IgM positiva
causa - se for infeciosa, dirigir antibiótico ao foco especifica do parvovirus. O tratamento consiste
com atenção particular à cobertura de agentes na transfusão de CE para um hematócrito máximo
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 235
o defeito não lhes traz nenhuma doença e não as anomalias de membrana (esferocitose
necessitam de fazer análises de controlo. É im- hereditária (EH), eliptocitose hereditária
portante que entendam claramente o modo de (Elip H), piropoiquilocitose hereditária e es-
transmissão e a forma de prevenir o aparecimento tomatocitose hereditária) e os défices enzimáti-
das formas graves das hemoglobinopatias. cos (défice de piruvato quinase (PK), défice de
A uma criança com edemas das mãos e/ou glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD).
pés, com dor, fazer hemograma, e se tiver anemia
hemolítica deve-se suspeitar de drepanocitose. O quadro clínico das anemias hemolíticas
crónicas tem uma gravidade muito variável que
Erros mais frequentes depende da etiologia e, dentro de cada patolo-
Pensar em talassemia antes de pensar em gia, depende da lesão molecular subjacente. Na
sideropenia. maioria dos casos há um aumento de volume
Não considerar que um portador de talasse- do baço, a urina é escura, há icterícia com hi-
mia também pode ter uma sideropenia. perbilirrubinémia não conjugada e anemia com
Não valorizar uma hipocromia e/ou microci- reticulocitose, que se agravam na sequência de
tose quando a Hb tem um valor normal. intercorrências infeciosas. Há maior tendência
Considerar os portadores de talassemia para a formação de cálculos vesiculares e para
como doentes. Não informar adequadamente os acumulação de ferro – hemossiderose. Em alguns
portadores de talassemia, criando injustificadas casos a hemólise pode estar compensada e haver
ansiedades e angústias. apenas reticulocitose e icterícia ligeira.
Esquecer que os portadores das variantes de Nos episódios de hemólise aguda pode haver
Hb mais frequentes (AS, AD) não têm alterações astenia, tremores, febre, dor abdominal e lombar
dos parâmetros hematológicos. e urina escura.
Numa drepanocitose é tão importante a
abordagem correta das crises como explicar aos 37.5.1. Anemias hemolíticas por anomalias
pais e aos doentes como as podem evitar. da membrana do gv
Transfundir intempestivamente os doentes
com drepanocitose aquando de crises vaso-oclusi- Alterações quantitativas e/ou qualitativas das
vas. O valor de Hb não é indicativo de transfusão e proteínas da membrana dos GV modificam a sua
quando houver necessidade de transfundir, devem estrutura, levando à perda de membrana, à dimi-
ser escolhidas cuidadosamente as unidades de CE. nuição da relação superfície/volume e ao aumento
da fragilidade dos GV e consequente hemólise.
37.5 ANEMIAS HEMOLÍTICAS CONGÉNITAS COM Na esferocitose hereditária (EH) as proteínas
MAIOR RELEVÂNCIA NA PRÁTICA CLÍNICA que mais frequentemente estão diminuídas são a
anquirina, a banda 3 e a proteína 4.2. (8%). A elipto-
São as hemoglobinopatias (talassemia inter- citose hereditária (Elip H) resulta de uma diminuição
média, drepanocitose e Hbs instáveis); de espectrina e, mais raramente, da proteína 4.1.
238 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA
Substâncias que podem desencadear hemólise nos indivíduos com défice de G6PD
diversas drogas ou patologias, nomeadamente B12 por défice de factor intrínseco. Na deficiência
doença hepática, hipotiroidismo, falência medular de vitamina B12 ocorrem, com frequência, distúr-
e mielodisplasia), quadro 3. bios neuropsiquiátricos. A terapêutica com ácido
fólico corrige parcialmente as alterações mega-
37.6.1 Anemias megaloblásticas loblásticas do défice de vitamina B12, mas não os
distúrbios neurológicos. Em regimes alimentares
Os défices de vitamina B12 e de ácido fólico estritamente vegetarianos há, com frequência,
afetam a síntese do ADN, com repercussão nos um défice de vitamina B12.
precursores eritróides, mielóides e megacariocí- A suplementação com ácido fólico deve
ticos, de que resulta anemia macrocítica com ou ser feita nas crianças com anemias hemolíticas
sem neutropenia e/ou trombocitopenia. No sangue crónicas, na terapêutica com antiepiléticos e nas
periférico observam-se macrócitos, pontuado ba- doenças intestinais crónicas.
sófilo e neutrófilos grandes e hipersegmentados. Embora as anemias megaloblásticas sejam
As causas mais frequentes são a deficiência muito raras na criança, devem fazer parte do
nutricional de folatos e a malabsorção da vitamina diagnóstico diferencial de anemia macrocítica.
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 241
vida em 90% dos casos; cerca de metade associam deste tipo de anemias. Uma anemia pode ser nor-
malformações congénitas. mocítica no estádio inicial, e evoluir para micro
A maioria dos casos são esporádicos, mas ou macrocítica. Quando há associação de vários
também pode haver transmissão autossómica fatores etiológicos, por exemplo nas patologias do
dominante ou ligada ao cromossoma X. O diag- tubo digestivo com malabsorção de ácido fólico e/
nóstico diferencial deve ser feito com eritroblas- ou da vitamina B12 e carência de Fe a anemia pode
topenia transitória da infância ou com infeção ser normocítica com RDW elevado.
por parvovirus B19. Cerca de 40% dos doentes
responde à corticoterapia. 37.8 Anemia no recém-nascido
Causas obstétricas
Hemorragia feto-materna
Perdas Hemorragia feto-placentar
hemorrágicas Hemorragia feto-fetal
Hemorragia interna
Perdas iatrogénicas (amostras laboratoriais)
Anemias hemolíticas hereditárias - Defeitos de membrana
- Défices enzimáticos
- Hemoglobinopatias
Hemólise Hemólise imune - Incompatibilidade Rh
- Incompatibilidade ABO
Hemólise associada a infecção
Diminuição da Anemia da prematuridade
eritropoiese Infeção por parvovirus B19
Anemia aplásica ou hipoplásica (ie: anemia de Blackfan-Diamond)
sangue da mãe com um teste de Kleihauer-Betke fototerapia. Nos casos mais graves é necessária a
ou por quantificação de células fetais por cito- terapêutica com administração de imunoglobulina
metria de fluxo. por via endovenosa e exsanguíneo-transfusão.
Os RN que sofreram perdas hemorrágicas, Alertar os pais no momento da alta para a vigi-
e os prematuros, devem fazer terapêutica com lância de icterícia que é essencial para prevenir
Fe nos primeiros meses de vida na dose de 2 a o kernicterus.
3 mg/Kg/dia. No RN uma anemia com reticulocitopenia é
uma entidade rara, resulta de uma eritropoiese
Num RN com anemia, reticulocitose e bilir- insuficiente, e pode ser transitória - prematuri-
rubina livre aumentada, na ausência de infeção, dade, infeção por parvovirus B19 - ou uma apla-
o diagnóstico mais provável é de incompatibili- sia/hipoplasia eritróide pura, como a anemia de
dade ABO ou Rh, EH, ou mais raramente, uma Blackfan-Diamond.
deficiência de PK.
A história familiar pode ajudar no diagnós- A anemia megaloblástica no período neona-
tico diferencial e a observação morfológica do tal está, frequentemente, associada a uma dieta
ESP permite identificar uma anemia hemolítica vegetariana da mãe e nestes casos só é necessá-
esferocítica. A EH pode ser confundida com a rio suplementar nessa altura com vitamina B12. Os
incompatibilidade ABO porque ambas cursam com défices congénitos de vitamina B12 são raros: os
esferócitos no sangue periférico, pode não ha- défices de transporte manifestam-se no período
ver história familiar de EH e na incompatibilidade neonatal, no entanto, os défices de absorção só se
ABO o teste de antiglobulina directo (TAD) pode manifestam por volta dos dois anos de vida. Todos
ser negativo. Em qualquer das situações deve ser os casos devem ser cuidadosamente diagnosticados
feita uma monitorização cuidadosa, se necessá- e tratados para evitar as complicações neurológicas.
rio, instituir medidas de suporte, e aguardar a
evolução. Se for necessária transfusão ou exsan- Leitura complementar
guíneo-transfusão antes de ter sido estabelecida Hematology in Infancy and Childhood, 7th edition, By Stuart
a etiologia, é imprescindível colher antes uma H. Orkin, MD, David E. Fisher, MD, PhD, A. Thomas Look,
amostra de sangue em anticoagulante (EDTA). MD, Samuel E. Lux, IV, David Ginsburg, MD and David
A incompatibilidade do sistema Rh é, em ge- G. Nathan, MD, 2009
ral, mais grave, o TAD é positivo e, ao contrário Sickle Cell Information Center - http://www.emory.edu/
da incompatibilidade ABO, só acontece depois de PEDS/SICKLE/
uma gestação anterior em que o feto seja Rh D, Current American Academy of Pediatrics Policy Statements
ou a mãe tenha sido transfundida com eritrócitos - http://www.aap.org/policy/pprgtoc.cfm
RhD. (consultar http://www.lusoneonatologia.com/ Consenso Clínico “Doença Hemolítica do Feto e Recém-
site/upload/consensos/2014-D_Hemolitica.pdf). nascido”, Secção de Neonatologia, Sociedade Portuguesa
Nos RN com icterícia é imperiosa a monito- de Pediatria. http://www.lusoneonatologia.com/site/
rização dos níveis de bilirrubina, a hidratação e a upload/consensos/2014-D_Hemolitica.pdf
Capítulo 38.
Acidentes e intoxicações
38
Lia Gata
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_38
CAPÍTULO 38. ACIDENTES E INTOXICAÇÕES 247
38.2.1.1 Aspiração de corpo estranho ser evitada, adiando a colocação de acesso venoso
A idade de maior risco situa-se entre os seis ou a realização de radiografia e deixando a crian-
meses e os três anos. As crianças colocam objetos ça em posição confortável, tomando as medidas
na boca como forma de exploração do ambiente, necessárias para a realização emergente de bron-
a mastigação é ainda imatura por ausência de coscopia rígida com apoio anestésico. Quando a
molares e a via aérea é estreita. situação evolui para paragem respiratória devem
Os corpos estranhos (CE) mais frequente- ser, de imediato, instituídas medidas de suporte
mente aspirados são de origem vegetal (amen- básico de vida (ver lição de suporte básico de vida
doim, castanha, tremoço ou feijão), mas qualquer e noções de suporte avançado de vida).
objeto pode ser aspirado.
As manifestações clínicas são variadas e ines- Factos a reter
pecíficas (estridor, tosse, dificuldade respiratória, Perante uma história consistente de aspira-
febre, sibilos ou assimetria do murmúrio vesicular). ção de CE e manifestações clínicas sugestivas deve
Nem sempre o episódio de engasgamento/ ser realizada broncoscopia diagnóstica, mesmo
sufocação foi presenciado mas o seu relato é o que a radiografia do tórax seja normal.
dado clínico mais importante para o diagnóstico;
estes episódios caracterizam-se por tosse, dificul- 38.2.1.2 Ingestão de corpos estranhos
dade respiratória, apneia, com ou sem cianose A ingestão acidental de corpos estranhos
ou vómito. ocorre mais frequentemente em crianças entre os
A obstrução por CE pode ocorrer a nível da seis meses e os três anos de idade. Num número
via aérea principal (laringe ou traqueia) mas mais significativo de casos a criança é levada ao serviço
frequentemente ocorre a nível brônquico. de urgência, apesar de estar assintomática, por-
Os CE localizados a nível da via aérea prin- que a ingestão foi presenciada. As manifestações
cipal são potencialmente mais graves pelo risco clínicas mais frequentes são: salivação excessiva,
de obstrução completa. recusa alimentar, disfagia e dor cervical ou retro-
A maioria dos CE não é radiopaca e um quar- -esternal.
to das radiografias do toráx é normal. Os achados A localização e tipo do corpo estranho são
radiológicos incluem hiperinsuflação localizada, determinantes para a decisão de remoção por
atelectasia e consolidação pulmonar. O atraso no via endoscópica.
diagnóstico pode causar pneumonia, enfisema A radiografia permite a identificação e lo-
obstructivo e bronquiectasias ou abcessos. calização de corpos radiopacos (osso ou metal).
A maioria das crianças apresenta obstrução A nível esofágico existem três locais anató-
parcial da via área e nestes casos será necessário micos de constrição natural onde pode ocorrer a
garantir a oxigenação até à realização de bron- impactação do corpo estranho: músculo cricofa-
coscopia que será diagnóstica e terapêutica. Nos ríngeo, arco aórtico e esfíncter esofágico inferior.
casos em que via aérea está instável com risco de São indicações para endoscopia urgente: pi-
obstrução total, a manipulação da criança deve lhas tipo disco impactadas no esófago, obstrução
CAPÍTULO 38. ACIDENTES E INTOXICAÇÕES 249
realizada mesmo que não haja lesões • proteção de piscinas e outros planos de
orais. água construídos em edifícios residen-
7.A intoxicação aguda pode ser uma forma ciais, estabelecimentos educativos e es-
de apresentação de maus tratos, sobre- paços de lazer.
tudo em crianças com idades não com- • alterações nas construções de forma a
preendidas entre um e os cinco anos, evitar quedas de janelas de edifícios com
quando são mais frequentes as intoxi- mais de um andar (i.e. guardas ou limi-
cações acidentais. tadores de abertura).
• obrigatoriedade de embalagens de me-
38.2.3 Prevenção dicamentos com abertura resistente às
crianças.
A prevenção de acidentes é a medida mais • embalagens de produtos de utilização do-
determinante para a redução da mortalidade em méstica com abertura resistente às crianças.
idade pediátrica, em Portugal. • os cuidados no acondicionamento e ar-
Entre múltiplas medidas preventivas, de rumação de produtos de utilização do-
grande impacto, destacam-se: méstica.
• divulgação de informação e recomen-
• uso correto e sistemático de sistemas de dações de segurança sobre o risco de
retenção para crianças nos automóveis. asfixia com alimentos, balões, sacos de
• utilização do cinto de segurança. plástico, bolsas de transporte, fios de
• utilização correta e sistemática de capa- estores/cortinas e cordões da roupa.
cete pelas crianças e adolescentes. • divulgação, junto dos jovens, dos riscos
• redução da velocidade junto de estabele- do consumo de substâncias psicoativas.
cimentos educativos e zonas residenciais.
Capítulo 39.
Criança maltratada
39
Jeni Canha
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_39
CAPÍTULO 39. CRIANÇA MALTRATADA 257
responsáveis pela perturbação da relação entre o Núcleo Hospitalar de Apoio à Criança e Jovem
pais e filhos e pela transmissão do mau trato às em Risco, criado em 1985.
gerações seguintes.
Trata-se, portanto, de uma patologia que 39.2 DESCRIÇÃO DO TEMA
deve preocupar não só pela sua frequência mas,
principalmente pela potencial gravidade. 39.2.1 Fisiopatologia
Por todas estas razões, o diagnóstico pre-
coce do mau trato e a sua orientação adequada Na fisiopatologia do mau trato é classica-
tornam-se indispensáveis para evitar a cascata mente considerada uma tríade de fatores de ris-
de acontecimentos mais ou menos previsíveis e co: fatores inerentes aos pais, fatores inerentes
altamente danosos do percurso de vida de uma à criança, associados geralmente a uma situação
criança maltratada. de crise familiar.
A responsabilidade de todos os técnicos que
trabalham com crianças - médicos, enfermeiros, Factores de risco nos pais:
educadores, professores, técnicos de serviço • baixo nível socioeconómico e cultural.
social, psicólogos ou outros - é hoje acrescida. • antecedentes de maus tratos na sua pró-
Ignorar um caso de maus tratos é pôr em cau- pria infância.
sa a vida e o futuro de uma criança e perder a • pais muito jovens (mães adolescentes sem
oportunidade de intervir numa família em crise. apoio ou suporte familiar).
Conhecer os factores favorecedores do apa- • défice intelectual de um ou de ambos os
recimento dos maus tratos, os seus diferentes progenitores.
tipos, as principais manifestações e formas de • personalidade imatura, impulsiva ou
apresentação, a conduta mais adequada e as agressiva.
medidas de prevenção, tornam-se tarefas prio- • hábitos de alcoolismo ou de consumo de
ritárias para compreender esta problemática e drogas.
permitir planear e pôr em prática as estratégias • ausência de hábitos de trabalho.
de apoio e vigilância às crianças e respectivas • mudanças frequentes de parceiros e de
famílias. residência.
• antecedentes de criminalidade.
No Hospital Pediátrico de Coimbra foram
diagnosticadas centenas de crianças vítimas de Factores de risco nas crianças:
maus tratos, a grande maioria das quais nas úl- • crianças pequenas (abaixo dos três anos).
timas duas décadas. Apesar de poder ter existi- • fruto de gravidez de mãe muito jovem,
do um aumento da violência, o maior número solteira ou só.
de diagnósticos deve-se à maior capacidade de • fruto de gravidez não desejada.
identificação dos casos, resultante do trabalho e • separação prolongada da mãe no período
preparação da equipa multidisciplinar que integra pós parto.
CAPÍTULO 39. CRIANÇA MALTRATADA 259
• crianças que não correspondem às ex- Os dois sexos são igualmente atingidos, à
pectativas dos pais. exceção dos casos de abuso sexual, em que con-
• crianças com deficiência, portadoras de tinuam a predominar as vítimas do sexo feminino.
doença crónica ou de défice intelectual. O espetro deste tipo de abuso tem vindo, no
• crianças com alterações de comporta- entanto, a modificar-se, registando-se nos últi-
mento. mos anos um aumento do número de rapazes
• crianças com insucesso escolar. abusados sexualmente.
satisfação sexual de um adulto ou de outra pessoa frequente a associação de vários tipos de agressão
mais velha, geralmente sob coação da força ou da na mesma criança, o que naturalmente agrava as
ameaça. Estão incluídas nesta definição a partici- suas repercussões.
pação da criança em atividades de exibicionismo,
fotografia ou filmes pornográficos, contatos com 39.2.3 Agressor
os órgãos sexuais, penetração anal ou vaginal ou
práticas sexuais aberrantes. Isto significa que uma Na grande maioria dos casos, os maus tratos
criança pode ser abusada sexualmente sem que infantis são provocados dentro da própria família,
apresente lesões físicas, nomeadamente a nível geralmente pelo elemento que cuida da criança,
dos órgãos genitais. a mãe, o pai, o companheiro/a de um dos pro-
genitores ou a ama.
O mau trato psicológico resulta da inca- Os agressores do sexo feminino são os mais
pacidade em proporcionar à criança um ambiente frequentes; os do sexo masculino são os que agri-
de tranquilidade, bem estar emocional e afetivo. dem geralmente com maior violência, provocando
Estão incluídas neste tipo, a ausência de afeto, as as lesões e sequelas mais graves.
recriminações e humilhações verbais frequentes, Mesmo nos casos de abuso sexual, a grande
as situações de grande violência e conflito familiar maioria dos casos é provocada por um dos ele-
que originem um clima de terror e de medo. mentos do agregado familiar, pessoas conhecidas
ou da confiança da criança e da família. Pertencem
O abandono inclui as crianças abandonadas maioritariamente ao sexo masculino.
nas maternidades, hospitais ou outras instituições
ou as crianças fechadas em casa ou deixadas na 39.2.4 Manifestações clínicas
rua, sem providência de alimentação e vigilância.
As manifestações clínicas são muito variadas,
A rejeição deve ser entendida como o não dependendo do tipo do mau trato, não existindo
reconhecimento da criança como elemento da fa- lesões patognomónicas. São consideradas lesões
mília por parte de um ou de ambos os progenitores, sugestivas: as equimoses e hematomas com tem-
associado à ausência de ligação afetiva e emocional. pos de evolução diferente, com diferentes colo-
rações, localizados preferencialmente na face,
O síndrome de Munchausen por pro- pescoço, pavilhões auriculares, tronco e nádegas;
curação, raro, consiste na simulação de sinais e hematoma subdural em lactentes, particularmente
sintomas por um elemento da família, criando se associados à presença de hemorragias reti-
doenças na criança que obrigam a sucessivos nianas.
internamentos e investigações.
Sinais de alarme
Cada um destes tipos de maus tratos pode Devem ser considerados sinais de alarme
ser exercido isoladamente. No entanto, é mais nos primeiros três anos de vida:
CAPÍTULO 39. CRIANÇA MALTRATADA 261
risco. Com o conhecimento dos fatores de risco, A mãe tinha 19 anos, não tinha profissão ou ocu-
é possível a identificação de potenciais crianças pação laboral. O pai, de 20 anos, sem trabalho, era
de risco durante a gravidez, na maternidade e um homem agressivo, conflituoso e havia deserta-
nas consultas de saúde infantil. O maior apoio do do serviço militar. Existiam dúvidas quanto ao
e vigilância à mãe; a implementação de visitas consumo de drogas em ambos. Referência a con-
domiciliárias; o ensino de regras de puericultu- flitos e agressões físicas frequentes entre o casal.
ra; a promoção do aleitamento materno e da A gravidez não foi desejada nem vigiada.
vinculação mãe/filho; o acompanhamento mais O T. nasceu na maternidade do hospital da área de
frequente e regular nas consultas de saúde infantil; residência. Com três semanas de idade foi obser-
o ensino da prevenção de acidentes; a integração vado naquele hospital por apresentar equimoses
da criança em creche ou jardim-de-infância são na face, nas mãos e nas unhas. Aos dois meses
exemplos de medidas a pôr em prática. foi reobservado no hospital local por apresentar
A prevenção secundária consiste em evitar equimoses dispersas pelo corpo, má progressão
a recorrência do mau trato após o diagnóstico, ponderal e ser uma criança muito chorona. A mãe
promovendo o regresso da criança a casa, sem referia que o pai o abanava muito.
riscos. Inclui o tratamento adequado da criança e Dada a gravidade do seu estado, necessi-
a intervenção na família, o apoio e vigilância no tou de internamento na Unidade de Cuidados
domicílio e na comunidade. Deve incluir visitas Intensivos, foi submetido a intervenção neuroci-
domiciliárias de enfermeiras, a intervenção de rúrgica para drenagem de hematoma subdural.
técnicas do serviço social, a colaboração do mé- Os exames realizados revelaram lesões cerebrais
dico de família e a intervenção das autoridades recentes e antigas e hemorragias retinianas.
judiciais quando necessário. À data da alta hospitalar, apresentava hemiparésia
e dificuldades visuais. O prognóstico era reservado
39.2.8 Casos clínicos quanto a problemas de ordem física, intelectual
e cognitiva.
Caso clínico 1
O T. tinha três meses de idade quando Comentários
deu entrada no serviço de urgência do Hospital Esta criança apresentava vários fatores de
Pediátrico em coma, muito pálido e com convul- risco que deveriam ter sido valorizados logo no
sões, segundo os pais após uma queda do sofá, primeiro atendimento - era uma criança fruto de
no dia anterior. Pouco tempo após a chegada ao gravidez não vigiada, pais muito jovens e sem
hospital, fez uma paragem cardio-respiratória pelo autonomia financeira, ambiente familiar violen-
que necessitou de ser reanimado. Tinha fratura to - apresentando lesões cutâneas altamente
de crânio recente com hemorragia subdural e suspeitas. Nesta altura, não foi efetuado qual-
fraturas mais antigas de várias costelas. quer estudo familiar e a criança teve alta sem o
Era o primeiro filho de um casal muito jovem, diagnóstico correto e consequentemente sem a
que pertencia a uma classe social média baixa. orientação adequada. Como resultado dessa falta
264 JENI CANHA
de intervenção, foi sendo submetido a agressões sono, perda do controlo de esfíncteres, dimi-
cada vez mais frequentes e violentas, que justi- nuição do rendimento escolar, isolamento das
ficaram nova ida à urgência com dois meses e outras crianças. Durante a consulta quase não
finalmente aos três meses chega-nos em estado fala, parece muito assustada. É internada para
quase agónico. esclarecimento da situação. Após alguns dias de
Do ponto de vista clínico houve um claro se certificar de que pode confiar em nós, relata
atraso na procura de cuidados médicos, a história minuciosamente o que lhe vinha acontecendo.
que os pais relatavam não era, de modo algum, Era abusada sexualmente pelo pai. Referia-nos
compatível com o tipo de lesões encontradas que isto acontecia havia bastante tempo, mas
(a queda não justificava os achados clínicos) e tinha medo e vergonha de o contar.
apresentava, carateristicamente, lesões recentes A mãe tinha uma atitude muito negligente
(traumatismo craniano com fratura) associadas com a filha e preferiu continuar a viver com o
a outras mais antigas (cerebrais e as fraturas de marido. Não existia nenhuma pessoa de referên-
costelas), o que revelava que esta criança vinha cia a quem pudéssemos recorrer nesta situação.
sendo vítima de uma enorme violência havia muito A V. foi internada numa instituição.
tempo, pelo menos desde as três semanas de vida.
A equipa hospitalar conseguiu a interven- Comentários
ção de uma pessoa de referência, uma tia-avó, Qualquer tipo de mau trato, e em particular
madrinha da mãe, que corajosamente assumiu a o abuso sexual, pode manifestar-se por sintomas
responsabilidade da educação e vigilância do T., ou sinais indiretos, como sejam as alterações de
consciente da gravidade da situação, da reserva comportamento, diminuição do aproveitamento
quanto ao prognóstico, nomeadamente as prová- escolar, perda de competências já adquiridas, sen-
veis sequelas neurológicas a curto e longo prazo. do muitas vezes chamativo o ar de sofrimento
A tutela foi-lhe atribuída judicialmente. destas crianças.
Esta criança e respetiva pessoa de referên- Neste caso, como na maioria dos abusos
cia foram regularmente acompanhadas na nossa sexuais, o diagnóstico só foi revelado tardiamente,
consulta. Precisou de cuidados e apoio da fisiatria, o agressor era um elemento da família que exercia
de terapia da fala, de oftalmologia, entre muitos o abuso sob a ação de ameaça.
outros, que foram escrupulosamente cumpridos.
Das suas sequelas só são aparentes as visuais, Caso clínico 3
corrigidas com as lentes adequadas. Foi integrado O J., de dois anos de idade, foi trazido pelo
normalmente em infantário, na escola e concluiu INEM ao Serviço de Urgência do Hospital Pediátrico
um curso técnico profissional. por quase afogamento. Tinha sido encontrado pela
avó, a boiar, roxo, como morto, num tanque de
Caso clínico 2 rega. Necessitou de ser reanimado.
A V., de oito anos de idade, consulta por É o 3º filho de um casal jovem. O pai, de 29
alterações do comportamento, perturbações do anos, era trabalhador assíduo e competente da
CAPÍTULO 39. CRIANÇA MALTRATADA 265
construção civil, a mãe, de 24 anos, era operária com uma rede alta, de malha fina, e após diligên-
fabril. Viviam numa quinta isolada da povoação, cias da Técnica de serviço social para integrar as
juntamente com os avós, tios e várias crianças crianças em infantário, assegurando deste modo
entre os 1 e os 8 anos. a sua vigilância, enquanto os adultos trabalhavam.
Da história familiar, há a registar o falecimen- As medidas mais eficazes nem sempre necessitam
to, uns anos antes, de uma irmã com 2 anos e de grandes elaborações e atitudes aparentemente
meio, por afogamento e, uma outra, com 7 anos, simples e óbvias podem evitar tragédias.
com sequelas neurológicas e atraso de desenvol-
vimento decorrentes de um quase afogamento Estes são casos reais, diagnosticados e acom-
no mesmo poço. panhados no Hospital Pediátrico de Coimbra.
Os pais e a família mostravam-se sincera- A negligência, ou qualquer outro tipo de
mente pesarosos pela «triste sina» de perderem mau trato, não devem ser casos de polícia, são
os filhos naquele poço. da nossa responsabilidade, enquanto técnicos de
O J. ficou bem, aparentemente sem sequelas. saúde, cujo prognóstico depende da nossa acui-
Apesar de clinicamente bem manteve-se internado dade diagnóstica e de uma orientação adequada.
durante cerca de uma semana. Só lhe foi dada
alta após algumas condições... Leitura complementar
Kempe CH, Silverman FN, Steel BF, Droegemveller W, Silver
Comentários HK. The battered child syndrome. JAMA 1962;181:17-24.
Esta é uma história típica de negligência Canha J. Criança maltratada. O papel de uma pessoa de
profissional, familiar e cultural, que não foi sufi- referência na sua recuperação. Estudo prospectivo de 5
cientemente avaliada pelos técnicos que assistiram anos. Coimbra: Quarteto ed. 2000.
esta família. As crianças andavam «à solta» na Meadow R. ABC of Child Abuse. London: Br Med J 1989.
quinta, sem o mínimo de condições de vigilân- Helfer RE, Kempe RS, eds.The battered child (4thed). The
cia. O 1º acidente, pelo menos, deveria ter sido University of Chicago Press 1987.
o alarme para esta situação de risco – não só o Hobbs CJ, Hanks HGI, Wynne JM. Child Abuse and Neglect: a
risco de afogamento no poço de rega, como o de clinician’s handbook. London: Churchill Livingstone 1993.
acidentes de vária ordem, nomeadamente perigo
de intoxicação com pesticidas.
A negligência é muito frequente, pode matar
e ter consequências graves ao nível do desenvol-
vimento, de sequelas neurológicas, geralmente
decorrentes de acidentes. Esta família é o exemplo
dramático do que pode acontecer por negligência
familiar e profissional.
Esta criança só teve alta do Hospital
Pediátrico depois do pai ter protegido o poço
Capítulo 40.
Fenómenos paroxísticos,
crises epiléticas e epilepsias
40
Cristina Pereira
e Conceição Robalo
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_40
CAPÍTULO 40. FENÓMENOS PAROXÍSTICOS, CRISES EPILÉTICAS E EPILEPSIAS 269
incluindo problemas cognitivos, problemas do e neuroimagem cerebral alterada. Não são fatores
comportamento, depressão, suicídio, e também consistentes preditivos de recorrência a existência
morte súbita. Não há absolutamente nenhum de antecedentes pessoais de convulsões febris,
fundamento para voltar a estigmatizar a epilepsia, antecedentes familiares de epilepsia, défices neu-
mas há todas as razões para se certificar de que rológicos pós-críticos nem estado de mal convul-
médicos, doentes, familiares, bem como educa- sivo inaugural.
dores e outros estão adequadamente prepara-
dos para reconhecer e tratar adequadamente tais 40.2.1.1. Atitude perante a primeira
dificuldades de adaptação social à medida que crise epilética
surgem. A abordagem da criança com a primeira
CE começa pelo “ABC”: A – manter a via aérea
permeável; B – manter ventilação - administrar
40.2 DESCRIÇÃO DO TEMA oxigénio e C- avaliar a função cardiocirculatória.
Ao mesmo tempo deve ser avaliada a tempe-
40.2.1. A primeira crise epilética ratura (exclusão de convulsão febril), a glicémia
(para exclusão de convulsões provocadas por hi-
Quatro a 10% das crianças vão ter uma CE poglicémia), contextualizar a crise (questionar os
até aos 16 anos. Uma crise (convulsiva ou não familiares sobre as circunstância em que ocorreu)
convulsiva) pode ocorrer como consequência e exame neurológico dirigido (postura, pele no-
de um fator precipitante como a febre, infeção meadamente exantemas e soluções de continui-
do sistema nervoso central (SNC), hipoglicémia, dade, pupilas e parésias).
distúrbios hidroeletrolíticos, traumatismo crânio- O passo seguinte é interromper a crise ad-
-encefálico (TCE), acidente vascular cerebral (AVC), ministrando uma benzodiazepina. Atualmente a
tumores do SNC, exposição a tóxicos, privação de primeira escolha recai sobre o midazolam, por
drogas, entre outras. Excluídos os fatores precipi- via intrabucal, na dose de 0,4 mg/kg/toma,
tantes diz-se que estamos perante uma crise não que pode ser repetido se a crise não ceder após
provocada. Recorrência define-se pela ocorrência cinco minutos. Nas crianças pequenas pode ser
de nova crise que surge mais de 24 horas após a administrado o diazepam retal na posologia de
primeira. O risco de recorrência após a primeira 0.5 mg/kg/toma. Enquanto isso devem obter-se
crise não provocada é de 30%. As recorrências duas vias endovenosas para eventual administra-
surgem em 97% dos casos com uma mediana ção de fármacos e colheitas séricas. As análises
de cinco meses (três meses a cinco anos) após a solicitadas devem incluir hemograma, gasometria,
primeira crise não provocada. ionograma completo, ureia, creatinina, transa-
Os fatores preditivos de recorrência conhe- minases, doseamento de antiepiléticos (crianças
cidos são: crise focal, défice intelectual ou atraso previamente medicadas), pesquisa de tóxicos,
do desenvolvimento psicomotor grave, eletroen- culturas/serologias, lactato e amónia (suspeita
cefalograma (EEG) com anomalias epileptiformes de doença metabólica). Deve ser realizada punção
CAPÍTULO 40. FENÓMENOS PAROXÍSTICOS, CRISES EPILÉTICAS E EPILEPSIAS 271
EIXO 1 Descrição detalhada das crises. sempre de ser considerados após a colheita da
EIXO 2 Definir o tipo de crise pela história clínica e da observação.
classificação da ILAE. O EEG ou Vídeo EEG é considerado o exame
EIXO 3 Definir o tipo de síndrome (metade auxiliar de diagnóstico mais importante para a ca-
ocorrem até à idade escolar). raterização e diagnóstico diferencial de FP epiléti-
EIXO 4 Definir o diagnóstico etiológico cos e FP não epiléticos. Nas crianças os FP quando
do síndrome (genético, acontecem, apresentam geralmente uma grande
metabólico, estrutural). frequência pelo que mais facilmente podem ser
EIXO 5 Definição de incapacidade (opcional). gravados durante o Vídeo-EEG. Em crianças, que
adormecem facilmente no laboratório, o EEG po-
derá apresentar melhor sensibilidade se incluir um
Quadro 1. Esquema diagnóstico para pessoas com crises período de vigília e um período de sono atingindo
epiléticas e com epilepsia – ILAE.
então uma sensibilidade de 80%. A repetição de
um EEG de vigília e sono eleva a sensibilidade no
diagnóstico de epilepsia para 92%. Resumindo:
as patologias que as causam. Só assim se pode- o EEG ou Vídeo EEG serve para distinguir entre
rá avançar para um tratamento adequado, mais episódios clínicos como crises epiléticas ou FP não
eficaz e um prognóstico definido. epiléticos, para ajudar a definir o tipo de crise e
A avaliação clínica é frequentemente sufi- de síndrome epilético e serve para corroborar o
ciente para estabelecer uma hipótese diagnóstica diagnóstico de epilepsia sugerido pela clínica,
correta, com base: na descrição dos episódios, na mas raramente para o excluir.
identificação dos possíveis fatores precipitantes,
na distribuição circadiana dos episódios, no cuida- 40.2.2.3 Classificação de crises epiléticas
doso exame clínico, que no caso das crianças tem Do ponto de vista clínico é muito importante
sempre de ser acompanhado de uma avaliação que os técnicos utilizem uma terminologia unifor-
do neurodesenvolvimento. É muito importante me que permita a comunicação, a investigação e
determinar se existe história familiar de epilepsia a compreensão destes fenómenos. Nasceu assim
nos familiares diretos. a necessidade de classificar crises. Podem classi-
Noutros casos a avaliação clínica é insufi- ficar-se crises de acordo com a localização da
ciente. O uso de “vídeo caseiro” pode ser muito descarga neuronal, as manifestações clínicas,
útil na avaliação inicial destas crianças com FP. a etiologia, a idade de início, e as manifesta-
Não devemos esquecer que a primeira crise é ções eletroencefalográficas. Esta categorização
frequentemente uma forma de apresentação de é essencial para estudos epidemiológicos, ensaios
outras patologias: infeciosas, metabólicas, tóxicas terapêuticos, e para a investigação biológica da
e também patologias estruturais do SNC; pelo epilepsia. Em 1981 surge a Classificação das CE
que estudos bioquímicos, plasmáticos e do LCR, da ILAE, que tem vindo a ser revista, datando
metabólicos, toxicológicos e imagiológicos terão de 2010 a última revisão (figura 1), em que a
CAPÍTULO 40. FENÓMENOS PAROXÍSTICOS, CRISES EPILÉTICAS E EPILEPSIAS 273
divisão fundamental continua a ser entre crises a Epilepsia Benigna com Pontas Centrotemporais
focais e generalizadas, tendo em vista a origem/ (BECTS), a Epilepsia de Ausências Infantis (EAI) e
localização da descarga neuronal. a Epilepsia Mioclónica Juvenil (EMJ).
Figura 2. Classificação dos síndromes eletroclínicos e outras epilepsias proposta pela ILAE, 2010.
Legenda: *Esta organização dos síndromes não reflete a etiologia; Não tradicionalmente diagnosticados como epilepsia;
**Formas de epilepsia sem critérios específicos para síndromes.
(inferior a 15 minutos), sem défice neurológico 30 minutos, ou uma série de curtas convulsões,
pós-crítico, e se não se repetirem nas 24 horas sem recuperação da consciência entre as mesmas.
seguintes. As CF são complexas se tiverem uma CF devem ser distinguidas das «crises com febre».
duração mais longa (superior a 15 minutos), ca- Estas últimas incluem qualquer convulsão, em
racterísticas focais ou se se repetirem dentro de qualquer criança, com febre de qualquer etiolo-
24 horas (várias convulsões). Status febril, pode gia. Consequentemente, crianças com meningite
ser uma crise única de longa duração, superior a ou encefalite, não têm CF, mas têm “crises com
CAPÍTULO 40. FENÓMENOS PAROXÍSTICOS, CRISES EPILÉTICAS E EPILEPSIAS 275
febre”. Entre os quatro meses e cinco anos de endovenosa. São usadas para controlar rapidamente
idade, 2% a 4% de todas as crianças terão pelo as CF que não cessam espontaneamente, como no
menos uma CF, geralmente breve. Estas crises tratamento das crises epiléticas apiréticas. Não está
aterrorizam os pais, mas não estão associadas a documentado que tratamento antipirético durante
danos cerebrais nas crianças. Em 40% das crianças as doenças febris, reduza a taxa de recorrência das
com a primeira CF regista-se CF recorrentes, mas CF. Os antipiréticos devem ser administrados para
a epilepsia desenvolve-se apenas em 2% a 4% o conforto da criança febril, mas não como medida
delas. A história familiar de CF e a idade de início para reduzir a taxa de recorrência de CF.
inferior a um ano são considerados os únicos fato-
res de risco significativos para o desenvolvimento 40.2.3.2 Síndrome de West (SW)
de epilepsia nestas crianças. A associação de “espasmos infantis e regres-
No diagnóstico diferencial das CF a questão são do desenvolvimento” foi descrita em 1841
mais importante é excluir uma infeção do SNC. pelo Dr. West ao observar os espasmos no seu
Os sinais de irritação meníngea podem ser difíceis próprio filho. Em 1950 Gibbs e Gibbs descreveram
de avaliar numa criança pequena. Justifica-se um a tríade: espasmos infantis, hipsarritmia (padrão
exame neurológico completo e se houver suspeita eletroencefalográfico caraterístico-traçado caótico,
clínica de infeção do SNC, a punção lombar deve não rítmico, assíncrono, desorganizado, com ativi-
ser realizada. No caso de CF simples não há neces- dade caraterizada por ondas lentas de alta volta-
sidade de efetuar EEG. O EEG será de considerar gem, de associação variável com pontas difusas ou
em crianças com CF complexas, prolongadas em multifocais) e atraso e/ou regressão nas aquisições
que se possa suspeitar de outro síndrome epilético do desenvolvimento psicomotor. Atualmente, a
como o síndrome de Dravet. Este síndrome associa ILAE classifica os espasmos como crises epiléticas
crises polimórficas, inicialmente CF, depois CF “de causa desconhecida”, por não apresentarem
clónicas precoces, mioclonias, ausências e crises evidência clara de serem ou focais ou generalizadas
focais complexas com deterioração neurocogniti- e o Síndrome de West como um síndrome epilé-
va. Está associado a mutações no gene - Sodium tico do lactente em que a grave desorganização
Voltage-Gated Channel Alpha Subunit 1 - SCN1A. epileptiforme do funcionamento cerebral causa
Sobre o tratamento das CF considera-se o progressiva regressão do neurodesenvolvimento.
tratamento agudo da convulsão e o tratamento O SW apresenta uma incidência de 3 a 4,5/10.000
antipirético. A profilaxia de rotina tornou-se me- nados-vivos. Setenta por cento dos casos apresenta
nos popular por causa das preocupações com os etiologias bem definidas: doença vascular perina-
efeitos colaterais dos medicamentos usados, espe- tal e encefalopatia hipóxico-isquémica, anoma-
cialmente do fenobarbital e da falta de qualquer lias congénitas cerebrais, doenças neurocutâneas
benefício comprovado na recorrência de novas CF e (complexo esclerose tuberosa), displasias corticais,
no desenvolvimento de epilepsia posterior. No tra- cromossomopatias, infeções congénitas ou adqui-
tamento agudo das CF utilizam-se benzodiazepinas, ridas, disfunções metabólicas e doenças mitocon-
diazepam e midazolam, por via retal, intrabucal e driais de entre outras. Clinicamente carateriza-se
276 CRISTINA PEREIRA E CONCEIÇÃO ROBALO
por início entre os três e os 12 meses de idade e benigna com pontas centrotemporais (BECTS) é a
predomínio no sexo masculino. Os espasmos são epilepsia focal mais comum na infância, represen-
contrações súbitas, breves da musculatura axial e tando 8 a 20% das epilepsias em idade pediátrica.
dos membros. Aparecem em clusters, em flexão, De etiologia genética, ocorre em crianças com
em extensão ou mistos. Podem ser simétricos ou desenvolvimento e exame neurológico normais.
assimétricos, por vezes associados a outro tipo de Inicia-se entre os sete e os dez anos de idade,
crises. Acompanham-se de grande irritabilidade e com um ligeiro predomínio no sexo masculino.
desconforto do bebé, que frequentemente deixa Clinicamente carateriza-se por crises com início no
de fazer contacto visual e de sorrir. O EEG tem sono em que ocorrem sintomas sensoriomotores
um padrão específico quer nas crises, quer entre faciais unilaterais (clonias da região peribucal ou
crises – padrão hipsarrítmico, pelo que o diagnós- da hemiface), manifestações orofaringolaríngeas
tico de certeza não é difícil. A sua suspeita implica (parestesias da língua, ruídos laríngeos), impossi-
a imediata referenciação a uma consulta de epi- bilidade de articulação de palavras e hipersaliva-
lepsia - neuropediatria num centro de referência. ção. A consciência encontra-se preservada mas
O protocolo de investigação e terapêutica, dada a em alguns casos as crises podem generalizar.
sua complexidade e importância, para minimizar O EEG é típico, apresentando pontas trifásicas na
graves implicações no neurodesenvolvimento, só região centrotemporal muito sensibilizadas pelo
deverá ser efetuado numa consulta de referên- sono. A ressonância crânio-encefálica (RM-CE)
cia. Neste síndrome todas as opções terapêuticas é normal e não está recomendada a sua realiza-
são de considerar: farmacológicas (antiepiléticos, ção na presença de clínica e EEG característicos.
corticoides), dietéticas (dieta cetogénica), vitamí- As crianças com BECTS só necessitam de tera-
nicas (vitamina B6) e cirúrgicas. Mesmo assim o pêutica antiepilética, se as crises forem diurnas,
prognóstico do SW, nos casos ”sintomáticos”, será frequentes e se em termos sociofamiliares se ma-
sempre o prognóstico da entidade patológica res- nifestarem de forma disruptiva. O prognóstico
ponsável, geralmente apresentando apenas 5 a das crises é bom com remissão habitualmente
12% de casos com desenvolvimento psicomotor pelos 13 anos, mas 30% das crianças apresen-
normal. Nos casos idiopáticos ou criptogénicos, ta dificuldades escolares. Existem com menor
15 a 30% atingem desenvolvimento psicomotor frequência outras epilepsias benignas focais na
normal. São fatores de bom prognóstico o desen- infância, nomeadamente a epilepsia occipital pre-
volvimento normal antes do aparecimento do SW, coce (síndrome de Panayiotopoulos) e a epilepsia
a simetria dos espasmos e a manutenção em EEG occipital de início tardio (tipo Gastaut).
de um padrão de sono adequado.
40.2.3.4 Epilepsia de ausência da infância
40.2.3.3 Epilepsia benigna A epilepsia de ausência da infância é uma
com pontas centrotemporais epilepsia generalizada que se inicia pelos cin-
A epilepsia benigna da infância ou rolândica, co a sete anos de idade, com predomínio no
designada na nova classificação como epilepsia sexo feminino. De etiologia genética, merece
CAPÍTULO 40. FENÓMENOS PAROXÍSTICOS, CRISES EPILÉTICAS E EPILEPSIAS 277
reconhecimento precoce para o controlo das crises necessidade de terapêutica antiepilética a longo
e minimizar compromissos do rendimento escolar. prazo ocorrendo recidiva em 80% dos jovens após
As crises, inúmeras ao dia (dezenas), caraterizam- suspensão do tratamento.
-se por uma alteração/perda de consciência de
início e fim abruptos com duração de quatro a 40.2.4 Orientações gerais
vinte segundos, em que a criança não responde
e modifica a sua atividade. Podem ocorrer mio- Existem recomendações para a investi-
clonias palpebrais (pestanejo) ou automatismos gação e tratamento da epilepsia em idades
associados (oromandibulares, extensão da cabe- pediátrica. As normas do National Institute
ça). O EEG apresenta um padrão típico: descargas for Health and Care Excellence (NICE) reco-
generalizadas de ponta-onda a 3 Hz, sensibilizadas mendam que todas as crianças e jovens que
pela prova de hiperpneia. É uma epilepsia que tiveram uma primeira crise apirética devam
necessita sempre de tratamento antiepilético. ser consultadas o mais rapidamente possível
O valproato de sódio em monoterapia ou a sua por um Pediatra com conhecimentos na área
associação com a etossuximida controlam as crises de epilepsia, para assegurar um diagnóstico
em 80% das crianças. O prognóstico é bom com precoce e preciso e início da terapia de acordo
remissão habitualmente pelos 12 anos de idade. com as suas necessidades.
Epilepsias que se iniciem em crianças até
40.2.3.5 Epilepsia mioclónica juvenil (EMJ) ao início da idade escolar, que não tenham diag-
A EMJ é uma epilepsia generalizada idiopáti- nóstico sindrómico específico, ou não tenham
ca que se inicia pelos 14 a 15 anos, e é de etiologia as suas crises controladas, ou revelem alteração
genética. Cursa inicialmente com mioclonias (em do seu exame neurológico, ou que apresentem
100% dos casos) de predomínio ao despertar e lesão identificada em estudo imagiológico de-
dos membros superiores e mais tarde surgem verão ser referenciadas a Centros Especializados
crises tónico-clónico generalizadas (em 90% dos de Epilepsia.
casos). Podem ocorrer ausências em 30% dos Deverá efetuar-se estudo imagiológico
jovens. São fatores precipitantes reconhecidos das sempre que a epilepsia tenha início antes dos
crises a privação de sono, o consumo de álcool, dois anos, sempre que haja crises focais (exceto
a fadiga e os estímulos luminosos. O desenvolvi- na BECTS) e sempre que a epilepsia se revele
mento neurocognitivo, o exame neurológico e a fármaco-resistente.
neuroimagem são normais. O EEG típico apresenta Deverão também referenciar-se crianças e
ponta-onda e/ou poliponta-onda irregular gene- jovens para uma consulta de epilepsia quando o
ralizada a 4 a 6 Hz e fotossensibilidade num terço diagnóstico de epilepsia não é seguro, quando
dos casos. Habitualmente ocorre normalização do não se obtém rapidamente o controlo das crises,
EEG após terapêutica e compliance adequadas. O quando há outras alterações neurológicas asso-
prognóstico sob antiepilético é bom, com contro- ciadas ou quando surgem complicações com o
lo das crises e normalização do EEG. Verifica-se tratamento.
278 CRISTINA PEREIRA E CONCEIÇÃO ROBALO
41
António Pires
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_41
CAPÍTULO 41. DOENÇAS CARDÍACAS MAIS COMUNS 285
congénitas mais complexas (30 a 50%), e é mais percutâneo do defeito. O encerramento cirúrgi-
frequente no sexo feminino (2:1). co é reservado para as comunicações de maiores
dimensões.
Tipos • Não está indicada a profilaxia da endo-
As formas mais comuns são o tipo ostium cardite bacteriana.
secundum (50%); o tipo ostium primum (30%), • Não existem contra-indicações à prática
componente habitual de uma outra cardiopatia, do desporto, mesmo após a correção
o defeito do septo aurículo-ventricular, frequen- percutânea/ cirúrgica.
te nas crianças com trissomia 21; e o tipo sinus
venosus (10%), que habitualmente se associa aos 41.2.1.1.2 Comunicação Interventricular
retornos venosos pulmonares anómalos. Incidência
Cardiopatia congénita mais frequente (15 a
Fisiopatologia 20%), excluindo a associação com outras cardio-
Devido à comunicação entre as aurículas ocor- patias mais complexas. A incidência é semelhante
re um “shunt” da aurícula esquerda (por maior entre géneros.
pressão dentro desta cavidade) para a aurícula di-
reita, condicionando uma sobrecarga de volume nas Tipos
cavidades direitas do coração e da vasculatura pul- Perimembranosa (70%) e muscular. A CIV
monar com subsequente dilatação destas estruturas. de câmara de entrada, à semelhança da CIA tipo
ostium primum, relaciona-se com os defeitos do
Clínica septo aurículo-ventriculares.
O aumento do fluxo de sangue através das
válvulas tricúspide e pulmonar resulta nas seguin- Fisiopatologia
tes alterações: desdobramento fixo do segundo Quanto maiores as dimensões da comunica-
tom cardíaco (S2) (normalmente durante a inspi- ção, maior o “shunt” interventricular e, consequen-
ração existe desdobramento do S2, mas na CIA temente maior o fluxo de sangue para a vasculatura
deixa de haver esse desdobramento) e um sopro pulmonar. Este aumento do fluxo pulmonar tam-
sistólico de ejeção. É raro o quadro de insuficiência bém depende da resistência vascular pulmonar e,
cardíaca congestiva. quanto menor, maior também o “shunt” pulmonar.
O aumento do fluxo sanguíneo resulta na sobrecar-
Tratamento ga de volume nas cavidades cardíacas esquerdas
Depende das dimensões da comunicação e e na dilatação destas. Esta sobrecarga de volume
resultante impacto hemodinâmico. As CIAs pe- resulta no aumento na pressão nas cavidades es-
quenas (inferiores a três mm) praticamente todas querdas e se mantida, em edema pulmonar.
encerram espontaneamente.
Se houver indicação para encerramen- Clínica – o sinal clínico mais evidente é o
to, atualmente preconiza-se o encerramento sopro holosistólico, pois o “shunt” interventricular
CAPÍTULO 41. DOENÇAS CARDÍACAS MAIS COMUNS 287
Devem-se instituir medidas gerais tais como qual resulta uma lesão do miocárdio e por fim
evitar o consumo de fármacos que prolonguem o a miocardiopatia dilatada. Esta última fase cor-
intervalo QT e atividades físicas intensas. responde habitualmente à fase clínica, sendo as
Todos os doentes com SQTL devem ser me- duas primeiras fases consideradas assintomáticas.
dicados com beta-bloqueantes. Estes reduzem
a incidência de morte súbita de 50% para 5%. Clínica
Nos doentes de alto risco (i.e. sobreviven- As manifestações clínicas são variáveis.
tes de paragem cardíaca) deve-se considerar a As crianças assintomáticas (provavelmente apenas
implantação de um cardiodesfibrilhador implan- com alterações inespecíficas no eletrocardiogra-
tável. ma) ou aquelas com insuficiência cardíaca mas
com função contrátil preservada evoluem favo-
• A prática de desporto está contra-indicada. ravelmente. O mesmo não acontece nas crianças
com miocardiopatia dilatada, em que apenas 25%
41.2.3 Cardiopatias adquiridas recupera totalmente.
Fisiopatologia Tratamento
A miocardite é uma doença trifásica: dá-se Na fase aguda da doença, um doente com
inicialmente a invasão direta do miocárdio pelo descompensação cardíaca por disfunção contrátil
vírus, seguido de uma resposta auto-imune do pode necessitar da administração de inotrópicos
294 ANTÓNIO PIRES
vasodilatadores e de terapêutica anti-congestiva. iii) alterações a nível das mãos e pés (edema,
Posteriormente, os diuréticos, os inibidores da rubor, descamação);
enzima de conversão da angiotensina e os beta- iv) exantema polimorfo; e
-bloqueantes constituem a terapêutica de base v) linfadenopatia cervical (diâmetro > 1,5cm).
desta patologia.
Trata-se de uma doença trifásica, com a
41.2.3.2 Doença de Kawasaki seguinte evolução:
A doença de Kawasaki (ver lição de exan- • fase aguda: dura cerca de uma a duas
temas) é uma vasculite sistémica de etiologia semanas e coincide com o aparecimento
desconhecida, atingindo principalmente as pe- dos sinais clínicos. Nesta fase normalmen-
quenas e médias artérias, em particular, as arté- te não se observam aneurismas coroná-
rias coronárias e condicionando a formação de rios.
aneurismas coronários (25% em doentes não • fase sub-aguda: dura entre duas a qua-
medicados). tro semanas. Observa-se a resolução dos
É, atualmente, a principal causa de cardio- sinais clínicos constatados anteriormente
patia adquirida em países desenvolvidos. e surgem a descamação dos dedos, a
trombocitose e os aneurismas coronários.
Incidência É nesta fase que há maior risco de morte.
Afeta 3,4 a 100/100.000 crianças, com um • fase de convalescença: sete a oito se-
predomínio no sexo masculino (1,5:1). Ocorre es- manas após o início do quadro clínico
sencialmente em crianças abaixo dos cinco anos e coincide com a normalização dos bio-
de idade, com uma média de dois anos. A taxa de marcadores inflamatórios (velocidade de
mortalidade pode atingir os 2%, particularmente sedimentação e proteína C reativa).
em crianças com menos de dois anos.
Face à alta probabilidade de envolvimento
Diagnóstico e clínica cardíaco, que não se limita apenas ao risco de
Os critérios propostos pela American Heart aneurismas coronários, todos os doentes devem
Association para o diagnóstico da doença de realizar uma ecocardiografia na altura do diag-
Kawasaki são: nóstico da doença, à segunda semana de doença
(coincide com o aparecimento dos aneurismas)
febre elevada com pelo menos cinco dias e entre a sexta e a oitava semana de doença
de evolução, e quatro dos cinco sinais (controlo dos aneurismas e, particularmente da
clínicos: resposta à terapêutica instituída).
Tratamento
Na doença de Kawasaki o principal objetivo
do tratamento é reduzir a incidência da doen-
ça coronária. A estratégia terapêutica inclui a
administração de imunoglobulina (que reduz a
incidência de aneurismas para 5%) que deve ser
administrada idealmente nos primeiros dez dias
da doença e o ácido acetilsalicílico em doses anti-
-inflamatórias. Após a fase aguda, o ácido acetil-
salicílico é reduzido para doses anti-agregantes
plaquetárias até à normalização da velocidade de
sedimentação e do valor de plaquetas, desde que
não haja evidência de envolvimento coronário.
Leitura complementar
Park; Myung. Park’s Pediatric Cardiology for Practitioners,
6th Edition. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2014. Print
Capítulo 42.
Introdução às doenças hereditárias
do metabolismo
42
Luísa Diogo
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_42
CAPÍTULO 42. INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS HEREDITÁRIAS DO METABOLISMO 299
O metabolismo é o conjunto de reações in- Nos anos 90, Saudubray estabeleceu uma
tracelulares, catabólicas (oxidativas, produtoras de classificação das DHM que permite a sua abor-
energia - adenosina trifosfato - ATP) ou anabólicas dagem clínica compreensiva:
(de síntese, redutoras, consumidoras de ATP). Doenças afetando predominantemente
O conceito de erro inato do metabolismo um órgão/sistema, de diagnóstico mais “sim-
surgiu em 1908 (Archibal Garrod), estabelecendo ples” (i.e. osteogénese imperfeita).
a noção de bloqueio de via metabólica, quatro Doenças numa via metabólica comum
décadas antes de se identificar o primeiro défice a vários órgãos ou localizadas a um órgão e
enzimático. causando manifestações sistémicas.
As doenças hereditárias do metabolismo Abrangem três subgrupos fisiopatológicos:
(DHM) são doenças monogénicas, classicamente intoxicação, défices energéticos e alteração do
associadas a um défice enzimático. No entanto, a metabolismo de moléculas complexas.
proteína em falta/ anormal, que está na origem
do fenótipo (bioquímico/clínico), pode ter outras DHM tipo intoxicação:
funções na célula (i.e. transportador/ recetor de Incluem as do catabolismo de aminoácidos,
membrana). Excecionalmente, a mutação causal a galactosémia e a frutosémia. A acumulação de
leva a ganho de função da proteína, o que é tóxicos proximal ao bloqueio enzimático causa
igualmente deletério. uma intoxicação aguda e/ou crónica, progressiva,
traduzida por vómitos, coma precoce, insuficiência
hepática, atraso de desenvolvimento psicomotor/
42.2 DESCRIÇÃO DO TEMA défice intelectual, entre outros. Frequentemente
a sintomatologia depende de situações intercor-
42.2.1 Incidência e prevalência rentes associadas a catabolismo (i.e. infeções,
jejum prolongado, exercício físico intenso) e/ou da
Estão descritas mais de 600 DHM e o seu composição alimentar. Pode haver um “intervalo
número tem aumentado, à medida que o proteo- livre” de sinais e sintomas após o nascimento, de
ma é decifrado. São de um modo geral doenças poucas horas a muitos anos.
individualmente raras, com prevalência inferior a
1/2000 (órfãs). O interesse pelas doenças orfãs DHM tipo défice energético:
tem aumentado nos últimos anos, uma vez que, Nestas doenças predomina o defeito na pro-
estando associadas a risco de vida e/ou invalidez dução/utilização de energia, com envolvimento
crónica, no seu conjunto atingem um número dos principais órgãos produtores e/ou consumi-
significativo de indivíduos, desprotegidos pela dores: fígado, músculo (cardíaco/esquelético) e
raridade e desconhecimento da sua doença (www. cérebro. Miopatia, hipotonia generalizada, mio-
orpha.net/national/PT). cardiopatia, colapso circulatório, morte súbita,
300 LUÍSA DIOGO
tem uma taxa de cobertura de aproximadamente potencialmente graves, “tratáveis”, devem ser
100%. A colheita da amostra de sangue para implementadas as medidas terapêuticas ade-
um cartão próprio (de “Guthrie”, em homena- quadas. No caso de familiares assintomáticos, a
gem ao autor da técnica inicialmente usada no investigação diagnóstica pode ser oferecida aos
rastreio da fenilcetonúria), deve ser realizada de indivíduos de maior idade que o solicitem.
preferência entre os terceiro e sexto dias de vida.
Com o advento da espetrometria de massa em 42.2.4.4 O estabelecimento
tandem, que permite a deteção e quantificação de um diagnóstico de DHM
de aminoácidos e acilcarnitinas, foi disponibiliza- Consiste, tal como nas outras doenças, na
do a partir de 2005 o rastreio de 24 DHM. Estas construção de um puzzle. As peças são muito
incluem algumas das do catabolismo do esqueleto variáveis e incluem sinais e sintomas, história pes-
carbonado de aminoácidos (i.e. fenilcetonúria) e soal e familiar, exames complementares, colheita
das do ciclo da ureia (i.e. citrulinémia) e a maio- de amostras biológicas em situações basais ou
ria dos defeitos da oxidação dos ácidos gordos após provas de sobrecarga, espontâneas (“crises”)
(i.e. ácidos gordos de cadeia média). A lista pode ou provocadas, exames laboratoriais gerais ou
ser consultada em www.diagnosticoprecoce.org. específicos, conhecimento dos valores de refe-
A incidência conjunta das DHM atualmente ras- rência, entre outras. A sua seleção e “encaixe”,
treadas é de 1/2.400. Note-se que o défice de ie o diagnóstico final que orienta a terapêutica
ornitina-carbamiltransferase, o mais frequente dos e o aconselhamento familiar dependem da ex-
defeitos do ciclo da ureia, não é detetado neste periência e perícia do médico responsável e dos
rastreio. Por outro lado, há a possibilidade de meios disponíveis. Tratando-se de doenças raras,
formas “tardias” das doenças incluídas no rastreio são imperativos a centralização dos doentes diag-
não serem detetadas por não apresentarem, nos nosticados/suspeitos, o trabalho “em rede” e a
primeiros dias de vida, alterações dos metabolitos formação específica.
doseados. Assim, perante a suspeita clínica,
deve prosseguir-se a investigação, mesmo 42.2.5 Quando suspeitar de DHM
que o rastreio neonatal tenha sido negativo. e como orientar
défice intelectual ”sindromático”; história pré- acompanhar sempre que possível de espectros-
-natal ”positiva” para restrição de crescimento copia protónica. Esta é importante, por exemplo,
intra-uterino, malformações, fígado gordo agu- no diagnóstico de défices da creatina cerebral.
do da gravidez/ síndrome HELLP (haemolysis, As “análises metabólicas” devem ser orien-
elevated liver enzymes, low platelets) materno tadas pela suspeita clínica, reforçada pelos resul-
na gravidez; história familiar de abortamentos tados dos exames de primeira linha, sem esquecer
espontâneos, mortes inexplicadas em irmãos ou o diagnóstico diferencial. Não existe um “rastreio
outros familiares; consanguinidade (pela maior metabólico” aplicável à generalidade dos casos!
probabilidade de ocorrência de doenças autos- O estudo dos aminoácidos (plasmáticos, uri-
sómicas recessivas). nários e /ou do liquido cefalorraquidiano), das
Como em todas as áreas da Medicina, a his- acilcarnitinas em sangue colhido em cartão, dos
tória clínica bem feita, incluindo uma anamnese ácidos orgânicos e do ácido orótico urinários pode
dirigida e um exame físico completo é a base de ser informativo em casos suspeitos de doenças
qualquer diagnóstico. Aquela deve incluir a histó- tipo “intoxicação” ou “défice energético”.
ria alimentar e possível relação das queixas com Em determinadas circunstâncias, pode ser
períodos de jejum, refeições causais ou ingestão útil estabelecer perfis metabólicos de 24 horas
de determinado tipo de alimentos. De notar que (i.e. ciclo glicémico) ou fazer testes funcionais (i.e.
em certos casos de “intoxicação”, os doentes re- prova de jejum, teste de sobrecarga de glicose/
duzem espontaneamente os alimentos “tóxicos” outro). No entanto, o mais adequado é usar, sem-
(i.e. frutose ou proteínas) e/ou apresentam vómitos pre que possível, as amostras biológicas colhidas
e/ou alterações do estado de consciência após a durante os períodos de crise/descompensação por
sua ingestão, mormente se excessiva. serem as mais informativas e não acarretarem
riscos adicionais para o doente.
42.2.5.2 Exames complementares O rastreio das doenças dos lisossomas passa
Na primeira linha da investigação laboratorial pelo estudo dos glicosaminoglicanos e oligossa-
incluem-se os testes disponíveis em qualquer labo- cáridos urinários e/ou das enzimas leucocitárias
ratório, cujos resultados podem fornecer impor- específicas.
tantes elementos de orientação para investigação A focagem isoelétrica da transferrina permite
mais específica. É o caso da deteção de acido- o rastreio das doenças da glicosilação, já que a
se metabólica com aumento do hiato aniónico. transferina hipoglicosilada apresenta um padrão
Esta, na ausência de uma intoxicação exógena de migração anormal.
ou cetoacidose diabética, traduz acumulação de Em caso de suspeita de doença dos pero-
ácidos orgânicos endógenos, provenientes do ca- xissomas, a determinação da concentração plas-
tabolismo incompleto dos aminoácidos ou dos mática de ácidos gordos de cadeia muito longa
ácidos gordos (acidémia/acidúria orgânica) ou é o teste de primeira linha.
ainda da glicólise anaeróbica. A ressonância mag- O estudo de outros metabolitos específicos,
nética cerebral, quando indicada, deve fazer-se (i.e. ácidos biliares, pterinas, porfirinas, esteróis,
CAPÍTULO 42. INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS HEREDITÁRIAS DO METABOLISMO 305
de entre outros) deve ser do mesmo modo orien- de terapêutica específica. Esta contraria os efeitos
tado pela suspeita clínica. da perturbação metabólica e permite antecipar e
Em muitos doentes pode ser necessário fazer evitar as crises de descompensação, melhorando
investigação em tecidos para além dos leucócitos, o prognóstico vital e funcional. Nestes casos, tal
como fibroblastos da pele, tecido hepático ou como em todas as doenças crónicas, é muito im-
muscular, entre outros. portante a educação dos doentes e suas famílias.
O diagnóstico genético através do rastreio É indispensável que conheçam as características
de mutações em genes pontuais não se consegue principais da doença, os fatores precipitantes e a
num número significativo de doentes, mesmo sintomatologia de descompensação. Devem estar
quando apresentam alterações metabólicas su- capacitados para tomar as medidas de emergên-
gestivas. Muitos laboratórios oferecem atualmente cia no domicílio, antes do recurso aos Serviços
a possibilidade de investigar “painéis de genes” de Urgência Hospitalares, evitando-o em muitas
específicos para determinados grupos de situa- ocasiões. Quando aquele se figure necessário,
ções clínicas (i.e. acidoses lácticas, leucodistrofias), devem estar instruídos para se fazer acompanhar
“exomas de patologia” (rastreio dos genes em dos produtos dietéticos-terapêuticos específicos
que foram identificadas mutações patogénicas) da sua doença (i.e. misturas de aminoácidos),
ou mesmo “exoma completo”. No entanto, a in- eventualmente não disponíveis nos Serviços de
terpretação dos resultados é complexa e requer Urgência.
a contribuição de equipas multidisciplinares, in- A fenilcetonúria (PKU) é o protótipo da
cluindo Geneticistas. DHM por intoxicação proteica tratável. O défice
Em situações de evolução fatal em que per- de fenilalanina-hidroxilase hepática causa eleva-
maneça a suspeita de uma DHM, mesmo que ção da fenilalanina plasmática, aumento do ratio
tenha sido identificado um gérmen patogénico, fenilalanina/tirosina e alteração da neurotrans-
devem ser feitos estudos post mortem segundo missão com atrofia cerebral progressiva, atraso
um protocolo bem estabelecido que garanta a de desenvolvimento psicomotor global/ défice
reserva de amostras biológicas (incluindo tecidos) intelectual, défices motores, epilepsia, alterações
bem conservadas para estudos de metabolitos, do comportamento, entre outros. Ao contrário de
funcionais e genéticos. muitas outras doenças do catabolismo de ami-
noácidos, não se associa a episódios de coma,
42.2.6 Princípios gerais embora se verifique agravamento clínico (even-
do tratamento das DHM tualmente traduzido por agitação/ irritabilidade)
em situações de catabolismo e/ou aumento da
42.2.6.1 Tratamento de manutenção ingestão de fenilalanina. A fenilcetonúria foi a
As DHM tipo “intoxicação” e aquelas por primeira DHM a ser tratada com dieta de restrição
“défice energético com redução da tolerância e é o protótipo de doença rastreável. A intoxica-
ao jejum” (i.e. glicogenose tipo 1, defeitos da ção pela fenilalanina é progressiva e pós-natal (in
oxidação dos ácidos gordos) podem ser objeto útero, o fígado materno compensa o défice). O
306 LUÍSA DIOGO
“intervalo livre” de sintomas, a instalação insidiosa precursora de amónia. Pode ser vantajoso su-
da clínica e a eficácia da intervenção terapêuti- plementar a dieta com mistura de aminoácidos
ca prevenindo os défices neurológicos fazem do essenciais para evitar a sua carência, promotora
rastreio neonatal da PKU um caso de sucesso. de catabolismo proteico. Para além da referida
O tratamento consiste na restrição de fenilalanina, dieta e das medidas de evicção do catabolismo
de modo a manter os níveis plasmáticos dentro (indicadas nas “intoxicações endógenas”), é ne-
de determinados limites. A dieta implementada é cessária a administração regular de “quelantes”
restrita em proteínas naturais e suplementada com da amónia (fenilbutirato/benzoato de sódio) e
misturas de aminoácidos isentas de fenilalanina. de aminoácidos eventualmente deficitários por
Este princípio geral aplica-se às doenças interrupção do ciclo da ureia (arginina/citruli-
do catabolismo do esqueleto carbonado de ami- na), para manter níveis normais de amónia e
noácidos (i.e. leucinose, homocistinúria, acidémia de glutamina.
metilmalónica, entre outras), sendo que as mistu- Em várias DHM o tratamento inclui a ad-
ras de aminoácidos diferem no(s) aminoácido(s), ministração de cofatores enzimáticos, nomea-
tóxicos, ausentes. Em algumas daquelas doenças, damente vitaminas. É o caso dos defeitos do
os metabolitos acumulados, nomeadamente áci- metabolismo das cobalaminas ou dos do trans-
dos orgânicos, são excretados ligados à carnitina portador do ácido fólico, em que a terapêutica
(acilcarnitinas) e/ou à glicina (acilglicinas), pelo passa pela administração intramuscular crónica
que a suplementação destas substâncias pode de hidroxicobalamina ou ácido folínico, respetiva-
estar indicada. mente. Recentemente foi aprovado em Portugal
A tirosinémia tipo 1, hepatorrenal, manifes- o uso da sapropterina (BH4) para o tratamento
ta-se por insuficiência hepática com síndrome de dos fenilcetonúricos com resposta positiva. A BH4
Fanconi, nas primeiras semanas de vida ou raqui- é coenzima da fenilalanina-hidroxilase, atuando
tismo hipofosfatémico, mais tarde. Os doentes igualmente como “estabilizador” da proteína en-
têm o risco de apresentar crises de porfiria e he- zimática. Em muitas outras DHM está indicado
patocarcinoma por acumulação de intermediários fazer prova terapêutica com fatores coenzimáticos
tóxicos, nomeadamente a succinilacetona. Esta (i.e. piridoxina na homocistinúria clássica ou nas
pode ser doseada na urina, contribuindo para o convulsões piridoxino-sensíveis).
diagnóstico. Atualmente a base da terapêutica da Ocasionalmente, o metabolismo das bac-
tirosinémia tipo 1 é o NTBC (Nitisone), inibidor térias intestinais contribui para o agravamento
de uma enzima a montante do défice, que evita da intoxicação endógena, através da produção
a formação da succinilacetona, à custa de um de metabolitos tóxicos, nomeadamente propio-
aumento da tirosinémia (controlável com dieta nato e amónia. A “esterilização intestinal” com
de restrição específica). antibióticos não absorvíveis, numa base regular
Nas doenças do ciclo da ureia, o tratamen- (i.e. acidúrias metilmalónica e propiónica) ou em
to impõe a restrição da ingestão de todas as situações de urgência (i.e. hiperamoniémia), pode
proteínas, de modo a reduzir a carga azotada, ser útil em alguns casos.
CAPÍTULO 42. INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS HEREDITÁRIAS DO METABOLISMO 307
Nas doenças de intoxicação por açúcares ou se doença intercorrente. Embora nos defeitos
(galactosémia e frutosémia), que se manifestam da oxidação dos ácidos gordos possa haver ca-
por doença hepática, com/sem vómitos e hipogli- rência de carnitina livre por excesso de produção
cémia (e cataratas na galactosémia), há reversão de acilcarnitinas, a indicação para suplementação
do quadro clínico com a instituição de dieta de com carnitina é controversa, nomeadamente nos
restrição específica. No entanto, a galactosémia, défices de cadeia longa pelo possível efeito ar-
ao contrário da frutosémia, evolui com neurode- ritmogénico das acilcarnitinas de cadeia longa.
generação lentamente progressiva e insuficiência O tratamento das doenças de moléculas
ovárica, apesar da regressão completa da doença complexas é, de um modo geral, sintomático.
hepática. São exceção, entre outras, algumas doenças de
Nas glicogenoses “hepáticas” é importante acumulação lisossómica, para as quais nos últimos
prevenir a hipoglicémia, através da administração anos surgiu terapêutica de substituição enzimá-
regular de hidratos de carbono complexos (i.e. tica e/ou de redução da produção do substrato.
maltodextrinas ou amido de milho cru), inclusive A primeira, já aprovada para as doenças de Gaucher
durante a noite, de acordo com a tolerância ao tipo 1, de Pompe, de Fabry e mucopolissacaridoses
jejum. Estas medidas são indispensáveis na glico- (tipos I, II, IV e VI) e em fase de ensaio clínico para
genose tipo 1 (défice da glicose-6-fosfatase), que outras, implica a administração intravenosa com
atinge a via comum final da glicogenólise e da periodicidade de uma a duas semanas. A segunda
neoglicogénese e causa hepatomegália volumosa, tem a vantagem de, ao contrário da anterior, ser
hipoglicémia do jejum curto (duas a quatro horas administrada por via oral e atravessar a barreira
nos lactentes), hiperlactacidémia, hipocetose, hi- hematoencefálica, podendo melhorar os sintomas
pertrigliceridémia e hiperuricémia. neurológicos, muito comuns nestes doentes.
A base da terapêutica dos defeitos da oxi-
dação dos ácidos gordos, nomeadamente nos de 42.2.6.2 Tratamento de emergência
cadeia média, é a evicção do jejum prolongado. Alguns tipos de DHM podem evoluir com
Estes são os mais frequentes, atingindo sobre- manifestações agudas, frequentemente amea-
tudo indivíduos de etnia cigana. A prevenção da çadoras da vida, causando a morte ou sequelas
hipoglicémia hipocetótica pode implicar o recurso definitivas. Na maior parte das DHM que cursam
à administração intravenosa de glicose quando com descompensação aguda, o prognóstico vital
a alimentação oral é ineficaz. Nos defeitos da e funcional depende do intervalo de tempo até
oxidação dos ácidos gordos de cadeia longa é ao início do tratamento de emergência específico.
imprescindível a restrição de lípidos alimentares Assim, o episódio inaugural, antes do estabele-
(que são maioritariamente de cadeia longa) e a cimento do diagnóstico, é, de um modo geral, o
suplementação com triglicerídeos de cadeia mé- de pior prognóstico.
dia (MCT) e ácidos gordos essenciais. O reforço A avaliação laboratorial numa doença aguda
calórico deve ser feito com MCT e/ou hidratos de suspeita de DHM deve incluir glicémia, amoniémia,
carbono, nomeadamente antes do exercício físico lactacidémia, cetonémia/cetonúria e gasimetria
308 LUÍSA DIOGO
com cloro, sódio e potássio plasmáticos, para ou a hemodiálise, nomeadamente nas hiperamo-
além do rastreio de sofrimento cardíaco, hepáti- niémias graves.
co, renal e muscular, entre outros. Os resultados
desta investigação inicial devem estar disponíveis 42.2.6.2.2 As DHM com intolerância
em menos de meia hora, permitindo orientar as ao jejum
primeiras etapas do tratamento de emergência. De Incluem as da homeostase da glicose (gli-
acordo com o quadro clínico, deverão ser deter- cogenoses/armazenamento do glicogénio, defei-
minados simultaneamente acilcarnitinas, aminoá- tos da neoglicogénese) e as do catabolismo dos
cidos, ácidos orgânicos (incluindo o orótico), com ácidos gordos e da síntese/degradação dos cor-
resultados disponíveis idealmente em 24 horas. pos cetónicos (cetogénese/cetólise). Os sintomas
Nas hipoglicémias, não devem ser esquecidos os surgem após jejum mais ou menos prolongado
doseamentos hormonais na crise, para rastreio e a hipoglicémia (com/sem hepatomegália) é a
de causas endócrinas (i.e. hiperinsulinismo). principal manifestação. A administração de glicose
endovenosa ao ritmo da produção hepática (7 a
42.2.6.2.1 As DHM tipo “intoxicação” 8 mg/kg/minuto no recém-nascido a 2 a 3mg/
Incluem as do catabolismo de aminoácidos Kg/minuto no adulto) é suficiente para manter a
(ciclo da ureia, aminoacidopatias/acidúrias orgâ- glicémia. Não é necessário “forçar o anabolismo”
nicas), defeitos do catabolismo de ácidos gordos uma vez que não há intoxicação “endógena”,
de cadeia longa e as intoxicações por açúcares devida ao catabolismo, exceto nos defeitos da
exógenos (galactosémia e fructosémia). oxidação dos ácidos gordos de cadeia longa, como
Os tóxicos em causa são a amónia, aminoáci- anteriormente referido.
dos e ácidos orgânicos, acilcarnitinas ou açúcares Nos doentes em que o ritmo de glicose
tóxicos. Os episódios de descompensação podem necessário para corrigir a hipoglicémia é mui-
ser desencadeados pela alimentação (proteínas, to elevado, deve-se pensar em hiperinsulinismo.
lípidos, galactose/frutose) e/ou catabolismo (de- Este faz diagnóstico diferencial com os défices da
gradação de proteínas/ lípidos). oxidação dos ácidos gordos e da cetogénese, na
O tratamento consiste em suspender a in- medida em que causa igualmente hipoglicémia
gestão oral dos precursores tóxicos em todos os hipocetótica.
casos. Reverter o catabolismo das proteínas/lípi- Algumas DHM que comprometem o meta-
dos, promovendo o anabolismo através da admi- bolismo energético muscular (i.e. glicogenoses,
nistração de glicose em doses elevadas (e lípidos défices da oxidação dos ácidos gordos de cadeia
apenas nas doenças do catabolismo proteico com longa,) podem apresentar-se ou evoluir com into-
diagnóstico já estabelecido, estando a sua admi- lerância ao exercício e/ou crises de rabdomiólise.
nistração interdita nos defeitos da oxidação dos Estas podem ser desencadeadas por exercício
ácidos gordos), associada a insulina, se necessário. físico, jejum prolongado, exposição ao frio e/ou
Em certos casos podem ser acionadas medidas de anestesia. Traduzem-se por mialgias generaliza-
desintoxicação mecânica como a hemodiafiltração das, tumefação e rigidez muscular, impotência
CAPÍTULO 42. INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS HEREDITÁRIAS DO METABOLISMO 309
funcional, elevação acentuada da creatina kinase vómito, ataxia e disartria. O quadro regrediu em
(até>100.000UI/L), mioglobinémia com mioglo- menos de 24 horas, com perfusão intravenosa
binúria (urina avermelhada/escura, com pesqui- de cloreto de sódio e glicose. A pesquisa urinária
sa de hemoglobinúria positiva nas tiras-teste). de benzodiazepinas foi negativa. Transferida aos
A situação pode complicar-se por insuficiência cinco anos com suspeita de encefalite por novo
renal aguda e/ou síndrome compartimental. episódio de agitação, auto e hetero-agressão,
O tratamento consiste em fazer hiperhidratação vómitos frequentes, desequilíbrio e disartria.
endovenosa, com reforço da diurese (administrar Apresentava glicémia e alcoolémia normais e
manitol, se necessário) e alcalinização da urina. hipertransaminasémia (AST/ALT-329/547 UI/L).
Melhorou sob perfusão de soro com cloreto
42.2.6.2.3 Nas acidoses lácticas congénitas de sódio e glicose, mas a ataxia manteve-se.
(doenças do catabolismo do piruvato, do No intervalo destas duas intercorrências tivera
ciclo de Krebs e/ou da cadeia respiratória diversos episódios de ataxia, sonolência/insónia
mitocondrial) e alterações do comportamento (discurso incoe-
Há perturbação da via final comum da pro- rente, auto e heteroagressividade), de um a três
dução de energia. O tratamento passa pela corre- dias de duração, habitualmente sem vómitos,
ção da acidose e administração da glicose ao ritmo com anorexia e sem desencadeante óbvio. As
da libertação hepática normal. Doses de glicose alterações de comportamento, mais graves ao
mais elevadas podem agravar a hiperlactacidémia. fim do dia, foram consideradas reativas ao am-
biente familiar, perturbado pelo divórcio dos
42.2.6.3 O transplante de órgãos pais. Havia consanguinidade remota e a história
Poderá ser uma opção terapêutica em algu- de um irmão falecido nos primeiros dias de vida,
mas DHM. Esta pode colocar-se em dois tipos de de causa desconhecida. Sem história de vómitos
cenários: substituição de fígado, rim e/ou coração habituais, mas anorexia seletiva para alimentos
por falência de órgão ou neoplasia maligna (i.e. ricos em proteínas. Constatada hiperamonié-
glicogenose tipo 1, tirosinémia tipo 1, acidémia mia 360-650 umol/l (valor de referencia:11-50),
metilmalónica, algumas doenças mitocondriais) aumento acentuado da glutamina plasmática
ou como fonte da enzima deficitária (fígado em e do ácido orótico urinário. O défice de or-
doenças do catabolismo de aminoácidos, no- nitinatranscabamilase (OTC), doença do ciclo
meadamente do ciclo da ureia; medula óssea em da ureia, foi confirmado por estudo genético.
doenças lisossómicas e algumas mitocondriais). O rastreio neonatal havia sido normal, como
seria de esperar.
42.2.7 Algumas histórias reais
42.2.7.2 “Sépsis neonatal”
42.2.7.1 “Intoxicação” Recém-nascida de termo, primeira filha
Menina saudável até aos quatro anos, quan- de pais consanguíneos em primeiro grau, sob
do foi internada por episódio de sonolência, um aleitamento materno exclusivo, foi admitida no
310 LUÍSA DIOGO
43
Isabel Gonçalves
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_43
CAPÍTULO 43. A CRIANÇA SUBMETIDA A TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS SÓLIDOS 313
taxas elevadas de doação, como por exemplo em otimização na seleção de dadores-recetores e me-
Portugal. Muito controversa continua a ser a sua lhoria na imunossupressão.
indicação no transplante emergente de fígado.
Por razões óbvias é possível efetuar DV em todos 43.2.3 Indicações
os transplantes de órgão sólido à exceção do
transplante cardíaco. Em contraste com os adultos a maioria das
patologias que leva ao transplante em crianças
43.2.2 Procedimento resulta de malformações congénitas, anatómicas
ou funcionais. O momento da decisão de trans-
Tecnicamente todos os órgãos envolvem plante é condicionado por critérios estabelecidos
especificidades próprias mas em comum todos baseados ou não em fórmulas de auxílio à estra-
partilham três passos fundamentais: i) anasto- tificação (i.e. Pediatric End-Stage Liver Disease
moses arteriais; ii) anastomoses venosas, e iii) - PELD). Todos os órgãos partilham como critério
anastomoses de vias de drenagem de fluidos ou major a falência terminal de órgão e /ou a refra-
ar: biliar, ureter, intestino e traqueia, (exceção tariedade às terapêuticas instituídas. Insuficiência
do coração que só tem anastomoses vasculares). aguda só é considerada no fígado e miocárdio e
O fígado tem o transplante mais complexo com é particularmente emergente no transplante he-
tempos de cirurgia, de 6 a 12 horas. A maioria pático. Com efeito o suporte artificial de órgãos
das crianças (80%) recebe fígados de adultos que (diálise, coração de Berlim, Extracorporeal mem-
são geralmente reduzidos para permitir compa- brane oxygenation- ECMO) permite um tempo de
tibilidade anatómica. Nos restantes órgãos o espera em lista alargado que pode ser indefinido
implante é de órgão inteiro implicando dadores no caso do rim. O sistema, Molecular Adsorbent
anatomicamente compatíveis o que aumenta o Recycling System – MARS, ou Bioartificial Liver
tempo em lista de espera. device – BAL, para o fígado não tem a mesma
Os resultados hoje (quadro 2) devem-se a eficácia pelo que na prática são considerados
três fatores fundamentais: curva de aprendizagem “pontes” para a transplantação e não terapias
técnica; microcirurgia nas anastomoses vasculares; substitutivas de função de órgão.
respetivas famílias. A qualidade de vida (QOL) tem matemáticos baseados nas variações de níveis
sido objeto de inúmeras publicações e projetos de imunossupressores ao longo do tempo para
de investigação e engloba áreas diversas como permitir classificar e quantificar o grau de adesão
a adaptação social e escolar, desenvolvimento ou não adesão. Clinicamente é difícil e sobretudo
e crescimento neurocognitivo, comportamento delicado confrontar um doente e / ou a família
individual e familiar, adesão terapêutica, puber- com a falha de cumprimento terapêutico.
dade, contraceção e fertilidade.
De um modo geral (e para os vários tipos A puberdade é tipicamente diferida (um a
de transplante) as crianças e jovens apresentam dois anos) nas crianças transplantadas mas recu-
maiores dificuldades escolares e taxas de insu- perável e sem repercussões futuras se o enxerto
cesso (30 a 40 % em várias séries) e frequentes se mantiver estável. Quando a disfunção de en-
alterações do comportamento e dificuldades na xerto é grave e / ou persistente surgem alterações
interação / integração social. A “desculpabilização hormonais que em conjunto com a medicação
“ dos cuidadores (pais, tutores e mesmo técnicos promovem disfunções pubertárias. Nas raparigas
de saúde) face à gravidade das doenças a que dismenorreia e amenorreia primária ou secundária
foram expostos, é muitas vezes apontada como ocorrem em metade dos casos.
um dos elementos com impacto negativo mais As adolescentes devem ser orientadas para
significativo. No entanto, ao rever a vastíssima uma consulta de ginecologia de adolescentes
literatura sobre este tema, facilmente se percebe de forma idêntica à da população saudável.
que os aspetos neurocognitivos e comportamen- Da mesma forma os métodos usuais indicados na
tais da criança com transplante de órgãos são população saudável podem ser aplicados embora
complexos e que faltam estratégias de intervenção a vigilância de efeitos secundários e a interação
preventiva, individuais e familiares. com os fármacos necessários ao transplante obri-
Quando avaliados por questionários sobre gue a uma abordagem modificada sempre em
qualidade de vida, adaptados à sua condição as articulação com o Centro de Transplante.
crianças e jovens obtêm índices de resposta so-
breponíveis aos seus pares, em nítido contraste Na transição para o hospital de adultos é
com a resposta dos pais ou outros cuidadores fundamental que o relatório operatório (no caso
que é invariavelmente menos positiva. de transplante de órgãos abdominais) seja envia-
A adolescência é definitivamente um pe- do e as jovens são advertidas que o seu obstetra
ríodo complicado no seguimento destes doen- deve ter conhecimento desse mesmo relatório
tes. A maioria sente-se fisicamente bem e como em caso de gravidez.
qualquer adolescente vai tentar testar os seus
limites. O problema mais comum e expectável
é a não adesão terapêutica, outra área que tem
merecido alguma atenção de grupos de investi-
gadores. Desenvolveram mesmo alguns modelos
CAPÍTULO 43. A CRIANÇA SUBMETIDA A TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS SÓLIDOS 319
44
Sónia Lemos
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_44
CAPÍTULO 44. IMUNODEFICIÊNCIAS PRIMÁRIAS – QUANDO SUSPEITAR? 323
Figura 1. Distribuição e frequência das IDP por oito grupos. European Society for Immunodeficiencies registry 2010.
324 SÓNIA LEMOS
Embora haja padrões clínicos mais específi- A grande etapa para o diagnóstico de
cos de cada grupo de IDP, a apresentação clínica uma IDP, não é tanto reconhecer os padrões
é muito variável e ocorre grande sobreposição clínicos caraterísticos de cada grupo, mas an-
entre eles. Por exemplo: infeções de pele, abces- tes, conhecer sinais que devem alertar para a
sos profundos ou adenites por Staphylococcus possibilidade de estarmos na presença de uma
aureus, Serratia marcescens, Burkhoderia cepacia, criança com IDP.
Nocardia sp, Candida e Aspergillus são as apresen- A grande maioria dos pacientes com IDP
tações mais comuns das deficiências de fagócitos. tem infeções graves ou de repetição, contudo
Já as infeções respiratórias altas de repetição por estes não são os únicos sinais que devem sugerir
bactérias capsuladas com início depois dos seis a investigação de IDP.
meses são características do grupo das IDP com
deficiência de anticorpos. Deve suspeitar-se de IDP na criança ou
adolescente que apresente:
As IDP causam grande morbilidade e algu-
mas, como os SCIDs, evoluem inexoravelmente 1. Suscetibilidade a infeções.
para a morte no primeiro ano de vida se não 2. Fenómenos autoimunes.
tratadas rapidamente com transplante de células 3. Reações alérgicas graves.
hematopoiéticas pluripotenciais de medula óssea 4. Reações inflamatórias exageradas.
ou de cordão umbilical. O diagnóstico precoce 5. Neoplasias hematológicas (leucemias e
de IDP é por isso essencial. linfomas).
de leite, associados a infeções, ocorrem em IDP Subbarayan A, Colarusso G, Hughes SM, Gennery AR, Slatter
como na disqueratose congénita, neutropenias, M, Cant AJ, Arkwright PD.Clinical features that iden-
deficiência de NEMO, síndrome de Hiper-IgE, tify children with primary immunodeficiency diseases.
respetivamente. Pediatrics. 2011 May;127(5):810-6.
Lehman H. Skin manifestations of primary immune deficiency.
44.2.4 Exames complementares de diagnóstico Clin Rev Allergy Immunol. 2014 Apr;46(2):112-9.
Szczawinska-Poplonyk A1, Gerreth K, Breborowicz A,
A ausência de sombra tímica na radiogra- Borysewicz-Lewicka M.
fia do tórax é um sinal de alerta para IDP. Os lac- Oral manifestations of primary immune deficiencies in chil-
tentes apresentam timos tipicamente volumosos. dren. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod.
Timos ausentes devem evocar sempre um SCID. 2009 Sep;108(3):e9-20.
Linfopenia (<3000 /ml) no primeiro trimes-
tre de vida, é também um sinal de alerta de IDP
e até prova em contrário um SCID.
Neutropenia (<1500 ml) persistente sugere
neutropenia congénita.
Leucocitose persistente associada a queda
tardia do cordão umbilical é caraterística das de-
ficiências de adesão de leucócitos (LAD).
45
Manuel Brito
e Alexandra Paul
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_45
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 331
representam cerca de metade das neoplasias A distribuição dos tipos de cancro nos jo-
em Pediatria. Os principais tipos de leucemias vens com idades entre os 15 e os 19 anos é
são as linfoblásticas agudas (LLA) - 80%, se- um pouco diferente, sendo o LH (16%) e os tu-
guidas das mieloblásticas agudas (LMA). Nos mores germinativos (12.5%) os mais frequentes,
tumores sólidos e por frequência decrescente constatando-se igualmente também maior in-
após os tumores do SNC, surgem os sarcomas cidência de sarcomas de tecidos moles (6%) e
de tecidos moles, os neuroblastomas (sistema de osteossarcoma (4%). Apesar dos tumores do
nervoso simpático) e o tumor de Wilms (rim). Os SNC representarem também, nesta faixa etária,
linfomas constituem cerca de 15% de todas as o terceiro grupo mais comum (10%), a sua in-
neoplasias na criança e no adolescente, sendo cidência é menor comparativamente com a do
os principais tipos o de Hodgkin (LH) – 45%, outro dos zero aos 14 anos. A LLA é também
o de Burkitt – 30% e os não-Hodgkin (LNH) – menos frequente nos jovens entre os 15 e os 19
25%. Os osteossarcomas, os retinoblastomas e anos (cerca de 7.5%) e a LMA tem uma incidência
uma miríade de outros tumores representam os ligeiramente superior (4%). Alguns tumores mais
restantes casos. comuns dos 0 aos14 anos têm taxas de incidência
bem mais baixas neste grupo etário. Estão nesta
A causa da grande maioria dos tumores condição o retinoblastoma, o tumor de Wilms, o
em pediatria é ainda desconhecida. Até ao neuroblastoma e o hepatoblastoma.
momento, estima-se que até 10% dos casos
sejam consequentes a predisposição genética Incidência e sexo
e que 5% terão origem na exposição a fatores Para ambos os grupos etários acima referidos
ambientais carcinogénicos. Na prática clínica existe uma ligeira predominância global do sexo
a grande maioria dos doentes com cancro não masculino, sobretudo nos LNH, onde se verificam
tem aparentemente um factor predisponente rácios 1.5 a 2 vezes superiores.
conhecido.
No grupo etário dos zero aos 14 anos ve-
Incidência e idade rifica-se igualmente uma ligeira preponderância
Até aos 14 anos de idade, a LLA é a neoplasia do sexo masculino para as LLA, os tumores SNC,
mais comum, correspondendo a cerca de 25% o sarcoma de Ewing, o rabdomiossarcoma e o
das neoplasias. Os tumores do SNC represen- hepatoblastoma.
tam aproximadamente 20% do total. Segue-se
o neuroblastoma (7%), o LNH (6%) e o tumor de Nos jovens entre os 15 e os 19 anos os
Wilms (5%). Os restantes tumores representam padrões de incidência são relativamente seme-
entre 2 a 4% do total, onde se incluem o LH, o lhantes, realçando-se as seguintes exceções: en-
rabdomiossarcoma, outros sarcomas de tecidos quanto o LH nas crianças, é ligeiramente mais
moles, o osteossarcoma, os tumores de células frequente no sexo masculino, nos adolescentes o
germinativas e o retinoblastoma. rácio masculino:feminino é semelhante. Também
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 333
se verifica uma predominância de sarcoma de ou, bem mais frequentemente, numa combinação
Ewing nas crianças do sexo masculino. O oposto de duas ou mais modalidades (quimioterapia, cirur-
acontece para os tumores germinativos e para os gia e radioterapia), consoante o tipo de tumor, a
osteossarcomas. sua localização e estadío da doença, entre outros
fatores. Cada vez mais são também utilizados ou-
Mortalidade tros agentes terapêuticos, que não cabem nestes
Desde 1960 que a taxa de sobrevida de grupos clássicos como seja a: hormonoterapia,
cancro aos cinco anos de doença tem vindo a imunoterapia, terapia com agentes biológicos e
aumentar progressivamente, altura em que era terapêutica com medicação dirigida ao alvo.
apenas de 28%. Na primeira década de 2000 a
taxa de sobrevida global (SG), aos cinco anos, A maioria dos protocolos terapêuticos inclui
para os tumores em idade pediátrica (crianças uma combinação de drogas citotóxicas que atuam
e adolescentes) rondava já os 80% (76.1% em em diversas fases do ciclo celular, com diferentes
1999 a 2001 e 79.1% em 2005 a 2007) e, aos mecanismos de ação que são complementares e
10 anos, ultrapassava os 75%. sinérgicos, com o objectivo de evitar o apareci-
mento de células resistentes, aumentar a eficácia
Contudo, as taxas de sobrevivência são mui- na eliminação de células tumorais e diminuir a
to diferentes em função do tipo de tumor. Assim, toxicidade colateral.
as neoplasias com melhores taxas de sobrevida
aos cinco anos são os linfomas (embora com al- A evolução dos protocolos pediátricos, com
gumas variações conforme os seus subtipos) e a consequente melhoria da taxa de cura, foi con-
as leucemias. De entre estas, a LLA é a que tem seguida ao longo dos anos através de estudos
o prognóstico mais favorável e uma sobrevida multicêntricos internacionais, que se tornaram o
melhor, entre 1996 a 1998 já ultrapassava 80% padrão dos estudos clínicos.
(na década de 60 era de 20 a 25%). As taxas de
sobrevida relativas ao LH ultrapassam agora os Os efeitos secundários mais comuns a curto
90%. Nos tumores do SNC, esta melhoria de prazo, decorrentes da quimioterapia, são: a fadiga,
prognóstico tem sido menos marcada. a alopécia, as náuseas e vómitos, a diarreia ou
De salientar contudo a gravidade do can- obstipação, a mucosite, bem como possíveis in-
cro. Na Europa cerca de 6.000 crianças e jovens feções e depressão medular (leucopenia, anemia,
morrem anualmente por esta doença. trombocitopenia) com necessidade de suporte
transfusional coadjuvante. Outros efeitos secun-
45.2.2 Conceitos gerais dários possíveis de se manifestarem a curto e a
de tratamento e sequelas longo prazo são: hipersensibilidade, complicações
neurológicas, cardiovasculares, renais, défices
A terapêutica do cancro pediátrico pode ba- hormonais, repercussão na fertilidade, tumores
sear-se numa só modalidade (i.e. quimioterapia) secundários, entre outros.
334 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL
Cerca de 300.000 a 500.000 cidadãos euro- laboratoriais, que vão desde o hemograma, bioquí-
peus são neste momento sobreviventes de cancro mica, a marcadores tumorais e outros mais especí-
na infância, sendo que um terço destes apresenta ficos de cada patologia; é de referir a necessidade
sequelas consideráveis a longo prazo, decorrentes de uma imagiologia com técnicas muito específi-
da sua doença e/ou tratamento. É importante cas, que vão desde a tomografia computadorizada
não só aumentar a probabilidade de cura mas (TAC), ressonância magnética nuclear, cintigrafias,
também a qualidade da sobrevida a longo prazo. técnicas de fusão como a tomografia de emissão
de positrões com a tomografia computadorizada
45.2.3 O diagnóstico ou a ressonância magnética. O estudo do próprio
tumor requer ainda recurso à anatomia patológica,
As múltiplas localizações do cancro pediá- citometria de fluxo e técnicas de biologia molecular.
trico e/ou a possibilidade de apresentação como Defende-se assim que toda a abordagem cirúrgica
doença sistémica, levam a que as listas de diag- de uma lesão tumoral na criança deva ser feita
nóstico diferencial sejam habitualmente exaus- num centro de Oncologia Pediátrica.
tivas. Posteriormente vai-se rever as patologias
mais frequentes, chamando a atenção para sinais Perante um caso de suspeita de doença on-
de alarme que pela sua invulgaridade ou pela sua cológica numa criança que não se encontre num
gravidade são marcantes. centro de referência, o estudo diagnóstico deverá
ser realizado de forma contida. Poderão ter utilidade,
Realça-se o facto do diagnóstico precoce de de acordo com a suspeita em causa, a TAC crânio-
cancro na criança e adolescente ser muitas vezes -encefálica, ecografia abdominal e a radiografia con-
difícil, pela similaridade de apresentação com outras vencional (exames imagiológicos); o hemograma
doenças mais comuns da criança. Descrevem-se e esfregaço de sangue periférico, a velocidade de
alguns sintomas comuns de cancro na criança que sedimentação, o estudo da coagulação (TTPa, TP) e
podem potencialmente representar um sinal de aler- a bioquímica (função renal, hepática, ionograma, de-
ta, como seja: massa anormal, palidez ou perda sidrogenase láctica). Se a suspeita de neoplasia per-
inexplicável de energia, tendência súbita para hema- sistir, a criança deve ser prontamente referenciada.
tomas, dor ou claudicação localizada e persistente,
quadro febril prolongado, cefaleias frequentes com Aborda-se, seguidamente, a clínica dos gru-
vómitos associados, mudanças súbitas da acuidade pos de tumores mais comuns em pediatria.
visual e rápida e marcada perda de peso.
45.2.4 As patologias – grupos de diagnóstico
Exames para o diagnóstico
Os exames realizados para o diagnóstico e
estadiamento de uma criança com cancro são 45.2.4.1 Leucemias agudas
variados e complexos devendo ser realizados Mais de 95% dos casos de leucemia na
num centro de referência. Para além de exames criança corresponde a leucemias agudas, sendo
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 335
Quadro 1. Clínica de tumores do SNC de acordo com localização (figura2). Adaptado “Cancer in Children - Clinical Management,
sixth Edition, The International Society of Paediatric Oncology”.
340 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL
A clínica clássica de LH inicia-se com o primeiro ano de vida. Ao contrário dos adultos,
aparecimento de adenopatias cervicais ou supra- que na maioria das vezes apresentam doença
-claviculares indolores (80% dos doentes) e/ou a nodal, as crianças e adolescentes normalmente
presença de sintomas constitucionais (sintomas têm doença extra-nodal envolvendo o mediasti-
B – febre vespertina, perda ponderal superior a no, abdómen, cabeça e pescoço. Podem atingir
10% e sudorese noturna). Alguns doentes têm também a medula óssea ou o SNC o que tem im-
prurido, aparentemente inexplicado. Uma massa plicações terapêuticas. Por este motivo o sistema
mediastínica está presente em 75% dos adoles- de classificação dos LNH em idade pediátrica é
centes, mas só em 35% das crianças abaixo desta diferente do dos adultos e a terapêutica também.
idade. O envolvimento de órgãos como o pulmão O LNH é o tipo de neoplasia mais frequente em
e a medula ocorre em 15 a 25% dos doentes. doentes com imunodeficiência.
O estudo histológico continua a ser o padrão
para o diagnóstico bem como para a definição dos i) Linfomas de células B maduras
seus sub-tipos celulares. A caraterização imuno- Linfoma de Burkitt
histoquímica é fundamental, particularmente pela Dos LNH é o mais frequente entre os cinco
introdução crescente de anti-corpos monoclonais e os 14 anos e existe um predomínio franco do
na terapêutica dos casos de recidiva. sexo masculino. Os locais primários mais comu-
Apesar das semelhanças com a doença mente afetados pela doença são o abdómen com
nos adultos, as estratégias terapêuticas em ida- envolvimento digestivo e possibilidade de atingir
de pediátrica são diferentes, tentando-se evitar todos os outros órgãos intra-abdominais (60%
a radioterapia com a sua morbilidade inerente. dos casos nos países industrializados); e o tecido
Intervem-se com protocolos de quimioterapia ba- linfático do anel de Waldeyer. Outros locais de
seados no estadío e presença de sintomas B e com início da doença incluem os testículos, os ossos,
estratificação em grupos de risco. Os protocolos a medula óssea e o SNC. A disseminação pleural
atuais tentam evitar ainda toxicidade cardíaca e e peritoneal é frequente. Em África há uma rela-
reduzir o risco de infertilidade. ção positiva forte entre o LNH e a infeção pelo
vírus de Epstein-Barr, sendo a apresentação mais
Linfomas não Hodgkin frequente a do tumor da mandíbula. Nos países
A grande maioria dos casos de LNH em idade industrializados o vírus Epstein-Barr é identifi-
pediátrica pode ser dividida em três categorias: cado na neoplasia em cerca de 15% dos casos.
i) células B maduras (que incluem o linfoma / Trata-se de uma das neoplasias com crescimento
leucemia de Burkitt e o linfoma B difuso de gran- mais agressivo, havendo referência a poder existir
des células); ii) linfoma linfoblástico; e iii) linfoma duplicação de volume a cada 12 horas; é por isso
anaplásico de grandes células. a neoplasia onde habitualmente é mais grave a
Mais raramente existem outros tipos. síndrome de lise tumoral. Numa fase precoce pode
Os LNH representam cerca de 7% das neo- apresentar-se com clinica de invaginação intesti-
plasias em idade pediátrica. São muito raros no nal. De notar que qualquer invaginação intestinal
342 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL
acima dos 3 anos deve ser considerado ter uma relativamente a este representar uma possível
causa patológica. forma de apresentação diferente da LLA ou uma
O diagnóstico pode ser realizado em pou- entidade distinta, dado as características celulares
cas horas recorrendo a métodos de citometria de serem as mesmas. Classicamente considera-se que
fluxo, em material biológico colhido com proce- há leucemia quando a percentagem de blastos na
dimentos minimamente invasivos. Uma pequena medula óssea é superior a 25%. O prognóstico é
amostra de líquido pleural ou peritoneal pode ser sobreponível ao das LLA.
o suficiente para a caracterização diagnóstica, O linfoma linfoblástico de linhagem B apre-
contudo a sua definição completa inclui estudos senta-se com adenopatias, e ou envolvimento
de genética molecular. O início da terapêutica é ósseo. A apresentação clínica do linfoma linfo-
uma emergência e inclui o controlo do síndro- blástico de células T em 75% dos casos é a de
me de lise tumoral. Os esquemas terapêuticos uma massa no mediastino anterior e superior (com
são relativamente curtos, de dois a oito meses, envolvimento do timo), rapidamente progressiva,
conforme o estadio. Trata-se de uma neoplasia com ou sem a presença de adenopatias supra-
com uma sobrevida superior a 80%, mesmo nos -claviculares. As manifestações clínicas podem ser
casos em que há envolvimento medular ou do respiratórias (dispneia, sibilos, estridor), disfagia,
SNC (superior a 90% nos outros casos). ou edema da cabeça e pescoço. É frequente a
presença de derrame pleural e / ou pericárdico.
Linfoma B difuso de grandes células Pode haver também envolvimento de osso, pele,
É mais frequente depois dos 15 anos de medula óssea ou do SNC. O atingimento de outros
idade e existe um predomínio do sexo masculino. locais é invulgar.
A apresentação clínica pode ser semelhante ao O diagnóstico pode ser realizado por mé-
linfoma de Burkitt, embora seja mais frequente- todos de citometria de fluxo com posterior ca-
mente localizada, sendo também menos frequen- racterização por genética molecular. O esquema
te o envolvimento da medula óssea ou do SNC. terapêutico dos linfomas linfoblásticos é sobre-
O diagnóstico pode ser igualmente realizado ponível ao da LLA.
por métodos de citometria de fluxo. A caracteri-
zação completa inclui estudos de genética mo- iii) Linfoma anaplásico de grandes células
lecular. Os esquemas terapêuticos utilizados em Tal como o linfoma B difuso de grandes cé-
pediatria são os mesmos do linfoma de Burkitt, lulas tem uma frequência crescente com a idade.
sendo o prognóstico semelhante. É também mais frequente no sexo masculino.
A apresentação clínica deste tipo de linfoma pode
ii) Linfoma linfoblástico ser muito variada: inclui o envolvimento dos gân-
É mais frequente entre os 10 e 14 anos de glios linfáticos e uma variedade de localizações
idade e existe um predomínio do sexo mascu- extranodais, principalmente da pele e do osso mas
lino. O linfoma linfoblástico pode ser de linha- também, do pulmão e pleura, músculo e trato
gem B ou T. Existe alguma discussão científica gastrointestinal. Frequentemente existe febre e
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 343
perda ponderal. A doença nodal frequente- ao espaço à frente e o posterior ao espaço atrás
mente tem um percurso ondulante, o que destas estruturas. Esta divisão dá-nos também
por vezes leva a um atraso no diagnóstico. uma ajuda no diagnóstico diferencial.
O envolvimento medular maciço ou do SNC é O síndrome da veia cava superior ocorre
mais raro. pela obstrução da veia cava superior. Tal pode
O diagnóstico pode também ser realizado ocorrer por um quadro de trombose, dependente
por métodos de citometria de fluxo com posterior por exemplo de um cateter central; ou por com-
caracterização por genética molecular. O esquema pressão externa pela patologia tumoral. A clínica
terapêutico é semelhante ao dos linfomas B com é de edema da face e pescoço, cianose cervical
uma duração curta, mas intensiva com poucos e da face e engurgitamento das veias cervicais.
ciclos de quimioterapia. Há vários medicamentos O síndrome do mediastino superior ocorre
baseados em anticorpos monoclonais e terapêuti- por compressão da traqueia pela massa tumoral.
ca dirigida ao alvo, utilizados atualmente apenas A clínica é de tosse, rouquidão, dispneia, ortopneia,
nos casos em fase de recidiva mas que poderão dor torácica, seguindo-se ansiedade, confusão,
vir a modificar a terapêutica deste linfoma. letargia, cefaleias, alteração da visão e síncope.
Estas últimas alterações refletem a hipóxia e hi-
Situações de emergência nos linfomas percapnia. A traqueia na criança é menos rígida e
Nos LNH a ocorrência de síndrome de lise mais facilmente deformável, pelo que a gravidade
tumoral é muito frequente como já foi referi- é tanto maior quanto mais jovem for o doente.
do. A possibilidade de ocorrência de derrame
pericárdico e ou pleural implica também cele- Na prática clínica estas duas situações são
ridade de atuação. A presença de uma massa concomitantes. Os linfomas são o principal grupo
no mediastino médio, anterior e superior pode de patologias implicadas, sendo o linfoma linfoblás-
levar aos síndromes da veia cava superior e/ou tico o que mais frequentemente causa um quadro
do mediastino superior. mais agudo. Os tumores germinativos e os neuro-
blastomas também podem provocar este quadro.
É importante referir aqui, a relevância da É necessário particular cuidado ao lidar com estes
avaliação inicial de uma massa mediastínica passar doentes, devendo haver noção de que o decúbi-
pela realização de duas incidências da radio- to é muitas vezes mal suportado, sendo por vezes
grafia torácica (a antero-posterior, vai definir se contraindicada a realização de uma TAC torácica
a massa está no mediastino superior ou no infe- ou a realização de uma anestesia geral. Também o
rior - linha imaginária que passa entre a 4ª e a 5ª ritmo de perfusões deve ser contido, por agravar
vértebras; e perfil esquerdo - menor interferência o edema dependente da compressão da veia cava.
da sombra cardíaca - a fim de localizar a massa
ao mediastino anterior, médio ou posterior). O 45.2.4.4 Tumores embrionários
mediastino médio refere-se à localização normal Os tumores embrionários são caracterizados
do coração, grandes vasos e traqueia, o anterior pela proliferação de tecido que é normalmente
344 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL
Susana Almeida
susana.almeida.coimbra@gmail.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Gastroenterologia e Nutrição Pediátrica
Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Serviço de Pediatria Médica do Hospital Pediátrico
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Tabita Maia
Tabita.Maia@chuc.min–saude.pt
Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
Assistente Hospitalar de Hematologia Clínica
Unidade de Eritropatologia e Distúrbios do Ferro
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente Convidada da Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
CIÊNCIAS
DA SAÚDE