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Lições de Pediatria Vol.

I e II
Autor(es): Oliveira, Guiomar (coord.); Saraiva, Jorge (coord.)
Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/43101
persistente:
DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0

Accessed : 7-Aug-2018 22:13:40

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IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
COIMBRA UNIVERSITY PRESS

VOL. I

LIÇÕES DE
PEDIATRIA
GUIOMAR OLIVEIRA
JORGE SARAIVA
COORDENAÇÃO
Página deixada propositamente em branco
LIÇÕES
DE
PEDIATRIA
VOLUME I

GUIOMAR OLIVEIRA
JORGE SARAIVA
COORDENAÇÃO

HENRIQUE CARMONA DA MOTA


JENI CANHA
PREFÁCIO

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


COIMBRA UNIVERSITY PRESS
COLEÇÃO SAÚDE

TÍTULO TITLE APOIO TÉCNICO TECHNICAL SUPPORT


Lições de Pediatria Maria José Alves
Pediatrics Lessons

COORDENADORES COORDINATORS AUTORES AUTHORS


Guiomar Oliveira Ana Brett
Jorge Saraiva
Andrea Dias
PREFÁCIO PREFACE Alexandra Oliveira
Henrique Carmona da Mota Alexandra Paul
Jeni Canha
António Jorge Correia
EDITOR PUBLISHER António Pires
Imprensa da Universidade de Coimbra Cândida Cancelinha
Coimbra University Press Carla Chaves Loureiro

CONTACTO CONTACT Carla Pinto


www.uc.pt/imprensa_uc Clara Gomes
imprensa@uc.pt Conceição Robalo
Cristina Alves
VENDAS ONLINE ONLINE SALES
http://livrariadaimprensa.uc.pt Cristina Pereira
Fernanda Rodrigues
COORDENAÇÃO EDITORIAL EDITORIAL COORDINATION
Guiomar Oliveira
Imprensa da Universidade de Coimbra
Gustavo Januário
INFOGRAFIA INFOGRAPHICS Isabel Gonçalves
Carlos Costa Jeni Canha

EXECUÇÃO GRÁFICA GRAPHIC EXECUTION José António Pinheiro


CreateSpace José Boavida
José Carlos Peixoto
ISBN [Vol I]
Jorge Saraiva
978-989-26-1299-7
Leticia Ribeiro
ISBN [Digital Vol I e II] Lia Gata
978-989-26-1300-0
Luisa Diogo
DOI [Vol I e II] Maria Francelina Lopes
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0 Maria Helena Estevão
Manuel Brito
DEPÓSITO LEGAL LEGAL DEPOSIT
432628/17 Mónica Oliva
Mónica Vasconcelos
Núria Madureira
Patricia Mação
Paula Estanqueiro
Paulo Fonseca
Raquel Soares
Ricardo Ferreira
Rita Cardoso
Sónia Lemos
© OUTUBRO 2017
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA Susana Almeida
COIMBRA UNIVERSITY PRESS Tabita Magalhães Maia
LIÇÕES
DE
PEDIATRIA
VOLUME I

GUIOMAR OLIVEIRA
JORGE SARAIVA
COORDENAÇÃO

HENRIQUE CARMONA DA MOTA


JENI CANHA
PREFÁCIO

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


COIMBRA UNIVERSITY PRESS
SUMÁRIO

Prefácio ................................................................................................................................................. 9
Jeni Canha e H. Carmona da Mota

VOLUME I
1. Introdução à Pediatria no contexto do ensino médico................................................................. 11
Jorge Saraiva
2. A organização da rede de cuidados de Saúde Infantil e Juvenil em Portugal............................ 21
José Carlos Peixoto
3. Programa nacional de intervenção precoce................................................................................... 33
José Boavida
4. História Clínica................................................................................................................................. 41
Guiomar Oliveira
5. Medicamentos mais utilizados em pediatria e iatrogenia............................................................ 53
Carla Chaves Loureiro
6. A genética em Pediatria.................................................................................................................. 63
Jorge Saraiva
7. Meios complementares de diagnóstico em Pediatria.................................................................... 71
Cândida Cancelinha
8. Suporte básico e noções de suporte avançado de vida pediátrico.............................................. 87
Carla Pinto
9. Neonatologia..................................................................................................................................115
José Carlos Peixoto e Carla Pinto
10. Alimentação e suplementos........................................................................................................ 157
Mónica Oliva
11. Crescimento e os seus problemas................................................................................................ 171
Raquel Soares
12. Neurodesenvolvimento e comportamento.................................................................................211
Guiomar Oliveira
13. Sono normal e problemas de sono............................................................................................. 233
Núria Madureira e Maria Helena Estevão
14. Adolescência................................................................................................................................. 245
Paulo Fonseca
15. O Programa Nacional de Vacinação e outras Vacinas................................................................ 259
Fernanda Rodrigues
16. Febre.............................................................................................................................................. 273
Alexandra Oliveira
17. Exantemas..................................................................................................................................... 279
Alexandra Oliveira
18. Infeções das vias respiratórias superiores................................................................................... 295
Gustavo Januário
19. Infeções das vias respiratórias inferiores.................................................................................... 315
Patricia Mação
20. Doença alérgica........................................................................................................................... 327
José António Pinheiro
Afiliação de Autores.......................................................................................................................... 339

VOLUME II
21. Infeção urinária.............................................................................................................................. 11
Clara Gomes
22. Vómitos........................................................................................................................................... 25
Susana Almeida
23. Diarreia aguda e crónica............................................................................................................... 35
Susana Almeida
24. Dor abdominal aguda e crónica................................................................................................... 49
Ricardo Ferreira
25. Causas cirúrgicas de dor abdominal............................................................................................. 55
Maria Francelina Lopes
26. Patologia frequente em cirurgia de ambulatório........................................................................ 61
Maria Francelina Lopes
27. Ortopedia, variantes da normalidade e problemas frequentes................................................. 67
Cristina Alves
28. Obstipação, encoprese e enurese................................................................................................. 87
Mónica Oliva
29. Problemas dermatológicos mais comuns em Pediatria............................................................. 103
Gustavo Januário
30. Infeções da pele e dos tecidos moles......................................................................................... 127
Fernanda Rodrigues
31. Púrpuras/Vasculites...................................................................................................................... 139
Paula Estanqueiro
32. Bacteriémia e sépsis..................................................................................................................... 149
Andrea Dias
33. Meningite e meningoencefalite................................................................................................. 161
Ana Brett
34. Hematúria e proteinúria.............................................................................................................. 175
António Jorge Correia
35. Cefaleias....................................................................................................................................... 199
Mónica Vasconcelos
36. Poliúria e polidipsia......................................................................................................................211
Rita Cardoso
37. Anemias........................................................................................................................................ 219
Leticia Ribeiro e Tabita Magalhães Maia
38. Acidentes e Intoxicações............................................................................................................. 245
Lia Gata
39. Criança maltratada...................................................................................................................... 255
Jeni Canha
40. Fenómenos paroxísticos, crises epiléticas e epilepsias.............................................................. 267
Cristina Pereira e Conceição Robalo
41. Doenças cardíacas mais comuns.................................................................................................. 283
António Pires
42. Introdução às Doenças hereditárias do metabolismo............................................................... 297
Luísa Diogo
43. A criança submetida a transplante de órgãos sólidos................................................................311
Isabel Gonçalves
44. Imunodeficiências Primárias – Quando Suspeitar?.................................................................... 321
Sónia Lemos
45. Doença oncológica...................................................................................................................... 329
Manuel Brito e Alexandra Paul
Afiliação de Autores.......................................................................................................................... 353
9

P R E FÁC I O triagem das situações a ser orientadas para con-


sultas ou serviços mais diferenciados.
A Pediatria, ramo da medicina que se ocu- Tem sido tradição da escola de Pediatria de
pa da saúde da criança e do adolescente, integra Coimbra a adequação dos conteúdos das aulas
o programa de formação obrigatória do ensino à realidade das crianças do nosso país, forne-
pré-graduado da Faculdade de Medicina, dada cendo apoio de estudo da disciplina através da
a relevância dos seus conteúdos para os futuros publicação de textos e indicação das referências
médicos. bibliográficas para cada tema.
Trata-se de uma área fascinante da ciência, As “Lições de Pediatria”, que ajudaram a
naturalmente orientada para o futuro. Assistir formar várias gerações de médicos, há muito ne-
uma criança desde o nascimento até ao final da cessitavam de revisão e atualização. Esta tarefa
adolescência, acompanhando as diferentes etapas foi agora levada a cabo com grande empenho e
do seu crescimento e desenvolvimento, caracte- rigor pelo corpo docente da disciplina e por ele-
rísticas específicas que a diferenciam do adulto, mentos do corpo clínico do Hospital Pediátrico,
é notável e gratificante e, simultaneamente, de abrangendo grande diversidade de temas.
grande responsabilidade.
A Pediatria é uma especialidade clínica por Aqui está a nova versão dos apontamen-
excelência, cujo objetivo consiste na promoção tos, “Lições de Pediatria”, mantendo a
da saúde e do bem-estar da criança, criando as maioria dos temas, revistos e atualiza-
condições para que esta possa atingir a idade dos, e ampliada com os que decorrem
adulta nas melhores condições físicas, psíquicas da evolução da medicina, em geral, e da
e emocionais. Cabe ao pediatra e médico de me- pediatria, em particular, ao longo dos
dicina geral e familiar, a vigilância do estado de últimos anos.
saúde da criança e do adolescente, a prevenção Estou certa de que estes apontamentos
e tratamento das suas doenças, a identificação e serão muito úteis aos alunos e a todos
resolução dos seus problemas. Para cumprir estes os clínicos que se interessam pela saúde
desideratos é indispensável uma abordagem clíni- da criança e do adolescente.
ca global da criança/adolescente, compreendê-la
como ser interativo e integrante de uma família Jeni Canha
e de uma comunidade, privilegiando o diálogo,
aliado a uma observação clínica cuidadosa.
Com a frequência da disciplina não se Saúdo todos os que contribuíram para
pretende formar especialistas, mas fornecer os a nova edição das Lições de Pediatria.
elementos necessários que permitam, ao recém- Das primeiras edições muito se disse;
-licenciado e médico geral, cumprir a vigilância da retenho a de uma pediatra, minha ami-
saúde infanto-juvenil, a resolução dos problemas ga: Vocês conseguiram tornar simples a
mais comuns da prática clínica e a identificação/ Pediatria.
Passe o exagero foi este o elogio que mais
bem sublinhou a nossa tentativa; estou
certo que “Lições de Pediatria” manterá
esse espírito – Pediatria para todos os
médicos.
Em meu nome e no dos antigos, dou os
parabéns aos coordenadores, Guiomar
Oliveira e Jorge Saraiva, professores de
Pediatria da Universidade de Coimbra.

H. Carmona da Mota
Capítulo 1.
Introdução à Pediatria no
contexto do ensino médico

1
Jorge Saraiva
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_1
CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO À PEDIATRIA NO CONTEXTO DO ENSINO MÉDICO 13

1.1 CONTEXTO suscetíveis de serem modificados pela existência


e funcionamento dos sistemas de saúde. Destes
O ensino da Pediatria tem como objetivo 30% dois terços (20%) são o ambiente e as me-
último garantir a formação médica pré-graduada didas de saúde pública e apenas um terço (10%)
necessária e suficiente para que os futuros mé- resultam dos cuidados de saúde, setor que con-
dicos estejam preparados para contribuir para some mais de 50% dos orçamentos da saúde.
que todas as crianças tenham a melhor saúde Neste contexto é adequado identificar os
possível. A definição do grupo etário é clara e foi determinantes não médicos da saúde de uma
legalmente confirmada em Portugal em 2010: até população: não apenas o desrespeito por estilos
aos 18 anos. Mas a saúde das crianças insere-se de vida saudável mas também outros como o
não apenas nos sistemas de saúde respetivos, desemprego e a perda de rendimentos que se
que abordaremos a seguir, como na sociedade, traduzem em maior dificuldade de acesso a cui-
a que nos referiremos depois, concluindo com dados de saúde.
o enquadramento do ensino pré-graduado da Como é consensual no mundo e em parti-
Pediatria no mundo e para o futuro. cular em Portugal os cuidados de saúde em idade
pediátrica foram pioneiros ao aplicar e obter exce-
lentes resultados com medidas de saúde pública do
1.2 DESCRIÇÃO DO TEMA âmbito da prevenção primária (i.e. Plano Nacional
de Vacinação), secundária (Programa Nacional de
1.2.1 Os sistemas de saúde Diagnóstico Precoce – atualmente rastreio de hi-
potiroidismo, 24 doenças hereditárias do metabo-
Os sistemas de saúde são um conjunto de lismo e fibrose quística – e Sistema Nacional de
elementos interdependentes que cooperam para Intervenção Precoce na Infância) e terciária (núcleos
tentar concretizar o objetivo de manter um estado de apoio a crianças e jovens em risco e núcleos
de completo bem estar físico, mental e social e hospitalares de apoio a crianças e jovens em risco).
não apenas a ausência de doença ou enfermidade. Quanto aos cuidados de saúde a Pediatria
Um sistema de saúde requer sempre a exis- foi mais uma vez pioneira em Portugal com a
tência de financiamento adequado, prestadores consolidação do trabalho em equipa transprofis-
de cuidados de saúde com excelente formação e sional com formação permanente e articulação
justamente remunerados, sistemas de informação formal (Comissão Nacional da Saúde Materna, da
fiáveis que sustentem a tomada de decisões e Criança e do Adolescente; Comissões Regionais
estruturas e logística que forneçam consumíveis da Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente
e tecnologias. e Unidades Coordenadoras Funcionais da saúde
Se recordarmos que a quantificação dos materna e neonatal e da saúde da criança e do
fatores determinantes da saúde avalia o com- adolescente).
portamento das pessoas (estilos de vida saudá- A Pediatria é um exemplo neste contexto: os
vel) em 40% e a genética em 30%, restam 30% índices portugueses melhoraram estrondosamente
14 JORGE SARAIVA

desde o último quartel do século vinte e até ao pre- O segundo país gasta mais (90€ versus 50€) ou
sente. E porquê? Em primeiro lugar pela melhoria menos (nove versus 10%) em saúde? Se uma uti-
das condições socio-económicas das populações lização adequada do orçamento em saúde do pri-
(os 40%), potenciada por medidas de medicina meiro lhe permitir ter melhores resultados do que
preventiva como os anteriormente mencionados o segundo, poderá este dizer que “isso é porque
Plano Nacional de Vacinação e Programa Nacional outro está a gastar 10% em saúde enquanto eu
de Diagnóstico Precoce (que representam os 20% apenas gasto nove; pelo que lhe recomendo que
e que serão explicitados em capítulos independen- diminua a despesa em saúde”?
tes); mas também e de forma indispensável pela Se considerarmos a despesa em saúde em
“existência de financiamento adequado, prestado- percentagem do PIB no início da segunda década
res de cuidados de saúde com excelente formação do século XXI Portugal tinha a décima primeira
e justamente remunerados, sistemas de informa- maior despesa em saúde, 11% versus a média da
ção fiáveis que sustentem a tomada de decisões e dos países da Organização para a Cooperação e
estruturas e logística que forneçam consumíveis e o Desenvolvimento Económico (OCDE) de 9,3%.
tecnologias” que permitiram obter excelentes re- Mas em valor absoluto Portugal estava em vigési-
sultados com os recursos existentes sob a liderança mo segundo lugar com 2619 USD PPPs e a média
do Dr. Albino Aroso e do Professor Doutor Torrado da OCDE era de 3322…
da Silva que me abstenho de aqui explicitar por
serem abordados em outros capítulos, em particular
o intitulado “A organização da rede de cuidados 1.2.3 Quais os resultados?
de Saúde Infantil e Juvenil em Portugal”.
Em Portugal em 2010 só sete por cento dos
prematuros com menos de 32 semanas nasceram
1.2.2 Quais foram os recursos existentes? em locais sem unidades de cuidados intensivos
neo-natais (o segundo melhor resultado da União
Portugal obteve muito melhores resultados Europeia-UE), a mortalidade fetal em Portugal
em saúde com menos despesa do que a grande foi de 3,2 por 1.000 (segundo lugar na UE), a
maioria dos países desenvolvidos. Cumpre escla- mortalidade neonatal foi de 1,6 por 1.000 (quarto
recer que a comparação deve ser preferencial- lugar depois de Islândia, Finlândia e Suécia), a
mente realizada em termos de despesa real e não mortalidade infantil foi de 2,5 por 1.000 (quarto
em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB). lugar depois de Islândia, Finlândia e Suécia).
Vejamos porquê: se num país o rendimento médio
mensal for de 500€ e a despesa em saúde de
50€ o consumo é aqui 10% do seu rendimento; 1.2.4 Quais os problemas que permanecem?
se noutro país o rendimento médio mensal for
de 1.000€ e a despesa em saúde de 90€ o con- O baixo peso ao nascimento é pior do que
sumo é aqui nove por cento do seu rendimento. a média europeia (em 2010 8,3 para 6,5 UE) e
CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO À PEDIATRIA NO CONTEXTO DO ENSINO MÉDICO 15

está a piorar acompanhando a prematuridade, o um número crescente de filhos únicos, mães me-
excesso de peso, os erros alimentares, o diminuto nos jovens, famílias monoparentais, emigração
exercício físico regular e a precocidade e excesso e desemprego. Mas para além da evolução de-
de consumo de álcool e tabaco. mográfica temos que estar conscientes da urba-
Apenas 30% dos adolescentes realizam as nização e mobilidade crescentes, das mudanças
consultas preconizadas no Programa Nacional de epidemiológicas (pandemias, reflexos das altera-
Saúde Infantil e Juvenil. ções climáticas, doenças não transmissíveis) e da
A transição dos doentes crónicos da Pediatria redistribuição das morbilidades (doenças mentais,
para as especialidades de adultos tem modelos músculo-esqueléticas, crónicas).
bem definidos mas não está implementada, a par
dos cuidados paliativos pediátricos.
Haverá ainda que procurar prever a evolução 1.2.6 O ensino da Pediatria para o mundo e
na organização dos sistemas de saúde em resulta- o futuro
do do desenvolvimento tecnológico (biomedicina
e sistemas de informação e comunicação), cui- A formação dos médicos é uma componente
dados à distância (telemedicina nomeadamente de um dos quatro pilares para o funcionamento
com a teleconsulta e a telemetria) e a distribuição adequado de um sistema de saúde já anterior-
das responsabilidades pelos vários grupos pro- mente referido: uma formação de excelência.
fissionais como na decisão médica partilhada e A formação dos médicos continua historica-
autorresponsabilização das pessoas, já designada mente sustentada no Relatório Flexner de 1910
“coprodução da saúde” ou a transferência de que estabeleceu as bases científicas da atividade
tarefas para grupos profissionais de maior aces- profissional e recentemente no modelo de ensino
sibilidade / menor diferenciação / menor custo centrado no aluno e no método de resolução de
ou menor acessibilidade / maior diferenciação / problemas.
maior custo. Para o futuro cumpre integrar duas revo-
luções. Em primeiro lugar o modelo transpro-
fissional. É uma evidência que a prestação de
1.2.5 A sociedade cuidados de saúde exige uma equipa constituída
por médicos, enfermeiros, outros técnicos de saú-
A evolução demográfica tem um impacto de, técnicos de diagnóstico e terapêutica, enge-
em toda a sociedade mas muito rapidamente nheiros, administrativos, assistentes operacionais,
na Pediatria por requerer de imediato uma reor- de entre outros. Mas cada um destes grupos é
ganização dos recursos existentes e uma rápida formado na sua escola, tem como professores e
reformulação da formação dos técnicos de saúde colegas quase exclusivamente pessoas da área
para as necessidades previsíveis a curto prazo. profissional (no caso dos alunos de medicina aulas
A realidade é a de um país com um número exclusivamente para alunos de medicina e pro-
anual de nascimentos de cerca de 80.000, com fessores maioritariamente médicos e que mesmo
16 JORGE SARAIVA

quando o não são têm como profissão dar aulas 15% ou 4,3 milhões. Esta carência é acentuada
apenas a médicos). E pretendem os formadores por uma distribuição assimétrica com uma varia-
que no dia a seguir à graduação todos estejam a bilidade nacional com uma ordem de grandeza
trabalhar harmoniosamente na equipa onde foram de 10 (num planeta em que o PIB tem valores
integrados, por certo em resultado de qualidades divergentes em 300 vezes, do Burundi para a
inatas…O desenvolvimento das aptidões e atitu- Noruega, e a despesa em saúde de 600 vezes, da
des para o exercício transprofissional deve pois ser Eritreia para os EUA), acentuada pela correlação
integrado na formação de todos os técnicos de inversa entre as necessidades e a disponibilidade.
saúde, incluindo os médicos, baseado em compe- O número de médicos e enfermeiros por 1.000
tências em sistemas de saúde com sincronização habitantes é de 4.0 mas varia desde 1.1 (África
e melhoria da integração horizontal e vertical. O subsariana) até 12.7 (Reino Unido) (na Europa
modelo transprofissional ultrapassa a formação 9,6) e a proporção de enfermeiros por médico
estritamente monoprofissional por forma a pro- é de 2:1 mas varia de 1:1 (China) até 4:1 (EUA)
mover o conhecimento, compreensão e respeito (na Europa 2:1).
dos outros grupos profissionais no obrigatório A variabilidade nacional e regional é cres-
trabalho em equipa. cente pela perversidade da menor atratividade
Em segundo lugar um médico formado em das regiões com menos recursos com a tendência
Portugal tem uma probabilidade relevante de ser para uma existência de mais técnicos de saúde nos
chamado a cuidar aqui de doentes de outras ori- locais em que eles são menos necessários. Os EUA
gens ou até de exercer a sua profissão noutro país têm quatro por cento da população mundial, oito
ou continente. Cada vez mais a adequação local/ por cento dos médicos e 17% dos enfermeiros mas
regional ou nacional pode não estar alinhada com ainda assim identificam necessidades adicionais de
outros contextos de exercício profissional quando 85.000 médicos até 2020 (para além dos atuais
as oportunidades de trabalho ocorrem cada vez 756.000, dos quais 25% não têm nacionalidade
com maior frequência num contexto diferente norte-americana) e 260.000 enfermeiros até 2025
do da formação. (para além dos atuais 3.064.000). As medidas
As pessoas procuram cada vez mais cuidados consideradas eficazes para minorar este efeito
médicos num meio diferente do da sua residência como incentivos no local de formação, política
e o turismo médico tem um aumento anual de de recrutamento para a formação, bolsas, “bon-
20%. Um terço das crianças intervencionadas no ding”, políticas remuneratórias, desenvolvimento
Programa Nacional de Transplantação Hepática profissional contínuo e integração familiar têm
Pediátrica não é de nacionalidade portuguesa. tido até ao momento efeito limitados.
Existe globalmente uma enorme carência O papel da Pediatria no Mestrado Integrado
de técnicos de saúde adequadamente treinados: em Medicina é substancialmente diferente da es-
segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) pecialidade de Pediatria nos cuidados de saúde
existem atualmente nove milhões de médicos e 18 em Portugal. Esta última tem como objetivo pre-
milhões de enfermeiros mas são necessários mais parar médicos especialistas com conhecimentos,
CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO À PEDIATRIA NO CONTEXTO DO ENSINO MÉDICO 17

aptidões e atitudes para garantir cuidados de objetivos é a referenciação para cuidados hos-
saúde de qualidade às crianças que requeiram pitalares de casais em que sejam identificados
cuidados hospitalares, seja por suspeita ou con- fatores de risco). Da mesma forma a preparação
firmação de doença aguda grave, de complicação da promoção e vigilância de saúde infantil deve
preocupante de doença aguda ou crónica, ou de começar na consulta pré-natal realizada pelo
doença crónica que pela sua gravidade ou natu- médico que será o futuro médico assistente da
reza requer referenciação hospitalar. Inicia a sua criança, em geral o médico especialista em me-
intervenção com a sub-especialidade de neona- dicina geral e familiar dos pais. No entanto esta
tologia em colaboração com a subespecialidade última não se encontra ainda prevista no atual
de medicina materno-fetal da especialidade de Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil.
ginecologia-obstetrícia, no diagnóstico e terapêu- O ensino da Pediatria no Mestrado Integrado
tica fetal, e prolonga-se até aos 18 anos com o em Medicina em Coimbra na segunda década
culminar do processo anteriormente iniciado de do século XXI tem ainda que garantir os conhe-
transição de adolescentes com doença crónica cimentos, aptidões e atitudes necessários para o
para uma especialidade de adultos. exercício da profissão noutros locais e num futuro
A formação pré-graduada em Pediatria tem a médio e longo prazo. Há países, nomeadamente
assim que tomar em consideração a preparação de europeus, em que o modelo de vigilância médica
todos os médicos, não apenas os futuros pediatras das crianças pressupõe que seja sempre da res-
e outros especialistas exclusivamente dedicados às ponsabilidade de um especialista em Pediatria. E o
crianças, como os cardiologistas pediátricos, os papel de outros técnicos de saúde, nomeadamen-
cirurgiões pediátricos e os pedopsiquiatras mas, no te enfermeiros e psicólogos, pode vir a redistribuir
contexto nacional, os futuros médicos assistentes responsabilidades sobre qual o responsável pela
das crianças portuguesas – médicos especialistas vigilância e promoção de saúde em áreas como as
em medicina geral e familiar -, os especialistas em vacinações, a alimentação ou a monitorização e
órgãos e sistemas que participarão com frequência rastreio dos problemas do neurodesenvolvimento.
na prestação de cuidados de saúde hospitalares a Evidentemente que o resultado final utilizará
crianças, como a cirurgia cardiotorácica, a derma- não apenas os programas de formação específica,
tologia, a oftalmologia ou a otorrinolaringologia, habitualmente designados de internato médico,
e até especialidades exclusivamente de adultos como o plano de desenvolvimento profissional
nomeadamente pelo papel que são chamadas a que cada um irá construir – mas também aqui,
desempenhar no processo de transição de adoles- quer para maximizar o aproveitamento da for-
centes com doenças crónicas das especialidades mação pós-graduada quer para cada um saber
pediátricas para a medicina de adultos. escolher o que deve priorizar para a sua formação
A preparação de uma gravidez deve iniciar-se individual é imprescindível acautelar que é agora,
na consulta pré-concepcional, da responsabilida- enquanto alunos universitários, que são reunidas
de do médico especialista em medicina geral e as condições adequadas para garantir o sucesso
familiar do casal (recordando aqui que um dos nesse futuro próximo.
18 JORGE SARAIVA

No final das unidades curriculares de acidentes e comportamento na família, na escola


Pediatria I e II (primeiro e segundo semestre do e na comunidade e aconselhar a família e a comu-
5º ano do Mestrado Integrado em Medicina) e nidade na promoção da saúde, do crescimento e
do estágio de Saúde Infantil (6º ano do Mestrado desenvolvimento da criança de modo a permitir a
Integrado em Medicina) o futuro médico: máxima expansão das suas potencialidades para
Deve ser capaz de participar ativamente na se tornar num adulto saudável, emocionalmente
prestação em equipa de cuidados de saúde pri- estável, socialmente integrado e economicamen-
mários e secundários a crianças e adolescentes no te autónomo; o diagnóstico e tratamento das
seu ambiente familiar e social e na programação doenças frequentes; a identificação das situa-
do seu desenvolvimento profissional contínuo em ções emergentes e urgentes e prestar cuidados
qualquer área médica com especial atenção às adequados a cada uma e aos meios disponíveis
necessidades especiais deste grupo etário. localmente; a identificação adequada e a orien-
Deve analisar os indicadores de saúde de tação oportuna das situações que ultrapassam
cada grupo etário, descrever o desenvolvimento a sua competência; a aplicação de decisões sus-
embrionário e fetal e avaliar as anomalias congé- tentadas na medicina baseada na evidência e a
nitas, descrever as amplas variações do compor- comunicação das conclusões e juízos sobre um
tamento das crianças normais, os seus limites e artigo científico recente com um tema frequente
os factores determinantes do crescimento, desen- em saúde infantil de forma clara e fundamentada.
volvimento e maturação afetiva, as necessidades Deve valorizar a prática clínica dedicada, pro-
nutricionais, afetivas e educacionais para cada fissional e eticamente correta; advogar a equidade
grupo etário, avaliar o cumprimento do plano para diferentes situações culturais, económicas e
nacional de vacinação e a utilização de outras educacionais das crianças, adolescentes e respe-
vacinas comercializadas no país, aplicar os planos tivas famílias; defender os direitos das crianças
de prevenção de outras doenças, intoxicações e e adolescentes; reconhecer as suas limitações e
acidentes, descrever a epidemiologia das doenças estar motivado para uma aprendizagem futura
com maior prevalência, analisar a utilização de com elevado grau de autonomia.
meios complementares de diagnóstico laborato-
riais e imagiológicos, aplicar as bases da terapêu-
tica farmacológica e utilizar a rede de cuidados 1.3 FACTOS A RETER
de saúde à disposição da criança e da família.
Deve realizar a avaliação adequada do cres- O direito das crianças a cuidados de saúde
cimento, desenvolvimento e maturação emocional só se pode concretizar numa sociedade em que
de crianças e adolescentes e das suas relações os profissionais de saúde participem na defesa
com o meio e executar os objetivos das consultas de todos os direitos das crianças;
de saúde infantil e juvenil; o aconselhamento da As condições socio-económicas das famílias
família na prevenção das doenças evitáveis no- e das sociedades são condicionantes relevantes
meadamente no âmbito da nutrição, infeções, do estado de saúde das crianças;
CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO À PEDIATRIA NO CONTEXTO DO ENSINO MÉDICO 19

Portugal é um caso de estudo na aplicação abandonadas ou como assegurando cuidados de


de recursos e obtenção de resultados em saúde saúde a crianças doentes.
infantil em que o modelo de organização cons- As primeiras instituições comprovadamen-
tituiu um fator crítico; te destinadas a prestação de cuidados de saúde
O baixo peso ao nascimento, a ausência de a crianças doentes foram o “Dispensary for the
estilos de vida saudável, o excesso de peso e o Infant Poor, Red Lion Square” (Londres, 1769) e
abandono das consultas médicas de vigilância e o “Hôpital des Enfants Malades” (Paris, 1802).
promoção de saúde pelos adolescentes consti- Em Portugal a primeira decisão de criação
tuem problemas a aguardar solução; de um hospital pediátrico foi assinada pelo Rei
Está em curso a consolidação da transição D. Pedro V, a pedido da Rainha Dª Estefânia, em
de doentes crónicos com necessidade de cuidados quatro de agosto de 1860 e foi inaugurado em
hospitalares das especialidades pediátricas para 14 de julho de 1877 – o ainda atual Hospital de
as especialidades de adultos e a implementação Dona Estefânia.
dos cuidados paliativos pediátricos e da rede de No Porto o Hospital Pediátrico Maria Pia foi
cuidados continuados integrados pediátricos. fundado em 1882 tendo depois sido transferido
para o atual Centro Materno-Infantil Dr. Albino
Aroso do Centro Hospitalar do Porto.
N OTA H I S TÓ R I C A Em Coimbra o que existia no início do século
(o ensino de Pediatria no mundo, XX era uma enfermaria de Pediatria nos anti-
em Portugal e em Coimbra) gos edifícios dos Hospitais da Universidade de
Coimbra. Em quatro de janeiro de 1956 iniciou-se
O reconhecimento das especificidades da a adaptação para sanatório de crianças de um
saúde das crianças é relativamente recente. A defi- dos edifícios do Convento de Celas. Por iniciati-
nição do grupo etário, a organização dos cuidados va do Prof. Bissaya Barreto, coadjuvado pelo Dr.
hospitalares e o ensino médico pré-graduado tal Santos Bessa (cujo busto se encontra à entrada
como o conhecemos são aquisições do século do atual auditório do Hospital Pediátrico – Centro
XX. Hoje em dia em Portugal está estabeleci- Hospitalar e Universitário de Coimbra) foi aprova-
da a obrigatoriedade de prestação de cuidados da em 1971 a adaptação dos sanatórios feminino
hospitalares em ambiente pediátrico até aos 17 e infantil de Celas, originalmente o dormitório do
anos e 364 dias com a exceção da especialidade antigo Convento de Santa Maria de Celas, para
de obstetrícia, orientação também em vigor no o futuro Hospital Pediátrico de Coimbra que viria
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. a ser inaugurado em um de junho de 1977, inte-
A identificação do primeiro local especifi- grado no Centro Hospitalar de Coimbra (criado
camente destinado a prestação de cuidados de em 10 de março de 1971). De março de 1975 até
saúde a crianças não é consensual uma vez que é esta data o Serviço de Pediatria dos Hospitais da
difícil classificar algumas instituições como mera- Universidade de Coimbra foi transferido para a
mente responsáveis por cuidados gerais a crianças atual Maternidade Dr. Daniel de Matos.
20 JORGE SARAIVA

A 29 de janeiro de 2011 foi realizada a trans- O ensino médico da Pediatria no Porto ini-
ferência para as atuais instalações, tendo passado ciou-se no ano letivo 1917/1918 com o Prof. Dias
a integrar o Centro Hospitalar e Universitário de de Almeida e depois, em 1919, o Prof. António
Coimbra em um de abril de 2011. Foi o primeiro de Almeida Garrett, inicialmente no Hospital de
edifício construído de raiz para hospital pediátrico Santo António (onde mais tarde se reiniciou, no
em mais de um século em Portugal e permitiu o âmbito do Instituto de Ciências Biomédicas Abel
alargamento do atendimento (que anteriormente Salazar) e depois no Hospital de São João.
tinha sido até aos 10 anos e depois até aos 12) Em Coimbra o primeiro professor de Pediatria
ao grupo etário dos 13 aos 17 anos inclusive. foi o Prof. Morais Sarmento, no ano letivo
O primeiro registo documental de autono- 1917/1918, a que se sucederam os Professores
mia da Pediatria no ensino médico universitário é Elísio de Moura, João Porto, Lúcio de Almeida,
de julho de 1841 quando Frederik Theodor Berg José dos Santos Bessa e, a partir do ano letivo
foi nomeado diretor médico de um orfanato em 1974/1975, o Prof. Henrique Carmona da Mota
Estocolmo (e que transformaria num verdadeiro bem assim como pouco depois o Prof. Torrado da
hospital pediátrico em 1849) a par de responsável Silva e posteriormente a Professora Jeni Canha.
pelo ensino da Pediatria tendo orientado como Nos cursos de medicina criados posterior-
Professor de Pediatria do Real Instituto Médico- mente o ensino da Pediatria está presente desde
Cirúrgico de Carolinska desde abril de 1845 a o seu início.
Clínica Pediátrica formalmente instituída em maio
do mesmo ano.
A realização em Lisboa de 19 a 26 de abril de Leitura complementar
1906 do XV Congresso Internacional de Medicina
permitiu a aprovação de uma proposta do Prof. Crisp N, Chen L. Global Supply of Health Professionals. N
Jaime Salazar de Sousa para “que o ensino ci- Engl J Med 2014;370:950-957.
rúrgico e médico da Pediatria seja oficial em Bessa JS. “Breve História do Hospital Pediátrico de Coimbra.”
todas as Faculdades e Escolas de Medicina” o Revista da Fundação Bissaya-Barreto, 1987;2(4):5-13.
que veio a acontecer com a reforma do ensino Norvenius SG, Randers B. “150th Anniversary of the creation
de 1911 sendo que a nomeação do Prof. Jaime of the first Chair of Paediatrics in the world.” Acta Paeditr
Salazar de Sousa para professor de Pediatria da 1997;86: 443-447
Faculdade de Medicina de Lisboa ocorreu no ano OECD (2013), Health at a Glance 2013: OECD Indicators,
letivo 1916/1917. O ensino médico da Pediatria OECD Publishing.http://dx.doi.org/10.1787/health_glan-
em Lisboa transitou depois sucessivamente para ce-2013-en.
o Hospital Escolar de Santa Marta, com o Prof.
Castro Freire, e para o Hospital de Santa Maria,
tendo-se reiniciado no Hospital de Dª Estefânia
o ensino da Faculdade de Ciências Médicas de
Lisboa.
Capítulo 2.
A organização da rede
de cuidados de Saúde Infantil
e Juvenil em Portugal

2
José Carlos Peixoto
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_2
CAPÍTULO 2. A ORGANIZAÇÃO DA REDE DE CUIDADOS DE SAÚDE INFANTIL E JUVENIL EM PORTUGAL 23

2.1 CONTEXTO 2.2 DESCRIÇÃO DO TEMA

A maioria dos países com padrões de desen- Há 25 anos, em Portugal, uma conjuga-
volvimento humano semelhantes ao nosso, me- ção feliz de vários fatores, que passamos a
lhorou consideravelmente as taxas de mortalida- descrever para memória futura, esteve na base
de infantil (TMI) a partir dos anos 70, figura 1.. A deste sucesso, nomeadamente: i) a vontade
melhoria das condições de vida contribuiu para política em investir na estruturação da Saúde
esta evolução favorável generalizada. Contudo, Materna e Infantil (SMI) face à situação precária
em Portugal, outros fatores justificaram a queda de Portugal no ranking dos indicadores da SMI,
significativa da TMI verificada a partir dos anos relativamente aos parceiros da União Europeia
90. Na verdade, Portugal foi o país que mais (UE); ii) o envolvimento na solução de um con-
reduziu a TMI evoluindo da pior taxa da Europa junto de líderes visionários que já conheciam a
para passar a integrar, de forma sustentada, o realidade do país, sentiam o problema e sabiam
grupo dos países com as TMI mais baixas do mun- as soluções; iii) a nomeação em 1989 da pri-
do, figura 2. Esta queda deve-se à diminuição meira Comissão Nacional da Saúde Materna e
progressiva das taxas de mortalidade neonatal Infantil (CNSMI); iv) a visão estratégica correta e
e neonatal precoce, exatamente as que depen- a conceção competente do Programa Nacional
dem menos das condições socioeconómicas e da Saúde Materna e Infantil (PNSMI); e v) a co-
muito mais da organização e desempenho dos municação e o envolvimento dos profissionais
cuidados de saúde. como executores deste projeto.

Figura 1. Evolução da taxa da mortalidade infantil em Portugal e países da OCDE (1988 -2009).
24 JOSÉ CARLOS PEIXOTO

Figura 2. Comparação internacional das taxas de mortalidade infantil.

A autonomia concedida à CNSMI para im- 2.2.1 Visão estratégica do PNSMI


plementar o PNSMI e a capacidade de assumir
compromissos com uma estratégia de curto mé- Os circuitos de vigilância da grávida, do re-
dio e longo prazo, garantiram a continuidade das cém-nascido (RN), da criança e adolescente devem
bases do sucesso e a história demonstrou que os ser assegurados com universalidade e equidade
investimentos nesta área foram imprescindíveis e no acesso e na assistência como esquematizado
altamente recompensados. Portugal transformou- nas figuras 4 e 5.
-se num caso modelo de assistência na área da SMI A segurança no parto e a qualidade do nas-
e os profissionais e utentes passaram a aceitar e a cimento têm que ser asseguradas e garantidas a
defender o PNSMI como um Património Nacional. todos os portugueses.
Transcreve-se o testemunho do Professor Os bons cuidados exigidos ao nascer obri-
Henrique Carmona da Mota sobre esse momento gam a antecipação de uma boa vigilância da grá-
histórico (figura 3). vida e definição prévia do local de nascimento.
CAPÍTULO 2. A ORGANIZAÇÃO DA REDE DE CUIDADOS DE SAÚDE INFANTIL E JUVENIL EM PORTUGAL 25

Figura 3. Testemunho da origem do Programa Nacional de Saúde Materna e Infantil.

A segurança no parto exige equipas perina- Os cuidados de vigilância exigidos, devem


tais competentes com disponibilidade permanente ser garantidos na proximidade, para facilitar
e equipamento adequado, em todos os locais o acesso às populações e os cuidados que
onde se nasce. exigem experiência, segurança, estrutura e
A comunicação e cooperação entre os vários equipamentos diferenciados devem ser con-
profissionais envolvidos e a complementaridade centrados.
entre as instituições são imprescindíveis para ga- A monitorização de indicadores, a avaliação
rantir a assistência universal e continuidade de e a formação contínuas e a circulação da informa-
cuidados, figura 4. ção são fundamentais para garantir a atualização
A articulação dos cuidados hospitalares entre das normas de orientação clínica, o cumprimento
si, entre estes e os cuidados primários e a inte- das boas práticas e uma melhoria contínua da
gração/inclusão do setor privado, superiormente qualidade.
regulamentada é obrigatória para garantir uma O envolvimento e participação dos profis-
assistência eficiente, figura 5. sionais e das sociedades científicas são impres-
Os recursos devem ser rentabilizados, ade- cindíveis. A coordenação deve ser competente,
quados e adaptados às necessidades assistenciais. técnica, cooperante, motivada e contínua.
26 JOSÉ CARLOS PEIXOTO

Figura 4. Intervenções necessárias para consolidar a baixa Figura 5. Organização dos Circuitos Assistenciais.
sustentada da Mortalidade Infantil.

2.2.2 Implementação do PNSMI sinalização das situações de risco social para os


cuidados primários e os registos aproveitados para
Os Circuitos Assistenciais para a vigilância avaliar as necessidades ainda não satisfeitas, o
da Grávida, RN e Criança, figura 5 foram imple- resultado da vigilância da gravidez, da qualidade
mentados garantindo equidade e facilidade no do parto e do nascimento.
acesso e na assistência a nível nacional. Foi pos- Após a alta do RN a continuidade de cui-
sível, graças ao sistema de vigilância partilhada, dados é garantida nos cuidados primários, nas
à cooperação multidisciplinar e complementari- respetivas Unidades de Saúde, para cumprir o
dade interinstitucional. A vigilância de primeira Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil
linha ficou assegurada nos Cuidados de Saúde (PNSIJ) recentemente atualizado (2013). As con-
Primários pelos Médicos de medicina geral e fa- sultas de referência nos Serviços de Pediatria, as
miliar e a referenciação quando necessária passou Equipas de Intervenção Precoce (ELI) integradas no
a ser garantida nas consultas de referência dos Sistema Nacional de Intervenção Precoce (SNIPI),
hospitais cumprindo os protocolos de referência os Núcleos de Apoio às Crianças e Jovens em
interinstitucionais entretanto desenvolvidos e Risco (NACJR), o rastreio de doenças hereditárias
implementados pelas Unidades Coordenadoras do metabolismo, o cumprimento do Programa
Funcionais (UCF). Nacional de Vacinação e a articulação com os
A Notícia de Nascimento implementada estabelecimentos de ensino cumprindo os pro-
a nível nacional, foi um instrumento importan- gramas de Saúde escolar complementam esta
te para promover a identificação, o registo e a intervenção.
CAPÍTULO 2. A ORGANIZAÇÃO DA REDE DE CUIDADOS DE SAÚDE INFANTIL E JUVENIL EM PORTUGAL 27

A segurança no parto e a qualidade no já que este pequeno grupo que corresponde a


nascimento a nível nacional foram garantidos menos de 1% dos RN representa mais de 60%
com o encerramento de mais de 150 locais onde da mortalidade neonatal.
se nascia sem as condições mínimas necessárias e As Redes de Referenciação foram estrutu-
com a reorganização e requalificação dos Serviços radas para satisfazer simultaneamente as necessi-
de Obstetrícia e Maternidades. Implementou-se: a dades de vigilância na proximidade e concentrar as
formação a adequação e a distribuição de recursos situações de risco para obter melhores resultados
humanos, (enfermeiras, obstetras, pediatras com com menores custos. Estabeleceram-se as articu-
subespecialidade em neonatologia - neonatologis- lações entre os Cuidados de Saúde Primários e os
tas e anestesistas); a melhoria das instalações e a Hospitais e estes entre si para a referenciação a
distribuição racional adequada dos equipamentos, áreas diferenciadas, figura 6; foram definidas as
com definição de “equipas perinatais tipo” para competências dos cuidados de saúde primários
os serviços de urgência, que passaram a contar e dos cuidados de saúde hospitalares; foram de-
com a presença física permanente de um obstetra, finidos critérios para classificar os hospitais em
de um pediatra e de um anestesista, de forma Hospitais de Apoio Perinatal (HAP) e Hospitais de
a garantir a assistência clínica adequada a todos Apoio Perinatal Diferenciado (HAPD), articulados
os partos 365 dias por ano e 24 horas por dia; a em redes com distribuição geográfica homogé-
viabilização de polos de reanimação e unidades nea a nível nacional. O Sistema de Transporte
de cuidados intermédios em todos os hospitais; Neonatal medicalizado interinstitucional,
e a organização de unidades de cuidados inten- iniciado em 1986, foi alargado a todo o País a
sivos neonatais nos Hospitais de Apoio Perinatal partir de 1989 e em 1994 passou a ser rentabi-
Diferenciado (HAPD). lizado para o transporte pediátrico, atualmente
efetuado até aos 18 anos.
Os casos de grande risco obstétrico e As Unidades Coordenadoras Funcionais
neonatal passaram a ser concentrados nos HAPD (UCF) foram criadas um ano depois do início do
graças ao transporte neonatal medicalizado inte- PNSMI, para consolidar as redes assistenciais, e
rinstitucional e à promoção do transporte in uteru, manter a articulação funcional entre os diferen-
com antecipação do melhor local para o nascimen- tes níveis de cuidados de saúde. São estruturas
to. A adesão e o envolvimento dos profissionais originais, constituídas por equipas multidiscipli-
e sociedades científicas na execução do PNSMI nares, integrando profissionais dos hospitais (ser-
foram imprescindíveis para a concretização destes viços de obstetrícia e pediatria) e das respectivas
objetivos. Graças a estas orientações, é possível Administrações Regionais de Saúde (ARS) com
concentrar actualmente o nascimento nos HAPD responsabilidades na saúde materna e infantil.
de mais de 90% dos RN com idade de gestação Passaram a garantir: a coordenação; a comuni-
inferior a 32 semanas e aumentar para mais de cação e cooperação entre os especialistas hos-
90% a sobrevida deste grupo. Estas intervenções pitalares e os médicos de medicina geral e fami-
foram decisivas para reduzir ainda mais a TMI liar; a elaboração dos protocolos de referência
28 JOSÉ CARLOS PEIXOTO

interinstitucionais em cada rede de referência; a A última requalificação dos Serviços de


circulação da informação; a divulgação e correta Urgência perinatal operada em 2006, com o en-
utilização do Boletim de Saúde da Grávida e do cerramento de blocos de parto que tinham na
BSIJ; a divulgação, atualização e cumprimento das proximidade alternativas com melhor qualidade,
Normas de Orientação Clínica (NOC). São ainda atenuou esta tendência, permitiu rentabilizar os
responsáveis por monitorizar alguns indicadores recursos existentes e garantir as “equipas peri-
recomendados pela CNSMI para avaliar as neces- natais tipo”, uniformes em todo o País.
sidades assistenciais locais, programar ações de Numa altura de envolvimento coletivo no
formação, implementar programas de intervenção combate legítimo ao desperdício e obrigados a
tais como, a auditoria multidisciplinar dos óbitos, poupar, devemos afirmar que a assistência ma-
das asfixias perinatais, das malformações, identi- terna e infantil preconizada no PNSMI sempre foi
ficação e orientação das famílias com risco social, das áreas com melhor relação custo-efetividade.
análise das vigilâncias inadequadas da gravidez, Este facto, creio que involuntariamente,
das referenciações e da grande prematuridade. não foi contemplado na recente e promissora
O reconhecimento da importância das UCF reforma dos cuidados de saúde primários. Não
para dar coesão e continuidade à assistência na se aproveitou este modelo para as soluções.
área da saúde materna e neonatal justificou o Comprometeram-se as relações profissionais e
alargamento deste modelo organizativo aos cir- interinstitucionais e o suporte legal das UCF.
cuitos assistenciais da criança e do adolescente. O desaproveitamento do papel coordena-
dor, mobilizador e consultor ao mais alto nível da
Constrangimentos e soluções CNSMCA, estrutura competente aceite e reconhe-
A crise económica e a desejável necessida- cida pelos profissionais, não permitiu integrar as
de de luta contra o desperdício precipitaram a ações necessárias para acautelar o PNSMI na nova
necessidade de reformas na Saúde. A partir do reforma, nem interferir nos indicadores e proces-
ano 2000 o aparecimento de novos hospitais com sos de contratualização em curso, nomeadamente
novos modelos de gestão (SA, EPE, PPP), desin- para o cumprimento das funções das UCF.
seridos das redes de referência, com autonomia As Comissões Regionais da Saúde da Mulher
administrativa e de gestão, nem sempre com Criança e Adolescente (CRSMCA) representan-
supervisão central, não preveniram e em alguns tes locais da CNSMCA, nos locais onde conti-
casos até precipitaram a dispersão da assistência nuaram a ser reconhecidas pelos profissionais e
pediátrica e perinatal diferenciada. pelas Administrações Regionais de Saúde (ARS),
A aposta na liberdade de concorrência, de quem dependem, mantiveram as relações pro-
comprometeu os princípios da rentabilização de fissionais e interinstitucionais, práticas históricas
recursos, dificultou os processos de referenciação, instituídas geradoras de muitos ganhos em saúde,
começaram a ser postos em causa a equidade e a garantindo a continuidade do trabalho das UCF.
universalidade dos circuitos assistenciais e agravou A continuidade da CRSMCA da ARS do
substancialmente a relação custo-efetividade. Centro beneficiando do reconhecimento e
CAPÍTULO 2. A ORGANIZAÇÃO DA REDE DE CUIDADOS DE SAÚDE INFANTIL E JUVENIL EM PORTUGAL 29

Figura 6. Redes de Referenciação e UCF.

autonomia concedidas pelos sucessivos conse- PNSMI, potenciando-o sem colidir com as virtudes
lhos de administração da ARS, permitiu conso- da nova reforma. Com base neste Despacho foi
lidar a Regionalização de Cuidados Perinatais e possível “reativar” as UCF, repor-lhes o suporte
Pediátricos na Região Centro, figuras 6, 7, modelo legal, adaptá-las aos novos modelos de gestão,
invejável, difícil de implementar e consolidar, re- manter a interface entre os cuidados de saúde
comendado pelas sociedades científicas por ser o primários e os hospitalares, consolidar as relações
mais eficiente, evitando a dispersão dos serviços inter-hospitalares e a referenciação para as áreas
mais diferenciados. diferenciadas. Pela primeira vez foram constituí-
A ação continuada das Comissões Regionais das as UCF inter-hospitalares tanto na vertente
permitiu a elaboração do Despacho 9872/2010 materna e neonatal como na vertente pediátrica
que defende e permite dar continuidade ao e adolescente figuras 7 e 8.
30 JOSÉ CARLOS PEIXOTO

Figura 7. Regionalização dos Cuidados Perinatais da Região Centro.

As “novas” UCF estão adaptadas à atual or- Reconhecer o PNSMI como um património
ganização dos Cuidados de saúde primários sendo nacional, é uma obrigação de todos os profissio-
a estrutura de eleição para atenuar e corrigir as nais de saúde que devem continuar a ser os seus
iniquidades em saúde detetadas em Portugal e advogados, e os seus executores e promover a sua
referidas no relatório da OCDE em 2015. integração nos Planos de ação dos Diretores de
A revisão do PNSIJ e a informatização do Serviço, dos Presidentes dos Conselhos Clínicos,
BSIJ e da Notícia de Nascimento e a prometida dos responsáveis das Sociedades Cientificas e das
informatização do Boletim de Saúde da Grávida Ordens profissionais.
são instrumentos fundamentais para avaliar e dar
coesão a esta assistência. PS: Se não assumirmos este Dever de Cidadania,
Os indicadores de contratualização para se abdicarmos da gestão clínica, se nos deixarmos
os cuidados da saúde primários e hospitalares conduzir por uma gestão exclusivamente
atualmente em curso, orientados preferencial- economicista, inconscientemente seremos
mente para a avaliação da produção, devem ser induzidos a praticar uma medicina baseada em
adaptados ao acesso e qualidade assistencial dos indicadores de produção, desviando-nos da
circuitos assistenciais e deverão incluir a avalia- essência da nossa profissão e talvez sejamos
ção dos resultados da qualidade dos cuidados de obrigados a reescrever esta história começando
saúde prestados e garantir as funções das UCF. por “era uma vez”. José Carlos Cabral Peixoto.
CAPÍTULO 2. A ORGANIZAÇÃO DA REDE DE CUIDADOS DE SAÚDE INFANTIL E JUVENIL EM PORTUGAL 31

Figura 8. Regionalização dos Cuidados Pediátricos e Adolescentes da Região Centro.

Leitura complementar PORTUGAL. Direcção-Geral da Saúde. Divisão de Saúde


Materna, Infantil e dos Adolescentes Saúde Materno-
Xavier Barreto e José Pedro Correia (coordenadores) Infantil: Rede de Referenciação Materno-Infantil. – Lisboa:
Octávio Cunha, Alice Matos, José Peixoto, José Cunha Direcção-Geral da Saúde, 2001.
Machado, Odete Alves Nina Sousa Santos. Fundação Grupo do Registo Nacional do Muito Baixo Peso. Seccão
Francisco Manuel dos Santos, Julho de 2014. A morta- de Neonatologia da Sociedade Portuguesa de Pediatria.
lidade infantil em Portugal: evolução dos indicadores Registo Nacional dos Recém-Nascidos de Muito Baixo
e factores associados entre 1988 e 2008. Disponível Peso. Rede de Investigação Neonatal Nacional. Acta
em:http://www.ffms.pt /estudo/14/evolucao-da-mor- Pediatr Port 1999;30:485-91.
talidade-infantil Peixoto, J. C., Guimarães, H., Machado, M.C., Martins, V.,
Despacho n.º 9872/2010, 11 junho, Reorganização das Mimoso, G., Neto, M.T., et al. (Ed.). (2002). Nascer prema-
Unidades Coordenadoras Funcionais e da Assistência turo em Portugal – estudo multicêntrico nacional 1996-
Materna e Infantil. Ministra da Saúde Dra. Ana Jorge. 2000. PRÉMIO BIAL DE MEDICINA CLÍNICA 2002 Porto:
Portugal. Ministério da Saúde. Missão para os Cuidados de Fundação Bial. 2010, disponível em: www.lusoneonato-
Saúde Primários. Linhas de Acão prioritárias para o de- logia.net/usr/files/download/d5be427979a647e615755a-
senvolvimento dos cuidados de saúde primários. Lisboa: 1d04f4fa13.pdf
Missão para os Cuidados de Saúde Primários. Ministério
da Saúde, 2006.
Capítulo 3.
Programa nacional
de intervenção precoce

3
José Boavida
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_3
CAPÍTULO 3. PROGRAMA NACIONAL DE INTERVENÇÃO PRECOCE 35

3.1 CONTEXTO fatores genéticos, mas modificados tam-


bém por influências ambientais, positivas
A Intervenção Precoce na Infância (IPI) tem e negativas.
sido alvo de extensa investigação e constitui um
tema contemporâneo, no âmbito do apoio a 2.A investigação sugere uma base neurobio-
crianças com necessidades educativas especiais. lógica para a IP, relacionada com aquilo
A evidência científica estabelece uma base que se designa por plasticidade neuronal,
empírica sólida que demonstra a importância dos embora o potencial de desenvolvimento
primeiros anos, no estabelecimento da aprendi- não esteja irremediavelmente limitado a
zagem ao longo da vida. um período crítico estrito, para além do
Particularmente, a investigação em neuro- qual a mudança é impossível.
ciências, tem posto em evidência a forma como a
interação entre genética e experiências precoces, 3.Fatores de risco e deficiências têm o poten-
cria uma base para o desenvolvimento e compor- cial para agravar ou levar ao aparecimento
tamento subsequentes. de deficiências secundárias. Uma criança
É hoje cada vez mais claro, que o sucesso com problemas motores graves, vai ficar
de estratégias de intervenção precoce na criança limitada na sua capacidade exploratória
se deve em grande parte à plasticidade neuronal. normal do ambiente, com repercussões
Contudo, independentemente de toda a evidên- noutras áreas do desenvolvimento.
cia neurobiológica sobre o efeito do ambiente
no desenvolvimento do sistema nervoso central, 4.Os pais de crianças com um desenvolvi-
a IPI assume também grande importância na mento atípico podem necessitar de apoio
prestação de apoio às famílias, nomeadamente profissional para estabelecer capacidades
na identificação e coordenação de recursos da parentais adequadas.
comunidade, que deêm resposta às necessidades
da criança, no alívio do stresse, na melhoria do 5.A heterogeneidade da população alvo
bem-estar e consequentemente dos padrões de é enorme pelo que a gama de serviços
interação pais-filhos. e apoios de que as crianças e famílias
carecem, pode ser tão vasta, que a IPI
só faz sentido numa perspetiva pluridis-
3.2 DESCRIÇÃO DO TEMA ciplinar. Uma criança de risco biológico
a viver numa família urbana de classe
3.2.1 Intervir precocemente porquê? média alta, apresenta necessidades to-
talmente diferentes duma criança com
1. Sabe-se que o desenvolvimento e com- problemas graves do desenvolvimento
portamento humanos, não são fixos ou e saúde, proveniente duma família dis-
pré-determinados ao nascer, apenas por funcional.
36 JOSÉ BOAVIDA

SENTIDO DA EVOLUÇÃO
População-alvo Crianças dos 0-3 anos Crianças dos 0-5 anos
com “deficiência” Com perturbação do desenvolvimento
e/ou risco e famílias
Contexto Centros de estimulação Contextos naturais
Centros terapêuticos (casa, jardim de infância, etc.)
Instituições Base comunitária
Práticas “Pronto-a-vestir” “Feitas por medida”
Individualizadas
Papel dos profissionais Peritos / decisores Facilitadores
e = =
famílias Recetores passivos de serviços Participantes ativos / decisores
Objectivos / resultados Desenvolvimento da criança Prevenção
Remediação da deficiência Compensação / adaptação (deficiência)
“Empowerment” / capacitação das famílias
Trabalho de equipa Multi / interdisciplinar Trandisciplinar
(com inclusão da família)
Enquadramento Centrada na criança Centrada na família
filosófico da IP Baseada nos “défices” Baseada nas “forças”

Quadro 1. Evolução da IPI.

3.2.2 O que é intervenção quer etiológico, de terapêutica e de estimulação.


precoce na Infância? Inclui ainda ações que têm por alvo a família, com
o objetivo de melhorar a autonomia, os conheci-
IPI não é uma técnica específica, é um proces- mentos, as capacidades de adaptação, as compe-
so que se inicia no rastreio universal e identificação tências parentais e a melhor utilização dos recursos
dos problemas de desenvolvimento, passa pela se- disponíveis.
leção dos casos a apoiar, pela avaliação da criança,
pela identificação de preocupações, prioridades, 3.2.3 Enquadramento conceptual
recursos e dificuldades da família e pela elaboração da IPI – boas práticas
e implementação dum plano individualizado de
intervenção precoce (PIIP). Este processo inclui O conceito e essencialmente as práticas de
avaliações periódicas e reajustes, com base nas IPI têm evoluído de um modo positivo de forma
alterações verificadas ao longo do tempo. significativa nas últimas décadas. De serviços cen-
Inclui ações dirigidas a crianças de alto risco trados na criança, utilizando métodos semelhantes
ou com problemas no seu neurodesenvolvimen- aos da educação especial de crianças mais velhas,
to, nomeadamente de diagnóstico, quer funcional em que um profissional de educação trabalhava
CAPÍTULO 3. PROGRAMA NACIONAL DE INTERVENÇÃO PRECOCE 37

isoladamente com uma criança pequena com pro- situações mais graves, contrariamente aos pro-
blemas de desenvolvimento, a IPI evoluiu para uma blemas ligeiros do desenvolvimento, os ganhos
gama de serviços individualizados, “centrados na mensuráveis a este nível são infelizmente pe-
família”, prestados por equipas transdisciplinares quenos. Atualmente, os resultados são medidos
numa base comunitária. O quadro 1 mostra o sen- não só pela evolução do desenvolvimento da
tido da evolução da IPI nos últimos anos. criança mas também pelos ganhos da família
O alvo dos serviços passou a incluir para em termos de autonomia, independência e
além das crianças com problemas estabelecidos competências.
do seu desenvolvimento, crianças de alto risco, A grande mudança concetual da IPI nos
biológico ou ambiental. últimos anos e a mais difícil de implementar,
Não se preconiza hoje um contexto tipo para tem sido a evolução a partir de serviços cen-
a IPI. Há que considerar uma variedade de fatores trados na criança, de acordo com um modelo
na escolha do ambiente ótimo para intervir numa médico-terapêutico, para serviços centrados
criança particular: tipo de problemas, recursos na família, com base em modelos de desen-
existentes, disponibilidade da família, entre ou- volvimento ecológico e transacional. A IPI tem
tros. O domicílio, o infantário, o centro de saúde que ter em conta as importantes contribuições
ou qualquer outro local na comunidade podem da unidade familiar, assim como os fatores de
ser perfeitamente adequados, desde que sejam stresse que a afetam (sejam sociais, financeiros
contextos naturais. ou psicológicos) e a capacidade de adaptação
Cada criança apresenta necessidades únicas a novos desafios. É importante reconhecer que
e vive numa família também única, com recursos as capacidades parentais são um fenómeno do
e prioridades diferentes de todas as outras. Só desenvolvimento e um processo evolutivo que
práticas individualizadas podem dar resposta a coincide com as aquisições de desenvolvimento
cada caso. da criança e que os pais podem desenvolver e
Uma das principais mudanças concetuais da melhorar. De facto, o conceito de IPI “centrada
IPI nos últimos anos tem a ver com o crescente na família” tem na sua base três pressupostos:
reconhecimento da necessidade duma relação
entre pais e profissionais, menos hierárquica e 1. Todos os pais têm competências ou são
mais colaborativa. Tradicionalmente os profissio- capazes de as desenvolver.
nais assumiam um papel de peritos e decisores 2. A IPI deve ser prestada de forma a que
enquanto as famílias eram vistas como recetores os pais possam evidenciar as suas com-
passivos de serviços. petências.
Relativamente aos objetivos e aos resulta- 3. A intervenção deve ir de encontro às
dos esperados com a IPI também houve igual- necessidades identificadas pela família,
mente uma clara evolução. Os primeiros progra- de forma a promover um sentimento de
mas de IPI focavam-se quase exclusivamente no controlo sobre as suas vidas e as dos seus
desenvolvimento da criança, sabendo-se que nas filhos.
38 JOSÉ BOAVIDA

Preconizam-se hoje práticas baseadas nas três exemplos específicos, pela qualidade das suas
forças, contrariamente às práticas baseadas nos práticas: Munich (Alemanha), Vasterás (Suécia) e
défices, para as quais todos estamos profissional- Coimbra (Portugal).
mente mais preparados. A família deve ser enca-
rada pelos profissionais como parte da solução e O modelo concetual baseado numa inter-
não parte do problema. venção ecológica e centrada na família e a es-
trutura do PIIP que incluía equipas concelhias de
IPI, coordenadas por uma equipa distrital envol-
3.2.4 Legislação vendo em ambos os níveis elementos dos três
ministérios, iniciou uma mudança paradigmática
3.2.4.1 Projeto Integrado de Intervenção na IPI em Portugal, que culminou na publicação
Precoce do Distrito de Coimbra (PIIP) – em 1999 do Despacho Conjunto 891/99, dos
Um percursor do modelo nacional Ministérios da Saúde, Educação e Segurança
Os anos 90 foram dos mais produtivos no Social, primeira legislação a regulamentar a prá-
campo da intervenção precoce em Portugal. Em tica da IPI no país. A aprovação em 6 de Outubro
pouco mais de uma década, a IPI evoluiu de um de 2009 do Decreto-Lei 281/2009, na sequência
serviço emergente, prestado numa lógica de in- dum processo de avaliação do anterior despacho,
tervenção centrada na criança, para uma área criou o Sistema Nacional de Intervenção Precoce
de rápido crescimento, com um enquadramento na Infância.
concetual completamente diferente.
Parte desta evolução foi desencadeada pela 3.2.4.2 Sistema Nacional de Intervenção
implementação em 1989 do Projeto Integrado Precoce na Infância (SNIPI)
de Intervenção Precoce do Distrito de Coimbra
(PIIP), um programa de IPI de base comunitária, 3.2.4.2.1 Linhas Gerais
que tinha por objetivo prestar serviços individua- O Decreto-lei 281/09 de 6 de Outubro, criou
lizados e abrangentes, a crianças pré-escolares formalmente o SNIPI, que tem por objetivo “ga-
com necessidades especiais e famílias, envolvendo rantir condições de desenvolvimento das crianças
Saúde, Educação e Segurança Social. O Centro dos 0 aos 6 anos, com funções ou estruturas do
de Desenvolvimento da Criança do Hospital corpo que limitam o crescimento pessoal, social, e
Pediátrico de Coimbra esteve envolvido em to- a participação nas atividades típicas para a idade,
dos os momentos do processo, da conceção à bem como das crianças com risco grave de atraso
implementação, ficando por isso inequivocamente no desenvolvimento”.
ligado à história da IPI em Portugal. O SNIPI é desenvolvido através da atuação
A Agência Europeia para o Desenvolvimento coordenada dos Ministérios do Trabalho e da
da Educação em Necessidades Especiais publicou Solidariedade Social (MTSS), da Saúde (MS) e da
em 2005 uma avaliação detalhada da situação da Educação (ME), com envolvimento das famílias e
IPI na União Europeia e no seu relatório destacou da comunidade.
CAPÍTULO 3. PROGRAMA NACIONAL DE INTERVENÇÃO PRECOCE 39

Considera-se Intervenção Precoce na Infância dois processos independentes e sendo geralmen-


(IPI), de acordo com este Decreto-lei, o conjun- te o tempo de espera para primeira consulta de
to de medidas de apoio integrado, centrado na neurodesenvolvimento elevado, não se justifica o
criança (0 aos 6 anos) e na família, incluindo ações atraso no acompanhamento da criança e família
de natureza preventiva e reabilitativa, designa- pela equipa local.
damente no âmbito da educação, da saúde e da Os elementos da saúde devem, como os de
ação social. outros setores, participar na ELI numa perspetiva
Os setores envolvidos têm competências pró- transdisciplinar, envolvendo-se o mais possível na
prias e intersectoriais nomeadamente no âmbito elaboração dos planos individuais de intervenção
das diferentes equipas, a nível nacional, regional precoce, apresentando e clarificando a informação
e local. médica relevante.
Ao MTSS compete essencialmente a coo- Às Consultas / Centros de Desenvolvimento,
peração ativa com as Instituições Particulares de cabe duma forma geral o diagnóstico, orientação
Solidariedade Social (IPSS), de modo a celebrar e acompanhamento especializados. Diagnóstico
acordos para a contratação de profissionais de etiológico, exames complementares, encaminha-
serviço social, terapeutas e psicólogos para as mento para outras consultas de especialidade que
equipas locais de IPI. se julguem necessárias ou avaliações por profissio-
Ao ME compete organizar uma rede de nais não médicos (terapeutas, psicólogos, outros).
escolas de referência para a IPI e assegurar as A articulação e coordenação de ações entre
medidas educativas previstas para cada criança, os três ministérios é assegurada pela comissão
através da afetação de docentes para integrarem de coordenação do SNIPI, que para além de dois
as equipas locais do SNIPI. representantes de cada um dos três ministérios,
O MS tem competências específicas rele- integra cinco subcomissões regionais, com um
vantes no âmbito do SNIPI. Aos Cuidados de representante de cada setor. A comissão de coor-
Saúde Primários compete duma maneira geral denação é presidida por um representante do
o rastreio, deteção e referenciação de crianças MTSS.
elegíveis. De acordo com a legislação, a Saúde As ELIs são a base do sistema. Encontram-
é a “porta de entrada” no sistema e são os pro- se localizadas preferencialmente em Centros de
fissionais de saúde que têm a responsabilidade Saúde. Esta localização tem por objetivo melhorar
de orientar as crianças para o SNIPI, de acordo a participação dos cuidados de saúde primários no
com os critérios de elegibilidade definidos e que SNIPI para além de contribuir para uma prestação
se apresentam de seguida. A identificação de de serviços em contextos naturais.
problemas de desenvolvimento e/ou fatores de As ELIs integram técnicos das várias áreas,
risco biológico ou ambiental, deve levar à refe- tais como médicos, enfermeiros, educadores de in-
renciação para a equipa local de intervenção (ELI) fância, fisioterapeutas, terapeutas da fala, técnicos
da área e se justificar, à orientação simultânea de serviço social, psicólogos, entre outros, compe-
para a consulta de referência. Recorde-se que são tindo-lhes, dentro do modelo transdisciplinar de
40 JOSÉ BOAVIDA

intervenção, potenciar as sinergias das famílias, atraso relevante no desenvolvimento da


em equipa, nomeadamente: criança.
i) mediação dos primeiros contactos entre
a família e o serviço de IP; São elegíveis para acesso ao SNIPI, todas
ii) planificação da avaliação; as crianças do 1º grupo e as crianças do 2º que
iii) avaliação da criança; acumulem quatro ou mais fatores de risco bioló-
iv) Identificação das preocupações, priori- gico e/ou ambiental. Tal como foi empiricamente
dades e recursos da família; demonstrado, este número constitui o ponto de
v)desenvolvimento dos objetivos para al- charneira para um aumento substancial do efeito
cançar as necessidades da criança e da do risco (efeito cumulativo do risco).
família;
vi) implementação do Programa Individual
de Intervenção Precoce; 3.3 FACTOS A RETER
vii) articulação com outras entidades (i.e.
Comissões de Proteção de Crianças e IPI deve dar resposta às necessidades de
Jovens); crianças pré-escolares, com problemas no seu
viii) avaliação formal e informal do PIIP; desenvolvimento físico, cognitivo, da comunicação
ix) preparação da transição para o primeiro e linguagem, social, emocional ou adaptativo, ou
ciclo. que, por exposição a situações de risco, tenham
alta probabilidade de os vir a ter.
3.2.4.2.2 Critérios de elegibilidade Com a publicação do Decreto – Lei 281/09,
São elegíveis para apoio no âmbito do SNIPI intervir precocemente nos problemas de desen-
crianças entre os zero e os seis anos e respetivas volvimento deixou de ser apenas um imperativo
famílias, que apresentem condições incluídas nos moral e ético e passou a ser uma imposição legal.
seguintes grupos: Intervenção Precoce na infância é um con-
ceito e uma prática que continua a evoluir e a
1º - «Alterações nas funções ou estru- refletir a vontade e determinação de investir muito
turas do corpo» que limitam o normal precocemente em crianças com problemas de
desenvolvimento e a participação nas neurodesenvolvimento e suas famílias. Cabe aos
atividades típicas, tendo em conta os re- profissionais de saúde em geral e aos médicos
ferenciais de desenvolvimento próprios, em particular, um importante papel nesta área.
para a respetiva idade e contexto social;

2º - «Alto risco de atraso de desenvol-


vimento» pela existência de condições
biológicas, psicoafectivas ou ambientais,
que implicam uma alta probabilidade de
Capítulo 4.
História Clínica

4
Guiomar Oliveira
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_4
CAPÍTULO 4. HISTÓRIA CLÍNICA 43

4.1 CONTEXTO Apesar de ser útil seguir um guião na rea-


lização duma HC em Pediatria, à semelhança do
Esta descrição da história clínica (HC) em adulto, aqui a sua flexibilização e redireciona-
Pediatria não é exaustiva, nem esgota o tema, mento tornam-se mais vezes necessários tendo
são apenas linhas orientadoras. Por se tratar de em conta algumas especificidades, tais como: a
uma aprendizagem pilar e estruturante de toda idade (recém-nascido, lactente, pré-escolar, esco-
a clínica e arte pediátrica, no final, identifica-se lar e adolescente) e o contexto em que o médico
a leitura que complementa esta lição. observa a criança (rotina – a maioria; doença –
aguda, preocupações específicas e seguimento
A boa prática da medicina deve centrar-se de vigilância; ou doença crónica).
no seu instrumento mais específico que é a his- A idade determina não só a anamnese; cada
tória clínica. Nesta lição vamos adaptá-la à idade período etário tem caraterísticas, problemas e
pediátrica. doenças específicas, mas também o modo de
Já sabemos que a Pediatria é a especialidade abordagem condicionado por um estadío de neu-
médica que engloba os cuidados integrais de saú- rodesenvolvimento e físico exclusivo, em constante
de à criança e ao adolescente (dos 0 aos 18 anos) evolução.
desde a sua conceção, numa perspetiva holística
de promoção da saúde, prevenção e tratamen- A perspetiva holística e biopsicossocial da co-
to das doenças. Contempla ainda a defesa do lheita da história, da observação, da enumeração
seu bem-estar físico, mental e social. Esta visão dos problemas e vantagens (fatores protetores) da
global da Pediatria, centrada na promoção da criança e a respetiva intervenção, numa conceção
melhor qualidade de vida para a criança e jovem, salutogénica, devem ser seguidas.
integrados no seu meio ambiente, não deve ser Recordar que o que o médico diz, e como
esquecida em nenhuma observação médica. diz, pode influenciar de um modo positivo ou
negativo a qualidade de vida das famílias.
De salientar que cerca de 90% das consultas
de saúde infantil e juvenil se processa ao nível As palavras são a mais poderosa droga uti-
dos cuidados de saúde primários (em 2009 no lizada pela humanidade ... Rudyard Kipling.
total de 3. 733. 226 consultas de idade pediátrica,
3. 256. 842 foram de saúde infantil e juvenil a Os cenários clínicos expectáveis na
cargo dos cuidados de saúde primários), só uma realização da HC serão então a estes níveis:
minoria se faz no Hospital. Na verdade, a maioria
das crianças é saudável, e quando adoece, as 1. Consulta de Vigilância de Saúde Infantil e
situações clínicas são habitualmente benignas e Juvenil (CSIJ) (consultas de rotina).
autolimitadas. Não complicar é uma virtude, o 2. Consulta por queixas/problema específico:
que não significa banalizar. Toda a queixa tem situação aguda (cuidados de saúde primá-
que ser valorizada. rios de ambulatório ou hospitalares do
44 GUIOMAR OLIVEIRA

grupo I, II ou III – serviço de urgência ou ato médico. Deve iniciar-se de um modo formal e
consulta de agudos e internamento); se- amistoso, em espaço próprio e condigno. O mé-
guimento hospitalar em colaboração com dico, previamente, deve saber quem vai receber,
os cuidados de saúde primários (doença e estar a par da informação disponível. Deve estar
crónica, preocupação…). identificado e apresentar-se. É útil saber o nome da
criança, idade, de onde vem, uma ou outra carate-
Em Portugal a CSIJ tem por base uma es- rística “positiva” que possa ser utilizada como frase
trutura organizativa bem sedimentada, com uma inicial “quebra gelo”. Deve falar calmamente e com
experiência de quase 25 anos, através da imple- linguagem adaptada à circunstância (cuidado com
mentação do Programa Nacional de Vigilância a utilização de termos médicos não compreensíveis,
em Saúde Infantil e Juvenil (PNSIJ) (primeiro em mas deve-se utilizar linguagem diferenciadora da
1992) pela Direção Geral da Saúde do Ministério população geral; é um médico…). Saber ouvir sem
da Saúde. As revisões subsequentes deram-se em pressas (ou pelo menos não dar a perceber…).
2002, 2005 e a última em 2013. Registar (pode ser mentalmente) o importante da
No atual PNSIJ (http://www.dgs.pt/?cr=24430) história e também as preocupações dos pais ou da
o número e a periodicidade de consultas de vigilân- criança, que deveremos reter, para esclarecimento
cia recomendadas são: primeiro ano de vida – sete posterior. Mostrar conhecimento e profissionalis-
(primeira semana de vida, 1, 2, 4, 6, 9 e 12 meses de mo, dirigir o “diálogo” sem ser fundamentalista.
idade); entre o 1 e os 3 anos – quatro consultas (15 e Deve seguir-se uma ordem, mas poderemos usar
18 meses, 2 e 3 anos); dos 4 aos 5 – duas consultas o oportunismo “se vier à conversa”. A experiência
(4 e 5 anos); entre os 6 e os 9 anos – duas consultas mostra que devemos ser cautelosos nas conclu-
[6 ou 7 anos (final 1º ano do 1º ciclo) e 8 anos]; sões, o que parece à primeira informação, pode
dos 10 aos 18 anos - três consultas [10 anos (início não ser; aguardar a emissão de “opinião” para o
2º ciclo),12/13 anos e 15/18 anos]. Detalhes dos fim, depois da história completa. Até lá, vamos
objetivos, estrutura, temas de conversa e cuidados formulando hipóteses que vamos rejeitando ou
antecipatórios destas consultas, constam na última apurando, mas só para nós. A família espera que
edição do Boletim de Saúde Infantil e Juvenil (BSIJ) no final se comprometa com um parecer clínico,
que deve ser de leitura obrigatória (disponível mas fundamentado (pela história natural, pela fi-
nas maternidades ou centros de saúde). siologia ou fisiopatologia). Se explicarmos de um
modo compreensível a fundamentação para a nos-
Apesar desta calendarização prévia da cro- sa hipótese, a consulta torna-se psicoterapêutica.
nologia das consultas, não deveremos perder o Este nível exige muito conhecimento e experiência.
sentido do oportunismo e examinar a criança
quando for conveniente. A mensagem a reter para os alunos é
que PRATIQUEM a HC, sempre que possível,
O diálogo entre o médico e a família/criança, quanto mais vezes, melhor. Não há histórias
para realização da HC, deve ser encarado como um iguais.
CAPÍTULO 4. HISTÓRIA CLÍNICA 45

O interrogatório (anamnese) e a inspeção 3. Motivo de consulta


(sem tocar na criança) ocupam a maior parte (preferível - palavras do acompanhante ou
do tempo dispensado à realização duma HC. A adolescente)/motivo internamento, se for o
restante parte do exame físico é breve (cerca de caso (atenção: o motivo de internamento
um quarto do total). A observação deve ser com- pode ser diferente do da consulta, já é
pleta e minuciosa, o que não significa invasiva uma decisão médica). Usar palavras chave
(pode-se examinar a criança por “partes” sem (vómitos; tosse; dor abdominal …se for
a exigência de “despir e deitar” à semelhança internamento, tem que se especificar:
do que se faz no adulto). A criança “pode não vómitos incoercíveis, crise de asma com
colaborar”; a arte do médico é observar sem ser necessidade de oxigenoterapia…).
necessária “negociação”. O motivo pode também ser: consulta de
Faz sempre parte da HC a análise do BSIJ, vigilância dos …dois meses.
bem como a avaliação do boletim de vacinas
também conhecido por boletim individual de 4. História da doença atual
saúde. Ou seja, uma “consulta” sem recorrer a (ou do/s problema/s/ queixa/s ou outras
estes dois elementos pecará por ser incompleta. preocupações dos pais/ou rotina).
Recomenda-se um registo breve no BSIJ “do pro-
blema ou doença”. Se a conversa for enquadrada em consulta
de rotina é importante começar por perguntas
A descrição de HC que se segue para co- em que se obtenham respostas “positivas”, que
lheita e redação é uma proposta; pode e deve dispõem bem a família: já anda, já fala, já con-
ser adaptada e flexibilizada de acordo com a cir- seguiu positiva a português…deixar para o fim
cunstância clínica. as questões que abordam temas que frequente-
mente representam problemas difíceis de resol-
ver: higiene do sono, tempo de contacto com
4.2 DESCRIÇÃO DO TEMA ecrã, aprendizagem e comportamento escolar,
de entre outros.
1. Identificação Se a consulta de rotina se transformar num
Nome completo; sexo; raça; espaço que é só para detetar problemas e emitir
data de nascimento; “correções” torna-se num momento desagra-
data atual/de observação; dável. Realçar factos positivos, merecedores de
idade atual (meses ou anos); elogio para a criança e para os pais, deve ser um
nome dos pais; residência. objetivo a não descurar.
Quando o motivo da consulta é por “quei-
2. Local e data da colheita; xas” deve-se dar a devida atenção, ainda que
informante/acompanhante pareçam banalidades. A criança/jovem, pais e
(grau de confiança). eventualmente avós, estão preocupados. O estado
46 GUIOMAR OLIVEIRA

emocional do médico deve ser adequado à situa- bem com a alimentação, o sono, o crescimento,
ção, não pode perder o domínio. o neurodesenvolvimento e o comportamento de
O curso do interrogatório é uma arte. O entre outros temas pediátricos.
equilíbrio entre o dirigismo necessário do médico,
naquela circunstância clínica, e a permissividade 5.Antecedentes pessoais
da catarse “daquele doente” deve ser conseguido. 5.1. Pré e perinatais
Mais uma vez as perguntas “oportunas - fora de Pré e perinatais: Gravidez (gesta nº) - du-
guião” podem ajudar nesta relação. Um cuidado ração, incidentes e factores de risco, ecografias,
que recomendo é que não se deve repetir per- diagnóstico pré-natal; parto (para nº), local, tipo,
guntas que obriguem a respostas já múltiplas intercorrências, qualidade da adaptação imediata
vezes dadas, e que podem ser facilmente obtidas à vida extrauterina (índice de Virgínea Apgar),
em documentos escritos fiáveis (por exemplo no cuidados na sala de parto, necessidade de rea-
BSIJ, os factos relativos ao período pré-natal…). nimação, somatometria (classificação de acordo
Podemos esclarecer dúvidas, mas já neste en- com idade gestacional - assinalar tabelas usadas);
quadramento…anteriormente referiu que, está primeiros dias de vida - permaneceu junto da mãe?
registado que…pode-me esclarecer se… (ou necessidade de internamento em unidade de
Nesta fase ir observando o estado emocional cuidados intensivos neonatais? Motivo e evolução
da criança e da família…(tranquilos, preocupados, a - ver resumo de alta - normalmente anexo no
confiar?), de modo a adequar os passos seguintes. BSIJ), quantos dias permaneceu na maternidade,
Os dados semiológicos “chave” devem ser se mamava bem. Incidentes neonatais: icterícia
escalpelizados: o quê, quanto, quando começa- (história, níveis máximos de bilirrubina, necessi-
ram (primeiro dia de doença – nem sempre fácil dade de fototerapia ou exsanguíneotransfusão).
de obter, cabe ao médico essa decisão), 2º, 3º… Resultado de otoemissões acústicas. Registar as
onde, como (súbito, progressivo) … vacinas administradas na maternidade a idade do
A interação semiológica, evolução e sequência “rastreio neonatal” e o resultado.
dos acontecimentos: primeiro a febre ou o exante-
ma? Primeiro o vómito ou a dor? (ajudar a esclarecer, Muito importante: integrar aqui os conhe-
mas não se deve sugerir ou induzir a resposta…). cimentos de obstetrícia e neonatologia.
Questionar sobre a medicação prescrita (regis- Consultar lição de neonatologia.
tar o fármaco por denominação comum internacio-
nal – DCI), a posologia (mg/Kg/dia), se conseguiu 5.2.História alimentar
tomar (vomitou, cuspiu…) e outras medidas tera- História alimentar: aleitamento - tipo;
pêuticas instituídas. Registar o efeito verificado. diversificação alimentar - quando e como,
Apesar da história se dirigir para uma situa- reações adversas. Alimentação atual (exem-
ção clínica específica, não deveremos deixar de plo da véspera, se padrão normal). Especificar
fazer brevemente uma revisão por sistemas or- suplementos mineralo - vitamínicos e respe-
gânicos e perguntas genéricas sobre se está tudo tivas doses.
CAPÍTULO 4. HISTÓRIA CLÍNICA 47

Pesquisar especificamente erros alimentares 5.5.Analisar o boletim de vacinas


comuns: por exemplo no lactente, prolongamento Registar as vacinas administradas e respetivas
de alimentos passados, carga láctea e de cereais datas (idade cronológica), as reações adversas e
excessiva, de entre outros. as que estão em atraso.

Muito importante: integrar aqui os conhe- Muito importante: integrar aqui os conhe-
cimentos de alimentação. cimentos de vacinas.

5.3. Crescimento 5.6. Doenças anteriores


Crescimento: desde o nascimento - peso, Doenças anteriores: agudas, crónicas, alér-
altura/estatura e perímetro cefálico (referir os gicas, intoxicações/acidentes, internamentos -
percentis e velocidade de crescimento). Índice motivo, medicação crónica, reações adversas a
de massa corporal; relação peso/idade estatural. fármacos, cirurgias, seguimento hospitalar ou pri-
Proporção entre o segmento superior e inferior vado. Identificar o médico assistente. Verificar
(se de acordo com a idade). Interpretação do se tem sido cumprido o estabelecido no PNSIJ.
perfil do crescimento. Estatura alvo familiar se (Consultar sempre o BSIJ).
adequado.
6. Antecedentes familiares
Muito importante: integrar aqui os conhe- Especificar data de nascimento (idade) dos
cimentos de crescimento. pais e irmãos, assim como a literacia e profissão
dos pais, e se são consanguíneos.
5.4.Desenvolvimento psicomotor De um modo breve registar as doenças e
e comportamento outros problemas de relevo como dificuldades de
Desenvolvimento psicomotor e compor- aprendizagem, problemas de comportamento, his-
tamento (expressão clínica do neurodesen- tória de atopia e doenças heredofamiliares, entre
volvimento): testar as aquisições das quatro outras. Devem abordar-se três gerações (irmãos,
áreas do neurodesenvolvimento em idades pais - tios, primos, avós e tios avós). Importante
chave (postura e motricidade global; visão e registar história de abortos espontâneos, nado
motricidade fina; audição e linguagem; com- mortos e mortes precoces. Pode ser útil em circuns-
portamento e adaptação social). Monitorizar tâncias específicas desenhar a árvore genealógica.
e rastrear défices sensoriais (audição e visão). Ambiente social em que vive: tipo de habi-
Pesquisar especificamente padrões de sono e tação, condições sanitárias e de espaço, animais
de comportamento. domésticos.
Avaliar dinâmica familiar e rede de suporte
Muito importante: integrar aqui os conhe- sócio familiar (família nuclear, alargada, ou mo-
cimentos de neurodesenvolvimento, sono noparental), rede de estabelecimentos de ensino
e adolescência. e apoios sociais.
48 GUIOMAR OLIVEIRA

7. Exame objetivo Especificando:


O ambiente deve ser bem iluminado, agra-
dável e climatizado. Pode ter brinquedos e livros, 7.1 Observação preliminar: Estado da
mas não muitos, senão é neles que se foca a criança e da família (noção de gravidade
atenção da criança. Um foco luminoso na mão do problema, família confiante, ansiosa,
do médico pode fazer milagres, e entreter uma tranquila…).
criança enquanto se ausculta ou procede à pal-
pação abdominal. 7.2 Inspeção: Estado geral, disposição,
O médico deve adequar a atitude à idade olhar, características da pele e mucosas,
funcional e emocional da criança. A observa- estado de hidratação e nutrição, padrão
ção deve ser delicada, o médico deve ter um respiratório.
ar amigável mas dirigente. As mãos acabadas
de lavar, devem estar quentes, assim como o 7.3 Sinais vitais: Tempo de reperfusão capilar,
estetoscópio. Mostrar o que se vai fazer (i.e. frequência cardíaca, frequência respiratória,
“auscultar” a mão….). Conquistar a confiança saturação periférica de oxigénio (se
e respeito da criança e acompanhante/s. Pode- justificado), temperatura axilar, tensão arterial.
se ir informando o que se está, ou vai fazer, e
para quê. 7.4 Somatometria: Peso/altura/estatura/
perímetro cefálico (respetivos percentis),
Primeiro observa-se a criança onde estiver, suas relações; índice de massa corporal.
fazendo-se uma inspeção cuidadosa. Depois faze-
mos uma abordagem por sistemas. Se estiver ao 7.5 Aquisições do neurodesenvolvimento.
colo, é aí que a observamos. Os mais velhos po- (ver lição de neurodesenvolvimento
dem deitar-se na marquesa, mas não é indispen- e comportamento).
sável. Devemos observar todo o corpo, mas não
é necessário que a criança esteja completamente Nota: o exame neurológico está integrado
despida. Podemos fazê-lo por áreas. Observar o na avaliação geral (relação da criança
tronco, depois o abdómen…este cuidado deve com o meio) e do neurodesenvolvimento.
ser sobretudo aplicável às crianças entre os 12 O exame neurológico clássico com pes-
meses e os dois a três anos, período em que têm quisa da função dos pares cranianos; da
um temperamento difícil, caracterizado por um força muscular; do tónus; da marcha; das
comportamento de desafio e oposição. Antes e provas de coordenação motora; dos refle-
depois deste período podemos pedir para despir xos osteotendinosos, cutaneoabdominais,
e deitar… cutaneoplantar; da sensibilidade (táctil,
Só no final procedemos às manobras mais térmica, postural, vibratória e dolorosa) e
desagradáveis de observação da orofaringe, e da fundoscopia deverá ser realizado se jus-
otoscopia. tificado pelas queixas ou achados prévios.
CAPÍTULO 4. HISTÓRIA CLÍNICA 49

7.6 Avaliação clínica da acuidade auditiva 7.12 Períneo, genitais e ânus: inspeção e
e visual (ver lição de neurodesenvolvimento palpação (ver lição patologia frequente em
e comportamento). cirurgia de ambulatório), avaliar estadío
pubertário (ver lição de adolescência).
7.7 Pele, mucosas e fâneros (cabelos, pelos
e unhas): morfologia, cor, hidratação, 7.13 Membros, coluna e articulações:
tumorações, angiomas, alterações da morfologia geral (dismorfologia), simetria,
pigmentação. mobilidade, sinais inflamatórios, pesquisar
sinais de anomalias do desenvolvimento da
7.8 Cabeça/face: morfologia geral (ver anca. Pulsos femorais. (ver lição de Ortopedia
dismorfologia), fontanelas e suturas, olhos variantes da normalidade e problemas
(distância interocular, pálpebras, estrabismo, frequentes).
epicanto, nistagmos, pupilas, córnea,
conjuntiva e esclerótica), ouvidos (morfologia 8. Resumo
pavilhões auriculares, otoscopia), nariz Deve ser conciso e conclusivo. Deve relevar
(morfologia, permeabilidade aérea), boca os factos que pela sua positividade, ou negativi-
(morfologia, mucosas, dentes, úvula, palato, dade, sejam importantes relativamente à queixa
orofaringe, amígdalas e pilares amigdalinos). que traz a criança ao médico e aos dados que
foram detetados através da anamnese e da ob-
7.9 Pescoço: morfologia geral (ver servação global.
dismorfologia), mobilidade, tumefações,
adenopatias, tiroide. 9. Lista de problemas
A flexão da nuca é por sistema verificada, Escrevê-los por ordem de relevância no con-
assim como a pesquisa dos restantes sinais texto “desta” história.
meníngeos (de relevo em contextos febris).
10. Hipóteses de diagnóstico
7.10 Tórax: morfologia geral (ver Destacar apenas as plausíveis “desta” his-
dismorfologia), sinais de dificuldade tória.
respiratória, auscultação cardiopulmonar Discuti-las “telegraficamente” tendo em
(ritmo cardíaco, sopros, murmúrio vesicular conta os diagnósticos diferenciais. Ou seja em
e ruídos adventícios) e percussão. cada uma das hipóteses de diagnóstico do pro-
blema ou “doença”, listar os dados que estão a
7.11 Abdómen: inspeção geral, palpação favor e os que estão contra.
superficial e profunda (fígado, baço, massas, Poderá ser necessário realizar exames com-
defesa, dor – caraterísticas), percussão e plementares de diagnóstico (ECD) ou NÃO…
auscultação. Verificar sinais de irritação Ter em conta que a requisição de um ECD
peritoneal. (decisão médica exclusiva) deve ser justificada.
50 GUIOMAR OLIVEIRA

Ou seja, o seu resultado deve interferir na deci- prescritos em SOS devem seguir o mesmo rigor e re-
são médica subsequente, senão for o caso, pedir gistar uma informação clara de quando administrar.
para quê? Situações clínicas a vigiar: especificar.
Sinais ou sintomas de alarme que devem
11.Exames complementares motivar nova observação médica, “neste” con-
de diagnóstico texto: especificar.
O pedido deve ser adequado à situação clí-
nica (i.e. radiografia do tórax projeção póstero- 15. Informação sobre prognóstico
-anterior ou antero-posterior? Sumária de urina História natural da doença ou problema (por
- método de colheita?) e a sua justificação ex- exemplo: variante do normal).
pressamente assinalada.

Atenção: os ECD devem ser solicitados se- 4.3 FACTOS A RETER


quencialmente. Decidir qual deve ser o
primeiro e de acordo com o seu resul- A história clínica é o instrumento mais es-
tado, eventualmente requisitar outro/s. pecífico do médico e essencial em toda a abor-
dagem clínica.
12. Diagnóstico/s mais provável/eis A história clínica é um ato médico. Deve ter
ou somente os problemas o formalismo e a ética inerentes.
(integrando agora na HC os resultados do/s ECD Não há duas histórias iguais…mesmo que
e a sua interpretação) seja outra vez “uma bronquiolite”. Se quiser ter
Listar por ordem de probabilidade e de um bom desempenho dê conta que é diferente
importância o/s diagnóstico/s da/s doença/s ou e única, e convença os outros.
problema/s. Uma boa HC exige um vasto conhecimento
teórico e prático. Pratique-a…parece fácil.
13. Diagnóstico definitivo Apesar do guião, deve ser oportunista e flexível,
(podemos não ter) mas sempre completo, e não perca o fio à meada…
O grupo etário, para além do motivo de
14. Plano de intervenção consulta é o que mais determina a diferenciação
Focar todos os diagnósticos e ou problemas da HC em Pediatria.
previamente listados. Não faça perguntas cuja resposta já foi dada
Informar sobre a evolução esperada (deve várias vezes, retire a informação dos documentos
fazer parte do plano de intervenção médica). escritos. Confirme só se tiver dúvidas.
Medicação: registos do fármaco por DCI, da Dirija as perguntas, mas não induza as res-
posologia (dose por kg e por dia, dose total por postas.
toma), da via de administração, do número de ad- A uma criança não se pede. Às mais pequenas
ministrações por dia e da duração. Medicamentos leva-se a que façam, as mais velhas informam-se.
CAPÍTULO 4. HISTÓRIA CLÍNICA 51

Nunca perca o domínio. Há situações difíceis.


Tudo que disser aos pais, fundamente-o
de um modo compreensível. Reside aqui a parte
psicoterapêutica da consulta e a confiança que
a família depositará no médico.
Lembre-se que um médico é avaliado pelo
conhecimento, pelo desempenho e pela atitude.
A HC reflete isso tudo. Cuide-a.

Leitura complementar

Mota HC. Para uma história clínica (I). Acta Pediatr Port
2011;42(1):43-8.
Mota HC. Para uma história clínica II. Acta Pediatr Port
2011:42(2):84-9.
Carrilho EM. História clinica em pediatria. In: Palminha JM,
Carrilho E. Orientação diagnóstica em pediatria: dos si-
nais e sintomas ao diagnóstico referencial. Lisboa: Lidel;
2002-2003.
Mota HC. Bases do raciocínio clinico. In: Palminha JM, Carrilho
E. Orientação diagnóstica em pediatria: dos sinais e sin-
tomas ao diagnóstico referencial. Lisboa: Lidel; 2002-
2003. p 57-60.
History and examination. In:Lissauer T, Clayden G. Illustrated
Textbook of Paediatrics. 4th ed. Elsevier Health Sciences.
2011. p 13-29.
Capítulo 5.
Medicamentos mais utilizados
em pediatria e iatrogenia

5
Carla Chaves Loureiro
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_5
CAPÍTULO 5. MEDICAMENTOS MAIS UTILIZADOS EM PEDIATRIA E IATROGENIA 55

5.1 CONTEXTO em várias preparações de xaropes de paracetamol


causou mortes em massa na Nigéria, Bangladesh
As crianças pertencem ao grupo dos indiví- e Haiti).
duos mais vulneráveis da sociedade e a prescrição A inexistência de estudos dirigidos à idade
em idades pediátricas apresenta desafios únicos pediátrica deu origem ao aparecimento do termo
ao médico. “órfão terapêutico”. Um exemplo de utilização
Os lactentes e as crianças são diferentes dos off-label de um fármaco para uma doença órfã
adultos, não só no tamanho mas também do pon- é o da aspirina na doença de Kawasaki.
to de vista fisiológico, incluindo a ontogenia da Na década de 70, a Academia Americana
maturidade dos órgãos e a composição corporal, de Pediatria argumentou a favor da realização de
que vão influenciar a ação, eficácia e segurança estudos em crianças: a não realização desses estu-
dos fármacos utilizados. dos era desprovida de ética por levar os médicos a
Por motivos éticos, até 1970, os estudos far- fazer “experiências” sempre que lhes prescreviam
macológicos em crianças, recém-nascidos (RN) e um fármaco e por impedir que as crianças benefi-
grávidas não estavam recomendados. Assim, a ciassem dos seus efeitos farmacoterapêuticos. As
farmacologia pediátrica era extrapolada da prá- primeiras guidelines foram publicadas em 1977 e
tica e experiência em adultos com adaptação das dois anos depois a Food and Drug Administration
doses – na maioria dos casos com sucesso. Mas, (FDA) passou a exigir informação para a idade
em fármacos com margem terapêutica estreita, pediátrica na bula dos medicamentos.
como os aminoglicosídeos, por exemplo, os riscos Em 2006, a Europa adotou a Regulamentação
são maiores pelo que requerem um conhecimen- Pediátrica da União Europeia (EU) com objetivos
to mais sofisticado e dosagens individualizadas. legislativos de forma a acelerar e aprofundar a
Estima-se que 50 a 75% dos fármacos utilizados investigação pediátrica. A Comissão Europeia
em crianças não foram devidamente estudados criou o Global Research in Pediatrics (GRiP) de
em populações pediátricas. Em oncologia estes forma a ligar várias redes de trabalho à European
valores atingem 80% e em neonatologia 90%. Medicines Agency (EMA) permitindo otimizar o
A utilização de fármacos não aprovados é desenvolvimento de fármacos pediátricos.
vulgarmente apelidada de off-label ou off-label Em 2007 a Assembleia Mundial de Saúde as-
drug use (OLDU). A não aprovação pode estar sinou a resolução “Better Medicines for Children”
relacionada com a indicação terapêutica, grupo reconhecendo a necessidade de investigação e
etário, dosagem ou via de administração. desenvolvimento de fármacos para as crianças
Os problemas resultantes da utilização de incluindo melhor dosagem, evidência e informa-
fármacos não testados têm sido vários, nalguns ção sobre cada medicamento pediátrico. Assim,
casos graves, relacionadas com o fármaco (ker- a Organização Mundial de Saúde (OMS/WHO)
nicterus resultante da utilização de sulfizoxazole desenvolveu uma lista de medicamentos essenciais
em RN) ou com o excipiente (o uso de dietileno para crianças e, posteriormente, editou o WHO
glicol como solvente ou contaminante de glicerina Model Formulary for Children.
56 CARLA CHAVES LOUREIRO

5.2 DESCRIÇÃO DO TEMA como no caso das escoriações e das queimaduras,


bem como pela utilização de pensos oclusivos.
5.2.1 Uso de fármacos em pediatria Por exemplo, está totalmente contraindicada a
analgesia tópica com lidocaína em crianças (e
Para melhor manipular os fármacos em idade também em adultos) com queimaduras, pelo risco
pediátrica é fundamental ter alguns conhecimen- de morte por bradicardia/paragem cardíaca.
tos relativos a absorção, distribuição, metabolismo
e eliminação dos mesmos neste grupo etário. Retal
A administração de fármacos por via retal
5.2.1.1 Absorção pode ser particularmente útil perante doentes
Oral/digestiva com vómito, recusa na ingestão oral, ou quando
O aparelho gastrointestinal é imaturo no RN é necessário jejum. No entanto, esta via não é
e comporta alterações significativas nos primei- ideal nem está disponível para muitos fármacos.
ros três anos de vida. Até esta idade os níveis Para além disso, a variação individual da drenagem
de ácido são baixos e os fármacos sensíveis à venosa retal pode levar a absorção reduzida ou
acidez, como as penicilinas, têm uma absorção excessiva do medicamento originando concentra-
aumentada. Por outro lado, fenobarbital, fenitoi- ções séricas sub-terapêuticas ou tóxicas, respetiva-
na e rifampicina têm absorção reduzida – alguns mente, pelo que não devem ser administrados, por
anti-convulsivantes podem ter melhor absorção esta via, fármacos com janela terapêutica estreita.
por via parentérica. Por outro lado, o risco de expulsão do fármaco,
No RN e pequeno lactente, o atraso do es- pelas contrações pulsáteis de maior amplitude do
vaziamento gástrico pode ser ultrapassado pela reto, não deve ser ignorado.
administração endovenosa dos fármacos. Em particular, é recomendada a administra-
De um modo geral, todos os fármacos devem ção retal do diazepam no tratamento de convul-
ser administrados às refeições para diminuir a sões. O paracetamol também pode ser administra-
irritação gástrica e aumentar a compliance – al- do por via retal mas a absorção pode ser irregular.
gumas exceções são a isoniazida, a rifampicina,
o captopril e as tetraciclinas. Intrapulmonar
Cada vez mais são utilizados fármacos com
Tópica efeito no aparelho respiratório por via inalatória
Nas crianças, sobretudo nos lactentes, a com vista a aumentar os efeitos locais e a diminuir
absorção tópica está aumentada pelo menor a absorção sistémica, nomeadamente broncodila-
espessamento relativo do estrato córneo, pela tadores, corticoides e antibióticos. A absorção pul-
maior perfusão cutânea e maior hidratação da monar será condicionada pela arquitetura pulmonar
epiderme e, ainda, pela relação superior entre a e pela capacidade ventilatória mas a investigação,
superfície e o peso corporal. Para além disso, a nesta área, está mais centrada na deposição dos
absorção pode ser potenciada numa pele lesada, fármacos na via aérea do que na absorção pulmonar.
CAPÍTULO 5. MEDICAMENTOS MAIS UTILIZADOS EM PEDIATRIA E IATROGENIA 57

5.2.1.2 Distribuição e diazepam, que devem ser administrados com


Vários são os fatores que interferem com a prudência na presença de hiperbilirrubinémia.
distribuição dos medicamentos, entre eles a compo- Em crianças mais velhas, a ligação a proteínas
sição corporal, a afinidade por proteínas plasmáticas plasmáticas pode estar alterada, nomeadamente
e a permeabilidade da barreira hemato-encefálica. em situações de doença hepática, síndrome ne-
frótico, insuficiência renal crónica, insuficiência
Composição corporal cardíaca e desnutrição.
A composição corporal das crianças difere
da do adulto e varia com o crescimento. Barreira hemato-encefálica
Ao nascimento, 80% da composição do A barreira hemato-encefálica (BHE), que li-
corpo do RN é água, reduzindo para 65% aos mita a circulação de moléculas para o cérebro,
12 meses de vida e para 60% no adulto jovem é funcionalmente incompleta no RN pelo que
(homem). Por outro lado, a constituição adiposa algumas substâncias têm maior penetração ence-
varia entre 3% no prematuro, 12% no RN de ter- fálica. Para além disso, um dos principais fatores
mo, 30% aos 12 meses e cerca de 18% no adulto. determinantes do transporte de medicamentos
Desta forma, os RN e lactentes necessitam de através dela é a sua lipossolubilidade, como acon-
doses superiores (mg/kg) de fármacos hidrossolúveis tece no caso dos barbitúricos e morfina.
para atingir concentrações plasmáticas semelhantes Sendo a meningite e a meningoencefalite
às do adulto. No entanto, dada a imaturidade das doenças mais frequentes na idade pediátrica, a
funções hepática e renal, estes fatores têm de ser permeabilidade da BHE aos fármacos utilizados é
considerados para a dose recomendada. de extrema relevância. É de salientar que, fármacos
habitualmente com pouca penetração meníngea
Ligação a proteínas plasmáticas podem aumentá-la em situações de inflamação
No RN, a ligação às proteínas plasmáticas permitindo obter boas concentrações no líquido
está diminuída pela sua menor concentração plas- cefalo-raquídeo (LCR), como penicilinas, cefalos-
mática, particularmente a albumina, e há menor porinas, rifampicina e vancomicina. Medicamentos
capacidade de ligação proteica dos fármacos à com boa penetração, mesmo na ausência de infla-
albumina fetal. Desta forma vai ocorrer um au- mação meníngea, incluem o cloranfenicol e o cotri-
mento da fração livre do medicamento farmacolo- moxazol. No tratamento de meningites a bactérias
gicamente ativo no plasma, com os consequentes Gram-negativas deve-se optar por cefalosporinas,
incrementos na sua atividade e competição com como o cefotaxime, mais apropriadas que os ami-
substâncias endógenas (ácidos gordos livres e noglicosídeos que apresentam uma penetração
bilirrubina), e com outros fármacos com maior pouco eficaz e irregular no LCR.
afinidade de ligação à albumina.
Contudo, no RN, a maioria das drogas uti- 5.2.1.3 Metabolismo
lizadas tem fraca ligação a proteínas plasmáticas Para além do metabolismo hepático ima-
com exceção de fenitoína, sulfonamidas, salicilatos turo do RN, também a insuficiência cardíaca e o
58 CARLA CHAVES LOUREIRO

esforço respiratório podem levar a menor ativi- está a ser dada à forma de utilização dos fármacos.
dade metabólica. Outras NOCs têm sido elaboradas especificamente
O RN, nos primeiros 15 dias de vida, tem um para as crianças como as NOCs – Diagnóstico e
metabolismo baixo que é seguido de um aumento Tratamento da Otite Média Aguda, da Amigdalite
dramático relacionado com as maiores dimensões Aguda e Profilaxia da Endocardite Bacteriana em
relativas do fígado na criança. Entre o primeiro Idade Pediátrica.
e o décimo ano de vida a oxidação microssomal Os esclarecimentos prestados à família são
hepática é superior à do adulto determinando fundamentais na dispensabilidade de prescrição
que vários fármacos tenham semividas mais curtas de um fármaco ou no cumprimento de um regi-
na criança (e.g. fenobarbital, fenitoina, teofilina). me posológico pouco prático. Também algumas
dificuldades inerentes à criança devem ser con-
5.2.1.4 Excreção sideradas – se pode ser utilizado, com a mesma
A função renal está imatura no RN de ter- eficácia, um fármaco por via oral deve evitar-se
mo e pré-termo mas aumenta significativamente uma administração parentérica dolorosa. Mas se a
entre o terceiro e o sexto mês de vida atingindo via oral está inviabilizada, por vómitos persistentes
os valores de filtração glomerular do adulto até ou recusa na sua deglutição, por exemplo, uma via
aos 12 meses. alternativa deve ser obrigatoriamente considerada.
Avanços recentes na farmacologia clínica Os fármacos mais utilizados em Pediatria e
pediátrica têm permitido que os fármacos estejam reanimação neonatal, respetivas vias de adminis-
mais bem estudados para cada grupo etário, a po- tração e doses recomendadas, estão disponíveis
sologia seja adequada a cada fase de crescimento para consulta nos quadros 1 e 2.
e os efeitos secundários melhor estabelecidos. No
entanto, muito há ainda a fazer.
Para além da questão da aprovação de um 5.2.2 Iatrogenia
fármaco para crianças, não podemos esquecer
outras: será que é mesmo necessário prescrever A iatrogenia é uma das causas de reações
um fármaco? Que dose vamos utilizar? Com que adversas a fármacos.
periodicidade? Durante quanto tempo? Vai inter- Para além dos vários fatores de risco associados
ferir com outros fármacos previamente prescritos? a erros de prescrição e administração de fármacos
E a criança/família vão aderir à terapêutica? em geral (erros de prescrição eletrónica ou manual,
Muitas vezes a resposta está relacionada não erros de leitura de rótulo, erros de troca de fárma-
com o fármaco em si mas com a doença para cos…), outros há que aumentam o risco de reações
que é utilizado (e.g. amoxicilina para amigdalite adversas em crianças, especificamente: as diferenças
estreptocócica ou pneumonia pneumocócica, ibu- farmacocinéticas e carência de informação específica
profeno como antipirético ou anti-inflamatório). já abordadas; a necessidade de calcular doses indi-
A Norma de Orientação Clínica (NOC) – Duração de vidualizadas de acordo com a idade/peso/superfície
Terapêutica Antibiótica – demonstra a atenção que corporal/doença específica; a necessidade de preparar
CAPÍTULO 5. MEDICAMENTOS MAIS UTILIZADOS EM PEDIATRIA E IATROGENIA 59

Fármaco Via Dose


Analgésicos, antipiréticos, anti-inflamatórios
Paracetamol oral, retal 15mg/kg/dose, 4id 10-20mg/kg/dose
ev: 15mg/kg/dose, 4 id
Ibuprofeno oral, retal 5mg/kg/dose, 3id 5-10mg/kg/dose
Antibióticos
Amoxicilina oral 50-100mg/kg/d, 2-3id Amigdalite 50mg/kg/d, 2 id
Amoxicilina/ácido oral 4:1 – 40-50mg/kg, 2id Doses referentes a amoxicilina
clavulânico 7:1 – 50-90 mg/kg, 2-3 id ev: 25-50mg/kg/dose, 3-4 id
Azitromicina oral 10mg/kg, id
Cefixime oral 8mg/kg/d, 1-2 id
Cefuroxime-axetil oral 30-40mg/kg/d, 2 id Máximo 500mg
Claritromicina oral, ev 15mg/kg/d, 2 id
Co-trimoxazol oral SMZ 40mg/kg/d, 2 id ev: 75-100mg/kg/d, 4 id
Doxiciclina oral 4mg/kg 1ª dose, 2mg/kg id Brucelose 5mg/kg/d 1-2 id
Eritromicina oral 40-60mg/kg/d, 2-4 id
Flucloxacilina oral, ev, im 50-200mg/kg/d, 3-4 id Administrar 30-60 minutos
antes das refeições
Nitrofurantoina oral 5-7mg/kg/d, 4 id Máximo 400mg/d, manipulado
Trimetropim oral 1-2mg/kg/d, id Manipulado
Antifúngicos
Miconazol oral <1mês: 1-2ml/dose, 2 id
1M-2A:2,5ml/dose, 2id
>2A: 5ml/dose, 2 id
>6A: 5ml/dose, 4 id
Nistatina oral <3M: 1ml/dose 4 id, após refeições
3-12M:2ml/dose Manter na boca antes de deglutir
>12M:4-6ml/dose
Anti-helmínticos
Albendazol oral >2A: 400mg toma única Oxíuros: repetir 2 semanas depois
Mebendazol oral 100mg/dose, 2 id Oxíuros: repetir 2 semanas depois
Metronidazol oral, ev 22,5-45mg/kg/d, 3 id Giardia: 40mg/kg, id, 3dias
Pamoato de pirantel oral 10mg/kg/d, id Oxíuros: repetir 2 semanas
depois Ascaris: toma única
Ancilostoma: 3 dias
Tinidazol oral 50-60mg/kg/d, id Giardia e tricomonas: toma única,
repetir 2 semanas depois
Anti-parasitários cutâneos
Benzoato de Benzilo cutânea >2A: aplicar no corpo exceto 2-6A: diluição se irritação cutânea
cara/cabeça, lavar 24h
depois. Repetir 3 dias
Clotrimazol tópico Aplicar id
Permetrina 1% tópico Aplicar 10 min e lavar, Escovar com pente metálico
repetir 1 semana depois para remover lêndeas
Antivíricos
Aciclovir oral, ev Oral:20mg/kg/dose, 4 id 5 dias na varicela
tópico
Oseltamivir oral <15kg:30mg, id, 10d Profilaxia pós exposição
15-23kg:45mg, id, 10 d <1 ano: 2mg/kg, id, 10d
23-40kg:60mg, id, 10 d 1-13A: até 6 semana
>40kg:75mg, id, 10d
60 CARLA CHAVES LOUREIRO

Anticonvulsivantes
Carbamazepina oral 10-30mg/kg/d, id Iniciar com 5-10mg/kg
Níveis séricos 4-12mcg/ml
Diazepam oral, retal, 0,2-0,3mg/kg/dose, id Retal : <1A: 2,5mg/dose
ev 0,5mg/kg/dose, id 1-3A: 5mg/dose
0,1-0,3mg/kg/dose >4A: 5-10mg/dose
Midazolam oral, 0,1-0,5mg/kg/dose, 1-4id
retal, 0,1-0,3mg/kg/dose, 1-4 id
nasal, 0,2-0,4mg/kg/dose, 1-4 id
ev 0,1-0,2mg/kg/dose, 1-4 id
Valproato de sódio oral 20-30mg/kg/d, 2 id Iniciar com 10-15mg/kg
Antihistamínicos
Clemastina ev, im 0,025mg/kg/dose, 1-2 id
oral <6A: 1mg, >6A: 3mg
Desloratadina oral 1-6A: 1,25mg, id
6-12A: 2,5mg, id
>12A: 5mg, id
Ebastina oral 6-12A: 5mg, id
>12A: 10mg, id
Hidroxizina oral 1-2mg/kg/d, 2-4 id Tem efeito sedativo
Levocetirizina oral 2-6A:2,5mg/d, 2 id
>6A: 5mg/d, id
Rupatadina oral >6A:5mg, >12A:10mg, id
Antiácidos, antieméticos, antiulcerosos
Omeprazole oral 0,6-0,7 mg/kg, 1-2 id
Ranitidina oral >6M: 2-4mg/kg/d, 2-3 id
Sucralfato oral <2A:250mg, 3-4 id: antes das refeições
2-12A:500mg, >12A:1g
Broncodilatadores
Brometo ipratrópio neb <3A:125, 3-5A:250, >5A:500 pMDI : 60-120mcg 3-12 id
mcg/dose, 4-8 id
Procaterol neb 0.8mcg/kg/dose, 2-4 id xarope(5mg/ml):0.25ml/kg/dose
Salbutamol neb 75-150mcg/kg/dose 4-6 id, de acordo com necessidade
pMDI 300-800mcg/dose
Terbutalina inal 1-4mg, 4-6 id de acordo com necessidade
Corticoides
Budesonida inal 100-200mcg, 1-2 id
Dexametasona oral 0.15-0.6mg/kg/dose Laringite estridulosa
ev, im 0.08-0.3mg/kg, 1-4 id Anti-inflamatório
Fluticasona inal 50-200mcg/dose, 1-2 id
Metilprednisolona oral 1-2mg/kg/dose, 1-2 id
ev 30mg/kg Traumatismo medular
Prednisolona oral, ev 1-2mg/kg, 1-3 id
Diuréticos
Furosemida oral 1-4mg/kg, 1-4 id ev: 0.5-1mg/kg/dose, 1-4 id
Laxantes
Citrato de sódio retal 1 id, máximo 3 dias
Glicerina retal 1 id, sos
Lactulose oral <1A: 2.5ml, 1-5A: 5ml,
5-10A:10ml/dose, 1-2 id
Macrogol oral >2A:1saquetas, id
>7A: 1-2 saquetas, id
CAPÍTULO 5. MEDICAMENTOS MAIS UTILIZADOS EM PEDIATRIA E IATROGENIA 61

Vitaminas
Vitamina C <6 M: 25 mg, id
oral
7–12M: 30 mg, id
1–8A: 35 mg, id
> 9A: 40 mg, id
Vitamina D oral Profilaxia: Doses terapêuticas superiores,
1-12M: 400-600U, id de acordo com patologia
Polivitamínico oral Protovit N®: 8 gotas/d (6-10gotas, id)
Dagravit®: Lactentes: 4-8 gotas, crianças: 8-11 gotas, id
Centrum junior®: 4-12A: 1 comprimido mastigável, id
Outros – Reanimação, intoxicações, anemia
Adenosina ev 50mcg/kg/dose Bólus rápido – taquicardia supraventricular
Adrenalina im 0.01ml/kg/dose (1:1 000) Auto injetor de adrenalina:
ev 0.1ml/kg/dose (1:10 000) Anapen®/Epipen® 0.15mg
neb 1-5ml/dose (diluído SF) (<25kg); 0.3mg (>25kg)
Ácido acetilsalicílico oral 10-15mg/kg/dose, 1-4 id Analgesia
75-90mg/kg, 4 id Anti-inflamatório
3-5mg/kg, id Anti-agregante plaquetar
Atropina ev, im 10-20mcg/kg/dose
Acetilcisteina oral 140mg/kg Antidoto do paracetamol
ev 150mg/kg (doses iniciais)
Carvão ativado oral <1A: 1g/kg/dose
1-12A:1-2g/kg/dose
Fenilefrina 2.5mg/ml nasal 1-6A: 1-2gotas, 3-4id Máximo 5 dias
6-12A: 2-3gotas, 3-4id
Ferro oral 3-6mg/kg/d, 2-3 id Absorção potenciada por vit C
Flumazenil ev 10mcg/kg/dose Antagonista de benzodiazepinas
Naloxona ev 5-10mcg/kg/dose Antagonista de opiáceos
Soluto hidratação oral oral Bioral-suero® Ad libitum
Dioralyte®:1sq/200cc água Conservar no frigorífico após
Miltina electrolit® preparação/abertura
d-dia, cc- cm cúbicos, ev- endovenoso, id - número tomas por dia, im - intramuscular, inal-inalação, neb-nebulização, pMDI- Pressurized Metered Dose Inhaler, sq-saqueta.

Quadro 1. Fármacos em Pediatria, via administração e doses recomendadas.

Fármaco Concentração desejada Preparação Dose da Via Velocidade


preparação administração
Adrenalina 1:10 000 1ml+9ml SF 0.5-1ml/kg ET Rápida
(1:1000)
Adrenalina 1:10 000 1ml+9ml SF 0.1-0.3ml/kg EV Rápida
(1:1000)
Expansor de SF 0.9%, lactato Ringer,
volume sangue ORh- - 10ml/kg EV 5-10 Minutos
Glicose 10% - - 5ml/kg/dose EV
Naloxona 0.4mg/ml 1ml 0.1mg/kg IM/EV Rápida
Oxigénio qb para SpO2 ≥ 92%

Quadro 2. Fármacos de reanimação neonatal (preparação e modo de administração).


62 CARLA CHAVES LOUREIRO

manipulados ou diluições com consequentes altera- Nas patologias que necessitam de terapêuti-
ções da estabilidade; compatibilidade e biodisponibi- ca farmacológica, a posologia deve ser adaptada
lidade; e a necessidade, de instrumentos de medição à idade da criança e à doença. Deve, sempre, ser
precisos e de sistemas de administração específicos. ponderado o risco/benefício da utilização, ou não,
Com frequência, os efeitos iatrogénicos es- de cada tratamento. E às vezes (muitas vezes)
tão relacionados não com o princípio ativo mas esperar sem intervir também é tratar.
com os excipientes. A prescrição deve ser acompanhada de ex-
Alguns destes riscos não se colocam ape- plicação oral e escrita de forma a evitar erros.
nas a nível hospitalar mas também no domicílio: Sempre que uma prescrição inclua um dis-
facilmente se trocam as doses ou frequência de positivo terapêutico deve ser feito o ensino ou
administração de gotas, xaropes, pomadas… revisão da técnica de utilização do mesmo.
Vários são os exemplos de iatrogenia com con- Atualmente, a investigação farmacológica
sequências graves: i) o uso prolongado de vasocons- em crianças tem aumentado mas ainda apresenta
tritores nasais pode resultar numa rinite iatrogénica, muitos desafios e, em muitas situações, perma-
enquanto o seu uso em doses elevadas pode causar necem órfãos terapêuticos.
efeitos simpaticomiméticos iatrogénicos; ii) o nime-
sulide, inibidor seletivo da enzima ciclo-oxigenase-2
com atividade antipirética mais rápida e prolongada Leitura complementar
que o paracetamol e o ibuprofeno, foi associado a Wittich CM, Burkle CM, Lanier WL. Ten common questions
hepatotoxicidade rara mas grave, pelo que o seu uso (and their answers) about off-label drug use. Mayo Clin
não é recomendado; iii) o risco de efeitos adversos Proc 2012;87(10)982-90
neurológicos da metoclopramida (sintomas extra- Walter DC. Off-label and unlicensed prescribing for children:
piramidais agudos e discinesia tardia irreversível) é have we made any progress? Br J Clin Pharmacol 2007;
superior nas crianças. Eventos cardiovasculares em 64(1): 1–2
crianças com intervalo QT longo determinam uma WHO Model Formulary for Children 2010. www.who.int/
restrição do uso do fármaco a situações específicas; selection_medicines/list/WMFc
iv) o síndrome de Reye, caracterizado por encefalo- Anjos R, Bandeira T, Marques JG. Formulário de Pediatria.
patia aguda não inflamatória e insuficiência hepática Lisboa 2004
gorda degenerativa, resulta da utilização de ácido Levine SR et al. Guidelines for preventing medication errors
acetilsalicíco em crianças com doença aguda vírica, in pediatrics. J Pediatr Pharmacol Ther 2001;6:426-42
respiratória ou digestiva. Turner MA, Catapana M, Hirschfeld S, Giaquinto C. Pediatric
drug development: The impact of evolving regulations.
5.3 FACTOS A RETER Adv Drug Delivery Rev 2014;73:2-13

Numa criança deve ser bem ponderada a


necessidade de farmacoterapia. A utilização de
fármacos com efeito placebo deve ser excecional.
Capítulo 6.
A genética em Pediatria

6
Jorge Saraiva
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_6
CAPÍTULO 6. A GENÉTICA EM PEDIATRIA 65

6.1 CONTEXTO área foram identificadas diferenças em função


não apenas do sexo do indivíduo (masculino ou
A grande maioria das doenças tem uma feminino) mas também do sexo do progenitor
hereditabilidade significativa. Neste contexto é (mãe ou pai, avó ou avô paterno ou materno).
adequado em primeiro lugar recordar as diferentes Os testes genéticos disponíveis permitem
características químicas da informação genética avaliar variações quantitativas, do número ou das
e a metodologia laboratorial disponível para a dimensões dos cromossomas, à escala micros-
sua avaliação, depois estabelecer um limite entre cópica ou submicroscópica, ou qualitativas, da
o determinismo genético das doenças frequen- sequência de bases ou da presença ou ausência
tes (quase todas) e das doenças raras (da grande de metilação de um gene.
maioria), estas últimas geralmente com diagnósti- A seleção do teste e a interpretação dos
co em idade pediátrica, para finalmente consolidar resultados exige um conhecimento geral da sua
a importância para os doentes e famílias de um utilidade e limites:
diagnóstico precoce, em particular no caso das
doenças raras. O cariótipo permite identificar alterações cro-
mossómicas numéricas e estruturais, tem
um poder de resolução de referência de
6.2 DESCRIÇÃO DO TEMA quatro Mb (a maior limitação) e é o úni-
co teste genético disponível em contexto
A transmissão intergeracional assistencial que permite identificar altera-
de informação molecular ções estruturais equilibradas (situação em
Os gâmetas participam na constituição do que continua a ser insubstituível sendo por
zigoto com vários tipos de moléculas suscetíveis isso o meio complementar de diagnóstico
de transmitir informação, nomeadamente pro- genético de primeira linha para o estudo
teínas e ácidos nucleicos. O modelo que resume de casais com infertilidade; também é o
toda a informação transmitida aos cromossomas melhor teste para confirmar a natureza
e aos genes é uma visão redutora. Quer as pro- da alteração identificada por outro mé-
teínas, nomeadamente as histonas, constituintes todo, por exemplo se uma trissomia 21
dos cromossomas, quer os RNAs ou a presença é livre ou tem origem numa translocação
ou ausência de metilação da sequência de bases robertsoniana). Pode ser complementado
do DNA podem ter um papel determinante no com estudos de hibridação com sondas
futuro funcionamento celular. Acresce que estes específicas situação em que a sua aplica-
componentes da química celular são muito mais ção se alarga aos núcleos interfásicos cuja
suscetíveis de modulação pelo comportamento principal vantagem é o maior poder de
dos pais e avós, evidentemente anteriores à pro- resolução e o maior inconveniente forne-
dução do gâmeta no caso da linha patrilinear e cerem apenas informações relativamente
do nascimento no caso da linha matrilinear. Nesta à região selecionada para avaliação.
66 JORGE SARAIVA

A sequenciação de Sanger de um gene com o inconveniente de não facultarem qual-


específico é realizada na prática por um quer informação sobre outras regiões genómicas
número variável de reações de sequen- (MLPA) ou outras mutações nos mesmos ou em
ciação, variável em função do número de outros genes (CHIP).
exões e das suas dimensões. As regiões
sequenciadas são os exões e as regiões As plataformas de array existentes uti-
intrónicas adjacentes. Continua a ser o lizam metodologias distintas e têm um poder
método de referência para a determina- de resolução maior ou menor. Em qualquer dos
ção da ordenação das bases púricas e casos permitem identificar deleções ou duplica-
pirimídicas de qualquer região genómi- ções de muito pequenas dimensões (sendo que
ca e tem como principal inconveniente este parâmetro é variável com o teste utilizado).
não fornecer qualquer informação sobre Adicionalmente há que tomar em consideração
outros genes ou regiões reguladoras ou se têm maior poder de resolução para regiões
intrónicas afastadas dos exões. comprovadamente patogénicas ou não e se a
metodologia permite identificar adicionalmente
Na transição entre os dois métodos con- regiões de homozigotia (sugerindo a presença
vencionais anteriormente enumerados e as tec- de uma doença de hereditariedade autossómica
nologias inovadoras que a seguir descreveremos recessiva por presença em homozigotia de uma
existem disponíveis para aplicabilidade em con- mutação herdada de um ascendente comum num
texto clínico dois métodos utilizados atualmente gene com locus nessa região), presumível isodis-
com alguma frequência. Ambos utilizam me- somia uniparental (presença de duas cópias de
todologia molecular mas um avalia o número uma região genómica com origem num único
de cópias de regiões do genoma (Multiplex cromossoma de apenas um dos pais) ou avaliar
Ligation-dependent Probe Amplification-MLPA) a consanguinidade dos pais.
identificando a presença de deleções ou duplica-
ções das regiões cromossómicas selecionadas para As técnicas de sequenciação de nova
avaliação e o outro detecta simultaneamente geração (NGS) permitem obter a baixo custo e
a presença ou ausência de centenas de varia- em curto espaço de tempo a informação relati-
ções de sequência patogénicas diferentes em va a todos os exões (sequenciação exómica) ou
um ou vários genes potencialmente respon- mesmo todo o genoma (sequenciação genómica).
sáveis por um fenótipo (CHIP) – atualmente Atualmente a maior acessibilidade ocorre para
disponível comercialmente para surdez neuros- testes genéticos que incluem a avaliação genómica
sensorial pré-lingual e miocardiopatias hipertró- de tendencialmente todos os genes possivelmente
ficas, por exemplo. Nos dois casos a vantagem responsáveis por um fenótipo (painéis de genes).
é a determinação da presença ou ausência de Independentemente das plataformas utilizadas
alterações comprovadamente patogénicas e res- e do grau de cobertura de todas as regiões do
ponsáveis pelos quadros clínicos referidos mas exoma ou do genoma a confirmação da presença
CAPÍTULO 6. A GENÉTICA EM PEDIATRIA 67

das variações de sequência requer ainda hoje o sintomatologia, em idade pediátrica ou apenas
recurso à metodologia de Sanger. No entanto após a maioridade; identificação de alteração pa-
existe um tipo de mutação (a expansão do togénica sem terapêutica específica estabelecida
número de tripletos) que não é identificado com início de sintomatologia em idade pediátri-
por estes métodos. ca ou apenas após a maioridade; identificação
Em ambos os casos (array e NGS) a infor- de alteração que apenas aumenta ou diminui a
mação obtida abrange todo o genoma, apenas probabilidade de manifestação de determinada
com as limitações já anteriormente referidas. doença; identificação da probabilidade de uma
A maior delas em ambos os métodos reside na determinada terapêutica farmacológica ser ou
frequente dificuldade de interpretação, nomea- não eficaz e vir ou não a ter efeitos secundários
damente quando a alteração identificada não graves, para uma doença presente ou ausente;
está classificada como uma variante do normal identificação do risco de transmissão de uma
ou uma mutação confirmada. É necessário ga- doença hereditária a um filho. A necessidade
rantir que cada uma das variações identificadas de estabelecer previamente regras quanto à in-
nestas circunstâncias é adequadamente analisada formação que será ou não transmitida, em que
utilizando toda a informação disponível em bases contexto e quando (nomeadamente quanto a in-
de dados específicas, na família (relacionando formação obtida em testes realizados a menores
a sua presença ou ausência com o fenótipo de mas apenas relevantes para a vida adulta) deve
cada indivíduo) em modelos que prevêm in silico anteceder obrigatoriamente a realização deste
a proteína produzida pelo gene com a presença tipo de testes genéticos.
da alteração em avaliação ou, quando existem re-
cursos para tal, em modelos celulares ou animais. Determinismo genético
Adicionalmente é obrigatório acautelar des- de doenças frequentes
de o início a forma como a informação obtida é A hipertensão arterial, a diabetes mellitus, as
(ou não é) transmitida. Uma vez que se trata de dislipidémias, a asma, o cancro, a perturbação do
metodologias que avaliam globalmente o geno- espetro do autismo e muitas outras situações são
ma, independentemente do contexto clínico, é problemas de saúde frequentes e heterogéneos
necessário estabelecer um consenso prévio sobre quanto à etiologia. A perturbação do espetro
os procedimentos a adotar quanto a alterações do autismo tem uma frequência estimada de até
patogénicas identificadas mas não relacionadas um por cento e uma hereditabilidade de 50%.
com a indicação médica para a realização do teste. Nalguns casos de autismo a hereditabilidade é de
Pode ser obtida informação com utilidade clínica 100%: a presença de uma variação de sequência
presente ou futura, em contexto individual ou patogénica, uma microdeleção ou uma micro-
reprodutivo que podemos classificar da seguin- duplicação é suficiente para a manifestação do
te forma: identificação de alteração patogénica fenótipo; em muitos outros casos é a coexistência
suscetível de melhoria do prognóstico se tera- de várias das alterações referidas que determina a
pêutica específica for iniciada antes do início da probabilidade maior ou menor da doença existir
68 JORGE SARAIVA

– e nalguns casos esta probabilidade é também impacto global positivo. A estratificação genética
modulada pelo sexo feminino ou masculino do da população em grupos de risco mais elevado
indivíduo sendo regra geral a existência de um e mais baixo é geralmente apresentado como
efeito protetor no sexo feminino. E na grande uma oportunidade de, no primeiro, aumentar a
maioria a causa continua a ser desconhecida. Este motivação para a prevenção e oferecer o rastreio
modelo aplica-se com adaptações específicas a e o diagnóstico precoce.
quase todas as doenças frequentes. Neste grupo de doenças a confirmação ou
Alguns casos, uma minoria, são uma conse- exclusão da presença de uma etiologia genética
quência quase obrigatória da presença de uma faz-se habitualmente em casos selecionados pela
única variação de sequência génica patogénica, maior probabilidade de um resultado positivo. São
herdada de um dos progenitores ou de novo (5% considerados os fatores individuais e familiares
no caso das doenças oncológicas mais frequentes). que determinam a realização de testes genéticos
Noutras situações a variação de sequência e a sua escolha.
génica é indiferente para a saúde do indivíduo Assim é no caso da seleção de doentes com
exceto se exposto a um fator ambiental. A fe- diabetes mellitus para realização dos testes mole-
nilcetonúria é o resultado da exposição a um culares de diabetes tipo - Maturity onset diabetes
aminoácido de um indivíduo com ausência de of the young (MODY). Ou a seleção dos casos
produção de uma enzima funcionante. Para além de cancro da mama para testes moleculares nos
deste exemplo em que a doença está presente genes BRCA1 e BRCA2. Evidentemente que ha-
apenas mas sempre que se verificam as duas con- verá que tomar em consideração por um lado
dições (o fator ambiental e o genético) muitos que existem outros genes que determinam uma
outros casos existem em que ambos interferem maior suscetibilidade; e que quando se estabelece
na probabilidade de manifestação da patologia: como critério de inclusão uma mulher que tem
a doença celíaca exige a exposição ao glúten e uma probabilidade igual ou superior a 10% de
a presença de um alelo específico do sistema ter uma mutação patogénica num dos dois genes
de histocompatibilidade mas a presença de am- referidos estamos a excluir a sua realização em
bos não origina obrigatoriamente a presença da mulheres com uma alteração desse tipo apenas
doença. O tabagismo é um fator de risco para o porque a probabilidade de ter um resultado posi-
cancro do pulmão mas existe cancro do pulmão tivo é inferior a 10%. Nestes cenários a existência
na sua ausência; e uma variação de sequência ou não de um limiar e o seu valor são o resultado
génica, indiferente para os não fumadores, de- da disponibilidade dos testes e, desejavelmente,
termina que nos fumadores a probabilidade de da acessibilidade com equidade: enquanto não
ter cancro do pulmão seja de seis ou 12%. Numa houver disponibilidade, por motivos tecnológicos,
perspetiva populacional esta informação pode organizacionais ou económicos, para realizar o
ser classificada como desnecessária, uma vez teste a todas as mulheres são selecionados os
que a recomendação para a adoção de estilos casos com maior probabilidade de ter um resul-
de vida saudável, incluindo não fumar, tem um tado positivo.
CAPÍTULO 6. A GENÉTICA EM PEDIATRIA 69

Noutras situações a avaliação das vantagens de saúde, em particular dos diferenciados, pelo
e inconvenientes da utilização de testes genéticos que está sobrerepresentado nas consultas e in-
resulta na recomendação atual de realizar alguns ternamentos hospitalares. As doenças raras po-
em determinados diagnósticos: está indicado rea- dem afetar qualquer órgão ou sistema, algumas
lizar um Microarray-based comparative genomic delas podem ser diagnosticadas in uteru e são
hybridisation (array CGH) e a determinação do maioritariamente hereditárias pelo que suscitam
número de tripletos do gene FMR1 a todos os a intervenção de todas as especialidades médicas
indivíduos com défice intelectual de etiologia e cirúrgicas no seu diagnóstico e terapêutica. Por
desconhecida, com taxas de resultados positi- estes motivos é uma falácia atribuir a responsa-
vos respetivamente de 15 a 25% e de dois a bilidade do diagnóstico e terapêutica de todas
quatro por cento. A sequenciação exómica total as doenças raras a alguns centros de referência.
estabeleceria o diagnóstico etiológico em outros Em idade pediátrica, período da vida em que
25% dos casos, o que deve ser analisado em duas ocorrem as primeiras manifestações das doenças
perspetivas complementares: o conhecimento raras, um terço dos doentes internados tem uma
atual permite identificar uma causa genética do doença rara e estes internamentos são mais pro-
défice intelectual em 50% dos casos; mas metade longados e têm uma mortalidade quatro vezes
destes não terá acesso à metodologia laborato- superior.
rial enquanto não for confirmada a sua utilidade Em Portugal a legislação e normas em vigor
clínica, nomeadamente com a sensibilidade e a estabelecem que em todos os casos em que se
interpretação dos resultados, e, o que se anteci- efetue um teste genético o médico deve realizar
pa mais problemático, disponibilizar os recursos aconselhamento genético antes e depois da sua
organizacionais e económicos necessários. realização; e que sempre que se confirme o diagnós-
tico de uma doença genética as famílias devem ser
Determinismo genético referenciadas à especialidade de genética médica.
de doenças raras Estes princípios aplicam-se aos testes gené-
As doenças raras são todas as que têm uma ticos de diagnóstico e de farmacogenética. No
prevalência inferior a um em 2.000 (5/10.000). caso da sua realização em menores é exigido
Apesar de cada uma delas, por definição, ser inco- um consentimento escrito assinado por um dos
mum são muito numerosas, mais de 8.000, e em pais ou tutores. Os testes genéticos de hetero-
80% a etiologia é genética. Epidemiologicamente zigotia, pré-sintomáticos e de suscetibilidade e
pode assim afirmar-se que seis a oito por cento ainda em contexto de diagnóstico prénatal e
da população terá uma doença rara durante pré-implantação exigem ainda o cumprimento
a sua vida. Em Portugal cada médico da espe- de determinações específicas quanto à especia-
cialidade de medicina geral e familiar poderá ter lidade habilitada a realizar o pedido e/ou a forma
na sua lista de utentes mais de uma centena de de arquivo da informação obtida. Existem ainda
pessoas com uma doença rara. Este grupo de restrições específicas aplicáveis às pessoas sem
pessoas recorre com mais frequência a cuidados autonomia.
70 JORGE SARAIVA

A importância de um diagnóstico precoce 6.3 FACTOS A RETER


Abordamos aqui as repercussões para o
doente e para a família de um diagnóstico com A avaliação do determinismo genético das
identificação precisa da doença, e da etiologia doenças frequentes não tem atualmente utilidade
sempre que conhecida, o mínimo de tempo pos- clínica;
sível após o início das manifestações clínicas. Não Os futuros médicos de todas as especia-
se trata pois de rastreios, ocasionalmente referidos lidades têm de conhecer a epidemiologia das
com esta designação, e que aqui serão discutidos doenças genéticas e intervir no diagnóstico, na
em outros capítulos (rastreio neo-natal de hipoti- terapêutica e no acompanhamento das pessoas
roidismo, doenças hereditárias do metabolismo e com doenças raras.
fibrose quística; rastreios neo-natais de surdez, de Os futuros médicos devem executar a refe-
cardiopatias congénitas, de displasia congénita da renciação correta dos doentes e familiares.
anca, de hipertensão arterial e de dislipidémias). Os futuros médicos devem conhecer os prin-
Uma criança (ou adulto) beneficia de um cípios gerais, vantagens e limitações dos rastreios
diagnóstico etiológico precoce por passar a usu- e das diferentes metodologias de testes genéticos
fruir de um programa de promoção e vigilância e interpretar os resultados.
da saúde específico que contempla acompanha- Os futuros médicos devem aplicar os princí-
mento apropriado, vigilância das complicações pios gerais do aconselhamento genético ao abor-
associadas, planeamento educativo mas também dar com os doentes e as famílias os resultados
da abstenção de exames desnecessários. A famí- dos testes genéticos.
lia lucra com o acesso a informação adequada, Os futuros médicos devem implementar os
acompanhamento, participação em grupos de planos de promoção e vigilância da saúde de
apoio e aconselhamento genético. pessoas com doenças raras.
Em concreto o crescimento deve ser acom- Os futuros médicos devem defender os di-
panhado com curvas específicas para a doença reitos das pessoas com doenças raras e das suas
(i.e. trissomia 21, acondroplasia ou síndrome de famílias.
Marfan), os parâmetros do desenvolvimento psico-
motor interpretados de acordo com o habitual para Leitura complementar
cada diagnóstico, a realização de meios comple- Decretro-Lei nº 131/2014 de 29 de agosto
mentares de diagnóstico (mantendo o exemplo da Lei nº 12/2005 Informação genética pessoal e informação
trissomia 21: o hipotiroidismo e a doença celíaca) e de saúde
de avaliações específicas escalonadas (ainda para Despacho nº 2129-B/2015 de 26 de fevereiro Estratégia
o mesmo exemplo a acuidade visual e auditiva) Integrada para as Doenças Raras 2015-2020.
em função da frequência e idade da sua ocorrên-
cia bem assim como os cuidados antecipatórios,
nomeadamente quanto a atividade física, perfis
comportamentais e integração na vida adulta.
Capítulo 7.
Meios complementares
de diagnóstico em Pediatria

7
Cândida Cancelinha
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_7
CAPÍTULO 7. MEIOS COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO EM PEDIATRIA 73

7. 1 CONTEXTO Os manuais recorrem à observação microscópica


da amostra, enquanto que os automáticos se ba-
Um laboratório tem por objetivo apoiar os seiam no uso de técnicas que avaliam as variações
serviços clínicos de modo a possibilitar, mediante de impedância do fluxo elétrico ou da dispersão
a realização de exames complementares, o apoio de luz produzida pelas diferentes células.
ao diagnóstico e ao tratamento dos doentes. Os glóbulos vermelhos (GV) definem-se por
De forma a otimizar a abordagem do doente, três parâmetros quantitativos: o hematócrito (Ht),
torna-se fundamental o diálogo entre o labora- a concentração de hemoglobina (Hb) e a conta-
tório e os clínicos na seleção do tipo de exames gem de GV. Três índices adicionais permitem des-
com base nas hipóteses de diagnóstico e, sem- crever características qualitativas médias e incluem
pre que necessário, no apoio à interpretação dos o Volume Globular Médio (VGM), a Hemoglobina
resultados. Globular Média (HGM) e a Concentração Média
Nos estudos analíticos da população pediá- da Hemoglobina Globular (CMHG). O Ht é a pro-
trica é da maior importância a colheita correta das porção do volume da amostra de sangue que
amostras e o seu processamento atempado, assim é ocupado pelos GV. Expressa-se em % ou em
como a seleção de equipamentos e de métodos litros por litro (L/L).
que requeiram pequenos volumes de amostra. Policitémia (ou poliglobulia), é o aumento da
Além disso, o clínico deve ter conhecimento dos percentagem de GV. Pode ser relativa (por perda
valores de referência adotados por grupo etário de volume) ou absoluta (aumento da massa total
e sexo. de GV), primária (policitémia vera) ou secundária
Este capítulo visa descrever os principais exa- a hipoxémia crónica por altitude elevada e de
mes laboratoriais de produtos biológicos solicita- outras causas, e hemoglobinopatias.
dos num serviço de urgência ou de ambulatório. Volume Globular Médio (VGM), é o volume
médio dos GV e é um índice útil na classificação
das anemias. A anemia classifica-se como normo-
7. 2 DESCRIÇÃO DO TEMA cítica, macrocítica ou microcítica, de acordo com
a variação do VGM. É geralmente determinado
7. 2.1 Hematologia por métodos automáticos, mas pode ser calculado
pelo quociente entre o hematócrito e o número
Hemograma de GV. Expressa-se em fentolitros (fl ou x10 -15).
O hemograma é um dos exames comple- Hemoglobina Globular Média (HGM), é a
mentares de diagnóstico mais frequentemente medida do conteúdo de hemoglobina por GV.
requisitados e permite uma quantificação dos Expressa-se em picogramas (pg ou x10 -12).
elementos celulares do sangue assim como o es- Concentração Média de Hemoglobina
tudo da sua morfologia. Globular (CMHG), é a concentração média de
A análise da amostra pode ser realizada hemoglobina por GV. Normocromia diz respeito
através de métodos manuais ou automáticos. a uma CMHG dentro dos valores de referência;
74 CÂNDIDA CANCELINHA

hipocromia traduz-se pela diminuição da colo- eosinófilos e basófilos. O primeiro elemento dife-
ração normal dos GV. Note-se que, salvo raras renciado é o mieloblasto; seguem-se os estádios
excepções (e.g., esferocitose), não há hipercromia, de promielócito, mielócito e bastonete. Somente
porque concentrações superiores a 36% reduzem os bastonetes e neutrófilos maduros têm capaci-
a solubilidade da hemoglobina, podendo levar dade funcional plena de fagocitose, quimiotaxia
à sua cristalização. Expressa-se em g/dl ou %. e destruição bacteriana. Quando se verifica um
O número de reticulócitos é a contagem de aumento no número de bastonetes diz-se que há
GV imaturos no sangue periférico. O seu número um “desvio à esquerda”, mais comum na pato-
encontra-se elevado quando a produção medular logia infeciosa. Além disso, a relação do número
de GV aumenta. A sua contagem é útil para dis- absoluto de neutrófilos imaturos / número abso-
tinguir situações hipoproliferativas (e.g. anemia luto de neutrófilos totais ≥ 0,2 é mais sugestiva
ferropénica) e hiperproliferativas (e.g. hemorragia de infeção bacteriana.
e hemólise). (Ver lição de anemia) Terapêutica com corticóides, anti-inflama-
tórios não esteróides e anticonvulsivantes podem
Leucócitos dar alterações destes valores.
O estudo dos leucócitos baseia-se nos se- Valores diminuídos podem indicar depres-
guintes parâmetros: contagem, morfologia, pro- são medular por diferentes mecanismos, como
porções relativas, maturação e modificações na infeções agudas graves, situações auto-imunes,
inflamação. A contagem normal de leucócitos oncológicas ou imunodeficiências.
varia consoante a faixa etária. A fórmula leuco-
citária determina a importância de uma infeção, Plaquetas
tendo em conta as alterações dos diferentes tipos A variação normal da contagem das pla-
de glóbulos brancos, e avalia ainda a capacidade quetas é de 150 a 400 x 10 9/L. A trombocitose
de resposta à infeção. pode ocorrer, por exemplo, em associação com
As principais causas de leucocitose são: doenças mieloproliferativas (linfomas e leucemias),
infeção/inflamação, traumatismo/stresse e leu- processos inflamatórios crónicos, infeções crónicas
cemia/linfoma. Há algumas situações que são e doença de Kawasaki. As situações de trombo-
acompanhadas pelo aumento de um tipo espe- citopenia são mais commumente de etiologia au-
cífico de leucócito. Frequentemente, as infeções toimune, infeciosa ou doença hemoproliferativa.
bacterianas acompanham-se de neutrofilia, as Valores inferiores a 50.000/mm3 estão associados
víricas de linfocitose e as parasitárias e alérgicas a maior risco de hemorragia espontânea.
de eosinofilia. Sobretudo em situações neoplá-
sicas, além da contagem dos leucócitos, é fun- Esfregaço do sangue periférico (ESP)
damental o estudo morfológico e imunológico A avaliação do ESP é uma parte importante
destas células. no estudo de doenças hematológicas, infecciosas
A granulocitopoiese corresponde ao pro- e auto-imunes. Embora um diagnóstico especí-
cesso de formação dos leucócitos – neutrófilos, fico possa ser sugerido com base em resultados
CAPÍTULO 7. MEIOS COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO EM PEDIATRIA 75

obtidos por métodos automáticos, muitas doen- o acompanhamento de doenças agudas. No en-
ças têm uma contagem celular normal, mas a tanto, a VS é muito utilizada como indicador de
morfologia celular é anormal. Situações como doenças orgânicas e na monitorização de proces-
anisocitose (variações do tamanho dos GV), sos inflamatórios mais arrastados (e.g., doença
poiquilocitose (variações da forma dos GV) ou inflamatória intestinal, febre reumática e vascu-
anisocromia (variações da cor dos GV) só po- lites). No caso específico do acompanhamento
derão ser avaliadas através da realização de de doenças infeciosas crónicas ou subagudas,
um esfregaço. Outra patologia a destacar é o como na osteomielite e na tuberculose, é útil para
síndrome hemolítico urémico, cujo ESP revela avaliação da resposta à terapêutica.
alterações morfológicas dos GV características Valores superiores a 20 mm/na primeira hora
(fragmentação, forma de “capacete”) que faci- são considerados elevados.
litam o diagnóstico.
Tempos de coagulação
Velocidade de sedimentação eritrocitária (VS) O tempo de tromboplastina parcial ativada
Este teste mede a velocidade de sedimenta- (TTPA) avalia defeitos da via intrínseca da coa-
ção dos GV/eritrócitos suspensos com o agregado gulação, podendo identificar a deficiência dos
anticoagulante, no período de uma hora. A VS fatores VIII, IX, XI e XII. É útil também no controle
não representa o doseamento de uma substância do uso terapêutico de heparina e na avaliação da
específica. O seu aumento resulta da alteração presença de anticoagulantes circulantes. Pode
nas concentrações de várias proteínas de fase também apresentar-se alterado quando ocorre
aguda, que atrasam a sedimentação dos GV e comprometimento da via final comum (X, V, II e I).
favorecem a formação de «rouleaux”. A toma de anticoagulantes, antibióticos
A proteína mais importante neste processo (tetraciclinas) e corticóides pode influenciar os
é o fibrinogénio, cuja concentração aumenta até resultados da TTPA.
duas a quatro vezes do normal nos processos O tempo de protrombina (TP) é útil na ava-
inflamatórios agudos. As imunoglobulinas são liação da via extrínseca, podendo estar elevado
outras proteínas que interferem neste fenóme- na deficiência isolada do fator VII, na presença de
no, com relevância nos processos inflamatórios anticorpos inibidores circulantes e em patologias
crónicos. A VS depende ainda de outros fatores, que afetem o processo de absorção, síntese e
como o tamanho, o número e a forma dos GV. É, metabolização da vitamina K. Pode apresentar-se
por isso, um indicador muito sensível de doença, alterado também, quando ocorre comprometi-
embora seja pouco específico. mento da via final comum (X, V, II e I).
Outra condicionante são as características As drogas anticoagulantes orais atuam sobre
das próprias proteínas de fase aguda. O facto os fatores da coagulação pertencentes ao sistema
de terem uma semivida relativamente longa e extrínseco da coagulação. Como teste de referên-
poderem ser «consumidas» durante o processo cia para o acompanhamento da anticoagulação
patológico, torna o valor da VS pouco útil para oral, o TP não fornecia a uniformidade desejada
76 CÂNDIDA CANCELINHA

entre diferentes laboratórios. Por esse motivo, conversão excessiva em fibrina, como acontece
estabeleceu-se a recomendação para a utilização nos quadros de coagulação intravascular disse-
mundial do International Sensibility Index (ISI) e a minada. Pode também apresentar-se diminuído
conversão dos seus resultados em International nos casos de fibrinólise primária e secundária ao
Normalized Ratio (INR).  O INR é obtido através uso de agentes fibrinolíticos.
de um cálculo que divide o TP do doente pelo TP
de um conjunto de plasmas normais, elevado ao 7.2.2 Bioquímica
ISI, tornando-o um valor padronizado.
São alguns os fatores que podem alterar Proteína C-reactiva
os resultados do INR tais como: medicação com A proteína C-reactiva (pCr) é uma  proteí-
corticóides, anti-inflamatórios, citostáticos, diu- na plasmática, sintetizada pelo fígado, sendo um
réticos, salicilatos e imunossupressores, de entre reagente de fase aguda. A sua função fisiológica
outros. é a de se ligar à fosfocolina que se expressa na
Um valor de TTPA prolongado na presen- superfície de células mortas ou lesadas (e em
ça de TP normal indica possível deficiência dos alguns tipos de bactérias), para iniciar a sua eli-
fatores XII, XI, IX e VIII. Pelo contrário, TTPA minação ao ativar o sistema de complemento e
normal na presença de TP prolongado indica células que procedem à fagocitose.
compromisso do fator VII. Quando ambos estão É um constituinte normal do soro humano,
alterados, indicam alteração da via final comum, que em condições normais se mantém em con-
ou seja, dos fatores X, V, II e I. Se ambos os centrações inferiores a 1 mg/dL.
tempos forem normais não sugerem qualquer A elevação da pCr inicia-se entre as quatro
alteração da coagulação com exceção da alte- e as seis horas após o contacto com o agente
ração do fator XIII. infecioso ou numa situação de lesão tecidual,
sendo o valor máximo atingido entre as 24 e as 48
Fibrinogénio horas. Após este período assiste-se à sua redução
O fibrinogénio (fator I) é uma glicoproteína que é concomitante com a resolução do processo
sintetizada no fígado envolvida na etapa final infecioso/inflamatório, sendo que na ausência de
da cascata da coagulação, convertendo-se em factores estimulantes a semi-vida desta proteína
fibrina, sob a ação da trombina. Além do seu é de aproximadamente 19 horas.
papel na coagulação, é uma importante proteína Pelo facto de apresentar elevações mais
na resposta de fase aguda, podendo estar ele- significativas nas infeções bacterianas compa-
vada em diferentes patologias, como processos rativamente às víricas, este método auxiliar de
inflamatórios e infeciosos agudos, traumatismos, diagnóstico é útil na prática clínica como com-
neoplasias e situações de pós-operatório. plemento à decisão de introduzir ou não antibio-
Pode ocorrer diminuição do fibrinogénio terapia. A literatura demonstra inúmeros estudos
por défice na produção hepática (hepatopatias da utilidade do doseamento da pCr por métodos
graves) ou por aumento de consumo, com a sua quantitativos na distinção etiológica dos quadros
CAPÍTULO 7. MEIOS COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO EM PEDIATRIA 77

de meningite, pneumonia e artrite, com resultados diagnóstico de sépsis, e o seu doseamento deve
que confirmam a sua eficácia. ter em conta o tempo de evolução da doença.
No entanto a PCT tem certas vantagens compa-
Procalcitonina (PCT) rativamente à pCr, como seja o facto de alterar
Em condições normais, a PCT está presente pouco nas infeções virais e nas doenças inflama-
em concentrações muito baixas na circulação (<0,1 tórias sistémicas, mas por outro lado a PCT pode
ng/mL), permanecendo no interior das células da não sofrer alterações em infeções limitadas a um
tiróide como principal precursor da calcitonina. órgão. A pCr por sua vez é um exame rápido e
Nos processos inflamatórios, há um aumento barato, de fácil interpretação que está disponível
significativo da sua produção e libertação por em quase todos os laboratórios.
tecidos extra-tiroideus. Nestas situações, os níveis A determinação simultânea destes dois bio-
séricos aumentam no espaço de três a quatro marcadores, aumenta a especificidade, embora
horas, atingindo um pico em seis horas, e esta- também incremente os custos associados.
bilizando às 24, podendo os níveis permanecer
elevados até às 48 horas. Glicémia
Nas infeções bacterianas limitadas a um O objetivo deste doseamento é proceder ao
órgão, em geral não se observa elevação signi- estudo do metabolismo dos hidratos de carbo-
ficativa da sua concentração, mas nos processos no, ao diagnóstico de diabetes mellitus (ver lição
bacterianos graves, como a sépsis, podem ser poliúria e polidipsia) e à avaliação de situações
encontrados níveis muito elevados de PCT. de hipoglicémia.
Em infeções víricas apresenta pequenas ele- A hipoglicémia em idade pediátrica associa-
vações, geralmente até 0,5 ng/ml. No entanto -se a uma grande variedade de etiologias relacio-
em infeções bacterianas invasivas pode atingir nadas com problemas metabólicos e hormonais.
valores superiores a 100 ng/ml. Surge mais frequentemente no período neonatal,
Vários estudos realizados principalmente em sobretudo nos primeiros dois a três dias após o
países europeus, têm evidenciado a utilidade deste parto. A incidência é mais elevada em filhos de
biomarcador no diagnóstico precoce de sépsis. mães diabéticas, prematuros e em situações de
Além disso, a monitorização dos níveis de PCT restrição do crescimento intra-uterino. A hipogli-
tem revelado ser útil na avaliação do prognóstico cémia é definida independentemente da existência
destes casos. Vários estudos têm demonstrado ou não de sintomas: no lactente e na criança com
que a resolução do quadro sético se correlaciona um valor de glicose no sangue total inferior a 50
com a diminuição dos níveis séricos de PCT, por mg/dL. No RN os valores são diferentes (ver lição
outro lado a persistência de valores elevados está de neonatologia).
associada a uma evolução clínica desfavorável. A hiperglicémia para além da diabetes,
Comparativamente poder-se-á afirmar que pode surgir também na pancreatite, síndrome
a pCr e a PCT são marcadores biológicos com de Cushing, feocromocitoma, stresse agudo e
capacidade discriminativa muito semelhante no corticoterapia.
78 CÂNDIDA CANCELINHA

Uma forma rápida de avaliação é a determi- diuréticos ou síndrome de secreção inapropriada


nação da glicémia capilar, sendo que os valores de hormona anti-diurética (SIHAD).
determinados no soro ou plasma são cerca de 10 Também pode existir uma falsa hiponatré-
a 15% mais elevados que no sangue total. mia (pseudohiponatrémia) se outras substâncias
invadem o plasma e diluem o sódio (por exemplo,
Caliémia hipertrigliceridémia ou hiperglicémia).
Tem como objetivo o estudo complementar
de um quadro clínico que inclua sinais de hiper ou Calcémia
hipocaliémia. O potássio é o principal eletrólito in- A calcémia é a concentração de cálcio ioniza-
tracelular. Qualquer alteração significativa na con- do no sangue, no qual o seu teor depende da ação
centração extracelular de potássio pode ter sérios de duas hormonas: calcitonina, que é libertada
efeitos não só na função metabólica, mas também pelas células C da tiróide em resposta à elevação
na condução nervosa, com repercussões na muscu- da calcémia, induzindo a diminuição da absorção
latura e, principalmente, no ritmo cardíaco. de cálcio no intestino; e a paratormona,  que é
É útil no estudo de quadros com alterações sintetizada nas paratiróides, aumentando a ab-
neurológicas, endócrinas, musculares e arritmias. sorção de cálcio pelo intestino.
Utiliza-se para monitorizar doentes sob medicação A sua determinação é útil no estudo do equi-
com potássio ou diuréticos. líbrio ácido-base, no diagnóstico de alterações
Valores aumentados de potássio podem in- e doenças da coagulação, ósseas, endócrinas,
dicar redução da excreção de sódio, insuficiência arritmias e convulsões/tetania.
supra-renal, acidose e hemólise. Valores aumentados podem indicar hiper-
Valores diminuídos podem estar presentes paratiroidismo, insuficiência supra-renal, doen-
na insuficiência renal crónica, diarreia, vómitos, ça renal, fracturas múltiplas, doença de Paget e
desidratação, hiperaldosteronismo, cetoacidose imobilização prolongada.
diabética, terapêutica com diuréticos expoliadores Valores diminuídos podem ocorrer na insu-
de potássio e antibióticos. ficiência renal crónica, no défice de vitamina D,
no défice de absorção de cálcio e na pancreatite
Natrémia aguda.
Tem como objetivo avaliar a presença de
alterações no equilíbrio hidro-electrolítico e al- Clorémia
terações suprarrenais. O cloro é um eletrólito que circula na corren-
Valores aumentados podem indicar desidra- te sanguínea sob a forma de anião, sendo essen-
tação, insuficiência renal, hiperaldosteronismo ou cial para o equilíbrio ácido-base do organismo.
diabetes insípida. A sua concentração é controlada pelo rim. A sua
Valores diminuídos podem estar associados a determinação é útil na avaliação de situações de
diarreia/vómitos, insuficiência renal crónica, insufi- acidose e alcalose.
ciência supra-renal, queimaduras, terapêutica com
CAPÍTULO 7. MEIOS COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO EM PEDIATRIA 79

Valores aumentados podem indicar desidra- Valores aumentados podem indicar insufi-
tação, insuficiência renal aguda/crónica, hiper- ciência renal ou supra-renal.
natrémia, hiperaldosteronismo primário, acidose Valores diminuídos surgem na diarreia, má
tubular renal ou hiperparatiroidismo. absorção, pancreatite, queimaduras graves, die-
Valores diminuídos podem surgir em quadros ta pobre em magnésio ou na terapêutica com
gastrointestinais (vómitos incoercíveis e diarreia), diuréticos.
insuficiência renal crónica, nefrite, insuficiência
supra-renal e fibrose quística. Creatinina
A creatinina é um produto da degradação
Fosfatémia da  fosfocreatina  no  músculo, e é geralmente
Os três principais mecanismos que interfe- produzida numa taxa praticamente constante
rem com os níveis de fosfato sérico são: redis- pelo corpo que é diretamente proporcional à
tribuição do fósforo do espaço extracelular para massa muscular do indivíduo. Através da medi-
o intracelular, alteração na absorção de fosfato da da creatinina do sangue, do volume urinário
(intestino) e na excreção de fosfato (rim). O do- das 24 horas e da creatinina urinária é possível
seamento utiliza-se para avaliação em situações calcular a taxa de filtração glomerular, que é um
de desequilíbrio eletrolítico, doenças renais e parâmetro utilizado para avaliar a função renal.
identificação de alterações endócrinas, ósseas Utiliza-se para deteção de disfunção renal, mo-
e de metabolismo do cálcio (como em situações nitorizar o doente com insuficiência renal e para
de suspeita de raquitismo). ajuste terapêutico de fármacos potencialmente
Valores aumentados podem indicar altera- nefrotóxicos.
ção do metabolismo do osso, hipoparatiroidismo O exercício físico ou ingestão excessiva de
e insuficiência renal. Frequentemente os níveis proteínas podem alterar os resultados, aumen-
de cálcio estão diminuídos pela precipitação do tando o nível sérico da creatinina.
fosfato com o cálcio nos tecidos.
Valores diminuídos ocorrem na acidose tu- Ureia
bular renal, hiperparatiroidismo, desnutrição e A ureia forma-se principalmente no fígado,
síndromes de má absorção. sendo filtrada pelos rins e eliminada na urina ou
pelo suor, onde é encontrada abundantemente;
Magnesémia constitui o principal produto terminal do metabo-
O magnésio participa como co-fator em lismo proteico no ser humano. O seu doseamento
mais de 300 reações enzimáticas, contribuindo é útil para avaliação da função renal e nos quadros
para a produção de energia e coadjuvando a de desidratação.
regulação dos níveis de cálcio, cobre, zinco, po- Valores aumentados podem indicar aumento
tássio  e  vitamina D. Determina-se para avaliar da destruição de proteínas no organismo incluindo
o balanço eletrolítico e as funções do nervo e queimaduras extensas, doença renal, obstrução
do músculo. urinária ou desidratação.
80 CÂNDIDA CANCELINHA

Valores diminuídos podem indicar insufi- Estas enzimas são libertadas no sangue em
ciência hepática, desnutrição ou sobrehidratação. grandes quantidades quando há lesão da mem-
brana do hepatócito, não sendo contudo neces-
Albumina sária a sua necrose. Deste modo a correlação
Constitui a principal proteína plasmática, dos níveis de aminotransferases com o grau de
sendo sintetizada pelos hepatócitos. A albumina lesão hepatocelular é baixa. Assim, a elevação
é fundamental para a manutenção da pressão absoluta das aminotransferases tem grande sig-
oncótica, necessária para a distribuição adequada nificado diagnóstico, mas não prognóstico, nas
dos líquidos corporais entre o compartimento hepatopatias agudas.
intra e extravascular. A membrana basal do glo- TGP e TGO são indicadores sensíveis de
mérulo renal permite a filtração de uma quan- lesão hepática em diferentes tipos de doenças.
tidade mínima de albumina, contudo a maior Mas deve ser enfatizado que ter níveis mais altos
parte é reabsorvida pelos túbulos contornados que o normal dessas enzimas não indica, neces-
proximais. sariamente uma doença hepática estabelecida.
O seu doseamento pode ser feito no san- A interpretação dos níveis elevados destes bio-
gue, urina ou liquido cefalo raquídeo (LCR), e tem marcadores requer a integração com a clínica e
como objetivo a deteção de perdas excessivas restante avaliação laboratorial.
renais (sendo a principal causa o síndrome ne- Valores aumentados podem indicar hepatite
frótico), défices nutricionais crónicos, défices de aguda ou crónica, lesão hepática induzida por
absorção e insuficiência hepática. A sua elevação fármacos, esteatose hepática, lesão do múscu-
no LCR pode ocorrer em doenças auto-imunes, lo cardíaco, pancreatite, cirurgia recente, trom-
particularmente no síndrome de Guillain-Barré, boembolismo pulmonar, miopatia e traumatismo
caracterizado pela dissociação entre a albumina muscular, de entre outras possibilidades.
e a contagem celular.
Gama-glutamil transferase
Transaminase glutâmico oxalacética / A gama glutamil transferase (GGT) é uma
transaminase glutâmico pirúvica enzima envolvida na síntese proteica, na regulação
A transaminase glutâmico oxalacética (TGO), dos níveis teciduais de glutatião e transporte de
também denominada de aspartato aminotrans- aminoácidos entre membranas. A quase totalida-
ferase (AST), está presente no citoplasma e mi- de da GGT é encontrada no fígado mas também
tocôndrias  de muitas  células, sobretudo, do existe nos rins, cérebro, e pâncreas. No fígado,
fígado, coração, músculo esquelético, rins, pân- esta enzima está localizada nos canalículos dos
creas  e  GV. A transaminase glutâmico pirúvica hepatócitos e, particularmente, nas células epite-
(TGP), ou alanina aminotransferase (ALT) é encon- liais dos ductos biliares. Devido a esta localização
trada quase exclusivamente em células hepáticas, característica, a enzima surge elevada em qua-
pelo que é mais específica que a TGO nas doenças se todas as alterações hepatobiliares, sendo um
deste órgão. dos testes mais sensíveis no diagnóstico destas
CAPÍTULO 7. MEIOS COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO EM PEDIATRIA 81

condições. Nas células do parênquima hepáti- (bilirrubina conjugada ou direta), para se tornar
co, a enzima localiza-se tipicamente no retículo hidrossolúvel e ser eliminada pelos canais biliares
endoplasmático liso, estando sujeita a indução através do aparelho digestivo.
microssomal hepática, o que faz dela um marca- O seu doseamento visa a avaliação da
dor sensível a agressões hepáticas induzidas por conjugação e eliminação hepática e do grau de
medicamentos e pelo álcool. destruição eritrocitária. É útil no diagnóstico e
São de esperar valores aumentados nas evolução dos quadros de icterícia, anemia e obs-
doenças hepáticas em geral, nas pancreatites, trução biliar e para determinação da indicação de
no enfarte agudo do miocárdio, hipertiroidismo, fototerapia no recém-nascido (os limites variam
estados pós-operatórios e no uso de medicamen- com a idade gestacional e dias de vida) – ver
tos hepatotóxicos ou capazes de ativar a indução lição de neonatologia. A presença de bilirru-
enzimática (barbitúricos, fenitoína, antidepressivos binúria sugere a presença de situações clinícas
tricíclicos, paracetamol). que cursem com colestase.

Fosfatase alcalina Amilase e lipase


É uma enzima produzida em diversos órgãos, Valores séricos aumentados da amilase e
incluindo o osso, fígado (canalículos biliares) e da lipase são os biomarcadores mais caracterís-
intestino, pelo que poderá estar elevada sempre ticos da pancreatite. A amilase eleva-se logo nas
que aumenta a atividade de células ósseas (como primeiras horas de doença e assim se mantém
nos períodos de maior crescimento na infância, por quatro a cinco dias. A lipase, embora tam-
fracturas, neoplasias, raquitismo), nas alterações bém aumente nas primeiras horas, mas como
hepáticas colestáticas/obstrutivas (colangite, obs- tem reabsorção glomerular, mantém-se elevada
trução biliar, fibrose), sépsis e na doença infla- mais tempo, por oito a catorze dias. Após as
matória intestinal, entre outras. primeiras 24 horas de doença a lipase tem maior
As  isoenzimas  produzidas no fígado e no acuidade diagnóstica que a amilase. No entanto,
osso podem ser separadas por electroforese para ambas são importantes - há registo de aumento
distinguir a origem da sua elevação. Contudo um isolado da amilase em cerca de 10% dos casos
aumento simultâneo da GGT e das transaminases de pancreatite aguda.
é mais a favor de doença hepática, enquanto alte- No entanto, estas enzimas podem elevar-
rações nos níveis do metabolismo do cálcio, fósfo- -se noutras patologias intra e extra-abdominais.
ro e vitamina D apontam para distúrbios ósseos. O aumento da amilase associa-se a patologia
biliar, isquémia intestinal, úlcera péptica, apen-
Bilirrubina dicite aguda, neoplasia pancreática, insuficiência
A bilirrubina forma-se a partir da destruição renal, enfarte agudo do miocárdio, pneumonia
dos GV (bilirrubina indireta - lipossolúvel), ligando- e cetoacidose diabética de entre outras e a lipa-
-se depois à albumina e sendo transportada para o se a neoplasia pancreática, hipertrigliceridémia,
fígado. Aqui é conjugada com o ácido glucorónico colecistite aguda, esofagite e insuficiência renal.
82 CÂNDIDA CANCELINHA

Creatinafosfoquinase (CPK) ii) pH: as alterações do pH urinário geralmen-


É uma enzima presente em vários tecidos e te refletem as variações do pH sérico. Por
tipos de células. Um aumento da atividade sérica regra é ligeiramente ácido (pH de 5.5 a
é um índice de lesão celular. O seu estudo está 6.5). A exceção são doentes com patolo-
particularmente indicado na avaliação de patologia gia tubular renal, nos quais ocorre inca-
muscular (miopatias, distrofias musculares, queima- pacidade de acidificar a urina (por inca-
duras, situações de rabdomiólise e lesão cardíaca). pacidade em reabsorver bicarbonato ou
secretar protões). A determinação do pH
7.2.3 Urina é ainda útil no diagnóstico e abordagem
da litíase renal e de infeções urinárias;
Análise sumária de urina
É um teste laboratorial fácil e rápido, sendo iii) hematúria: corresponde à observação de
muito útil na abordagem de patologia nefrológica, cinco ou mais GV por campo microscó-
urológica e sistémica. O exame completo envolve pico de grande ampliação. Trata-se de
o exame macroscópico, bioquímico e microscópico uma reação colorimétrica que avalia a
ou sedimento urinário. presença do heme, permitindo inferir
A colheita de urina pode ser feita, por saco indiretamente a presença de eritrócitos,
coletor, sonda vesical, punção vesical ou através pelo que a presença de mioglobina é
de jato médio dependendo da idade da criança identificada pelo mesmo método. A he-
e da situação clínica. A urina deve ser processada matúria deve ser confirmada pela análise
no período máximo de duas horas após colheita; do sedimento, requerendo depois a dis-
caso contrário, deve ser refrigerada. tinção entre as etiologias glomerulares
No exame macroscópico, deve ser avaliada a e extra-glomerulares;
cor, que pode depender da presença de sangue,
hemoglobina, bilirrubina, corantes alimentares iv) proteinúria: o reagente, com sensibilidade
ou alguns medicamentos, e o aspeto (urina turva muito elevada, mede apenas a excreção
pode indicar leucocitúria, hematúria e precipi- de albumina. A sua presença requer a
tação de fosfatos). Estes parâmetros têm baixa análise da relação proteínas/creatinina
sensibilidade e especificidade. urinária (valor superior a 200 é conside-
No exame químico semiquantitativo avalia-se: rado uma perda nefrótica e entre 20 a
200 sub-nefrótica) ou uma quantificação
i) densidade: que se correlaciona com a os- da perda proteica em urina de 24 horas;
molalidade urinária, permitindo inferir o
estado de hidratação do doente, e reflete v) glicosúria: a glicose é livremente filtrada
a capacidade de concentração e diluição no glomérulo e reabsorvida no tubo con-
renal. Os valores normais variam entre tornado proximal em condições normais.
1010 e 1020; A glicosúria ocorre se a quantidade
CAPÍTULO 7. MEIOS COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO EM PEDIATRIA 83

filtrada ultrapassa a capacidade de reab- (GV, leucócitos, células tubulares), cilindros, bac-
sorção tubular, situação que ocorre geral- térias e cristais. A presença de leucocitúria (mais
mente apenas com glicémias acima de180 que oito leucócitos /campo) e bactérias em urina
mg/dL (i.e.diabetes mellitus) ou se existe fresca colhida de modo assético são indicadores
disfunção do tubo contornado proximal de infeção urinária.
(e.g. síndrome de Fanconi);
Teste rápido de urina (Combur® teste)
vi) cetonúria: deteta a presença de acetoa- O teste rápido à urina destina-se a identificar
cetato e acetona excretados na urina em em poucos segundos componentes anormais na
caso de: cetoacidose diabética, jejum pro- urina, através de um método semiquantitativo. A
longado, vómitos ou exercício extremo; identificação é efetuada com recurso a uma tira
teste que é imersa em urina.
vii) nitritos: a presença de nitritos na urina A tira reage e identifica a presença, concen-
resulta da redução dos nitratos (origem tração ou quantidade de alguns componentes tais
alimentar) a nitritos por ação de enzimas como: densidade, pH, presença de proteínas, GV,
bacterianas. A sua presença numa urina leucócitos, nitritos, glicose, corpos cetónicos, bi-
acabada de colher (fresca) é fortemente lirrubina e urobilinogéneo.
sugestiva de infeção urinária (elevada
especificidade mas baixa sensibilidade); 7.2.4 Líquido cefalorraquideo

viii) esterase leucocitária: é produzida pelos A punção lombar (PL) destina-se a colher
neutrófilos e constitui um sinal de piúria, liquor cefalorraquideo (LCR) para o estudo de
sendo um exame muito específico. A cau- meningite, meningoencefalite, patologia auto-
sa mais frequente de piúria é a infeção -imune e/ou desmielinizante do sistema nervoso
urinária; central, suspeita de Guillan-Barré e de pseudo-
tumor cerebri (medição da pressão de saída do
ix) bilirrubina e urobilinogénio: a urina em LCR, através da utilização de um manómetro).
condições normais não contém quantida- No estudo do LCR procede-se a exame visual,
de mensurável de bilirrubina; a sua presen- análise química, exame citológico e cultural. Pode
ça indica colestase uma vez que se trata considerar-se a necessidade de realizar estudos
de bilirrubina conjugada (hidrossolúvel). de identificação de vírus e outros germens por
O urobilinogénio eleva-se em situações de técnicas de biologia molecular; de moléculas es-
hemólise e doença hepatocelular. pecíficas de situações desmielinizantes ou autoi-
munes; e a pesquisa de bandas oligoclonais ou
A avaliação microscópica da urina pode ser do perfil de imunoglobulinas.
feita através de observação ao microscópio ou por O exame visual do LCR passa pela clas-
citometria de fluxo, permitindo identificar células sificação do aspeto da amostra que deve ser
84 CÂNDIDA CANCELINHA

observada em local com boa iluminação e pode bactérias piogénicas e, na suspeita de meningite
ser então definido como normal (límpido ou tuberculosa, a coloração de Ziehl-Nielsen e cultura
água de rocha), ou como levemente turvo, tur- em meio específico.
vo ou turvo-leitoso, de acordo com a presença
de células sanguíneas, microrganismos ou taxas 7.2.5 Microbiologia
elevadas de proteínas ou lípidos. A amostra é
considerada xantocrómica quando, após centri- O setor da microbiologia está dirigido para
fugação, tem tonalidade que varia entre rosa, o diagnóstico de infeções bacterianas, realizando
amarelo ou laranja, o que ocorre pela presença não só a pesquisa do agente por exame cultural
de hemoglobina ou por concentrações elevadas e por pesquisa de antigénios específicos, como
de proteínas ou bilirrubina. No caso de punções também o teste de suscetibilidade aos antimi-
traumáticas, o LCR torna-se hemático, o que crobianos (quando aplicável). Para o diagnóstico
pode interferir com a contagem de células e o por exame cultural, é essencial a manutenção da
doseamento de proteínas. viabilidade da bactéria, pelo que é de particular
O exame citológico permite a contagem importância que a colheita seja efetuada antes
de leucócitos, de GV e de células teciduais. do início da antibioterapia e que as normas de
A contagem diferencial de leucócitos é uma etapa colheita e transporte sejam cumpridas para que
fundamental da análise laboratorial, auxiliando a não haja morte ou inibição do crescimento bac-
estabelecer o diagnóstico etiológico, consoante teriano. Só a partir do exame cultural podemos
o predomínio de polimorfonucleares (a favor de realizar o teste de suscetibilidade aos antimi-
bactérias) ou mononucleares (a favor de vírus). crobianos. A sensibilidade desta metodologia
Os valores de referência dependem da idade da é elevada mas a sua desvantagem é o tempo
criança (ver lição de meningite e meningoencefalite). de resposta que, geralmente, é de 48 horas ou
Na análise química o doseamento da glicose superior.
e das proteínas do LCR são indispensáveis para
diagnóstico etiológico das infeções do SNC, de- Hemocultura
vendo, no entanto, ser feita a sua correlação com Tem como objetivo confirmar a presença
os valores plasmáticos. No síndrome de Guillan- de bactérias patogénicas na via sistémica e ava-
Barré a composição do LCR caracteriza-se pela liar a sensibilidade de um microrganismo a um
dissociação albumino-citológica (hiperproteinor- painel de antibióticos, através da realização do
ráquia com contagem celular normal). antibiograma.
Em fase inicial de doença, a análise citoquí- Em Pediatria, o volume ideal de sangue a
mica do LCR pode ser normal, devendo por isso ser processado ainda não está bem definido, mas
os resultados ser interpretados em conjunto com os dados da literatura demonstram que há uma
a clínica e restantes exames complementares. relação direta positiva entre o volume de sangue
A análise microbiológica do LCR inclui o exa- obtido e a taxa de positividade das hemoculturas.
me direto com coloração de Gram e a cultura para Estudos anteriores já demonstraram que amostras
CAPÍTULO 7. MEIOS COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO EM PEDIATRIA 85

de sangue com volume superior ou igual a 1 mL Testes rápidos de pesquisa de antigénios


identificaram mais frequentemente bactérias do O teste rápido para a deteção de Streptococcus
que volumes inferiores. ß-hemolítico do grupo A (Streptococcus pyogenes)
Hemoculturas positivas podem confirmar o é muito utilizado na suspeita de amigdalite bac-
diagnóstico de bacteriémia, endocardite, choque teriana. Tem a vantagem de ser um teste rápido,
tóxico, sépsis ou contaminações. acessível, com baixo custo e com elevada sensi-
bilidade e especificidade. Consiste na realização
Urocultura de uma zaragatoa no exsudato amigdalino e seu
Tem como finalidade o diagnóstico de infe- envio em tubo seco para o laboratório.
ção urinária, devendo o resultado ser confirmado As secreções respiratórias também podem
em amostra de urina colhida por processo estéril ser utilizadas para pesquisa de antigénios de vírus
(ver lição de infeção urinária). respiratórios, através de métodos de imunofluo-
rescência, possibilitando o diagnóstico etiológico.
7.2.6 Estudos serológicos, pesquisa Nos casos de gastroenterite aguda, a pes-
de antigénios e biologia molecular quisa de vírus nas fezes também pode ser útil. No
laboratório do Hospital Pediátrico de Coimbra está
Estudos serológicos disponível a pesquisa de rotavírus e adenovírus nas
Referem-se ao  processo técnico de iden- fezes, que é feita por método imunoenzimático,
tificação de  anticorpos  e  antígenos  no soro. após colheita para frasco seco.
A pesquisa de antigénios específicos, tem a vanta- De referir que a duração da excreção viral
gem de ser um teste rápido e poder ser efetuado depende do tipo de vírus, dos órgãos envolvidos e
mesmo quando o microrganismo já não esteja do estado imunológico do doente. O diagnóstico
viável. Reveste-se de particular importância em laboratorial de infeção viral depende da qualidade
diagnósticos retrospetivos, quando se verifica dos produtos biológicos colhidos, do seu transpor-
seroconversão, que geralmente ocorre em três te rápido ao laboratório e do acondicionamento
a quatro semanas. apropriado.
Uma das situações em que pode utilizar-se
este estudo é no diagnóstico de infeções víri- 7.2.7 Biologia molecular
cas como é o caso do vírus Epstein-Barr (EBV).
O diagnóstico serológico compreende um número As técnicas de diagnóstico molecular são
de testes inespecíficos, tais como a deteção de an- mais úteis na identificação de agentes para os
ticorpos heterofílicos, bem como testes específicos quais os exames culturais ou serológicos são
de EBV relacionados com a resposta dos anticor- morosos ou não estão disponíveis. Nos últimos
pos aos vários antigénios durante o ciclo de vida anos tem sido crescente a utilização destas téc-
do vírus. Os testes serológicos mais utilizados no nicas, particularmente a amplificação do ácido
estudo de suspeita de infecção por EBV são anti- desoxir­r ibonucleico por polymerase chain
-VCA IgG e IgM, e anti-EBNA IgG. reaction (PCR) na deteção de diversos germens.
86 CÂNDIDA CANCELINHA

Apresenta elevada sensibilidade, especificidade e


rapidez de resposta, estando, contudo, disponível
num pequeno número de laboratórios, e é uma
técnica dispendiosa, que não deve ser utilizada
de forma indiscriminada.

7.3 FACTOS A RETER

O pedido de exames complementares deve


ter em conta a clínica, semiologia, hipóteses de
diagnóstico mais prováveis e a validade dos re-
sultados dos diferentes testes.
É fundamental a colheita e transporte corre-
tos da amostra, de forma a não alterar os resul-
tados, assim como a sua interpretação tendo em
conta a idade e o sexo da criança, assim como os
valores de referência utilizados pelo laboratório.
Capítulo 8.
Suporte básico e noções de suporte
avançado de vida pediátrico

8
Carla Pinto
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_8
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 89

8.1 CONTEXTO lesão ou doença subjacente, o organismo deixa


de conseguir manter estas respostas. À medida
Nesta lição será abordado o suporte bási- que a situação da criança se agrava a insuficiência
co de vida pediátrico, incluindo a utilização do respiratória e circulatória associam-se, conduzin-
desfibrilhador automático externo na criança e a do a falência e posteriormente paragem cardio-
abordagem da obstrução da via aérea por corpo -respiratória.
estranho ou sufocação e parte do suporte avan- A paragem cardíaca primária, por arritmia,
çado de vida pediátrico, segundo as orientações como a fibrilação ventricular (FV) ou a taquicardia
do European Resuscitation Council (ERC) de 2015. ventricular (TV) sem pulso, é mais frequente em
adultos. O início é súbito e imprevisível, refle-
Será considerado lactente quando a idade tindo doença cardíaca intrínseca. É necessária
for inferior a um ano, criança se idade entre um desfibrilhação imediata. Por cada minuto que
ano e o início da puberdade e adolescente após o esta medida é atrasada, o número de casos com
início da puberdade. Nos adolescentes podem-se retorno da circulação espontânea diminui cerca
aplicar as guidelines dos adultos. de 10%. O prognóstico após reanimação de uma
paragem cardio-respiratória é habitualmente gra-
ve, principalmente se a paragem for prolongada.
8.2 DESCRIÇÃO DO TEMA É essencial reconhecer os eventos que precedem
a paragem e atuar de forma precoce e eficaz.
8.2.1 Causas de paragem cardio-respiratória A identificação e reanimação de uma criança em
paragem respiratória, mas ainda com circulação
As causas de paragem cardio-respiratória espontânea, resultam numa sobrevida a longo
na criança são diferentes das dos adultos devido prazo sem sequelas neurológicas de 50 a 70%,
a especificidades anatómicas, fisiológicas e pa- sendo esta francamente reduzida (inferior a 15%)
tológicas que variam com a idade. A paragem nas crianças em paragem cardio-respiratória com
cardíaca secundária é mais frequente na criança. assistolia. É fundamental, o reconhecimento das
O ritmo pré-terminal mais frequente é a bradicar- situações de risco, de forma a atuar de um modo
dia, seguido da assistolia ou atividade elétrica sem estruturado e enérgico para evitar a degradação
pulsos (AESP). Estes ritmos são habitualmente, clínica.
consequência de uma hipoxia tecidular grave que
leva a disfunção miocárdica, que pode resultar 8.2.2 Características das crianças
de uma insuficiência respiratória com oxigena-
ção inadequada ou de uma hipotensão grave, As especificidades anatómicas e fisiológicas
por insuficiência circulatória. Inicialmente são dos lactentes e crianças face aos adultos são res-
ativadas respostas fisiológicas de adaptação ou ponsáveis pelas diferenças na etiologia da paragem
compensação para proteger da hipóxia o coração cardio-respiratória. Estas especificidades ocorrem
e o cérebro. No entanto, com a progressão da a nível da via aérea (A), respiração/breathing
90 CARLA PINTO

(B), circulação (C), neurológico/disability (D) e ventilação ineficaz. Na criança maior, os músculos
na exposição/ambiente (E). Na via aérea (A): a intercostais estão mais desenvolvidos e contribuem
cabeça dos lactentes é grande, proporcionalmente mais para a mecânica ventilatória. As costelas es-
ao corpo, o que associado a um occipital mais tão mais ossificadas e agem como um suporte
proeminente tende a provocar flexão do pescoço rígido, menos suscetível de colapsar em situações
em decúbito dorsal, causando obstrução; a face de esforço respiratório marcado. Na insuficiência
e a boca de um lactente são pequenas e a lín- respiratória em crianças mais pequenas pode haver
gua relativamente grande obstruindo facilmente retrações (tiragem) significativas a nível esternal e
a via aérea numa criança inconsciente; o lacten- intercostal, pela maior colapsabilidade da grelha
te é um respirador nasal preferencial durante os costal. Esta retração é menos evidente em crianças
primeiros seis meses de vida, pelo que qualquer mais velhas mas se estiver presente, indica grave
obstrução nasal por infeção respiratória com se- compromisso respiratório. A frequência respiratória
creções ou anatómica como a atresia das coanas é mais elevada em lactentes e crianças pequenas,
pode aumentar o esforço respiratório e levar a como resposta a taxas metabólica e de consumo
insuficiência respiratória; em crianças com menos de oxigénio superiores. Relativamente à circula-
de oito anos, a laringe é afunilada, com a secção ção (C) também há especificidades: a volémia do
mais estreita a nível da cartilagem cricoide, pelo recém-nascido é de 80 mL/kg, diminuindo com a
que, nas situações de obstrução da via aérea por idade até 60 a 70 mL/kg no adulto. Num recém-
corpo estranho (OVACE) não devem ser tentadas -nascido de três kilos, a volémia é de 240 mL e
manobras de remoção do corpo estranho pois este num lactente de seis meses, com seis kilos, será
pode encravar na zona mais estreita da laringe; à volta de 480 mL. Estes valores provam como as
de acordo com a lei de Poiseuille, a resistência é crianças são suscetíveis à perda de fluidos, dada
inversamente proporcional à quarta potência do a sua reduzida volémia.
raio, assim nos lactentes reflete-se ainda mais a A frequência cardíaca pelos mesmos motivos
redução do diâmetro da via aérea (i.e. secreções) também é mais elevada nas crianças. Já a pres-
com grande impacto na resistência ao fluxo de ar são arterial é mais baixa nas crianças pequenas
para os pulmões. A respiração (B) avaliada atra- em relação às mais velhas e adolescentes. Uma
vés da mecânica respiratória também se modifica das dificuldades em lidar com as crianças mais
com a idade. No lactente, as costelas são menos pequenas do ponto de vista Neurológico (D)
rígidas, mais flexíveis e os músculos intercostais é a comunicação. Deve-se lidar com as crian-
são relativamente fracos e ineficazes comparati- ças doentes de forma empática e adequada à
vamente ao diafragma. Este é o principal músculo idade, pois é natural que se sintam assustadas,
respiratório do lactente; obstáculos mecânicos à particularmente se estão em ambiente estranho.
contração do diafragma, de origem abdominal É importante explicar a situação à criança de for-
(distensão gástrica, oclusão intestinal, pneumo- ma clara e percetível e deve permitir-se aos pais
peritoneu) ou torácica (hiperinsuflação por bron- ficar junto aos seus filhos, mesmo durante a pres-
quiolite, asma ou corpo estranho) podem levar a tação de cuidados mais complexos ou avançados.
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 91

Na avaliação neurológica existe uma escala de Uma função respiratória normal implica
coma de Glasgow modificada para uso em crian- uma oxigenação e ventilação adequadas através
ças abaixo dos 5 anos, dada a sua imaturidade em da membrana alvéolo-capilar. A ventilação-minu-
termos de comunicação. Uma avaliação rápida do to, dependente do volume corrente (volume de ar
estado neurológico e de consciência da criança inspirado num ciclo respiratório) e da frequência
pode ser efetuada na primeira abordagem usando respiratória (FR), é o principal determinante da
o método AVDS (Alerta, Voz, Dor e Sem resposta) remoção de dióxido de carbono. Uma respiração
em conjunto com o diâmetro e reação pupilares e normal necessita de um esforço mínimo. A fre-
a postura da criança. Esta escala avalia a resposta quência respiratória varia com a idade, Quadro
da criança a estímulos. É importante garantir um 1. O volume corrente espontâneo mantem-se em
exame completo da criança na avaliação do item cerca de sete a nove mL/kg durante toda a vida.
exposição - ambiente (E). As roupas devem ser Pode ser avaliado qualitativamente através da aus-
removidas, tendo o cuidado de proteger do frio, e cultação pulmonar, procurando ouvir a entrada de
respeitar a intimidade. Devem procurar-se indícios ar em todas as zonas pulmonares e observando
que permitam entender a doença/problema. Os a expansão torácica com a respiração.
dados da história são colhidos recorrendo à mne- Do ponto de vista fisiológico, a insuficiên-
mónica AMPLE (Alergia, Medicamentos, história cia respiratória é habitualmente definida como:
médica Prévia, Last meal, Eventos e ambiente). incapacidade do sistema respiratório manter uma
O peso é importante porque os fármacos pressão parcial de oxigénio – PaO2 superior a 60
para crianças são prescritos com base no seu peso mmHg com uma fração de oxigénio inspirado
corporal. Numa situação de emergência não há – FiO2 de 21% (ar ambiente); correspondendo
tempo ou condições para pesar a criança. A fór- aproximadamente a uma saturação periférica
mula seguinte, aplicável entre um e os dez anos de oxigénio - SpO2 de 90% ou uma pressão par-
de idade, dá-nos um peso aproximado em função cial de dióxido de carbono – PaCO2 inferior a 60
da idade da criança: Peso (kg)=2x [idade em mmHg. Esta definição implica a realização de uma
anos + 4]. gasometria arterial que pode ser difícil de obter
e pouco fiável nas crianças. Para além disso, uma
8.2.3 Reconhecimento da criança criança com dificuldade respiratória pode conse-
gravemente doente guir manter os gases do sangue dentro de limites
relativamente normais, à custa de um aumento do
O reconhecimento e a abordagem precoce esforço respiratório. Quando os mecanismos de
da criança gravemente doente evitam a progres- compensação (aumento da frequência respirató-
são para uma situação de paragem cardio-respi- ria, cardíaca e utilização dos músculos acessórios)
ratória, reduzindo a morbilidade e mortalidade. A falham, a deterioração pode ser muito rápida e
identificação de uma criança gravemente doente a paragem cardio-respiratória iminente tem que
e as intervenções subsequentes devem seguir os ser antecipada. Para haver um bom fluxo de ar e
princípios ABCDE. uma ventilação-minuto adequada, a via aérea
92 CARLA PINTO

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Quadro 1. Valores normais de Frequência Respiratória, Frequência Cardíaca e Pressão Arterial em lactentes e crianças (valores
médios, com os superiores e inferiores entre parênteses).

(A) tem que estar desobstruída e estável. Se a via Na respiração (B) deve ser avaliada a fre-
aérea está em risco e instável, pode ficar obstruí- quência respiratória, o trabalho respiratório (ti-
da (i.e. numa criança inconsciente em respiração ragem, utilização dos músculos acessórios, ade-
espontânea, a queda da língua pode obstruir a jo nasal, balanceio da cabeça e contração dos
via aérea). A entrada de ar deve ser avaliada ob- músculos da parede anterior do tórax), a eficácia
servando os movimentos respiratórios e torácicos, da respiração através da estimativa do volume
ouvindo os sons respiratórios e ruídos junto ao corrente pela expansão torácica, auscultação e
nariz e boca (ou por auscultação) e sentindo o deteção de ruídos adicionais, a oxigenação (cia-
movimento de ar junto ao nariz e boca. nose central ou palidez; SpO2) e os efeitos da
As crianças com dificuldade respiratória insuficiência respiratória noutros órgãos (coração:
procuram posições que otimizem a capaci- aumento da frequência cardíaca; cérebro: altera-
dade respiratória. Na obstrução da via aérea ção do estado de consciência; pele: má perfusão
superior adotam muitas vezes uma posição periférica). Constituem sinais de alarme: a de-
de extensão do pescoço, para melhorar a pressão do estado de consciência, a hipotonia,
permeabilidade da via aérea. Noutras situa- a redução do esforço respiratório, a cianose ou
ções, muitas vezes sentam-se inclinadas para palidez extrema - apesar de oxigénio suplementar,
a frente e apoiadas nos braços. Esta posição e a sudorese.
melhora a utilização de músculos acessórios. Num lactente, a taquipneia pode ser o pri-
Deve permitir-se à criança adotar a posição meiro sinal de insuficiência respiratória. Uma
mais confortável e/ou melhor para a permea- queda súbita da frequência respiratória numa
bilização da via aérea. criança com doença aguda é um achado muito
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 93

significativo de gravidade e pode ser um evento A deteção de ruídos respiratórios anómalos e o


pré-terminal. O esforço respiratório é geralmente momento do ciclo em que surgem, indicam o
proporcional à gravidade da insuficiência respi- local da obstrução. Um ruido inspiratório rude e
ratória, exceto na depressão respiratória central, mais ou menos agudo (estridor) é característico de
nas doenças neuromusculares e na exaustão. uma obstrução alta da via aérea (extra-torácica).
A tiragem é facilmente observada no lactente O estridor bifásico (inspiratório e expiratório) in-
e criança pequena pela elevada compliance da dica uma obstrução a nível superior da traqueia.
caixa torácica, figura 1. Nas crianças com mais Quando o local da obstrução é mais distal (nível
de cinco anos, a tiragem revela um compromisso inferior da traqueia) o ruido é expiratório. Os si-
importante da função respiratória. bilos (ruídos expiratórios prolongados, audíveis
na auscultação) indicam estreitamento das vias
aéreas inferiores, normalmente a nível brônquico
ou bronquiolar (intra-torácico). Uma diminuição
do ruido pode indicar uma obstrução completa
ou exaustão da criança. O gemido surge principal-
mente no recém-nascido, mas por vezes também
no lactente e criança pequena. É um som que
resulta do movimento do ar exalado contra uma
© European Ressuscitation Council - www.erc.edu - 2017_NGL_008 glote que parcialmente fechou, numa tentativa
Figura 1. Insuficiência respiratória descompensada numa de gerar uma pressão positiva no final da expira-
criança com dificuldade respiratória (tiragem sub
ção, de modo a preservar a capacidade residual
e intercostal, xifoideia e adejo nasal) e diminuição
da interação com o meio. funcional, impedindo o colapso alveolar.

Quando o trabalho respiratório aumenta, O choque ocorre quando o fluxo sanguí-


o esternocleidomastoideu pode ser usado como neo e a entrega de nutrientes aos tecidos não
músculo acessório. Esta adaptação no lactente são suficientes para as necessidades metabólicas.
pode originar um movimento de balanceio da A entrega inadequada dos substratos metabólicos
cabeça para cima e para baixo, diminuindo a efi- (i.e. oxigénio, glicose) e a falha na remoção dos
cácia da ventilação, sendo portanto um sinal de metabolitos celulares desencadeiam o metabolis-
gravidade. A respiração paradoxal consiste num mo anaeróbio com acumulação de ácido láctico
movimento de expansão do abdómen e retração e lesão celular. O choque pode surgir com débito
da parede anterior do tórax durante a inspira- cardíaco ou pressão arterial aumentados, normais
ção provocada pela contração do diafragma. Este ou diminuídos, figura 2. Pode ser compensado ou
tipo de respiração também é ineficaz, porque há descompensado. O choque compensado surge na
redução do volume corrente com aumento do fase inicial, sem hipotensão. Apesar da pressão
esforço muscular. O adejo nasal é muitas vezes arterial ser normal, observam-se sinais de falência
observado em crianças com esforço respiratório. circulatória, taquicardia, má perfusão cutânea,
94 CARLA PINTO

Pré-carga

Pós-carga Volume de Ejeção

Contratilidade Débito Cardíaco

Frequência Cardíaca Pressão


arterial

Resistência Vascular
Sistémica

Relações entre variáveis que afetam o débito cardíaco e variáveis que afetam a pressão arterial

Variáveis mensuráveis diretamente Variáveis avaliadas clinicamente

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Figura 2. Parâmetros cardio-vasculares e suas relações.

pulsos periféricos fracos, taquipneia e oligúria. frequência respiratória; cérebro: alteração do


O choque descompensado está presente quando estado de consciência; rins: oligúria).
surge hipotensão e compromisso da perfusão dos As crianças têm uma reserva cardíaca
órgãos vitais (coração, cérebro). limitada; aumentam o débito cardíaco mais à
custa de uma elevação da frequência cardía-
No reconhecimento da criança com ca do que do volume sistólico. Os mecanismos
insuficiência circulatória ou choque é ne- compensatórios para restabelecer o débito car-
cessário avaliar a frequência cardíaca (FC), a díaco quando há diminuição do volume vascular
pressão arterial, Quadro 1, o volume do pulso são: taquicardia, vasoconstrição e aumento da
central e periférico, a perfusão periférica através contratilidade do miocárdio. O volume de eje-
do tempo de reperfusão capilar, a pré-carga ção diminui com a hipovolémia. Inicialmente,
(ingurgitamento das veias jugulares, fervores há um aumento da frequência cardíaca e da
pulmonares e hepatomegália; estes traduzem resistência vascular periférica para manter a
aumento da pré-carga e permitem diferenciar pressão arterial dentro dos limites do normal.
o choque cardiogénico dos outros) e os efei- Quando os mecanismos de compensação fa-
tos noutros órgãos (respiratório: aumento da lham, surge a descompensação com hipotensão.
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 95

A taquicardia é mantida até haver depleção A abordagem da criança gravemente doente


das catecolaminas estimulantes do miocár- passa pela colocação imediata de uma máscara de
dio. A hipotensão aparece particularmente tarde oxigénio de alta concentração e acesso venoso,
no choque, sendo um sinal de descompensação detalhados à frente.
fisiológica e deve ser tratada vigorosamente,
porque a falência cardio-respiratória com para- 8.2.4 Suporte básico de vida pediátrico
gem pode estar iminente. O volume de ejeção
pode ser avaliado pela palpação da amplitude O suporte básico de vida pediátrico (SBV)
do pulso. À medida que o volume de ejeção consiste na aplicação de manobras e competên-
diminui, a amplitude do pulso também reduz. cias que, sem a utilização de adjuvantes técnicos,
A amplitude dos pulsos periféricos (i.e. radial) permitem o reconhecimento e intervenção numa
diminui mais rapidamente do que a dos pul- criança em paragem cardíaca ou respiratória e
sos arteriais centrais. A comparação entre os possibilita “ganhar tempo” até a criança poder
pulsos periféricos e os centrais pode ser útil. receber tratamento mais diferenciado. Deve ser
A diminuição dos pulsos centrais é um sinal iniciado o mais rapidamente possível. O princi-
de alarme de paragem cardio-respiratória pal objetivo é conseguir oxigenação suficien-
iminente. O tempo de reperfusão capilar é utili- te para proteger o cérebro e os outros órgãos
zado para avaliar a perfusão; se estiver prolonga- vitais. Apesar de pouco frequente, a paragem
do, indica vasoconstrição periférica, constituindo cardíaca primária, FV ou TV sem pulso, ocorre
um sinal precoce de choque. Avalia-se fazendo ocasionalmente em crianças. Se esta for uma
pressão sobre uma área de pele durante cinco situação provável, como no colapso súbito tes-
segundos (i.e. esterno). Depois de libertar a pres- temunhado de uma criança com uma doença
são, a cor deve voltar ao normal em menos de cardíaca conhecida, o prognóstico dependerá de
dois segundos. O local de avaliação deve estar desfibrilhação precoce. Neste caso, é preferível,
ao nível do coração (ou ligeiramente acima) para para um reanimador sozinho, ativar o serviço de
evitar a estase venosa. emergência médica (SEM) antes de iniciar o SBV,
Os sinais de falência cardio-respiratória imi- e utilizar um desfibrilhador automático externo
nente, em que é necessário uma intervenção te- (DAE) se disponível. No entanto, para a maioria
rapêutica imediata e eficaz são: comportamento das crianças em paragem cardio-respiratória, a
pouco habitual, coma ou alteração da consciência, sequência de atitudes recomendada baseia-se
exaustão por dificuldade respiratória, cianose, em dois factos fundamentais:
taquipneia (FR >60 cpm), FC >180 bpm ou FC
<80 bpm antes de um ano de idade, FC >160 1. A maioria das paragens em crianças resulta
bpm ou FC <60 bpm depois de um ano de idade, da hipóxia e a prioridade é a permeabi-
febre com exantema purpúrico, trauma grave ou lização da via aérea e o fornecimento
queimaduras afetando cerca de 15% da superfície imediato de oxigénio (insuflações com
corporal e convulsões. ar expirado).
96 CARLA PINTO

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Figura 3. Cabeça na posição neutra e elevação do queixo no Figura 4. Extensão da cabeça e elevação
lactente. do queixo na criança pequena.

2. A arritmia mais frequente nas paragens


em crianças é a bradicardia grave que
evolui para assistolia. Assim, o SBV eficaz
é mais importante que o acesso rápido
a um desfibrilhador.

No caso de estar presente só um reanima-


dor, é recomendado iniciar e manter o SBV du-
rante um minuto antes de ponderar abandonar
a criança para chamar ajuda. Se existe mais que
um reanimador, um deles deve procurar ajuda
imediatamente, ativando o SEM, enquanto o ou-
tro inicia SBV. O SBV deve ser executado segun-
do a ordem – SSS, ABC, R: Safety (segurança);
Stimulate (estimular); Shout for assistance (chamar
ajuda); Airway (via aérea); Breathing (respiração);
Circulation (circulação); Reassess (reavaliar).
A ordem das ações é muito importante por-
que se uma manobra não for bem executada, © European Ressuscitation Council - www.erc.edu - 2017_NGL_008

a eficácia da seguinte pode ficar comprometi- Figura 5. Extensão da cabeça e elevação do queixo na
criança maior.
da. Em todas as emergências é essencial avaliar
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 97

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Figura 6. Manobra de subluxação da mandibula. Figura 7. Insuflações iniciais no lactente, com a técnica boca
a boca-nariz.

rapidamente a situação e garantir primeiro a segu- da mandíbula é utilizada para abertura da via
rança dos reanimadores e depois a da criança. O aérea na criança quando é necessária imobilização
modo adequado de o fazer é estabilizar a cabeça, da coluna cervical. O reanimador coloca as mãos
colocando uma mão na fronte e utilizar a outra nos dois lados da cabeça. As extremidades de dois
mão para abanar o braço da criança ou puxar ou três dedos de cada mão colocam-se debaixo
o cabelo. Ao mesmo tempo, deve chamar-se o dos ângulos da mandibula, elevando-a, com os
nome da criança em voz alta e dizer-lhe “Acorda!” polegares cuidadosamente apoiados nos malares,
ou perguntar-lhe “Estás bem?”. Nunca se deve figura 6. Para maior estabilidade, os cotovelos do
sacudir a criança. Se não houver resposta, deve-se reanimador devem estar apoiados na superfície
iniciar SBV imediatamente. Se outra pessoa estiver em que a criança esta deitada.
disponível, deve ativar o SEM (número europeu
universal - 112). Respiração (B)
Após permeabilizar a via aérea é necessário,
Permeabilizar a via aérea (A) avaliar a eficácia da respiração espontânea, que
A permeabilização da via aérea pode ser efe- deve demorar menos de dez segundos, vendo os
tuada de dois modos: posicionamento da cabeça movimentos torácicos e abdominais, ouvindo sons
e subluxação da mandibula. Em lactentes, a cabe- e ruídos respiratórios junto à boca e nariz e sen-
ça deve ser colocada na posição neutra (eixo da tindo o movimento de ar junto à boca e nariz. Se
orelha alinhado com o eixo do tronco - figura 3). a criança não respira eficazmente ou tem apenas
Na criança é necessário efetuar mais extensão da respiração agónica, o reanimador deve efetuar cinco
cabeça, figuras 4 e 5. A manobra de subluxação insuflações iniciais com ar expirado, mantendo a via
98 CARLA PINTO

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Figura 8. Insuflações iniciais na criança com Figura 9. Palpação do pulso braquial e pesquisa de sinais
a técnica boca-a-boca. de circulação no lactente.

aérea patente. Cada insuflação deve ser lenta (cerca


de um segundo). O reanimador pode efetuar uma
inspiração profunda entre cada duas insuflações,
para otimizar o O2 e minimizar o CO2 que adminis-
tra à criança. As insuflações são efetuadas através
das técnicas boca a boca-nariz e boca-a-boca. A
primeira é recomendada em lactentes, figura 7. O
reanimador coloca a sua boca em volta da boca e
do nariz do lactente, criando uma boa selagem, e
insufla. Na criança a insuflação é feita procedendo
a uma boa selagem na boca, ocluindo o nariz para
evitar a fuga de ar como ilustrado na figura 8.
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A eficácia das insuflações iniciais avalia- Figura 10. Palpação do pulso carotídeo na criança.
-se observando a elevação e descida do tórax.
O reanimador deve adaptar a pressão e volume
das insuflações às características da criança para
garantir expansão torácica com cada insuflação. necessita de compressões torácicas. Deve-se obser-
var se há sinais de circulação: movimento, tosse ou
Circulação (C) respiração normal ou palpar um pulso central. A pal-
Após as insuflações iniciais o reanimador deve pação do pulso central, sobretudo para leigos, pode
avaliar se a criança tem circulação espontânea ou se causar dúvidas por isso a decisão de continuar o SBV
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 99

Xiphoid process Sternum (lower half)

Xiphoid process Sternum

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Figura 11. Localização do apêndice xifoide na junção Figura 13. Compressões torácicas no lactente: técnica do
das costelas inferiores. Adaptado de ERC abraço (dois polegares).

compressões torácicas, a menos que o reanimador


tenha a CERTEZA de que consegue palpar um pulso
central com frequência superior a 60 bpm.

O tempo máximo para avaliação dos sinais


de circulação é de dez segundos. Se não há sinais
de circulação devem ser iniciadas compressões
torácicas. Estas são seriadas, rítmicas, exercidas
sobre a parede torácica anterior para conseguir
um fluxo sanguíneo suficiente para os órgãos
Xiphoid process Sternum (lower half) vitais, numa tentativa de os manter viáveis, até
ao retorno da circulação espontânea. Para serem
© European Ressuscitation Council - www.erc.edu - 2017_NGL_008 executadas eficazmente, a criança deve ser colo-
Figura 12. Compressões torácicas no lactente: técnica cada em decúbito dorsal numa superfície plana
dos dois dedos.
e dura, mantendo a cabeça numa posição que
permita a patência da via aérea. A relação en-
tre as compressões e as ventilações deve ser de
é baseada nos sinais de circulação. Em lactentes, os 15:2, atingir uma frequência de compressões de
locais recomendados para avaliação do pulso central 100 a 120 bpm, deprimir o tórax pelo menos um
são as artérias braquial ou femoral, figura 9. Nas terço do seu diâmetro antero-posterior (quatro
crianças palpa-se a carótida, figura 10, ou a femoral. cm no lactente e cinco cm nas outras crianças)
Se não há sinais de circulação, devem ser iniciadas e todas as interrupções devem ser minimizadas.
100 CARLA PINTO

As compressões torácicas devem ser aplicadas


sobre a metade inferior do esterno, cerca de um
dedo acima do angulo onde as costelas inferiores
se encontram com o apêndice xifoide, figura 11.

As compressões torácicas no lactente podem-


-se efetuar de duas formas: técnica dos dois dedos,
figura 12, ou a técnica do abraço com os dois pole-
gares, figura 13. A primeira é recomendada quando
há um reanimador único. Este coloca dois dedos
de uma mão sobre a metade inferior do esterno.
Quando há dois reanimadores é aconselhado utilizar © European Ressuscitation Council - www.erc.edu - 2017_NGL_008

a técnica do abraço pois permite um melhor débito Figura 14. Compressões torácicas na criança pequena:
técnica de uma mão.
cardíaco, mas é muito pouco provável que um rea-
nimador único, consiga executá-la de modo eficaz,
fazendo insuflações corretas sequencialmente.

Na criança, o reanimador posiciona-se ao seu


lado e coloca a base de uma mão diretamente no
eixo longo da metade inferior do esterno. Os de-
dos devem ser afastados do tórax, de modo que
só a base da mão exerça pressão. O reanimador
posiciona-se com os ombros diretamente acima do
tórax da criança, mantém os braços estendidos e
usa o peso corporal para deprimir o tórax, figura 14.
Na criança maior deve ser utilizada uma segunda
mão, colocada sobre a primeira com os dedos en-
trelaçados e afastados da parede torácica, figura 15.
As compressões torácicas adequadas devem
produzir um pulso palpável durante o SBV. Após
um minuto, parar brevemente para reavaliar a
criança, procurando rapidamente sinais de circu-
lação e garantindo que o SEM foi ativado. O SBV
apenas deve parar quando: a criança apresenta
sinais de circulação, outras pessoas se encarregam © European Ressuscitation Council - www.erc.edu - 2017_NGL_008

da reanimação ou o reanimador fica demasiado Figura 15. Compressões torácicas na criança maior: técnica
de duas mãos.
exausto para continuar.
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 101

Na figura 16 pode-se observar o algoritmo


do SBV pediátrico.

Utilização de um desfibrilhador automático


externo na criança
Estão disponíveis DAE’s semi-automáticos
e, ocasionalmente, totalmente automáticos. São
dispositivos computorizados seguros e fiáveis,
cada vez mais usados por leigos e profissionais
de saúde. Um DAE analisa o eletrocardiograma
(ECG) da vítima e determina se um choque para
desfibrilhação está indicado, facilitando a sua ad-
ministração. Nos modelos semi-automáticos, os
mais frequentemente disponíveis, a administração
do choque requer que o reanimador siga as ins-
truções do aparelho e pressione o botão indicado.
A principal vantagem do DAE é que reconhece
ritmos desfibrilháveis específicos e, portanto, o
choque pode ser administrado por um leigo. Se
uma criança com mais de oito anos ou de 25 kg

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Figura 16. Algoritmo do Suporte Básico de Vida Pediátrico, Figura 17. Utilização de um DAE na criança,
RCP - Reanimação cardio-pulmonar. após um minuto de SBV.
Figura 4.10
Algoritmo da sufocação
102 CARLA PINTO

Avaliar gravidade

Tosse ineficaz Tosse eficaz

Inconsciente Consciente Encorajar a tosse


Permeabilizar via aérea 5 pancadas interescapulares Continuar a vigiar se
5 insuflações 5 compressões surge deterioração até
Iniciar RCP (só tórax nos lactentes)
(abdómen ou tórax para
tosse ineficaz, ou se se
crianças >1 ano) resolve a obstrução

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Figura 18. Algoritmo da abordagem da sufocação pediátrica, RCP - Reanimação cardio-pulmonar.

necessita de desfibrilhação, um DAE standard seja muito provável uma causa cardíaca).
pode ser usado. Para crianças com menos de oito Em qualquer circunstância, não conectar
anos ou de 25 kg, deve ser idealmente usado o DAE antes de ter efetuado um minuto
um DAE com dispositivo atenuador. No entanto, de SBV;
se não estiver rapidamente disponível nem um 3. ligar o DAE e conectar os elétrodos (pe-
desfibrilhador manual nem um com atenuador, diátricos se adequado). Se houver mais
um DAE standard pode ser usado em crianças que um reanimador, continuar SBV;
com menos de oito anos. Os elétrodos dos DAE’s 4. seguir as indicações verbais e visuais do DAE;
são colocados: um à direita do esterno e outro na 5. assegurar que ninguém toca na vítima
linha medio-axilar á esquerda. Na sequência de enquanto o DAE analisa o ritmo;
utilização de um DAE deve-se, figura 17: 6. se estiver indicado choque, garantir que
ninguém toca na vítima, pressionar o
1. garantir que o reanimador, a vítima e ou- botão quando indicado, continuar SBV
tros presentes estão em segurança; até serem detetados sinais de circulação;
2. iniciar SBV. Se há dois ou mais reanima- 7. se não estiver indicado um choque, re-
dores, um continua com o SBV enquanto tomar de imediato o SBV. Continuar a
o outro chama ajuda e traz o DAE, se seguir as indicações do DAE;
disponível. No caso de um reanimador 8. continuar SBV até chegar ajuda, a vítima
único, deve chamar ajuda e trazer o DAE iniciar respiração normal, ou o reanima-
após um minuto de SBV (a menos que dor ficar exausto.
Tabela 4.1
Sinais de sufocação
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 103

Sinais gerais
Episódio testemunhado deve aplicar pancadas interescapulares. Se
Tosse ou engasgamento as pancadas interescapulares não resolvem a
Início súbito, sem outros sinais de doença
obstrução, devem iniciar-se compressões to-
História recente de comer ou brincar com objetos pequenos
rácicas no lactente ou abdominais na criança.
Tosse eficaz
Choro ou resposta verbal a perguntas Estas manobras simulam a tosse e aumentam
Tosse bem audível a pressão intra-torácica para desalojar o corpo
Capaz de inspirar bem antes de tossir
estranho. Na técnica das pancadas interescapu-
Completamente alerta
Tosse ineficaz lares no lactente, o reanimador deve apoia-lo
Incapaz de vocalizar em decúbito ventral com a cabeça mais baixa,
Tosse silenciosa, inaudível
para que a gravidade ajude na sua remoção. Se
Incapaz de respirar
Cianose
o reanimador está sentado ou ajoelhado deve
Nível de consciência diminuído conseguir apoiar o lactente de modo seguro ao
seu colo. A cabeça deve ser apoiada colocando
© European Ressuscitation Council - www.erc.edu - 2017_NGL_008 o polegar de uma mão num dos ângulos da
Quadro 2. Sinais de sufocação. mandibula e um ou dois dedos da outra mão
no mesmo ponto do outro lado da mandibula.
É importante ter-se cuidado para não exercer
Obstrução da via aérea por corpo estranho pressão nos tecidos moles debaixo da mandibu-
ou sufocação la, o que poderia aumentar a obstrução da via
A maioria das situações de sufocação em aérea. Devem dar-se até cinco pancadas secas
lactentes e crianças ocorre enquanto brincam ou com a base de uma mão, nas costas, entre as
comem e, por isso, são muitas vezes observadas, omoplatas do lactente, figura 19. Na criança,
o que permite que sejam tomadas rapidamente as pancadas interescapulares também são mais
medidas se necessário. Deve suspeitar-se de sufo- eficazes se esta estiver com a cabeça para bai-
cação se: o início é súbito, não há outros sinais de xo. Se a criança é pequena, deve ser colocada
doença, há história recente de estar a comer ou ao colo do reanimador, como um lactente. Se
a brincar com objetos pequenos imediatamente isso não for possível, deve apoiar-se a crian-
antes do início dos sintomas, quadro 2. ça numa posição inclinada para a frente e dar
as pancadas interescapulares. Se as pancadas
Na abordagem da sufocação, figura 18, é não removerem o corpo estranho, e a criança
necessário avaliar a eficácia da tosse e o estado continuar consciente, o reanimador pode usar
de consciência da criança. compressões torácicas no lactente, ou abdo-
Se a criança tosse eficazmente, não são minais na criança. As compressões abdominais
necessárias quaisquer manobras. Deve-se en- (manobra de Heimlich) não devem ser usadas
corajar a tosse e observar. Se a tosse é ineficaz, em lactentes. Na técnica das compressões to-
chamar ajuda e avaliar o nível de consciência. rácicas no lactente, o reanimador deve deita-lo
Se a criança está consciente, o reanimador em decúbito dorsal, com a cabeça mais baixa,
104 CARLA PINTO

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Figura 19. Pancadas interescapulares no lactente consciente. Figura 21. Compressões torácicas no lactente consciente.

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Figura 20. Manobra para voltar o lactente. Figura 22. Compressão abdominal na criança.
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 105

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Figura 23. Trabalho de equipa. Figura 26. Extensão com elevação do queixo aumenta a
patência da via aérea, elevando a porção anterior da língua.

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Figura 24. Criança inconsciente; a queda da língua produz Figura 27. Hiperextensão causa obstrução da via aérea.
obstrução da via aérea.

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Figura 25. Após um ano de idade, a extensão do pescoço Figura 28. Flexão do pescoço também causa obstrução
melhora a patência da via aérea. da via aérea.
106 CARLA PINTO

colocando o dorso ao longo do seu braço livre uma tentativa de o remover com uma única
e apoiando o occipital sobre a mão, figuras 20 passagem de um dedo. Não tentar limpezas
e 21. O lactente fica assim apoiado ao longo do com o dedo de um modo cego ou repetido, já
braço do reanimador, por sua vez apoiado na que podem causar lesões ou empurrar o objeto.
coxa. Localiza-se a referência para a compressão
torácica (metade inferior do esterno cerca de 8.2.5 Suporte avançado de vida pediátrico
um dedo acima do apêndice xifoide). Devem
ser efetuadas até cinco compressões. Estas são A abordagem do suporte avançado de vida
semelhantes às compressões torácicas do SBV, pediátrico (SAV pediátrico) é estabelecida seguin-
mas mais secas e a um ritmo mais lento. do o ABCDE. No A e B deve-se permeabilizar a via
Nas compressões abdominais na criança, aérea, otimizar a ventilação, assegurar um correta
o reanimador coloca-se de pé ou ajoelhado oxigenação (iniciar com FiO2 de100%) e monitori-
atrás desta e passa os seus braços por baixo zar a SpO2 com oximetria de pulso. Para otimizar a
dos braços da criança, envolvendo o tronco ventilação pode ser necessário utilizar adjuvantes
pela frente. O reanimador fecha um punho e da via aérea e executar a técnica de ventilação
coloca-o entre o umbigo e o apêndice xifoi- com máscara e insuflador. A intubação traqueal
de. Apertando esse punho com a outra mão, não será descrita nesta lição pois em contexto
o reanimador puxa de modo seco para trás e de paragem cardio-respiratória deve ser apenas
para cima aplicando até cinco compressões ab- efetuada por profissionais treinados. A abordagem
dominais, figura 22. É preciso ter cuidado para da circulação (C) na paragem cardio-respiratória
não aplicar pressão sobre o esterno e a grelha inclui as compressões torácicas (técnica igual ao
torácica que provoque trauma. Se o corpo es- descrito no SBV), monitorização com ECG, SpO2 e
tranho não for expelido e a criança se mantiver pressão arterial, obtenção de um acesso vascular
consciente, continuar a sequência de pancadas e desfibrilhação. Na figura 23 pode ser observado
interescapulares e compressões (torácicas em o trabalho de equipa nesta situação.
lactentes e abdominais nas outras crianças),
chamar ajuda, ou mandar chamar. Se o corpo A permeabilidade da via área deve ser asse-
estranho tiver sido expulso, avaliar a situação gurada de acordo com a abordagem do SBV. Nas
clinica. Uma parte do objeto pode permanecer figuras 24 a 28 pode ser observada a importância
no trato respiratório e causar complicações. As do posicionamento da cabeça a que já se chamou
compressões abdominais podem causar lesões a atenção previamente.
internas, por isso todas as vítimas devem ser
observadas em meio hospitalar. Se uma criança A faringe pode ser obstruída por secreções,
com OVACE está inconsciente, o reanimador vómito ou sangue. Pode ser necessário usar um
deve deita-la numa superfície dura e plana, equipamento de aspiração para permeabilizar
iniciar SVB e pedir ajuda. Pode-se abrir a boca, a via aérea. Este inclui um aspirador fixo, geral-
procurar o objeto e se facilmente visível, fazer mente com regulador da pressão negativa, um
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 107

reservatório, tubos de aspiração e sondas de aspi-


ração adequadas. As sondas de aspiração rígidas
e de grande calibre (i.e. sondas de Yankauer) são
especialmente úteis para a remoção de vómito
ou secreções espessas e abundantes. As sondas
flexíveis são mais adequadas para lactentes ou
crianças pequenas, porque são menos traumáti-
cas; no entanto a sua capacidade de aspiração é
mais limitada. Para se poder controlar a pressão
de aspiração pode usar-se uma peça em Y ou um © European Ressuscitation Council - www.erc.edu - 2017_NGL_008

orifício lateral que se oclui intermitentemente. Nas Figura 29. Vias orofaríngeas.
crianças com reflexo de engasgamento presente a
aspiração deve ser efetuada com precaução pelo
risco de induzir o vómito. Uma aspiração mais
prolongada ou enérgica pode causar estimulação
vagal com bradicardia.
As vias orofaríngeas (cânulas de Guedel)
ou adjuvantes da via aérea, podem ser úteis na
criança inconsciente sem reflexo de engasgamen-
to, figuras 29 a 31. Deve ser utilizado um tama-
nho correto, figura 30, avaliado pela distância
entre os incisivos e o ângulo da mandibula, para
evitar o agravamento da obstrução, trauma ou © European Ressuscitation Council - www.erc.edu - 2017_NGL_008

desencadear laringoespasmo. Na criança, a via Figura 30. Estimativa da dimensão apropriada de via orofarín-
gea (dos incisivos ao ângulo da mandibula).
orofaríngea deve ser introduzida com cuidado e
sem forçar para não lesar o palato mole. Pode
ser inserida diretamente com a concavidade para
baixo, usando uma espátula ou uma lâmina de
laringoscópio para baixar a língua. Após inser-
ção de uma via orofaríngea, deve verificar-se a
patência da via aérea e administrar oxigénio, ou
ventilar, consoante necessário.

A administração de oxigénio deve ser


tão precoce quanto possível. Inicialmente, deve
ser fornecida a maior concentração disponível. © European Ressuscitation Council - www.erc.edu - 2017_NGL_008

Uma máscara de oxigénio com reservatório é a Figura 31. Via orofaríngea colocada.
108 CARLA PINTO

concentrações de oxigénio no ar inspirado de


90% ou mais, com um débito de 12 a 15 litros
de oxigénio por minuto.

Quando uma criança respira de forma inade-


quada ou não respira, após manter a permeabili-
dade da via aérea é necessário iniciar ventilação.
Numa fase inicial, o melhor método é usar um
insuflador manual autoinsuflável, de tamanho
adequado, conectado a uma máscara, figura 33.
A entubação traqueal apenas deve ser tentada
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por quem tenha competência e experiência nessa
Figura 32. Máscara facial: com válvulas unidirecionais, durante a manobra. O reanimador deve efetuar ventilação
inspiração o oxigénio é fornecido apenas a partir do reservatório e
com pressão positiva com uma frequência de 12
da fonte de oxigénio. Durante a expiração, válvulas unidirecionais
permitem exalação e evitam reinalação. a 20 cpm em lactentes e crianças. O volume cor-
rente conseguido deve evidenciar uma expansão
torácica adequada e sons audíveis na auscultação
Pressure-limiting valve pulmonar. Deve evitar-se a hiperventilação.
Saber executar corretamente ventilação com
Oxygen entry máscara e insuflador é uma competência fun-
damental para todos os profissionais de saúde
que trabalham com crianças. Mesmo que seja
necessária entubação traqueal, a ventilação com
Non-rebreathing valve Reservoir máscara e insuflador (VMI) está sempre rapida-
© European Ressuscitation Council - www.erc.edu - 2017_NGL_008 mente disponível e pode garantir uma ventilação
Figura 33. Insuflador auto-insuflável com acumulador, o que eficaz na maioria das crianças, até chegar aju-
permite FiO2 mais elevada.
da especializada. A máscara deve ter tamanho
adequado, ser transparente e permitir uma boa
primeira escolha na criança gravemente doente selagem em volta do nariz e boca, garantindo
em respiração espontânea. O débito de oxigé- que não se aplica pressão sobre os olhos. São
nio deve ser suficiente para evitar o colapso do necessárias duas mãos para efetuar a VMI. Uma
reservatório durante a inspiração. Estas másca- das mãos segura a máscara, ao mesmo tempo
ras estão equipadas com válvulas unidirecionais que efetua uma manobra modificada de sublu-
entre o reservatório e a máscara e com válvulas xação da mandibula; a outra mão comprime o
que cobrem os orifícios expiratórios, para evitar balão, figuras 34 e 35. Para avaliar a eficácia da
a reinalação, figura 32. Desde que haja uma boa ventilação deve observar-se cuidadosamente a
adaptação da máscara à face, permitem obter expansão torácica.
CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 109

Epiphysis Periosteum
Growth plate

Cortex
Nutrient artery

Central marrow (medullary) cavity


Diaphysis

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Figura 36. Anatomia de um osso longo.

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Figuras 34 e 35. A máscara é segura com uma mão com a Figura 37. Dispositivo tipo berbequim para inserção
técnica “E-C clamp”, com abertura simultânea da via aérea. de agulha intra-óssea.
Forma-se um “E” com o terceiro, quarto e quinto dedos na
mandibula e um “C” com o polegar e indicador na máscara.

Após a abordagem da via aérea (A) e respi- e choque descompensado. As localizações anató-
ração (B), segue-se a circulação (C). A obtenção micas para introdução de agulhas IO são:
de um acesso venoso é essencial nos primeiros
minutos da reanimação, mas não deve interromper 1.abaixo dos seis anos: superfície antero-
as compressões e a ventilação. Este acesso pode -interna da tíbia, 2 a 3 cm abaixo e para
ser conseguido por via intravenosa periférica ou dentro da tuberosidade;
por via intra-óssea (IO). Esta última é a via de 2. seis anos ou mais: na face interna da tíbia
escolha nos casos de paragem cardio-respiratória 3 cm acima do maléolo interno ou na
110 CARLA PINTO

face lateral externa do fémur, 3 cm acima 4. Imobilizar o membro com a mão não do-
do côndilo lateral ou na face anterior da minante (garantir que a mão não fica por
cabeça do úmero (adolescentes). baixo do membro).
5. Com a mão dominante, o reanimador
Estes locais permitem evitar as placas de segura firmemente a agulha num ângulo
crescimento dos ossos longos (metáfises), figura de 90º em relação à pele já preparada.
36. A agulha atravessa o periósteo e o córtex até 6. Avançar a agulha com movimentos firmes
à cavidade medular. A inserção da agulha IO e de rotação a 90º, até ter uma sensação
a primeira administração de fluidos podem ser de cedência, no momento em que o cór-
dolorosas. Em crianças conscientes, a pele e o pe- tex é atravessado. A agulha deve entrar
riósteo devem ser infiltrados com lidocaína a 1%. aproximadamente um a dois cm. Se for
A técnica de inserção de agulha intra-óssea usado um dispositivo automático tipo
consiste em: berbequim, colocar a agulha firmemen-
te na pele e começar a ativar o motor
1. Identificar o local de entrada. sem forçar, figura 37. Parar quando se
2. Limpar a pele circundante com uma so- sente ceder. O comprimento introduzido
lução de base alcoólica. depende do tipo de dispositivo usado.
3. Infiltrar a pele, até ao periósteo, com li- 7. Após remover o mandril, conectar um cur-
docaína a 1% (em crianças conscientes). to prolongador com uma torneira de três

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Figura 38. Assistolia.

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Figura 39. Fibrilhação ventricular fina.


CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 111

vias ligada a uma seringa e ao reservató- desfibrilhação. A assistolia caracteriza-se pela


rio de fluidos. Aspirar sangue ou injetar ausência total de atividade elétrica e mecânica
soro para confirmar o posicionamento do coração, figura 38.
correto. Não se deve notar infiltração dos
tecidos subcutâneos. Se a colheita não Na AESP ocorre atividade elétrica organizada
atrasar a administração de fluídos e fár- na ausência de sinais de vida ou pulso central.
macos, deve ser obtida uma amostra de O ECG observado pode apresentar diversas varian-
sangue para hemograma, classificação e tes de complexos QRS normais mas rapidamen-
outras análises consideradas pertinentes. te evoluem para complexos largos e anómalos.
8. Administrar os fármacos de reanimação Todos os ritmos de paragem cardíaca, mas par-
seguidos de bólus de dois a dez mL de ticularmente a AESP, podem ser devidos a uma
soro fisiológico e/ou bólus de outros fluí- causa reversível subjacente. A FV consiste numa
dos se indicados. Os bólus de fluídos de série caótica e desorganizada de despolarizações
grande volume devem ser injetados com com ondas e complexos anormais. Como não
uma pressão cuidadosa. ocorre sístole ventricular, não há pulso palpável.
9. Após ter penetrado na cavidade medular A FV pode ser descrita como fina ou grosseira
a agulha ficará estável e não necessita dependendo da amplitude dos complexos, figuras
de fixação com adesivos. No entanto, 39 e 40. A TV sem pulso é rara em crianças.
deve ser assegurado que não se remova Caracteriza-se por uma frequência ventricular de
acidentalmente, principalmente durante 120 a 400 bpm, com complexos largos e regulares,
o transporte. mas sem pulso figura 41.
A obtenção de informação relevante acerca
O reconhecimento do ritmo através da mo- da situação clinica prévia da criança e de fatores
nitorização com ECG é prioritário pois é neces- predisponentes pode ser útil para determinar cau-
sário definir se o ritmo é ou não desfibrilhável. sas e otimizar a abordagem da paragem cardio-
A abordagem da paragem cardio-respiratória -respiratória. Todas as causas com um tratamento
(ritmos desfibrilháveis e não desfibrilháveis) está específico possível devem ser sistematicamente
detalhada nos algoritmos de suporte avançado consideradas e corrigidas. Para recordar as mais
de vida pediátrico, figuras 42 a 44. Nos ritmos frequentes, usa-se a mnemónica 4Hs (hipóxia,
não desfibrilháveis (assistolia e AESP) é neces- hipovolémia, hipo ou hipercaliémia e hipotermia)
sário fazer compressões torácicas e nos desfi- e 4Ts (pneumotórax de tensão, tóxicos, tampo-
brilháveis (FV e TV sem pulso), compressões e namento cardíaco e tromboembolia).
112 CARLA PINTO

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Figura 40. Fibrilhação ventricular grosseira.


Figura 5.10
Taquicardia ventricular sem pulso num paciente sem sinais de vida

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Figura 41. Taquicardia ventricular.


CAPÍTULO 8. SUPORTE BÁSICO E NOÇÕES DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA PEDIÁTRICO 113

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Figura 42. Algoritmo do SAV pediátrico. RCP - reanimação cardio-pulmonar; FV - fibrilhação ventricular; TV - taquicardia ventricular;
AESP - atividade elétrica sem pulso
Figura 5.13
114 CARLA PINTO
Paragem cardíaca: ritmo não desfibrilhável

Adrenalina Adrenalina Adrenalina


0.01 mg/kg 0.01 mg/kg 0.01 mg/kg

Ventilar / Oxigenar
Acesso Vascular IO / IV
Fármacos Intubação

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Figura 43 - Algoritmo pediátrico para ritmos não desfibrilháveis. IO - intra-ósseo; IV - intravenoso

Figura 5.10
Paragem cardíaca: ritmo desfibrilhável

Adrenalina Adrenalina Adrenalina


0.01 mg/kg 0.01 mg/kg 0.01 mg/kg

Ventilar / Oxigenar
Acesso Vascular IO / IV Amiodarona Amiodarona
Fármacos 5 mg/kg 5 mg/kg
Intubação

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Figura 44. Algoritmo pediátrico para ritmos desfibrilháveis. IO - intra-ósseo; IV - intravenoso; CPR - cardiopulmonary ressuscitation;
ROSC - return of spontaneous circulation.
Capítulo 9.
Neonatologia

9
José Carlos Peixoto
e Carla Pinto
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_9
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 117

9.1. DEFINIÇÕES, CONCEITOS blastocisto constituído por uma parede externa


E FISIOLOGIA FETAL (trofoblasto) responsável pelo desenvolvimento
da placenta e membranas amnióticas e pela parte
9.1.1 Contexto e descrição do tema interna (embrioblasto) que originará o cordão
umbilical e o feto. Ao sexto dia após a fertilização
Neonatologia é a subespecialidade da o trofoblasto invade o endométrio e subdivide-
Pediatria que se ocupa das crianças desde o nas- -se em duas paredes: uma penetra o miométrio
cimento até aos 28 dias de vida. contactando as artérias uterinas e origina as arté-
Perinatologia é o ramo da Medicina que rias espirais uteroplacentares; a outra designada
trata dos fetos desde a conceção, especialmente sinciotrofoblasto irá revestir todas as vilosidades
desde que são potencialmente viáveis, até à alta provenientes do feto. Entre estas duas paredes
do recém-nascido da Maternidade. O seu objetivo ficará o espaço inter-vilositário, rede vascular de
principal é promover a segurança no parto e a muito baixa resistência que irá ser responsável por
qualidade no nascimento; ambas dependentes do todas as trocas entre a circulação embrio/feto-
sucesso da vigilância da gravidez, da antecipação -placentar/materna (figuras 1 e 2). Neste período
do melhor local, momento e condições para o o contacto com a circulação materna ainda não
parto assim como a qualidade da reanimação existe sendo relativamente resistente à ação dos
disponivel. A perinatologia promove a partilha teratogéneos.
assistencial, a articulação indispensável entre a Período embrionário é a fase crítica do
Neonatologia e a Medicina materno fetal, a coo- desenvolvimento humano, inicia-se à segunda
peração multidisciplinar e a comunicação entre e termina na oitava semana após a fertilização.
Obstetras e Neonatologistas. É muito vulnerável à acção de várias agressões,
Idade de gestação (IG) é a duração da gra- com risco acrescido de malformações. Nestas
videz medida desde o primeiro dia do último ciclo oito semanas desenvolvem-se todos os órgãos
menstrual. Quando completa (40 semanas) dura e principais sistemas do feto. Nesta fase o saco
cerca de 280 dias. A idade embrionária avalia- vitelino é a principal fonte de nutrientes, mas
-se desde a fertilização, dura cerca de 266 dias, o cordão umbilical continua a desenvolver-se e
menos duas semanas que a IG. a estabelecer a circulação fetal e o desenvolvi-
Período pré embrionário corresponde às mento embrionário dos órgãos e sistemas fetais.
primeiras duas semanas após fertilização. É um O desenvolvimento do sistema nervoso cen-
período de abundante divisão celular, diferencia- tral (SNC) é o primeiro a ser iniciado, por volta
ção, formação das estruturas que vão garantir a dos 18 dias após a fertilização, mas é o último
implantação às paredes uterinas, a circulação e a completar a sua maturação terminando muito
diferenciação fetal. Ao quarto dia após a ferti- para além do nascimento. O coração começa a
lização a mórula aproxima-se da parte média ter batimentos aos 22 dias após fertilização e
superior do útero onde se vai iniciar a implanta- é o primeiro a ficar completamente funcional.
ção. Ao quinto dia após a fertilização forma-se o A circulação feto-placentar está completa à
118 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

Figura 1. Desenvolvimento embrionário. Adaptado de: HumanEmbryogenesis.svg


https://en.wikipedia.org/wiki/File:HumanEmbryogenesis.svg

quinta semana após fertilização. Nesta altura as residuais, pela síntese de peptídeos, glicogénio,
vilosidades estão constituídas, a grande maioria esteróides, e hormonas que regulam as funções
submersas no espaço inter-vilositário e algumas da placenta e dos sistemas fetais e maternos
delas atingindo o trofoblasto extravilositário. Até (figura 2).
aqui o saco vitelino substituiu a função da pla- Período fetal inicia-se na oitava semana
centa no fornecimento dos principais nutrientes após a fertilização e termina no final da gestação.
ao feto. As duas circulações nunca se misturam. Depois de um período em que predominaram a
O sinciciotrofoblasto, parede fetal do trofoblasto, hiperplasia e a organogénese, segue-se uma fase
é um epitélio especializado que cobre toda a de crescimento linear na estatura, crescimento
árvore das vilosidades, atingindo uma área de logarítmico no peso e maturação de todos os
12 a 14 m no final da gestação. É responsável
2
órgãos e sistemas. A formação de urina inicia-
pelo transporte de gases, nutrientes e produtos -se entre a nona e a décima segunda semana
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 119

Figura 2. Placenta. Adaptado de: https://en.wikipedia.org/wiki/File:2910_The_Placenta-02.jpg

mas a nefrogénese só está completa cerca das reabsorção tubular de sódio aumenta. Metade
35 semanas de gestação. A urina fetal passa a do LPF é deglutida e a outra é eliminada para a
ser o constituinte principal do líquido amniótico cavidade amniótica. As funções protetoras do
(LA). O débito urinário aumenta de 12 para 28 LA são bem conhecidas, evitam traumatismos
mL/hora entre as 32 e as 38 semanas de IG. O e deformações do feto. Atualmente conhecem-
líquido pulmonar fetal (LPF) é também um cons- -se também algumas funções nutritivas, sendo
tituinte do LA podendo corresponder a cerca de responsável por 10 a 15% dos nutrientes para o
um terço do seu volume. O feto deglute cerca feto. Oligoâmnios é a designação usada quando
de um litro de LA por dia e cerca de 170 mL de o volume de LA está reduzido, podendo ser pro-
LPF. A síntese do LPF é ativa, processa-se a nível vocado por insuficiência placentar habitualmente
alveolar, é dependente dos canais de cloro e tem associado a restrição do crescimento, alteração
uma composição diferente do LA. No primeiro da função renal do feto com oligúria ou rotura de
trimestre a osmolaridade do LPF é semelhante membranas com perda de LA. As consequências
à dos sangues materno e fetal quando o papel poderão ser graves como hipoplasia pulmonar
das membranas é predominante. Entretanto essa secundária, defeitos posturais e riscos de defor-
osmolaridade vai diminuindo à medida que a mações. Polidrâmnios será o excesso de volume
120 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

de LA, secundário a oclusões gastrointestinais, Embrião é a denominação que se dá ao


diabetes (diurese osmótica - poliúria fetal) e al- ovo fertilizado até à oitava semana pós
teração do SNC (deglutição débil). fertilização.
A função respiratória é a última a desen-
volver-se no período fetal. Só cerca das 22 se- Feto é o embrião a partir da oitava semana
manas de gestação os capilares pulmonares se até ao nascimento.
aproximam da parede alveolar. Só nessa altura
se desenvolvem os pneumócitos do tipo 1, res- Recém-nascido (RN) é a designação para
ponsáveis pelo revestimento alveolar e futura- todo o nado vivo após clampagem do
mente pelas trocas gasosas e um pouco mais cordão umbilical até aos 28 dias de vida.
tarde os pneumócitos do tipo 2 responsáveis
pela síntese do surfatante, fundamental para Período neonatal é o período que decorre
evitar o colapso alveolar após o nascimento. A entre o nascimento e os 28 dias de vida.
viabilidade do feto só é possível quando estas
estruturas estiverem desenvolvidas e permiti- Período neonatal precoce é o período que
rem as trocas gasosas entre os alvéolos e os decorre desde o nascimento até aos sete
capilares pulmonares. dias de vida (primeira semana de vida).
Nesta fase as malformações existentes já te-
rão sido identificadas na ecografia morfológica Período neonatal tardio é o período que
que todas as grávidas deverão realizar entre decorre desde os sete até aos 28 dias de vida.
as 21 e as 22 semanas de IG. Preconiza-se a
realização de outra ecografia pelas 32 semanas Período perinatal é o período que decorre
de IG para avaliar o crescimento intra-uterino entre as 28 semanas de gestação e o sétimo
fetal e proceder a vigilância global. Estas duas dia de vida.
ecografias são fundamentais para se proceder a
eventual interrupção voluntária da gravidez em Período pós neonatal é o período que
casos de malformações graves ou incompatíveis decorre desde os 28 até aos 365 dias de vida.
com a vida ou poder antecipar o parto em casos
de confirmação de restrição grave do crescimento Prematuro: RN cuja idade gestacional
intra-uterino habitualmente secundários a insu- é inferior a 37 semanas.
ficiência placentar.
O Período fetal pode ser dividido em duas Termo: RN com idade gestacional
fases: precoce (10 a 28 semanas de gestação) e compreendida entre
tardio desde as 28 semanas até ao nascimento. Há as 37 semanas e as 42.
quem considere ainda no período fetal uma fase
intermédia para investigar as situações próximas Pós-termo: RN que nasce depois
do limiar de viabilidade. das 42 semanas de IG.
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 121

É importante determinar a IG do RN (con- Muito baixo peso:


tagem a partir do primeiro dia da última mens- RN com peso ao nascer ≤ 1500 g.
truação). Os prematuros incluindo os tardios (das Baixo peso:
34 semanas às 36 semanas e 6 dias) têm maior RN com peso ao nascer ≤ 2500 g.
risco de morbilidade e mortalidade quando com- Macrossómico:
parados com os de termo. Os fatores que tornam RN com peso ao nascer ≥ 4000 g.
os prematuros mais suscetíveis são: maior risco
de hipotermia, imaturidade pulmonar e défice de Em função da relação entre o peso de
surfatante (com consequente doença da mem- nascimento e a idade gestacional, considera-se:
brana hialina e insuficiência respiratória), maior
suscetibilidade à infeção, imaturidade dos tecidos Leve para a idade gestacional (LIG):
e capilares nomeadamente da retina e da matriz RN cujo peso se encontra abaixo do Percentil
germinativa cerebral (possibilitando a retinopatia (P)10 para a respetiva IG, numa curva representa-
da prematuridade e/ou hemorragia intracraniana tiva da população.
respetivamente), redução da função anti-oxidante
que pode contribuir para a morbilidade particular- Adequado para a idade gestacional (AIG):
mente na enterocolite necrosante e doença pul- RN cujo peso se encontra entre o P10 e o P 90
monar crónica da prematuridade. De notar que para a respetiva IG, numa curva representativa
mesmo os RN de termo precoces (37 semanas da população.
às 38 semanas e 6 dias) têm maior morbilidade
quando comparados com os de termo que nas- Grande para a idade gestacional (GIG):
ceram entre as 39 e as 42 semanas de IG. Os RN RN cujo peso se situa acima do P 90 para a
de termo precoce têm maior risco de hipoglice- respetiva IG, numa curva representativa da po-
mia, necessidade de suporte ventilatório incluindo pulação.
ventilação mecânica invasiva, taxas superiores de Estas definições não são consensuais:
administração de fluidos e antibióticos intravenosos por exemplo, relativamente aos RN LIG alguns
e de icterícia que os mais maduros. Estes factos autores consideram como valores de corte, o P5,
devem fazer ponderar a indução precoce do parto o P3, ou dois desvios padrão abaixo da média.
antes das 41 semanas sem justificação médica. As curvas mais usadas na atualidade são as de
Fenton, acessíveis em: http://www.ucalgary.ca/
Em função do peso de nascimento do RN fenton/2013chart.
consideram-se as seguintes definições:
Restrição do crescimento fetal ou res-
Incrível baixo peso: trição do crescimento intrauterino (RCIU) é o
RN com peso ao nascer ≤ 750 gramas (g). termo usado para designar os fetos que não atin-
Extremo baixo peso: gem o seu potencial de crescimento, motivado por
RN com peso ao nascer ≤ 1000g. fatores genéticos, maternos, fetais ou ambientais.
122 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

Segundo a American Congress of Obstetricians Mortalidade neonatal (dos 0 aos 28 dias


and Gynecologists (ACOG) define-se RCIU como de vida) é a mortalidade de um RN, nado-
o peso fetal estimado abaixo do P10 para a IG. vivo que ocorre em qualquer idade entre
Uma distinção importante nos LIG é saber se o nascimento e os 27 dias, 23 horas e 59
a perturbação do crescimento engloba também o minutos de vida.
comprimento (<P10 para a IG) e o perímetro cra-
niano (<P10 para a IG) e nesse caso classificam-se Mortalidade neonatal precoce (dos 0 aos
como simétricos ou se apenas o peso é inferior 7 dias de vida), é a mortalidade que ocorre
ao P10 (assimétricos). Os RN LIG assimétricos são em nados-vivos desde o nascimento até aos
consequência de problemas tardios na gravidez 6 dias, 23 horas e 59 minutos.
como por exemplo, insuficiência placentar ou
hipertensão arterial. Os RN LIG simétricos têm Mortalidade neonatal tardia é a
por base um evento que ocorreu precocemente mortalidade que ocorre em nados vivos
na gravidez tal como, anomalias cromossómicas, entre o sétimo e o 28º dia de vida.
abuso de álcool ou outras substâncias teratogé-
nicas, infeções congénitas nomeadamente as do Mortalidade pós neonatal (dos 28 aos
grupo TORCH (Toxoplasmose, Outros, Rubéola, 365 dias de vida) refere-se aos óbitos que
Citomegalovirus, Herpes). De uma maneira geral o ocorrem após o período neonatal até ao
potencial de crescimento e neurodesenvolvimento primeiro ano de vida.
pós-natal é previsivelmente melhor nos RN com
crescimento assimétrico do que no simétrico. O Mortalidade fetal (MF) é a definição
conhecimento da relação entre o peso de nas- utilizada para os óbitos ocorridos antes da
cimento e a IG permite a antecipação de alguns completa expulsão do produto da conceção
problemas neonatais. Os RN GIG têm maior risco do corpo da mãe, independentemente
de parto traumático e os filhos de mães diabéticas da duração da gestação. Os termos
(habitualmente GIG) de hipoglicémia, policitémia, mortalidade intra-uterina ou mortalidade in
anomalias congénitas, cardiomiopatia, hiperbilir- útero também podem ser utilizados. Pode
rubinémia e hipocalcémia. Os RN LIG simétricos dividir-se em MF precoce, intermediária
têm maior risco de apresentar malformações as- ou tardia. A MF precoce ocorre antes
sociadas e nos assimétricos o risco de asfixia, da 20ª semana de gestação. Os óbitos
hipoglicémia e policitémia é superior. fetais precoces são também conhecidos
como abortos espontâneos. A MF
Taxas de mortalidade intermediária ocorre entre a 20ª e a 28ª
Mortalidade infantil (dos 0 aos 365 dias de semanas de gestação. Esta designação
vida), é a mortalidade de um bebé nascido não é consensual e quando não é referida
vivo que ainda não atingiu o seu primeiro a Mortalidade fetal precoce é inferior às
aniversário. 28 semanas. A MF tardia é designada
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 123

quando o óbito ocorre após a 28ª semana 9.2 RECÉM-NASCIDO NA SALA DE PARTOS
de gestação. Os óbitos fetais tardios são
frequentemente designados por nados 9.2.1 Transição fisiológica da vida
mortos. intra para a extrauterina

Mortalidade perinatal inclui a mortalidade O sucesso da transição da vida intra para a


fetal tardia após a 28ª semana de gestação extrauterina está dependente de importantes al-
e a mortalidade neonatal precoce (dos 0 aos terações fisiológicas que ocorrem ao nascimento.
7 dias de vida). Antes do parto, o feto depende dos nutrien-
tes e oxigênio da circulação materna entregues
Taxas de mortalidade: infantil, neonatal, através da placenta. A baixa resistência vascular
neonatal precoce são as razões entre os da placenta e a elevada resistência vascular dos
óbitos de menores de um ano, 28 dias, pulmões fetais repletos de líquido - LPF, condiciona
e uma semana de vida, respetivamente, um shunt direito-esquerdo característico da circu-
ocorridas num ano civil e o número de lação fetal, figura 3. No feto existem dois shunts:
nados-vivos nesse mesmo ano. foramen ovale - FO (da aurícula direita para a
Estas taxas são geralmente expressas esquerda) e ductus arteriosus (DA) ou canal ar-
por mil nados vivos. terial (da artéria pulmonar para a aorta). Através
da placenta o sangue oxigenado circula pela veia
Taxa de mortalidade fetal tardia é a razão umbilical e divide-se quando entra no abdómen.
entre os óbitos fetais tardios e os nascidos A maior parte vai pelo ductus venosus (DV) para
vivos. a veia cava inferior e posteriormente para a aurí-
cula direita sendo desviado pelo FO para o lado
Proporção de óbitos fetais tardios é a pro- esquerdo e aorta; o restante perfunde o fígado. O
porção de óbitos fetais tardios em relação a todos sangue não oxigenado vindo da veia cava superior
os nascimentos. e inferior distal ao DV flui da aurícula direita para
O uso desta terminologia (baseada nas o ventrículo direito com uma mistura mínima de
definições prévias) é importante para haver uni- sangue oxigenado oriundo do DV. Quase todo o
formidade nos dados que permitem comparar a débito cardíaco direito (90%) faz um curto-circuito
estatística de saúde de países e de instituições ao pulmão sendo desviado através do DA patente
e permitir investigação para identificar lacunas (canal arterial) para a aorta descendente distal à
assistenciais e orientar os programas de inter- origem das artérias carotídeas. Este sangue não
venção para melhoria contínua da qualidade - oxigenado é transportado pela aorta e artérias
benchmarking. umbilicais para a placenta onde liberta dióxido
de carbono e outros produtos de degradação do
metabolismo. A tensão de oxigénio na circulação
intrauterina é baixa quando comparada com a
124 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

extrauterina. A pressão parcial de oxigénio mais ii) clearance do líquido pulmonar fetal
alta é encontrada na veia umbilical e ronda os (LPF) - são vários os mecanismos que
55±7 mmHg. Apesar da baixa tensão de oxigénio contribuem para a clearance do LPF
no feto, há uma adequada oxigenação tecidular como o parto, a respiração inicial e a
que decorre de três fatores: a hemoglobina fetal compressão do tórax. O aumento da ten-
tem maior afinidade para o oxigénio quando com- são de oxigénio após o parto aumenta a
parada com a do adulto; menor taxa metabólica expressão do gene que regula os canais
e de consumo de oxigénio (o feto não necessita de sódio do epitélio pulmonar e a sua
de manter a termorregulação pois esta é assegu- capacidade de transportar sódio promo-
rada pela mãe, muitas funções fisiológicas estão vendo a reabsorção do LPF. Os primeiros
reduzidas como o trabalho respiratório, digestão movimentos respiratórios efetivos do RN
e absorção intestinais, reabsorção tubular renal); geram pressões hidrostáticas negativas,
o fluxo sanguíneo está estruturado de modo a que promovem a deslocação do LPF para
que os órgãos vitais (fígado, coração e cérebro) o espaço intersticial e posteriormente
recebam sangue com um conteúdo relativamente para a vasculatura pulmonar. A compres-
alto de saturação de oxigénio. são do tórax, antigamente tida como o
A baixa tensão de oxigénio mantém a arqui- principal fator de clearance do LPF, é hoje
tetura da circulação fetal causando vasoconstrição considerada como desempenhando um
pulmonar, o que mantém a resistência vascular contributo reduzido;
pulmonar elevada, promovendo o shunt direito- iii) alterações circulatórias - após o au-
-esquerdo através do FO e do DA (canal arterial). mento da perfusão pulmonar e da pres-
são sistémica ocorre o encerramento do
Para que a transição decorra com sucesso FO e do DA com redução e posterior
quando o cordão umbilical é clampado após o desaparecimento dos shunts direito-es-
nascimento, devem verificar-se alterações rápidas querdo da circulação fetal. Após a clam-
na função cardiopulmonar, tais como: pagem do cordão umbilical, a placenta
é removida da circulação, resultando na
i) expansão pulmonar - com os primeiros subida da pressão sistémica neonatal.
movimentos respiratórios efetivos, o ar Simultaneamente com a expansão pul-
começa a mobilizar-se com a descida da monar há diminuição da resistência vas-
pressão intratorácica. O aumento da pres- cular e da pressão pulmonar. Estas duas
são inspiratória expande o alvéolo e es- alterações promovem o shunt esquerdo-
tabelece a capacidade residual funcional. -direito e condicionam um aumento do
A expansão pulmonar também estimula fluxo sanguíneo pulmonar e do volume
a libertação de surfatante, que reduz a de ejeção do ventrículo esquerdo, me-
tensão alveolar, aumenta a compliance e lhorando a saturação de oxigénio ce-
estabiliza a capacidade residual funcional; rebral. Com o aumento da expansão e
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 125

Ductus arterosus

Placenta

Cordão umbilical

Ductus venosus

Figura 3. Circulação Fetal. Adaptado de https://i.ytimg.com/vi/UhGnZ4NSoMw/maxresdefault.jpg

perfusão pulmonar, a saturação de oxi- de assistência neste período e 1% precisará de


génio neonatal aumenta o que estimula reanimação avançada. Alguns fatores de risco
o encerramento do DA. Adicionalmente estão associados a estas dificuldades:
o aumento do fluxo sanguíneo arterial
pulmonar aumenta o retorno venoso i) condições maternas - idade avançada,
pulmonar para a aurícula esquerda e a diabetes mellitus ou hipertensão arte-
sua pressão. À medida que a pressão na rial, abuso de substâncias tóxicas, histó-
aurícula esquerda aumenta e na direita ria prévia de abortos, mortes fetais ou
reduz, o shunt através do FO diminui. neonatais precoces;
O encerramento deste ocorre quando a ii) condições do feto - prematuridade, pos-
pressão na aurícula esquerda excede a maturidade, anomalias congénitas, ges-
da direita. tações múltiplas;
iii) complicações antes do parto - placenta
Nalguns casos pode haver dificuldades prévia, oligoâmnios ou polidrâmnios;
na transição da vida intra para a extrauterina. iv) complicações do parto - malapresenta-
Cerca de 10% de RN necessita de algum tipo ções, corioamnionite, líquido amniótico
126 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

com mecónio, sofrimento fetal agudo, ad- importantes: antecedentes maternos e familiares,
ministração à mãe de opioides até quatro história obstétrica anterior e atual e exame obje-
horas antes do parto, parto instrumentado tivo na sala de partos que será pormenorizado à
(fórceps ou ventosa) ou cesariana. frente. A história familiar nomeadamente a exis-
tência de anomalias congénitas e consanguinida-
9.2.2 Sala de Partos de devem ser pesquisadas. Na história obstétrica
anterior devem ser incluídos: gestações e partos
Preparação da sala, colheita da história anteriores e a sua evolução. A história obstétrica
clínica e antecipação do risco atual e materna inclui aspetos sociais. Deve-se
Na sala de partos a antecipação do risco é conhecer o contexto social: o nível socioeconó-
fundamental. Antes do parto deve ser elaborada mico, se a mãe é adolescente, se consume tabaco
uma história clínica detalhada para detetar fatores ou drogas ilícitas. Estes poderão colocar o RN
de risco, ser verificado todo o material de reani- em risco. Existem patologias maternas e ingesta
mação e as condições da sala de partos para a de fármacos que podem afetar o feto, ou ser
receção do RN incluindo a temperatura ambiente. responsáveis por complicações pós-natais: hiper-
Pelo menos um profissional de saúde deve tensão arterial, diabetes, infeção urinária, trom-
estar designado para assegurar cuidados ao RN e bocitopenia, hipertiroidismo, tuberculose, infeção
deve estar disponível um Pediatra com treino em por vírus da imunodeficiência humana, miastenia
reanimação neonatal. Nos casos de maior risco, gravis, distrofia miotónica, lupus eritematoso sis-
acima referidos, deve estar presente desde o início témico, e toma de fármacos anti-tiroideus, citos-
um Pediatra de preferência com diferenciação em táticos, ansiolíticos, antidepressivos, entre outros.
Neonatologia. O equipamento necessário para É importante avaliar se a gravidez foi vigiada.
a reanimação deve ser previamente verificado: Idealmente devem ocorrer pelo menos seis con-
aquecedor radiante, fonte para administração de sultas. Considera-se não vigiada quando houve
oxigénio, aspirador, laringoscópio, auto-insuflador três ou menos consultas. É imprescindível verificar
manual e máscara, vários tamanhos de tubos en- o resultado dos seguintes exames laboratoriais:
dotraqueais e fármacos. grupo de sangue e Rh, teste de Coombs indireto
Os RN prematuros têm maior risco de asfixia se Rh negativo, glicémia, serologias seriadas nos
e de necessitar de reanimação, particularmente os três trimestres de acordo com as recomendações
que nascem com menos de 1000g. Se for possível da Direção-Geral da Saúde e em função do risco,
quando se prevê o parto de um RN prematuro rastreio do Streptococcus do grupo B (efetuado
e o tempo o permitir deve-se dar preferência a entre as 35 e as 37 semanas de idade gestacional).
transferência in útero para uma maternidade di- É ainda fundamental saber o resultado das eco-
ferenciada. grafias efetuadas cujos objetivos são no primeiro
trimestre a determinação da idade gestacional,
A história clínica relativa ao recém-nascido, da corionicidade e de marcadores de cromos-
no momento do parto, tem três componentes somopatias (ossos do nariz e translucência da
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 127

nuca), no segundo a avaliação morfológica e no - ILCOR). Para prevenir a perda de calor, o RN


terceiro a avaliação da placenta, do crescimento deve ser envolvido com panos quentes durante
fetal, do perfil biofísico e do volume do líquido este tempo. A clampagem precoce do cordão
amniótico. Se for detectado oligoâmnios suspeitar umbilical pode causar hipovolémia.
de malformações renais e hipoplasia pulmonar e Nos RN filhos de mães Rh negativas deve ser
em caso de polidrâmnios ponderar a verificação colhido sangue do cordão umbilical para estudo
de malformações digestivas, incluindo atrésia do de grupo sanguíneo e teste de Coombs direto.
esófago sendo por isso necessário confirmar a
patência do esófago ao nascimento, através da Manter o RN quente é essencial. Na verda-
introdução de sonda gástrica no RN. Saber se de, pela grande superfície corporal relativamente
houve sinais de sofrimento fetal agudo na mo- ao peso, os RN podem perder calor muito rapi-
nitorização contínua durante o trabalho de parto damente. A hipotermia aumenta as necessidades
através do registo cardiotocográfico. Registar a de oxigénio e outros metabolitos, dificultando a
ocorrência de fatores de risco infecioso como seja adaptação imediata à vida extrauterina assim como
a rotura prolongada de membranas (superior a 18 um processo de reanimação, especialmente nos
horas antes do parto) e febre materna intraparto RN com extremo baixo peso. A perda de calor
(temperatura axilar superior a 38ºC). As caracte- ocorre por quatro mecanismos: evaporação (perda
rísticas e quantidade do líquido amniótico tam- de calor quando a pele está molhada com liqui-
bém devem ser registadas. Um líquido amniótico do amniótico), convecção (correntes de ar que se
meconial pode ser um sinal de sofrimento fetal e movem em torno do RN levam a perda de calor),
causar no RN o síndrome de aspiração meconial. condução e radiação (colocar o RN numa superfície
É fundamental registar o tipo de parto: eutócico fria leva a perda de calor por condução e radiação).
ou distócico (ventosa, fórceps) ou cesariana e seus Os mecanismos que mais frequentemente levam a
motivos, e o tipo de anestesia e analgesia usadas. perda de calor são a evaporação e a convecção. Há
medidas simples e efetivas para reduzir ao mínimo
Cuidados de rotina na sala de partos a perda de calor:
A maioria dos RN de termo respira e/ou chora
nos primeiros 90 segundos após o parto, sendo i) secar e envolver o RN com toalhas ou panos
necessário apenas cuidados de rotina. Destes fazem previamente aquecidos;
parte: evitar o arrefecimento, exame objetivo sumá- ii) manter a sala de partos sem correntes de
rio e dirigido, profilaxia da hemorragia por carência ar, garantindo que as janelas e as portas
de vitamina K e da conjuntivite neonatal, estabelecer estão fechadas sempre que possível;
vínculo e aleitamento maternos precoces. iii) colocar o RN num colchão quente debaixo
É recomendado que o cordão umbilical só de um aquecedor radiante.
deva ser clampado um minuto após o nascimen-
to nos RN que não necessitem de reanimação O exame objetivo na sala de partos não
(International Liaison Committe on Resuscitation deve ser extenso nem demorado, e tem como
128 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

principais objetivos avaliar a necessidade de rea- melhor a adaptação. No bebé saudável, no primeiro
nimação e o modo de adaptação à vida extra- minuto, a pontuação máxima é habitualmente de
-uterina, excluir malformações congénitas major nove, uma vez que a coloração da pele se apresenta
e lesões de parto traumático. O RN deve ser pe- com cianose periférica (acrocianose) motivada por
sado, mas na sala de partos não é necessário “frio”, cotando 1. Um valor aos cinco minutos infe-
nem desejável avaliar o perímetro craniano nem o rior a sete, obriga à sua repetição de cinco em cinco
comprimento que ficam reservados para o dia se- minutos até aos 20 minutos de vida, assim como
guinte, quando há maior estabilidade fisiológica. da implementação de medidas que o normalizem.
A frequência cardíaca pode ser determinada pela
As guidelines de 2015 da American Heart auscultação ou pela palpação do cordão umbili-
Association (AHA) e da American Academy of cal (menos sensível mas pode ser útil em caso de
Pediatrics (AAP)/ ILCOR para a reanimação do RN reanimação quando apenas estiver presente só um
incluem uma avaliação rápida, baseada nas se- profissional de saúde na sala de partos).
guintes questões: i) o RN é de termo?, ii) o RN está
a respirar ou a chorar?, iii) o RN tem bom tónus
muscular?. Se a resposta a todas estas questões Pontuação
0 1 2
for sim, então o RN não precisa de reanimação. Frequência Ausente <100 bpm >100 bpm
cardíaca
O Índice de Apgar foi introduzido por Respiração Ausente Irregular Regular, choro

Virginia Apgar, de forma a avaliar rapidamente Tónus Hipotonia Flexão das Ativo
o RN nos seus primeiros minutos de vida. Não é muscular extremidades (movimentos
usado para guiar a necessidade de reanimação de braços
e pernas)
mas para avaliar a adaptação fisiológica imediata Resposta Ausente Gemido Choro
do RN à vida extra-uterina. A sua determinação aos vigoroso
é efetuada nos 1º, 5º e 10º minutos de vida, ou estímulos
Cor da pele Palidez/ Cianose Rosado
mais. Avaliam-se cinco critérios clínicos: fre- Cianose periférica
quência cardíaca (ausente - 0, inferior a 100 bati- central (acrocianose)
mentos por minuto -1, superior a 100 batimentos bpm - batimentos por minuto

por minuto -2); respiração (ausente-0, irregular-1,


regular/choro -2); tónus muscular (hipotonia -0, Quadro 1 - Índice de Apgar. Adaptado de Apgar V.
A proposal for a new method of evaluation of the newborn
flexão das extremidades-1, ativo/movimentos de
infant. Curr Res Anesth Analg. 1953 (32): 260-7.
braços e pernas-2); resposta a estímulos dolorosos
(ausente-0, gemido-1, choro vigoroso-2) e cor da
pele (palidez/cianose central -0, cianose periférica/ As anomalias congénitas ocorrem em
acrocianose-1, rosado-2), quadro 1. É normal um 1,5% dos nados vivos e são responsáveis por 20
valor igual ou superior a sete, numa escala de a 25% das mortes perinatais e neonatais. Estas
0 a 10, em que quanto mais elevada a cotação, devem ter diagnóstico pré-natal para que os RN
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 129

possam nascer numa maternidade diferenciada saco de silicone para evitar a perda de água, de
de forma a otimizar os cuidados. Será feita uma eletrólitos e de calor. Também é necessária pausa
breve descrição daquelas que, na ausência de alimentar e a colocação de sonda nasogástrica
diagnóstico pré-natal devem ser obrigatoriamente para descompressão. Em ambos os casos é neces-
detetadas na sala de partos pelas suas implicações sário a transferência precoce para uma unidade
terapêuticas específícas e urgentes. diferenciada com Cirurgia Pediátrica. Idealmente
deveriam ter sido transferidos in útero.
As fendas do palato e/ ou do lábio são
relativamente frequentes e podem ser observa- A hérnia diafragmática congénita con-
das pela inspeção. Pode ser necessário palpar o siste na herniação dos órgãos abdominais para
palato para detetar uma fenda submucosa que a cavidade torácica através de um defeito pos-
não é visivel. As fendas podem ser isoladas (não tero-lateral do diafragma. É mais frequente à
sindromáticas) ou associadas com outras ano- esquerda. A sua incidência é de 1 para 2.500
malias fazendo parte de um síndrome genético nascimentos. O diagnóstico pré-natal é frequente
(sindromáticas). e desejável para que o parto possa ocorrer numa
maternidade diferenciada. Se não for diagnostica-
O onfalocelo é uma herniação através do da previamente, deve suspeitar-se ao nascimento
cordão umbilical do conteúdo abdominal cober- quando ocorrem sinais de dificuldade respirató-
ta por uma membrana. Tem uma incidência de ria grave, sons cardíacos audíveis à direita e ab-
2 para 10.000 nados-vivos. Em 50% dos casos dómen escavado. Está proscrita a ventilação
associa-se a anomalias do cariótipo ou a síndro- com máscara. A precocidade e a gravidade da
mes genéticos. O seu prognóstico depende do apresentação dependem do grau de hipoplasia
tamanho da lesão, grau de hipoplasia pulmonar pulmonar e hipertensão pulmonar e das malfor-
e insuficiência respiratória e de outras malforma- mações associadas. O seu tratamento inclui entu-
ções associadas. Após o nascimento o onfalocelo bação traqueal, descompressão gastro-intestinal
deve ser coberto com compressas estéreis em- com sonda naso-gástrica, medidas adequadas
bebidas em soro fisiológico morno para impe- para a hipertensão pulmonar e ventilação suave.
dir a perda de fluidos. Deve ser colocada sonda A cirurgia deve ser diferida até controlo da hiper-
nasogástrica para descompressão, e administrar tensão pulmonar.
fluidos intravenosos com glicose uma vez que
estes RN não se podem alimentar por via diges- A atrésia do esófago pode ocorrer com
tiva. No gastrosquisis o intestino exterioriza-se ou sem fístula entre o topo proximal ou distal
através de um defeito na parede abdominal do (ou ambos) do esófago e a traqueia. Em 85%
lado direito do cordão umbilical, sem membrana. dos casos a fístula ocorre entre o esófago distal
Pode associar-se a atrésia intestinal e os RN são e a traqueia. A sua incidência é de 1 para 3.000
LIG em 10 a 20% dos casos. Deve-se colocar o nascimentos. O seu diagnóstico pré-natal é difícil
intestino à vista ou a parte inferior do RN num mas deve suspeitar-se em caso de polidrâmnios.
130 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

A imperfuração anal ocorre em 1 por cada


5.000 nascimentos, com um predomínio no sexo
masculino. Quase 50% dos casos apresenta de-
feitos associados. São habitualmente classificados
em baixos (malformações retoperineais) ou altos
(fistula retoperineal, retovesicular, retouretral ou
retovaginal; nádegas hipoplásicas, anomalias da
cloaca e por vezes evidência de defeitos neuro-
lógicos distais).

Sempre que há polidrâmnios há indi-


cação para colocação de sonda nasogástri-
ca para avaliar a permeabilidade do esófago ou
avaliar o conteúdo gástrico - se este for superior
a 20 mL deve-se suspeitar de obstrução intestinal
(atrésia do duodeno, jejunal/ileal e ileus meconial).
Figura 4. Radiografia torácica típica de atresia esófago.
Sonda enrolada no topo proximal do esófago;
Correm risco elevado de traumatismo de par-
provável fistula traqueo-esofágica uma vez que se
visualiza a câmara de ar gástrica. to os RN GIG, com extração difícil e os submetidos
a forceps e ventosa. O céfalo-hematoma é uma
coleção hemática subperióstea de origem traumá-
Os RN com atresia do esófago apresentam-se tica, uni ou bilateral, que não ultrapassa as suturas
nas primeiras horas de vida com abundantes se- craneanas, ocorre em 1 a 2% dos RN, pode au-
creções na boca e dificuldade respiratória, senão mentar de dimensões depois do nascimento e de-
forem devidamente diagnosticados e tratados. mora semanas ou meses a regredir. Caput succe-
O diagnóstico é confirmado através da colocação daneum ou bossa serossanguínea, é uma lesão
de uma sonda “nasogástrica” que não progride craniana mole e mal delimitada, que ultrapassa
e se enrola no topo proximal do esófago – visua- as suturas e é resultante do edema traumático do
lização através de radiografia torácica, figura 4. couro cabeludo (tecidos moles). Tipicamente está
O RN deve ficar em pausa e com uma sonda presente ao nascimento e desaparece em poucos
orogástrica de dupla via. O prognóstico é condi- dias. As hemorragias subgaleais são raras mas
cionado pela existência de outras malformações, potencialmente fatais. Resultam da rotura das
pela presença de fístula para a árvore respiratória veias emissárias, são coleções de sangue que se
e pela dimensão da atrésia. Anomalias vertebrais, localizam entre a aponevrose epicraniana do cou-
anais, cardíacas, renais e dos membros são as ro cabeludo e o periósteo. Também ultrapassam
mais frequentemente associadas (Associação de as suturas mas são firmes e flutuantes, figura 5.
VACTERL). O tratamento é cirúrgico. A perda sanguínea relacionada pode ser extensa,
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 131

Figura 5. Hemorragia subgaleal.

desencadear um processo de coagulopatia de toxicidade, prevenir também a conjuntivite por


consumo e colocar em perigo a vida do RN. Chlamydia trachomatis e tem um custo mais baixo.
É uma emergência que requer a reposição rápida No entanto a sua disponibilidade não é genera-
de concentrado de glóbulos vermelhos e fatores lizada. Em países ou regiões em que a vigilância
de coagulação. da gravidez é regular e a conjuntivite gonocócica
A AAP e o Centers for Disease Control and é rara discute-se a indicação de profilaxia no RN.
Prevention recomendam a profilaxia da con- Por outro lado a colocação de pomada oftálmi-
juntivite gonocócica para todos os RN. É usada ca precocemente pode prejudicar a interação e
a eritromicina em pomada oftálmica numa con- vinculação entre a mãe e o RN.
centração de 0,5%. Causa menos conjuntivite Por estes motivos alguns centros que incluem
química que a solução de nitrato de prata, mas as maternidades de Coimbra optaram por não
a sua eficácia é duvidosa. O nitrato de prata é fazer profilaxia sistemática.
mais efetivo nas Neisserias gonorrhoeae produ-
toras de penicilinases e deve ser usado nas áreas Deve-se administrar vitamina K1 intramus-
em que este gérmen é frequente. A solução de cular a todos os RN para profilaxia da hemor-
Iodopovidona a 2,5% parece ser eficaz, ter menor ragia por carência de vitamina K (0,5 mg se o
132 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

peso de nascimento for inferior a 1500g ou 1 mg de atrésia esofágica sem suspeita pré-natal.
se for superior). Esta hemorragia vitamina K Mas cuidado que esta anomalia deve ser cli-
dependente pode ser classificada de acordo nicamente excluída antes de colocar o bebé à
com o momento de apresentação: precoce (0 mama (pesquisar acumulação de secreções na
a 24 horas de vida), clássica (um a sete dias) e boca e história de polidrâmnios), uma vez que
tardia (duas a 12 semanas). A forma precoce é não está indicada por rotina a colocação de
habitualmente grave e ocorre sobretudo quando sonda gástrica para testar a patência esofágica
as mães durante a gravidez ingerem fármacos ao nascimento.
que interferem com o metabolismo da vitamina Logo na sala de partos deve-se ter o cuida-
K como alguns anti-epilépticos e a isoniazida. do de promover o aleitamento materno imple-
A clássica é caracterizada pelo aparecimento mentando as medidas de sucesso bem conheci-
de hemorragia gastrointestinal ou do cordão das como sejam: o contacto precoce “pele com
umbilical. A forma tardia é a mais preocupante pele” entre o RN e a mãe após o nascimento;
e pode manifestar-se com hemorragia intracra- aleitamento frequente e precoce no período pós
niana em 30 a 60% dos casos. Tende a ocorrer parto; bem como um suporte à amamentação
em RN que não fizeram profilaxia e sobretudo por profissionais habilitados em caso de difi-
se são alimentados com leite materno. Os RN culdades.
têm risco de carência fisiológica de vitamina K
uma vez que a passagem desta vitamina por São critérios para o RN ser colocado
via transplacentar e a sua reserva hepática são junto da mãe, dispensando vigilância em
limitadas, o seu trato intestinal é relativamente unidade de cuidados especiais: ser de termo
estéril e leva algum tempo a colonizar com bac- ou prematuro tardio; ter peso de nascimento
térias que têm um papel importante na síntese adequado (superior a 1.800g); terem sido excluí-
de vitamina K 2 e o leite materno é uma pobre das malformações major; ter tido boa adaptação
fonte desta vitamina. à vida extra-uterina; ter capacidade de mamar
e ser capaz de manter estabilidade térmica.
Os RN saudáveis de termo ou prematuros
tardios devem permanecer junto da mãe para O período de transição entre a vida intra
promoção da vinculação entre a mãe e o RN e extra uterina ocorre nas primeiras quatro a
através do contacto “pele com pele” e pelo seis horas após o nascimento. Nesta fase o RN
início precoce do aleitamento materno. A pri- deve ser avaliado a cada 30 a 60 minutos. Deve
meira mamada do RN deve começar ainda na ser registada a temperatura axilar (alvo 36,5 a
sala de partos, tão precoce quanto possível pois 37,5ºC nos RN sem asfixia), a frequência cardía-
também previne as hipoglicémias. Outra vanta- ca (normal 120 a160 bpm; pode reduzir durante
gem da primeira mamada ocorrer ainda na sala o sono), a frequência respiratória (normal 40
de partos é a possibilidade da sua observação, a 60 cpm), a côr da pele e mucosas, e o tónus
sendo particularmente útil na deteção de casos muscular.
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 133

9.2.3 Problemas no nascimento

Asfixia Perinatal
A asfixia perinatal pode resultar de dife-
rentes incidentes que levam a uma interrupção
no fluxo sanguíneo normal do cordão umbilical
tais como: prolapso com compressão do cordão
umbilical, descolamento da placenta, hipóxia e
hipotensão, insuficiência placentar ou reanimação
ineficaz. Na resposta inicial à hipóxia há um
aumento compensatório da frequência respiratória
e cardíaca, assim como da pressão arterial. Os
movimentos respiratórios podem cessar de segui-
da (apneia primária) e a frequência cardíaca e a
pressão arterial diminuem. O período inicial de
apneia tem a duração de 30 a 60 segundos. Se
o insulto se mantém seguem-se respirações tipo
gasping (cerca de 12 por minuto). Posteriormente,
surge a apneia secundária ou terminal com
descida mais abrupta da frequência cardíaca e Figura 6. Sequência de eventos fisiológicos de asfixia no
modelo animal. De notar a subida da frequência
da pressão arterial, figura 6. Quanto mais pro-
cardíaca como resposta à reanimação eficaz.
longada a duração da apneia secundária, maior
será o risco de lesão de órgãos. Numa fase inicial
e apesar da descida da frequência cardíaca, o
débito cardíaco e a pressão arterial mantêm-se reanimação que necessitam de ser mais vigo-
normais por vasoconstrição, sendo poupados da rosas e invasivas na segunda. Todos os esforços
hipoperfusão os órgãos vitais nobres (coração devem ser efetuados para que a reanimação seja
e cérebro). Durante a fase de apneia primária é o mais efetiva possível de forma a evitar o desen-
possível iniciar a respiração com estímulos físicos. volvimento de encefalopatia hipóxico-isquémica
O primeiro sinal de recuperação da apneia é o e o risco de sequelas no neurodesenvolvimento
aumento da frequência cardíaca, seguido da ele- daí decorrentes.
vação da pressão arterial. O tempo e as medidas O diagnóstico de asfixia é definido segundo
de reanimação necessárias para que ocorram res- os critérios da ACOG pela acidose do sangue do
pirações rítmicas espontâneas estão dependentes cordão (pH <7,0 ou défice de base ≤ -12 nos 60
da duração da apneia secundária. minutos após o nascimento), índice de Apgar infe-
Só conseguimos distinguir apneia primá- rior a 3 ou 5, respetivamente ao 5º e 10º minutos
ria da secundária pela resposta às medidas de de vida, e necessidade de reanimação contínua
134 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

durante os primeiros 10 minutos de vida. Após a circulação através de compressões torácicas (C) e
publicação de três ensaios clínicos multicêntricos administrar drogas (D) como a adrenalina e/ ou ex-
randomizados e controlados em RN de termo há pansores de volume. Inicialmente o RN é colocado
indicação para a implementação de hipotermia de baixo de aquecedor radiante sobre o colchão
moderada (temperatura retal de 33,5ºc) nas pri- de reanimação previamente aquecido, envolvido
meiras seis horas de vida e durante 72 horas nos em panos quentes, que vão sendo substituídos en-
bebés com encefalopatia hipóxico-isquémica mo- quanto se seca de forma a não estarem húmidos.
derada a grave uma vez que reduz a probabilidade Apesar de envolto nos panos o RN não deve estar
de morte e de sequelas no neurodesenvolvimento totalmente coberto para que se possa observar.
a longo prazo. Pretende-se obter uma temperatura cutânea de
36,5ºC (electrodo cutâneo). Para permeabilizar a
Reanimação neonatal via aérea o RN deve ser posicionado com a cabeça
Os passos básicos A, B, C, D da reanima- em posição neutra ou ligeiramente em exten-
ção também se aplicam no período neonatal. são. O pescoço não deve estar hiperextendido
No entanto há aspetos particulares a salientar. nem fletido, figura 7. A aspiração imediatamente
As decisões são tomadas segundo um algoritmo após o parto é reservada para as situações em
do European Ressuscitation Council Guidelines que há obstrução óbvia da via aérea ou respira-
2015 - Newborn Life Support, que se baseia no ção ineficaz. Deve ser aspirada primeiro a boca
tempo de resposta a procedimentos de reanima- e depois o nariz (sondas adequadas) com uma
ção padronizados e na avaliação da respiração e pressão não demasiado elevada (não exceder os
da frequência cardíaca. É utilizado um período -150 mmHg). A aspiração do esófago, estômago
de 30 segundos para se instituir um determina- e até da orofaringe não deve ser efetuada por
do procedimento de reanimação e avaliar o seu rotina por risco traumático e pela possibilidade
resultado de forma a decidir se é necessária a in- de causar estimulação parassimpática (vagal)
tervenção subsequente. A monitorização da SpO2 que pode desencadear apneia e/ou bradicardia
usando a oximetria de pulso deve ser efetuada nas atrasando a recuperação do RN. O processo de
seguintes circunstâncias: respiração ineficaz ou secar e aspirar gentilmente o RN, efetuado na
apneia, cianose central persistente ou frequência fase inicial, habitualmente produz estimulação
cardíaca inferior a 100 bpm. Não são necessárias adequada para desencadear os movimentos respi-
medidas de reanimação adicionais se a respiração ratórios. Outras medidas de estimulação seguras
espontânea for eficaz e se a frequência cardíaca adicionais podem incluir pequenos piparotes na
for superior a 100 bpm. É fundamental que cada planta dos pés e massajar o dorso. Se após duas
passo seja otimizado, pois o sucesso das medi- ou mais tentativas de estimulação adicional o RN
das posteriores está na dependência da anterior. continua em apneia, deve ser iniciada ventilação
Os passos da reanimação são: aquecer e secar o com pressão positiva.
RN, estimular, desobstruir a via aérea (A) se neces- O tempo que deve decorrer para o RN ser co-
sário, assegurar respiração eficaz (B), assegurar a locado na mesa de reanimação, posicionar, aspirar
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 135

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Figura 7. Posicionamento para manter a via aérea permeável. Figura 8. Técnica de ventilação com pressão positiva com
máscara e auto-insuflador.

e estimular não deve exceder os 30 segundos. de um E e o primeiro e segundo dedos em cima


A ventilação com pressão positiva é indicada se o da máscara sob a forma de um C, figura 8.
RN apresentar uma respiração ineficaz ou ausente
(apneia) ou se a frequência cardíaca for inferior a As insuflações iniciais requerem uma pres-
100 bpm. A forma mais frequentemente usada é são positiva mais elevada (cerca de 30 cm de
a ventilação com máscara e auto-insuflador ma- H 2O) com tempos de insuflação sustidos de
nual. Para que a ventilação com pressão positiva dois a três segundos de modo a eliminar o lí-
seja efetuada com sucesso é necessário que a via quido pulmonar e recrutar os alvéolos. Cinco
aérea esteja desobstruída, que seja colocada a insuflações devem ser suficientes para arejar
cabeça do RN na posição neutra, que haja uma o pulmão. Nos RN prematuros com menos de
boa selagem entre a máscara e a face do RN e 30 semanas pode ser suficiente uma pressão
que o tamanho de máscara seja apropriado (co- de 20 a 25 cm de H 2O. A reanimação deve ser
brir o queixo, boca e nariz mas não os olhos). iniciada com FiO2 de 21% (ar ambiente) ou FiO2
O reanimador deve estar por trás da cabeça do RN de 21 a 30% nos RN com menos de 35 sema-
para avaliar os movimentos da caixa torácica e a nas de IG; esta deve ser ajustada para atingir
eficácia da técnica de ventilação. A máscara deve os níveis de SpO2 alvo monitorizados pela oxi-
fixar-se na face, posicionando a mão do reanima- metria de pulso. Após estas cinco insuflações,
dor de forma a colocar o terceiro, quarto e quinto reavaliar a frequência cardíaca, se estiver a
dedos na mandibula fazendo uma configuração aumentar (superior a 100 bpm) é sinal que a
136 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

ventilação está a ser adequada e o RN pode


começar a respirar espontaneamente. Se a FC
persistir inferior a 100 bpm deve ser otimizada
a permeabilidade da via aérea e repetidas as
insuflações com pressão de cerca de 20 cm de
H2O e duração de aproximadamente um segun-
do. Nesta fase deve ser considerada a presença
de duas pessoas para controlo da via aérea.
A entubação traqueal pode estar indicada nas
seguintes situações: necessidade de aspiração
da traqueia por líquido meconial, a ventilação
com máscara ser ineficaz ou prolongada, ou
quando houver necessidade de efetuar com- © European Ressuscitation Council - www.erc.edu - 2017_NGL_008

pressões cardíacas. Pode ser a primeira opção Figura 9. Técnica das compressões torácicas.
nos casos de hérnia diafragmática congénita,
nos prematuros com extremo baixo peso e para
a administração de surfatante nos prematuros. cardíaca não for detetável ou se for inferior a 60
Esta técnica deve ser efetuada por Pediatras e/ou bpm considerar a obtenção de um acesso venoso
Neonatologistas experientes e a sua descrição (cateter na veia umbilical) e a administração de
está fora do âmbito desta lição. Reavaliar os drogas (adrenalina e/ou expansores de volume).
movimentos respiratórios, se forem eficazes mas A adrenalina é administrada na dose inicial de
os batimentos cardíacos não forem detetáveis 10 microgramas/kg (0,1 mL /kg na diluição de
ou inferiores a 60 bpm, devem-se iniciar com- 1:10.000) por via intravenosa. A sua adminis-
pressões torácicas. Deve-se comprimir no terço tração através do tubo endotraqueal é menos
inferior do esterno, numa linha imaginária logo recomendada e requer doses mais elevadas (50
abaixo dos mamilos, com os dois polegares; os a 100 microgramas/kg). A adrenalina pode ser
restantes dedos circundam o tórax, apoiados na repetida (em doses 10 a 30 microgramas/kg) e
parte posterior. O objetivo é reduzir o diâme- considerada a utilização de bicarbonato de sódio
tro antero-posterior da caixa torácica em cerca se não houver melhoria. A expansão com volume
de um terço em cada compressão, figura 9. é efetuada com soro fisiológico na quantidade
As guidelines atuais recomendam uma relação de 10 mL /kg; esta conduta é muito importante
de três compressões torácicas para uma venti- na primeira fase de situações de hipovolémia
lação de modo a atingir 90 compressões e 30 como no descolamento da placenta até estar
insuflações por minuto. Deve-se reavaliar a fre- disponível concentrado de glóbulos vermelhos.
quência cardíaca a cada 30 segundos podendo A reanimação deve ser descontinuada se
usar-se a monitorização com eletrocardiograma o RN não mostrar sinais de vida (ausência de fre-
(avaliação mais rápida e precisa). Se a frequência quência cardíaca ou esforço respiratório) após dez
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 137

minutos de reanimação correta. Disponibiliza-se resultante de hipóxia intra-uterina; pode ser normal
o algoritmo da reanimação neonatal na figura 10. nos casos de fetos em posição pélvica), era prática
comum aspirar a orofaringe dos RN para evitar o
9.2.4 Situações especiais síndrome de aspiração meconial – pneumopatia
química, no entanto os estudos vieram demonstrar
RN prematuro que esta prática não era benéfica. Perante um RN
Quando se prevê um parto prematuro são vigoroso com líquido amniótico meconial não se
necessários recursos adicionais. Nos bebés com deve aspirar a via aérea. Nos RN não vigorosos com
IG inferior a 32 semanas, devem ser usados sa- líquido amniótico meconial espesso, que pode ser
cos de polietileno para os envolver de forma a obstrutivo, considerar a aspiração e entubação tra-
manter a temperatura corporal, além disso, nos queal. Deve ser destacada a necessidade de iniciar
RN com IG inferior a 28 semanas, a temperatura ventilação sem demora, nos primeiros minutos de
da sala deve ser superior a 25ºC. Os que têm vida nos RN que não respiram ou que o fazem de
menos de 30 semanas de IG são mais suscetíveis um modo ineficaz.
ao défice de surfatante (desenvolvem doença da
membrana hialina), pelo que deve haver equipa- Depressão por opioides
mento para fornecer pressão positiva (continuous Se foram administrados opioides na mãe
positive airway pressure - CPAP) e administrar durante o trabalho de parto, sobretudo em doses
surfatante se houver sinais de dificuldade respi- repetidas, por via intravenosa, e a última menos
ratória. Devem existir também fontes de ar com- de quatro horas antes do nascimento, o RN pode
primido, misturadores de oxigénio e oxímetros de apresentar depressão respiratória. Pode ser ne-
pulso para permitir uma adequada monitorização cessário para além da ventilação com pressão
da concentração de oxigénio administrada, de positiva ministrar naloxona como antídoto (200
forma a reduzir a lesão oxidativa resultante da microgramas por via intramuscular) que tem uma
exposição excessiva a este agente terapêutico. resposta altamente eficaz e imediata. A naloxona
Deve estar disponível uma incubadora de trans- está contraindicada nos RN filhos de mães toxico-
porte previamente aquecida particularmente se dependentes que consomem opioides pelo risco
os RN estão ventilados e a unidade de cuidados de despoletar síndrome de privação cuja clínica
intensivo é distante da sala de partos. pode incluir irritabilidade, tremor, febre, manifes-
tações gastrointestinais e convulsões.
Líquido amniótico com mecónio
Na presença de líquido amniótico meconial 9.2.5 Problemas precoces
(Liquido amniótico que em vez de ter uma cor
clara normal é esverdeado, resultante de dejeção Sinais de síndrome de dificuldade
in-útero de mecónio – conteúdo intestinal normal respiratória (SDR)
do feto que é verde e viscoso) que pode traduzir so- Os sinais de síndrome de dificuldade respira-
frimento fetal (por aumento da peristalse intestinal tória incluem taquipneia (frequência respiratória
138 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

EUROPEAN
RESUSCITATION Suporte de Vida
Neonatal
COUNCIL

(Aconselhamento pré-natal)
Informação da equipa e verificação do
equipamento

Nascimento

Secar o bebé
Manter a temperatura
Ligar o cronómetro ou anotar a hora

Avaliar (tónus), respiração e frequência


cardíaca

Se respiração agónica ou não respira:


Permeabilização da via aérea
5 insuflações
Considerar monitorização SpO2 ± ECG

Reavaliar
Se a FC não aumenta 60 s
verificar expansão torácica
Manter temperatura

Durante
Se o tórax não expande: SpO2 pré-ductal todo o
Verificar posição da cabeça aceitável
tempo
Ponderar controlo da via aérea c/ 2 pes- 2 min 60 %
soas e outras manobras 3 min 70 % avaliar:
Repetir insuflações 4 min 80 % “Preciso
Monitorização SpO2 ± ECG 5 min 85 % de
Avaliar se há resposta 10 min 90 %
ajuda?”

Se a FC não aumenta
verificar expansão torácica

Quando há expansão torácica:


Se FC não detectável
ou muito baixa (< 60 min-1)
(Orientado por oximetria)

Iniciar compressões torácicas


Aumentar oxigénio

Coordenar compressões com ventilação


(3:1)

Reavaliar FC a cada 30 seg


Se FC não detectável
ou muito baixa (< 60 min-1)
Considerar acesso vascular e fármacos

Discutir/comunicar com pais e equipa

www.erc.edu | info@erc.edu
© European Ressuscitation Council
Publicado em - www.erc.edu
Outubro 2015 - 2017_NGL_008
pelo European Resuscitation Council vzw, Emile Vanderveldelaan 35, 2845 Niel, Belgium
Copyright: © European Resuscitation Council vzw Referência de produto: Poster_NLS_Algorithm_PRT_20150930

Figura 10. Algoritmo para reanimação neonatal. SpO2 - Saturação periférica de oxigénio; ECG - Eletrocardiograma; FC - Frequência cardíaca.
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 139

superior a 60 cpm) - aumento da frequência res- taquipneia transitória do RN (atraso na clea-


piratória que é acionada para melhorar o volume rance do LPF que regride habitualmente entre
minuto e eliminar o excesso de dióxido de carbo- as 12 e as 24 horas (a utilização de CPAP nasal
no - CO2; adejo nasal (batimento, com abertura pode auxiliar na clearance); nos síndromes de
das asas do nariz, desencadeado para diminuir aspiração (sangue ou mecónio - pneumonite;
a resistência à entrada do ar e melhorar o fluxo pode ser necessário entubação e ventilação);
nasal); tiragem supraesternal, intercostal ou sub- pneumonia congénita (Streptococcus do gru-
costal (traduz-se em retrações supraesternais, po B ou Escherichia coli); ou pneumotórax (o
intercostais ou subcostais como consequência do espontâneo ocorre em 1% de todos os par-
uso de músculos acessórios quando é necessário tos, o risco aumenta nos casos submetidos a
gerar maior pressão negativa intra-torácica para ventilação com pressão positiva), o murmúrio
insuflar os alvéolos); gemido, pode ser normal se vesicular pode estar reduzido no hemitórax afe-
isolado na primeira hora de vida, mas o gemido tado e à inspeção deteta-se menor amplitude
expiratório contínuo traduz a necessidade de na expansão torácica (o tratamento passa pela
encerramento precoce da glote durante a expi- administração suplementar de O2 e raramente
ração para evitar o colapso total dos alvéolos no é necessário drenagem). Qualquer que seja a
final da expiração, melhorar o volume residual e causa, o tratamento do SDR passa pela adminis-
facilitar a oxigenação; e cianose central que sur- tração suplementar de O2 idealmente aquecido e
ge quando os mecanismos de compensação da humidificado e através de misturador de forma
função respiratória se esgotam. Ocorre quando a obter SpO2 entre 92 a 96%. Na maioria dos
a hemoglobina (Hb) reduzida ultrapassa os 5%. casos a radiografia torácica, o hemograma, a
Habitualmente o RN tem uma coloração rosada. proteína C reativa e a determinação da glicémia
A acrocianose (mãos, pés e perioral) tam- orientados pela história clínica e exame objetivo
bém é normal nos primeiros dias (frio). A cianose são suficientes para determinar o diagnóstico.
central, observada na língua e mucosa da boca Se houver suspeita de infeção deve-se realizar
sugere hipoxémia e pode ter origem respiratória hemocultura e iniciar antibióticos empiricamen-
ou cardíaca. Na cardíaca não há melhoria com a te, de imediato (ampicilina e gentamicina).
administração de oxigénio em alta concentração
ao contrário da respiratória. Hipoglicémia
O SDR pode ocorrer por causas pulmo- São considerados critérios de hipoglicemia:
nares, cardiovasculares (obstrução ao trato de concentrações de glicose inferiores a 40 mg/dL
saída do ventrículo esquerdo e cardiopatias do nascimento até às quatro horas de vida e
congénitas cianóticas) ou outras (hipotermia, inferior a 45 mg/dL das quatro até às 24 horas
hipoglicémia, sépsis, asfixia). Estas múltiplas de vida. Os RN com maior risco são os filhos de
causas podem ser diferenciadas pela história mães diabéticas, os GIG, os LIG e os prematu-
clínica e pelo exame físico. As patologias pul- ros. A hipoglicémia pode ser assintomática ou
monares mais frequentes no RN de termo são: manifestar-se de forma subtil ou inespecífica
140 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

com letargia, irritabilidade, tremor, dificuldades 9.3 NEONATOLOGIA: CUIDADOS ANTES


alimentares ou apneia e convulsões. A terapêu- E DEPOIS DA ALTA DO RECÉM-NASCIDO
tica passa pela administração de glicose enteral
ou intravenosa de acordo com o nível de glicé- 9.3.1 Estadia na maternidade
mia e os sintomas. Se o RN está assintomático,
alerta e vigoroso a alimentação precoce deve Mais de 90% dos RN após avaliação na sala
ser suficiente para reverter a hipoglicémia. No de partos (lição anterior) tem condições para ini-
entanto estes RN devem ter monitorização fre- ciar a primeira amamentação e permanecer junto
quente da glicémia. Se estiverem sintomáticos ou da mãe. Inicia-se então um processo que visa
com valores muito baixos, inferiores a 30 mg/dL promover a vinculação precoce mãe-filho.
deve-se administrar glicose intravenosa: bólus de A estadia na maternidade é um momen-
glicose a 10% (2 mL/kg) seguida de perfusão a to privilegiado para avaliar e confirmar a es-
um ritmo de administração de glicose de cerca tabilidade fisiológica do RN, detetar eventuais
de 6 mg/kg/minuto - 3,6 mL/kg/h, continuando a malformações (exame objetivo), elucidar acerca
monitorizar a glicemia regularmente e ajustando das variantes do normal, identificar eventuais
a perfusão. problemas (rastreios), informar e confirmar que
a mãe está suficientemente competente, recu-
Leitura complementar perada e capaz de cuidar de si e do seu bebé
Jonathan Wyllie et al. European Resuscitation Council e que a família e o ambiente têm condições
Guidelines for Resuscitation 2015 Section 7. Resuscitation para assegurar a continuidade de cuidados sem
and support of transition of babies at birth. Resuscitation eventuais fatores de risco.
2015 (95): 249-263.
William JR, Myron Levin, Robin Deterding, Mark Abzug. 9.3.2 Promover o aleitamento materno
Current Diagnosis and Treatment. Pediatrics. 22 Edition.
nd

United States of America: McGraw-Hill education; 2014. O aleitamento materno é recomendado por
The Newborn infant - chapter 2. causa dos benefícios tanto para o bebé como
http://www.uptodate.com/pt/home/uptodate para a mãe, exceto quando medicamente contra-
Overview of the routine management of the healthy new- -indicado, como em filhos de mães com infeção
born infant por vírus da imunodeficiência humana (HIV) ou
http://www.uptodate.com/pt/home/uptodate em alguns casos de abuso de drogas.
Physiologic transition from intrauterine to extrauterine life Todos os hospitais devem cumprir as
Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais, Hospital de São orientações principais sugeridas em 1990 pela
Francisco Xavier. Neonatologia, Manual Prático. 1º Edição. UNICEF/OMS na Declaração de Innocenti para
Lisboa: Saninter; 2012. promover o sucesso do aleitamento materno,
tais como: ter uma norma escrita sobre alei-
tamento materno transmitida regularmente a
toda a equipa; treinar e motivar a equipa para
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 141

implementar esta norma, informar as mães so- aumento da produção de bilirrubina (aumento
bre as vantagens da amamentação, ensinar a do número e diminuição da semi-vida dos eri-
reconhecer os sinais de fome e de saciedade e trócitos); diminuição da depuração da bilirrubi-
treinar a técnica de amamentação; promover na (imaturidade enzimática - ao sétimo dia de
a vinculação mãe-filho, o contacto pele com vida a atividade da glucoruniltransferase uridino
pele na sala de parto e criar condições para o difosfoglucorunato-UGT é 1% da do adulto); e
início da amamentação na primeira hora de vida; pelo aumento da circulação entero-hepática.
garantir a amamentação em horário livre, a pe- A icterícia fisiológica só surge depois
dido, tendo em atenção que em média mamam das 24 horas e deverá estar resolvida até às
entre oito a 12 vezes por dia; devem mamar só duas semanas de vida. A icterícia com início mais
quando pedem mas a duração entre as refeições precoce (primeiro dia de vida) ou para além das
não deve exceder as quatro horas; a duração duas semanas exige avaliação, e até que se prove
total da mamada é variável (10 a 30 minutos); o contrário não é fisiológica. Na icterícia fisioló-
tentar esvaziar uma mama e oferecer sempre a gica não há incompatibilidade de grupo sanguí-
segunda (o bebé pode aceitar ou não); iniciar a neo ABO nem do fator Rh; está sob aleitamento
amamentação de um modo alternado entre a materno exclusivo; as fezes são coradas; a urina
mama direita e a esquerda independentemente tem coloração normal; não há sinais de doença;
se o bebé mamou de uma mama ou das duas; a progressão ponderal é normal e os níveis de BT
evitar a introdução de mamilos artificiais e da sérica estão abaixo do P 95 do normograma em
chupeta até que o processo de lactação esteja horas de Bhutani (Figura 11).
bem estabelecido (ver lição de alimentação e Crianças com BT ≥P 95 ou suspeita de doença
suplementos). hemolítica exigem um doseamento posterior de
BT e uma avaliação dirigida para determinar a
9.3.3 Icterícia: evitar a hiperbilirrubinémia etiologia da icterícia que já não é considerada
fisiológica.
Quase todos os RN atingem níveis de bi- A icterícia do leite materno tem sido
lirrubina total (BT) >1 mg/dL (17 micromol/L) e tradicionalmente definida como a persistência
mais de metade desenvolve icterícia fisiológica, de «icterícia fisiológica» para além da primeira
coloração amarela da pele, visível com valores de semana de idade. Inicia-se geralmente após os
BT superiores a 5 mg/dL (85 micromol/L). primeiros três a cinco dias de vida, sobrepondo-
A bilirrubina resulta do catabolismo das -se com a fisiológica (nos casos em que esta co-
proteínas do heme. A bilirrubina não conjuga- -exista); atinge um pico sérico de BT dentro de
da, circula na sua maioria ligada à albumina até duas semanas após o nascimento e mantém-se
ser captada pelo hepatócito para ser conjugada até às três a 12 semanas de vida. A causa prin-
e depois excretada. A icterícia neonatal fisio- cipal parece ser devida a um excesso de Beta-
lógica é causada por alterações neonatais nor- glucoronidase responsável pela desconjugação
mais no metabolismo da bilirrubina incluindo: o da bilirrubina direta o que facilita a reabsorção,
142 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

e a ausência de enzimas bacterianas no intes- deste tipo de patologias. A confirmação da ic-


tino que reduzem a bilirrubina conjugada para terícia do leite materno, por ser fisiológica não
estercobilinogéneo o que facilita a excreção. A requer a sua suspensão.
consequência é o aumento da circulação entero- A hiperbilirrubinemia significativa é de-
-hepática da bilirrubina intestinal com subse- finida como bilirrubina total sérica superior ao P 95
quente aumento da bilirrubina sérica, sobretudo do normograma em horas de Bhutani. Estima-se
da sua fração não conjugada. A icterícia do que ocorra em 8 a 11% dos RN e 2 a 5% destes
leite materno (pelos mecanismos fisiológicos necessita de readmissão hospitalar. É causada
já explicados associados à própria constituição pela acentuação dos mecanismos fisiológicos pro-
do leite materno) deve ser distinguida da icterí- motores de icterícia neonatal; ou por condições
cia da amamentação, que é caraterizada pela patológicas que aumentam a produção de bilir-
exacerbação da icterícia fisiológica na primeira rubina (doença hemolítica por incompatibilidade
semana de vida, aumentando o risco de hiper- ABO ou Rh, defeitos congénitos da membrana e
bilirrubinémia. Aqui o principal fator explicativo enzimáticos dos eritrócitos, policitémia, cefalohe-
é o processo de amamentação estar a ser mal matomas, sépsis, entre outras), ou que diminuem
sucedido, tornando-se a ingesta de leite insu- a sua depuração (defeitos hereditários em UGT,
ficiente, em vez de um efeito direto do próprio como os tipos de síndrome de Crigler-Najjar I e
leite materno. A ingestão insuficiente de leite que II, síndrome de Gilbert, a situação mais frequente
motiva perda de peso significativa, hipovolémia, de deficiente conjugação, distúrbios hereditários
hipernatrémia e diminuição do trânsito intestinal, do metabolismo - tais como galactosemia, hipo-
consequentemente aumenta a circulação entero- tiroidismo congénito, filhos de mães diabéticas
-hepática da bilirrubina intestinal, sendo estes e obstrução das vias biliares), ou que aumentam
os principais mecanismos invocados na base da a circulação entero-hepática da bilirrubina (icte-
icterícia da amamentação. rícia do leite materno, icterícia da amamentação
Icterícia prolongada é a que se mantém e diminuição da motilidade intestinal causada por
para além dos 14 dias de vida. A causa mais fre- obstrução funcional ou anatómica).
quente é a icterícia do leite materno, mas exige-se A hiperbilirrubinemia grave definida
a exclusão de causas patológicas (sempre muito por um nível de BT superior a 25 mg/dL (428
graves) com particular destaque para a infeção, micromol/L), coloca o RN em risco de desenvolver
doenças hereditárias do metabolismo, doenças disfunção neurológica induzida pela passagem da
hemolíticas, hipotiroidismo e atrésia das vias bi- bilirrubina não conjugada através da barreira
liares extra-hepáticas. É fundamental confirmar hemato-encefálica. Se não for tratada adequa-
a realização e resultado do “teste do pezinho”, a damente pode levar a sequelas neurológicas a
ausência de fezes acólicas, a cor normal de urina, longo prazo tais como paralisia cerebral coreo-
o aleitamento materno exclusivo, a ausência de -atetóide, surdez neurosensorial e anomalias dos
sinais de doença, a boa progressão ponderal e a movimentos oculares, situação clinica designada
inexistência de antecedentes familiares sugestivos por Kernicterus.
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 143

Figura 11: Nomograma de Bhutani dos valores da bilirrubina total sérica (Micromol/L)
em horas em RN saudáveis de termo ou próximo do termo.

São fatores de risco para hiperbilir- Fatores de risco para neurotoxicidade


rubinémia grave, níveis de bilirrubina trans- da hiperbilirrubinémia: doença hemolítica (in-
cutânea (BTtc) ou BT na zona de alto risco no compatibilidade Rh, défice em  glicose-6-fosfato
normograma em horas de Buthani; icterícia que desidrogenase - DG6PD); asfixia, SDR, hipoxia;
surge nas primeiras 24 horas; incompatibili- sépsis; acidose; albuminémia inferior a 3 g/dL;
dade sanguínea com teste de Coombs direto instabilidade térmica e convulsões.
positivo ou outra doença hemolítica conhecida; O pico médio de BT sérica no RN de termo
idade gestacional inferior a 37 semanas; história ocorre entre as 48 às 96 horas de idade e é de
prévia de irmão com icterícia e necessidade de 7 a 9 mg/dL (120 a 154 micromol/L), podendo
fototerapia; cefalohematoma ou equimoses sig- ser diferido e ou mais elevado em asiáticos e
nificativas; aleitamento materno exclusivo sem prematuros de 35 a 37 semanas de IG. O P 95
sucesso, com perda de peso excessivo (>10% dos níveis de BT nestas idades e a necessidade
do peso de nascimento); filho de mãe diabética de fototerapia varia entre 13 a 18 mg/dL (222 a
com macrossomia; idade materna >25 anos; 308 micromol/L). Com altas da maternidade cada
sexo masculino. vez mais precoces, o pico da icterícia fisiológica
O Risco é reduzido se a BTtc ou BT estiver ocorre com frequência já no domicílio.
na zona de baixo risco no normograma em horas Para evitar as readmissões hospitalares, o
de Buthani; se a IG ≥41 semanas; alimentação rastreio da hiperbilirrubinemia deve ser feito antes
com leite de fórmula; raça negra; alta hospitalar da alta a todos os RN, através da avaliação dos
após as 72 horas de vida. fatores de risco, do doseamento da bilirrubina ou
144 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

a combinação de ambos. O objetivo é identificar para tratamento e para controlo dos RN em


os RN em risco, prevenir e, ou tratar a hiperbilir- tratamento.
rubinémia e evitar a hiperbilirrubinémia grave. A Avaliação laboratorial preconizada, para
fototerapia, a exsanguíneo transfusão e adminis- além da BT sérica e conjugada, consoante a clíni-
tração de imunoglobulina à mãe (nos casos de ca e para definir caso a caso pode ser efetuado
incompatibilidade Rh) são os meios terapêuticos hemograma e esfregaço de sangue periférico;
mais eficazes. grupo sanguíneo e teste de Coombs (atenção à
Para concretizar estes objetivos, durante o imunoglobolina anti-D materna); hemocultura,
internamento, a icterícia deve ser monitorizada cultura de urina e do liquor cefalorraquideo se
por rotina, em todos os RN, com intervalos de oito suspeita de infeção; rastreio de doenças heredi-
a 12 horas, os fatores de risco devem ser rastrea- tárias do metabolismo; e níveis de G6PD.
dos e quando necessário efetuar o doseamento No momento da alta é importante confirmar
da BT para avaliar a necessidade de fototerapia. se há fatores de risco, assegurar o sucesso da ama-
O RN deve ser observado despido sob luz mentação, informar os pais sobre a progressão
natural e com atenção especial às escleróticas, da icterícia, assegurar a vigilância e programar o
gengivas e pele. A progressão da icterícia faz-se seguimento 48 a 72 horas após a alta.
na direção céfalo-caudal. Surge inicialmente nas
escleróticas, rosto, tronco e por fim estende-se 9.3.4 Exame físico do RN
aos membros. É possível fazer uma correlação
aproximada entre a extensão da icterícia e o nível Todos os RN deverão efetuar um exame físico
sérico da BT (figura 12). Se a coloração ictérica completo cerca de 24 horas depois do nascimento
ultrapassar o umbigo ou atingir as extremidades e/ ou antes da alta, para se confirmar a estabilida-
é provável que o RN necessite de fototerapia. de fisiológica, identificar eventuais malformações
Na dúvida e para confirmação da gravidade da minor ou variantes do normal, elucidar as dúvidas
hiperbilirrubinémia é indispensável o doseamento dos pais e agir sobre eventuais malformações ou
da BT pelo método transcutâneo (figura 13) e/ou problemas identificados (rastreios).
por doseamento sérico (figura 11). O consentimento dos pais é necessário e a
presença de ambos durante a observação é de-
Recomendação para o doseamento da sejável para uma revisão abrangente da história
bilirrubina, se disponível, deve ser usado um materna e perinatal, assegurar a saúde da mãe
bilirrubinómetro transcutâneo em RN com IG e fornecer-lhes a informação indispensável para
superior a 35 semanas e com idade pós-natal compreenderem e satisfazerem as necessidades
superior a 24 horas. Deve ser efetuado o do- do filho/a.
seamento sérico se a BTtc for >15 mg/dL; se a O local deve ser confortável, com tempera-
icterícia surgir nas primeiras 24 horas de idade; tura adequada, bem iluminado, silencioso, com
se a IG for <35 semanas; se os níveis de BT garantia de higiene, segurança e privacidade se
forem iguais ou superiores aos aconselhados for necessária informação confidencial.
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 145

Figura 12.Método de Kramer para deteção da Figura 13. Bilirrubina cutânea-BT(tc) nas primeiras 96 horas.
hiperbilirrubinémia neonatal. Adaptado de: MAISELS et al. Adaptado de: Maisels MJ, Kring E. Transcutaneous bilirubin in
The Natural History of Jaundice in Predominantly Breastfed the first 96 hours in a normal newborn population of > or =
Infants. Pediatrics 2014;134:e340–e345 35 weeks’ gestation. Pediatrics 2006; 117: 1169-1173.

A competência do profissional de saúde está com os membros predominantemente em


é exigida para executar este exame que requer flexão, com atividade motora espontânea, late-
método adequado, senso clínico, rigor, oportu- ralizando a cabeça, mobilizando os membros em
nismo, habilidade técnica e uma avaliação global flexão e extensão alternadamente mas sempre
sequencial. de um modo simétrico. Qualquer assimetria
O exame deve iniciar-se pela inspeção, po- deve ser considerada patológica. Em decúbito
tenciando-a ao máximo, antes de o manipular e dorsal tem os braços e coxas semi fletidas, com
começar a despir. Segue-se a auscultação com a cabeça virada para um dos lados. Em decúbito
delicadeza, com a membrana do estetoscópio ventral tem as pernas mais fletidas e coxas coloca-
aquecida e enquanto está em silêncio. Só depois das sob o abdómen. Em suspensão ventral apre-
se executa a palpação e a percussão com as mãos senta postura em semiflexão, podendo a cabeça
bem lavadas e aquecidas. O exame acabará com ficar intermitentemente alinhada com o tronco.
o RN completamente despido e com as manobras A inspeção deve continuar com a observação das
mais agressivas, que podem ser efetuadas mesmo partes expostas do bebé: couro cabeludo; cabeça
com a criança a chorar, e.g. manobra de Ortolani. (incluindo fontanelas); simetria; orelhas; exclusão
Na inspeção, a fase mais demorada e mais de plagiocefalia postural, eventuais dismorfismos
informativa do exame, observa-se o estado ge- da face e sinais de traumatismo do parto; nariz;
ral, a cor da pele, alterações cutâneas, a res- boca incluindo o palato; olhos (tamanho, posi-
piração, os sinais de dificuldade respiratória, o ção, simetria), incluindo o teste para o «reflexo
comportamento, a atividade motora e a postura vermelho” com o oftalmoscópio.
(a postura do RN em repouso geralmente reflete Segue-se a auscultação com o RN ainda em
a posição intra-uterina). Um RN de termo normal, silêncio, antes de despir e manipular, auscultam-se
146 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

os campos pulmonares e o esperado será ouvir mur- Os sopros associados com cardiopatias têm ha-
múrio vesicular simétrico. Sons respiratórios anor- bitualmente uma intensidade superior ao grau
mais e assimetrias são raros na ausência de sinais de III, segundo tom anormal, frequentemente são
SDR. Em bebés com doença respiratória, o gemido pansistólicos, audíveis no bordo esquerdo do es-
às vezes é audível somente com o estetoscópio. terno, com alteração dos pulsos femorais e com
A auscultação cardíaca é efetuada em simultâ- sinais clínicos associados (cianose central ou sinais
neo, em todas as áreas do precórdio, bem como no de insuficiência cardíaca como taquipneia, taqui-
dorso e nas axilas. Avalia-se a frequência, o ritmo, o cardia, cansaço na mamada e hepatomegália).
primeiro e segundo tons cardiacos e a presença de É importante reconhecer as características e
eventual sopro. A frequência cardíaca é, normalmen- funcionalidades dos sopros funcionais: são sopros
te entre 120 a 160 bpm, mas pode diminuir para 85 com intensidade de grau II ou inferior, localizados
a 90 em alguns bebés nascidos de termo durante no bordo esternal esquerdo, com segundo tom
o sono. Os tons cardíacos são ouvidos melhor ao normal, sem cliques audíveis; os pulsos são nor-
longo do bordo esternal esquerdo. O predomínio mais e não há outras alterações clinicas.
dos tons cardiacos à direita sugere dextrocardia e Os pulsos femorais devem ser palpados ain-
exige a exclusão de hérnia diafragmática à esquerda. da com o RN calmo. Quando estão diminuídos
O primeiro tom é causado pelo encerramento quase podem indicar coartação da aorta. Se os pulsos
simultâneo das válvulas tricúspida e mitral e é melhor femorais forem anormais, devem ser igualmente
audível no ápice. O segundo tom é mais audível no avaliados os pulsos braquiais, radiais e pediosos.
bordo esternal superior esquerdo e é causada pelo Ao despir gradualmente, examina-se o pes-
encerramento das válvulas pulmonares e da aorta. coço, verifica-se a mobilidade e postura, exclui-se
É normalmente desdobrado. a existência de torcicolo, palpam-se as clavículas,
Os sopros cardíacos podem ser sistólicos, observam-se os membros, mãos, pés e dedos,
diastólicos, sisto-diastólicos, a intensidade é gra- avaliando proporções e simetria; observa-se o
duada numa escala de I a VI e podem auscultar-se abdómen, a cor, a forma, a distensão, percute-se
apenas num dos quatro focos. para distinguir macicez de timpanismo e palpa-se
Nos primeiros dias após o nascimento, a para identificar eventual/ais organomegália/s, dor
maioria dos recém-nascidos tem sopros habitual- ou defesa e avalia-se o cordão umbilical.
mente transitórios e benignos. Nas primeiras 24 Observam-se os genitais, o meato uretral,
horas a persistência do canal arterial (PCA) é a a presença dos testículos nas bolsas escrotais no
causa mais frequente de sopros; se persiste para rapaz e a permeabilidade do hímen na rapariga
além de 24 horas a estenose do tronco pulmonar e confirma-se a permeabilidade do ânus.
é mais provável, quando a maioria dos canais Observa-se o dorso, as estruturas ósseas e
arteriais foi encerrada. O murmúrio de PCA é pele da coluna e rastreia-se eventual disrafismo
contínuo, geralmente mais audível sob a clavícula espinhal oculto.
esquerda (segundo espaço intercostal), mas pode Já totalmente despido observa-se a cor e
irradiar para baixo no bordo esternal esquerdo. a textura da pele, pesquisam-se as marcas de
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 147

Figura 14: Técnicas das manobras de Ortolani e Barlow.

nascença, erupções e as múltiplas variantes do O RN deve ser pesado, medido o compri-


normal (ver lição Problemas dermatológicos mais mento e avaliado o perímetro cefálico. A relação
comuns em pediatria), quadro 2. entre o peso e o comprimento deve ser analisada
e avaliada em relação à IG e classificada em LIG
Eritema tóxico (simétricos ou assimétricos), AIG ou GIG para an-
Cefalohematoma tecipar eventuais riscos, abordados anteriormente.
Bossa serossanguínea De salientar que a perda de peso é normal
Angiomas planos (fisiológica - perda de excesso de água no espaço
Pérolas Epstein extracelular) após o parto. É tolerável que se perca
Hemorragia genital até 7% do peso de nascimento (PN). Uma perda
Hidrocelo superior requer atenção médica e deve ser avaliada,
Hérnia umbilical tendo particular atenção ao regime alimentar. Pode
Fibromas pré auriculares ser necessário assistir a uma mamada, para averi-
Mamilos supranumerários guar o método, corrigir posicionamento, avaliar a
interação mãe-bebé e ajudar a reduzir a ansiedade,
Quadro 2: Variantes do normal. se for o caso. Nos RN normais a perda de peso
cessa pelo quinto dia, recuperando habitualmente
o PN pelos 10 a 14 dias de vida.
Para completar o exame neurológico mais De notar que no boletim de saúde infantil e
detalhado, observa-se o choro, o comportamento, juvenil (BSIJ) devem ser registados o PN, o peso
os movimentos, a postura, avalia-se o tónus axial mínimo e o da saída da maternidade.
e dos membros e os reflexos arcaicos ou primi- A observação termina com o exame dos
tivos exclusivos do RN: Moro, marcha automáti- membros, confirmando que há simetria no tama-
ca, preensão palmo-plantar e tónico assimétrico nho e nas pregas cutâneas e com as manobras de
cervical, para apenas assinalar os mais correntes. Ortolani e Barlow para rastrear sinais de instabili-
Um reflexo de Moro assimétrico pode evocar dade e de displasia do desenvolvimento da anca
fratura da clavícula, fratura do úmero ou le- (ver aula de Ortopedia, variantes da normalidade
são do plexo braquial. e problemas frequentes), figura 14.
148 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

Manobra de Ortolani Manobra Situações a rastrear


Bebé com posição em decúbito dorsal. Reflexo de Moro Fratura clavícula, Paralisia
assimétrico do plexo Braquial
Joelhos fletidos a 90 graus na altura da bacia.
Reflexo vermelho Catarata, Retinoblastoma
Segurar pelve com uma mão para estabilizá-la pupilar
durante a manipulação. Otoemissões Surdez
Dedo médio sobre o grande trocânter do acústicas
Auscultação Cardiopatias congénitas
fêmur e o polegar no lado interno da coxa sobre o
cardíaca/ SpO2
pequeno trocânter. Fazer abdução da coxa, puxar Tons cardíacos Hérnia diafragmática
o fémur para a frente e pressionar suavemente o à direita congénita
grande trocânter na direção do acetábulo. Pulsos femorais Coartação da aorta
ausentes
Um som “clunk” é sinal de um Ortolani
Inspeção pés Pé boto
positivo e isso acontece quando a cabeça fe- Inspeção do dorso Disrafismo espinhal
moral que estava luxada reentra no acetábulo Testículos fora Criptorquidia
(redução). das bolsas
Manobra de Displasia do
Ortolani e Barlow desenvolvimento da anca
Manobra de Barlow Inspeção do ânus Atrésia anal
Com os dedos na mesma posição, fazer len-
tamente a adução da coxa em direção da linha Quadro 3: Situações clínicas a rastrear antes da alta
do RN e respetivas manobras.
média, pressionando-a para trás e para baixo.
Normalmente, a articulação é estável. A sensação
da cabeça femoral escorregar para fora é sinal recomendada. Em caso de situações raras desco-
de um Barlow positivo (promoveu-se a luxação nhecidas não angustiar e evitar informação impre-
da cabeça do fémur em avaliação). cisa. Um Neonatologista ou médico de eleição é o
O exame objectivo antes da alta deve con- que reconhece e resolve o frequente e o urgente,
templar Rastreios obrigatórios que permitem resolve o emergente e sabe pedir ajuda para o
identificar as situações clinícas referenciadas no que não sabe.
quadro 3.
9.3.5 Informação aos pais
Face à expectativa de saber se o filho é nor-
mal, os pais devem ser informados e esclarecidos Não basta atestar a normalidade do RN e o
à medida que o exame vai progredindo. Temos sucesso da amamentação. É fundamental apro-
que prevenir a ansiedade relativamente a múl- veitar a estadia na Maternidade para avaliar as
tiplas variantes do normal e situações transitó- capacidades e melhorar a competência dos pais/
rias, normais (quadro 2). Se qualquer anomalia é família. É necessário informar acerca das neces-
encontrada no exame deve ser comunicada aos sidades e competências do RN, das regras de
pais com sensibilidade, delicadeza, rigor e sem- segurança e identificar e afastar o RN de eventuais
pre disponibilizando o tratamento e a orientação situações adversas graves.
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 149

Competências e necessidades 9.3.6 Identificar fatores de risco


do recém-nascido para stresse tóxico
Conhecer as competências e necessidades
do RN é fundamental para potenciar a relação A investigação evidencia que as crianças
mãe/pais/família e o filho. Desde o nascimen- expostas a situações adversas significativas e
to o RN tem potencial para formar 1000 000 prolongadas (stresse tóxico) sem a proteção
novas conexões neuronais por segundo. Esta afetuosa dos progenitores prejudicam o neuro-
sinaptogénese está dependente da relação entre desenvolvimento, sobretudo nos primeiros três
a expressão dos genes e a qualidade das expe- anos de vida, mas que se pode perpetuar. Tal
riências relacionais e interação com os adultos «stresse tóxico» nos primeiros anos altera o de-
mais próximos (meio ambiente). As vias senso- senvolvimento de arquitetura do cérebro, nomea-
riais desempenham aqui um papel fundamental damente do cortex prefrontal e do hipocampo e
pela qualidade do imput aferente. A linguagem outros sistemas biológicos de maturação, áreas
desenvolve-se desde o nascimento. O RN vê a responsáveis pela aprendizagem, ajuste compor-
uma distância de 40 cm e ouve. Comunica atra- tamental, sucesso profissional e saúde emocional.
vés da mímica facial e do choro para expressar O risco aumentado de também virem a desenvol-
a satisfação ou insatisfação. Chora porque cicli- ver diabetes, doença cardíaca, depressão, abuso
camente sente necessidade de dormir (20 horas de substâncias e outras alterações, compromete
por dia nos primeiros dias), de se alimentar (cerca o seu futuro acarretando enormes custos para os
de três em três horas nos primeiros dias), de ver indivíduos e para a sociedade.
e ouvir a mãe/família, feliz, calma, tranquila, Na verdade, os factores de risco responsáveis
serena, segura e informada (quando não tem por estas alterações estruturais são conhecidos,
fome nem sono). Depois da alta da maternidade, potencialmente identificáveis e passíveis de pre-
a mãe deve dar mama sempre que o bebé tiver venção. De entre eles contam-se: a depressão pós
fome. Não se deve interromper o sono para dar parto, a pobreza extrema, o abuso de substâncias
mama nem colocar a dormir o bebé que quer ilícitas e a doença mental do cuidador, os maus
“conversar” ou mamar. Nos primeiros dias de tratos e a negligência, as mães solteiras e a bai-
vida até se provar o contrário o choro é provo- xa escolaridade materna como tendo associação
cado por falta de mama, cama ou mamã calma positiva mais significativa no stresse tóxico. De
e segura. Confirmar o aumento de peso nesta acrescentar ainda o efeito cumulativo adverso
fase é fundamental para garantir que a causa destes eventos.
do choro não é fome, nem doença e que nestas Um plano de intervenção atempado pode
condições um sono mais prolongado especial- evitar as consequências desta adversidade.
mente de noite é reparador para o bebé. Intervenções tardias tendem a ser ineficazes.
Nunca se deve assumir que a causa do cho- Demonstrou-se que crianças submetidas a ne-
ro “são cólicas” sem confirmar que o bebé é gligência extrema mas adotadas antes dos dois
saudável. anos, aumentaram o seu potencial intelectual, a
150 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

atividade cerebral e normalizaram o relacionamen- o que assegura o cumprimento dos requisitos de


to comparativamente às adotadas depois desta segurança de acordo com os regulamentos em
idade. Embora não exista uma «idade mágica» vigor. O número de homologação começa por 03
para intervir, é claro que, na maioria dos casos, ou 04 (se R44/03 ou R44/04) ou 00 (se R129). A
atuar o mais cedo possível é significativamente etiqueta indica ainda o tipo de cadeira (Universal,
mais eficaz do que esperar. Semiuniversal ou Especifica) e o intervalo de pesos
É pois um dever de cidadania identificar es- (se homologada pelo R44) ou estatura (se homo-
tes problemas na Maternidade, sinalizá-los para logada pelo R129) a que se destina. As cadeiras
os cuidados de saúde primários e antecipar a homologadas pelo R129 possuem exclusivamente
assistência a estas crianças/famílias nomeada- o sistema Isofix para fixação ao automóvel. A alco-
mente através de visitas domiciliárias e ações de fa só está indicada em situações especiais (RN com
promoção das competências parentais. hipotonia grave, problemas respiratórios quando
se encontra em posição semi-sentada, cirurgia
9.3.7 Recomendações sobre recente à coluna ou aparelhos que impeçam a
medidas de segurança colocação de cinto na cadeira), devendo optar-se
sempre que possível pela cadeira homologada até
Transporte de automóvel aos 13 kg ou 75 cm, na qual o bebé viaja numa
Os RN e as crianças têm de ser sempre trans- posição semi-sentada.
portados num dispositivo de retenção homolo- No caso de ser necessário, a alcofa deve ser
gado, de acordo com o regulamento 44 ECE/UN, rígida, ter arnês para reter o bebé e ser homolo-
versão 03 ou 04, ou o regulamento 129 ECE/UN, gada para o transporte de crianças no automóvel
versão 0, e adequado à idade, estatura e peso, de acordo com os regulamentos R44 ou R129. A
de modo a proporcionar as condições necessárias criança deverá ser colocada na alcofa com a cabe-
a uma viagem de automóvel segura. ça para o interior do veículo, em decúbito dorsal.

Transporte do recém-nascido Transporte de recém-nascidos prematuros


O RN deve viajar de carro numa cadeira A cadeira deve ser experimentada ainda na
adequada ao seu peso ou comprimento/estatu- Maternidade e deverá ser encontrado o plano
ra (homologada até aos 13 kg, se R44 ou até de inclinação ideal para cada criança (na maioria
aos 75 cm, se R129), voltada para trás, colocada dos casos, de 45 graus); colocar alguns apoios na
com o encosto num ângulo de 45 graus. Esta cabeça e laterais e uma ou duas fraldas de pano
pode ser instalada com o cinto de segurança ou enroladas entre as pernas da criança. Não devem
através do sistema Isofix (sistema de fixação ao ser colocadas fraldas, almofadas ou cobertores
carro através de encaixe), caso o automóvel e a por baixo da criança, entre o corpo e a cadeira, já
cadeira o possuam. que estas podem criar folgas, para além de, em
O sistema de retenção para crianças deve pos- alguns casos, não permitirem que a criança viaje
suir a etiqueta “E” e o número de homologação, na posição correta (semi-sentada com as costas
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 151

bem apoiadas). As viagens longas devem ser de- mínima, pelo interior, de 60 cm e não devem ter
sencorajadas na criança prematura enquanto esta aberturas superiores a seis cm. O colchão deve
não tiver um bom controlo cefálico. ser firme e estar bem ajustado ao tamanho da
cama; iii) manter a cabeça do lactente sempre
Transporte da criança a partir dos 12 meses destapada, não usar almofadas, edredões, brin-
As crianças têm a cabeça grande e pesada quedos ou peças de roupa que possam cobrir o
relativamente à dimensão corporal, bem como lactente. A roupa da cama deve ficar ao nível do
uma fragilidade marcada da região cervical pelo tronco e presa debaixo do colchão; iv) dormir com
que devem viajar em sistemas de retenção virados os pés a tocar o fundo da cama (dispor a roupa
para trás até aos três ou quatro anos de idade de da cama de forma a não cobrir a cabeça); v) evitar
modo a evitar traumatismo craneo-encefálicos. É o sobreaquecimento - manter a temperatura do
preferível instalarem-se nos lugares de trás do auto- quarto entre os 18 e os 21ºC, a roupa da criança
móvel. Nesta idade, circular no lugar da frente está e da cama devem estar adequadas à estação do
proscrito sempre que houver airbag frontal ativo. ano e ao local; vi) não dormir na cama dos pais;
Depois dos quatro anos e quando pesam mais de 15 vii) evitar exposição tabágica. A exposição ao
kg, as crianças podem viajar viradas para a frente, fumo do tabaco aumenta o risco de SMSL; viii)
numa cadeira de apoio, ou num banco elevatório quando está acordado, o bebé pode ser colocado
com costas. Nestas cadeiras, o cinto de segurança noutras posições; brincar em decúbito ventral é
do automóvel, colocado como no adulto, prende aconselhado, fortalece os músculos do pescoço.
a criança em simultâneo com a cadeira.
9.3.9 Atuar em caso de engasgamento
As crianças devem ser transportadas, de uma
maneira geral, no banco de trás; os cintos internos Segurar o lactente numa posição de cabeça
(arnês) serem apertados e ajustados diariamente para baixo, no colo ou apoiado na coxa. A cabeça
para não ficarem folgados nem torcidos; a ca- do bebé é segura colocando o polegar da mão
deira deve ser fixa corretamente com o cinto de (do braço que segura a criança) no ângulo da
segurança do automóvel ou com o sistema Isofix. mandíbula e um ou dois dedos da mesma mão
no mesmo ponto do outro lado da mandíbula.
9.3.8 Prevenção da síndrome Aplicar com a mão livre até cinco pancadas secas
da Morte Súbita do Lactente (SMSL) nas costas, entre as omoplatas, no sentido de
aliviar a obstrução.
As recomendações para a prevenção da
SMSL são: i) dormir em decúbito dorsal; ii) não 9.3.10 Higiene
adormecer o bebé em superfícies moles (colchão
mole, sofás, cama de adultos, alcofas). O berço Banho
deve ser seguro, sólido e estável, sem arestas ou Não é necessário dar banho diário. Se o fi-
outras saliências. As grades devem ter uma altura zer por prazer mútuo, utilizar de preferência um
152 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

R A S T R E I O D E C A R D I O PAT I A CO N G É N I TA
P O R OX I M E T R I A D E P U L SO

Figura 15. Rastreio de Cardiopatia congénita por oximetria de pulso. Protocolo em uso na Maternidade Bissaya Barreto.
SpO2 - Saturação periférica de oxigénio.

gel suave com pH neutro e sem perfumes nem assepsia é garantida no corte e na manipulação do
aditivos. cordão umbilical, podem ser dispensados os antis-
séticos. Deve ser mantido limpo e seco (não cobrir
Cordão Umbilical com a fralda, não colocar compressas, não aplicar
O risco de infeção (onfalites) depende da quali- emolientes). Quando estiver sujo deve lavar-se com
dade da assistência ao parto e pós-natal. Quando a água e sabão, secar com compressa e expor ao “ar”.
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 153

Vigiar sinais de infeção e perante a pre- 9.3.12 Vacinas


sença de secreções purulentas, cheiro fétido e
rubor periumbilical, deve-se procurar observa- Antes da alta todos os RN com peso de
ção médica. nascimento igual ou superior a 2.000 g devem
Se existe um cenário de baixos recursos e ser vacinados, com vacina anti hepatite B e com
um risco aumentado de onfalites, a utilização de o BCG para os grupos de risco definidos pela
agentes anti-séticos como o álcool a 70º ou a Direção-Geral da Saúde (ver lição de vacinas);
solução de clorexidina são boas opções, uma vez exceto se contraindicado, e.g. mãe com VIH ou
que são baratos e reduzem a morbidade neonatal tuberculose ativa.
e a mortalidade.
9.3.13 Alta do recém-nascido
Pele
Os emolientes não são necessários na des- A alta dos RN é cada vez mais precoce. Este
camação fisiológica do RN. Devem ser usados facto responsabiliza as maternidades e exige cada
em casos de pele atópica e/ou muito seca ou vez mais rigor na avaliação dos critérios de alta,
se houver soluções de continuidade, devem que foram recentemente revistos pela AAP –
ser aplicados suavemente, de preferência após Committee on Fetus and Newborn e que são os
o banho e sempre com as mãos muito bem seguintes:
lavadas.
i) ter efetuado exame objetivo completo, na
9.3.11 Rastreios universais na Maternidade presença da mãe, em que se demonstrou
estabilidade fisiológica e ausência de malfor-
Todos os RN devem efetuar o rastreio da mações no bebé, assim como se procedeu
acuidade auditiva com otoemissões acústicas. à informação sobre as variantes do normal;
O rastreio de cardiopatia congénita canal ii) confirmar a estabilidade dos sinais vitais
dependente, através da avaliação da saturação pelo menos 12 horas antes da alta;
periférica de oxigénio deverá ser efetuado sem- iii) constatar micções normais e pelo menos
pre que possível (pessoal treinado e equipamen- uma dejeção espontânea nas primeiras
to), na figura 15 disponibiliza-se o protocolo da 24 horas;
Maternidade Bissaya Barreto – Coimbra. iv) observar o momento da amamentação e
confirmar que pelo menos duas refeições
O rastreio universal para doenças hereditá- foram bem sucedidas (com boa sução, boa
rias do metaboliso e o hipotiroidismo (teste do pega e corrigidos os posicionamentos);
pézinho – diagnóstico precoce) deve ser pro- v) ter efetuado o rastreio da acuidade audi-
gramado antes da alta mas só deve ser efetuar tiva com orientação dos casos duvidosos
entre o terceiro e o sexto dias de vida no Centro e o rastreio de cardiopatias congénitas
de Saúde. graves através da oximetria de pulso;
154 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

vi) ter confirmada a existência de icterícia, drogas; história de abuso ou negligên-


garantindo que é fisiológica e que a mãe cia por qualquer prestador dos cuidados;
recebeu informação sobre a evolução na- história de violência doméstica, em par-
tural e ou eventual agravamento; ticular durante a gravidez; falta de apoio
vii) ter excluído fatores de risco de sepsis e social, em especial para as mães; pobre-
confirmação da normalidade das análises za extrema; mãe adolescente, especial-
da mãe e ausência de infecções maternas mente se tiver outras condições listadas
tais como sifilis, hepatitis B e HIV; anteriormente; sem residência fixa; sem
viii) ter administrado a primeira dose da va- garantia de seguimento adequado para
cina contra a hepatite B e eventualmente o RN, como a falta de transporte para
a Imunoglobulina contra a hepatite B se os serviços de cuidados médicos, falta
a mãe tem o antígeno de superfície posi- de telefone; imigrantes.
tivo da hepatite B e a vacina BCG para as
populações definidas pela Direção-Geral Quando qualquer destes fatores de risco está
da Saúde como de risco; presente, a alta deve ser adiada até que sejam re-
ix) ter avaliado a competência da mãe para solvidos ou seja executado plano para salvaguardar
cuidar do filho e fornecida informação o RN e garantir e assegurar o seu seguimento.
sobre: importância e os benefícios do De saber ainda, que existe um documento
aleitamento materno; miccões e fre- oficial “A Notícia de nascimento” em que se
quência adequada de dejecções; cuida- inserem numa plataforma digital dados relativos
dos com o cordão umbilical, a pele e os à vigilância da gravidez, à qualidade do parto e
genitais; determinação da temperatura fundamentalmente se procede à sinalização e pro-
com o termómetro; sinais de doença gramação das intervenções nas situações de risco.
e problemas infantis comuns, particu- O registo destas situações na Notícia de nas-
larmente a icterícia; segurança infantil, cimento, efetuado na Maternidade antes da alta
posição de dormir e higiene das mãos é obrigatório e a sinalização para os cuidados de
como forma de prevenir a infeção; saúde primários é automática. Deste modo, antes
x) ter avaliado e garantido o suporte fami- da alta é possível identificar quem necessita de
liar e económico necessário para cuidar sinalização de vigilância especial e onde esta vai
do RN; ocorrer. Permite assim orientar visitas domiciliárias
xi) ter excluído fatores de risco familiar, atualmente contratualizadas com as Unidades de
ambientais e sociais tais como: doença Saúde nos Cuidados de Saúde Primários. A mãe
mental num dos pais ou outra pessoa em deve saber como aceder ao seu médico e equipa de
casa; uso parental de substâncias ilícitas família e sair já com a primeira visita programada.
ou resultados positivos de toxicologia A interface entre as Maternidades, os
na urina da mãe ou do RN consistentes Cuidados de Saúde Primários, e os organismos
com abuso materno ou uso indevido de de suporte e proteção à família são fundamentais
CAPÍTULO 9. NEONATOLOGIA 155

para evitar readmissões hospitalares e garantir e do lábio inferior; abanar os braços e as pernas
uma assistência global adequada. quando chora; apresentar respiração irregular e
O BSIJ deve ser preenchido com os dados da periódica desde que não se acompanhe de sinais
filiação; data e hora de nascimento; dados obstétri- de SDR; obstrução nasal sem compromisso fun-
cos (pré-natais) relevantes e complicações perinatais; cional; soluçõs, espirros, eructações e bocejos;
Índice de Apgar; peso de nascimento, comprimento reflexo de Moro espontâneo – resposta a sons;
e perímetro cefálico; vacinas realizadas; data do esforço pletórico durante a defecação; pele seca
diagnóstico precoce, se efetuado na maternidade; com descamação especialmente nas mãos e nos
resultado do rastreio auditivo e do rastreio de car- pés; estrabismo intermitente.
diopatias congénitas; os dados relevantes do exame De igual modo é indispensável ensinar os
objetivo; o registo de intercorrências; se tomou leite pais/família a identificar e como proceder me-
adaptado e o peso à saída da maternidade. diante sinais de alarme, que são: icterícia a agra-
var; SDR; apneia; convulsão – fenómeno critico;
9.3.14 Primeira consulta após choro inconsolável; irritabilidade ou prostração
a alta da maternidade persistente; dificuldade ou recusa mantida em
mamar; febre ou hipotermia; vómitos repetidos
A alta do RN cada vez é mais precoce, ocor- ou biliares; má progressão ponderal – perda
rendo antes das 48 horas após o parto. A AAP superior a 10% do peso de nascimento.
recomenda que todo o RN alimentado exclusiva-
mente com leite materno no momento da alta, Deste modo a primeira consulta após a alta
deve ser visto por um Pediatra ou outro profis- da maternidade deve ser orientada para:
sional experimentado entre o terceiro e o quinto 1. Avaliar o estado geral de saúde do RN, ras-
dias de vida. Se tal não for possível é preferível trear sinais de alarme, avaliar a progres-
adiar a alta. são da icterícia (ver método de Kramer) e
Esta consulta é sugerida para evitar as read- do peso (comparar com o peso de alta e
missões hospitalares potencialmente evitáveis que do nascimento), avaliar sinais de desidra-
ocorrem em média até ao quinto dia de vida e tação, confirmar se o bebé tem dejeções
três dias após a alta. Os motivos mais frequentes espontâneas e micções normais e corrigir
de internamento são a icterícia, a desidratação, as dificuldades na alimentação.
as alterações hidroeletrolíticas e os problemas 2. Estabelecer uma relação com o enfermei-
com a alimentação. A primiparidade, a morbili- ro/médico/pediatra de família, orientar
dade materna, a prematuridade e o baixo peso o plano de vigilância de acordo com o
ao nascer são fatores de risco comuns de read- Programa Nacional de Saúde Infantil e
missões hospitalares justificadas. No entanto é Juvenil (PNSIJ), esclarecer os pais acerca
fundamental reconhecer e reforçar a informação dos critérios para recorrer aos serviços
sobre as variantes do normal e queixas frequentes de urgência/emergência e programar as
de situações normais, tais como: tremor do queixo imunizações.
156 JOSÉ CARLOS PEIXOTO E CARLA PINTO

3. Avaliar o comportamento do bebé, observar A necessidade de reanimação ou suporte na


uma mamada e reforçar as vantagens do transição é mais provável nas situações de risco,
aleitamento materno, ensinar a manter a lac- mas nem sempre se pode prever.
tação e avaliar a eficácia da amamentação. É fundamental a sua antecipação através da
4. Avaliar a qualidade da interação mãe- realização da história clínica, preparação e verifi-
-bebé, para confirmar se a mãe é com- cação de todo o material necessário e condições
petente para avaliar a condição geral do da sala e disponibilidade de pessoal treinado em
seu bebé, se é capaz de recorrer ao seu reanimação neonatal.
médico ou a serviços de emergência, A estadia na Maternidade, cada vez mais
quando necessário e se tem a informação curta, deve ser bem aproveitada para informar,
necessária sobre medidas de segurança, capacitar e avaliar a competência da mãe e as
higiene e sono. condições sociais e familiares necessárias para
5. Detetar eventual doença mental nos garantir os cuidados básicos ao RN.
prestadores de cuidadores, verificar in- A promoção do aleitamento materno exclu-
dícios de depressão pós parto, avaliar sivo e a antecipação dos riscos de hiperbilirrubi-
as dificuldades familiares, verificar se há némia são dois objetivos essenciais.
sinalização via notícia de nascimento e A alta do RN exige a garantia da normalidade
programar eventuais visitas domiciliárias. do RN e da mãe.
6. Avaliar as condições sociais e eventuais A identificação de problemas do RN, da mãe
riscos específicos conhecidos em casa, e e da família que comprometam o bem-estar e
referenciar para eventual suporte familiar a saúde do RN é um dever, e a sinalização para
ou integração precoce em infantários. os Cuidados de Saúde Primários uma obrigação.
A Notícia de nascimento é um instrumento
Estas intervenções podem ser efetuadas no essencial para atingir estes objetivos e a ação das
dia em que se realiza o “teste do pezinho” sendo UCF é fundamental para a integração multidis-
necessário formar e integrar todos os prestadores ciplinar neste sistema de vigilância partilhada.
e responsáveis pela prestação de cuidados em
saúde infantil. Leitura complementar
Às Unidades Coordenadoras Funcionais Benitz WE,Committee on Fetus and Newborn, American
(UCF) compete o papel de coordenar e integrar Academy of Pediatrics. Hospital stay for healthy term
estas ações. newborn infants. Pediatrics 2015; 135:948.
Bhutani VK, Stark AR, Lazzeroni LC, et al. Predischarge scree-
ning for severe neonatal hyperbilirubinemia identifies
9.4 FACTOS A RETER infants who need phototherapy. J Pediatr 2013; 162:477.

A transição da vida intra para a extra-uterina


ocorre com sucesso na grande maioria dos RN.
Capítulo 10.
Alimentação e suplementos

10
Mónica Oliva
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_10
CAPÍTULO 10. ALIMENTAÇÃO E SUPLEMENTOS 159

10.1 CONTEXTO A produção e a eliminação ou ejeção do


leite dependem de um reflexo neuroendócrino
A infância e principalmente o primeiro ano (figura 1). Durante a sucção há estimulação de
de vida, constituem uma oportunidade única para mecanorrecetores do mamilo e da aréola sendo
estabelecer hábitos nutricionais adequados, que enviados impulsos nervosos, que por meio do
garantam um crescimento apropriado mas tam- hipotálamo, levam à libertação na hipófise de
bém que estimulem a procura ao longo da vida duas hormonas: a prolactina e a ocitocina.
de alimentos saudáveis, de modo a evitar mais Por ação da prolactina, é produzido o leite
tarde, o aparecimento de doenças relacionadas materno ficando armazenado no lúmen alveolar.
com a alimentação como a obesidade. Existem fatores locais que inibem a produção de
A designação lactente refere-se ao período leite sempre que este se acumula na mama.
desde o nascimento até aos 12 meses de vida, A ocitocina estimula a contração das célu-
durante o qual a alimentação da criança é essen- las mioepiteliais que envolvem os alvéolos e os
cialmente baseada no leite. canais galactóforos, sendo o leite conduzido dos
alvéolos aos canais e seios galactóforos – reflexo
de ejeção. Só então o leite poderá ser retirado
10.2 DESCRIÇÃO DO TEMA pela língua do bebé. O stresse pode bloquear este
reflexo ficando o leite retido na mama, compro-
10.2.1 Leite materno metendo a lactação.

O leite materno é um alimento vivo, completo


e natural, barato e seguro uma vez que respeita as
limitações fisiológicas do tubo digestivo, do meta-
bolismo e da função renal, dos primeiros meses de
vida. O aleitamento materno tem vantagens para a
mãe (involução uterina mais precoce, menor proba-
bilidade de cancro da mama), para o lactente (menor
risco de infeções gastrointestinais e respiratórias,
dermatite atópica e asma, entre outros) e promove
uma vinculação precoce ente a mãe e o filho.

Fisiologia
Ao longo da gravidez a mama, sob influência
hormonal, diferencia-se de modo a ficar apta a Figura 1. Reflexo neuroendócrino envolvido na produção de
leite materno.Adaptado de Manual de aleitamento materno.
produzir leite. Este processo ocorre em todas as
Comité Português para a UNICEF/Comissão Nacional
mulheres independentemente do tamanho da Iniciativa Hospitais Amigos dos Bebés 2012.
mama.
160 MÓNICA OLIVA

A B

Figura 2. Técnica de amamentação.


A. Bebé bem posicionado, a boca apanha a maior parte da aréola e dos tecidos subjacentes, incluindo os seios galactóforos.
B. Bebé mal posicionado, a sucção é feita apenas no mamilo.
Adaptado de Manual de aleitamento materno.
Comité Português para a UNICEF/Comissão Nacional Iniciativa Hospitais Amigos dos Bebés 2012.

Tendo presente estas noções é fácil com- permanece entre muitas a noção de que este
preender que a introdução de qualquer suple- leite é fraco ou insuficiente para o recém-nascido.
mento, ao reduzir a estimulação e ao favorecer o O leite maduro é rico em hidratos de carbono e
não esvaziamento da mama, inibe a produção de lípidos, importantes para a saciedade do bebé.
leite. Este é um dos motivos pelos quais não está
aconselhada a administração de outros líquidos Técnica de amamentação
como chá ou até água durante o aleitamento O correto posicionamento a mamar é funda-
exclusivo. Quando um lactente mama o suficiente mental para o sucesso do aleitamento, garantindo
para satisfazer as suas necessidades calóricas, já uma extração eficaz de leite e evitando o apare-
está a receber água suficiente para responder cimento de problemas mamários como fissuras,
também às suas necessidades hídricas, mesmo ingurgitamento e mastite. A mãe deve dar de ma-
num ambiente quente e seco. mar num lugar calmo, confortavelmente sentada
ou deitada. O bebé e a mãe devem ficar frente a
Composição do leite frente e a boca alinhada com o mamilo. Tocando
A composição do leite materno vai sofrendo com o mamilo na parte média do lábio inferior o
várias modificações ao longo de toda a lactação, bebé abrirá bem a boca. Nessa altura a mãe deve
adaptando-se às necessidades do bebé. Chama- introduzir dentro da boca o mamilo e grande parte
se colostro à secreção mamária dos primeiros da aréola (figura 2). A língua fará então movimen-
quatro dias; é rico em sódio, cloro e proteínas tos ondulantes, espremendo a aréola e o mamilo
com funções protetoras como imunoglobulinas e contra o palato duro, removendo o leite acumulado
lactoferrina. É importante informar a mãe desta nos seios galactóforos situados por baixo da aréola.
função preventiva de infeções, dado que ainda Só assim a sucção será eficaz.
CAPÍTULO 10. ALIMENTAÇÃO E SUPLEMENTOS 161

Alguns recém-nascidos quando expostos a Podem existir fases em que o apetite do


tetinas artificiais (i.e. tetina de biberão, chupeta, lactente exceda a quantidade de leite produzida.
mamilos de silicone) ficam confusos e passam a ter Estes surtos de crescimento são marcados por
dificuldade em mamar eficazmente ao peito com- um a dois dias de choro, agitação e aumento do
prometendo o sucesso do aleitamento. É por este desejo de mamar. Frequentemente ocorrem entre
motivo que a OMS e a UNICEF recomendam não as três e as quatro semanas, terceiro e sexto mês
usar chupeta ou outras tetinas artificiais até que de vida, embora possa variar. Se a mãe aumentar
o aleitamento materno esteja bem estabelecido. a frequência e o tempo das mamadas, a produção
de leite aumentará dentro de um ou dois dias.
Duração e frequência
A duração da mamada não é importante, Extração e armazenamento
pois a maior parte dos bebés mama 90% do que Sempre que necessário, o leite materno pode
precisa em quatro minutos. Alguns prolongam ser retirado manualmente ou com bomba. Cada
as mamadas, por vezes até 30 minutos ou mais; extração poderá demorar entre 10 a 15 minutos,
o importante é perceber se o bebé está a obter e deve ser feita cada duas ou três horas durante
o leite e não está a fazer da mama da mãe uma o dia e pelo menos uma vez à noite. O leite pode
chupeta, pois isto pode macerar os mamilos, criar ser armazenado em recipientes esterilizados e
fissuras e levar a que a mãe desista de amamentar. conservado no frigorífico durante três dias, no
Inicialmente o recém-nascido deve mamar congelador cerca de três meses ou na arca conge-
nas duas mamas para estimular a produção máxi- ladora durante seis meses. Antes de utilizar deve
ma de leite. Depois aconselha-se esvaziar comple- ser descongelado, aquecido em água morna sem
tamente uma mama antes de passar para a outra, ferver e agitar antes de administrar.
de modo a obter o último leite, rico em lípidos,
necessário para saciar o bebé e permitir um bom Problemas maternos
aumento ponderal. Muitos ficarão satisfeitos com É comum surgirem pequenos problemas
o leite de uma só mama. Nas refeições sucessivas, maternos que se não forem devidamente orien-
alternar a mama com que se inicia. tados poderão comprometer o aleitamento.
Não devem fixar-se intervalos entre ma- O ingurgitamento mamário pós parto é uma
madas, o bebé deve mamar sempre que quiser, situação normal embora possa causar desconforto
isto é sempre que tiver fome – regime livre das moderado a grave, dificuldade em iniciar o fluxo
mamadas. Em geral, os bebés com leite materno de leite e em posicionar corretamente o bebé a
fazem mamadas mais frequentes do que os ali- mamar. Nesses casos, a extração manual ou por
mentados com leite de fórmula. Horários rígidos bomba de uma pequena quantidade de leite antes
não são fisiológicos e podem comprometer o da mamada ajudará a ultrapassar a situação. Um
sucesso do aleitamento. Uma boa progressão método alternativo consiste na aplicação de com-
ponderal garante que o bebé está a ser bem pressas húmidas mornas e massagem, antes da
alimentado. mamada, para facilitar a saída do leite. A aplicação
162 MÓNICA OLIVA

de compressas frias no intervalo das mamadas o crescimento e o desenvolvimento do recém-


ajudará a diminuir a dor. A sua prevenção passa nascido.
por dar de mamar em horário livre e posicionar
corretamente o bebé a mamar. Dieta materna
A principal causa de hipogalactia (produ- Recomenda-se que a mãe faça uma alimen-
ção de leite insuficiente para o bebé) são erros tação saudável e variada.
no aleitamento: horário e duração das mamadas Alguns sabores das comidas, condimentos e
impróprios, a introdução de suplementos de leite bebida ingeridos pela mãe passam para o líquido
ou o mau posicionamento do bebé. Para aumentar amniótico e para o leite materno. Esta exposição
a produção de leite sugere-se aumentar a fre- precoce veiculada pelo leite materno parece ser
quência das mamadas e esvaziar completamente facilitadora da aceitação dos alimentos, mais tar-
as mamas. de, aquando da diversificação alimentar.
No início da amamentação é normal haver O consumo de álcool está desaconselhado.
algum grau de desconforto ou dor nos mamilos. Podem ser ingeridas até duas bebidas com ca-
Se esta situação se prolongar ou se surgirem fis- feína por dia.
suras no mamilo, é necessário verificar e corrigir
erros de posicionamento do bebé, dado ser esta Tabaco
a sua principal causa. Para além da exposição ambiental, o filho
A mastite puerperal ocorre em 1 a 3% de uma mãe fumadora recebe nicotina e os seus
das mulheres que amamentam. Trata-se de um metabolitos através do leite materno. Esta ex-
processo inflamatório do tecido conjuntivo inter- posição está associada ao aumento do risco do
lobular, que pode ou não evoluir para sobreinfe- síndrome da morte súbita do lactente, de infeções
ção bacteriana, geralmente causada por estirpes respiratórias, para além de diminuir a produção
menos virulentas do Staphylococcus aureus, pelo de leite da mãe. Aconselha-se a suspender o seu
que o antibiótico de escolha deve ser a fluclo- consumo. Nos casos em que não seja possível, a
xacilina ou a associação amoxicilina com ácido mãe não deve fumar na presença do bebé e deve
clavulânico. É importante manter a extração de evitar fazê-lo nas duas horas e meia precedentes
leite dessa mama, esvaziando-a completamen- a uma mamada.
te para evitar o aparecimento de complicações
como abcesso. Contraindicações
São frequentes alterações do humor pós- A maioria das doenças infeciosas maternas
parto. Cerca de 50 a 80% das puérperas pas- não contraindica o aleitamento. O bebé, já esteve
sarão por um período transitório de instabilida­de exposto durante o período prodrómico, e suspen-
emocional – disforia pós-parto ou blues. A de- der o leite materno iria retirar-lhe os anticorpos
pressão e a psicose embora mais raras devem ser e outras substâncias biológicas de que neces-
precocemente identificadas e tratadas, pois com- sita. Contudo, em certas situações temporárias
prometem a vinculação mãe-filho, a segurança, como quando a mãe tem varicela, herpes com
CAPÍTULO 10. ALIMENTAÇÃO E SUPLEMENTOS 163

lesões mamárias ou tuberculose ativa, não deve destinam – leite para lactentes (leite 1) e leite de
amamentar mas a produção de leite deve ser transição (leite 2).
estimulada. O aleitamento materno está contrain- Os leites 1 ou para lactentes estão indi-
dicado na infeção materna por vírus da imuno- cados como suplemento ou substituto do leite
deficiência humana, na psicose materna ou nos materno nos primeiros seis meses de vida, po-
recém-nascidos com doenças metabólicas como dendo no entanto continuar a ser usados até aos
a galactosémia ou a fenilcetonúria. 12 meses. Segundo uma revisão sobre leites e
A grande maioria dos fármacos é compatível fórmulas infantis em Portugal, realizada em 2012
com a amamentação mas evitar medicamentos e publicada na revista da Sociedade Portuguesa
desnecessários é a melhor regra a seguir. de Pediatria, os leites 2 ou de transição apre-
São considerados contraindicações os citos- sentam uma densidade energética e proteica
táticos, os radiofármacos e as drogas de abuso. praticamente sobreponível à das fórmulas para
lactentes mas um teor de cálcio, fósforo e ferro
10.2.2 Leites ou fórmulas infantis superior, estando apenas recomendados a partir
do sexto mês e até aos 12-24 meses. Existem ainda
Quando não é possível a amamentação, leites especiais e fórmulas infantis com proteína
por ausência ou insuficiência de leite materno, de soja que poderão ser usados em situações
quando este está contraindicado ou quando a clínicas bem definidas.
mãe não quer amamentar, existem no mercado Mas, por mais evoluída que seja a tecnolo-
leites ou fórmulas infantis. Estes substitutos do gia… o leite materno será sempre único.
leite humano são produtos elaborados a partir do Recomenda-se a preparação de fórmulas
leite de vaca, nutricionalmente seguros. Ao longo infantis no momento. Até aos quatro ou seis
dos anos têm sido sucessivamente modificadas meses poderá ser usada água potável fervida
tendo como objetivo satisfazer as necessidades ou engarrafada aquecida e o biberão e a tetina
nutricionais e mimetizar o perfil de crescimento, devem estar esterilizados. Por cada 30 ml de
de composição corporal, de marcadores bioquí- água adiciona-se uma colher medida rasa
micos e funcionais do lactente alimentado com de pó, colocando-se em primeiro lugar o
leite materno. São exemplo de modificações in- volume total de água. O cálculo de volume
troduzidas o enriquecimento em α-lactalbumina de leite a preparar para cada refeição tem em
bovina (permitindo uma redução do teor e uma conta as necessidades diárias em água de um
melhoria da qualidade proteica), a hidrólise mais lactente (150 ml/Kg/dia até ao volume máximo
ou menos extensa das proteínas, a adição de 1000 ml/dia), a dividir pelo número total de re-
nucleótidos, a adição de ácidos gordos polinsa- feições diárias.
turados de cadeia longa, de oligossacáridos e de Quando o motivo para a introdução do leite
bactérias probióticas. adaptado foi a hipogalactia, o bebé deverá em to-
Os leites ou fórmulas infantis são classifi- das as refeições, primeiro mamar nas duas mamas
cados de acordo com o grupo etário a que se e só depois ser oferecido o biberão. Deste modo
164 MÓNICA OLIVA

mantem-se a estimulação necessária à produção Uma correta diversificação pressupõe co-


de leite materno. nhecer as diferentes necessidades nutricionais ao
longo deste primeiro ano de vida, aguardar pela
10.2.3 Diversificação alimentar maturação do rim, do tubo digestivo (por volta
do sexto mês) e do neurodesenvolvimento. Etapas
O leite materno satisfaz todas as necessida- como o controle dos movimentos da cabeça, a
des do lactente de termo, com peso de nascimen- capacidade em ficar sentado (próximo do sexto
to adequado, durante os primeiros quatro a seis mês), a perda do reflexo de extrusão da língua (a
meses de vida, devendo ser mantido pelo menos partir do quinto mês), o movimento de báscula,
até ao final do primeiro ano de vida. A partir dos precursor da mastigação e o desenvolvimento da
seis meses a quantidade de energia, proteínas, flexibilidade da língua (entre o sexto e o nono
ferro, zinco e de algumas vitaminas deixa de ser mês), condicionam a diversificação alimentar.
suficiente pelo que é necessário introduzir outros Entre os oito e os 10 meses o lactente consegue
alimentos. A duplicação do peso de nascimento, “pinçar” com os dedos os alimentos previamente
que habitualmente ocorre entre os quatro e os cortados, levá-los à boca, mastigá-los mesmo
seis meses, é um bom indicador que as reservas sem dentes e degluti-los. O adiar deste processo
em ferro se estão a esgotar e que é necessário aumenta o risco de dificuldades alimentares no
introduzir outra fonte alimentar. segundo ano de vida. Próximo dos 12 meses já
Entende-se por diversificação alimentar o deverá ter adquirido as competências necessárias
fornecimento de qualquer alimento líquido ou para conseguir alimentar-se sozinho: é capaz de
sólido para além do leite, seja ele materno ou de beber por um copo agarrando-o com as duas
fórmula, e tem como objetivos: variar as fontes mãos e de pegar numa colher com alimentos e
de nutrientes além do leite, aumentar a oferta levá-la à boca.
de ferro, manter uma ração calórica adequada A exposição precoce e variada a alimentos
ao peso da criança sem ter de aumentar excessi- promove a aceitação de novos sabores. O gosto
vamente o volume dos alimentos administrados, pelo doce e a aversão pelo amargo são inatos, a
fornecer fibras alimentares (úteis para a regula- preferência para o salgado desenvolve-se a partir
rização do trânsito intestinal), preparar gradual- do segundo semestre de vida, mas a tolerância ao
mente a criança para a sua futura integração no amargo ou o ácido dos legumes e da fruta, pode
regime alimentar da família. Embora não haja implicar oferecer mais de 10 vezes o mesmo alimen-
uma regra única para se efetuar a introdução to até ser aceite. Este treino de sabores constitui
de novos alimentos, existem alguns princípios um ponto importante da diversificação uma vez
orientadores que devem ser adaptados tendo em que a janela para a habituação aos sabores começa
conta as características individuais do lactente a fechar-se pelos dois anos, habitualmente com
(por exemplo quando existe alergia alimentar ou tendência a manter-se uma alimentação monótona
uma patologia especifica), a cultura e as condições rica em calorias e pobre em outros nutrientes, com
socioeconómicas da família. todos os riscos inerentes para a saúde futura.
CAPÍTULO 10. ALIMENTAÇÃO E SUPLEMENTOS 165

A administração de novos alimentos, sempre de nitrato e fitato, razão pela qual só deverão
por colher, deverá ser feita de forma gradual, ser introduzidos a partir dos nove a doze meses.
introduzindo um novo elemento cada três a cinco Devem ser adicionados 5 a 7,5ml de azeite cru a
dias para se identificarem eventuais intolerâncias cada dose de caldo ou puré de legumes uma vez
alimentares, oferecendo-o repetidamente até ser que este alimento não contém gordura e os lípidos
aceite, sem forçar. Desde sempre os pais devem são necessários na estruturação das membranas
aprender e respeitar sinais de saciedade da criança celulares e na maturação do sistema nervoso cen-
(fecha a boca, encosta-se para trás, vira a face tral, retina e sistema imunológico.
indicando que não quer comer mais). Em alternativa o primeiro alimento a ser
Todas estas etapas constituem períodos introduzido pode ser o cereal sob a forma de
críticos de aprendizagem, que irão permitir a in- farinha, enriquecida em ferro. Existem no mer-
trodução de paladares e texturas diferentes e de cado farinhas lácteas (contém leite de fórmula
alimentos cada vez mais sólidos, até à integração pelo que devem ser reconstituídas com água) e
na alimentação da família que deverá acontecer não lácteas, para serem preparadas com leite
por volta dos 12 meses. materno ou com o leite que o lactente está a
Face ao exposto e de acordo com as re- efetuar. Podem ainda ser isentas de glúten (se
comendações da Sociedade Europeia de elaboradas a partir de milho ou arroz) ou com
Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição e da glúten (mistura de cereais). A introdução dos
Comissão de Nutrição da Sociedade Portuguesa cereais com glúten está associada temporalmente
de Pediatria, publicadas em 2012, a diversificação à expressão clínica de doença celíaca em crianças
alimentar pode iniciar-se a partir do quarto mês, com predisposição genética. O glúten poderá ser
preferencialmente próximo dos seis meses e nunca introduzido a partir dos quatro meses completos
depois desta data. Nos prematuros, para a intro- (17 semanas).
dução de novos alimentos deve ser tida em con- A carne, o peixe e o ovo fornecem proteínas
sideração a idade corrigida e não a cronológica. de elevado valor biológico. A carne é também
Uma vez que é importante estimular o treino uma fonte importante de minerais de elevada
de sabores não doces, os autores defendem co- biodisponibilidade como o zinco e o ferro e de
meçar com um caldo ou puré de legumes embora ácidos gordos polinsaturados de cadeia longa,
possa ser com a farinha. A partir deste momento pelo que deve ser introduzida aos seis meses.
esta refeição substitui uma das refeições de leite O peixe poderá iniciar-se a partir do sétimo mês.
embora nos primeiros dias, se necessário, ainda Inicialmente com peixes mais magros como a pes-
possa ser completada com o leite. cada, o linguado, a solha e a faneca. O salmão,
A batata, a cenoura, a abóbora, a cebola, o devido ao seu elevado teor em gordura, deverá ser
alho, o alho francês, a alface, a curgete, o brócolo introduzido depois dos 10 meses e em pequenas
e a couve branca, são os mais utilizados para se porções. Inicialmente a carne é administrada no
iniciar a diversificação. O espinafre, o nabo, a caldo/puré de legumes, cerca de 20 a 30g uma
nabiça, a beterraba e o aipo contêm elevado teor vez ao dia. A partir do sétimo mês não adicionar
166 MÓNICA OLIVA

mais de 20g de carne ou peixe por refeição em pode ser oferecido a partir dos nove meses em
duas refeições por dia. A textura deve ser pro- substituição da papa.
gressivamente menos homogénea para estimular A água deverá ser a única bebida a ser ad-
a mastigação, aos nove meses podem passar a ministrada, várias vezes ao dia, desde o início da
ser oferecidos com arroz branco ou massa e le- diversificação.
gumes cozidos. Não está recomendada a adição de sal, açúcar
A partir do nono mês, a gema do ovo poderá ou mel durante o primeiro ano de vida, pois para
alternar com a carne ou o peixe, adiando-se a além dos efeitos negativos a curto prazo, treina a
introdução da clara para depois dos 11 meses. criança a procurar estes sabores ao longo da vida.
A fruta poderá ser introduzida por volta do Para a confeção da refeição a família deve
quinto ou sexto mês, crua ou cozida, como com- optar por alimentos de boa qualidade, isentos
plemento da refeição de caldo ou puré mas não de contaminação por microrganismos patogé-
deve constituir uma refeição. Maçã, pêra e banana nicos ou substâncias nocivas, manipulando-os
são habitualmente os primeiros frutos a serem de forma higiénica, servindo-os de imediato ou
introduzidos. Devem ser oferecidos isoladamente armazenando-os de forma segura.
para treinar o paladar e não sob a forma de sumo Os “boiões” são alimentos infantis elaborados
que tem várias desvantagens: efeito laxante, ano- à base de frutos, legumes, carne ou peixe. Apesar
rexiante, cariogénico e deseducador da paladar, de nutricionalmente adequados e sem risco de
pois habitua desde cedo a criança a bebidas doces. contaminação bacteriana, não devem substituir os
Durante o primeiro ano de vida dever-se-ão evitar alimentos preparados em família, reservando-se o
frutos potencialmente alergogénicos ou liberta- seu uso para situações pontuais como uma viagem;
dores de histamina como o morango, a amora, o respeitando sempre as indicações de utilização e
kiwi e o maracujá. Pelo risco de asfixia também conservação indicadas no rótulo.
não devem ser dados alimentos redondos e duros As dietas restritivas como vegan ou macro-
como frutos secos, amendoins, pipocas, passas, biótica apresentam um risco elevado de carências
tremoços, entre outros. nutricionais (vitamina B12, folato, ferro, zinco,
As leguminosas secas cozidas poderão ser ácidos gordos e aminoácidos essenciais) pelo que
introduzidas entre os nove e os onze meses, bem estão desaconselhadas durante o primeiro ano
demolhados, inicialmente sem casca e em peque- de vida, período de rápido crescimento e desen-
nas quantidades. volvimento e por isso particularmente sensível a
O leite de vaca em natureza tem um elevado estes défices.
teor de sódio, fósforo, gordura saturada e é pobre
em ácidos gordos essenciais, ferro e vitaminas. 10.2.4 Alimentação após
Além disso, pode causar lesão da mucosa intes- o primeiro ano de vida
tinal com hemorragia microscópica pelo que não
deve ser introduzido como fonte láctea principal Facilmente percebemos pelo exposto a impor-
antes dos 12 meses. Contudo, o iogurte natural tância de um aconselhamento alimentar correto
CAPÍTULO 10. ALIMENTAÇÃO E SUPLEMENTOS 167

durante o primeiro ano de vida, promovendo a mais do que as suas necessidades. Além
tolerância e o consumo de alimentos saudáveis, disso, o efeito da publicidade televisiva
evitando carência de micronutrientes e excesso de pode induzir a criança mais velha a in-
macronutrientes, para que a criança saudável se gerir alimentos nutricionalmente dese-
torne num adulto, também ele saudável. quilibrados;
A recomendação de que ao ano de idade a - evitar uma dieta monótona e nutricional-
criança passa a fazer a alimentação da família e mente incompleta (aporte excessivo de
em família, pressupõe que esta seja nutricional- proteína animal, açucares de absorção
mente adequada, o que frequentemente não se rápida e gordura saturada) e promover
verifica. Alguns conselhos poderão ser: o consumo de vitaminas e fibra;
- não substituir alimentos ou refeições por
- fazer a refeição em família, durante a qual leite, não dar leite antes de ir dormir e
a criança vê os outros elementos a comer durante a noite. O aporte lácteo diário
os alimentos que lhe são oferecidos. Esta depois do primeiro ano não deve ultra-
medida ajuda a diminuir a relutância em passar os 500 ml por dia;
aceitar novos sabores, que se acentua - não substituir refeições equilibradas por
a partir do primeiro ano (neofobias ali- lanches ricos em hidratos de carbono
mentares); como pão, bolachas ou doces.
- respeitar desde sempre o apetite da
criança. Em períodos de doença ou de Na adolescência são frequentes erros ali-
crescimento mais lento o apetite será mentares como: ausência do pequeno-almoço,
menor (é disso exemplo a anorexia fi- ingestão regular de fast food, substituição de
siológica do segundo ano de vida que refeições por snacks hipercalóricos, excesso de
corresponde a uma fase de menor velo- consumo de carne em detrimento do peixe, redu-
cidade de crescimento global e por isso ção do aporte de leite, fruta e legumes e aumento
menor necessidade energética). Os pais das bebidas açucaradas, por vezes com cafeína.
devem preocupar-se com a qualidade É pois necessário continuar a rever o regime
dos alimentos oferecidos, garantindo alimentar nas consultas de vigilância de saúde
uma oferta variada; a criança determina infantil e juvenil não esquecendo que, mais im-
a quantidade a ingerir. Recorda-se a sábia portante do que o que se diz, é o que se faz … e
frase do Pediatra Nicolau da Fonseca – “ que a criança imitará o comportamento alimentar
comida forçada é comida rejeitada”; da família.
- a refeição deve ser um momento de pra-
zer, de convívio, pelo que a televisão 10.2.5 Suplementos
deve estar desligada. Os ecrãs distraem
a criança não permitindo que esta note os A vitamina D é um micronutriente, con-
sinais de saciedade acabando por ingerir siderada por muitos como uma hormona, uma
168 MÓNICA OLIVA

vez que pode ser sintetizada na pele através da proteínas incluindo enzimas e da hemoglobina.
exposição solar. A sua principal função é a re- Ao contrário do ferro não hémico de origem
gulação do metabolismo fosfo-cálcico, promo- vegetal, o ferro hémico da carne tem uma boa
vendo a absorção de cálcio para uma adequada biodisponibilidade sendo por isso uma boa fonte
mineralização óssea, evitando o raquitismo e a alimentar deste mineral. A deficiência de ferro
osteomalácia. Recentemente muitos estudos su- constitui a carência nutricional isolada mais fre-
gerem o envolvimento desta vitamina numa série quente a nível mundial e a principal causa de
de outras funções. anemia na infância. Vários estudos demonstraram
Tendo em conta que a exposição solar direta uma associação entre anemia sideropénica, atraso
está desaconselhada durante o primeiro ano de de desenvolvimento psicomotor e alterações de
vida e que poucos alimentos são naturalmente ricos comportamento a longo prazo. O elevado ritmo
nesta vitamina, recomenda-se desde os primeiros de crescimento e desenvolvimento cognitivo que
dias de vida, a suplementação oral com 400UI por ocorre nos primeiros três anos de vida, tornam as
dia de vitamina D durante o primeiro ano. crianças desta faixa etária particularmente sensí-
O Flúor é um mineral ubíquo, encontrado veis a esta carência. São considerados fatores de
no solo, na água, nas plantas e animais e por isso risco para défice de ferro e anemia sideropénica: o
um constituinte normal da alimentação. Tem um baixo peso de nascimento, a clampagem precoce
papel fundamental na prevenção e tratamento do cordão umbilical, o género masculino, o baixo
da cárie dentária da criança e do adulto. Esta consumo de alimentos ricos em ferro durante a
ação é essencialmente tópica, após a erupção diversificação alimentar, a ingestão excessiva de
do dente, fortalecendo o esmalte e inibindo a leite vaca e o baixo nível socioeconómico. De en-
atividade da placa bacteriana. Em Portugal, não tre as medidas recomendadas para prevenir esta
está recomendada a suplementação sistémica com carência salienta-se a necessidade de suplementar
flúor mas sim a sua aplicação tópica logo após com ferro (1 a 2mg/Kg/dia) os recém-nascidos com
a erupção do primeiro dente. Os pais devem ser baixo peso de nascimento (≤2.500g) durante os
aconselhados a escovar os dentes duas vezes ao primeiros seis meses de vida. A partir dessa idade
dia, uma das quais antes de deitar. Devem usar passa a ser fundamental a diversificação alimentar
um dentífrico fluoretado com 1000-1500 ppm com um alimento rico em ferro como por exemplo
numa gaze, dedeira ou escova macia, de tamanho a carne, não dar leite vaca durante o primeiro
adequado à boca da criança. A quantidade de ano e restringir o seu consumo até máximo de
dentífrico depende da idade da criança, desde 500ml/dia até aos três anos. Os prematuros com
a erupção até aos seis anos deve ser igual ao peso de nascimento ≤1.800g necessitarão de do-
tamanho da unha do quinto dedo da criança e a ses ligeiramente superiores (2 a 3mg/Kg/dia) que
partir daí cerca de um centímetro. poderão manter durante o primeiro ano de vida.
O Ferro apesar de ser um oligoelemento Exceto em situações clinicas particulares,
ou seja constitui menos de 0,01% do peso cor- não estão recomendados quaisquer outros su-
poral, é um importante componente de inúmeras plementos, nomeadamente polivitamínicos, nem
CAPÍTULO 10. ALIMENTAÇÃO E SUPLEMENTOS 169

para o prematuro após as 40 semanas de idade “Não comemos nutrientes, comemos ali-
corrigida, mas sim uma alimentação adequada. mentos e estes devem ser nutricionalmente
adequados à idade da criança, mas tam-
10.3 Factos a reter bém bem conservados, bem cozinhados,
variados e apetecíveis e, logo que possível,
• Sempre que possível o aleitamento materno consumidos em família, pois a alimenta-
deverá manter-se em exclusivo até próxi- ção dos humanos é também um ritual de
mo dos seis meses e durante o primeiro sociabilização, uma experiência de comu-
ano de vida. nicação.”
• Alguns lactentes poderão necessitar de ali-
mentos complementares ao leite materno Gonçalo Cordeiro-Ferreira. Os principais er-
antes dos seis meses (mas não antes dos ros alimentares. Guerra A (ed): Alimentação
quatro) de modo a garantir um cresci- e Nutrição no Primeiros Anos de Vida.7º
mento e neurodesenvolvimento normais. Workshop Nestlé Nutrition.
• A diversificação alimentar deve ser funda-
mentada na evidência científica existente,
mas respeitando as particularidades da 10.4 EXEMPLOS PRÁTICOS
criança e da família.
• A ordem de introdução dos outros alimentos, 1 – Calendário alimentar possível para di-
sempre por colher, deve ser flexível e escalo- versificação aos quatro meses:
nada; a complexidade e a textura das refeições
devem progredir em paralelo com o desenvol- Idade Tipo e número de
refeições, em média
vimento de competências alimentares.
< 4 meses Leite a pedido, de preferência
• A exposição oral aos alimentos de forma materno, 8 a 12
regular e gradual favorece a sua tole- 4 meses 1 de caldo de legumes ou 1 de farinha
rância. 4 a 6 de leite
5 meses 1 de puré com carne + fruta
• As dietas vegetarianas restritivas devem
1 de farinha
ser evitadas durante o primeiro ano vida. 3 a 5 de leite
• É fundamental promover alimentação sau- 7 meses 2 de puré com carne ou peixe + fruta
1 de farinha
dável em todas as consultas de vigilância
2 a 4 de leite
de saúde infantil e juvenil.
8 meses alimentos mais grumosos: carne/
• Está recomentada a suplementação universal peixe, batata/massa/arroz cozidos
esmagados à parte com legumes
com vitamina D durante o primeiro ano de
≥ 9 meses 2 de puré com carne ou peixe
vida, a suplementação com ferro ao lactente
ou gema de ovo + fruta
com baixo peso de nascimento e a aplica- 1 de farinha ou iogurte natural
2 a 3 de leite
ção tópica de dentífrico fluoretado desde
12 meses integrar na alimentação da família
a erupção do primeiro dente.
170 MÓNICA OLIVA

2 – Calculo regime alimentar para um lac- Leitura complementar


tente 3 meses, com peso de 6Kg, sob Levy L, Bértolo H. Manual de aleitamento materno. Comité
leite fórmula para lactentes: Português para a UNICEF/Comissão Nacional Iniciativa
Hospitais Amigos dos Bebés 2012.
1º calcular as necessidades diárias em água Guerra A, Rêgo C, Silva D, et al. Alimentação e nutrição do
(150ml/kg/dia): 150ml x 6Kg = 900ml. lactente. Acta Pediatr Port 2012:43(2):S17-S40.
2º calcular o volume de água/refeição: 900ml Programa Nacional de Promoção da Saúde Oral. Circular
÷ 8 refeições = 112,5ml. Normativa n.º1/DSE de 18/01/2005.
3º num biberão esterilizado, colocar em pri- Braegger C, Campoy C, Colomb V, et al. Vitamin D in the
meiro lugar 120ml de água seguido de 4 Healthy European Paediatric Population. ESPGHAN
colheres rasas de pó (1 colher por cada Committee on Nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr.
30 ml de água) de leite para lactentes. 2013 Jun;56(6):692-701.
4º verificar se está suplementado com 400UI Domellöf M, Braegger C, Campoy C, et al. Iron Requirements of
de vitamina D. infants and Toddlers. ESPGHAN Committee on Nutrition.
J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2014 Jan;58(1):119-29.
3 – Calculo regime alimentar para um lac- Soares E, Pereira-da-Silva L, Cardoso M, Castro MJ. Vitaminas,
tente 8 meses, com 8,5Kg de peso, sob Minerais e Oligoelementos por via Entérica no Recém-
leite de fórmula: Nascido. Revisão do Consenso Nacional. Acta Pediatr
Port 2015;46:159-69.
1º calcular as necessidades diárias em água
(150ml/kg/dia): 150ml x 8,5Kg = 1.275ml
(mas o volume máximo diário é 1000ml).
2º calcular volume de água/refeição: 1000ml
÷ 5 refeições = 200ml.
3º proposta para 5 refeições:
- 2 refeições de leite para lactentes ou
de transição. Num biberão, colocar
em primeiro lugar 210 ml de água
seguido de 7 colheres rasas de pó (1
colher por cada 30ml de água).
- 1 puré de legumes com carne e fruta.
- 1 farinha com glúten.
-1 puré de legumes com peixe e fruta.
4º verificar se está suplementado com 400UI
de vitamina D.
Capítulo 11.
Crescimento e os seus problemas

11
Raquel Soares
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_11
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 173

11.1 CONTEXTO e dimensão do útero, tendo como principal regu-


lador o fator de crescimento insuline-like growth
A criança não pode ser entendida como factor 1 (IGF-1). No crescimento pós-natal
um adulto em miniatura, pois nela ocorrem pa- podem distinguir-se três fases, com determi-
ralelamente dois processos dinâmicos únicos: o nantes e velocidades de crescimento específicas.
crescimento e o neurodesenvolvimento. Na primeira fase, correspondente aos dois
O crescimento resulta da multiplicação das primeiros anos de vida, os fatores genéticos e
células ou do aumento do seu volume, que con- a nutrição são os reguladores de crescimento
diciona incremento do tamanho da criança no seu mais importantes. O crescimento é inicialmente
todo e de cada tecido e órgão em particular. O muito rápido, representando uma continuação
objetivo da avaliação antropométrica é quantificar do crescimento fetal, havendo depois progres-
e interpretar a evolução das dimensões físicas sivamente uma diminuição da sua velocidade.
corporais, nas diferentes idades. É frequente encontrarmos nesta fase crianças
O neurodesenvolvimento refere-se à dife- com desvios de percentil, para um nível supe-
renciação funcional, usando-se esta designação rior ou inferior, que correspondem na maioria
para a progressão das aptidões psico-motoras. dos casos a ajustes relacionados com o potencial
Estes dois aspetos, quantitativo e qualitativo, genético – alinhamento genético. Há hoje em
deverão ser sempre corretamente avaliados em dia evidência de que a hormona de crescimento
todas as consultas de vigilância de saúde da criança (HC) tem também uma contribuição importante
e do jovem, já que são importantes indicadores do neste período, embora não sendo a principal res-
estado de saúde do indivíduo. ponsável pelo crescimento. Já na segunda fase,
são os fatores hormonais que assumem o papel
mais importante no crescimento, nomeadamente
11.2. DESCRIÇÃO DO TEMA as hormonas tiroideias e do eixo hipotálamo-
-hipofisário promotor da produção de HC e es-
11.2.1 O crescimento normal timulação da síntese do IGF-1. Uma vez que a
HC é produzida de forma pulsátil pela hipófise
O crescimento normal, que ocorre desde a anterior e os seus níveis plasmáticos são frequen-
conceção até à maturidade completa, está depen- temente indoseáveis, a determinação do IGF-1,
dente não só de fatores genéticos, nutrientes e produzido maioritariamente a nível hepático, é
hormonas, mas também da ausência de doença um bom indicador do funcionamento deste eixo.
e do contexto ambiental com as suas múltiplas A produção de IGF-1 é também influenciada por
influências psicossociais e emocionais. O papel de fatores nutricionais e hormonais, nomeadamen-
cada um destes componentes não é, no entanto, te hormonas tiroideias e sexuais. Já os valores
igual em cada uma das etapas do crescimento. plasmáticos da proteína de ligação IGF binding
O crescimento fetal é influenciado sobre- protein 3 (IGFBP-3), principal transportadora de
tudo pela nutrição materna, fatores placentários IGF-1, dependem menos do estado nutricional,
174 RAQUEL SOARES

da idade e do estadio pubertário. Na terceira população de referência, e pese menos que 85%
fase, o período pubertário, há um novo incre- desses mesmos rapazes.
mento da velocidade de crescimento, dependente As curvas de crescimento da Organização
sobretudo dos esteroides sexuais (androgénios Mundial de Saúde (OMS) são atualmente con-
e estrogénios) produzidos pelas gónadas, que sideradas as mais adequadas para monitorizar
amplificam a ação também importante do eixo o crescimento e o estado de saúde infantil, in-
HC-IGF-1. O surto de crescimento inicia-se nas tegrando o Boletim de Saúde Infantil e Juvenil
raparigas tipicamente por volta dos dez anos e (BSIJ) português desde 2013. Foram construídas
nos rapazes pelos 12. O fim do processo de cres- a partir de dados antropométricos de crianças
cimento dá-se com o encerramento das epífises, saudáveis de seis países de diferentes continen-
que resulta da ação dos esteroides sexuais nas tes, sob aleitamento materno (LM) exclusivo ou
cartilagens de crescimento. predominante até aos quatro ou seis meses e
Quando ocorre uma perturbação em algum beneficiando de condições ambientais conside-
dos fatores descritos, podemos observar altera- radas ótimas. Para a sua construção foi conside-
ções no crescimento, que assumem maior rele- rada a avaliação longitudinal de crianças desde
vância se ocorrerem em períodos de crescimento o nascimento até aos 24 meses, e transversal
rápido, como é compreensível. dos 18 aos 71 meses. As curvas anteriormente
utilizadas, e ainda presentes nos BSIJ das crianças
Curvas de crescimento nascidas antes de 2013 (as do Nacional Center
A maioria das crianças saudáveis cresce den- for Health Statistics (NCHS) desde 1981 e as do
tro de um padrão previsível de peso, estatura e Center for Disease Control and Prevention (CDC)
perímetro craniano. O conhecimento dos padrões desde 2000), são consideradas menos adequadas,
normais de crescimento permite a identificação sobretudo por terem sido construídas com base
precoce de desvios patológicos e evita investiga- em lactentes alimentados predominantemente
ções desnecessárias em crianças com variantes da com fórmulas lácteas nos primeiros meses de vida.
normalidade. O crescimento humano normal é As curvas da OMS, mais ajustadas ao crescimento
pulsátil, alternando surtos de progressão rápida real, identificam menor número de crianças com
com outros mais lentos. peso abaixo do P5 no primeiro ano de vida, já que
Para avaliar o crescimento de determinada os lactentes alimentados com LM exclusivo têm
criança comparamo-lo, habitualmente, com cur- ganho ponderal mais elevado nos primeiros três
vas padrão de percentis. O percentil (P) indica a meses, mas desaceleram a seguir. Por outro lado,
posição (ordenação) de cada criança em relação coloca um número superior de crianças acima do
à população padrão, expectavelmente saudável. P 95, o que pode representar uma vantagem, pela
Por exemplo num menino de 18 meses cujo peso identificação mais precoce de excesso de peso,
esteja no P15, estima-se que pese o mesmo ou problema atual de elevada prevalência.
mais que 15% dos meninos da mesma idade da As curvas da OMS integradas no BSIJ (Anexo
1) contemplam apenas os percentis 3, 15, 50, 85 e
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 175

97, que correspondem aproximadamente a -2, -1, 0, do período de recuperação do crescimento nestas
+1 e +2 desvio-padrão (DP) da média populacional. crianças ser variável (depende da idade gestacional,
Com base nos valores antropométricos da OMS, o do peso nascimento, da raça/etnicidade e de outros
CDC construiu curvas até aos 24 meses distribuídos fatores), geralmente corrige-se o peso até aos
por mais percentis: P2, P5, P10, P25, P50, P75, P90, P95, 24 meses, a estatura até aos 40 meses e o pe-
P 98 (curvas CDC-OMS acessíveis em:http://www. rímetro craniano até aos 18 meses. É necessário
cdc.gov/growthcharts/who_charts.htm#The%20 lembrar que, durante as primeiras semanas de vida,
WHO%20Growth%20Charts). Estas curvas, per- a velocidade de crescimento de um prematuro é
mitem uma deteção mais facilitada de desvios do superior à de um bebé que nasceu de termo.
crescimento, pelo que será com base nestas que Para determinadas patologias, tais como
apresentaremos posteriormente algumas definições. trissomia 21, síndrome de Turner, síndrome de
Klinefelter e acondroplasia, estão disponíveis cur-
De notar, que na avaliação inicial do cres- vas específicas que permitem melhor avaliação do
cimento em bebés ex-prematuros, até às 50 padrão de crescimento destes e de outros grupos
semanas de idade pós-concecional, são recomen- com especificidades genéticas.
dadas as curvas de Fenton 2013 (acessíveis em
http://www.ucalgary.ca/fenton/2013chart). Estas Avaliação do crescimento
permitem também avaliar o crescimento intrau- As medidas antropométricas mais usa-
terino (pré-natal) com base na somatometria ao das para avaliação do crescimento são o
nascimento. Após as 50 semanas, deverão ser peso, a estatura (comprimento e altura) e o
utilizadas as curvas da OMS, pois permitem a com- perímetro craniano. A sua determinação deve
paração com crianças de termo saudáveis. Nestes ser sempre efetuada de forma correta (verificar
casos é necessário fazer o ajuste dos parâmetros se foi correta) e os valores registados no BSIJ e
de crescimento calculando a idade corrigida: nas curvas de percentis relativas à idade e sexo.
Para uma correta interpretação, é indispen-
Idade corrigida = sável conhecer os limites da normalidade, identi-
idade cronológica - [40 semanas - idade gestacional] ficando os períodos de maior velocidade de cres-
cimento. Apresentam-se no quadro 1 algumas
Por exemplo, um ex-prematuro que nasceu regras práticas de interpretação do crescimento
com 32 semanas de idade gestacional, aos 10 sem recurso a tabelas de percentis.
meses de idade cronológica, terá uma idade cor-
rigida de 8 meses. Peso
Um RN de termo pode perder até 7 a 10%
Podem assim traçar-se duas curvas paralelas, do peso de nascimento (PN) nos primeiros dias
uma referente à idade cronológica e outra à idade de vida. Nos RN normais a perda de peso cessa
corrigida. Apesar de não ser consensual até que pelo quinto dia, recuperando habitualmente o
idade se deve fazer a correção, e a taxa e duração PN pelos 10 a 14 dias de vida.
176 RAQUEL SOARES

Quadro 1. Regras práticas e valores médios de evolução do peso, comprimento/estatura e perímetro craniano.

Evolução esperada em termos de valor da média


Peso
Primeiros dez dias perda até 10% do PN que deve ser recuperado até ao 10º - 14º dia de vida
Até aos 3 meses aumento 30g/dia
3 a 6 meses aumento 20g/dia
6 a 12 meses aumento 10g/dia
4 a 5 meses duplica o PN
12 meses triplica o PN
24 meses quadriplica o PN
1º quadrimestre aumento 750g/mês
2º quadrimestre aumento 500g/mês
3º quadrimestre aumento 250g/mês
Dois anos à puberdade aumento de cerca 2kg /ano
Estatura
RN de termo aproximadamente 50cm
0 a 12 meses 25 cm
0 a 6 meses 2,5cm/mês
6 a 12 meses 1,25cm/mês
12 a 24 meses 10 cm
24 a 36 meses 7,5 cm
3 a 4 anos 7,5 cm
4 anos à puberdade 5 cm/ano
24 a 30 meses atinge metade da estatura final do adulto
Perímetro craniano
RN de termo aproximadamente 35cm
1º ano aumento 1cm/mês
PC=1/2 estatura+10cm

PN: peso de nascimento; PC: perímetro craniano.

Segue-se um aumento médio diário entre 20 devendo contudo ser cuidadosamente investiga-
a 30g por dia, durante os primeiros seis meses. dos os casos em que o aumento ponderal seja
São considerados anormais aumentos inferiores inferior a 1Kg por ano.
a 20g por dia no primeiro semestre, e inferiores a Para determinação correta do peso, é
10g por dia no segundo. O crescimento ponderal necessário que a criança pequena esteja des-
passa depois a ser progressivamente mais lento, pida e sem fralda, considerando uma variação
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 177

a) O comprimento deve ser avaliado colocando a criança em


decúbito dorsal, com a cabeça no plano do tronco, membros
inferiores bem estendidos, exercendo ligeira pressão sobre os
joelhos e com os pés em ângulo reto com as pernas.

c) Para medir o perímetro craniano deve ser usada uma b) A altura deve ser avaliada com a criança em posição ortos-
fita métrica mole e inextensível, de largura máxima de 1cm, tática, com os braços relaxados ao lado do corpo, descalça,
passando por cima da arcada supraciliar e pela protuberância calcanhares bem apoiados no chão, dedos apontados para
occipital externa. Deve ser calculada a média de três avalia- fora formando um ângulo de 60º, cabeça mantida com olhar
ções, considerando aproximação em mm. para a frente com bordos inferiores das órbitas no mesmo
plano horizontal dos meatos auditivos externos, com a cabeça,
omoplatas, nádegas e calcanhares a tocar a superfície do esta-
diómetro, preferencialmente após uma inspiração forçada.

Figura 1. Processo de medição do comprimento (a), altura (b) e perímetro craniano (c).

de 10g; nas outras, manter apenas a roupa uma etapa de crescimento rápido. Para o cresci-
interior e a variação a considerar é de 100g. mento linear, os dois primeiros anos de vida são
um período de ajuste de acordo com o potencial
Estatura genético, podendo encontrar-se uma mudança
Ao nascimento, um RN de termo mede em de percentil em quase dois terços das crianças
média 50cm, seguindo-se nos primeiros anos, normais (considerando os percentis 5, 10, 25,
178 RAQUEL SOARES

50, 75, 90 e 95): aproximadamente um terço


cruza uma linha de percentil, um quarto cruza
duas linhas e um décimo pode cruzar até três
linhas de percentil. Após os dois anos, e até à
puberdade, é de esperar que a criança cresça
sempre dentro do mesmo canal de percentil, de
modo que se houver um crescimento inferior a
5cm por ano, a criança deve ser devidamente
avaliada. Para calcular a velocidade de cresci-
mento (em cm por ano) em crianças com mais
de dois anos é necessário considerar um período
de pelo menos seis meses. Note-se que antes
do surto de crescimento pubertário pode ocor-
rer uma desaceleração normal da velocidade de Figura 2. Idade óssea é obtida através da análise da imagem
radiológica do punho e mão esquerdos da criança, compa-
crescimento.
rando o aspeto e formato dos seus núcleos de ossificação,
A medição do comprimento é efetuada em com os presentes em imagens radiológicas padrão de cada
crianças com idade inferior a dois anos em decú- idade. (Radiographic Atlas of Skeletal Development of
Hand and Wrist by Greuliche WW and Pylle Sl. Stanford,
bito dorsal, utilizando um pediómetro sobre uma CA:Stanford University Press, 1959)
superfície firme (Figura 1a). Depois desta idade
já é possível medir a altura (posição ortostática),
usando uma régua de parede ou estadiómetro Ao valor obtido considera-se um intervalo
(Figura 1b). Deve ser sempre considerada uma de +/- 8,5 cm, correspondente ao desvio padrão.
aproximação em mm. Em crianças com aceleração ou atraso do
crescimento estatural, poderá ser útil a deter-
Estima-se que os fatores genéticos contri- minação da idade óssea (IO), obtida através da
buam com cerca de 80% para o crescimento análise da presença de núcleos de ossificação na
estatural, sendo assim indispensável conhecer a imagem radiológica da mão e punho esquerdos
estatura (E) de cada um dos progenitores, para (Figura 2), uma vez que a maturação óssea reflete
fazer uma previsão da estatura final da criança. O a maturidade biológica. Considera-se que a IO
cálculo da estatura alvo familiar (EAF) permite está atrasada se houver uma diferença de mais de
avaliar se a criança está a crescer dentro do seu dois anos em relação à idade cronológica, como
potencial genético: no atraso constitucional do crescimento ou nas
doenças endócrinas como o hipotiroidismo. Nas
Estatura alvo rapaz = crianças com puberdade precoce teremos uma IO
(E mãe + E pai)/2 + 6,5 (cm); avançada mais de dois anos em relação à idade
Estatura alvo menina = cronológica. A IO pode também utilizar-se para
(E mãe + E pai)/2 – 6,5 (cm). a previsão da estatura final.
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 179

Perímetro craniano Avaliação nutricional


A avaliação do PC deve fazer parte da rotina Para além da análise do trajeto das variáveis
do exame objetivo até aos três anos de vida, uma peso e comprimento/altura individualmente, de-
vez que o tamanho do crânio reflete o crescimento vemos também relacioná-las entre si, em índices.
do cérebro. O cérebro atinge cerca de 50% do Essa relação é uma forma de avaliar o estado
seu tamanho final pelo 6º mês e 80% antes dos nutricional da criança, já que o peso depende do
cinco anos. tamanho. Desta forma, uma criança com baixo
Associadamente deve ser sempre efetua- peso para a idade mas com uma baixa estatura,
da a avaliação das fontanelas, considerando será diferente de outra com baixo peso para uma
que existe uma grande variabilidade individual estatura média (magreza).
no seu tamanho e idade de encerramento. A O Índice de Massa Corporal (IMC) carate-
fontanela anterior, embora encerre na maio- riza a proporção relativa entre o peso e a estatura
ria dos casos entre os dez e os 24 meses, em e deve ser sistematicamente utilizado para rastreio
algumas crianças saudáveis poderá estar ocluí- nutricional, sendo de fácil aplicabilidade:
da aos quatro meses ou encerrar apenas aos
26 meses. Uma fontanela demasiado grande IMC = peso (kg) / estatura2 (m)
pode refletir aumento da pressão intracra-
niana, hipotiroidismo ou displasias ósseas, e Este índice é uma medida indireta da adipo-
um encerramento precoce craniossinostose, sidade, que varia durante a vida pediátrica com a
hipertiroidismo ou desenvolvimento cerebral idade e o sexo, pelo que não deve ser considerado
anómalo. A fontanela posterior é geralmente o seu valor absoluto como no adulto, mas sim
de pequenas dimensões ao nascimento (inferior de acordo com as curvas de percentis. O IMC é
à polpa do indicador) e encerra entre a quarta especialmente útil no diagnóstico e seguimento de
e oitava semanas de vida. crianças com excesso de peso e obesidade, cujas
definições se apresentam mais adiante. Antes dos
A apreciação do crescimento não deverá ser dois anos, a relação peso-comprimento é o índice
feita com base num valor isolado, sendo funda- mais recomendado para avaliação da adiposidade,
mental a avaliação longitudinal. Por exemplo uma apesar de estarem já disponíveis curvas de IMC
criança que cresce regularmente num percentil para esta idade.
baixo, e.g. P5, tem menor probabilidade de ter Os limites para desnutrição não estão tão
doença do que outra que anteriormente crescia bem definidos, considerando-se “em risco” quan-
no P75 e cruzou percentis até ao P5. Também, não do o IMC é inferior ao P15, pelo que estas crianças
há dúvida, que é mais tranquilizador uma criança devem ser avaliadas mais criteriosamente.
que cresce regularmente num percentil baixo mas Outra forma de avaliar o estado nutricional
apresenta boa vitalidade e exame objetivo normal, é usando o conceito do “peso ideal” (ou seja o
do que outra com a estatura e o peso próximo peso adequado para o tamanho da criança – ou a
da média mas com sinais ou sintomas de doença. sua estatura), ou então a percentagem do “peso
180 RAQUEL SOARES

Caso 1: rapaz de 9 meses que mede 70 cm (P15) (A); Caso 2: rapaz de 18 meses que mede 76 cm (P3) (A);
o seu peso ideal será 8 kg (P15) (B); a sua idade estatural é de 13 meses (B);
sendo o seu peso real de 6 Kg (< P3) (C), se o seu peso real for de 9 kg, o seu peso para a
verifica-se que tem 75% do peso ideal. idade cronológica está no P3 (C),
mas o peso para a estatura (idade estatural) estará
no P15 (D).

Figura 3. Peso ideal e idade estatural.


CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 181

ideal”. Para determinar o “peso ideal”, coloca-


-se o valor da estatura da criança em análise
na curva de percentil respetiva, e considera-se
o “seu peso ideal” o peso correspondente ao
percentil da estatura. Pode então aplicar-se a
seguinte fórmula:

Percentagem do peso ideal =


peso real / peso ideal x 100
Valores médios da relação segmento superior/segmento inferior
Pode ainda considerar-se o peso para a
estatura. A idade estatural é a idade que a
Ao 3 anos 5 anos 10 anos >10 anos
criança teria se a sua estatura estivesse no
nascimento
P 50 . Pode então verificar-se se o peso atual da
1,7 1,33 1,17 1,0 <1,0
criança é adequado ou não à idade estatural
(figura 3).
Figura 4. Proporções normais do corpo humano.
Uma avaliação nutricional mais detalhada
deverá ainda incluir o perímetro braquial, índice
de avaliação da massa muscular ou seja das reser-
vas proteicas da criança. A medição é efetuada
no braço esquerdo, exatamente a meia altura Segmentos corporais
entre o acrómio e o olecrânio, com o membro em No processo dinâmico que é o crescimento,
repouso, semifletido com um eixo de 90º entre as proporções dos diferentes segmentos do corpo
o braço e o antebraço. Para avaliação da massa vão-se modificando. O segmento inferior (SI) é a
gorda, reservas calóricas, utiliza-se a medição distância entre o limite superior da sínfise púbi-
das pregas cutâneas, sobretudo a tricipital e a ca e a superfície plantar, e o segmento superior
subescapular. Como medida absoluta tem valor (SS) é a diferença entre o comprimento ou altura
clínico limitado, não sendo de fácil execução e o segmento inferior. No crescimento normal
técnica, mas poderá ser útil na monitorização a relação SS/SI diminui progressivamente até à
da malnutrição, doenças com variação da com- puberdade (Figura 4). Este é um índice particu-
posição corporal e na obesidade. O perímetro larmente útil quando se identificam alterações do
abdominal, embora menos usado na prática clíni- crescimento linear, sendo exemplos de patologias
ca em pediatria, é importante para avaliação da com aumento da relação SS/SI (ou seja membros
adiposidade visceral em crianças e adolescentes inferiores curtos) a acondroplasia, o raquitismo
com obesidade, sendo um indicador de risco ou o síndrome de Turner, e com diminuição o
cardiovascular. síndrome de Marfan.
182 RAQUEL SOARES

Os dentes caraterística constitucional. No entanto a proba-


A erupção da dentição primária (dentes de bilidade de estar presente uma perturbação de
leite) é tipicamente bilateral e simétrica, havendo crescimento é superior, uma vez que os valores
variabilidade individual e familiar. Geralmente os extremos, afastados da média são raros, logo com
incisivos centrais mandibulares são os primeiros a maior probabilidade de serem “valores anómalos”.
surgir, entre os seis e os dez meses, seguidos dos A observação da trajetória do crescimento
incisivos centrais maxilares, dos incisivos laterais, nas curvas de percentis ajuda a distinguir dife-
dos primeiros molares, dos caninos e segundos rentes tipos de crescimento desajustado. Peso,
molares. A erupção dos 20 dentes que constituem estatura e PC deverão ser sempre analisados em
a dentição primária fica completa pelos 30 meses. conjunto e considerados de acordo com o poten-
Não é considerado anormal a ausência de dentes cial genético da criança, nomeadamente através
até aos 15 meses, mas após esta idade terão de do cálculo da estatura alvo. Uma criança com
ser consideradas para estudo doenças como o má nutrição, resultante de doença crónica,
hipotiroidismo e o raquitismo. Os sinais e sinto- mal absorção ou mesmo negligência, apre-
mais frequentemente referidos como associados senta inicialmente inflexão na curva do peso,
à erupção dentária, como a febre ou a diarreia, seguida depois de decréscimo no ganho es-
não deverão ser atribuídos aos dentes, mas a tatural. Nas crianças em que o crescimento
prováveis infeções concomitantes. linear é o primeiro a ser afetado, dever-se-á
A queda da dentição primária, com surgi- pensar em anomalias endócrinas, congénitas
mento da definitiva, inicia-se por volta dos seis ou genéticas.
anos. A erupção começa pelos incisivos centrais, Os períodos de crescimento rápido (pré-
seguidos sequencialmente dos primeiros molares, -natal, lactente e puberdade) são mais suscetíveis
incisivos laterais, caninos, primeiros pré-molares, a perturbações do crescimento. Se a agressão
segundos pré-molares, segundos molares e por for muito intensa e duradoura, condicionando
fim os terceiros molares após os 17 anos, ficando desvio importante do corredor do crescimento,
então a dentição de 32 dentes completa. poderemos ter uma recuperação incompleta,
mesmo após a eliminação ou a correção dos
11.2.2 As anomalias do crescimento fatores perturbadores. Verifica-se desta forma
perda de algumas potencialidades, passando a
Considera-se que uma criança tem um cres- criança a crescer num novo “corredor” abaixo
cimento normal, quando os valores se encontram do que estava geneticamente programado (perda
entre o P5 e P 95 (ou P3 e P 97) e tem uma velocidade de oportunidade).
de crescimento regular, isto é, segue um traje- Quando a perturbação ocorre no período
to paralelo às curvas de percentis. Recorde-se pré-natal, poderá ocorrer restrição de crescimento
porém que numa população considerada sau- intrauterino (RCIU). O recém-nascido será peque-
dável 5% das crianças terá valores abaixo do P5, no para a idade gestacional, ou seja, com peso
traduzindo este valor, na maioria dos casos, uma e/ou comprimento inferior ao P10 para a idade
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 183

gestacional e sexo, avaliado nas curvas de Fenton. 11.2.2.1 Anomalias do peso


Se o transtorno acontece numa fase precoce da A evolução insuficiente do peso e o apeti-
gestação, o peso e a estatura são ambos afetados, te, ou a falta dele, são das principais preocupações
apresentando o bebé um aspeto proporciona- dos pais nas consultas de Pediatria.
do (RCIU simétrico). Apesar de apresentar, após Antes de mais, é necessário distinguir a crian-
o nascimento, uma velocidade de crescimento ça magra, daquela que está desnutrida.
normal, poderá crescer num percentil inferior ao Falamos de magreza constitucional quan-
que estava geneticamente programado. Como do uma criança apresenta uma boa vitalidade,
causas temos, por exemplo, situações de infeção apetite normal e ausência de sinais de doença,
pré-natal por microrganismos do grupo TORCH embora com uma relação P/E <P5 ou IMC <P5,
e exposição ao etanol ou tabaco. Por outro lado, mas próximo deste valor de percentil. Trata-se
perturbações no último trimestre da gravidez vão geralmente de uma caraterística familiar e nas
condicionar baixo peso mantendo-se a estatura curvas de crescimento observa-se uma velocidade
normal (RCIU assimétrico). O RN apresenta aspeto de crescimento normal.
emagrecido ao nascimento, mas uma vez elimina- A má progressão ponderal (MPP), sendo
da a causa, vai recuperar o peso não sendo a sua um dos motivos frequentes de referenciação
estatura final afetada. A maioria das crianças com à consulta de pediatria geral hospitalar, deve
RCIU acelera o crescimento nos primeiros anos ser vista não como um síndrome, mas como um
de vida e recupera o crescimento até aos dois sinal físico de que a criança não está a receber um
anos. Nos prematuros o fenómeno é mais lento aporte nutricional adequado. A intervenção atem-
podendo prolongar-se até aos quatro anos. Este pada pode evitar consequências irreversíveis no
crescimento de recuperação (catch-up growth) crescimento e neurodesenvolvimento da criança.
não parece ser isento de complicações, sobretudo Não existe uma definição consensual para
se o ganho ponderal for rápido nos primeiros MPP, devendo esta ser considerada, abaixo dos
anos de vida. Na fase de restrição intra-uterina dois anos, quando estiver presente uma das se-
de nutrientes desenvolveram-se mecanismos guintes situações: i) cruzamento inferior de dois ou
adaptativos, que são desajustados ao ambiente mais percentis de peso (considerando os percentis
de abundância nutricional após o nascimento, 5, 10, 25, 50, 75, 90 e 95); ii) aumento ponderal
condicionando aumento do risco de complica- diário inferior ao estimado para a idade (Quadro
ções metabólicas futuras como a obesidade, a 1); iii) peso <P 2 ou P3 para a idade e sexo em
intolerância à glicose, a insulinorresistência, a mais que uma ocasião; iv) peso inferior a 80% do
diabetes mellitus tipo 2, a dislipidémia e doença peso ideal para a idade; v) diminuição da relação
cardiovascular (hipótese de Barker). peso/comprimento (isto é, idade ponderal inferior
à idade estatural ou relação peso/comprimento
Serão analisadas seguidamente não só as inferior ao P10).
anomalias patológicas do crescimento, mas tam- Nas crianças com mais de dois anos é geral-
bém as variantes da normalidade. mente necessário monitorizar adequadamente
184 RAQUEL SOARES

Quadro 2. Causas possíveis de má progressão ponderal de acordo com o mecanismo fisiopatológico subjacente.

Aporte inadequado
- Ingestão alimentar inadequada (quantidade insuficiente, negligência ou maus tratos, preparação incorreta do leite de
fórmula, alimentos inadequados à idade, excesso de sumos de fruta, alimentação restritiva);
- Técnica alimentar inadequada;
- Hipogalactia materna;
- Doença do refluxo gastroesofágico;
- Problemas mecânicos (fenda do palato, obstrução nasal, hipertrofia dos adenoides, lesões dentárias);
- Disfunção da sucção ou deglutição (patologia neurológica ou neuromuscular, distúrbios da motilidade esofágica);
- Conflito alimentar;
- Perturbação do comportamento alimentar;
- Anorexia secundária a doença cardiopulmonar, infeção crónica, imunodeficiência, obstipação;
- Perturbação mental do cuidador;
- Problemas económicos.
Absorção inadequada ou aumento das perdas
- Malbsorção (fibrose quística, doença celíaca, alergia às proteínas do leite de vaca ou outra, doença inflamatória intestinal,
intolerância à lactose, giardíase);
- Doença hepática ou biliar;
- Patologia renal crónica;
- Vómitos (gastroenterite infeciosa, hipertensão intracraniana, insuficiência suprarrenal);
- Diarreia infeciosa;
- Obstrução trato gastrointestinal (estenose hipertrófica do piloro, malrotação, hérnia);
- Síndrome do intestino curto.
Aumento das necessidades ou utilização inadequada
- Hipertiroidismo;
- Neoplasias;
- Doença inflamatória intestinal;
- Doença crónica sistémica (artrite idiopática juvenil);
- Infeção crónica ou recorrente (infeção urinária, tuberculose, toxoplasmose);
-Problemas metabólicos crónicos (diabetes mellitus, doenças hereditárias do metabolismo, insuficiência suprarrenal);
- Insuficiência respiratória crónica (fibrose quística, displasia broncopulmonar);
- Síndrome de apneia obstrutiva do sono;
- Doença cardíaca congénita ou adquirida.

o crescimento por um período de pelo me- Para identificar a causa de MPP, é necessário
nos seis meses, devendo considerar-se MPP perceber que a nutrição adequada depende do
se houver: i) perda de peso, após um perío- balanço entre o aporte fornecido, a absorção e a
do de crescimento normal; ii) diminuição da utilização dos nutrientes, as perdas urinárias ou
velocidade de crescimento ponderal, isto é, gastrointestinais e as necessidades metabólicas
mudança de canal de crescimento; iii) aumento do organismo (Quadro 2).
ponderal lento, muito inferior ao P 5; e iv) peso A história clínica terá de se iniciar por
e estatura proporcionais, mas muito inferiores uma correta e exaustiva avaliação da alimentação
à estatura alvo. atual (ingesta): qualidade, quantidade, forma de
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 185

Figura 5. MPP por doença celíaca. Menina com quadro clínico de diarreia e MPP; ao exame objetivo apresentava distensão ab-
dominal importante, massas musculares pobres e pregas de desnutrição nadegueiras; recuperação ponderal após dieta sem glúten.

preparação, horário, ambiente em que é feita a com um percurso invulgar que podem indicar
refeição e atitude perante os alimentos (apeti- imunodeficiência.
te, recusa, preferências e restrições alimentares, A avaliação do neurodesenvolvimento e
relação com texturas, suspeita de alergias ou ve- comportamento é também fundamental. Défices
getarianismo). Depois perceber se existem perdas neurológicos, mesmo que ligeiros, podem inter-
anómalas através do conhecimento da tolerância ferir com a capacidade da criança se alimentar.
alimentar (vómitos ou regurgitações) e das ca- Não poderá ser esquecida também a carate-
raterísticas das dejeções e micções. Questionar rização do ambiente psicossocial em que a criança
a presença de sintomas gerais, como febre e está inserida. Situações de pobreza, abuso de
astenia, e efetuar revisão dos vários aparelhos álcool e drogas, depressão parental, conflitos fa-
e sistemas que permitirá identificar sinais ou miliares, estilo parental mal adaptativo, são causas
sintomas orientadores de doença orgânica es- importantes de aporte nutricional desajustado.
pecífica subjacente. No exame objetivo deverão ser pesquisa-
Nos antecedentes pessoais, não esquecer dos sinais de desnutrição, como diminuição das
fatores de risco para MPP como a prematuridade, massas musculares e das pregas glúteas, ou de
RCIU e a exposição intrauterina a etanol ou fárma- défices específicos como, e.g. palidez cutâneo-
cos, bem como doenças crónicas existentes que -mucosa e cabelo quebradiço na anemia. Sinais
possam afetar a ingestão, absorção ou consumo da doença de base poderão estar presentes,
excessivo de energia, ou infeções frequentes ou como a distensão abdominal nas doenças com
186 RAQUEL SOARES

malabsorção como é o caso da doença celíaca O tratamento da MPP deverá ser sempre
(Figura 5), alterações da auscultação pulmonar específico, dependendo da causa identificada.
na fibrose quística, dismorfismos típicos em al- Se após análise da trajetória do crescimento
gumas doenças genéticas e lesões sugestivas de ponderal, não parece haver anomalias e o exame
negligência ou maus tratos. objetivo for normal, a família deve ser tranquiliza-
da, evitando a alimentação forçada ou a prescri-
A investigação com exames complemen- ção indiscriminada de suplementos nutricionais ou
tares raramente revela uma causa orgânica na vitamínicos. É necessário reforçar os princípios de
ausência de história clínica e sinais no exame ob- uma dieta saudável e comportamento alimentar
jetivo sugestivos, pelo que esta deve ser sempre adequado: qualidade e variedade dos alimentos,
sequencial e orientada. No entanto, nas crianças respeito pelo horário das refeições e pelo apeti-
com clínica subtil, em que os dados obtidos não te, não substituir refeições, nomeadamente com
são claramente orientadores, poder-se-á consi- produtos lácteos, e evitar conflitos à refeição.
derar na primeira abordagem a realização do No outro extremo dos problemas de peso
hemograma, que permite rastrear anemia, temos o excesso de peso e a obesidade, cuja
da velocidade de sedimentação e proteína prevalência tem vindo a aumentar em todo o
C reativa, como elementos rastreadores de mundo condicionando o aparecimento em idade
infeção ou inflamação, e ainda da sumária pediátrica de doenças outrora só encontradas no
de urina e urocultura, para excluir infeção adulto, como a hipertensão, insulinorresistência,
urinária ou doença renal. A investigação mais diabetes e dislipidémia. As definições, de acordo
dirigida deverá ser ponderada caso a caso po- com a OMS, apresentam-se no quadro 3.
dendo incluir avaliação sérica da ureia, creati-
nina, ionograma, albumina, proteínas totais, Quadro 3: Definições de excesso de peso e obesidade,
nas curvas da OMS.
enzimas hepáticas (que permitem avaliar função
renal e hepática, mas também o estado nutri-
cional), gasometria (para excluir alteração do Percentil do IMC
equilíbrio ácido base, particularmente acidose), < 5 anos 5 a 19 anos
doseamento da Imunoglobulina A total e anti- Excesso de peso >P 97 >P 85
corpos antitransglutaminase e antigliadina (para Obesidade >P 99 >P 97

excluir doença celíaca), a hormona estimulante


da tiroide (TSH) e a hormona tiroideia T4 livre Na maioria dos casos de obesidade (95
(na suspeita de hipertiroidismo), coprocultura e a 99%) a causa é primária ou nutricional, e
exame parasitológico das fezes (na suspeita de resulta de uma predisposição genética fortemente
infeção gastrointestinal), radiografia torácica e favorecida pelo desequilíbrio entre o aporte, que
teste do suor (na suspeita de doença pulmonar é excessivo e/ou inadequado, e o consumo ener-
e fibrose quística em particular). gético, que é baixo. Estas crianças apresentam
geralmente uma estatura acima do P50 ou superior
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 187

à estatura alvo familiar na fase de crescimento, colheita de sangue após jejum de 12 horas, para
embora a estatura final venha a ser a esperada. determinação do perfil lipídico (colesterol total,
Sobretudo nas raparigas, pode observar-se tam- lipoproteína de baixa densidade - LDL, lipopro-
bém uma idade óssea aumentada e um desen- teína de alta densidade - HDL, triglicerídeos), da
volvimento mais precoce da puberdade. glicose e insulina e das transaminases (transami-
Uma história clínica completa nestes doentes nase glutâmico-oxalacética - TGO, transaminase
com excesso de peso ou obesidade, deve incluir glutâmico-pirúvica - TGP).
descrição da evolução do crescimento, inquéri- Outros exames deverão ser solicitados caso
to alimentar (refeições, qualidade, quantidade, a caso mediante suspeita clínica de causas secun-
ambiente), atividade física (desporto escolar e dárias, sendo estas bastante mais raras (1 a 5%).
extracurricular, tempos livres, tempo de exposição Deve suspeitar-se de síndromes genéticos (e.g.
ao ecrã), hábitos de sono, história psicossocial síndrome de Prader-Willi) quando estão presen-
(imagem corporal, rendimento escolar, bullying, tes dismorfismos típicos, atraso desenvolvimento
contexto familiar) e uma revisão da semiologia por psicomotor e baixa estatura, ou de síndromes de
sistemas orgânicos que permita identificar even- obesidade monogénica (e.g. mutação do recetor
tuais comorbilidades. Nos antecedentes pessoais 4 da melanocortina ou défice de leptina) se iden-
valorizar fatores de risco para obesidade com a tificada obesidade grave de início precoce. As
diabetes gestacional, baixo peso de nascimento crianças com distúrbios endócrinos (e.g. hipotiroi-
ou macrossomia ao nascer. É reconhecido que dismo, síndrome de Cushing, défice de hormona
influências nutricionais e ambientais em períodos de crescimento) apresentam geralmente baixa
críticos do crescimento, nomeadamente desde estatura ou desaceleração do crescimento linear
a gestação até aos dois anos de vida, podem e hipogonadismo. Alguns fármacos poderão tam-
ter efeitos permanentes na predisposição para bém ser responsáveis por aumento de peso (e.g.
o desenvolvimento de obesidade (programação corticoides, antipsicóticos, valproato de sódio).
metabólica). Nos antecedentes familiares avaliar O tratamento da obesidade primária
a presença de obesidade, diabetes mellitus tipo baseia-se na prescrição de hábitos saudáveis ali-
2 (DM2), hipertensão arterial (HTA), dislipidémia mentares e de atividade física. É fundamental
ou doença cardiovascular precoce. O exame ob- estabelecer um plano alimentar individualizado,
jetivo permite identificar HTA, acantose nigricans, equilibrado, com refeições frequentes, limitan-
estrias, adipomastia e hepatomegália. do o tamanho das porções, excluindo alimentos
As principais comorbilidades associadas à de elevada densidade energética (e.g. bebidas
obesidade em pediatria são as psicológicas (bai- açucaradas, doces, snacks). Devem limitar-se as
xa autoestima, isolamento social e depressão), atividades sedentárias (o tempo de televisão ou
as endócrinas (insulinorresistência ou na obesi- de videojogos deve ser inferior a duas horas por
dade grave a DM2), a HTA, a dislipidémia e a dia) e incluir no plano exercício físico programa-
esteato-hepatite não alcoólica. Desta forma, na do extraescolar, bem como outras atividades na
avaliação analítica destes doentes, deve constar a rotina diária, como caminhadas em família.
188 RAQUEL SOARES

Caso 1: Baixa estatura familiar. Crescimento Caso 2: Hipotiroidismo adquirido. Desacele-


estatural no percentil da estatura alvo prevista, ração do crescimento estatural após os três
velocidade de crescimento normal, idade ós- anos com aumento importante do peso, idade
sea normal (assinalada com uma *) aos 4 anos. óssea em atraso aos 4,5 anos.

EAF - estatura alvo familiar.

Figura 6: Baixa estatura familiar e baixa estatura patológica.


CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 189

Uma vez que a criança está em crescimento, puberdade e o surto de crescimento a ele asso-
o objetivo da intervenção pode não ser a perda ciado varia de família para família. O padrão de
de peso, mas tão-somente a sua manutenção, maturação nos pais deve ser sempre averiguado:
sobretudo na criança mais jovem, o que levará saber a idade de menarca na mãe e a idade de
só por si à normalização do IMC. aparecimento de caracteres sexuais secundários
no pai. Nas crianças com ACC verifica-se uma
11.2.2.2 Anomalias da estatura velocidade de crescimento estatural mais lenta
A estatura final da criança é fortemente con- que o normal nos dois a três primeiros anos
dicionada pela genética, havendo uma probabili- de vida, normalizando depois até à puberdade,
dade de 95% de se situar na zona percentual da mas seguindo um “corredor” mais baixo que o
estatura dos seus pais. previsto pela EAF, em regra nunca muito inferior
As principais causas de baixa estatura após ao P 5. Próximo da idade da puberdade, verifica-
os dois primeiros anos de vida são variantes do -se uma aceleração de crescimento e maturação
crescimento normal: baixa estatura familiar dos seus pares, o que faz notar ainda mais a
(BEF) e atraso constitucional do crescimento diferença de estatura da criança em questão.
e puberdade (ACC). Ao avaliar a criança nesta fase identifica-se uma
Filhos de pais baixos serão mais baixos que idade óssea em atraso. A puberdade com o seu
a média da população, mas terão velocidades de surto de crescimento vem a ocorrer dois a três
crescimento normais e serão perfeitamente saudá- anos mais tarde, fazendo com que a estatura
veis. Falamos de BEF quando a estatura é baixa, se aproxime da geneticamente programada. Na
mas adequada ao padrão da família (Figura 6). maioria dos casos, este padrão de crescimento
descrito é retratado num dos pais ou familiares
Também o ritmo de crescimento está próximos pelo que, após exclusão de patologia,
geneticamente determinado. O momento da a família deverá ser tranquilizada.

Quadro 4. Diagnóstico diferencial entre BEF e ACC.

BEF ACC
História familiar Um ou mais familiares com BE Maturação tardia
Início Baixa estatura e baixo peso ao nascimento Estatura e peso normais ao nascer
Desaceleração simultânea do peso e da estatura
entre os 3 – 6 meses e os 18 – 24 meses
Velocidade de crescimento Normal Normal
Idade óssea Adequada à idade cronológica Inferior à idade cronológica
Adequada à idade estatural
Puberdade Em idade normal Diferida dois a três anos
Estatura final Baixa, mas adequada ao potencial genético Normal
190 RAQUEL SOARES

Baixa estatura define-se como o compri- relação entre o peso e a estatura, a somatometria
mento ou estatura inferior a dois desvios padrão ao nascimento, o padrão de crescimento dos pais
(2DP) abaixo da média para a idade e o sexo. Na e irmãos, a presença de dismorfismos e a avaliação
prática devemos considerar que poderá existir das proporções corporais.
anomalia do crescimento linear quando se ob-
serva: i) crescimento estatural inferior ao P3; ii) A evidência de dismorfismos pode orientar
crescimento estatural muito inferior à estatura para a pesquisa de síndromes específicos que
alvo familiar (<1,5DP); iii) cruzamento inferior de cursam com baixa estatura como são exemplos os
dois percentis major na estatura; iv) velocidade síndromes de Turner, de Noonan, de Prader-Willi
de crescimento: entre os dois e os quatro anos e a trissomia 21, entre outros. No síndrome de
inferior a 5,5 cm/ano, entre os quatro e os seis Turner as caraterísticas fenotípicas típicas
anos inferior a 5 cm/ano, e entre os seis anos e nem sempre estão presentes, pelo que o ca-
a puberdade inferior a 4 cm/ano nos rapazes e riótipo deve ser estudado em todos os casos
inferior a 4,5 cm/ano nas raparigas. de baixa estatura no sexo feminino.
Nestes casos deverá ser sempre cuidado- A avaliação da somatometria ao nascimento
samente avaliada a trajetória de crescimento, a permite identificar crianças com RCIU. Naquelas

RCIU: restrição de crescimento intra-uterino; IMC: índice de massa corporal. IRC: insuficiência renal crónica; DII: doença
inflamatória intestinal; HC: hormona de crescimento. (Adaptado de Crescimento normal e patológico - Manual prático de avaliação
— Fontoura M, Fonseca M, Moura LS. Crescimento normal e patológico. Manual prático de avaliação. Apoio Pfizer)

Figura 7. Diagnóstico diferencial de baixa estatura.


CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 191

em que não se verifica um crescimento de re- de crescimento e um atraso da idade óssea. Na sua
cuperação estatural até aos quatro anos, deve suspeita deverá ser doseada a IGF-1 e a IGFBP-3,
ser efetuada uma investigação para exclusão de que estarão abaixo dos valores normais. A confir-
outras causas de baixa estatura, já que, na sua mação é feita através de um teste de estimulação
ausência, estas serão candidatas a terapêutica da HC efetuado apenas em centros especializados
com hormona de crescimento. e o tratamento passa pela administração da HC.
O cálculo do IMC é útil no estudo de baixa Outras indicações para terapêutica com HC, estão
estatura. Se for baixo orienta para a presença de registadas no quadro 5. O excesso de cortisol,
doença prolongada com compromisso nutricional; quer por aumento de produção endógena pela
se for normal ou elevado sugere uma doença glândula suprarrenal (síndrome de Cushing), quer
endócrina. na corticoterapia de longa duração, determina
A malnutrição carencial ou secundária a também diminuição da velocidade de crescimento
doença orgânica condiciona inicialmente apenas estatural, verificando-se associadamente aumento
a diminuição do peso, com redução da relação ponderal.
peso/estatura. Se a malnutrição se mantiver,
a síntese de IGF-1 é inibida afetando deste Quadro 5. Indicações para terapêutica com hormona
de crescimento.
modo a velocidade de crescimento estatu-
ral e a idade óssea. São exemplos clássicos a
doença celíaca, a doença inflamatória intestinal, - RCIU com ausência de crescimento de recuperação
a insuficiência renal crónica ou até défices graves até aos quatro anos
- Défice de HC
de aporte, este último mais frequente em países
- Insuficiência renal crónica
subdesenvolvidos. A doença celíaca, porém, - síndrome de Turner
pode ter como forma de apresentação a baixa - síndrome de Prader Willi
estatura isolada.
As causas endócrinas são responsáveis por
apenas 1 a 5% das baixas estaturas, sendo mais Na baixa estatura desproporcionada,
comuns o hipotiroidismo, o défice de hormona incluem-se as displasias ósseas e as alterações
de crescimento e o síndrome de Cushing. do metabolismo fosfo-cálcio. As displasias ósseas
No hipotiroidismo adquirido (tiroidite de são um grupo heterogéneo de doenças que se
Hashimoto), verifica-se baixa estatura com peso caraterizam por anomalias da cartilagem e cres-
normal ou elevado, a que se associa uma redução cimento ósseo, resultando em baixa estatura com
na velocidade de crescimento com cruzamento desproporção entre tronco, membros e crânio.
inferior de percentis e idade óssea muito dimi- O seu estudo inclui a realização de radiografias
nuída relativamente à cronológica (Figura 6). A do esqueleto e investigação genética e molecular.
nível laboratorial a TSH está elevada e a T4 livre São exemplos a acondroplasia que se apresenta
diminuída. No défice de hormona de crescimento logo ao nascimento com membros curtos, ma-
verifica-se também uma diminuição da velocidade crocefalia, base nasal achatada, mão em tridente
192 RAQUEL SOARES

e lordose lombar; e a osteogénese imperfeita saúde primários ou pelo pediatra assistente, de-
que também se caracteriza por membros curtos vendo haver referenciação para a endocrinologia
e macrocefalia, mas que associa hiperlaxidez li- pediátrica sempre que seja considerada necessária
gamentar, extremidades deformadas, escoliose, uma orientação mais detalhada.
escleróticas azuis e evidência radiológica de múl- A referenciação à consulta por estatura
tiplas fraturas e calos ósseos. Nestes casos de anormalmente elevada é muito menos comum.
baixa estatura desproporcionada pode também Alta estatura define-se como comprimento
suspeitar-se de raquitismo quando está presente ou estatura superior a 2DP acima da média
hipotonia, encurvamento dos membros inferiores ou superior ao P 97, para a idade e o sexo. Será
e bossas frontais. considerada uma variante do normal se o seu
Na suspeita de doença orgânica em crianças valor se encontrar dentro da estatura alvo pre-
com baixa estatura, os exames complementares vista (alta estatura familiar) ou de acordo com o
deverão ser efetuados de forma criteriosa de acor- padrão de maturação da família. A obesidade,
do com os dados clínicos (Quadro 6). como já foi descrito, pode condicionar tam-
A avaliação inicial das situações de baixa bém uma estatura elevada, sendo a sua causa
estatura deverá ser efetuada nos cuidados de nutricional. São causas menos frequentes as

Quadro 6. Exames complementares de diagnóstico na investigação de baixa estatura.

Exames complementares Suspeita de diagnóstico


Hemograma anemia carencial, inflamação crónica
VS inflamação crónica
TGO, TGP, GGT, Albumina malnutrição, doença hepática
Ureia, Creatinina, Sódio, Potássio, Cálcio, Fósforo, SU tipo II doença renal
Paratormona, cálcio, fósforo raquitismo
Gasometria tubulopatia renal, doença metabólica, doença renal
IgA total, Acs antitransglutaminase doença celíaca
TSH, T4livre hipotiroidismo
IGF-1, IGFBP3 défice de HC
ACTH, cortisol sérico e urinário síndrome Cushing
Cariótipo síndrome Turner
Idade óssea diminuída: hipotiroidismo, défice HC, ACM
aumentada: puberdade precoce
Radiografia do esqueleto displasia óssea

VS: velocidade de sedimentação; TGO: transaminase glutâmico-oxalacética; TGP: transaminase glutâmico-pirúvica;


GGT: gama glutamil transpeptidase; TSH: hormona estimulante da tiroide; T4: tiroxina; ACTH: hormona adrenocorticotrófica;
HC: hormona de crescimento; ACC: atraso constitucional de crescimento e maturação.
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 193

doenças endócrinas, como o hipertiroidismo, posteriormente uma progressão paralela (Figura


o excesso de hormona de crescimento produ- 8). A ecografia transfontanelar é um exame não
zido por exemplo por adenomas hipofisários, invasivo útil no esclarecimento de algumas destas
ou situações de puberdade precoce. Alguns sín- situações. Deverão ser concomitantemente sem-
dromes genéticos estão também associados a pre avaliados o neurodesenvolvimento, a tensão
hipercrescimento, tais como os síndromes de das fontanelas, o espaço entre os bordos ósseos
Klinefelter, de X frágil, de Beckwith-Widemann (diástese das suturas - bordos ósseos afasta-
e de Marfan, apresentando cada um deles ca- dos), e sinais e sintomas de hipertensão craniana.
raterísticas específicas que ajudam à sua iden- A evidência de alterações a este nível sugere
tificação. patologias como a hidrocefalia, a hemorragia
e outras lesões intracranianas como tumores,
11.2.2.3 Anomalias do perímetro craniano abcessos e doenças genéticas e metabólicas com
O perímetro craniano (PC) deve ser sempre envolvimento cerebral.
relacionado com a estatura da criança. Uma crian-
ça pequena terá provavelmente uma cabeça mais A microcefalia pode também ser uma
pequena que uma criança grande. O PC não é caraterística familiar, mas mais frequentemen-
na generalidade dos casos influenciado pela te está associada a perturbação do crescimento
nutrição, pelo que paragens de progressão cerebral. Devem ser consideradas na sua base
ou desvios da normalidade são sempre de agressões do desenvolvimento cerebral por causas
valorizar. genéticas (cromossomopatias, distúrbios mono-
Considera-se macrocefalia e microcefalia, génicos, microdeleções/duplicações, síndromes
respetivamente, quando relativamente à média genéticos e metabólicos) ou causas adquiridas,
para idade e sexo o valor do PC é superior (P 97 ) como agentes teratogénicos, infeciosos, lesões
ou inferior (P3) a 2DP. do parto, acidentes vasculares cerebrais, eventos
A macrocefalia pode ser causada pelo au- traumáticos como os maus tratos, ou ainda ser
mento de qualquer um dos componentes do crâ- provocada por encerramento precoce das suturas
nio (cérebro, líquido cefalorraquídeo, sangue ou cranianas (craniossinostose). Na maioria dos casos
osso) ou ser devida a aumento da pressão intra- existe uma associação com clínica neurológica ou
craniana. Em muitos casos, uma cabeça grande perturbação do neurodesenvolvimento (Figura
é uma caraterística familiar (macrocefalia fami- 8), devendo ser referenciados para consulta de
liar), sendo assim fundamental avaliar o PC dos Neurodesenvolvimento.
pais e irmãos. Está associada em muitos casos
a megalencefalia ou a alargamento benigno do
espaço subaracnoideu. Nestas crianças, verifica- 11.3 FACTOS A RETER
-se geralmente uma cabeça grande desde o nas-
cimento ou um cruzamento ascendente de per- O crescimento adequado é um bom indica-
centis nos primeiros seis meses de vida, seguindo dor do estado de saúde da criança.
194 RAQUEL SOARES

Caso 1: Macrocefalia familiar em criança com Caso 2: Microcefalia em criança com atraso
exame neurológico e desenvolvimento normais, de desenvolvimento psicomotor.
pai com PC > 2SD.

Figura 8. Macrocefalia e microcefalia.

As curvas da OMS são atualmente consi- Condições médicas que perturbem o es-
deradas as mais adequadas para monitorizar o tado de saúde de uma criança, podem ter re-
crescimento. percussões no crescimento. Quando o processo
Peso, estatura, PC e IMC deverão ser siste- do crescimento não evolui dentro dos padrões
maticamente avaliados nas consultas de vigilância previstos, é importante realizar anamnese diri-
de saúde infantil e juvenil e analisados de acordo gida e detalhada, avaliação conjunta das traje-
com a sua progressão nas curvas de percentis tórias do peso, estatura e perímetro craniano e
para a idade e sexo. um cuidadoso exame objetivo, para distinguir
A dentição primária surge entre os seis e os variantes do normal de situações patológicas.
dez meses e a definitiva inicia-se por volta dos Na base de uma MPP reside uma nutrição
seis anos, havendo variação individual. desadequada que pode ser explicada por: aporte
CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 195

insuficiente, má absorção ou inadequada utiliza- iatrogenia em que se incluem investigações e


ção dos nutrientes, perdas urinárias ou gastroin- intervenções desnecessárias.
testinais aumentadas ou acréscimo das necessi- A macrocefalia pode ser uma caraterística
dades metabólicas do organismo. Uma história familiar, mas na presença de sintomas neuroló-
clínica detalhada com exame objetivo cuidadoso, gicos, hipertensão intracraniana ou alteração do
orientam o plano a implementar. neurodesenvolvimento, deverá ser investigada.
A obesidade é de causa primária ou nutri- A microcefalia está geralmente associada a situa-
cional na grande maioria dos casos. Deverão ser ções patológicas que perturbam o crescimento
rastreadas eventuais comorbilidades associadas cerebral e o neurodesenvolvimento.
e prescrever um plano de orientação baseado
em hábitos saudáveis de alimentação e atividade Leitura complementar:
física. Fontoura M, Fonseca M, Moura LS. Crescimento normal e
No caso de baixa estatura ou desacelera- patológico. Manual prático de avaliação. Apoio Pfizer
ção da velocidade de crescimento, deverá ser Dimitri P. Growth and puberty. In: Lissauer T, ClaydenG.
analisada a somatometria ao nascimento, a Illustrated Textbook of Paediatrics. London: Mosby
evolução das curvas de crescimento, a estatu- Elsevier, 2012. pp 181-199.
ra e o padrão de maturação de pais e irmãos, Guerra A. As curvas de crescimento da Organização Mundial
a presença de sinais ou sintomas de doença, a de Saúde. Acta Pediátrica Portuguesa. 2009; 40(3):XLI-V
terapêutica crónica, e realizar exame objetivo Barlow SE and and the Expert Committee. Expert Committee.
cuidadoso tendo em atenção a presença de Recommendations Regarding the Prevention, Assessment,
dismorfismos e a proporção dos segmentos and Treatment of Child and Adolescent Overweight and
corporais. O conhecimento das variantes da Obesity: Summary Report. Pediatrics 2007;120;S164-S192.
normalidade, como a baixa estatura familiar e Jaffe AC. Failure to Thrieve: Current Clinical Concepts.
o atraso constitucional de crescimento, acautela Pediatrics in Review. 2011; 32(3):100-108.
196 RAQUEL SOARES

A N E XO 1
CURVAS DE CRESCIMENTO DA OMS
PROGRAMA NACIONAL DE SAÚDE INFANTIL E JUVENIL 2013

Raparigas – Peso 0-5 anos


CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 197

Raparigas – Comprimento / altura 0-5 anos


198 RAQUEL SOARES

Raparigas – Peso 5-10 anos


CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 199

Raparigas – Altura 5-19 anos


200 RAQUEL SOARES

Raparigas – IMC 0-5 anos


CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 201

Raparigas – IMC 5-19 anos


202 RAQUEL SOARES

Raparigas – Perímetro cefálico 0-24 meses


CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 203

Rapazes – Perímetro cefálico 0-24 meses


204 RAQUEL SOARES

Rapazes – Peso 0-5 anos


CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 205

Rapazes – Comprimento / altura 0-5 anos


206 RAQUEL SOARES

Rapazes – Peso 5-10 anos


CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 207

Rapazes – Altura 5-19 anos


208 RAQUEL SOARES

Rapazes – IMC 0-5 anos


CAPÍTULO 11. CRESCIMENTO E OS SEUS PROBLEMAS 209

Rapazes – IMC 5-19 anos


Capítulo 12.
Neurodesenvolvimento
e comportamento

12
Guiomar Oliveira
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_12
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 213

12.1 CONTEXTO um processo contínuo e evolutivo que decorre


da maturação física, incluindo a neuronal, que
Podes ensinar-me como se cresce, ou isso atravessa várias etapas, numa sequência orde-
é indizível como a melodia ou a sedução? nada, e previsível. Nos anos 20 do século pas-
Emily Dickinson (1862). sado, estabeleceu as suas “normas” ao avaliar,
de um modo longitudinal, um grupo saudável
O neurodesenvolvimento duma criança de crianças. Ficaram desde então conhecidos os
pode definir-se como um processo progressivo milestones ou marcos do DPM. Significa então,
de aquisição de competências psicomotoras e que as crianças em determinadas idades, consi-
comportamentais, cada vez mais complexas, que deradas chave para avaliação (veremos mais à
lhe permita vir a adquirir autonomia pessoal, do- frente quais são), atingem certas capacidades.
méstica e social, com plena adaptação ao meio Este conhecimento foi e é tão útil, que atual-
social e cultural em que vive. mente a maioria dos testes de avaliação se baseia
nestes marcos desenvolvimentais, reveladores de
Este tema, exclusivo da criança, só foi me- maturação neuronal. Ronald Illingworth, discí-
recedor do interesse da comunidade científica pulo de Gesell, introduziu esta experiência na
na transição do século XIX para o XX, na época Europa e fundou o primeiro Centro de Estudos
em que esta deixou de ser considerada como em Neurodesenvolvimento na Universidade de
um adulto em ponto pequeno. Em simultâneo, Sheffield. Formou-se então a escola de pedia-
as disfunções desta área começaram a ser clas- tras comunitários ingleses dos anos sessenta.
sificadas em patologia, e em paralelo foram de- O livro de desenvolvimento infantil “From birth
sencadeados planos específicos de intervenção to five years: Children’s developmental progress”
à semelhança do que já se fazia com os outros publicado por Mary Dorothy Sheridan em 1973,
problemas de saúde. disso é exemplo.

A compreensão da base, e dos fatores deter- Alfred Binet e Terman Simon, criaram o
minantes do desenvolvimento psicomotor (DPM) conceito de quociente de inteligência (QI), pos-
e comportamento infantil, bem como o seu modo teriormente aplicável por outros autores ao de-
de avaliação e intervenção tem sido objeto de senvolvimento psicomotor - quociente de de-
múltiplas teorias. senvolvimento (QD) nas idades pré, e escolar.
Este valor quantitativo, resulta da razão entre
Da vasta literatura, destaco alguns pontos o nível da idade mental (funcional) do indivíduo
que considero de grande utilidade para o conhe- (obtida através de avaliação formal com provas
cimento do tema e para a prática clínica. padronizados das funções desenvolvimentais e
cognitivas) e a sua idade cronológica. Na gene-
Arnold Gesell, da Universidade de Yale, ralidade das provas, os valores normais destes
considerou o DPM e o comportamento como quocientes variam entre a média de 100 (idade
214 GUIOMAR OLIVEIRA

mental sobreponível à cronológica), e dois desvios em que o professor/mentor, passo a passo, vai
padrão (DP-15); 100±30. conduzindo e modelando estratégias até o seu
“aprendiz” alcançar o seu potencial máximo.
Jean Piaget, estudou as bases biológicas do
desenvolvimento infantil e postulou que a criança Maria Montessori, deu-nos conta de perío-
aprende através de uma interação ativa com o seu dos sensíveis do desenvolvimento, como corres-
meio ambiente, antecipando as teorias atuais do pondendo a fases etárias da criança em que as
active learning, e do construtivismo. Descreveu aprendizagens de determinadas capacidades são
estádios neurodesenvolvimentais, sequenciais, cla- naturais – janelas de oportunidade; como é o
rificando o modo como a criança compreende e caso da aquisição da linguagem nos primeiros
interfere no mundo em que habita. anos de vida.

Os autores Freudianos, e Neo Freudianos O modelo ecológico, orienta-nos para uma


como Erik Erikson, deixam-nos como conheci- análise do DPM e do comportamento da criança
mento irrefutável que o contexto sócio ambiental integrada no seu meio, uma vez que estes são
do indivíduo, particularmente na sua fase infantil, determinados pela interação entre ambos: micros-
influencia marcadamente o seu comportamento e sistema (pais, irmãos, cuidadores, professores);
o futuro da Sociedade. Daí a tão famosa citação mesosistema (casa, infantário, escola); exosistema
por Freud da frase de William Wordsworth (1770 (serviço de saúde, social, educacional, seguran-
- 1850) “The Child is father of the Man”. ça...); e macrosistema (valores culturais de justiça,
proteção…).
O Behaviorismo, e a teoria da aprendizagem
social, consideram que a modelação comporta- Atualmente, as neurociências realçam o
mental é central na aprendizagem da criança. papel de todas as teorias, ao evidenciar que
Valorizam a aprendizagem através do ensino o cérebro e as suas funções sensoriais, motoras,
passivo e repetitivo. emocionais, cognitivas superiores e mentais, indis-
pensáveis ao comportamento adaptativo humano,
Vygotsky, salienta a teoria sociocultural e têm uma base biológica de programação inata
o conceito da criança e o seu contexto (cultura, (Nature). No entanto, a sua expressão plena está
história, meio social) como uma unidade. Destaca dependente de modelos ou estímulos adequados
que o processo de ensino - aprendizagem deve da Sociedade - Ambiente (Nurture). Estes, têm
ser adaptado à “zone of proximal development”, que estar disponíveis em fases específicas de for-
ou seja, a criança por si própria aprende ao seu mação e maturação de circuitos neuronais, em
nível funcional; mas se o ambiente for estrutura- que a sinaptogénese, biologicamente prevista,
do motivante e facilitador aprenderá a um nível está dependente de estímulos específicos do meio
superior – o seu nível potencial. Este patamar ambiente. A sua ausência, apesar da capacida-
só será atingido com um processo “scaffolding” de de plasticidade cerebral, pode determinar a
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 215

perda de oportunidade. Deve-se reter que o abordagem desta área: vigilância versus rastreio
meio ambiente, o “ensino” ou modelos de apren- do DPM e do comportamento.
dizagem, condicionam a arquitetura cerebral e a
sua função, e que o binómio Nature/Nurture A monitorização ou vigilância, “develop-
é bidirecional e indissociável. mental surveillance”, carateriza-se por um proces-
so contínuo e flexível de observações qualificadas,
Concluindo, a aprendizagem e a aquisição nas consultas de rotina, sem ter que recorrer a
progressiva das diferentes capacidades psicomo- testes. Deve-se ouvir as preocupações dos pais
toras e comportamentais depende de processos acerca do desenvolvimento e comportamento da
neuromaturacionais que decorrem de uma com- criança, colher a história clínica, observar cuida-
plexa e natural interação, bidirecional, entre fato- dosamente a criança neste contexto, identificar
res biológicos e ambientais. O equilíbrio dinâmico fatores de risco ou de proteção e proceder ao
entre eles, pode ser ameaçado por múltiplas cau- registo sucessivo dos dados. Poucos minutos serão
sas, ou por uma combinação entre elas, tornando necessários se tudo estiver bem.
a criança doente ou com essa vulnerabilidade. Já rastreio, “screening”, subentende a apli-
cação de um teste breve, desenhado para identi-
ficar problemas específicos desta área, em idades
12. 2 DESCRIÇÃO DO TEMA consideradas ideais (chave) para o efeito.

Apesar da maioria das crianças ser saudá- O reconhecimento precoce de atrasos ou


vel, é conhecido que 15 a 20 % sofre de alguma desvios do neurodesenvolvimento requer contudo
perturbação do neurodesenvolvimento, e mais um conhecimento prévio, bem sedimentado, do
vezes ainda, essa suspeita é referida; negá-la exi- modo como se avalia e interpreta a progressão
ge uma avaliação experiente. O diagnóstico e a das diferentes etapas, bem como do conceito da
intervenção precoces são relevantes no sentido normalidade.
em que os devidos esclarecimentos, conselhos,
plano médico, e “ensino dirigido” devem ser A idade de aquisição de determinadas
atempados. Deste modo, os médicos que realizam competências psicomotoras e atitudes compor-
consultas de primeira linha, em crianças, devem tamentais, apesar de conhecida a sua progressão
estar preparados para atestar a normalidade, ou natural, apresenta uma enorme variabilidade. As
o desvio do DPM e do comportamento como o fronteiras do normal nem sempre são claras de
estão para vigiar as displasias do desenvolvimento estabelecer, sobretudo no comportamento.
da anca, as cardiopatias congénitas, as alergias
alimentares, e outras. Determinar então, em contexto clínico, de
consulta, se o neurodesenvolvimento (DPM e
Assim, nas consultas de vigilância de saúde comportamento) de dada criança é ou não ade-
infantil e juvenil há dois contextos distintos na quado para a sua idade cronológica é uma tarefa
216 GUIOMAR OLIVEIRA

Figura 1. As quatro áreas de avaliação do neurodesenvolvimento correspondentes a atividades especificamente humanas


(adaptado Henrique Carmona da Mota, Lições de Pediatria, 2002).

que exige conhecimento e prática. Para a facilitar neurodesenvolvimento”, das diferentes


propõe-se: áreas e a sua uniformidade (figura 2).

i) Avaliar o DPM e o comportamento decom- Sabemos que, na criança normal, apesar das
posto em quatro áreas fundamentais, enormes variações interindividuais, o neurode-
que correspondem a atividades especifi- senvolvimento evolui de um modo sequencial e
camente humanas (figura 1): uniforme nas diferentes áreas que o compõem.
1.Postura e motricidade global - pos- Como exemplos: a criança segura a cabeça, senta-
tura ereta e marcha. -se e só depois se sustenta de pé; compreende vá-
2.Visão e motricidade fína - visuomo- rias palavras, mais tarde verbaliza-as e só então diz
tricidade/coordenação óculo-manual/ frases; o desenho da cruz antecede o do quadra-
visão-manipulação. do; comer com as mãos precede o uso da colher.
3.Audição e linguagem. A aquisição de diferentes capacidades de um
4.Comportamento e adaptação social modo não sequencial – desvios do desen-
– atividades da vida diária/autonomia, volvimento – é habitualmente sinal precoce de
relações sociais, emoção e compor- patologia. É o caso da criança que parece ter
tamento. muita força nos membros inferiores, mas ainda
ii) Realizar avaliações seriadas, na mesma não segura a cabeça (hipotonia axial com espas-
criança, de modo a registar o perfil se- ticidade dos membros inferiores); e outra que é
quencial e evolutivo, a “velocidade de capaz de verbalizar marcas de carros e os números
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 217

Figura 2. Atividades características dos diversos escalões etários (ver detalhes no texto).
(adaptado Henrique Carmona da Mota, Lições de Pediatria, 2002).

das portas, mas não responde a ordens simples Certamente que qualquer função em défice, a seu
(como te chamas? Quantos anos tens?). A reter tempo interferirá negativamente na aquisição das
que a compreensão linguística (linguagem receti- capacidades globais. O DPM só para facilitação
va) deve ser superior à fala (linguagem expressiva). de análise se divide em áreas, na verdade estão
interligadas.
A velocidade em adquirir conhecimentos
e competências é relativamente uniforme nos Quando a velocidade de desenvolvimento
diferentes domínios, embora cada criança possa global é uniforme, mas anormalmente lenta,
ter áreas fortes e fracas (precoce na motricidade afastando-se entre dois ou mais DP abaixo da
global, tardia na linguagem). No entanto, dife- média, pelo menos em duas áreas, consideramos
renças significativas entre áreas (superior a 15%), estar perante uma situação clínica de atraso do
com velocidades de aquisição não uniformes desenvolvimento psicomotor global (ADPMG).
– dissociação entre áreas – sugerem a presença
de patologia específica (atraso somente na área A progressão em todas as áreas é indispen-
da linguagem – surdez ou distúrbio da comuni- sável para que a criança atinja total autonomia
cação e interação social; atraso só na área moto- pessoal (tomar conta dela), doméstica (ser au-
ra – paralisia cerebral, doença neuromuscular?). tónoma em casa) e social (independência total).
218 GUIOMAR OLIVEIRA

Todavia, nem todas têm o mesmo valor preditivo fase pré e escolar, as provas do grafismo (figuras
relativamente à capacidade futura de desempenho geométricas), o desenho da figura humana, a
intelectual e social. construção com cubos, a reprodução de padrões
no espaço e a resolução de problemas apresentam
A postura e motricidade global, depende uma boa correlação com as capacidades cogniti-
essencialmente da maturação e mielinização do vas, sendo esta área a base das provas formais de
sistema nervoso, de um sistema motor e sensorial avaliação da inteligência não-verbal (realização).
funcionante e pouco do estímulo do meio am-
biente. Tem pouca correlação com a inteligência A audição e linguagem, é a função que
futura, embora o atraso nas aquisições motoras mais se correlaciona com o nível intelectual futuro.
possa ser um sinal precoce de disfunção neu- Para que uma criança fale, tem que ouvir falar,
ronal global. Desde o primeiro escalão, repre- saber e querer comunicar, compreender e in-
sentado pelo recém-nascido que, em decúbito terpretar os símbolos sonoros-fonemas e produzir
ventral levantou pela primeira vez a cabeça, até palavras (processamento central), e ter uma infra-
à perfeita coordenação necessária para a corrida -estrutura neuro muscular que lhe permita falar
e o salto, cada período etário tem o seu desem- (emitir palavras). A avaliação da linguagem usada
penho motor pré-programado de acordo com a no sentido lato de comunicação, não deve iniciar-
neuromaturação. -se apenas com o aparecimento das primeiras
palavras; antes existem os comportamentos pré-
A visão e motricidade fina – visuomo- -linguisticos (o alerta, o sorriso social, a atenção
tricidade, tem por base a visão, a coordenação conjunta – olhar alternado entre o bebé e o adulto
óculo-manual (motricidade fina) e a sua integra- para o foco de interesse, o galreio com vocalização
ção a nível cognitivo para resolver problemas, e reciproca, o imitar, o apontar – protoimperativo
desempenhar tarefas. Esta é uma das áreas que para pedir e protodeclarativo para mostrar…)
mais se correlaciona com a capacidade intelectual. que são considerados atualmente, verdadeiros
O atraso persistente nas aquisições deste âmbito marcadores neuromaturacionais da cognição so-
deve levantar a suspeita de défice intelectual, uma cial humana. A demora no aparecimento destes
vez excluídos problemas de acuidade visual signi- marcadores da comunicação e interação social
ficativos, ou motores (mais raros). Neste domínio, pode ser o primeiro sinal de uma perturbação
nos primeiros meses de vida é sobretudo a inte- do espetro do autismo. Atraso, em simultâneo,
ração visual que é avaliada. O bebé vê e observa nas aquisições da linguagem e visuomotoras
o que o rodeia (fixa a luz e pessoas, sobretudo sugere uma perturbação do desenvolvimento
faces - olhos). No segundo semestre já é capaz intelectual ou défice intelectual.
de manipular objetos enquanto os observa; no
final do primeiro ano resolve problemas (capaz de O comportamento e adaptação social, e
procurar um objeto escondido, ou arranjar modo as aquisições das atividades da vida diária-auto-
de tirar um objeto dum frasco). Mais tarde na nomia, ao contrário das competências motoras,
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 219

dependem largamente de fatores ambientais 13, 90% até aos 15 e 97.5% até aos 18 meses
como seja a expectativa social, o treino e os mo- (considerada a idade limite da normalidade; 2DP
delos educacionais. Embora sendo necessários para além da idade média).
pré-requisitos cognitivos e motores para estas
aquisições, são sobretudo fatores culturais que Uma nota importante, nas crianças que
condicionam padrões comportamentais de auto- nasceram prematuras a idade a considerar na
nomia alimentar e de higiene. A sua avaliação, avaliação do DPM deve ser a idade corrigida,
deve ser interpretada no contexto global do de- até fazerem dois anos. Um bebé com 9 meses de
senvolvimento tendo sempre em conta o que é idade cronológica, que nasceu de 28 semanas de
exigido à criança, no seu meio. idade gestacional em vez das 40 [40 – 28 (tem
menos 12 semanas – 3 meses)], o DPM esperado
Antes de avançarmos para a avaliação dos deve ser o de 6 meses.
marcos do DPM, em idades consideradas chave,
vamos rever alguns conceitos estatísticos neces- Conhecer as idades médias de aquisição de
sários na interpretação dos resultados. Avalia-se competências consideradas “marcos do neuro-
a criança e compara-se o seu desempenho com desenvolvimento”, e a sua variabilidade, é uma
o de populações padrão estudadas para o efeito. matéria indispensável para avaliar uma criança.
A idade média (mediana) de aquisição de De seguida abordaremos este conteúdo.
determinada capacidade é aquela em que metade
da população padrão, dessa idade, adquiriu essa Avaliação do neurodesenvolvimento
competência. Por exemplo, a idade média em que e interpretação dos resultados
se espera que uma criança ande sem apoio é aos Em qualquer consulta deve ser feita a monitori-
12 meses de idade cronológica, o que significa zação do DPM e do comportamento, já se abordou
que até aos 12 meses, 50% dos lactentes adquire esse conceito previamente. O médico deve ter o
a marcha. cuidado de assinalar na página do desenvolvi-
mento do Boletim de Saúde Infantil e Juvenil
As idades limite de aquisição de determi- (BSIJ) a idade em que são adquiridas as competên-
nada competência situam-se ao nível de dois DP cias assinaladas (e.g. sorri; anda sem apoio; aponta
afastados da média. Ou seja, uma criança com com o indicador…) tal como regista os percentis
desenvolvimento precoce adquirirá determinada do crescimento e outros dados clínicos de relevo.
competência antes da idade considerada média Este registo é de extrema relevância.
para o efeito. Se for depois, e ultrapassar a idade Numa criança de idade pré-escolar (3 a 4 anos)
correspondente a dois DP da média, a suspeita que recorra à consulta por queixas de compor-
de existir um problema deve ser colocada, e essa tamento disruptivo (birras, agitação psicomoto-
hipótese estudada. Tendo como exemplo a idade ra) ou por atraso de linguagem, o conhecimento
de aquisição da marcha sem apoio: 25% fazem-no prévio da evolução do DPM é essencial. De facto,
até aos 11 meses, 50% até aos 12, 75% até aos os pais raramente recordam com precisão as idades
220 GUIOMAR OLIVEIRA

das aquisições básicas do DPM, e seria de extrema síndromes dismórficos) são evidentes nos pri-
importância conhecê-las, uma vez que são verda- meiros anos de vida. Têm habitualmente uma
deiros marcos neuromaturacionais como é o caso repercussão marcada no desenvolvimento mo-
da idade em que a criança andou, apontou e iniciou tor, sensorial e nas capacidades pré-linguísticas.
as primeiras palavras, de entre outras competên- Na idade pré-escolar (entre os dois e os cinco
cias. Se se tratar de um caso de atraso de desen- anos), manifestam-se as formas moderadas das
volvimento Psicomotor Global (ADPMG), o que é patologias anteriores. Nesta fase, os défices têm
provável, seria de esperar que estas competências sobretudo reflexo nas aquisições da linguagem,
tivessem surgido tardiamente. Desconhecendo esta na capacidade gráfica (grafismo em atraso) e de
informação a história torna-se mais difícil. resolver problemas, e no comportamento que se
torna disruptivo (agitação psicomotora, irritabi-
O rastreio do DPM deve ser feito em idades lidade, birras, desafio e oposição). A perturba-
chave, ou sempre que houver queixas deste foro. ção de espetro do autismo (diferentes níveis de
gravidade), apresenta-se claramente nesta idade
Uma nota prévia neste ponto. Quando por uma combinação de défices na comunicação
os défices na aquisição das competências psico- e nas relações sociais (entre pares e adultos – a
motoras são graves, são os pais que se queixam criança não olha, não pede, não partilha), que se
ao médico, logo nos primeiros meses. Nos casos associa a comportamento rígido com tendência
em que as dificuldades são discretas, estas podem para interesses e atividades repetitivas e desvian-
passar despercebidas aos pais, e aos profissionais tes (abanar as mãos, rodopiar objetos, fixação no
de saúde e da educação. Neste contexto é que os movimento repetido – máquina de lavar roupa,
rastreios têm justificação de existir. Na verdade, fascínio por botões de comandos, fios, números,
se só recorrermos à monitorização, cerca de dois letras, marcas…). As perturbações específicas do
terços dos casos de anomalias ligeiras e mesmo desenvolvimento da linguagem (muito comuns)
moderadas não são detetadas. também se diagnosticam nesta idade. Nestes ca-
Só mais tardiamente na idade escolar, as sos só o potencial linguístico está afetado, todas
crianças serão referenciadas ao médico por difi- as outras competências estarão intactas.
culdades de aprendizagem escolar ou por pro-
blemas de comportamento desajustado como a Teoricamente poderíamos considerar que
perturbação de hiperatividade e défice de atenção numa população infantil bem seguida todas as
e a recusa escolar. Salientar que a intervenção patologias do neurodesenvolvimento congénitas
precoce e específica dirigida ao problema de (a grande maioria) deveriam ser conhecidas antes
cada criança não deve ser protelada. da entrada para o primeiro ciclo escolar. No pe-
ríodo de idade escolar, somente as dificuldades
Os problemas de neurodesenvolvimento específicas de aprendizagem escolar e défices
graves (défice intelectual grave, autismo grave, muito discretos de funções cognitivas superiores
paralisia cerebral, surdez profunda, cegueira e (memória de trabalho, função executiva, atenção,
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 221

motivação, comportamento social…) se revela- (reflexos de proteção lateral – proteger-se com


riam. extensão do braço e abertura da mão em caso
de queda lateral, e de páraquedas – proteger-se
A avaliação do neurodesenvolvimento deve com extensão dos braços e abertura das mãos em
ser integrada numa história clínica detalhada. caso de ameaça de queda para a frente).
Deve-se dar especial atenção a incidentes pré,
peri e pós-natais, aos antecedentes pessoais no Nunca esquecer de monitorizar clinicamente a
que diz respeito à progressão do DPM e “estilo” acuidade visual e auditiva (técnicas mais à frente).
do comportamento. Os antecedentes familiares
de patologias do neurodesenvolvimento devem Um teste de rastreio tem que ser necessa-
ser minuciosamente pesquisados, assim como o riamente exequível, logo simples e rápido; preciso,
ambiente social em que a criança habita. No exa- válido, quantificável e comparável com a “norma”
me objetivo para além do padrão de crescimento como na avaliação do crescimento. Na maioria
global, especialmente do perímetro craniano, não das crianças terá um resultado normal, nas ou-
deixar de registar a presença de sinais dismórficos, tras apenas fica a suspeita. Deve-se confirmar
anomalias de desenvolvimento noutros órgãos e ou infirmar a/s alteração/ões dentro de um curto
da pigmentação cutânea (rastreio de síndromes espaço de tempo, e só posteriormente referenciar
neurocutâneos). O exame neurológico, do qual para avaliação de diagnóstico em consultas da
a avaliação do neurodesenvolvimento faz par- especialidade – Pediatria do neurodesenvolvimen-
te, deve atender particularmente à avaliação da to. A maior dificuldade na avaliação desta área
postura, do tónus (hipotonia ou hipertonia axial relativamente à do crescimento relaciona-se com
e dos membros), da coordenação (descoordena- o seu carácter qualitativo, não estando disponível
ção de movimentos finos), do equilíbrio (ataxia), uma unidade de medida quantitativa e objetiva
dos movimentos (involuntários-extrapiramidais), como o cm para o comprimento, ou o kg para o
da força muscular (proximal e distal e de relaxa- peso. No domínio do DPM e do comportamento,
mento muscular: não esquecer as doenças neu- de caráter qualitativo, o observador deve conhecer
romusculares que se podem apresentar como um muito bem o padrão normal, ter uma formação na
atraso motor e de linguagem, como por exemplo sua variabilidade e só depois fazer interpretações
a distrofia muscular de Duchenne – avaliar ma- das possíveis anomalias.
nobra de Gowers e a distrofia miotónica – avaliar
fenómeno miotónico). Há múltiplas provas de rastreio, adotare-
mos nesta lição a recomendada no Programa
Salientar, que são sinais de doença grave Nacional de Saúde Infantil e Juvenil (http://www.
do sistema nervoso central a persistência dos re- dgs.pt/?cr=24430) que se baseia nas normas – ou
flexos arcaicos do recém-nascido para além do sequências de desenvolvimento de Mary Sheridan
primeiro trimestre de vida, bem como a ausência (Developmental sequences); que resultaram de
de reflexos posturais após os sete a oito meses um trabalho de mais de 35 anos.
222 GUIOMAR OLIVEIRA

Seguem-se as idades chave recomendadas Sinais de alarme


para avaliação (não esquecer o oportunismo) 1.Ausência de tentativa de controlo da cabeça,
e as aquisições que em média se atingem nes- na posição sentada. Apresenta hipertonia
sa idade nas quatro áreas básicas do DPM: 1. dos membros inferiores na posição de pé.
postura e motricidade global; 2. visão e mo- 2. Nunca segue a face humana.
tricidade fina; 3. audição e linguagem; e 4. 3.Não reage ao som.
comportamento e adaptação social. A presença 4.Não se mantém em situação de alerta,
de sinais de alarme sugere patologia do neu- nem por breves períodos.
rodesenvolvimento.
• 3 meses
Apresentam-se as competências do DPM na (avaliar na consulta dos 4 meses)
criança, em idade média, de um modo sumário: 1. Ao colo mantém a cabeça na posição
vertical (segura a cabeça). Em decúbi-
• 1 a 1,5 meses to ventral (bruços) levanta a cabeça e
(avaliar nas consultas dos 1 e 2 meses) apoia-se nos antebraços. Em decúbi-
1. Em decúbito ventral – levanta a cabeça. to dorsal apresenta postura simétrica,
Em decúbito dorsal (posição supina) – a membros com movimentos ritmados, na
mobilidade dos membros é simétrica; mas tração pelas mãos para posição de sen-
pode adotar uma postura assimétrica, tado consegue manter a cabeça ereta e
com o membro superior do lado para que a coluna dorsal direita. De pé, flete os
está virada a face em extensão. Quando joelhos, não faz apoio.
tracionada para a posição de sentada – 2. Segue com o olhar, faz pestanejo de
tenta controlar a cabeça, o dorso fica defesa e já consegue fazer a con -
arqueado e as mãos fechadas. Em sus- vergência ao olhar para um objeto
pensão ventral – a cabeça fica alinhada que se aproxima da face. É capaz de
com o corpo e os membros semi-fletidos. seguir uma bola pendente ½ círculo e
2. Segue uma bola pendente a 20-25 cm em horizontal. Brinca com as mãos aber-
¼ de círculo (do lado até à linha média). tas, juntando -as na linha média do
3. Ao som de uma sineta, roca (guizo) ou corpo, segura brevemente um guizo
voz a 15 cm do ouvido, pára a atividade e colocado na mão e move- o em dire -
pode voltar os olhos para a fonte sonora. ção à face.
4. Fixa a face da mãe quando mama. Sorriso 3. Reage a sons suaves (voz humana) alte-
social (sorri em resposta a estimulo), pre- rando a atividade, e tenta voltar-se para
sente desde as 4 a 6 semanas de idade. a fonte sonora.
Chora quando se sente desconfortável e 4. Sorri, quando se lhe fala. Interessa-se
responde com sons guturais (laríngeos) pelo ambiente. Tem boa resposta social
em situações de prazer. à aproximação de uma face.
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 223

Sinais de alarme e faz passagem direta à posição de pé


1.Não controla a cabeça; membros rígidos quando se tenta sentar (hipertonia distal-
em repouso. Assimetrias dos membros. -espasticidade). Assimetrias. Abdução li-
Movimentos pobres. mitada das coxas (inferior a 150 graus),
2.Não fixa nem segue com o olhar a um palmo ou assimetria.
de distância, mãos quase sempre fechadas. 2. Não se interessa por objetos, nem lhe
3.Sobressalta-se com ruídos. pega. Estrabismo.
4.Não sorri. Irritabilidade quando se toca. 3. Não galreia, nem reage aos sons.
4. Tem desinteresse pelo ambiente.
• 6 meses
1. Segura bem a cabeça e mantem-se sen- • 9 meses
tado com apoio, em decúbito dorsal le- 1. Já se senta sózinha e mantem-se sentada
vanta a cabeça (aumento do tónus axial) por 10 a 15 minutos, apanha objeto colo-
e consegue levar o pé à boca (perda cado atrás. Põe-se de pé com apoio, mas
do predomínio do tónus em flexão dos não se consegue baixar. Rasteja.
membros inferiores). Em decúbito ventral 2. Apanha pequeno objeto entre o indicador
apoia-se nas mãos, com os membros e o polegar (pinça digito-polegar). Leva
superiores em extensão. De pé, mantém tudo à boca. Atira os objetos ao chão
as pernas em extensão, suporta o peso deliberadamente e depois procura-os.
e tenta saltar (perda do predomínio do Aponta com o indicador para objetos ou
tónus em flexão dos membros). foco de interesse distante.
2. Apresenta boa convergência ocular (es- 3. Tem atenção rápida para os sons próxi-
trabismo anormal). Repara em objetos mos, e distantes. Localiza sons suaves a
pequenos (smarties). Consegue apanhar 90 cm primeiro abaixo e depois acima
um objeto com ambas as mãos (preensão do nível do ouvido. Imita sons, ou gestos
palmar e cubital); leva-o à boca e transfe- do adulto.
re de uma mão para a outra. Ainda não 4. Come pela sua mão bolacha ou pedaço
procura o objeto que cai. de pão. Mastiga. Distingue os familiares
3. Vocaliza sons mono e dissílabos (galreio). dos estranhos, o que a leva a ter receio de
Volta-se para sons ao nível de 45 cm do desconhecidos. Faz gracinhas e imitação
ouvido. de comportamentos sociais (“a pitinha
4. Muito ativa, atenta e curiosa, dá garga- põe o ovo”, “juizinho”, “palminhas”, diz
lhadas; agita-se à vista dos alimentos. adeus com a mão…)

Sinais de alarme Sinais de alarme


1. Ausência de controlo da cabeça (hipotonia 1. Não se senta. Permanece sentada e imóvel
axial). Tem membros inferiores rígidos sem procurar mudar de posição.
224 GUIOMAR OLIVEIRA

2. Apresenta assimetrias. Não tem preensão • 18 meses


palmar, não leva objetos à boca. 1. Já anda bem sózinha e sobe escadas com
3. Não reage aos sons. Vocaliza monotona- ajuda. Apanha brinquedos do chão.
mente ou perde a vocalização. 2. Constroi torre de 3 cubos; faz rabiscos
4. É desinteressada na relação com os fami- para cá e para lá, mostrando preferência
liares. Não imita. manual; observa um livro, e volta várias
páginas de cada vez.
• 12 meses 3. Usa 6 a 26 palavras com significado e
1. Anda só, ou pela mão. Sentada roda 180 compreende muitas mais. Mostra em si
graus e levanta-se sozinha. Gatinha. ou num boneco os olhos, o cabelo, o
2. Explora com energia os objetos, cede- nariz e os sapatos (identificação de partes
-os; atira-os sistematicamente ao chão. do corpo).
Procura um objeto que viu esconder. Tem 4. Bebe por um copo sem entornar mui-
interesse visual para perto, e longe. to, levantando-o com ambas as mãos.
3. Tem resposta rápida aos sons suaves, Segura a colher e leva a comida à boca.
mas habitua-se depressa. Dá pelo “Ajuda” nos trabalhos domésticos.
nome e volta-se. Compreende ordens Indica necessidade de ir à casa de ba-
simples verbais (sem a ajuda de ges- nho. Não gosta que lhe peguem. Exige
tos) “dá, cá” e “adeus”. Tem Jargão muita atenção. Não coopera na brinca-
[vocalização com entoação (prosódia) deira com outras crianças. Egocêntrica,
de conversa-diálogo, embora sem pala- faz birras.
vras percetíveis]. Diz uma palavra com
significado. Sinais de alarme
4. Bebe por copo com ajuda. Segura a co- 1. Não se põe de pé, não suporta o peso
lher, mas não a usa. Colabora no vestir sobre as pernas. Anda sempre na ponta
levantando os braços. Quer o adulto por dos pés.
perto. Demonstra afeto. 2. Não faz pinça – não pega em nenhum ob-
jeto entre o polegar e o indicador. Ainda
Sinais de alarme leva tudo à boca, ou atira tudo ao chão.
1. Não se põe, nem se mantem de pé. 3. Não responde quando a chamam. Não
Não se desloca. vocaliza espontaneamente.
2. Não pega nos brinquedos ou fá-lo só com 4. Não se interessa pelo que a rodeia; não
uma mão (preferência manual). estabelece contacto, não aponta para
3. Não responde à voz. mostrar. Deita os objetos fora, ou leva-
4. Não brinca nem estabelece contacto. -os sistematicamente à boca, não sabe
Desinteresse pelo ambiente. Não mas- para que servem.
tiga.
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 225

• 2 anos Copia o círculo (com modelo prévio) imi-


1. Corre. Sobe e desce escadas com os dois ta a cruz (o adulto faz em simultâneo).
pés no mesmo degrau. Dá pontapés. Combina (associa) duas cores geralmente
2. Imita rabisco circular. Gosta de ver livros e o vermelho e o amarelo. Ainda confunde
folheia uma página de cada vez. Constrói o azul e o verde.
torre de 6 cubos. 3. Diz o nome completo e o género. Tem
3. Diz o primeiro nome. Nomeia objetos. vocabulário extenso mas pouco com-
Usa funcionalmente frases de duas a três preensível por estranhos. Tem defeitos de
palavras e pronomes (minha, meu, teu…). articulação e imaturidade na linguagem.
Cumpre ordens simples (sem a ajuda de Faz perguntas.
gestos) do tipo: põe a colher na chávena, 4. Pode despir-se, se lhe desabotoarem o ves-
vai abrir a porta, apaga a luz. tuário. Vai sozinha à casa de banho. Come
4. Usa bem a colher. Bebe por um copo e com colher e garfo. Comportamento de
coloca-o no lugar sem entornar. Coloca oposição e desafio a melhorar. Confunde
o chapéu e os sapatos. Brinca sozinha, fantasia com realidade.
imitando cenas da vida doméstica.
Manifesta claramente a sua vontade. • 4 anos
Continua egocêntrica, dependente do 1. Equilibra-se num pé, sem apoio, 3 a 5
adulto, comportamento de oposição e segundos. Sobe e desce com um pé em
desafio, com birras se contrariada. cada degrau. Salta num pé.
2. Constrói escada de 6 cubos. Copia a cruz.
Sinais de alarme Combina (associa) e nomeia quatro cores
1. Não anda sozinha. básicas.
2. Deita os objetos fora. Não constrói nada. 3. Sabe o nome completo, a idade, o sexo
3. Não parece compreender o que se lhe e habitualmente a morada. Apresenta
diz. Não pronuncia palavras inteligíveis. linguagem compreensível. Tem apenas
4. Não se interessa pelo que está em seu algumas substituições infantis.
redor. Não estabelece contacto. Não 4. Pode vestir-se e despir-se só com exceção
procura imitar. de abotoar atrás, e dar laços. Gosta de
brincar com crianças da sua idade. Sabe
• 3 anos esperar pela sua vez. Comportamento
1. Tem equilíbrio momentâneo num pé. cooperante. Ainda confunde fantasia e
Sobe escadas com um pé em cada de- realidade.
grau (alternado). Desce com os dois pés
no mesmo degrau. • 5 anos
2. Constrói torre de 9 cubos. Imita (3 anos) e 1. Equilibra-se num pé, sem apoio, 3 a 5
copia (3 anos e meio) a ponte de 3 cubos. segundos, com os braços dobrados sobre
226 GUIOMAR OLIVEIRA

o tórax. Salta alternadamente num e nou- da boa sensibilidade (85%) e especificidade (93%),
tro pé. apresenta um valor preditivo positivo baixo o que
2.Constrói escada de 10 cubos. Copia o qua- leva a ter alguma atenção nos casos com resulta-
drado e o triângulo. Conta cinco dedos do positivo. Não se deve portanto, prescindir da
de uma mão e nomeia quatro cores. observação da criança e do esclarecimento das
3. Sabe o nome completo, a idade, morada respostas dadas, aliás como é de boa prática mé-
e habitualmente a data de nascimento. dica antes de referenciação. A cotação da escala
Tem vocabulário fluente e articulação ge- é muito rápida (dois minutos). São considerados
ralmente correta – pode haver confusão resultados positivos quando há falha em pelo
nalguns sons. menos três das 23 perguntas, ou em duas das seis
4. Veste-se sozinha. Lava as mãos e a cara consideradas críticas (acessível em: http://www.
e limpa-se sozinha. Escolhe os ami- dgs.pt/?cr=24430 , Programa Nacional de Saúde
gos. Compreende as regras do jogo. Infantil e Juvenil, páginas 91 e 92).
Comportamento cada vez mais coope-
rante. Face a uma suspeita de atraso ou desvio
nas aquisições do desenvolvimento psicomotor
Sinais de alarme há que ter em conta que os limites do normal
4 a 5 anos são muito amplos e que o “comportamento” e
Linguagem incompreensível, não mantém a “colaboração” da criança durante uma prova
conversa, não compreende, não faz perguntas. poderão ser afetados por inúmeros fatores.
Problemas do comportamento (birras excessivas; Por tudo isto, antes de alarmar a família,
comportamento repetitivo; agitação psicomotora). convém repetir a avaliação num prazo razoável
Tem estrabismo ou suspeita de défice visual. (um a três meses, se for na idade pré-escolar,
no lactente o intervalo de verificação tem que
Para rastreio da perturbação do espectro ser inferior). Por vezes assiste-se a recuperações
do autismo, propõe-se a aplicação de um breve notáveis.
questionário Modified Checklist for Autism in
Toddlers (M-CHAT) aos 18 e/ou 24 meses que A perda (regressão) de aquisições previa-
se encontra disponível em (http://mchatscreen. mente adquiridas, se confirmada e mantida, deve
com/wp-content /uploads/2015/05/M-CHAT_ ser sempre interpretada como um sinal de doença
Portuguese2.pdf), assim como a respetiva cota- do neurodesenvolvimento.
ção. É um questionário muito simples composto
de 23 perguntas (resposta sim ou não) que de- Perante um atraso nas aquisições do DPM,
vem ser preenchidos pelos pais/cuidadores, não global, ou de uma área em particular, há que
necessitando de qualquer preparação prévia. A tentar interpretar onde reside o problema. De um
validade desta escala tem sido bem estudada no modo simplista podemos raciocinar de acordo
grupo etário entre os 16 e os 30 meses. Apesar com o esquema da figura 3.
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 227

ESTÍMULO – AMBIENTE em disfunção cerebral (processamento central).


A “falta de estímulo” é um mito entre nós.

ORGÃO SENSORIAL Técnica de avaliar o neurodesenvolvimento
O material necessário para avaliar o
 DPM, é pouco e simples. Existe um Kit pa-
VIA SENSORIAL dronizado, disponível no mercado referen-
te à aplicação da “Escala de Avaliação das
 Competências no Desenvolvimento Infantil” dos
PROCESSAMENTO CEREBRAL 0 aos 5 anos. Consta de uma bola pendente
(pequena, tipo pompom, com fio), uma sineta e/
 ou roca (brinquedo de bebé); 10 cubos (dimen-
VIA MOTORA sões 2.5 x 2.5 cm), coloridos: amarelo, vermelho,
verde e azul; bolinhas pequenas (smarties, pas-
 sas de uva, bolinhas de enfeitar bolos); boneca;
DESEMPENHO MOTOR colher, garfo e escova de cabelo de pequenas
dimensões (brinquedos); livro com gravuras;
copo/caneca com asa; bola pequena com
Figura 3 - Esquema das etapas funcionais que poderão estar diâmetro de 5 a 6 cm, maleável; painel com
afetadas perante um atraso ou desvio nas aquisições ou
10 cores + cartões de correspondência (azul
competências do neurodesenvolvimento.
escuro, laranja, roxo, preto, amarelo, cor-de-rosa,
Explicando, para que se aprenda/desem- verde, castanho, vermelho e azul-claro). E claro
penhe qualquer tarefa terá que haver estímulo está, papel e lápis para o grafismo.
sensorial através de modelo do ambiente, fazê-lo A observação deve ser levada a cabo numa
chegar ao cérebro (órgão+via sensorial – via afe- sala pouco “enfeitada”, calma e ampla, onde a
rente), onde será processado a nível cerebral, criança e a mãe/pai se sintam confortáveis. Só
o que depois determinará através de via eferente se deve ter o material necessário, se for muito
um desempenho motor – execução (via motora, distrai. É melhor falar com os adultos até que a
aparelho motor). Exemplificando, uma falha na criança relaxe. Aproveitar para interrogar sobre
área da linguagem ou da visuomotricidade, pode as aquisições e as preocupações (se as houver)
acontecer porque a criança nunca foi estimulada, acerca do DPM e do comportamento, e fazer a
não ouve ou não vê, não processa a informação história. O examinador deve colocar-se ao nível
(não compreende – défice intelectual), ou então da criança: sentada na mesa à sua frente, ou en-
não executa a tarefa por problemas motores. tão ambos no chão. Será mais fácil prender-lhe
a atenção, ao mesmo tempo que se observa o
Reter que a causa mais frequente dos pro- seu movimento de olhos, de boca e de mãos, nas
blemas do DPM e do comportamento têm origem diferentes tarefas.
228 GUIOMAR OLIVEIRA

A mãe tem que estar presente, com a crian- Audição e Visão


ça ao colo ou sentada a seu lado (dependendo
da idade). A avaliação deve iniciar-se pela área da Audição
visuomotricidade: brincando com cubos, livros; A função auditiva é primordial para a aqui-
o material deve ser novidade para a criança. A sição da linguagem verbal, aprendizagem escolar
avaliação da linguagem surgirá no diálogo es- e adaptação social. Na verdade, a identificação
pontâneo. O discurso do observador tem que precoce de défices sensoriais permanece um dos
ser adequado à compreensão da criança: para principais objetivos do rastreio das aquisições do
um rapazinho de 18 meses, perguntar onde está DPM. Só uma intervenção terapêutica e educa-
o nariz do João em vez de o “teu” nariz. O su- cional atempada, melhora o futuro das crianças
cesso da resposta deve ser elogiado; em caso com surdez. O rastreio universal mas maternidades
de falha a nossa exclamação deverá ser neutra, portuguesas através das otoemissões acústicas é
nunca pejorativa. hoje uma realidade. Contudo, a atenção clínica
à acuidade auditiva deve ser uma prioridade em
Para que uma criança “colabore” na avalia- todas as consultas de saúde infantil. A surdez neu-
ção, de modo a que possamos obter um resultado rosensorial profunda bilateral atinge uma em cada
correto no menor tempo possível, teremos de mil crianças, mas os défices mais moderados são
conhecer o seu comportamento e controle da seis vezes mais frequentes e passam facilmente
atenção, nas diferentes fases do desenvolvimento. despercebidos, a todos.
Só depois vem o exame físico. Como monitorizar em contexto clínico de
rotina a acuidade auditiva? Como reage a criança
Factos a reter ao estímulo sonoro nas diferentes fases do neu-
Mais importante que o produto da ava- rodesenvolvimento e comportamento?
liação do DPM decorrente de uma consulta
isolada, será o percurso evolutivo do resul- • Recém-nascido
tado de observações seriadas que permitam A uma fonte sonora, súbita, intensa e próxi-
traçar o “perfil de neurodesenvolvimento da ma (bater palmas, bater à porta), responde com
criança”, tal como no crescimento. A sua in- um reflexo de Moro espontâneo, uma paragem
terpretação face à norma, deverá ter sempre na mamada, um susto.
em conta a história clínica da criança e o meio
em que vive. • 1 mês
Dá conta de sons prolongados, como o do as-
pirador. Reagindo, quando começa e quando acaba.
Não ficaria completa esta lição se duas
funções sensoriais básicas para as aquisições • 4 meses
do DPM não fossem abordadas como a au- Tenta localizar vozes conhecidas, voltando
dição e a visão. os olhos e a cabeça.
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 229

OUVIDOS OUVIDO OUVIDO


• 7 a 20 meses
LIVRES DIREITO ESQUERDO
Criança sentada ao colo da mãe. São neces-
NÃO RÃ CHÁ
sárias duas pessoas. Um observador em frente da
SOL SAL MAU
criança (a uma distância de dois metros), pren-
PAU CÉU MÓ
dendo a sua atenção com um brinquedo (técni-
CHÁ VACA LÃ
ca de distração). Simultaneamente outra pessoa
FACA CABRA PEIXE
atrás, fora do seu alcance visual, estimula com VELHA GATO DISCO
uma fonte sonora (sineta, roca, colher raspando GUITA XAILE GAITA
numa chávena, voz humana ”Ss-ss-som agudo, TOSSE TRAVÃO VINHO
Ôô-ôô-som grave). A resposta desejada é que FEIRA FOLHA FAVA
volte a cabeça, localizando visualmente a fonte MARÉ VELHA CHAVE
sonora. Se a resposta for duvidosa, deve-se reava- PAI MILHO NINHO
liar quatro semanas depois. Se for ausente enviar REI MAPA PIPA

à consulta de otorrinolaringologia. Não perder


a oportunidade de validar clinicamente a Quadro 1. Prova logométrica para crianças de idade escolar.
acuidade auditiva até aos 12 meses.
Atenção – na avaliação da acuidade auditi-
Depois do ano de idade pode ser difícil inter- va, evitar pistas visuais. No primeiro, e até
pretar a resposta dado que a criança nesta fase, no segundo ano de vida o perfil de desen-
pelas suas características comportamentais, pode volvimento de uma criança com surdez
não ter interesse em confirmar a fonte sonora profunda pode passar por normal. Parece
apesar de a ouvir…só tentando algo que a motive. que compreendem tudo - obedecem a
pedidos, isso acontece porque é habitual
Após esta idade a audição pode ser ava- apontarmos (gesticularmos – darmos pis-
liada por ordens verbais. Colocar vários objetos tas visuais) em simultâneo.
em cima de uma mesa (colher, chávena, cubos,
livros…), fazendo então o pedido em voz baixa Visão
a cerca de 45 cm do ouvido de ambos os lados, A ambliopia atinge 2 a 5% das crianças.
sem que a criança observe a face/boca (teste de Se precocemente corrigida, verifica-se uma com-
discriminação verbal). pensação funcional mais ou menos completa;
para tal é indispensável rastrear essas anomalias
Na idade escolar, usar a prova logométrica. precocemente.
A criança voltada de costas deve repetir as pa- A vigilância da visão nas consultas de saúde
lavras do quadro 1 proferidas em voz baixa pelo infantil tem como objetivo principal a preven-
observador à distância de três metros. Se tiver ção do défice visual permanente, se problemas
erros frequentes deve ser referenciada à consulta como o estrabismo, erros de refração e ou-
de otorrinolaringologia. tros mais raros como as cataratas não forem
230 GUIOMAR OLIVEIRA

diagnosticados e tratados em tempo útil, de • 9 meses a 2.5 anos


preferência na idade pré-escolar. O rastreio deve Aos nove meses é capaz de fixar e seguir
incidir em todas as idades, iniciando-se precoce- com o olhar uma bolinha prateada dos bolos,
mente, logo no recém-nascido em que se deve rolando em fundo escuro, a três metros de distân-
garantir a ausência de opacidades dos meios cia. Depois dos 12 meses segue-a a seis metros.
transparentes do olho, através da pesquisa do Avaliar os olhos em separado (tapando suavemen-
reflexo vermelho. te com a mão um deles) na suspeita de ambliopia
A resposta da criança ao estímulo visual, (teste da preferência ocular), mostram desconforto
tal como na audição, vai depender do grau de com o olho que vê menos.
neuromaturação atingido. O recém-nascido só
vê 6/200 (vê a seis metros o que uma acuidade • 3 a 5 anos
visual normal do adulto vê a 200). Aos três meses, Dos três anos em diante, poderemos usar
95% dos lactentes fazem convergência do olhar o uma prova de letras exigindo apenas que a crian-
que lhe permite focar objetos que se aproximam, ça combine (associe) as letras com formas mais
como observar e brincar com as mãos na linha simples (próximas do grafismo que já é capaz
mediana do corpo, próximo da face. Entre os seis de fazer) – O H X T V U (teste de Sonksen Silver
e os oito meses a visão periférica já lhe permite ir Acuity system).
à procura dos objetos. Entre os 18 e os 36 meses
atinge a acuidade visual do adulto. A reter, nunca esquecer de pesquisar
o estrabismo; depois dos seis meses é sempre
Como monitorizar a visão em contexto clíni- anormal. O reflexo de uma luz fixa deve proje-
co de consulta de rotina de saúde infantil? tar-se simetricamente nas duas córneas, se não
houver estrabismo. O nistagmo pode ser um sinal
• Recém-nascido de défice visual.
Fixa e segue a face da mãe a 25 cm (a dis- É indispensável avaliar os olhos separada-
tância da posição de quando está ao colo ou a mente; de outro modo pode ignorar-se uma am-
mamar) numa linha horizontal. Volta-se para a luz bliopia de um deles.
difusa e pestaneja com um foco luminoso intenso. O bebé pequeno que não responde ao
estímulo visual, pode justificar-se por diferentes
• 1 a 3 meses causas de entre elas os défices na acuidade
Avaliar em posição supina. Fixa e segue uma visual, na interação social ou na capacidade
face à distância de cerca de 30 cm. Converge o intelectual.
olhar à aproximação da face do examinador, brin-
ca e olha para as mãos na linha mediana. Pelas Patologias do neurodesenvolvimento
seis semanas ambos os olhos se conjugam para As patologias do neurodesenvolvimento
seguir um estímulo luminoso. Pelos três meses são um grupo heterogéneo de entidades mé-
perde-se o estrabismo fisiológico. dicas que têm por base anomalias cerebrais ou
CAPÍTULO 12. NEURODESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO 231

sensoriais de carácter permanente. A maioria Quando se diagnostica uma patologia do


é de origem genética e manifesta-se desde os neurodesenvolvimento os pais colocam de ime-
primeiros anos de vida por atraso ou desvio diato várias questões: porque é que aconteceu?
nas aquisições do DPM e por alterações do Pode voltar a acontecer em futuros filhos? Qual
comportamento. Estamos a considerar neste o futuro da criança? O que é que se pode fazer?
âmbito condições clínicas com critérios de
diagnóstico bem estabelecidos pela co- A resposta a estas questões dependerá
munidade médica internacional. Podemos não só do nível funcional da criança e dos pro-
apresentar estas patologias em dois subgru- blemas que se associam, como também de um
pos. O de maior gravidade, onde se enquadra diagnóstico específico e causal; só então pode-
a perturbação do desenvolvimento intelectual remos oferecer um aconselhamento genético e
(quociente intelectual global inferior a 70), a uma perspetiva de perfil evolutivo. Mesmo nos
paralisia cerebral, a perturbação do espetro do melhores centros a maioria dos casos das per-
autismo, a surdez neurosensorial profunda e turbações do neurodesenvolvimento permanece
a cegueira. O outro agrega as perturbações sem identificação da etiologia. Nos casos em que
que apesar do seu menor impacto clínico, têm é conhecida predominam as causas pré-natais
uma repercussão relevante nas aprendizagens (alterações genéticas, metabólicas, endócrinas,
adaptativas e no sucesso académico, bem como teratogenecidade, infeções, muito baixo peso,
na qualidade de vida familiar, tais como: os pro- prematuridade e gemelaridade), seguem-se as
blemas comportamentais de défice de atenção perinatais (asfixia, infeções) e mais raramente inci-
e hiperatividade, de desafio, de oposição e de dentes pós-natais (infeções cerebrais, acidentes).
conduta, as perturbações da memória, da per- A investigação etiológica deve ser discuti-
ceção, da coordenação motora, da linguagem, da caso a caso e orientada numa consulta de
da flexibilidade cognitiva, da interacção social Pediatria do neurodesenvolvimento em colabora-
e as perturbações específicas de aprendizagem ção com outras especialidades e disciplinas como
escolar de entre outras, que no seu conjunto, a genética médica, as doenças hereditárias do
são muito frequentes. metabolismo, a neuropediatria, a biologia mo-
lecular e a imagiologia, de entre outras.
No global, estas doenças afetam cerca de
um quinto da população de idade pediátrica, sen- As anomalias cromossómicas e monogéni-
do das patologias crónicas mais frequentes, com cas são as causas mais vezes identificadas como
tendência a aumentar, e das que representam seja a trissomia 21, os síndromes de X frágil, de
maior sobrecarga socioeconómica. A maioria dos Williams, de Angelman, de Rett, de Prader-Willi,
quadros mantem-se na vida adulta, devendo ser entre outros. O hipotiroidismo congénito, uma
posteriormente referenciados para consultas de causa frequente de défice intelectual no passado,
Psiquiatria com formação em patologia do neu- é de há uns anos para cá rapidamente compen-
rodesenvolvimento. sado com a administração diária de hormonas
232 GUIOMAR OLIVEIRA

tiroideias, graças ao rastreio neonatal. O mesmo específicas) e eventualmente as suas potenciali-


se passa com a fenilcetonúria e outras doenças dades – áreas fortes.
hereditárias do metabolismo que são desde os O objetivo de intervenção será o de compen-
primeiros dias de vida tratadas com dietas ade- sar a deficiência melhorando as áreas fracas, e
quadas, evitando a lesão neurológica. oferecer a oportunidade de deixar revelar as suas
potencialidades, de modo que a criança venha a
Porém, poucas são ainda as causas tratáveis. atingir a mais completa e feliz integração social.
Também não dispomos de fármacos curativos. No
entanto, muito pode ser feito por estas crianças Leitura complementar
e famílias. O diagnóstico funcional deve ser pre- Oliveira, G; Duque, F; Duarte, C; Melo, F; Teles, L; Brito,
coce. A família precisa de ajuda de uma equipa M; Vale, M. C; Guimarães, M. J; Gouveia, R. «Pediatria
especializada multidisciplinar de que fazem parte do Neurodesenvolvimento. Levantamento nacional de
médicos, terapeutas (terapeutas da fala, terapeu- recursos e Necessidades». Acta Pediátrica Portuguesa
ta ocupacional, fisioterapeuta), profissionais da 2012, 43(1): 1 – 7.
psicologia e da educação e técnicos de serviço Oliveira, G.. «Autismo: diagnóstico e orientação. Parte I -
social, de entre outros. A intervenção deve ser Vigilância, rastreio e orientação nos cuidados primários de
específica e holística, sempre que possível no am- saúde», Acta Pediátrica Portuguesa 2009, 40(6): 278 - 87
biente natural da criança, recorrendo aos recursos Normal child development, hearing and vision. In:Lissauer
da comunidade (Sistema Nacional de Intervenção T, Clayden G. Illustrated Textbook of Paediatrics. 4th ed.
Precoce na Infância - ver lição específica, e à Lei Elsevier Health Sciences. 2011. p 31- 47.
da Educação Especial do ensino regular, Decreto- Programa nacional de saúde infantil e juvenil. Lisboa: Direção-
Lei nº3/2008). geral da saúde; 2013
Oliveira G. Visão na criança - normas práticas de avaliação,
Uma boa e forte relação “médico-doente- perspectiva pediátrica-1ª. Saúde Infantil 1994, 16: 47 -51.
-família” ou “equipa-doente-família”, no sentido Oliveira G. Visão na criança - normas práticas de avaliação,
mais clássico e nobre do termo, tem nestas per- perspectiva pediátrica- 2ª parte. Saúde Infantil 1994,
turbações, a repercussão máxima na melhoria da 16: 97 – 101.
qualidade de vida destas famílias.

12.3 FACTOS A RETER

As crianças com perturbação do neurode-


senvolvimento, independentemente da sua causa,
devem ser avaliadas de modo a traçar um perfil
de DPM e comportamento que dê a conhecer
as suas áreas fracas (resultantes de deficiências
Capítulo 13.
Sono normal
e problemas do sono

13
Núria Madureira
e Maria Helena Estevão
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_13
CAPÍTULO 13. SONO NORMAL E PROBLEMAS DE SONO 235

13.1 CONTEXTO com diminuição relativa do tónus mus-


cular mantendo alguma capacidade de
O sono é um estadio comportamental ca- movimento;
raterizado pela ausência de interação e resposta • REM – refere-se à fase de sono com in-
ao meio ambiente, com diminuição da atividade tensa atividade cerebral (com sonhos),
motora e reversível com estimulação. É funda- movimentos oculares rápidos, ausência
mental no restabelecimento de vários sistemas da termorregulação e de tónus muscular
orgânicos, conservação da energia, manutenção (exceto no diafragma e nos músculos dos
da termoregulação e imunidade e em determi- olhos e do ouvido médio).
nadas funções endócrinas como a produção de
hormona do crescimento. Desempenha um pa- Durante a noite, as duas fases alternam-se
pel importante nas funções cognitivas como a em ciclos com uma duração de 90 a 110 minutos
consolidação da memória, e no crescimento e cada. Estes ciclos terminam em breves microdes-
desenvolvimento do sistema nervoso central. pertares e repetem-se quatro a seis vezes por
noite. A proporção das diferentes fases em cada
ciclo varia durante a noite, com o sono NREM
13.2 DESCRIÇÃO DO TEMA predominando no primeiro 1/3 e o sono REM no
último terço da noite, figura 1.
O ciclo sono-vigília é regulado por dois pro-
cessos que funcionam em conjunto. O processo
homeostático regula a duração e a profundidade
do sono e está relacionado com a acumulação de
substâncias químicas promotoras de sono durante
a vigília. O ritmo circadiano endógeno influencia
o horário e a duração do ciclo sono-vigília e de-
pende da produção de melatonina regulada pela
alternância claridade-escuridão.
A arquitetura do sono baseia-se no reco-
nhecimento de que existem duas fases distintas: Figura 1 - Hipnograma mostrando ciclos e fases do sono.
Non-rapid eye movement (NREM) e Rapid eye
movement (REM): A arquitetura do sono varia com a idade.
Nos primeiros dois meses de vida não existem os
• NREM – corresponde à fase de sono padrões electroencefalográficos que permitem
profundo ou reparador, com baixa ati- distinguir as fases do sono, pelo que este se di-
vidade cerebral, frequências cardíacas vide em três estadios: ativo (equivalente ao REM),
e respiratórias mais baixas e regulares, calmo (equivalente ao NREM) e indeterminado.
diminuição da temperatura corporal e Durante o primeiro ano de vida, individualizam-se
236 NÚRIA MADUREIRA E MARIA HELENA ESTEVÃO

as fases de sono REM e NREM, durando os ci- infantil e juvenil. Os horários de sono devem
clos de sono cerca de 50 minutos. Estes ciclos ser regulares e adequados à idade da criança,
vão-se tornando mais longos à medida que a respeitando a variabilidade individual. As ses-
criança cresce, até atingir os 90 a 110 minutos. tas devem também ser adaptadas à idade e ao
Com o crescimento a duração total de sono nas desenvolvimento da criança e, quando já só há
24 horas vai diminuindo bem como a proporção uma sesta, esta deve ser realizada no início da
de sono REM e inversamente há um aumento de tarde e durar no máximo duas horas. Antes de
sono NREM. dormir devem ser evitadas bebidas estimulantes,
No quadro 1 descrevem-se as principais ca- refeições pesadas ou exercício físico. A rotina
raterísticas do sono em função da idade. de ir para a cama deve ser consistente, de curta
Durante o primeiro ano de vida é funda- duração e com atividades calmas e agradáveis.
mental estabelecer medidas de higiene do sono. O ambiente em que se dorme também é impor-
O primeiro passo é garantir adequada educação tante, não devendo existir televisão, computador
parenteral nas consultas de vigilância de saúde ou telémovel no quarto.

Idade Sono
0 - 2 meses Duração de sono - 10 a 19 / 24 horas.
Períodos de sono alternados com uma a duas horas de vigília, determinados pela fome
e saciedade e sem padrão diurno/noturno.
Padrões de sono irregulares.
2 - 12 meses Duração de sono - 12 a 13 / 24 horas.
Período de sono noturno de nove a dez horas. Diminuição progressiva do número de
sestas diurnas, de quatro a duas.
Desenvolve-se a capacidade de adormecer sozinho.
1 - 3 anos Duração de sono - 11 a 13 / 24 horas.
Passa a haver apenas uma sesta durante o dia (habitualmente por volta dos 18 meses).
3 - 6 anos Duração de sono – 9 a 10 /24 horas.
Em idade variável desaparecem as sestas. Cerca de 26% das crianças de quatro anos
e 15% das de cinco anos necessita de sesta.
6 - 12 anos Duração de sono – 9 a 10 /24 horas.
Adolescência Duração de sono - 8 a 9 / 24 horas.
Com a puberdade há um atraso fisiológico na produção da melatonina que condiciona
o início do sono cerca de duas horas mais tarde do que é habitual. Os adolescentes
têm tendência a estar mais alerta à noite e a acordar mais tarde.

Quadro 1. Características do sono em função da idade.


CAPÍTULO 13. SONO NORMAL E PROBLEMAS DE SONO 237

Distúrbios do sono prevalência diminui com a idade, todavia podem


Estima-se que cerca de 30% das crianças/ persistir até à idade adulta.
adolescentes apresente ou já tenha apresentado Nas parassónias da fase NREM existe uma
algum problema de sono, quadro 2. A falta de perturbação do mecanismo do despertar cara-
identificação e orientação pode contribuir para a terizada por uma diferente ativação sono-vigília
sua persistência até à idade adulta. É fundamental em diferentes áreas corticais. A criança/adoles-
que estas situações sejam diagnosticadas e orien- cente está a dormir mas tem comportamentos
tadas atempadamente e, por isso, o inquérito de motores ou autonómicos da vigília. Atendendo
hábitos do sono deve fazer parte das consultas de às características do sono NREM, compreende-
vigilância de saúde infantil e juvenil. Devem ser -se que estes episódios sejam mais frequentes na
abordadas questões relativas à hora de deitar e primeira metade da noite e que não haja memória
de levantar (durante a semana e fim-de-semana), para o episódio. A história familiar é frequente-
rotina de ir dormir, resistência em ir para a cama, mente positiva já que existe uma predisposição
dificuldade em adormecer e despertares noturnos; genética. A esta associam-se fatores precipitantes
sintomas noturnos como ressonar, pausas respi- que condicionam a ocorrência e frequência dos
ratórias, agitação ou movimentos exuberantes, episódios: privação, má higiene ou simplesmente
episódios de confusão, choro ou deambulação; alteração do padrão de sono (como dormir num
sintomas diurnos como a sonolência excessiva, local diferente); alterações emocionais ou com-
hiperatividade, perturbações do comportamento portamentais e patologias como o síndrome de
ou dificuldades de aprendizagem. apneia obstrutiva do sono.
Os diferentes tipos de parassónias do NREM
são:
Higiene inadequada do sono
Parassónias 1. Sonambulismo (entre os quatro e os 12
Insónias anos) - episódios de comportamentos
Hipersónias motores complexos com deambulação,
Distúrbios do ritmo circadiano
podendo a criança falar ou responder a
Perturbações respiratórias do sono
ordens e ter vagas memórias do episódio;
Distúrbios do movimento relacionados
2. Terrores noturnos (entre os três e os
com o sono
Sono nas doenças médicas oito anos) - ocorrências de fenómenos
de início súbito, com graus variados de
Quadro 2. Principais grupos de problemas do sono em idade atividade motora e sinais autonómicos
pediátrica.
de medo intenso (taquicardia, taquip-
neia, rubor facial, sudorese e midríase);
Parassónias a criança apresenta um fácies de susto,
As parassónias são fenómenos aberrantes está confusa, agitada, chora ou grita, não
do sono, reflexo da imaturidade cerebral. A sua manifesta o que a perturba, não acalma
238 NÚRIA MADUREIRA E MARIA HELENA ESTEVÃO

Características Terrores noturnos Pesadelos


Horário noturno Primeiro terço da noite Último terço da noite
Fase do sono NREM REM
Limiar para despertar Elevado, as crianças estão a Baixo, as crianças acordam
dormir profundamente
Resposta ao consolo Não Sim
A intervenção parenteral pode As crianças têm necessidade de ser
mesmo prolongar os episódios tranquilizadas para voltar a dormir
Memória para o episódio Nenhuma ou fragmentada Vivida

Quadro 3. Diagnóstico diferencial entre as parassónias, terrores noturnos e pesadelos.

com a presença dos pais e após alguns metade da noite, há memória para o episódio, e as
minutos continua a dormir; crianças acordam completamente, estando assus-
3. Despertares confusionais (entre os seis tadas e com medo de voltar a dormir. Nestes casos
meses e os sete anos) - fenómenos de iní- é importante tranquilizar e transmitir segurança.
cio lento e duração mais prolongada, em Os pesadelos são frequentemente confundidos
que não há alterações comportamentais, com terrores noturnos, as características que os
respostas autonómicas ou componente distinguem são apresentadas no quadro 3.
motor relevante; a criança tem um ar
assustado, com olhar vago e um discurso Insónias
confuso e lentificado. A insónia define-se como a dificuldade no
início do sono, na sua consolidação ou qualidade.
Na abordagem das parassónias do NREM é Pode surgir em qualquer idade e ter múltiplos
importante tratar fatores precipitantes e tran- fatores desencadeantes.
quilizar a família, explicando que a única in- Nos primeiros anos de vida, importa des-
tervenção deve ser garantir a segurança e que tacar a insónia comportamental da infância,
a criança/adolescente não deve ser acordado. em que há uma perturbação do funcionamento
Se as características não forem típicas (vários diário da criança ou da família associada ao pro-
episódios por noite, horário não habitual, mo- blema de sono.
vimentos estereotipados, posturas distónicas No subtipo sleep-onset association, a
ou memória lúcida para o episódio) deve ser criança (seis meses a três anos) tem dificulda-
equacionado o diagnóstico diferencial com cri- de em adormecer sozinha e apresenta múltiplos
ses epiléticas. despertares durante a noite. A partir dos seis
meses, os lactentes têm capacidade para ador-
As parassónias do período REM mais fre- mecer sozinhos. Se aprenderem a adormecer em
quentes são os pesadelos. Ocorrem na segunda determinadas condições (como, por exemplo,
CAPÍTULO 13. SONO NORMAL E PROBLEMAS DE SONO 239

Figura 2. Diagnóstico diferencial de sonolência excessiva diurna no adolescente.

a mamar ou a serem embalados), continuarão A resistência em ir dormir ou a dificuldade em


a necessitar delas nos vários microdespertares adormecer podem também ser consequência de
que ocorrem no final dos ciclos de sono normais. expetativas parenterais inadequadas relativamente
Na sua ausência, vão acordar e chorar ou chamar ao sono do seu filho. A criança pode ter uma neces-
pelos pais. sidade em dormir inferior à que os pais consideram
No subtipo limit setting type, a criança ou ter uma preferência circadiana pela noite. Ao
(mais de dois anos) resiste em ir para a cama ser forçada a ir dormir numa altura em que não
tornando a rotina de adormecer prolongada tem sono, resiste ou tem dificuldade em adormecer.
e com múltiplos pedidos. Se acordar durante Devem também ser excluídas doenças como doença
a noite chama pelos pais ou vai ter com eles de refluxo gastroesofágico, eczema atópico, doenças
à cama. Na base da resistência em ir dormir neurológicas ou outros distúrbios do sono.
podem estar fatores como os medos, a ausên-
cia de regras ou a inadequação dos horários Hipersónia
de sono. A hipersónia é um sintoma que ocorre
Existe também um subtipo misto em que com maior frequência no adolescente. O primei-
estão presentes características de ambos. Na ro passo na sua abordagem é compreender se a
abordagem da insónia comportamental da in- sonolência excessiva diurna está relacionada com
fância é fundamental explicar aos pais a fisio- sono noturno insuficiente ou perturbado ou se
patologia da situação e estabelecer estratégias se deve a uma hipersónia verdadeira. A aborda-
de terapia comportamental adequadas à criança gem da sonolência excessiva diurna encontra-se
e à família. esquematizada na figura 2.
240 NÚRIA MADUREIRA E MARIA HELENA ESTEVÃO

Figura 3. Atraso de fase de sono característico do adolescente.

Devem ser excluídas doenças que cursem atraso na produção da melatonina que ocorre
com dor ou necessidade de tomar medicação na puberdade. Tipicamente estes adolescentes
durante a noite, psiquiátricas (como a depres- adormecem tarde e se for possível acordam tarde,
são) e distúrbios do sono como a perturbação sendo, nestas circunstâncias, a duração de sono
respiratória obstrutiva do sono ou o síndrome normal. Clinicamente há insónia inicial (quando
de pernas inquietas. A privação de sono pode o adolescente tenta adormecer a uma hora so-
também estar relacionada com má higiene do cialmente aceitável mas que não corresponde à
sono - horários irregulares, horário tardio de ir altura em que tem sono) e dificuldade em acordar
dormir e/ou presença e uso de televisão, compu- de manhã (se tiver que ser num horário não de-
tador ou telemóvel. sejado) podendo condicionar absentismo escolar,
sonolência diurna excessiva com sestas durante o
O síndrome de atraso de fase é um dis- dia, dificuldades escolares e perturbações com-
túrbio do ritmo circadiano que causa insónia e portamentais ou do humor. No tratamento do
sonolência excessiva diurna na adolescência. A sua síndrome de atraso de fase é fundamental a
etiologia ainda não é completamente conhecida. motivação do adolescente e da família e podem
Parece haver uma anomalia na regulação do ciclo ser utilizados ajustes de horários de ir dormir e
sono-vigília, endógena e/ou condicionada por acordar, exposição à luz ou administração de me-
fatores ambientais, e que está relacionada com latonina, figura 3.
CAPÍTULO 13. SONO NORMAL E PROBLEMAS DE SONO 241

Na hipersónia verdadeira existe uma dimi- comportamental e fármacos para controlar a so-
nuição da capacidade de alerta, com sonolência nolência (como o metilfenidato) e a cataplexia
excessiva diurna e sono noturno prolongado. São (como a venlafaxina).
situações raras, cujo exemplo é a narcolepsia.
A narcolepsia é uma perturbação crónica do Perturbação respiratória
SNC com desregulação do ciclo sono-vigília e obstrutiva do sono
intrusão do sono REM na vigília. Manifesta-se
habitualmente na segunda década de vida, mas Na perturbação respiratória obstrutiva
pode surgir mais cedo. A etiologia é desconhecida, do sono existe uma diminuição da patência da via
sendo o mecanismo fisiopatológico mais provável aérea superior que, em conjunto com a hipotonia
a destruição autoimune de células do hipotála- muscular do sono, condiciona um aumento da
mo produtoras de hipocretina, em indivíduos resistência à entrada do fluxo aéreo. Em idade
com suscetibilidade genética (presença do alelo pediátrica, os fatores de risco mais frequentes são
HLA DQB1*06:02). Clinicamente há sonolência a hipertrofia adenoamigdalina (causa principal),
excessiva diurna e, frequentemente mais tarde, a obesidade, a prematuridade, as malformações
cataplexia, alucinações hipnagógicas (ao adorme- craniofaciais ou os dismorfismos faciais minor, a
cer) ou hipnopômpicas (ao acordar) e paralisia do rinite alérgica, a laringomalácia e o refluxo-gas-
sono. A cataplexia, paradigmática da narcolep- tro-esofágico (RGE). A perturbação respiratória
sia, é uma redução súbita e reversível do tónus obstrutiva do sono pode apresentar-se com uma
muscular, desencadeada por um estímulo como a gravidade em crescendo que vai desde o ressonar
gargalhada ou o susto. Pode haver dificuldades de primário, passando pelo síndrome de resistência
aprendizagem, perturbações do comportamento das vias aéreas superiores (SRVAS) e síndrome de
ou do humor. Nas crianças, é difícil equacionar hipoventilação obstrutiva (SHO), culminando no
a hipótese de narcolepsia, já que pode apenas síndrome de apneia obstrutiva do sono (SAOS).
existir sonolência excessiva diurna, e esta ser in- Ressonar é o sintoma cardinal do quadro
terpretada como necessidade fisiológica de sesta obstrutivo respiratório, e consiste no ruído resul-
ou preguiça da criança. O diagnóstico assenta na tante da vibração da orofaringe decorrente da tur-
realização de um estudo poligráfico do sono para bulência do fluxo aéreo na presença do aumento
excluir outras causas de sonolência, e de um teste da resistência na via aérea superior. Quando não
de latência múltipla do sono em que se avalia o há outros eventos respiratórios associados fala-se
grau de sonolência diurna e a ocorrência no iní- em ressonar primário.
cio do sono da fase REM. É efetuada também a No outro extremo do espectro clínico está o
pesquisa do HLA DQB1*06:02 que está presente SAOS. Nesta situação, o aumento da resistência
em 90% dos casos mas é inespecífico. Pode ser condiciona episódios de diminuição (hipopneias)
necessário efetuar o doseamento da hipocretina-1 ou ausência (apneias) do fluxo aéreo, havendo
no líquido cefalorraquidiano, que está diminuída. esforço respiratório e hipoxémia e/ou hipercapnia.
Do tratamento fazem parte estratégias de terapia Os episódios terminam em microdespertares, em
242 NÚRIA MADUREIRA E MARIA HELENA ESTEVÃO

que o aumento do tónus dos músculos dilatadores mais pequenas, problemas de comportamento
da faringe permite o restabelecimento do fluxo ou dificuldades de aprendizagem), metabólicas
aéreo. Durante a noite, repetem-se as hipopneias/ (síndrome metabólico) ou cardiovasculares (hiper-
apneias e microdespertares condicionando frag- tensão arterial, hipertensão pulmonar ou even-
mentação do sono. tualmente cor pulmonale). Em crianças pequenas,
No SRVAS, o aumento da resistência ao flu- pode também existir má progressão ponderal,
xo aéreo condiciona esforço respiratório e micro- relacionada com o aumento do consumo ener-
despertares, sem que haja apneias, hipopneias, gético decorrente do esforço respiratório, com a
hipoxémia ou hipercapnia. No SHO, existe uma diminuição do apetite e com alterações na pro-
obstrução parcial do fluxo de ar, com esforço dução do factor de crescimento - insuline-like
respiratório, sem apneias ou hipopneias, mas com growth factor.
hipercapnia.
O exame objetivo pode ser normal, nomea-
O SAOS, o SRVAS e o SHO, quadro 4, po- damente se a criança for observada durante o dia.
dem levar a complicações neurocomportamentais Se a causa for a hipertrofia adenoamigdalina, a
(sonolência diurna ou hiperatividade em crianças criança apresenta habitualmente fácies adenoideu

Lactente Idade pré-escolar e escolar Adolescente


Ressonar Ressonar Ressonar
Apneia e estertor Apneia e estertor Apneia e estertor
Sono agitado Sono agitado Sono agitado
Despertares frequentes Despertares frequentes Despertares frequentes
Posturas bizarras Posturas bizarras Cefaleias matinais
Esforço respiratório Parassónias Cansaço
Sudorese Enurese noturna Sonolência diurna
Estridor Respiração de predomínio oral Dificuldades escolares
Má progressão ponderal Voz hiponasalada Compromisso cardiovascular
Irritabilidade Agravamento com as infeções
Agravamento com as respiratórias superiores
infeções respiratórias Cefaleias matinais
superiores Hiperatividade
Défice de atenção
Comportamentos de oposição
Dificuldades escolares

Quadro 4. Manifestações clínicas do SAOS, SRVAS e SHO em diferentes grupos etários.


CAPÍTULO 13. SONO NORMAL E PROBLEMAS DE SONO 243

com respiração de predomínio oral, palato alto e em idade pediátrica é recente mas estima-se que
ogivado e amígdalas hipertrofiadas. A avaliação possa afetar cerca de 2% das crianças/adoles-
da morfologia facial é fundamental, devendo ser centes a partir dos oito anos. Nestas idades, o
procurados dismorfismos faciais minor (micro/ diagnóstico é dificultado pela descrição pouco
retrognatia, hipoplasia do andar médio da face, clara dos sintomas, podendo as crianças refe-
desvio do septo nasal) ou sinais de patologia rir dor ou haver apenas resistência em ir para a
alérgica como a prega nasal ou a hipertrofia dos cama, insónia inicial ou sono agitado. A história
cornetos nasais. familiar é frequentemente positiva e o fator de
Se a clínica for típica e ao exame objetivo risco mais comumente associado é a diminuição
forem evidentes sinais de hipertrofia adenoamig- das reservas de ferro. Se a ferritina for inferior a
dalina, o diagnóstico do SAOS é clínico. Noutras 50 ng/ml, está indicado a administração de ferro
circunstâncias, pode ser necessário recorrer ao (6 mg/kg/dia) durante seis meses.
estudo poligráfico do sono. Este exame é rea-
lizado durante o sono noturno e consiste no Os distúrbios rítmicos do movimento
registo, análise e interpretação de diferentes caraterizam-se pela ocorrência de movimentos
variáveis neurofisiológicas, cardio-respiratórias estereotipados, rítmicos e repetitivos da cabeça
e comportamentais durante o sono. Durante o (headbanging ou headrolling) ou do corpo (bo-
estudo é possível identificar esforço respiratório, dyrocking) ao adormecer e/ou durante os micro-
apneias, hipopneias, hipoxémia, hipercapnia ou despertares do sono. Estes movimentos são um
fragmentação do sono. mecanismo de auto-adormecimento que, habi-
O tratamento depende da causa subjacente. tualmente, desaparece com o crescimento (90%
Como a hipertrofia adenoamigdalina é a principal regride até aos quatro anos). Deve ser explicado
causa, a abordagem terapêutica mais frequente aos pais a sua benignidade, recomendadas me-
é a adenoamigdalectomia. A redução do peso, o didas de higiene do sono e de segurança.
tratamento da rinite alérgica ou do RGE podem
também estar indicados. Em alguns casos pode O bruxismo ou “ranger” dos doentes é uma
ser necessário recorrer à ventilação não invasiva. entidade que, com frequência, preocupa os pais.
Consiste em movimentos repetitivos involuntários
Distúrbios do movimento e não funcionais, que habitualmente desapare-
relacionados com o sono cem com a erupção da dentição definitiva. A sua
O síndrome de pernas inquietas é um fisiopatologia não é completamente conhecida,
distúrbio neurológico em que ocorrem sensações descrevendo-se fatores de risco como má oclu-
desconfortáveis nos membros inferiores acompa- são dentária, rinite alérgica, ansiedade, paralisia
nhadas por urgência, praticamente irresistível, cerebral ou história familiar positiva. Se ocorrer
em mexer as pernas. Estes sintomas agravam- frequentemente pode causar erosão dentária,
-se à noite e com a inatividade e aliviam com o dores faciais ou na articulação temporomandibu-
movimento. O reconhecimento desta entidade lar, cefaleias e eventualmente sintomas diurnos
244 NÚRIA MADUREIRA E MARIA HELENA ESTEVÃO

relacionados com má qualidade do sono. Nestes O síndrome de pernas inquietas pode ocorrer
casos a criança/adolescente deve ser referenciada em crianças/adolescentes e cursar com queixas
para tratamento dentário. de difícil caracterização nos membros inferiores,
insónia inicial e sono agitado.
Os distúrbios rítmicos do movimento são
13.3 FACTOS A RETER situações benignas e desaparecem com o cres-
cimento.
A higiene do sono é fundamental e deve ser A hiperatividade pode ser uma manifestação
promovida desde o período neonatal. de défice de sono na criança mais pequena e,
A avaliação do sono faz parte das consultas por outro lado, cerca de um quarto das crianças
de vigilância de saúde infantil e juvenil. com esta perturbação tem problemas de sono.
As parassónias são situações benignas e Ressonar não é normal; a sua investigação
transitórias, sendo fundamental a tranquilização etiológica e abordagem terapêutica precoce são
dos pais e a instituição de medidas de higiene fundamentais.
de sono. A criança com síndrome de apneia obstrutiva
A insónia comportamental da infância pode do sono grave pode ter uma observação normal
causar resistência em ir dormir, dificuldade em durante o dia.
adormecer e/ou os múltiplos acordares noturnos; A perturbação respiratória do sono na infân-
medidas de higiene de sono e estratégias de te- cia pode constituir um fator de risco cardiovascular
rapia comportamental adequadas à criança e à para a vida adulta.
família são fundamentais. A presença de atraso de crescimento inexpli-
A hipersónia verdadeira é rara; as principais cado, alterações do comportamento/hiperativida-
causas de sonolência excessiva diurna estão rela- de, dificuldades de aprendizagem/concentração
cionadas com privação ou perturbação do sono devem evocar a presença de um problema de
noturno. sono.
Capítulo 14.
Adolescência

14
Paulo Fonseca
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_14
CAPÍTULO 14. ADOLESCÊNCIA 247

14.1 CONTEXTO 14.2 DESCRIÇÃO DO TEMA

Etimologicamente, o termo “adolescente” 14.2.1 Desenvolvimento biológico


provem da palavra em latim “adolescere”, a qual
significa crescer, brotar, fazer-se grande. O desenvolvimento físico característico da
A definição mais consensual de “adolescên- adolescência, crescimento somático e pubertário,
cia” é a de corresponder ao período da vida que apresenta uma ampla variação da normalidade,
decorre entre os 10 e os 19 anos, inclusive. É, aliás, sendo muito importante a distinção entre varian-
dessa forma que a Organização Mundial da Saúde tes da normalidade e as alterações patológicas
(OMS) ou a Direção Geral da Saúde a definem. do crescimento e desenvolvimento pubertário.
Mas se tivermos em conta que a adolescência O início destas transformações físicas poderá
está intimamente ligada ao desenvolvimento físico ser determinado por variáveis genéticas, herda-
(pubertário) do indivíduo, poderia assumir-se que das ou não, e ambientais, como a alimentação,
esta se iniciava com o aparecimento dos carateres ambiente, condições de saúde pessoal, higiene,
sexuais secundários e que terminaria com o fim do atividade desportiva, área geográfica do globo
crescimento somático. Ou seja, podendo iniciar-se ou até estímulos psíquicos e sociais, a que uma
antes dos dez ou finalizar depois dos 19 anos. criança esteja sujeita.
No entanto, e face à crescente importância Nas últimas décadas tem-se assistido à an-
que tem vindo a ser atribuída aos aspetos com- tecipação progressiva do início da puberdade
portamentais da adolescência, esta é melhor defi- / idade da menarca, provavelmente justificada
nida como sendo o processo de desenvolvimento pela melhoria progressiva das condições am-
biopsicossocial, o qual pode ser despoletado an- bientais de vida das populações, em particular
tes do início da puberdade e que pode perdurar pela melhoria do estado de saúde global e do
para além do termo do crescimento somático, estado nutricional, muito embora a presença
que leva uma criança a transformar-se num adulto crescente de contaminantes ambientais com ação
em toda a sua plenitude, física, psíquica e social estrogénica não seja, de todo, uma hipótese a
(autonomia social). desvalorizar.
Algumas das transformações, ou problemá-
ticas, que são mais típicas deste período da vida, - Fisiologia da puberdade:
poderão ser desafiantes para os profissionais de A puberdade é um período bem definido de
saúde que os atendem, assim como para pais e uma sequência de modificações físicas e fisioló-
para os próprios adolescentes. Assim, é essencial gicas, que conduzem o ser humano à maturação
que os profissionais de saúde que acompanham física e sexual completa, e à capacidade repro-
os adolescentes o façam de uma forma holística e dutiva. Trata-se do resultado de uma complexa
compreensiva, conhecendo bem as particularidades interação do eixo córtex cerebral, hipotálamo,
do desenvolvimento físico e psicossocial da adoles- hipófise e gónadas, cuja dinâmica é já bem co-
cência, contribuindo para a sua normal progressão. nhecida e que se passa a descrever.
248 PAULO FONSECA

A criança pré-pubere apresenta uma ele- dehidroepiandrosterona (DHEAS) e androste-


vada sensibilidade aos esteroides gonadais, que nediona.
em níveis muito baixos frenam a Gonadotropin- Em ambos os sexos, a adrenarca manifesta-
Releasing Hormone (GnRH) hipotalâmica. Esta -se por acelerações ligeiras do crescimento es-
frenação associada a mecanismos inibitórios de tatural pré-pubere e da maturação óssea, pelo
origem central justifica os baixos níveis séricos das aparecimento de pelo axilar e púbico, pelo odor
hormonas gonadotrofinas hipofisárias, Follicle- típico do suor e pelo aparecimento das primei-
Stimulating Hormone (FSH) e Luteinizing Hormone ras lesões de acne (traduzindo a estimulação das
(LH), característicos desta fase pré-pubertária. glândulas sebáceas). No sexo masculino poderá
O funcionamento do eixo hipotálamo- ser mais difícil distinguir a estimulação de origem
-hipófise-gonadal (h-h-g) é o sustentáculo do suprarrenal daquela que tem origem testicular,
ambiente hormonal indispensável ao processo uma vez que a testosterona tem ação sinérgica
fisiológico que é a puberdade. A perda de sensibi- com os androgénios suprarrenais podendo, por
lidade dos neurónios hipotalâmicos produtores de isso, a adrenarca não ser tão evidente no rapaz.
GnRH à inibição exercida pelos esteroides gona- Já o eixo hipotálamo-hipófise-somato-
dais (estrogénio e testosterona) e a perda da inibi- medínico é ativado durante a puberdade, sendo
ção central (talvez veiculada pela ação da leptina), essencial para o “estirão de crescimento estatural
permite o início da secreção pulsátil de GnRH e o pubertário”, ou seja para o aumento significativo
consequente estímulo dirigido à hipófise anterior da velocidade de crescimento estatural típica da
para a secreção de gonadotrofinas. Por sua vez, a puberdade, além de ter um papel também impor-
FSH e a LH vão exercer uma estimulação gonadal, tante no desenvolvimento gonadal. A sua ativa-
a qual elevará, significativamente, os níveis séricos ção é traduzida pelo aumento da produção das
das hormonas sexuais (estradiol, progesterona e seguintes moléculas: Growth Hormone-Releasing
testosterona), responsáveis pelo desenvolvimento Hormone (GHRH), Growth Hormone (GH), Insulin-
dos carateres sexuais secundários. like growth factor 1 (IGF-1) e Insulin-like growth
Por sua vez o eixo hipotálamo-hipófise- factor-binding protein 3 (IGFBP-3). Esta ativação é
-adrenal é um processo hormonal cujo início mais precoce no sexo feminino, havendo relação
de atividade não é dependente do eixo h-h-g. entre os níveis plasmáticos de IGF-1 e dos este-
Na verdade, a atividade das glândulas suprar- roides gonadais e a velocidade de crescimento.
renais tem início cerca de dois anos antes do A Leptina é uma substância libertada pelos
aumento da produção dos esteróides gonadais, adipócitos, com ação a nível do hipotálamo, atra-
ou seja pelos seis a oito anos de idade bioló- vés da qual se pensa poder ser exercido controlo
gica (óssea). A esta maturação das glândulas sobre a saciedade e o gasto energético. Os níveis
suprarrenais dá-se o nome de adrenarca, que plasmáticos de leptina correlacionam-se de um
mais não é do que a tradução física do aumen- modo positivo com o índice de massa corporal,
to da secreção de androgénios suprarrenais: podendo transmitir ao sistema nervoso central
dehidroepiandrosterona (DHEA), sulfato de (SNC), e a outros órgãos, informação atualizada
CAPÍTULO 14. ADOLESCÊNCIA 249

Principais modificações hormonais ocorridas durante a puberdade


Aumento pulsátil de GnRH
Aumento da FSH e aumento pulsátil noturno da LH
Aumento das hormonas sexuais (esteroides gonadais)
Aumento dos esteroides suprarrenais
Aumento da GHRH, GH, IGF-1 e IGFBP-3
Ação das principais hormonas envolvidas na puberdade
Sexo feminino Sexo masculino
FSH -Desenvolvimento dos folículos primários. -Desenvolvimento tubular e
-Ativação enzimática das células aumento do volume testicular.
granulosas ováricas e consequente -Estimulação das células de Sertoli
aumento da produção de estrogénios. e indução da espermatogénese.
LH -Estimulação das células da teca ovárica, -Estimulação das células de
com produção de androgénios. Leydig e consequente aumento da
-Estimulação do corpo amarelo e consequente produção de testosterona.
aumento da produção de progesterona.
-Indução da ovulação.
Estradiol -Desenvolvimento mamário, -Estimulação das glândulas sebáceas.
vulvar, vaginal e uterino. -Aumento da massa e volume muscular.
-Proliferação do endométrio. -Aumento da líbido.
-Aumento da massa gorda. -Aumento da velocidade de fusão epifisária
-Estímulo do crescimento (em -Pode ser responsável pelo desenvolvimento
concentrações baixas). mamário (habitualmente transitório:
-Aumento da velocidade de fusão ginecomastia pubertária).
epifisária (em concentrações altas).
Progesterona -Conversão do endométrio proliferativo
em endométrio secretor.
-Estimulação dos lóbulos alveolares na mama.
Testosterona -Aceleração do crescimento linear. -Aceleração do crescimento linear.
-Estimulação da pilosidade púbica e axilar. -Aumento da velocidade de fusão epifisária.
-Desenvolvimento do pénis, escroto,
próstata e vesiculas seminais.
-Estimulação da pilosidade
púbica, axilar e facial.
-Desenvolvimento da laringe e
alteração das características da voz.
-Estimulação das glândulas sebáceas.
-Aumento da massa muscular.
-Aumento da líbido.
-Aumento do hematócrito (aumento
do número de glóbulos vermelhos)
Androgénios -Estimulação do crescimento linear. -Estimulação do crescimento linear.
suprarrenais -Estimulação da pilosidade púbica. -Estimulação da pilosidade púbica.

GHRH - Growth Hormone-Releasing Hormone; GH - Growth Hormone; IGF-1 - Insulin-like growth factor 1; IGFBP-3 - Insulin-like growth
factor-binding protein 3; GnRH - Gonadotropin-Releasing Hormone; FSH - Follicle-Stimulating Hormone; LH - Luteinizing Hormone

Quadro 1. Modificações hormonais pubertárias e suas principais ações (adaptado Medicina de la Adolescencia
Atención Integral. 2ª edición. Ergon, 2012)
250 PAULO FONSECA

sobre a energia existente e a armazenada no cor- 11,5 anos e no sexo masculino pelos 13,5 anos,
po. Tem vindo a ser associada à hipótese de servir não só numa idade cronológica diferente, mas
como sinal metabólico para o início da puberdade. também numa fase de maturação sexual diferente
As principais modificações hormonais pubertárias, (estádio de Tanner II a III na rapariga e III a IV no
e as suas ações essenciais, encontram-se resumidas rapaz - estádios de Tanner descritos no quadro 2).
na Quadro 1. O rápido crescimento constatado durante a
puberdade é, carateristicamente, desarmonioso
- Crescimento e maturação biológica e desproporcionado, o que contribui para que
durante a puberdade: o adolescente possa apresentar dificuldades na
O início e a velocidade de progressão das aceitação destas modificações corporais. Cresce
alterações físicas características da puberdade em primeiro lugar o segmento inferior do corpo,
têm grande variabilidade inter-individual, com iniciando-se pelas extremidades dos membros e
uma tendência consistente para o início progres- com evolução no sentido proximal.
sivamente mais precoce (cerca de três a quatro O encerramento das epífises ocorre mais pre-
meses por cada decénio). cocemente no sexo feminino, entre os 16 e os 17
Em média, a rapariga inicia a puberdade anos, enquanto no sexo masculino ocorre pelos
pelos 11,2 anos (9 a 13,4) e o rapaz pelos 11,6 21, permitindo desta forma ao rapaz adquirir um
anos (9,5 a 13,5), sendo de esperar que decorra ganho estatural superior. Outra diferença signifi-
por um período de cerca de 50 a 60 meses. cativa entre os sexos, a nível somático, é o facto
Em ambos os sexos existe uma progressão de a rapariga atingir maior diâmetro pélvico que
sequencial das alterações físicas características da o rapaz, podendo constatar-se a relação inversa
puberdade, nomeadamente no que diz respeito no que diz respeito ao diâmetro biacromial.
ao crescimento somático, modificação da com- A avaliação do crescimento durante a pu-
posição corporal e maturação sexual. berdade está dependente da avaliação do peso
O crescimento constatado durante este perío- e da estatura, avaliando o peso para a idade, a
do da vida depende essencialmente da GH e dos estatura para a idade e o peso para a estatura
fatores de crescimento a ela associados (IGF-1 e (índice de massa corporal), comparando-os com
IGFPB-3), embora outras hormonas estejam também as curvas de crescimento existentes para o efeito.
implicadas, como é o caso das hormonas sexuais. Podem ser comparadas as medições indi-
Trata-se do segundo pico de maior veloci- viduais com medições já existentes dos pais e
dade de crescimento estatural do indivíduo, com irmãos, podendo ser determinada a estatura alvo
uma duração média de 24 a 36 meses (superior no familiar (em centímetros), obtida pela soma das
sexo masculino), podendo durante este período estaturas de ambos os pais, em cm, à qual se
atingir-se cerca de 20 a 25% da estatura final (20 a adiciona 13 no sexo masculino e se subtrai 13 no
23 cm para a rapariga e 24 a 27 cm para o rapaz) feminino, dividindo o total por dois.
e cerca de 40% da densidade mineral óssea do Deve ser avaliada a velocidade de crescimento
adulto. No sexo feminino ocorre, em média, pelos (em centímetros/ano), obtida através da diferença,
CAPÍTULO 14. ADOLESCÊNCIA 251

em cm, entre duas medições (em tempos diferen- dos 11 anos, diferindo do rapaz em cerca um
tes), dividida pelo intervalo, em meses, entre essas ano, o que conduz também a diferenças a nível
duas medições, multiplicando o total por 12. do desempenho psicossocial.
Pode ser necessária a avaliação da idade Mas é a maturação sexual que na verdade
óssea (maturação do osso), possível através da evidencia melhor as modificações biológicas ou
análise da radiografia da mão e punho do membro físicas características da puberdade. No sexo fe-
não dominante, comparada com imagens padrão minino, a modificação corporal que traduz o início
existentes em atlas para o efeito (i.e. Greulich e da maturação sexual é o aumento do volume
Pyle; Tanner e Whitehouse). da glândula mamária, vulgarmente denominada
Durante a puberdade, são também espe- de botão mamário, resultado das modificações
radas modificações da composição corporal do hormonais já descritas. A evolução progressiva da
indivíduo, ocorrendo um pico de ganho ponderal maturação biológica feminina, caraterizada pelo
que poderá atingir até os 50% do peso do adulto. progressivo desenvolvimento do tecido mamário,
Existindo, também neste aspeto, diferenças entre do pelo púbico e axilar, dos órgãos genitais e
os sexos, com os rapazes a aumentarem, em mé- pelo início das menstruações (menarca), tem uma
dia, cerca de 7 a 8 Kg a mais que as raparigas. Por duração média de quatro anos (1,5 a 8 anos).
outro lado, durante a puberdade a percentagem Esta evolução pode, em parte, ser também guia-
de gordura corporal aumenta na rapariga e dimi- da através dos diversos estádios pubertários de
nui no rapaz, sabendo-se que esse acréscimo se Tanner, os quais se encontram descritos no qua-
reveste de particular importância para a normal dro 2. A menarca ocorre no estádio IV em cerca
homeostasia hormonal feminina, influenciando de 56% das raparigas e no estádio III em 20%.
de forma muito direta a idade da menarca, para A idade da sua ocorrência dependerá de fatores
a qual parece ser necessária a existência de cerca genéticos, raciais, ambientais, sócio-económicos
de 17% de gordura corporal. e da composição corporal, surgindo cerca de dois
É também esperado um maior desenvolvi- anos após o pico de velocidade de crescimento
mento do sistema cardiovascular e respiratório que caracteriza o estirão pubertário.
no rapaz, com maior capacidade vital e valores No sexo masculino, as modificações do volu-
de tensão arterial mais elevados do que na rapa- me testicular marcam o início da puberdade, sen-
riga. O hematócrito e a hemoglobina são outros do típico desta fase um volume testicular superior
bons exemplos das diferenças entre sexos, ambos ou igual a 4 ml. É de esperar, durante a puberdade
com valores superiores no rapaz, sendo que es- masculina, o progressivo desenvolvimento dos
tes sofrem modificações consideráveis também testículos, do pénis, do pelo axilar, facial, cor-
em função do grau de maturação biológica ou poral e da pilosidade púbica, bem marcados nos
pubertária. estádios de Tanner (quadro 2). Uma forma correta
No que diz respeito à maturação do SNC, o e prática para a avaliação do volume testicular,
pico médio de maturação do lobo frontal é mais será o método comparativo através do uso de um
precoce na rapariga em que ocorrendo por volta orquidómetro (figura 1).
252 PAULO FONSECA

habitualmente no estádio III de Tanner (corres-


pondendo a um volume testicular aproximado
de 11,5 ml), e marca o início da sua capacidade
reprodutiva.
No rapaz, ocorre também algum desen-
volvimento das glândulas mamárias, muitas ve-
zes não objetivável, mas notado como botão
mamário (ginecomastia) em muitos. Trata-se de
uma situação transitória, que ocorre pelos 13 a
14 anos, que pode ser uni ou bilateral, e que
habitualmente regride por completo em poucos
anos. No entanto, esta é uma situação que pode
cursar com grande desconforto e angústia, pelo
que o adolescente necessita ser bem esclarecido
acerca do seu significado e da evolução natural
Figura 1. Orquidómetro de Prader. esperada.

A maturação sexual deverá ser avaliada com


A ocorrência da espermarca, ou a cons- uma periodicidade anual, confirmando a sua
ciencialização da emissão de esperma, ocorre normal progressão, para melhor compreensão
precocemente na evolução pubertária masculina, de todo o desenvolvimento biopsicossocial do

Sexo feminino Sexo masculino Ambos os sexos


M – mama G - genitais P – pilosidade púbica
I M1 – ausência de tecido G1 – volume (vol) testicular P1 – ausência de
Pré-púbere mamário palpável. < 4ml, pénis infantil. pilosidade púbica (pp).
G2 – vol testicular 4 a P2 – pp escassa,
II M2 – botão mamário.
5ml, pénis infantil. fina, pigmentada.
P3 – pp distribuída
M3 – crescimento mamário G3 – vol testicular 6 a 12ml,
III à superfície púbica,
(tecido glandular e adiposo). maior vol do escroto e pénis.
forte e enrolada.
M4 – maior crescimento G4 – vol testicular 12 a P4 – pp semelhante à
IV mamário, mamilo e 20ml, escroto pigmentado, do adulto, mas sem
aréola elevados. pénis mais grosso. extensão à coxa.
M5 – mama de adulta, P5 – pp de adulto,
G5 – vol testicular >20ml,
V aréola no mesmo plano, com extensão à face
escroto e pénis de adulto.
mamilo pigmentado. interna da coxa.

Quadro 2. Estádios pubertários de Tanner (Tanner, 1962).


CAPÍTULO 14. ADOLESCÊNCIA 253

adolescente. Esta avaliação é também importan- processo de maturação tardia da região ventro-
te para a mais correta interpretação de alguns medial do córtex pré-frontal, reconhecida como
resultados laboratoriais, e não só, para os quais essencial na capacidade do individuo em avaliar e
os valores médios, ou de referência, precisam ponderar o risco e o benefício dos seus atos; bem
ser interpretados em função do desenvolvimento como a evidência do facto de que o cérebro do
biológico, habitualmente tendo em conta os es- adolescente, perante situações de elevada tensão
tádios pubertários de Tanner, como são os casos, emocional, ativa a região límbica (responsável
já conhecidos, do hematócrito ou da fosfatase pelo comportamento emotivo) em vez das áreas
alcalina, ou até mesmo das necessidades ener- corticais executivas que ainda não se encontram
géticas basais. mielinizadas. Ou seja, é reconhecida a base or-
gânica que justifica a impulsividade e a falta de
14.2.2 Desenvolvimento psicossocial noção das consequências, que facilita os conflitos
Apesar da grande variabilidade interindivi- e os comportamentos de risco que alguns ado-
dual no que diz respeito ao desenvolvimento físi- lescentes manifestam.
co/pubertário do adolescente, este ocorre segun- Mas para melhor julgar o Dps dos ado-
do um padrão, mais ou menos bem definido, que lescentes, torna-se útil dividir este período em
permite a sua avaliação e monitorização objetivas. três fases de acordo com modelos comporta-
Já o desenvolvimento psicossocial (Dps), processa- mentais esperados relativamente a: conquista de
-se de um modo ainda mais amplo não sendo independência face aos pais; comportamento
possível determinar-lhe um modelo que possa face aos pares e códigos de conduta de grupo;
ser aplicavél a todos os adolescentes. De facto, importância e aceitação da própria imagem cor-
a transição para a idade adulta, nas suas verten- poral; e estabelecimento da identidade sexual,
tes biológica, social, emocional e intelectual, não vocacional, intelectual e moral. A adolescência
ocorre de forma contínua, uniforme ou síncrona, precoce, dos 10 aos 13 anos; adolescência
o que torna o Dps de difícil monitorização. média, dos 14 aos 17; e adolescência tardia
Embora a adolescência seja descrita, tantas dos 18 aos 21 anos.
vezes, como um período de extrema instabilidade, A adolescência precoce desenvolve-se a
quase uma “psicose normal”, na verdade a maioria par das transformações físicas típicas da puber-
(cerca de 80%) dos adolescentes não evidencia dade, sabendo-se que estas ocorrem mais cedo
problemas relevantes do comportamento, logo, nas raparigas e, por conseguinte, também as al-
os grandes conflitos neste período, nem são ha- terações emocionais e psicossociais características
bituais, nem “normais”. desta fase serão mais precoces no sexo feminino.
Por outro lado, nestes últimos anos, a neu- A adolescência média é caraterizada pela
rociência tem revolucionado a compreensão do emergência de grande variedade e intensidade
Dps do adolescente, com base em novos conheci- de sentimentos, em que é dada uma impor-
mentos acerca da fisiologia da maturação cerebral. tância muito significativa aos valores do grupo
Como exemplos, reporta-se o conhecimento do de pares, o que modela de forma objetiva os
254 PAULO FONSECA

comportamentos dos adolescentes durante esta Já no que diz respeito a patologias orgâni-
etapa. cas, “clássicas”, com expressividade na adoles-
A adolescência tardia é a etapa final do cência, e que motivam morbilidade significativa,
Dps, caraterizada pela conquista de autonomia poderemos enumerar a patologia respiratória
psicossocial e pelo reconhecimento de uma iden- (i.e. asma, rinite alérgica e outros) e o excesso
tidade própria do adolescente e adulto jovem. ponderal ou obesidade, com ou sem síndroma
Considera-se que se as duas fases anteriores metabólica associada, como sendo as patologias
decorreram de forma “saudável”, e mantendo- atualmente mais frequentes (dados da Consulta de
-se o suporte adequado da família e dos pares, Medicina do Adolescente do Hospital Pediátrico
este será um período tranquilo de transição final de Coimbra, 2012).
para as competências psicossociais características Patologias emergentes, e muito ligadas à
do adulto. adolescência, têm vindo a ganhar relevo na úl-
O quadro 3 resume as características psicos- tima década, sendo exemplos: a dependência
sociais mais relevantes da adolescência de acordo da internet, do telemóvel ou dos videojogos; os
com as suas três fases. riscos comportamentais inerentes ao uso abusivo
Ainda relativamente às caracteristicas do de chats e das redes sociais; wiite ou o polegar de
Dps do adolescente poderemos contudo listar Blackberry, pelo uso excessivo desses equipamen-
alguns “sinais de alarme”, quadro 4, que evocam tos; a vigororexia ou ortorexia, que constituem a
a hipótese de desvio patológico a este processo preocupação excessiva com a prática de exercício
de desenvolvimento, e os quais devem levar à ou com a alimentação saudável, respetivamente,
procura de uma avaliação especializada. com o intuito de manter o corpo “saudável”; os
“consumos” de peças de vestuário ou de com-
14.2.3 Patologia no adolescente ponentes eletrónicos ou de informática, de entre
outras.
É de salientar que eventuais desvios patológi- Já no que diz respeito às principais causas de
cos do Dps estão na origem das principais causas morte na adolescência em Portugal, sobreponíveis
de morbilidade e mortalidade neste grupo etário. a todo o continente europeu, são os acidentes que
Segundo dados da OMS, cerca de 10 a 20% ocupam o primeiro lugar (15.9/100.000 habitan-
dos adolescentes europeus poderão padecer de tes, entre os 15 e os 19 anos, dados do Instituto
algum tipo de transtorno do foro mental, onde Nacional de Estatística, 2008), seguidos do sui-
as síndromes depressivas adquirem grande relevo. cídio (219 suicídios entre 2001 e 2005, no grupo
Por outro lado, comportamentos desajustados e etário dos 14 aos 24 anos, dados do Núcleo de
ou patológicos de violência, consumo de subs- Estudos do Suicídio). Como é do conhecimento
tâncias psicoativas ou de índole suicidária são geral, estas são causas de morte potencialmente
muito preocupantes, podendo levar a um Dps evitáveis, pelo que os aspetos relacionados com o
desajustado do adolescente e ao sério compro- desenvolvimento biopsicossocial dos adolescentes
misso da sua saúde futura. se revestem de especial importância no sentido
CAPÍTULO 14. ADOLESCÊNCIA 255

Independência
Adolescência Menor interesse pelas atividades com os pais e maior relutância em aceitar os seus
precoce conselhos ou críticas; sem grupo de suporte alternativo (vazio emocional). Consequente
maior possibilidade de humor e comportamento instável.
Adolescência Ainda menor interesse pelas atividades no agregado familiar ou dos pais; mais tempo
média dedicado ao grupo de pares. Consequente maior frequência dos conflitos com os pais.
Adolescência Melhor integração na família e sociedade; maior importância dos valores da família e dos
tardia pais; melhor aceitação dos conselhos e orientações dos pais; autonomia nas decisões e
melhor capacidade de compromissos.
Pares e Grupo
Adolescência Amizades fortes e solitárias com pares do mesmo género, o que pode gerar dúvidas
precoce quanto à orientação sexual e possibilidade de relacionamentos homossexuais; grande
coesão aos pares e às suas condutas, podendo levar à experimentação e aos consumos.
Adolescência Maior envolvimento na subcultura do grupo, com clara adoção de códigos de conduta
média do grupo (ie:valores, vestuário, piercings, tatuagens e outros), participação em atividades
de grupo (ie:culturais, desportivas, sociais, anti-sociais, delinquentes e outras); relações
amorosas (ie:namoros, experimentação sexual predominantemente heterossexual).
Adolescência Menor interesse pelos valores do grupo; mais confortável com os seus próprios valores;
tardia maior investimento na relação com uma pessoa, permitindo uma capacidade de partilha
e de intimidade; seleção dos relacionamentos em função de interesses comuns.
Imagem corporal
Adolescência Preocupações e incertezas relativamente ao corpo e suas modificações, levando à
precoce comparação com os outros; interesse na anatomia e fisiologia sexual/genital, pelo que
as dúvidas sobre maturação e função sexual são comuns.
Adolescência Melhor aceitação do seu corpo, mas preocupação em ser ou tornar-se atraente para
média os outros; pressão social e mediática face a silhuetas “ideais” e consequente risco do
desenvolvimento de perturbações do comportamento alimentar.
Adolescência tardia Menor preocupação com o próprio corpo e imagem corporal, exceto se existirem anomalias
físicas relevantes.
Identidade
Adolescência Ganho de competências cognitivas e pensamento abstrato; adolescente sonhador com
precoce vocações idealísticas e pouco concretizáveis; desafio à autoridade; necessidade de privacidade;
emergência de sentimentos de índole sexual, com expressão na masturbação; impulsividade
e procura de gratificação imediata, o que leva aos comportamentos de risco e acidentes.
Adolescência Mais ciente dos seus próprios sentimentos, assim como dos outros; melhor capacidade
média criativa e intelectual; constatação de aspirações vocacionais prévias irrealistas e consequente
risco de baixa autoestima e depressão; sentimentos de omnipotência / imortalidade, com
consequente menor noção do perigo e maior risco de acidentes.
Adolescência tardia Consciência racional e realística; estabelecimento de metas vocacionais realistas e objetivas;
início da autonomia económica; afirmação da identidade e dos seus valores morais,
religiosos e sexuais; capacidade de compromissos.

Quadro 3. Características psicossociais por itens nas diferentes fases da adolescência.


256 PAULO FONSECA

- Isolamento com agressividade.


possa ser garantida a sua privacidade e onde
- Isolamento social e do grupo ou pares.
- Dificuldades de relacionamento seja promovida a confidencialidade e a sua au-
com pais e professores. tonomia, de modo a que o adolescente se sinta
- Suspeitas consistentes da prática de
respeitado e responsável pela sua saúde de uma
comportamentos considerados de risco
(ie: consumos, sexuais e outros). forma holística – atitude salutogénica.
- Quebra injustificada do rendimento escolar. A OMS recomenda que o atendimento ao
- Fugas de casa ou faltas injustificadas à escola. adolescente se faça através de uma abordagem
- Alterações inexplicadas do ritmo
ou do padrão de sono. global, somática e psicossocial, realizada em es-
- Perda ou ganho ponderal repentinos paço próprio e que respeite a sua privacidade e
e ou inexplicados. autonomia, com profissionais interessados, dis-
- Conversas ou interesse injustificado,
sobre a morte ou suicídio.
poníveis e com formação adequada (Adolescent
Friendly Health Services – An agenda for change,
OMS, 2002). Tal abordagem permite evitar a dupli-
Quadro 4. Sinais de alarme de desvios patológicos do Dps. cação de consultas, proporcionando maior adesão
terapêutica e diminuindo o absentismo escolar.
A consulta do adolescente deverá seguir os
da sua prevenção, assim como são também es- passos habituais de uma consulta médica clás-
senciais as oportunidades de atendimento eficaz sica, onde a necessidade de criar empatia com
ao adolescente, quando este recorre ou é levado o adolescente e a possibilidade de estabelecer
a qualquer serviço de saúde, independentemente momentos de privacidade e confidencialidade
da circunstância. com este, poderão ser a chave para o sucesso
da intervenção. A anamnese deverá ser primeiro
14.2.4 Particularidades dirigida ao motivo de vinda à consulta, para que
do atendimento ao adolescente depois se possam abordar os temas mais sensí-
Face às óbvias diferenças entre um adoles- veis da vida do adolescente (não necessariamente
cente e uma criança de idade mais precoce, ou na mesma consulta), ou seja, uma consulta com
mesmo um adulto, quer em termos físicos, como abordagem biopsicossocial.
psicossociais, há muito que é compreendido e Quanto ao exame físico, que deve ser pre-
defendido que o atendimento aos adolescentes viamente explicado, poderá ser protelado, mas é
deve obedecer a um conjunto de especificidades essencial que se faça também focado na avaliação
que o tornem mais eficaz para responder às ne- do crescimento e do desenvolvimento pubertário,
cessidades assistenciais desde grupo populacional. sendo uma valiosa oportunidade para o esclare-
Assim, os serviços de saúde devem orientar- cimento de dúvidas e servindo de pretexto para
-se para atender às necessidades de saúde dos iniciar a conversa acerca de assuntos da esfera
adolescentes de forma integrada, acessível, des- íntima. De modo algum pode ser descurado, até
burocratizada e eficiente, de preferência propor- porque poderá revelar os verdadeiros motivos de
cionando uma ambiente físico adequado, onde ida à consulta. A sua realização deve ser reservada,
CAPÍTULO 14. ADOLESCÊNCIA 257

H Casa Onde e com quem vive; Árvore genealógica; Dinâmica familiar (ie: relacionamentos,
(Home) regras, castigos e outros); Adulto de referência; Antecedentes familiares relevantes.

E Educação Escola (ou trabalho): ano, local, aproveitamento; Relacionamento com colegas e
(Education) professores; Planos futuros.

E Hábitos Padrão alimentar (ie: diário alimentar das últimas 24 horas); Imagem corporal e
alimentares sua aceitação.
(Eating habits)
A Atividades lúdicas Hobbies, desporto, grupo de pares; Amizades; Modos de diversão, saídas noturnas,
(Activities) segurança.

D Consumos Tipo de drogas (ie: tabaco, álcool, canabinóides ou outros); Circunstâncias do


(Drugs) consumo (quantidade e frequência); Dependência?; Comportamentos de risco
associados aos consumos.
S Ideação suicida Particular atenção ao sono, apetite, sentimentos de culpa, irritabilidade ou
(Suicide) isolamento social; Ideação versus plano suicida; Antecedentes de tentativa de
suicídio ou de síndroma depressiva.
S Hábitos de Padrão de sono; Interferências no sono (ie: TV, PC, videojogos, jogos online de
sono (Sleep) apostas ou outros).

S Sexualidade Afeto e atividade sexual (AS); Conhecimentos sobre Contraceção e Infeções


(Sexuality) Sexualmente Transmissíveis (ISTs); Idade de início da AS, que companheiro(s),
qual a proteção?; Antecedentes de ISTs, gravidez ou AS sob o efeito de drogas;
Antecedentes pessoais ou familiares de abuso sexual.
S Qualidades Qualidades do adolescente (identificadas do ponto de vista da família, dos amigos,
(Strengths) do próprio ou do médico).

Quadro 5. Resumo da avaliação biopsicossocial tipo HEADSS.

protegendo a intimidade do adolescente, em ga- diversas formas de alcançar tais objetivos, sen-
binete com cortina ou biombo, estando o adoles- do a abordagem do tipo HEADSS uma das mais
cente acompanhado, ou não, em função da sua conhecidas e aplicadas entre nós, podendo-se
própria vontade. Deve também ser adaptado à acrescentar itens a abordar em função da prática
idade, ao género e às circunstâncias particulares e experiência do médico.
de cada um. O HEADSS é um acrónimo em que cada uma
A avaliação biopsicossocial, não necessa- das suas letras traduz um tema de conversa a ex-
riamente realizada logo na primeira consulta plorar durante a consulta do adolescente, sendo
ou em todas as consultas, tem como principais a ordem de abordagem definida pelo médico,
objetivos detetar eventuais problemas não ver- habitualmente começando-se pelos temas mais
balizados espontaneamente e identificar fatores “fáceis” ou para os quais se sente mais “pre-
protetores e de risco de cada individuo. Existem parado”. No quadro 5 estão descritos os temas
258 PAULO FONSECA

propostos para este tipo de abordagem, assim Leitura complementar


como algumas das informações e assuntos a abor- Adolescent Friendly Healt Services – An agenda for change,
dar com o adolescente. OMS, 2002.
Requisitos para o atendimento ao adolescente. Consenso
Os objetivos do atendimento ao adolescen- da Secção de Medicina do Adolescente da Sociedade
te, com as características aqui abordadas, são o Portuguesa de Pediatria. Disponível em: http://www.
identificar dos problemas reais de cada adoles- spp.pt / UserFiles /file/ Protocolos _ SPP/Atendimento_
cente (físicos, psicológicos ou sociais), determinar Adolescente.pdf
o seu grau de desenvolvimento biopsicossocial, Neinstein e col.. Adolescent Health Care – A practical guide.
estabelecer uma relação terapêutica que seja ade- 5th edition. Philadelphia. Lippincott Williams & Wilkins;
quada à sua maturação biopsicossocial, fomentar 2008.
o diálogo entre o adolescente e os pais ou escola, Machado MC, Alves MI, Couceiro ML. Saúde Infantil e Juvenil
e incentivar o adolescente a fazer escolhas respon- em Portugal: indicadores do Plano Nacional de Saúde.
sáveis de estilos de vida saudáveis. Desta forma Acta Pediatr Port 2011;42(5):195-204
conseguiremos tratar os problemas do presente Barca GC, Romero AMR, Vicario MIH. Medicina de la
e prevenir os do futuro (cuidados antecipatórios). Adolescencia – Atención Integral. 2ª edición. Ergon, 2012.
Capítulo 15.
O Programa Nacional de Vacinação
e outras vacinas

15
Fernanda Rodrigues
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_15
CAPÍTULO 15. O PROGRAMA NACIONAL DE VACINAÇÃO E OUTRAS VACINAS 261

15.1 CONTEXTO e serológicos então efetuados permitiram avaliar o


impacto de doenças contra as quais havia vacinas
Embora existam registos históricos que revelam disponíveis e foi criada uma comissão de técnicos
tentativas anteriores de proceder a vacinação, é ao que propunha vacinas, aspetos organizativos e
médico inglês Edward Jenner (1749-1823) que se funcionais. A rede de postos de vacinação foi ba-
atribui o mérito das bases científicas da mesma. seada nos serviços existentes e foi criado o Boletim
Jenner investigou a crença popular de que os cam- Individual de Vacinação.
poneses que lidavam com gado bovino com varíola Desde o seu início, é um programa univer-
e que tinham lesões semelhantes às bovinas, não sal (aplicável a todas as pessoas residentes em
contraiam varíola humana. Com base nesta obser- Portugal), não obrigatório, gratuito, gerido a nível
vação, inoculou material de uma lesão de varíola nacional mas descentralizado, aplicado sobretudo
bovina da mão de uma mulher no braço de um na rede de serviços públicos, com um calendário
menino - James Phipps - que posteriormente foi recomendado e dinâmico, que pretende atingir
exposto a varíola humana e não contraiu a doença. elevadas coberturas vacinais, nas idades indicadas
Além disso, Edward Jenner previu que, aplicando a e sem assimetrias geográficas.
experiência com James Phipps a toda a população, A primeira vacina do PNV foi a da poliomie-
um dia seria possível erradicar esta doença. Tal viria lite e outras foram sendo progressivamente in-
a acontecer cerca de dois séculos depois, pela vaci- cluídas (Quadro 1), contemplando atualmente 13.
nação de grande número de indivíduos, associada A evolução do PNV envolveu a introdução
a estratégias de vacinação dos contactos de casos. de novas vacinas, determinada pela sua disponi-
Muitos avanços científicos se seguiram, exis- bilidade, por fatores epidemiológicos e de custo-
tindo atualmente mais de 20 vacinas disponíveis. -benefício. A atualização dos esquemas implemen-
Foi erradicada uma doença, outras eliminadas tados foi ocorrendo de acordo com a evolução
e muitas controladas, sendo extraordinário o epidemiológica e do conhecimento científico. O
benefício da vacinação. Segundo a Organização programa em vigor a partir de 2017 está apre-
Mundial de Saúde (OMS), em conjunto com a sentado no Quadro 2.
água potável, são as duas medidas com maior
impacto em termos de saúde pública.  A introdução de algumas vacinas fez-se si-
multaneamente com campanhas. São exemplos a
campanha contra a poliomielite, contra o sarampo
15.2 DESCRIÇÃO DO TEMA e contra o meningococo C, de modo a imunizar
rapidamente o maior número possível de pessoas
15.2.1 O Programa Nacional e obter o controlo rápido da doença através da
de Vacinação Português imunidade de grupo. A campanha mais recen-
te foi contra o papiloma vírus humano (HPV) e
O Programa Nacional de Vacinação (PNV) por- pretendeu complementar a vacinação de rotina,
tuguês iniciou-se em 1965. Estudos epidemiológicos protegendo um maior número de jovens.
262 FERNANDA RODRIGUES

1965 1974 1984 1987 1993 2000 2006 2008 2015


Varíola
Difteria
Tétano
Tosse convulsa
Tuberculose
Poliomielite
Sarampo
Rubéola
Parotidite epidémica
Hepatite B
Hib
MenC
HPV
Pn13
Hib – vacina contra Haemophilus influenzae tipo b; MenC - vacina conjugada contra Neisseria meningitidis grupo C; HPV – vacina
contra Papiloma vírus humano; Pn13 – vacina conjugada peumocócica 13 valente.

Quadro 1. Introdução de novas vacinas no Programa Nacional de Vacinação Português.

Nascimento 2M 4M 6M 12M 18M 5A 10A 25, 45, 65, >


65A (10/10A)
TB Grupos de risco
VHB VHB1 VHB2 VHB3
Hib Hib1 Hib2 Hib3 Hib4
TDPa DTPa1 DTPa2 DTPa3 DTPa4 DTPa5
VIP VIP1 VIP2 VIP3 VIP4 VIP5
Pn13 Pn13 1 Pn13 2 Pn13 3
MenC MenC1
VASPR VASPR1 VASPR2
HPV HPV1,2
Td Td1 Td2,3,4,5,...

TB – tuberculose; VHB – vacina contra vírus da hepatite B; Hib – vacina contra Haemophilus influenzae tipo b; TDPa – vacina contra
difteria, tétano e tosse convulsa (acelular); para grávidas, uma dose em cada gravidez, administradas entre 20 a 36 semanas de ges-
tação; VIP – vacina injetável contra a poliomielite; Pn13 – vacina conjugada peumocócica 13 valente; MenC - vacina conjugada contra
Neisseria meningitidis grupo C; VASPR – vacina contra sarampo, papeira e rubéola; HPV – vacina contra Papiloma vírus humano; Td
– vacina contra tétano e difteria

Quadro 2. Programa Nacional de Vacinação Português proposto para 2017.


CAPÍTULO 15. O PROGRAMA NACIONAL DE VACINAÇÃO E OUTRAS VACINAS 263

Também já ocorreram campanhas comple- 15.2.2 Princípios básicos da vacinação


mentares de vacinação, como por exemplo contra
o sarampo, de modo a eliminar bolsas de susce- Com a vacinação pretende-se que a adminis-
tíveis entretanto acumuladas que poderiam levar tração de um ou mais antigénios desencadeie a
à ocorrência de surtos. produção de anticorpos tal como aconteceria com
Algumas vacinas já eram administradas à a doença, com o mínimo possível de efeitos secun-
população portuguesa antes da implementação dários, e que protegerão o individuo num contacto
do PNV, mas com taxas de cobertura muito infe- posterior com o agente infecioso.  Pretende-se
riores. Após o seu início, obtiveram-se coberturas que estes anticorpos sejam funcionantes, atinjam
vacinais muito elevadas, das melhores do mundo. níveis considerados protetores e que persistam
E assim foi possível erradicar a varíola, eliminar o pelo maior período de tempo possível. Ao longo
sarampo e a poliomielite e conseguir uma redução dos anos foi-se percebendo que algumas vacinas
drástica da morbilidade e mortalidade de várias atuavam também através de um outro mecanis-
outras doenças. mo muito importante, designado por imunidade
A aplicação informática  SINUS módulo de de grupo ou proteção indireta. Ao interferir na
vacinação permite toda a gestão do PNV, incluindo colonização prevenindo-a ou reduzindo a sua
emissão de convocatórias e avaliação das cober- densidade no individuo vacinado, previnem ou
turas vacinais. reduzem a transmissão para os não vacinados que
A avaliação das metas do PNV faz-se através de: ficam assim menos expostos e não adquirem o
microrganismo. Os não vacinados são protegidos
- analise da cobertura vacinal; indiretamente, beneficiando do contato com os
- avaliação do estado imunitário da popu- vacinados. Para existir imunidade de grupo são
lação com estudos serológicos para as necessárias coberturas vacinais muito elevadas.
doenças-alvo da vacinação; No caso do tétano, o microrganismo vive no solo
- avaliação da efetividade das vacinas nas e não coloniza o individuo pelo que a vacinação
doenças-alvo da vacinação, pela da vi- confere apenas proteção individual, não havendo
gilância epidemiológica clínica e labo- imunidade de grupo. Só uma cobertura vacinal de
ratorial e pelas Doenças de Declaração 100% evitaria o aparecimento de casos.
Obrigatória (DDO).
Em geral, os anticorpos produzidos pelos
O PNV é submetido a uma avaliação anual linfócitos B são considerados o mecanismo prin-
interna regional e nacional, a uma avaliação externa cipal de proteção específica contra os antigénios
internacional europeia - European Centre for Disease vacinais. De uma forma resumida, os antigénios
Prevention and Control (ECDC) e global (OMS). que fazem parte da vacina são reconhecidos por
O extraordinário sucesso do PNV português, linfócitos B que se diferenciam em plasmócitos que
que em 2015 completou 50 anos, é reconhecido produzem anticorpos e em células B de memó-
a nível internacional. ria. Estas, aquando de um subsequente contacto
264 FERNANDA RODRIGUES

com o mesmo antigénio (nova dose de vacina ou indivíduos vacinados em relação à doença
agente microbiológico), responderão rapidamente alvo. Estes estudos ocorrem em condi-
com produção de anticorpos. A primeira é desig- ções controladas, habitualmente antes
nada resposta primária e a produção de anticor- do licenciamento da vacina;
pos demora cerca de duas semanas; a segunda -fase 4: avaliação de segurança e efetivida-
designa-se por memória imunológica e é muito de, isto é de que forma a vacina prote-
mais rápida podendo a produção de anticorpos ge contra a doença alvo quando utili-
ocorrer em poucos dias. zada na vida real, fora de estudos com
A resposta imunológica à vacina é habitual- condições controladas. É influenciada
mente avaliada através dos níveis de imunoglo- pela cobertura vacinal e para algu-
bulina G (IgG) sérica embora nem sempre haja mas  vacinas  pela imunidade de grupo.
correlação entre este valor e a proteção conferida. A avaliação da segurança está presente em
Esta resposta depende da idade, sendo menor e todas as fases e a sua monitorização per-
de curta duração no primeiro ano de vida. Sendo manecerá enquanto a vacina for utilizada. 
esta uma idade em que é mais elevado o risco de
algumas doenças infeciosas, para algumas vacinas Considera-se que houve erradicação de uma
é necessário administrar várias doses no primeiro doença quando ocorreu interrupção da sua trans-
ano de vida, seguidas de dose (s) de reforço depois missão a nível mundial, na presença de um bom
dos 12 meses.  sistema de vigilância epidemiológica. Até hoje foi
Noutros casos, como por exemplo no sa- conseguida apenas a erradicação da varíola. 
rampo, a vacinação não é feita no primeiro ano A eliminação de uma doença infeciosa é
de vida pela possível interferência dos anticorpos definida pela ausência de casos endémicos num
maternos (adquiridos in útero e ainda presentes) determinado país ou área geográfica por um pe-
na resposta imunológica da criança e a segun- ríodo mínimo de 12 meses, na presença de um
da dose serve para ultrapassar falências vacinais bom sistema de vigilância epidemiológica. Só pode
primárias que ocorrem em 5 a 10% das crianças.   ser declarada pela OMS após a ausência de casos
O desenvolvimento de uma vacina envolve endémicos no país ou nessa área geográfica por
estudos muito prolongados no tempo, com um um período de pelo menos 36 meses. Considera-se
componente laboratorial e depois em humanos. transmissão endémica a transmissão contínua
Este inclui quatro fases: (de agente microbiológico indígena ou importado)
num determinado país ou área geográfica durante
-fase 1: avaliação de segurança e doses; um período igual ou superior a 12 meses.
-fase 2: avaliação de segurança e imunoge- O sarampo é uma doença com possibilida-
nicidade que mede o título de anticor- de de eliminação porque existe uma vacina efe-
pos produzidos; tiva e segura e tem transmissão exclusivamente
-fase 3: avaliação de segurança e eficácia, inter-humana. Na Europa, a OMS definiu o ano
isto é de que forma a vacina protege os de 2007 como meta para a sua eliminação mas
CAPÍTULO 15. O PROGRAMA NACIONAL DE VACINAÇÃO E OUTRAS VACINAS 265

esta data foi sendo sucessivamente alterada 15.2.3 Tipos de vacinas, locais anatómicos
e a situação epidemiológica agravou-se nos e vias de administração
últimos anos, ocorrendo surtos na maioria dos
29 países europeus sob vigilância, incluindo As  vacinas  podem ser vivas atenuadas ou
Portugal. inativadas (Quadro 3). As vacinas vivas estão ge-
ralmente contraindicadas na gravidez, sendo as
Os programas de vacinação conduziram inativadas consideradas seguras para o feto. Em
a uma dramática redução da incidência da po- algumas circunstâncias de alterações imunitárias,
liomielite, tendo a OMS declarado interrupção as vacinas vivas estão contra-indicadas devido
da sua transmissão em várias áreas do mundo. ao risco de doença provocada pelas estirpes va-
No entanto, em 2014, ainda existiam três países cinais. A vacinação destes doentes deve sempre
(Afeganistão, Nigéria e Paquistão) endémicos para ser decidida e efetuada sob orientação do médico
esta doença. assistente e de especialista com formação em
O desaparecimento de alguns tipos de mi- infecciologia pediátrica.
crorganismos pela  vacinação pode levar à sua Além do(s) antigénio(s), as vacinas têm na
substituição por outros tipos designando-se por sua composição adjuvantes (i.e. alumínio) que
fenómeno de substituição. aumentam a resposta imunológica, conservantes
(i.e. tiomersal), antibióticos, estabilizadores (i.e.
A redução das taxas de cobertura vacinal gelatina), emulsionantes e resíduos (i.e. proteínas
pode levar ao ressurgimento de doenças con- de ovo).
troladas ou eliminadas tal como aconteceu re- As vias de administração podem ser injetável
centemente com o sarampo em vários países (subcutânea, intradérmica ou intramuscular) ou
do mundo. mucosa (oral ou nasal) (Quadro 3).

Tipo de vacinas /Via de administração Vivas atenuadas Inativadas (IM)


Injetável VASPR (SC) DTP, VIP , VHB , HPV
Varicela (IM/SC) Hib, MenC e Pn
TB (ID) – conjugadas
Mucosa Rotavírus (oral)

ID – intradérmica; SC – subcutânea; IM – intramuscular; VASPR – vacina contra sarampo, papeira e rubéola; TB – tuberculose; DTPa
– vacina contra difteria, tétano e tosse convulsa (acelular); VIP – vacina injetável contra a poliomielite; VHB – vacina contra vírus da
hepatite B; HPV – vacina contra Papiloma vírus humano; Hib – vacina contra Haemophilus influenzae tipo b; MenC - vacina conjugada
contra Neisseria meningitidis grupo C; Pn13 – vacina conjugada peumocócica 13 valente

Quadro 3. Tipo e via de administração das vacinas.


266 FERNANDA RODRIGUES

Antes dos 12 meses são administradas na simultaneamente, antes ou depois de outra vacina
coxa pela quantidade de massa muscular, sen- inativada ou viva.
do exceção a vacina BCG que é administrada na Pelo contrário, a resposta imunológica a uma
parte superior do braço esquerdo. Não são dadas vacina viva injetável pode ficar comprometida
na nádega pelo risco de lesão do nervo ciático. se for administrada com um intervalo inferior a
Existem locais anatómicos definidos para cada va- quatro semanas após outra vacina viva injetável.
cina  para promover boas práticas e facilitar a A administração de duas ou mais vacinas vivas
vigilância farmacológica de efeitos secundários.  injetáveis deve então ser feita no mesmo dia ou
É possível  administrar em simultâneo mais com um intervalo de pelo menos quatro semanas.
do que uma vacina no mesmo membro, em locais
distantes entre si em 2,5 a 5 cm. 15.2.5 Contraindicações à vacinação

15.2.4 Intervalo entre doses da mesma vaci- As contra-indicações verdadeiras às vacinas


na e entre vacinas diferentes são raras e incluem reação anafilática prévia e
administração de vacinas vivas à grávida e em
A maior parte das vacinas requer a adminis- algumas circunstâncias de alterações imunitárias.
tração de várias doses para conferir uma proteção Há situações em que são necessárias precauções,
adequada. exigindo prescrição médica e nas quais se incluem
Intervalos superiores ao recomendado não a doença aguda grave e hipersensibilidade não
reduzem a concentração final de anticorpos prote- grave a dose anterior. A lista das falsas contra-
tores pelo que, requerem apenas que se complete -indicações é extensa, incluindo doença ligeira
o esquema recomendado, independentemente aguda com ou sem febre, reações locais ligeiras
do tempo decorrido desde a administração da a moderadas prévias, tratamento antibiótico con-
última dose. comitante, história pessoal de alergias e história
Intervalos inferiores aos mínimos aconse- anterior de convulsão febril.
lhados podem diminuir a resposta imunológica
e estas doses não devem ser consideradas váli- 15.2.6 Reações adversas
das. Por razões epidemiológicas ou clínicas pode
ser necessário encurtar os intervalos entre doses Tal como na administração de qualquer me-
devendo nestes casos respeitar-se os intervalos dicamento, as vacinas podem provocar reações
mínimos aconselhados entre elas. adversas, excecionalmente graves (reações ana-
Excecionalmente, para situações de elevado filácticas) e com mais frequência causam reações
risco, os esquemas aconselhados podem ter que locais ligeiras tais como dor, eritema e edema. A
ser alterados. febre é a reação sistémica mais frequente surgindo
Como princípio geral, as vacinas inativa- e desaparecendo habitualmente nas primeiras 24
das não interferem com a resposta imunológi- a 48 horas após vacinação. Após a administração
ca a outras vacinas podendo ser administradas da VASPR, uma vacina viva, a febre surge entre
CAPÍTULO 15. O PROGRAMA NACIONAL DE VACINAÇÃO E OUTRAS VACINAS 267

o quinto e o décimo segundo dias, durando um Tétano:


a cinco dias. Os resultados dependem única e exclusiva-
As reações adversas possivelmente relacio- mente da vacinação de cada pessoa. Em Portugal
nadas com a administração de uma vacina devem houve uma descida progressiva a partir dos anos
ser sempre declaradas ao INFARMED pelos pro- 70, e o último caso de tétano neonatal ocorreu
fissionais de saúde através do preenchimento de em 1997. Desde 2010 que os poucos casos de
formulário próprio. tétano surgem em idades mais tardias o que está
de acordo com os dados serológicos que demons-
15.2.7 Particularidades de algumas vacinas tram quase 100% de proteção nas coortes que
foram abrangidas pelo PNV.
Tuberculose:
A vacina BCG faz parte do PNV desde 1965 Tosse convulsa:
e está indicada na prevenção de formas graves de Vários países assistiram a um ressurgimento
tuberculose na criança, não prevenindo a evolução da tosse convulsa nos últimos anos. Poderão ser
para doença pulmonar ativa. várias as razões para tal, parecendo que uma
Em Portugal foi-se assistindo a redução man- das mais importantes será a menor duração da
tida da incidência da tuberculose, e em 2014 foi imunidade induzida pela vacina acelular quando
atingido o valor limite de baixa incidência definido comparada com a vacina de célula inteira ou com
pela OMS (20 casos/100.000 habitantes). Assim, em a doença. Passou também a haver um maior re-
2016 passaram a ser vacinadas apenas as crianças conhecimento da doença, o diagnóstico é mais
pertencentes a grupos de risco para a tuberculose. fácil e acessível através da utilização de técnicas
de biologia molecular (PCR) e apareceram estirpes
Poliomielite: com variações antigénicas constituindo escapes
A incidência de poliomielite baixou drasti- vacinais. São várias as estratégias possíveis para
camente em Portugal e no mundo na sequência reduzir este problema embora com dificuldades de
da vacinação. Em Portugal não se verificam casos implementação e parecendo ser apenas soluções
de poliomielite aguda por vírus selvagem desde parciais. Estas incluem a vacinação do adolescen-
1987, estando a doença oficialmente eliminada te, a vacinação de familiares e contatos próximos
desde 2002. do recém-nascido (cocoon), a vacinação dos pro-
No entanto, se existirem bolsas de população fissionais de saúde em particular dos que têm
com baixas taxas de cobertura vacinal e portanto contacto direto com grávidas e lactentes. Mas, até
suscetíveis, a doença pode reemergir sob a forma agora, a medida que mostrou maior benefício no
de surto ou epidemia. controlo da doença no recém-nascido e pequeno
lactente, grupo etário em que as manifestações
Difteria: clínicas são mais graves, é a vacinação da grávida.
O último caso em Portugal foi declarado A  vacina  a administrar depois dos 4-5 anos de
em 1986. idade é a vacina Tdp, com menor dose antigénica.
268 FERNANDA RODRIGUES

Hib: que os benefícios desta vacina se devem em


Após introdução da  vacina  houve uma grande parte à imunidade de grupo que produz.
redução muito importante da doença invasiva
(meningite, sépsis, bacteriémia, epiglotite, entre Há algumas vacinas licenciadas e comercializa-
outras) causada pelo Haemophilus influenzae tipo das em Portugal mas que não estão incluídas no PNV:
b. No entanto, a doença não desapareceu e na
vigilância nacional de doença invasiva por esta MenB:
bactéria, embora a maioria dos casos identificados Após redução importante da doença invasiva
seja por Haemophilus influenzae não tipáveis, meningocócica causada pelo grupo C, a maioria
têm ocorrido cerca de 2 casos/ano causados por dos casos de doença invasiva em Portugal passou
Haemophilus influenzae tipo b. a ser causada pelo grupo B, que atinge sobretudo
crianças de baixa idade, em particular no primeiro
Pn: ano de vida. Desde 2014 está comercializada uma
Estão comercializadas duas vacinas conjuga- vacina proteica de quatro componentes antigéni-
das antipneumocócicas, com 10 e 13 serotipos, cos, que protege contra estirpes que tenham pelo
sendo a última a utilizada em Portugal. Existem menos um desses antigénios. A proteção estimada
mais de 90 serotipos de pneumococo embora a para a Europa é de 78%. O Reino Unido introduziu
maioria dos casos de doença seja causada por esta vacina no seu PNV em 2015 e vários países
um grupo mais limitado, que inclui os contidos têm recomendações para a sua utilização.
nas  vacinas. Com a utilização da vacina houve
uma diminuição muito importante da doença Men ACWY:
invasiva causada pelos serotipos vacinais, uma Em alguns países têm-se assistido a um au-
redução da frequência da otite média aguda e da mento dos casos de doença pelo grupos Y e W.
pneumonia não bacteriémica. Os efeitos indiretos No Reino Unido houve um aumento importante do
desta vacina na população não vacinada são muito último desde 2012, o que levou à introdução de
importantes, tendo-se observado uma redução da uma dose da vacina conjugada contra os grupos
doença por serotipos vacinais nos grupos etários A, C, W, e Y na adolescência, procurando obter
não vacinados (imunidade de grupo). Ocorreu proteção direta dos vacinados e redução da colo-
alguma substituição, com aumento de serotipos nização deste grupo etário, que é o que apresenta
não vacinais mas este aumento foi inferior à re- maior taxa de colonização, e assim proteger de
dução que se obteve com os serotipos vacinais. forma indireta as crianças mais pequenas.

MenC: Rotavírus:
Após a introdução desta vacina conjugada É um dos agentes mais frequentes de gas-
houve rápida redução da doença invasiva causada troenterite aguda nos primeiros anos de vida e
pelo grupo C e não se observou aumento dos a quase totalidade das crianças terá pelo menos
outros tipos. Além do efeito direto demostrou-se um episódio até aos 5 anos de idade, sendo
CAPÍTULO 15. O PROGRAMA NACIONAL DE VACINAÇÃO E OUTRAS VACINAS 269

mais frequente entre os seis e os 24 meses. Há dos seis meses e nas crianças com patologia crónica.
duas vacinas disponíveis desde 2006, que podem Em Portugal estão disponíveis vacinas trivalentes
ser administradas a partir das seis semanas de inativadas que incluem na sua composição dois
vida e devendo os esquemas estar completos às subtipos de vírus influenza A e um tipo de influen-
24 (Rotarix®) e 32 semanas (Rotateq®). Estão za B. A OMS monitoriza continuamente a infeção
incluídas em programas de vacinação universal pelo vírus da gripe e faz recomendações anuais
em mais de 80 países e a experiência da sua sobre os tipos de vírus que devem ser incluídos na
utilização demonstrou uma diminuição muito vacina em cada época. A vacinação contra a gripe
importante dos internamentos e observações por é recomendada pela Direção Geral da Saúde (DGS)
gastroenterite aguda por rotavírus. Esta redução para grupos de risco nos quais a gripe pode ser
também se verificou em grupos não vacinados, particularmente grave, nomeadamente nas crianças
parecendo sugerir um efeito de imunidade de com mais de seis meses e adolescentes com as
grupo. A monitorização da utilização das duas seguintes patologias: doenças crónicas cardiovascu-
vacinas demonstrou para ambas um pequeno lares, pulmonares, renais, hepáticas, hematológicas
aumento do risco de invaginação intestinal, que (hemoglobinopatias), metabólicas, neurológicas;
parece ser menor quando a vacinação é feita imunodepressão primária, secundária a doença
mais cedo. (infeção VIH, asplenia ou disfunção esplénica) ou
secundária a terapêutica; terapêutica prolongada
Varicela: com salicilatos; diabetes mellitus; doença neuromus-
É uma doença altamente contagiosa, predo- cular ou esquelética com compromisso da função
minando na infância. Os adolescentes são mais respiratória; transplantação de órgãos sólidos ou
suscetíveis a formas graves de doença. Há duas medula óssea; adolescentes grávidas, que em ou-
vacinas comercializadas, para serem administra- tubro estejam no segundo ou terceiro trimestre da
das depois dos 12 meses, em duas doses. A sua gravidez; obesidade mórbida; contactos próximos
utilização demonstrou elevada efetividade, não se de grupos de risco; residentes ou internados por
acompanhando de aumento de zoster. No entanto, períodos prolongados em instituições prestadoras
com base em resultados de modelos matemáticos, de cuidados de saúde.
a OMS alerta para o risco de coberturas vacinais
baixas (inferiores a 80%) reduzirem a infeção na Hepatite A:
infância mas poderem desviá-la para grupos etários Portugal é considerado um país de baixa en-
mais velhos, com maior risco de complicações. demicidade para esta doença, estando a vacina
indicada em crianças e adolescentes que viajem
Gripe: para países com endemicidade intermédia ou alta,
O vírus influenza pode causar infeção em qual- com patologia hepática crónica, candidatos a trans-
quer grupo etário, mas com taxas de incidência mais plante de órgão, infetados por VIH, hemofílicos
elevadas em crianças. A maior taxa de hospitaliza- ou a receber hemoderivados ou que pertençam a
ção e de complicações ocorre nos lactentes abaixo comunidade onde seja detetado um surto.
270 FERNANDA RODRIGUES

HPV para rapazes: dos seis meses de idade. Estas razões levaram à
A vacina contra o HPV também pode ser recomendação da vacinação da mulher grávida
administrada a rapazes. Estes beneficiam da imu- em vários países e a sua utilização mostrou que
nidade de grupo se a cobertura vacinal nas ra- é segura e efetiva para a proteção da mãe, do
parigas for muito elevada. No entanto há muitos feto, do recém-nascido e do pequeno lactente.
países com coberturas baixas ou que não utilizam A reemergência da infeção por Bordetella
a vacina e os homens que têm sexo com ho- pertussis nos últimos anos, com quadros graves
mens não beneficiam de forma significativa da e com mortalidade no recém-nascido e pequeno
vacinação do sexo feminino. A carga da doença lactente, levou vários países, entre os quais se
por HPV no homem é relevante, nomeadamente encontra Portugal a recomendar a vacina acelular
para os condilomas genitais e não há rastreios contra a tosse convulsa durante cada gestação,
implementados de cancros associados ao HPV. entre as 20 e as 36 semanas, idealmente até às
32 semanas. Os resultados demonstraram a sua
15.2.8 Vacinação da grávida segurança e elevada efetividade na prevenção
da doença naqueles grupos etários. Neste caso,
Algumas doenças preveníveis pela vacinação a principal razão para a vacinação da grávida é a
apresentam maior morbilidade e mortalidade na proteção da criança e não da mãe.
grávida e podem associar-se a aborto espontâ- Vacinas contra Streptoccocus do grupo B e
neo, anomalias congénitas, prematuridade e baixo vírus sincicial respiratório estão atualmente a ser
peso ao nascer. desenvolvidas para uso na gravidez.
A vacinação da grávida permite proteger a
mulher prevenindo a doença durante a gravidez 15.2.9 Desafios
e permite proteger o feto, o recém-nascido e
o lactente por transferência de IgG através da A eliminação e controlo de doenças leva ao
placenta e transferência de IgA através do leite esquecimento e desvalorização das mesmas, o
materno. A prevenção da doença na mãe leva que, associado a mitos poderá levar a uma menor
também a menor exposição do recém-nascido à adesão à vacinação, com o risco de ressurgimento
infeção, protegendo-o dessa forma. de doenças já controladas ou eliminadas.
Os programas de imunização da grávida
contra o tétano materno e neonatal começaram
na década de 80 em países em desenvolvimento 15.3 FACTOS A RETER
e mostraram ser seguros e muito efetivos na pre-
venção da doença na mãe e no recém-nascido. A vacinação resultou em extraordinários
As mulheres grávidas com infeção pelo vírus ganhos em saúde, com erradicação, eliminação
influenza apresentam maior risco de doença grave e controlo de várias doenças infeciosas.
e o feto também pode ser afetado. A vacina da Mas, só é possível erradicar, eliminar e
gripe está licenciada para utilização apenas depois controlar as doenças infeciosas preveníveis pela
CAPÍTULO 15. O PROGRAMA NACIONAL DE VACINAÇÃO E OUTRAS VACINAS 271

vacinação se forem atingidas elevadas taxas de


vacinação.
Existe risco de reemergência se as coberturas
vacinais entretanto alcançadas não forem manti-
das ou não se distribuírem homogeneamente na
população (bolsas de suscetíveis).
O PNV é o programa mais antigo, mais uni-
versal, e bem-sucedido dos programas de saúde
portugueses.
O empenho dos profissionais de saúde no
cumprimento do PNV é indispensável para o seu
sucesso.

Leitura complementar

DGS – Programa Nacional de Vacinação 2017


https://www.dgs.pt/em-destaque/novo-programa-nacional-
-de-vacinacao2.aspx
Green Book – immunisations against infectuious diseases
https://www.gov.uk/government/collections/immunisation-
against-infectious-disease-the-green-book
Recomendações sobre vacinas extra Programa Nacional de
Vacinação
http://www.spp.pt /UserFiles/file/Comissao_de_Vacinas/
Recomendacoes%20sobre%20vacinas%20extra%20
PNV%202015-2016.pdf
Kimberlin DW, Brady MT, Jackson MA, Long SS, eds. Red
Book: 2015 Report of the Committee on Infectious
Diseases. 30th ed. Elk Grove Village, IL: American
Academy of Pediatrics, 2015.
DGS - Programa Nacional de Vacinação 2012
https://www.dgs.pt/ficheiros-de-upload-3/pnv2012-booklet.
aspx
Vacinação em circunstâncias especiais
http://www.spp.pt /UserFiles/file/Comissao_de_Vacinas/
Vacinacao_Circunstancias_Especiais.pdf
Capítulo 16.
Febre

16
Alexandra Oliveira
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_16
CAPÍTULO 16. FEBRE 275

16.1 CONTEXTO Em termos de determinação da temperatura,


a medição rectal é o método padrão de avaliação,
A febre é um dos principais motivos de ob- no entanto é desagradável e pouco cómodo, não
servação médica. É fonte de grande ansiedade nos estando por norma indicada. Com a medição
pais, que a consideram mais como uma doença axilar pode-se obter a mesma fiabilidade desde
do que como um “sintoma/sinal”. É fundamental que realizadas duas medições com intervalo de 60
instruir os pais sobre febre, informando-os que minutos e com colocação correta do termómetro.
esta é uma resposta normal à infeção e mais
raramente à inflamação, que na decisão de tra- 16.2.2 Fisiopatologia e clínica da febre
tamento com antipirético o mais importante é o
desconforto da criança e que a febre persistirá A febre é o resultado de uma série coor-
até à resolução da doença. denada de eventos biológicos. Os pirogénios
(substâncias que produzem a febre) podem ser
toxinas ou produtos do metabolismo de vírus e
16.2 DESCRIÇÃO DO TEMA bactérias, mas também mediadores internos (imu-
nocomplexos, componentes do complemento) que
16.2.1 Definição estimulam perifericamente a síntese e libertação
de interleucina (IL) 1, e 6, fator de necrose tumoral
A febre pode ser definida como a elevação (TNF), interferão (IFN)-alfa e de outras citoquinas
anormal da temperatura corporal (geralmente um endógenas pirogénicas pelas células fagocitárias
grau acima da temperatura habitual do indivíduo) no sangue e nos tecidos. Estas citoquinas são
que ocorre como parte de uma resposta biológica transportadas pelo sangue até ao hipotálamo
específica e que é mediada e controlada pelo anterior (área pré-ótica), onde induzem um au-
sistema nervoso central. mento de produção de prostaglandinas (PG), em
A temperatura corporal é controlada pelo particular da PGE2. Esta aumenta no hipotálamo
centro de termorregulação do hipotálamo. Este o “set-point” da temperatura corporal. Perante
equilibra a produção de calor (resultado da ati- isto, o centro de termorregulação determina um
vidade metabólica sobretudo a nível do músculo conjunto de eventos físicos para elevar a tempe-
e fígado) e a dissipação do calor (sobretudo pela ratura corporal através de acréscimo da produção
pele e pulmões). A temperatura média considera- de calor (aumento das atividades metabólica e
da normal é de 37 graus Celsius (°C), mas este va- muscular) e diminuição da perda de calor (re-
lor teve origem sobretudo em estudos de adultos. dução da perfusão cutânea). Clinicamente, este
No entanto, esta varia com a idade, momento do incremento da temperatura é caraterizado por
dia, nível de atividade, entre outros. As crianças “tremor” generalizado (resultado da atividade
têm uma temperatura corporal mais elevada em muscular), sensação de frio, “arrepios”, procura
resultado da maior razão entre superfície corporal/ de ambiente mais quente e agasalhos, acrocianose
peso corporal e pela maior atividade metabólica. e pele marmoreada (resultado da vasoconstrição
276 ALEXANDRA OLIVEIRA

periférica), aumento da frequência cardíaca e res- clinica detalhada e um exame objetivo minucioso.
piratória. Por oposição, a descida da temperatura A anamnese deve incluir o tempo de evolução
é clinicamente caraterizada por pele quente/hi- da febre, o máximo de temperatura, a resposta
perémia, sudação, sensação de calor, procura de aos antipiréticos, os intervalos entre a sua admi-
ambiente fresco e remoção de roupa (resultado nistração, o estado geral da criança em apirexia,
da vasodilatação periférica). outros sintomas associados (respiratórios, gas-
Na febre, as citoquinas pirogénicas aumen- trointestinais, urinários, entre outros) e o con-
tam também a síntese de proteínas de fase aguda texto epidemiológico. O exame objetivo deve ser
pelo fígado, diminuem o ferro sérico e o zinco, completo, com particular atenção à impressão
causam leucocitose e aceleram a proteólise mus- clínica da criança, presença de exantema e sinais
cular esquelética. A PGE2 também é responsável de irritação meníngea. Os antecedentes pessoais
pelas mialgias e artralgias que podem existir con- e familiares também são importantes.
comitantemente com a febre. São sinais tranquilizadores se a criança
A febre como parte da resposta inflamatória brinca, apresenta sorriso fácil, acalma ao colo,
tem um papel no combate à infeção. Tem como tem apetite e fica com o comportamento quase
potenciais benefícios a inibição do crescimento de habitual na fase de apirexia.
algumas bactérias e vírus e o aumento da atividade São sinais de alarme: a presença de febre
imunitária que ocorre perante temperaturas mais no recém-nascido ou no lactente de idade infe-
elevadas. No entanto, tem como desvantagem o rior a três meses, má impressão clínica, recusa
desconforto associado resultante do aumento da alimentar quase total, prostração, exantema no
atividade metabólica, do consumo de oxigénio, da início do quadro febril, petéquias/púrpura, con-
produção de dióxido de carbono e do aumento vulsão/sinais de irritação meníngea, má perfusão
da atividade cardiovascular e respiratória. periférica mantida/instabilidade hemodinâmica,
gemido, sinais de dificuldade respiratória, vómi-
16.2.3 Causas de febre tos incoercíveis, febre muito elevada/difícil de
controlar, pseudoparalisia de um membro/dor
Na maioria dos casos, a febre resulta de uma articular/óssea, apreensão excessiva dos pais e
doença infeciosa benigna autolimitada de etiolo- febre prolongada.
gia viral ou bacteriana (rinofaringite, amigdalite,
otite média aguda, bronquiolite, gastroenterite). Após a história clínica e o exame objetivo
Menos frequentemente, a febre pode estar asso- minucioso, deve ser possível identificar a causa de
ciada a doenças mais graves (pneumonia, pielo- febre (e tratar de acordo com esta) ou distinguir
nefrite aguda, meningite, sépsis). Habitualmente, as crianças com um quadro febril não preocupan-
nestes casos existem sinais de alarme que des- te das que apresentam sinais de apreensão. Na
pertam a preocupação da família e do médico. criança com febre sem foco e com má impressão
Para o esclarecimento da causa da febre clínica é obrigatório proceder ao internamento
é fundamental a elaboração de uma história para vigilância. Deve obter-se um acesso venoso
CAPÍTULO 16. FEBRE 277

e efetuar investigação etiológica ponderada caso xarope (40 mg/mL), supositórios (125, 250, 325 e
a caso (sumária de urina/urocultura, hemograma, 500 mg) e comprimidos (500 mg e 1 g). Apesar
proteína C reativa, hemocultura, radiografia do de ser um fármaco seguro, pode apresentar to-
tórax, estudo do líquido cefalorraquidiano). De xicidade gástrica, cutânea e hepática (grave, se
acordo com os resultados, a conduta terapêutica associada a doses elevadas). O ibuprofeno é um
adequada deve ser colocada em prática. anti-inflamatório não esteroide, eficaz e seguro
na dose de 5 a 10 mg/kg/dose (máximo 600mg)
16.2.4 Terapêutica com intervalos de administração de 6 a 8 horas,
atua em 60 minutos, obtém o pico de efeito em 3
É fundamental transmitir aos pais que a febre horas e a duração é de 6 a 8 horas. Em Portugal
é uma resposta fisiológica, na maioria das vezes estão disponíveis diferentes formulações: suspen-
provocada por doenças benignas e autolimitadas. são oral (20 mg/mL), supositórios (75, 150 mg)
As medidas iniciais para reduzir a temperatura e comprimidos (200, 400, 600 mg). Apesar de
consistem em aumentar o aporte de líquidos e seguro, pode causar toxicidade gástrica, redução
promover o repouso. A utilização de banhos de da adesão plaquetar, trombocitopenia, disfunção
água tépida e compressas de água fria apenas renal e síndrome de Stevens-Johnson.
conseguem diminuir ligeiramente a temperatura A utilização de terapêutica alternada
periférica e aumentam o desconforto e “tremor”. com paracetamol e ibuprofeno é comum, mas
A terapêutica com antipirético deve ser pondera- não existe qualquer vantagem em termos de
da caso a caso de acordo com a situação clínica segurança ou eficácia.
(grau de desconforto, doença subjacente, entre
outros). Deve ser dada informação por escrito
relativamente aos antipiréticos a utilizar (doses 16.3 CONCLUSÃO
e intervalos) e alertar para a colocação da medi-
cação em local fora do alcance das crianças. Os A febre é um sintoma normal que ocorre em
principais antipiréticos utilizados em idade pediá- resposta à infeção. Não existe um valor exato de
trica são o paracetamol e o ibuprofeno. Ambos temperatura corporal que possa ser definido como
inibem a enzima ciclo-oxigenase que converte o febre, dada a variabilidade intra e interpessoal. Na
ácido araquidónico em prostaglandina, impedindo maioria dos casos, resulta de uma doença infecio-
os efeitos desta em aumentar o “set-point” da sa benigna autolimitada de etiologia viral ou bac-
temperatura corporal. O paracetamol é um fár- teriana e menos frequentemente está associada a
maco seguro e eficaz na dose de 10 a 15mg/kg/ doenças mais graves. Para o seu esclarecimento é
dose (máximo 1 g) com intervalos de administra- fundamental uma história clinica detalhada e um
ção de 4 a 6 horas (máximo 5 vezes ao dia), atua exame objetivo minucioso com identificação de
em cerca de 30 minutos, com o pico do efeito sinais tranquilizadores e de alarme. A terapêutica
em duas horas e a duração de 4 a 6 horas. Em inicial da febre consiste em aumentar o aporte
Portugal estão disponíveis diferentes formulações: de líquidos e promover o repouso. A terapêutica
278 ALEXANDRA OLIVEIRA

com antipirético deve ser ponderada caso a caso pseudoparalisia de um membro/dor articular/
de acordo com a situação clínica e os principais óssea, apreensão excessiva dos pais e febre pro-
antipiréticos utilizados em idade pediátrica são longada.
o paracetamol e o ibuprofeno. Na criança com febre sem foco e com má
impressão clínica é obrigatório proceder ao inter-
namento para vigilância, obter um acesso venoso
16.4 FACTOS A RETER e efetuar investigação etiológica ponderada caso
a caso.
A febre é a elevação anormal da temperatura A terapêutica da febre consiste em aumen-
corporal (geralmente um grau Celsius acima da tar o aporte de líquidos, promover o repouso e
temperatura habitual do indivíduo) e é parte de utilização de antipiréticos (caso a caso).
uma resposta biológica específica. A terapêutica alternada com paracetamol
A medição axilar é fiável desde que rea- e ibuprofeno não tem qualquer vantagem em
lizada em duas ocasiões diferentes com inter- termos de segurança ou eficácia.
valo de 60 minutos e com colocação correta
do termómetro. Leitura complementar
Clinicamente, traduz-se por “tremor” gene- Ward MA. Fever in infants and children: Pathophysiology and
ralizado, sensação de frio, “arrepios”, procura de management. UpToDate. 2016. Disponi ́vel em: < http://
ambiente mais quente e agasalhos, acrocianose www.uptodate.com/online>. Acesso em: 01/08/2016.
e pele marmoreada, aumento da frequência car- Sullivan JE, Farrar HC. Fever and Antipyretic Use in Children.
díaca e respiratória. Pediatrics 2011, 127(3): 580-87.
Habitualmente, decorre de uma doença in-
feciosa benigna autolimitada de etiologia viral
ou bacteriana e menos frequentemente está as-
sociada a doenças mais graves.
É fundamental uma história clinica detalhada
e um exame objetivo minucioso.
Sinais de alarme: a presença de febre no
recém-nascido ou no lactente de idade inferior a
três meses, má impressão clínica, recusa alimentar
quase total, prostração, exantema no início do
quadro febril, petéquias/púrpura, convulsão/sinais
de irritação meníngea, má perfusão periférica
mantida/instabilidade hemodinâmica, gemido,
sinais de dificuldade respiratória, vómitos incoer-
cíveis, febre muito elevada/difícil de controlar,
Capítulo 17.
Exantemas

17
Alexandra Oliveira
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_17
CAPÍTULO 17. EXANTEMAS 281

17.1 CONTEXTO 17.2 DESCRIÇÃO DO TEMA

O exantema aparece de forma súbita e afeta 17.2.1 Exantemas clássicos


várias áreas da pele simultaneamente. É um dos
principais motivos de observação no serviço de Sarampo (primeira doença)
urgência. O sarampo é uma infeção viral muito con-
Em idade pediátrica está frequentemente tagiosa. Habitualmente, a doença é benigna,
associado a infeções, podendo ser despoletados mas em alguns casos pode ser grave ou mesmo
diretamente pelos vírus (mais frequentemente) e mortal. O vírus do sarampo é um vírus de RNA
bactérias (infeciosos) ou serem o resultado da res- pertencente à família dos Paramyxoviridae, cujo
posta imune a estes (indiretos ou para-infeciosos). único hospedeiro é o homem.
Vários tipos de lesões cutâneas consti- Apesar das recomendações de vacinação
tuem os exantemas: da Organização Mundial de Saúde, nos últimos
anos têm ocorrido vários surtos de sarampo na
• mácula – simples alteração da Europa. Estes têm-se verificado em populações
cor da pele para vermelho, sem em que a cobertura vacinal é insuficiente, resul-
procidência e bem delimitada; tando na acumulação de indivíduos suscetíveis
• pápula – lesão circunscrita, à infeção. A doença continua a ser endémica
saliente, com diâmetro inferior a em vários países asiáticos e africanos, nomeada-
meio centímetro e com origem mente em países que possuem relações estreitas
na epiderme ou derme; com Portugal.
• nódulo – lesão semelhante à A transmissão do vírus é interpessoal e por
pápula, mas com diâmetro superior via aérea. O período de incubação inicia-se após
a meio centímetro e localizada o contacto do vírus com a mucosa respiratória
quer na epiderme, quer na derme ou conjuntival. O vírus replica-se localmente,
ou no tecido celular subcutâneo; dissemina-se até aos tecidos linfáticos regionais
• vesícula – lesão elevada de e posteriormente por via hematogénea para os
conteúdo líquido, resultante da restantes locais do sistema reticuloendotelial (pri-
acumulação de serosidade e meira virémia). O período de incubação é de cerca
menor que um centímetro; de 13 dias, podendo variar entre seis a 19 dias.
• pústula – vesícula que contém pus; Durante este período, os indivíduos infetados são
• púrpura - lesões eritemato-violáceas. habitualmente assintomáticos.
• crosta – resulta da secagem do A doença é contagiosa nos cinco dias an-
conteúdo líquido da vesícula. tes do início do exantema e prolonga-se até aos
quatro dias posteriores.
A existência de erupção nas mucosas O período prodrómico é definido pelo apare-
designa-se de enantema. cimento dos sintomas, coincidente com a segunda
282 ALEXANDRA OLIVEIRA

virémia. Carateriza-se por febre, mal-estar, anore-


xia, conjuntivite (com fotofobia e lacrimejo), rinor-
reia, odinofagia e tosse seca. Dura habitualmente
dois a três dias, mas pode persistir até oito dias.
Existe um agravamento dos sintomas previamente
ao aparecimento do exantema. Antes do início
deste, podem surgir as manchas de Koplik (pon-
teado branco nacarado sobre fundo eritematoso
na mucosa jugal) que são patognómicas, mas
transitórias, mantendo-se entre 12 a 72 horas.
O exantema do sarampo é maculopapu-
lar com início na região retroauricular e na Figura 1. Exantema macular em criança com sarampo.
Fotografia autor.
linha de inserção do cabelo, caracteriza-se
por uma extensão cefalocaudal e centrifuga
para o resto do corpo (figura 1). As palmas e biológico; deteção, no soro ou na saliva, de an-
plantas estão raramente envolvidas. Acompanha- ticorpos específicos contra o vírus característicos
se de febre elevada, linfadenopatias generalizadas da resposta à infeção aguda e/ou deteção do
e sintomas respiratórias exuberantes. A melhoria antigénio do vírus por imunofluorescência direta
clinica ocorre em cerca de 48 horas após o início num produto biológico, utilizando anticorpos mo-
do exantema, que desaparece pós quatro a sete noclonais específicos. A ligação epidemiológica
dias, por vezes com descamação. (link) a um caso confirmado também estabelece
As complicações surgem em cerca de um o diagnóstico (critério epidemiológico).
terço dos casos. A diarreia é a comorbilidade mais Não existe nenhuma terapêutica específica
frequente. Outras complicações gastrointestinais para o sarampo, apenas tratamento sintomático/
são a gengivoestomatite, a gastroenterite, a he- suporte (antipiréticos, fluidoterapia).
patite, a linfadenite mesentérica e a apendicite. A principal forma de prevenção do sarampo
Também podem associar-se problemas respira- é através da vacinação. Atualmente o Programa
tórios, sendo a pneumonia a principal causa de Nacional de Vacinação preconiza a primeira dose
morte nos casos de sarampo. A otite média aguda de vacina contra o sarampo aos 12 meses e a
é também uma complicação relativamente fre- segunda aos cinco/seis anos. Existem também
quente. As doenças neurológicas que se associam indicações específicas da Direção‑Geral-Saúde
ao sarampo incluem encefalite, encefalomielite em caso de um surto.
aguda disseminada e panencefalite esclerosante
subaguda. Escarlatina (segunda doença)
O diagnóstico do sarampo é efetuado através A escarlatina é mais frequente em crianças
de critérios laboratoriais: isolamento do vírus ou com idade superior a seis anos e rara em crianças
deteção do ácido nucleico do vírus num produto com menos de três. Implica que tenha ocorrido um
CAPÍTULO 17. EXANTEMAS 283

Figura 2. Escarlatina - exantema micro-maculopapular, Figura 3. Escarlatina - exantema micro-maculopapular,


áspero, generalizado, tipo queimadura de sol. áspero, mais evidente nas superfícies de flexão.
Fotografia de Manuel Salgado. Fotografia de Guiomar Oliveira.

contacto prévio com o Streptococcus pyogenes e a deteção rápida de antigénio do Streptococcus


resulta de uma reação tardia à toxina eritrogénica. pyogenes.
O período de incubação é de três a cinco dias. A terapêutica da escarlatina é semelhante à
A doença inicia-se de forma súbita com fe- da amigdalite estreptocócica: amoxicilina na dose
bre, odinofagia, cefaleia e vómitos. Após um a de 50 mg/Kg/dia (máximo 1grama/dia), adminis-
dois dias, surge o exantema maculopapular, trada de 12 em 12 horas por via oral, durante dez
eritematoso generalizado, de consistência dias ou a penicilina G benzatínica, administrada
áspera, que branqueia com pressão digital por via intramuscular em dose única de 50.000
e que poupa a região perioral (Figura 2). O unidades (U) por Kg (ou 600.000 U, se peso <27
exantema é mais evidente nas superfícies de fle- kg e 1.200.000 U, se peso ≥27 kg), nos casos com
xão (axilas, pregas dos cotovelos e região ingui- baixa adesão, intolerância à terapêutica oral ou
nal) (Figura 3). As pregas mais evidentes nessas quando não é expectável que a criança cumpra
localizações designam-se de linhas de Pastia. É a totalidade do tratamento por via oral.
também acompanhado pela língua “em framboe- Infeções cutâneas por Streptococcus
sa”. Após uma semana, o exantema desaparece pyogenes ou Staphylococcus aureus também
e pode surgir descamação da pele. podem estar na base de exantema escarla-
As complicações são raras, mas se a doença tiniforme.
não for corretamente tratada pode ocorrer febre
reumática e glomerulonefrite aguda. Rubéola (terceira doença)
O diagnóstico é clínico pela presença da Previamente à introdução da vacina, a ru-
tríade caraterística (febre, amigdalite/faringite, béola era frequente com o pico de incidência
exantema maculopapular áspero “tipo pele de ga- no inverno e início da primavera. O vírus da ru-
linha”). Em situação de dúvida, pode ser efetuada béola é um vírus de RNA da família Togaviridae.
284 ALEXANDRA OLIVEIRA

A transmissão é interpessoal e por via aérea. Eritema infecioso (quinta doença)


A replicação inicial do vírus da rubéola pós-natal O vírus responsável pelo eritema infecio-
ocorre na nasofaringe e tecidos linfáticos regio- so é o Parvovirus B19 (vírus de DNA da família
nais com posterior disseminação após cinco a Parvoviridae). A transmissão do vírus é interpes-
sete dias ao resto do corpo (virémia). O período soal e por via aérea. O período de incubação é de
de incubação é de 12 a 23 dias (média 14 a 18). uma a duas semanas. A virémia ocorre após cinco
A doença é contagiosa uma a duas semanas a dez dias depois do contacto e dura habitual-
antes de ser clinicamente visível e cerca de uma mente cinco dias (fase de maior contagiosidade).
semana após o início dos sintomas. Os sintomas prodrómicos são febre, rinor-
Habitualmente, nas crianças a doença é reia, cefaleia, náusea e diarreia. Passados dois
ligeira ou mesmo assintomática. O exantema a cinco dias, surge o exantema maculopapular
é maculopapular de início súbito e por vezes, de cor vermelha acentuado na face (sobretudo
precedido ou acompanhado de febre baixa e na região malar, poupando a região peribucal).
linfadenopatias (tipicamente cervicais posterio- Estas características dão-lhe nome de doença
res, auriculares posteriores e suboccipitais). A da “bofetada”. Posteriormente, há extensão do
progressão do exantema é cefalocaudal num exantema sob a forma reticular (tipo mapa) à
período de 24 horas e desaparece em um a porção proximal dos membros e à restante su-
três dias. As complicações são raras, sendo perfície corporal. O exantema facial regride em
mais frequentes nos adolescentes (encefalite, um a quatro dias, mas nas restantes localizações
panencefalite). permanece visível entre cinco a 20 dias, com
O diagnóstico é efetuado através da dete- exacerbação após o banho e exposição solar. Na
ção no soro de anticorpos específicos contra o maioria dos casos após o início do exantema, a
vírus característicos da resposta à infeção aguda. criança encontra-se apirética e sem outros sinais
Quando disponível também pode ser efetuado de doença.
através do isolamento do vírus ou deteção do O exantema típico da doença permite esta-
ácido nucleico do vírus num produto biológico. belecer o diagnóstico clinico e não há necessidade
Não existe nenhuma terapêutica específica de terapêutica.
para a rubéola, apenas tratamento sintomático/
suporte. Exantema Súbito (sexta doença)
A principal forma de prevenção da rubéola O exantema súbito tem o seu pico de pre-
é através da vacinação. Atualmente o Programa valência entre os sete e os 13 meses. O principal
Nacional de Vacinação preconiza a primeira dose vírus responsável por esta doença é o Herpes
de vacina contra a rubéola aos 12 meses e a se- vírus humano tipo 6 (HHV-6), mas o tipo 7 (HHV-
gunda aos cinco/seis anos. 7) pode também ser o agente em causa (ambos
A rubéola congénita é uma doença mui- pertencem à família Herpesviridae). A transmissão
to grave que deve ser evitada com a vacina- do HHV-6 é interpessoal e período de incubação
ção em massa. é em média de nove dias (cinco a 15).
CAPÍTULO 17. EXANTEMAS 285

não estiverem todas em fase de crosta (cerca


de seis dias após o início do exantema).
O período prodrómico é caraterizado por
febre, astenia, anorexia e faringite com um a
dois dias de duração. Segue-se o aparecimento
do exantema com início na linha de inserção do
cabelo, com progressão cefalocaudal, com envol-
vimento de toda a superfície corporal, incluindo
o couro cabeludo e mucosas. Caracteriza-se por
crops sucessivas de máculas, que evoluem para
pápulas, seguidamente para vesículas e pos-
Figura 4. Exantema maculopapular eritematoso sobretudo teriormente pústulas e crostas (figura 5 e 6).
no tronco e abdómen em lactente com exantema súbito.
A criança/adolescente pode apresentar lesões
Fotografia de Guiomar Oliveira.
em diferentes fases de evolução e em diferen-
tes partes do corpo. É muito pruriginoso. Após
Classicamente, existe febre elevada que dura uma a duas semanas, as crostas caem e no seu
três a quatro dias; de seguida, a febre desaparece local persiste temporariamente uma área de hi-
e surge o exantema maculopapular eritematoso popigmentação.
sobretudo no tronco e abdómen (figura 4). Este A complicação mais frequente é a infeção
estende-se de forma centrífuga, atingindo pouco bacteriana secundária, cujos principais agentes
a face e os membros inferiores e regride em 48 etiológicos são o Streptococcus pyogenes e o
a 72 horas. A história clínica e o exame objetivo Staphylococcus aureus. As complicações incluem
permitem efetuar o diagnóstico. O tratamento é impetigo, abcesso, fasceíte necrosante, piomio-
apenas sintomático. site, otite média aguda, pneumonia e mais rara-
mente escarlatina, síndrome do choque tóxico e
17.2.2 Outros exantemas síndrome da pele escaldada. Complicações neuro-
lógicas podem também ocorrer, nomeadamente
Varicela meningite, cerebelite e encefalite.
O vírus Herpes Varicela Zoster (VZV) é res- O diagnóstico é efetuado através da história
ponsável pela varicela (primoinfeção) e pelo clínica e do exame objetivo associado ao contexto
herpes zoster (reativação do V Z V latente). epidemiológico (muitas vezes presente).
É um vírus de DNA, cuja transmissão ocorre A terapêutica é sintomática nas crianças sau-
por contacto direto com as lesões cutâneas e dáveis com medidas de higiene (cortar as unhas
por via aérea. O período de incubação é em para evitar escoriação e sobreinfeção), paraceta-
média de 14 a 16 dias (intervalo de dez a 21). mol na febre e anti‑histamínico para o prurido.
O contágio é possível nos dois dias antes do iní- Existe indicação para iniciar a administração de
cio dos sintomas e enquanto as lesões cutâneas aciclovir nas primeiras 72 horas de doença em
286 ALEXANDRA OLIVEIRA

Figura 5. Lesões vesiculares em criança com varicela. Figura 6. Lesões em fase de crosta em criança com varicela.
Fotografia do autor. Fotografia do autor.

crianças com risco de varicela de maior gravidade O exantema pode ser macular, maculopapular
(nos imunodeprimidos, nas complicações como ou vesicular (vesiculas circundadas por um halo
pneumonia, encefalite, meningite, na varicela neo- eritematoso) e podendo ocorrer simultaneamente.
natal, nos adolescentes com mais de 12 anos, no Envolve as mãos (dorso dos dedos, área interdigi-
segundo caso na mesma família, em menores tal, palmas), pés (dorso dos dedos, bordo lateral
de seis meses, nas crianças sob terapêutica com dos pés, plantas e tornozelos), nádegas, coxas e
corticoides orais ou inalados ou com salicilatos). A braços. O enantema apresenta erosões aftosas
dose a utilizar é de 20 mg/kg por via oral (máximo dolorosas (sobretudo na língua e mucosa bucal)
de 800 mg/dose), administrado 4 vezes por dia, que podem estar associados a recusa alimentar.
durante cinco dias. O quadro desaparece em cinco a dez dias.
A complicação mais frequente é a diminui-
Doença mãos-pés-boca ção da ingesta com necessidade de hidratação
A doença mãos-pés-boca é frequente nos endovenosa. Outras complicações são raras, no-
meses de verão e outono. O principal agente meadamente pneumonia, miocardite, meningite
etiológico é o vírus Coxsackie A16 (vírus de RNA e encefalite.
pertencente à família Picornaviridae). A trans- O diagnóstico é clínico através da história
missão é feita através de gotículas respiratórias clínica e exame objetivo. A terapêutica é sinto-
ou contacto direto com outro material infetado. mática, nomeadamente analgesia.
O período de incubação é de três a seis dias.
Pode existir pródromo de febre, rinorreia, Prurigo estrófulo
dor abdominal e diarreia com um a dois de du- O prurigo estrófulo é uma reação de hiper-
ração. Tipicamente, a doença apresenta-se com sensibilidade à saliva de artrópodes (mais comu-
exantema e enantema (isolados ou associados). mente ácaros, pulgas e mosquitos), embora muitas
CAPÍTULO 17. EXANTEMAS 287

poderá estar indicado efetuar antibioterapia tó-


pica ou sistémica (flucloxacilina) de acordo com
a gravidade da infeção.

Doença de Kawasaki
A Doença de Kawasaki (ver lição doenças
cardíacas mais comuns) é uma das vasculites mais
frequentes em idade pediátrica. É mais frequente
no sexo masculino e em crianças com idade in-
ferior a cinco anos (é rara antes dos seis meses).
Trata-se de uma doença inflamatória sistémica que
Figura 7. Criança com lesões de prurigo com sobrinfeção nos afeta sobretudo as artérias de calibre médio, em
membros inferiores. Fotografia de Guiomar Oliveira.
particular as artérias coronárias. A sua etiologia
é desconhecida. O diagnóstico é baseado na evi-
vezes não haja noção das picadas desencadeantes. dência de inflamação sistémica (febre) associada
É mais frequente em crianças dos dois aos dez a sinais de inflamação mucocutânea, que podem
anos e manifesta‑se sobretudo nos meses quen- não surgir simultaneamente e não apresentam
tes. Tipicamente, as lesões (pápulas com ou sem nenhuma ordem de aparecimento em particu-
vesícula associada ou vesículas ou bolhas sem lar. São critérios de diagnóstico a presença de
pápula) ocorrem nas áreas expostas de forma febre elevada inexplicável com duração igual ou
assimétrica e agrupada (membros, cintura, mais superior a cinco dias associada a quatro ou mais
raro na face) (figura 7). São muito pruriginosas, dos seguintes achados: conjuntivite bilateral não
levando frequentemente a escoriação. As lesões exsudativa, mucosite oral (queilite, hiperemia da
surgem minutos a horas após a picada e desapa- orofaringe, língua em “framboesa”), exantema
recem em algumas semanas com lesão residual polimorfo (habitualmente nos primeiros dias de
hipo ou hiperpigmentada. A reativação de lesões doença como eritema perineal com descamação,
prévias pode ocorrer após uma nova picada, ex- seguido de exantema macular, morbiliforme no
plicando as lesões múltiplas após picada única. tronco e nas extremidades), edema e/ou eritema
As infeções cutâneas (impetigo e/ou celulite) po- das mãos e pés (seguido de descamação com iní-
dem complicar o prurigo. O diagnóstico é clínico, cio na região periungueal), linfadenopatia cervical
baseado na história clínica e no aspeto típico das (habitualmente unilateral e com diâmetro superior
lesões. O tratamento consiste na prevenção das a 1,5cm) (figura 8). Apesar de não ser critério de
picadas (repelentes, roupa protetora, redes, eli- diagnóstico, o eritema do local de inoculação da
minação dos artrópodes dos animais infestados vacina do BCG é frequente nos países onde esta
e do ambiente) e no controlo do prurido com vacina integra o Programa Nacional de Vacinação,
corticoide tópico e/ou anti-histamínico oral. Nos como é o caso de Portugal. Também os achados
casos complicados por sobreinfeção bacteriana, cardíacos não fazem parte dos critérios exigidos
288 ALEXANDRA OLIVEIRA

é dependente do grau de afeção das artérias co-


ronárias.

Urticária
A urticária é um motivo frequente de ob-
servação médica. É caracterizada pela existência
de elementos cutâneos com relevo, eritematosos,
circunscritos e associados a prurido. Podem ocor-
rer em qualquer área corporal num espaço de
minutos, aumentarem de dimensões, fundirem-
-se e desaparecerem espontaneamente ou após
Figura 8. Criança com doença de Kawasaki – visível a queilite tratamento.
e a adenopatia cervical. Fotografia de Guiomar Oliveira.
O angioedema tem uma localização mais
profunda ao nível da derme e do tecido celu-
para o diagnóstico, mas a presença de dilatação lar subcutâneo. É menos pruriginoso, pode ser
das artérias coronárias é muito sugestiva desta acompanhado de uma sensação de pressão e a
doença, quando associada à clínica atrás referi- pele pode apresentar-se eritematosa e quente.
da. Quando a criança não apresenta o quadro As localizações mais frequentes do angioede-
completo, o diagnóstico de doença de Kawasaki ma (edema localizado) são as regiões periorais
atípica ou incompleta deve ser considerado. - lábios/periorbitárias, os pavilhões auriculares,
Laboratorialmente, a elevação da proteína os genitais e as extremidades (mãos e pés).
C reativa e da velocidade de sedimentação são É diferente do edema generalizado por não afe-
comuns, tal como a existência de trombocitose. tar as zonas de declive e poder ser assimétrico.
A terapêutica inicial recomendada inclui ad- A urticária e o angioedema podem apresentar-se
ministração de imunoglobulina endovenosa (2g/ simultaneamente ou isoladamente.
kg a perfundir em 10 a 12 horas) e aspirina (30 A urticária pode ser classificada em aguda
a 50mg/kg/dia, 4 vezes ao dia) em regime de ou crónica, de acordo com a duração ser inferior
internamento. A eficácia da imunoglobulina é ou superior a seis semanas, respetivamente.
superior se efetuada nos primeiros sete a dez dias Existem múltiplos agentes que causam a
de doença. Após resolução da febre e redução urticária, contudo, na maioria dos casos são de
dos parâmetros inflamatórios, a dose de aspirina difícil identificação. A urticária aguda pode ser
reduz para 3 a 5mg/kg/dia (efeito antiplaquetar). classificada em: i) IgE mediada; ii) associada a
As complicações desta doença resultam do agentes infeciosos; iii) mediada por complemen-
envolvimento cardiovascular e incluem aneuris- to; iv) associada a alterações do metabolismo do
mas das artérias coronárias, insuficiência cardía- ácido araquidónico; e v) a agentes desgranulantes
ca, enfarte agudo do miocárdio e arritmias. A dos mastócitos. Em idade pediátrica, as causas
mortalidade é rara e a morbilidade a longo prazo mais frequentes são os agentes infeciosos (vírus
CAPÍTULO 17. EXANTEMAS 289

e bactérias). A urticária IgE mediada associada a


alimentos é mais frequente na infância do que na
vida adulta e a confirmação diagnóstica é pos-
sível através de uma história clinica minuciosa
associada a estudo alergológico.
O tratamento da urticária passa pela evic-
ção do agente causal (caso seja possível) e pela
administração de anti-histamínico.

Exantema purpúrico
O exantema purpúrico é constituído por
lesões cutâneas eritemato-violáceas que não Figura 9. Criança com meningococcémia nas primeiras
horas de febre em que apenas é visível escasso exantema
desaparecem à digitopressão. Quando são
maculopapular. Fotografia de Guiomar Oliveira.
punctiformes, com diâmetro inferior a dois mi-
límetros denominam-se petéquias (exantema
petéquial) se ultrapassam os 5 a 10 mm são que posteriormente evolui para petequial/
equimoses. Este exantema pode ter como causa purpúrico (figura 10). As petéquias são mais
disrupção da integridade vascular (traumatismos, frequentes no tronco e nos membros infe-
infeções, vasculites, doenças do colagénio) ou riores e não desaparecem à digitopressão.
alterações da hemóstase (trombocitopenia, alte- Estas petéquias podem coalescer e originar lesões
ração da função plaquetar, deficiência de fatores purpúricas e equimóticas. Para além do exantema,
da coagulação ou alteração das suas funções). ao exame objetivo a criança apresenta alteração
Perante a sua presença é fundamental iden- do estado geral e numa fase mais avançada insufi-
tificar as crianças com mau estado geral, nas ciência circulatória com taquicardia e hipotensão.
quais o exantema pode ser manifestação de Deve-se pesquisar sinais de irritação meníngea,
doença grave, nomeadamente meningococé- como rigidez da nuca, sinal de Brudzinski e de
mia (infeção sistémica causada pela Neisseria Kernig. É fundamental atuar rapidamente perante
meningitidis). Clinicamente, a meningococémia a suspeita desta doença, com administração de
carateriza-se pelo início súbito de sintomas inespe- bólus de cristaloide isotónico (soro fisiológico)
cíficos como febre, odinofagia, náuseas, vómitos, 20mL/kg para reversão do choque e antibiotera-
cefaleias e mialgias. Existe uma rápida progres- pia (ceftriaxone ou cefotaxime) imediata. Poderá
são para choque, falência multiorgânica e ser necessário também a utilização de fármacos
morte se não for implementado tratamento vasoativos de acordo com a resposta inicial. Esta
urgente dirigido. terapêutica não deverá ser atrasada por dificulda-
O exantema associado que pode sur- de na colheita de produtos biológicos para diag-
gir nas primeiras horas da febre, numa fase nóstico (nomeadamente hemocultura), dada a sua
inicial pode ser maculopapular (figura 9), gravidade da doença e o benefício da terapêutica
290 ALEXANDRA OLIVEIRA

envolvimento renal. Estas manifestações clínicas


podem ocorrer ao longo de vários dias a semanas
e varia a ordem de aparecimento. Habitualmente,
os sintomas iniciais são púrpura (sempre presente)
e artralgia (segunda manifestação mais frequente).
A púrpura palpável acompanhada de peté-
quias e equimoses é simetricamente distribuída e
localizada nas áreas de maior gravidade/pressão,
como os membros inferiores (figura 11), nádegas
e escroto. A artrite é habitualmente transitória
ou migratória, oligoarticular (uma a quatro arti-
Figura 10. Criança com meningococcémia com evolução culações), simétrica, não deformativa e afetando
rápida de exantema maculopetéquial (imagem da esquerda),
sobretudo as articulações dos membros inferiores
para purpúrico (imagem da direita).
Fotografia de Guiomar Oliveira. (tornozelos e joelhos). Pode ser acompanhada
de edema periarticular com dor importante e
precoce. A melhor prevenção da doença é a va- limitação funcional. Os sintomas gastrointesti-
cinação (ver lição de vacinas). Outras infeções nais são variáveis, desde náuseas, vómitos, dor
bacterianas, também podem estar associadas a abdominal, íleos paralítico transitório, hemorragia
este exantema petequial, nomeadamente infeção gastrointestinal, isquémia, invaginação (compli-
pelo Streptococcus pneumoniae e Streptococcus cação gastrointestinal mais comum) e perfuração
pyogenes de entre outros. intestinal. O envolvimento renal (glomerulone-
Pode também estar associado a infeções frite) pode manifestar-se através de hematúria
virais benignas, nomeadamente aos enterovirus, micro ou macroscópica, proteinúria (que pode
citomegalovirus, vírus Epstein-Barr, adenovírus, ser de nível nefrótico) e/ou hipertensão arterial.
vírus sincicial respiratório, influenza, rinovírus e Habitualmente, as manifestações renais ocorrem
parvovirus B19. Nestes casos, as crianças habitual- nos primeiros dois meses do quadro e estabele-
mente apresentam sintomas respiratórios altos cem o prognóstico a longo prazo. Podem ainda
e/ou gastrointestinais e têm bom estado geral. surgir manifestações neurológicas, como cefaleia,
alteração do comportamento e muito raramente
Púrpura de Henoch-Schönlein convulsões, hemorragia intracraniana, neuropatia
A Púrpura de Henoch-Schölein é a vasculite periférica e nevrite ótica.
sistémica (IgA mediada) mais frequente em idade Tratando-se de uma doença autolimitada,
pediátrica (entre os três e os 10 anos). É uma na maioria dos casos a terapêutica é de suporte
doença autolimitada caraterizada por púrpura (repouso e analgesia). Existe indicação para admi-
palpável (sem trombocitopenia ou coagulopatia) nistração de corticoide na dor abdominal impor-
associada a pelo menos um dos seguintes sinto- tante, na hemorragia digestiva, no envolvimento
mas/sinais: artrite/artralgia, dor abdominal e/ou testicular e no envolvimento renal (prednisolona
CAPÍTULO 17. EXANTEMAS 291

o solo (em locais onde podem existir carraças). A


doença ocorre sobretudo nos meses quentes da
primavera, verão e início do outono, nas zonas
rurais. A transmissão ocorre através da picada da
carraça infetada e são necessárias entre seis a 20
horas de parasitação pelo artrópode.
Na criança, a doença é habitualmente benig-
na e autolimitada com um período de incubação
assintomático entre seis a 12 dias. Após este,
ocorre início súbito de febre elevada que pode
ser acompanhada por mialgias, artralgias, dor
Figura 11. Lesões purpúricas em criança com Púrpura de abdominal, náuseas, diarreia, fotofobia e cefaleias
Henoch-Schölein. Fotografia do Autor.
intensas (parece uma gripe no verão). Após três a
cinco dias de febre, surge um exantema carac-
terístico maculopapular ou maculopapulono-
na dose de 1 a 2/mg/kg/dia durante cinco a sete dular, não pruriginoso e ascendente. Inicia-se
dias, com redução progressiva). nos membros inferiores e progride rapidamente
Habitualmente, existe resolução espontânea para o tronco e membros superiores em 24 a 36
em duas a quatro semanas, mas cerca de um horas, atingindo caracteristicamente as regiões
terço dos doentes pode apresentar recaída nos palmares e plantares, e por vezes a face e o couro
quatro meses seguintes. É necessária a monitori- cabeludo (figura 12). Apresenta uma coloração
zação das crianças/adolescentes com púrpura de rósea no início, mas pode tornar-se purpúrico ou
Henoch-Schölein em consulta com realização de petequial. Pode persistir durante 15 a 20 dias e
tira-teste urinária (rastreio da presença de protei- pode deixar uma pigmentação residual. A lesão
núria e hematúria) e vigilância da tensão arterial de inoculação (“tache noire” ou escara) produ-
nos primeiros três meses da doença. zida pela picada da carraça é indolor, raramente
pruriginosa e pode ser múltipla. Localiza-se nas
Febre escaro-nodular zonas cobertas e nas flexuras como axilas, re-
A febre escaro-nodular é provocada pela gião inguinal, espaços interdigitais, região púbica,
Rickettsia conorii, uma bactéria gram negativa, espaço retroauricular, espaço poplíteo ou couro
intracelular obrigatória. O principal vetor é a car- cabeludo (localização predominante na criança), o
raça e os reservatórios mais comuns são os cães, que dificulta a sua localização. Inicia‑se como uma
as raposas e pequenos roedores. O ser humano pequena pústula, que em alguns dias se converte
é um hospedeiro acidental. As crianças são um numa mancha negra caracterizada por uma lesão
grupo suscetível para a doença porque mantêm ulcerosa, coberta por uma escara negra e rodeada
uma relação próxima com os animais domésticos por um halo eritematoso. É acompanhada fre-
e estão mais frequentemente em contacto com quentemente por uma adenopatia satélite (figura
292 ALEXANDRA OLIVEIRA

B
Figura 13- Lesão de inoculação e adenopatia satélite na
região do pescoço em criança com febre escaro nodular.
Fotografia de Guiomar Oliveira.

13). A escara cicatriza lentamente e desaparece


em dez a 20 dias sem deixar cicatriz.
O diagnóstico é geralmente baseado na
clínica de febre, exantema característico e lesão
de inoculação associada a adenopatia satélite, à
época do ano, ao contacto com cães ou ativida-
des ao ar livre. A investigação laboratorial é útil
C
para confirmação do diagnóstico e para estudos
epidemiológicos. O método mais específico deteta
diretamente a Rickettsia conorii por técnica de
polimerase chain reaction (PCR) em amostra de
sangue. Outra técnica de confirmação de diag-
nóstico é a de imunofluorescência indireta para
pesquisa de anticorpos anti-rickettsia no soro dos
doentes.
O tratamento consiste na administração por
via oral de doxiciclina a 4 mg/kg no primeiro dia,
dividido em duas tomas, seguido de 2mg/kg/dia,
durante um mínimo de cinco dias, desde que
Figura 12. Lesões maculopapulonodulares nas pernas a criança esteja apirética há 48 horas quando
(A), plantas pés (B) e palmas das mãos (C) em criança com
terminar o tratamento. A azitromicina (10mg/
febre escaro nodular. Fotografia de Guiomar Oliveira.
kg) é a alternativa em crianças pequenas devida
CAPÍTULO 17. EXANTEMAS 293

à formulação pediátrica (suspensão oral) e uma ao exame objetivo que pode ser encontrada é
semivida longa, com a vantagem da administra- o edema palpebral bilateral, sem conjuntivite e
ção ser apenas de uma dose única diária durante sem proteinúria.
três dias. Laboratorialmente, o hemograma apresenta
linfocitose com presença de linfócitos atípicos
Mononucleose infeciosa no esfregaço de sangue periférico. Também é
O vírus Epstein-Barr é o principal agente comum existir elevação das transaminases na
responsável pela mononucleose infeciosa. O ser fase aguda. A confirmação diagnóstica pode ser
humano é o único reservatório conhecido deste feita por serologia com a presença de anticorpos
vírus e a transmissão ocorre através da saliva. específicos na fase aguda e tardia da doença ou
O período de incubação é de 30 a 50 dias. por identificação do vírus por PCR.
A doença é autolimitada e é mais frequente O tratamento da doença é de suporte (anal-
em adolescentes. Caracteriza-se por mal-estar, gésicos/antipiréticos). Em casos mais graves (hiper-
fadiga, odinofagia, cefaleias (habitualmente re- trofia amigdalina que condiciona a permeabilidade
trorbitárias), mialgias, náuseas e dor abdominal. da via aérea) pode estar indicado a administração
Pode apresentar-se com um início mais insidioso de corticoide (1 a 2mg/kg/dia de prednisolona du-
de uma a duas semanas ou de forma mais sú- rante três a sete dias, por via oral ou endovenosa).
bita. Os sintomas persistem habitualmente por
duas a três semanas, mas a fadiga pode ser mais 17.3 FACTOS A RETER
prolongada. Frequentemente, ao exame objeti-
vo encontra-se faringite, linfadenopatias gene- O exantema é um motivo frequente de ob-
ralizadas e hepatoesplenomegalia. A faringite é servação em idade pediátrica.
exsudativa, pode estar associada a petéquias e Tem múltiplas etiologias, sendo a mais fre-
ser acompanhada por hipertrofia marcada das quente a doença infeciosa viral autolimitada.
amígdalas dificultando a deglutição. A linfadeno- Uma história clínica detalhada e um exame
patia afeta os gânglios cervicais posteriores (mais físico minucioso permitem na maioria das vezes
comumente), mas também os gânglios cervicais estabelecer o diagnóstico diferencial.
anteriores, submandibulares, axilares e inguinais. Na maioria dos casos, a terapêutica é apenas
São gânglios móveis que podem ser dolorosos. A sintomática.
esplenomegalia é comum, com o baço palpável Atender particularmente aos quadros
cerca de dois a três centímetros abaixo do rebordo clínicos que denunciam doenças graves ou
costal e podendo ser doloroso. Associado a este com necessidade de intervenção específica.
quadro clínico, pode ocorrer exantema eritema-
toso maculopapular generalizado em três a 15% Leitura complementar
dos casos. A taxa de exantema aumenta, quando Fölster-Holst R, Kreth HW. Viral exanthems in childhood –
a criança/adolescente é medicado erroneamente infectious (direct) exanthems. Part 1: Classic exanthems.
com amoxicilina (cerca de 80%). Outra alteração J Dtsch Dermatol Ges. 2009;7(4):309-16.
294 ALEXANDRA OLIVEIRA

Fölster-Holst R, Kreth HW. Viral exanthems in childhood-


-infectious (direct) exanthems. Part 2: Other viral exan-
thems. J Dtsch Dermatol Ges. 2009;7(5):414-9.
Fölster-Holst R, Kreth HW. Viral exanthems in childhood.
Part 3: Parainfectious exanthems and those associated
with virus-drug interactions. J Dtsch Dermatol Ges.
2009;7(6):506-10.
Sociedade Portuguesa de Pediatria - Secção de Infeciologia.
Consensos de Infeciologia Pediátrica. Febre Escaro-
nodular – Protocolo. Acta Pediatr Port 2005;36(5):257-63.
Eleftheriou D, Levin M, Shingadia D, Tulloh R, Klein NJ, Brogan
PA. Management of Kawasaki disease. Arch Dis Child.
2014;99(1):74-83.
Capítulo 18.
Infeções das vias respiratórias superiores

18
Gustavo Januário
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_18
CAPÍTULO 18. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS SUPERIORES 297

18.1 CONTEXTO Um dos factos constatados é a prescrição de


ABs de largo espetro quando não está indica-
As infeções das vias respiratórias superiores do nenhum, ou quando em raras circunstâncias
(IVRS) definem-se como doenças infeciosas que podem ser justificadas alternativas de espetro
anatomicamente se restringem ao aparelho res- mais dirigido. Por outro lado, a sobreprescrição
piratório superior incluindo as fossas nasais, os de ABs está intrinsecamente ligada ao aumento
seios perinasais, o ouvido, a faringe e a laringe. As das resistências bacterianas e igualmente à sua
IVRS mais frequentes e por esse facto abordadas disseminação.
nesta lição, são a nasofaringite aguda (NFA), a Na Europa e em Portugal, 90% da prescri-
otite média aguda (OMA), a rinossinusite bac- ção de ABs surge no ambulatório. O European
teriana aguda (RSA), a amigdalite aguda (AA), Centre for Disease Prevention and Control
a laringotraqueíte aguda (LTA) e a epiglotite. (ECDC), através da rede de vigilância do con-
As IVRS são o motivo mais frequente de sumo de antimicrobianos, publicou dados de
prescrição de antimicrobianos (ABs). Nos Estados consumo de ABs na comunidade referentes a
Unidos da América, mais de uma em cada cinco 2010, reportados pelos 24 estados membros e
consultas no ambulatório resulta na prescrição pela Islândia e Noruega (figura 1). O consumo
de ABs, sendo que dez milhões de prescrições médio foi de 18.3 doses diárias definidas por
de ABs por ano são especificamente para IVRS. 1000 habitantes e por dia. Portugal encontra-se

Figura 1. Consumo Europeu de antimicrobianos em 2010. Adaptado de European Centre for Disease Prevention and Control.
Surveillance of antimicrobial consumption in Europe, 2010. Stockholm: ECDC, 2013.
298 GUSTAVO JANUÁRIO

no sétimo lugar entre os países mais prescritores parainfluenza, coronavírus, metapneumovírus


(acima da média europeia) e é especificamente e bocavírus.
nomeado no relatório como um dos países em Estima-se que a NFA seja responsável por
que é mais baixa a prescrição e consumo de cerca de 70% dos motivos de consulta nos ser-
penicilinas de espectro estreito e em que é mais viços de urgência, com picos epidémicos típicos
elevada a prescrição de quinolonas em relação nos meses de inverno, sendo que a frequên-
ao consumo total de ABs. cia dos episódios varia com a idade e grau de
exposição a infantários (uma criança “saudá-
A prescrição racional de ABs é hoje funda- vel” entre os seis meses e os seis anos, sofrerá
mental e é uma prioridade de saúde pública e entre um a dez episódios de NFA por ano).
da segurança dos doentes, incluindo não apenas A taxa de sobre infecção bacteriana da NFA
a diminuição da sobre utilização mas também é inferior a 2%. A NFA não complicada tem
a prescrição dos agentes adequados. O desen- um perfil evolutivo tipíco que se caracteriza
volvimento de novos ABs para o tratamento de pela existência de sintomas respiratórios (ri-
infeções resistentes está praticamente inativo. norreia e congestão/obstrução nasal, tosse,
A decisão clínica de prescrever ou não ABs a ou ambos). A rinorreia inicia-se clara e aquo-
uma criança com sintomas de infeção respira- sa alterando-se frequentemente no curso da
tória alta é prática diária para os médicos e é doença, tornando-se mais espessa e mucoide,
um desafio, na medida em que nalguns casos é podendo tornar-se purulenta por vários dias.
difícil distinguir a etiologia viral da bacteriana. De seguida a situação reverte e a rinorreia torna-
O enfâse deve assim estar no uso de critérios -se novamente mucoide, clareia e regride. Estas
clínicos validados quando se faz o diagnóstico alterações acontecem independentemente da
de OMA, RSA, AA bacteriana, tal qual estabe- utilização de ABs. A febre, quando presente na
lecido por protocolos e normas de orientação. NFA, tende a ocorrer precocemente na doença,
desaparece nas primeiras 48 horas de doença e
os sintomas respiratórios tornam-se então pre-
18.2 DESCRIÇÃO DO TEMA dominantes. A duração da doença é tipicamente
de cinco a sete dias e os sintomas respiratórios
18.2.1 Nasofaringite Aguda atingem por regra o seu pico de gravidade entre
o terceiro e o sexto dias e depois melhoram,
A NFA sinónimo de vulgar constipação, é embora posssam persistir para além de dez dias.
uma infeção viral, autolimitada, das VRS que O diagnóstico de NFA é clínico não sendo
se caracteriza, em grau variável, por congestão necessário recorrer a exames complementares.
nasal, rinorreia, odinofagia, tosse e febre. São O aspirado da nasofaringe (NF) para testes rápi-
vários os vírus respiratórios capazes de a causar, dos de deteção de antigénios virais, cultura, ou
nomeadamente rinovírus, vírus sincicial respira- técnicas de biologia molecular como a polimerase
tório (VSR), adenovírus, vírus influenza e vírus chain reaction (PCR) para identificação de vírus ou
CAPÍTULO 18. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS SUPERIORES 299

bactérias, são utilizados apenas em contexto de poderá manifestar-se por irritabilidade


investigação. Por outro lado, o valor diagnóstico no lactente) ou eritema intenso da mem-
da identificação de bactérias nas secreções da NF brana timpânica.
é limitado dada a alta taxa de colonização bacte-
riana em indivíduos assintomáticos. Perante um A irritabilidade, recusa alimentar e a febre
diagnóstico de NFA, não há indicação para não são sinais específicos de OMA e podem sur-
tratamento com ABs. gir no contexto de IVRS, sendo fundamental o
diagnóstico rigoroso de OMA para evitar o uso
inadequado de ABs e as suas potenciais conse-
18.2.2 Otite média aguda quências. Alguns fatores de risco identificados
para OMA são a idade (pico de diagnóstico entre
A OMA é uma das principais causas de infe- os seis e os 18 meses), a história familiar de OMA,
ção bacteriana na criança. Estima-se que nos três sexo masculino, frequência de infantário, ausência
primeiros anos de vida 80 a 90% apresente pelo de aleitamento materno, exposição ao fumo de
menos um episódio de OMA enquanto um terço tabaco e o uso de chupeta.
apresenta dois ou mais. A OMA é um dos princi- A fisiopatologia da OMA caracteriza-se pela
pais motivos de observação da criança doente e inflamação e consequente disfunção da trompa
de prescrição de ABs em idade pediátrica. Tem um de Eustáquio, secundária a uma IVRS, que resulta
impacto social, familiar e económico considerável. numa pressão negativa no ouvido médio (OM)
Em Portugal, foi publicada a Norma de orienta- com migração de secreções infetadas das VRS e
ção clínica (NOC) do diagnóstico e tratamento da NF culminando na típica OMA.
da OMA em idade pediátrica, que subscrevemos Os agentes etiológicos bacterianos mais
nesta lição. frequentes são o Streptococcus pneumo -
O diagnóstico de OMA baseia-se sempre niae (25 a 50%), o Haemophilus influenzae
na conjugação de sinais e sintomas e dos não tipável (15 a 30%), Moraxella catarrhalis
achados da otoscopia, sendo necessário a (três a 20%). Bactérias menos frequentemen-
presença dos seguintes critérios: te envolvidas são o Streptococcus do grupo
A (dois a dez por cento), Staphylococcus aureus
1) Membrana timpânica com abaulamen- (um a três por cento), bacilos gram negativos,
to moderado a grave ou presença de Pseudomonas aeruginosa e anaeróbios. A va-
otorreia de início recente e não devida cina conjugada contra o Streptococcus pneu-
a otite externa. moniae reduziu a incidência de OMA por esta
bactéria e alterou os serótipos responsáveis,
OU sendo agora os não vacinais os mais frequen-
tes. As infeções víricas também estão frequen-
2) Membrana timpânica com abaulamento temente associadas a OMA, sendo os vírus
ligeiro e início recente de otalgia (que mais frequentes o vírus sincicial respiratório, o
300 GUSTAVO JANUÁRIO

rinovírus, o coronavírus, os vírus parainfluenza agravamento dos mesmos. O antibiótico de pri-


e influenza e o adenovírus. meira linha recomendado para o tratamento de
O tratamento da OMA consiste sempre e OMA é a amoxicilina em dose alta (90 mg/kg/
em primeiro lugar no controlo da dor, utilizando dia de 12 em 12 horas por via oral) devido à sua
para tal analgésicos como o paracetamol, ou anti- eficácia, segurança, baixo custo e ao facto da
-inflamatórios não esteróides como o ibuprofeno. maioria das bactérias causadoras de OMA serem
Várias meta-análises sugerem que a maioria das susceptíveis a este AB. No caso de persistência
crianças com OMA melhora espontaneamente dos sintomas às 48 ou 72 horas após o início do
sem ABs, sendo modestos os benefícios da sua AB, a prescrição deverá ser alterada, no caso de
utilização. Esta abordagem terapêutica tem aliás OMA não complicada, para amoxicilina com clavu-
sido utilizada em vários países nos últimos anos. lanato, cefuroxime ou ceftriaxona (se falência das
O atraso na prescrição de ABs, no grupo sele- opções prévias ou impossibilidade de utilização
cionado para tal atitude, não agravou a recupe- da via oral). No caso de OMA complicada (OMA
ração da OMA, nem contribuiu para o aumento que evolui com mastoidite, labirintite, petrosite
de complicações. Sempre que é decidida uma ou complicações intracranianas) a criança deverá
atitude inicial de observação, é necessário asse- ser referenciada a um serviço de pediatria com
gurar a possibilidade de reavaliação clínica entre otorrinolaringologia. A amoxicilina com clavula-
as 48 e as 72 horas se não houver melhoria ou nato poderá ainda ser utilizada como AB inicial
se surgir agravamento. Em alternativa pode ser se tiver sido realizado tratamento nos 30 dias
efetuada a denominada prescrição condiciona- prévios com amoxicilina ou se houver suspeita de
da (os cuidadores levam a receita do AB para o infeção por Staphylococcus aureus. A duração do
domicílio e iniciam o tratamento dentro de 48 a tratamento preconizado na OMA é de sete dias se
72 horas se houver persistência ou agravamento a idade for inferior a dois anos, no caso de OMA
dos sintomas), atitude que implica a compreen- recorrente e se houver falência do tratamento
são e aceitação por parte dos cuidadores. Esta inicial (exceto se o AB prescrito for ceftriaxona
modalidade demonstrou ser bem aceite pelos que apenas deverá ser administrado durante três
cuidadores e levou à redução da utilização de dias). Já nas crianças com idade superior a dois
ABs. anos e na ausência das situações acima referidas,
A NOC portuguesa emitida pela Direção- a duração do tratamento é apenas de cinco dias
Geral da Saúde recomenda a prescrição imediata (quadro 1).
de ABs a lactentes com idade inferior a seis meses
e a crianças com idade superior que apresentem: O tratamento expectante (observação sem
OMA com quadro clínico grave, OMA bilateral tratamento imediato com AB) reserva-se a crianças
(se idade inferior a dois anos), otorreia, OMA com idade igual ou superior a seis meses e sem
recorrente (três ou mais episódios em seis me- quadro clínico grave, devendo estar assegurada
ses ou quatro ou mais episódios no último ano), a possibilidade de reavaliação médica em 48 a
persistência dos sintomas às 48 a 72 horas ou 72 horas, ou antes se necessário, sempre que
CAPÍTULO 18. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS SUPERIORES 301

I.V – endovenoso; i.m – intramuscular; OMA – otite média aguda.

Quadro 1. Antimicrobianos utilizados no tratamento da otite média aguda. Adaptado de Diagnóstico e Tratamento da Otite Média
Aguda na Idade Pediátrica. Norma da Direção Geral da Saúde, 2012.

se verifique a persistência ou agravamento dos OU


sintomas (figura 2).
ii) Agravamento do curso habitual: agra-
18.2.3 Rinosinusite bacteriana aguda vamento ou re-início de rinorreia, tosse
diurna ou febre, após melhoria inicial.
A RSA define-se como uma infeção bac- OU
teriana dos seios perinasais, sendo considerada
uma complicação de IVRS/NFA ou de inflamação iii) início grave: febre de valor superior ou
alérgica. O diagnóstico de RSA é clínico e deve igual a 39ºC e rinorreia purulenta pelo
ser considerado quando uma criança com IVRS menos durante três dias consecutivos.
se apresenta com:
É importante relembrar que seis a sete por
i) doença persistente: rinorreia ou tosse diur- cento das crianças com sintomas respiratórios
na ou ambas com duração superior a dez têm doença consistente com esta definição pelo
dias, sem melhoria. que o diagnóstico de RSA exige seguir critérios
302 GUSTAVO JANUÁRIO

Figura 2. Algoritmo de atuação na OMA. Adaptado de Diagnóstico e Tratamento da Otite Média Aguda na Idade Pediátrica. Nor-
ma da Direção- Geral da Saúde, 2012. OMA – otite média aguda; ORL – otorrinolaringologia.
CAPÍTULO 18. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS SUPERIORES 303

clínicos estritos que descrevem sinais e sintomas Haemophilus influenza e Moraxella catarrhalis.
e padrões temporais de uma IVRS, sendo funda- O Staphylococcus aureus é raramente isolado nos
mental diferenciar RSA com sintomas persistentes aspirados em crianças com RSA mas, por razões
de episódios sequenciais de NFA, estabelecendo desconhecidas, é um patogéneo significativo nas
claramente a ausência de melhoria dos sintomas. complicações orbitárias e intracranianas da RSA.
Por outro lado o exame objetivo na RSA é muitas Com exceção da sinusite aguda maxilar associa-
vezes inespecífico e pouco informativo e os exa- da a infeções de origem dentária, os germens
mes imagiológicos não distinguem IVRS de RSA anaérobios respiratórios também são causa rara
pelo que não devem ser requisitados. de RSA. A comercialização e a utilização global
A fisiopatologia da RSA caracteriza-se por de vacinas conjugadas contra o Streptococcus
inflamação e edema da mucosa do óstio do seio pneumoniae e Haemophilus influenzae alterou
promovida por uma IVRS, e numa sequência de substancialmente a taxa relativa destas bactérias
eventos que envolve a diminuição da drenagem sendo atualmente as etiologias principais da RSA
de secreções por disfunção ciliar, a existência os serótipos não vacinais de Streptococcus pneu-
de uma pressão negativa ao nível dos seios pe- moniae e Haemophilus influenza não tipáveis.
rinasais que favorece a aspiração de muco e Recomenda-se tratamento da RSA com ABs,
de bactérias da NF e que finalmente culmina reservando a hipótese de observação adicional
na obstrução funcional e mecânica dos óstios e durante três dias apenas para a RSA persistente.
subsequente multiplicação bacteriana que ca- As crianças que apresentam um início grave de
racterizam a RSA. RSA têm presumivelmente uma infeção bacteria-
A etiologia microbiológica da RSA foi esta- na porque febre de valor superior a 39ºC e que
belecida há cerca de 30 anos por estudos que se coexiste com pelo menos três dias consecutivos
apoiavam na aspiração direta do seio maxilar em de rinorreia purulenta, não é consistente com o
crianças com sinais e sintomas compatíveis com padrão bem documentado de NFA. De forma si-
RSA. As bactérias mais frequentemente isoladas milar, as crianças com curso agravado de RSA têm
na época foram o Streptococcus pneumoniae uma evolução clínica que não é consistente com
(30% dos casos) e o Haemophilus influenzae e a melhoria progressiva da NFA não-complicada
a Moraxella catarrhalis (20% cada) sendo que 25 (quadro 2).
a 30% dos aspirados foram estéreis. Apesar de
algumas autoridades recomendarem a obtenção O tratamento AB da RSA de primeira linha
de culturas do meato médio, na tentativa de de- consiste na amoxicilina em alta dose (80 a 90
terminar a etiologia da infeção do seio maxilar, mg/Kg/dia, de 12 em 12 horas, por via oral)
não existe qualquer dado comparativo entre tais durante dez a 14 dias ou pelo menos durante
culturas e as culturas do seio maxilar. Pelo con- sete dias após controlo dos sintomas. A amoxi-
trário, existem dados que indicam que o meato cilina com clavulanato (formulação 14:1 e com a
médio de crianças saudáveis está frequentemen- posologia de amoxicilina já referida) é o AB de
te colonizado por Streptococcus pneumoniae, segunda linha (primeira linha segundo alguns
304 GUSTAVO JANUÁRIO

Apresentação RSA RSA RSA


clínica grave curso agravado persistente
RSA não-complicada sem AB AB AB ou observação
doença associada adicional durante 3 dias
RSA com complicações AB AB AB
orbitárias ou intracranianas
RSA com OMA, pneumonia, AB AB AB
adenite ou AASGA
RSA - Rinosinusite bacteriana aguda; AB – antimicrobianos; OMA – otite média aguda; AASGA – amigdalite aguda a Streptococcus do grupo A.

Quadro 2. Tratamento da rinosinusite bacteriana aguda. Observação versus antimicrobianos. Adaptado de Wald ER, et al. Clinical
Practice Guideline for the Diagnosis and Management of Acute Bacterial Sinusitis in Children Aged 1 to 18 Years. Pediatrics, 2013.

autores se existiu um tratamento nos 30 dias enterovírus, Streptococcus grupo A (SGA) e


prévios com β-lactâmicos, se houver frequência Mycoplasma pneumoniae.
de infantário, se tiver idade inferior a dois anos As causas bacterianas de AA são muito me-
e se a doença for de grau moderado a grave). nos frequentes e incluem sobretudo o SGA, outros
Em caso de alergia à penicilina (hipersensibi- Streptococcus (grupo C e G) e o Fusobacterium
lidade do tipo 1) preconiza-se a utilização de necrophorum, responsável pelo síndrome de
macrólidos; noutros tipos de hipersensibilidade Lemiérre.
recomenda-se a utilização de cefalosporinas O SGA é a etiologia mais frequente de AA
de segunda e de terceira geração ou de clin- bacteriana sendo responsável por 15 a 37% da
damicina. totalidade dos casos de AA. A infeção processa-
-se pelo contacto direto com secreções respi-
18.2.4 Amigdalite Aguda ratórias de doente com AA a SGA (AASGA),
sendo o período de incubação normalmente de
É um processo inflamatório agudo das amíg- dois a cinco dias. Vários estudos comprovam
dalas palatinas, sendo que geralmente esta infla- a existência de portadores assintomáticos de
mação se estende às amígdalas faríngeas e lin- SGA na orofaringe, podendo a sua prevalência
guais. Os termos faringite aguda, tonsilite aguda atingir os dez a 20%. A AASGA ocorre entre
e AA são utilizados como equivalentes (figura 3). os cinco e os 15 anos (inferior a dez por cento
A AA é, na grande maioria dos casos e em nos menores de três anos e insignificante nos
qualquer idade, virusal. Em crianças saudáveis, menores de 18 meses), sendo típica do inverno
mais de 90% das infeções agudas com envolvi- ou do início da primavera e caracteriza-se por
mento faríngeo são causadas por rinovírus, coro- odinofagia de início súbito associada a febre alta,
navírus, adenovírus, influenza A e B, parainfluen- cefaleia, náuseas, vómitos e dor abdominal. Há
za 1, 2 e 3, vírus Epstein-Barr, citomegalovírus, inflamação faringo-amigdalina com hiperémia
CAPÍTULO 18. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS SUPERIORES 305

Figura 3. Grande anel linfático de Waldeyer-pirogof que consiste nos adenoides (localizados superiormente na NF), nas amígdalas
palatinas (lateralmente na orofaringe) e nas amígdalas linguais (inferiormente na hipofaringe e recobertas pela mucosa no terço
posterior da língua). Adaptado de Functional Anatomy of the Airway (http://clinicalgate.com/functional-anatomy-of-the-airway/).

intensa, existência de exsudado amigdalino,


petéquias no palato (figura 4) e faringe poste-
rior e por vezes uma adenite cervical anterior,
muitas vezes dolorosa. Por vezes há exantema
escarlatiniforme (exantema escarlate, rugoso e
áspero ao toque, com tendência à confluência
e que se distribui pelo pescoço e tronco, com
acentuação das pregas axilares, antecubitais e
inguinais e língua em morango).
Uma vez que a AASGA é provavelmente a
única etiologia que beneficia de tratamento com
AB impõe-se pesquisa do SGA.
Infelizmente o diagnóstico de AASGA ba-
seado unicamente em critérios clínicos é pouco Figura 4. Amigdalite aguda a Streptococcus do grupo A.
Fotografia do autor.
confiável, uma vez que os sinais e sintomas são
variáveis e a gravidade da doença vai desde a
existência de odinofagia ligeira isolada a amigda- ou sintoma isolado que identifique eficazmente
lite exsudativa com febre alta, recusa alimentar e a AASGA. Foram assim desenvolvidos sistemas
prostração. O diagnóstico complica-se ainda mais de pontuação clínicos na tentativa de predizer
pelo facto da infeção por outros agentes, nomea- a probabilidade de infeção por SGA em crian-
damente por alguns vírus, ser clinicamente indis- ças e adultos com AA. Estes sistemas baseiam-
tinguível da AASGA, não existindo qualquer sinal -se na avaliação de dados clínicos sugestivos de
306 GUSTAVO JANUÁRIO

Figura 5. Realização e interpretação do teste diagnóstico antigénico rápido.


O TDAR baseia-se na deteção rápida e qualitativa do antigénio do SGA.

AASGA, vulgarmente conhecidos como critérios preconiza a realização de exames microbiológicos


de CENTOR (como existência de febre, edema ou nas crianças com epidemiologia e manifestações
exsudato amigdalino, gânglios cervicais anterio- clínicas sugestivas de AASGA apresenta maior
res aumentados e dolorosos e ausência tosse), custo beneficio e menor taxa de prescrição de
atribuindo a pontuação de um ponto por cada ABs, do que a abordagem diagnóstica baseada
critério cumprido. O adicionar de outros critérios apenas na clínica e epidemiologia. O aparecimento
como a idade e a época do ano, pode ainda e comercialização de testes sensíveis e específicos
aumentar a probabilidade de diagnóstico, no que permitem a deteção rápida do antigénio do
entanto mesmo com scores de pontuação igual SGA na orofaringe, o chamado teste diagnósti-
ou superior a quatro, a probabilidade de AASGA co antigénico rápido (TDAR), veio revolucionar o
não ultrapassa os 60%. O gold standard para o diagnóstico de AASGA e obviar a necessidade de
diagnóstico de AASGA foi durante muitos anos realização de exames culturais (figura 5). O diag-
o isolamento de SGA na cultura da orofaringe nóstico e tratamento da AA em idade pediátrica
em crianças e adultos com AA, e vários estudos foram também, à semelhança da OMA, alvo de
confirmaram que a abordagem diagnóstica que uma NOC da Direção-Geral da Saúde.
CAPÍTULO 18. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS SUPERIORES 307

Antibiótico Via Dose Nº Tomas Duração


1ª Linha Amoxicilina Oral 50 mg/Kg/dia 12/12h 10 dias
(máx 1 g/dia)
Alternativa Penicilina G I.M. < 27 Kg = 600.00U Dose única Dose única
1ª Linha benzatínica ≥ 27 Kg = 1.200.000U
Alergia à penicilina Claritromicina Oral 15 mg/Kg/dia 12/12h 10 dias
Hipersensibilidade (máx 1g/dia)
tipo 1 Eritromicina Oral 50 mg/Kg/dia 6/6h ou 10 dias
(máx 2g/dia) 8/8h
Azitromicina Oral 12 mg/Kg/dia 24/24h 5 dias
(máx 500 mg/dia)
Clindamicina Oral 20 mg/Kg/dia 8/8h 10 dias
(máx 1.8g/dia)
Alergia à penicilina Cefadroxil Oral 30 mg/Kg/dia 24/24h 10 dias
Hipersensibilidade (máx 1g/dia
não tipo 1 Cefeprozil Oral 30 mg/Kg/dia 12/12h 10 dias
(máx 2g/dia)
Cefuroxime-axetil Oral 20-30 mg/kg/dia 12/12h 10 dias
(máx 1g/dia)

Quadro 3. Antimicrobianos utilizados no tratamento da amigdalite aguda a Streptococcus do grupo A AASGA . Diagnóstico e
Tratamento da Amigdalite Aguda na Idade Pediátrica. Norma da Direção- Geral da Saúde, 2012.

De acordo com a NOC de AA (figura 6), pe- familiares de febre reumática aguda, ou glome-
rante uma criança com idade igual ou superior a rulonefrite pós-estreptocócica ou choque tóxico
três anos com AA e epidemiologia e clínica suges- estreptocócico e no doente com hipersensibilida-
tivas da etiologia SGA, deverá ser realizado TDAR de tipo 1 aos β-lactâmicos de forma a permitir a
e prescrito AB no caso de este ser positivo. No realização do antibiograma.
entanto, se a epidemiologia e a clínica forem suges- Perante uma AASGA confirmada o AB de
tivas de etiologia viral (rinorreia, tosse, rouquidão, primeira linha é a amoxicilina (50 mg/Kg/dia, de
úlceras orais ou diarreia), deverá ser assumido AA 12 em 12 horas, por via oral, durante dez dias)
vírica e não deverá ser realizado TDAR. A cultura devido à sua eficácia (o SGA é universalmente
da orofaringe reserva-se assim às crianças e adoles- sensível à penicilina), espetro estreito, perfil de
centes com epidemiologia e manifestações clínicas segurança, bom paladar e baixo custo. Se não for
sugestivas de AASGA e presença de uma ou mais possível a administração de AB por via oral, ou
das seguintes situações: TDAR não disponível; TDAR não é expectável que a criança cumpra a totali-
negativo e contacto com infeção confirmada por dade do tratamento, a penicilina G benzatínica
SGA; TDAR negativo e antecedentes pessoais ou (600.000 U, se peso inferior a 27 kg e 1.200.000
308 GUSTAVO JANUÁRIO

Figura 6. Algoritmo de atuação na amigdalite aguda. Adaptado de Diagnóstico e Tratamento da Amigdalite Aguda na Idade Pediátrica.
Norma da Direção Geral da Saúde, 2012.AA – amigdalite aguda; SGA - Streptococcus do grupo A; TDAR - teste diagnóstico antigénico rápido.

U se peso superior ou igual a 27Kg, intramus- superior. Na hipersensibilidade à penicilina tipo


cular, dose única) é o AB de escolha, apesar da 1, os ABs de escolha são os macrólidos ou a
sua administração ser dolorosa. A utilização de clindamicina (quadro 3).
cefalosporinas de primeira geração (cefadroxil)
ou de segunda geração (cefuroxime-axetil e 18.2.5 Infeções da laringe e da traqueia
cefeprozil) deve ser reservado para casos com
hipersensibilidade à penicilina não tipo 1, uma A inflamação da mucosa e o edema cau-
vez que têm espetro mais alargado, potencial de sados pelas infeções da laringe e da traqueia
indução de resistências e custo tendencialmente podem causar obstruções da via aérea (VA)
CAPÍTULO 18. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS SUPERIORES 309

ameaçadoras da vida nas crianças, sobretudo sido igualmente estudada de forma extensa no
nas pequenas. tratamento da LTA e na presença de dificuldade
A gravidade da obstrução da VA superior respiratória moderada a grave comprovou-se que
é avaliada pelo grau de retração supraesternal e tratamentos repetidos com adrenalina nebulizada
subcostal, pela frequência respiratória, pela fre- resultam numa diminuição da necessidade de en-
quência cardíaca, pelo grau de agitação, pela pre- tubação. Se houver suspeita ou confirmação de
sença de sinais como cansaço e exaustão devido sobreinfecção bacteriana dever-se-á utilizar ABs
ao esforço respiratório e pela existência de cianose com atividade contra Staphylococcus aureus, SGA,
central que é indicativa de hipoxémia grave e da Streptococcus pneumoniae, Haemophilus Influenza
necessidade de intervenção emergente. A mo- e Moraxella catarrhalis.
nitorização da saturação periférica de oxigénio
é o melhor método de medição da hipoxémia. 18.2.6 Epiglotite aguda
Antes do século XX todas as doenças “croup-
-like” eram assumidas como difteria. Atualmente o A epiglotite define-se como uma inflamação
termo “croup” é usado para designar um número da epiglote e das estruturas supraglóticas adja-
de doenças respiratórias (quadro 4) que se caracte- centes. O edema supraglótico reduz o calibre da
riza pela existência de estridor (som monofônico via aérea superior, causando um reduzido fluxo
ouvido predominantemente na inspiração) de grau de ar turbulento durante a inspiração e resultando
variável, tosse estridulosa (descrita como “tosse num som característico designado por estridor.
de cão”), rouquidão (devido à inflamação da A obstrução da via aérea, que pode causar uma
laringe) e grau variável de dispneia. paragem cardio-respiratória, pode ser rapidamen-
A quase totalidade dos casos de croup te progressiva e os sinais de obstrução grave da
são, de facto, laringotraqueítes agudas (LTA) ou via aérea superior poderão estar ausentes até às
croups espasmódicos, e afetam tipicamente fases finais da doença, altura em que a obstrução
crianças abaixo dos seis anos de idade com um da via aérea é quase total.
pico de incidência entre os sete e os 36 meses. Em crianças previamente saudáveis a etiolo-
O tratamento da LTA e do croup espas- gia da epiglotite é de origem bacteriana. A causa
módico consiste na utilização de corticoides e mais frequente é o Haemophilus influenzae tipo b
de adrenalina nebulizada. O tratamento com (Hib) apesar da diminuição drástica do número de
corticoides é atualmente recomendado e várias casos após introdução da vacina conjugada contra
meta-análises de ensaios randomizados têm con- esta bactéria. Outras bactérias que podem tam-
sistentemente demonstrado uma melhoria sig- bém causar epiglotite são outros Haemophilus in-
nificativa sintomática das crianças tratadas com fluenza (tipos A, F e não-tipáveis), o Streptococcus
estes. Os regimes mais bem estudados são os que pneumoniae e o Staphylococcus aureus.
utilizam a dexametasona por via oral (0,6 mg/Kg) A epidemiologia da epiglotite alterou-se ra-
em dose única ou budenosido nebulizado (2 mg). dicalmente após a introdução da vacina contra o
A adrenalina nebulizada (diluição 1:1000) tem Hib, sendo as principais modificações a diminuição
310 GUSTAVO JANUÁRIO

Definição e Croup Laringotraqueíte Laringotraqueobronquite Difteria laríngea


características espasmódico aguda e Traqueíte bacteriana

Definição Início súbito Inflamação da Inflamação da laringe, da Infecção


nocturno laringe e da traqueia traqueia, dos brônquios ou causada pelo
de estridor pulmão. Início similar à LTA Corynebacterium
associado a mas doença mais grave diphtheriae,
coriza. Sem envolvendo a
inflamação laringe e que resulta
numa obstrução
progressiva da VA
Idade típica 3M a 3A 3M a 3A 3M a 3A Todas as idades
Antecedentes História familiar História familiar História familiar possível Ausência de
pessoais e possível; ataque possível vacinação
familiares prévio possível
Pródromo Coriza mínima Coriza Coriza Faringite
Início Súbito. Sempre Rápido, Gradualmente progressivo Lento mas
à noite. Criança mimetizando uma num período de 12H a 7D progressivo num
deita-se bem NFA. Febre nas período de 2 a 3D
e acorda primeiras 24H
subitamente e passadas 12 a
com tosse 48H surgem sinais
e estridor de obstrução da
VA superior
Sinais e Rouquidão, Rouquidão, tosse Rouquidão, tosse Rouquidão, tosse
sintomas tosse estridulosa, estridor estridulosa, estridor estridulosa,
estridulosa, ligeiro a moderado, grave, febre (38-40ºC), disfagia e faringite
estridor ligeiro febre (38-40ºC) aparência tóxica membranosa,
a moderado, estridor ligeiro
ausência a grave, febre
de febre (38,5ºC), aparência
não tóxica

Microbiologia Igual à LTA Parainfluenza Sobreinfecção bacteriana Corynebacterium


e Influenza. por Staphylococcus diphtheriae
VSR, Sarampo aureus. Outros
e Adenovírus agentes incluem SGA,
Streptococcus pneumoniae,
Haemophilus Influenza
e Moraxella catarrhalis
LTA - laringotraqueíte aguda; H – horas; D – dias; M – meses; A – anos; VA- via aérea; SGA – Streptococcus do grupo A; VSR – vírus
sincicial respiratório; ºC – graus Celsius.

Quadro 4. Classificação, definição e características clínicas das doenças “croup-like”. Adaptado de Cherry JD. Clinical practice.
Croup. New England Journal of Medicine, 2008.
CAPÍTULO 18. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS SUPERIORES 311

LTA Epiglotite
drástica da incidência e a idade média do diag-
Início Dias Horas
nóstico ter passado para mais tarde, dos três para
Coriza Sim Não
os seis a doze anos.
Tosse Sim, estridulosa Não, ligeira
A suspeita de epiglotite constitui uma
Ingestão Sim Não
emergência médica, sendo essencial o reconhe- de líquidos
cimento e o tratamento imediato. As característi- Sialorreia Não Sim
cas clínicas dependem da idade e da gravidade, Aparência Boa ou mediana Tóxica
sendo que a criança se apresenta classicamente Febre < 39ºC >39ºC
com dificuldade respiratória e estridor, assumindo Estridor Sim Sim
uma posição característica de sentada e imóvel, Voz e Rouquidão Abafada,
recusando muitas vezes o toque ou a posição choro relutância
em falar
de decúbito, com inclinação anterior do tronco,
LTA - laringotraqueíte aguda; ºC – graus Celsius
hiperextensão do pescoço e elevação do mento,
numa tentativa de maximizar o diâmetro de uma
via aérea obstruída. A sialorreia está muitas ve- Quadro 5. Características clínicas da Laringotraqueíte aguda
e Epiglotite. Adaptado de Lissauer T, et al. Illustrated Text-
zes presente e a tosse está tipicamente ausente.
book of Paediatrics. 4th Edition, 2011.
É característico o início súbito de febre alta, su-
perior a 39ºC, odinofagia e disfagia graves, voz
abafada e aparência tóxica. inclui outras causas de obstrução aguda da
A tentativa de visualização da epiglote VA superior, nomeadamente LTA (quadro 5),
com o auxílio de espátula, bem como a reali- traqueíte bacteriana, abcesso periamigdalino
zação de radiografias laterais do pescoço não e retrofaríngeo, angioedema e difteria.
devem ser efectuadas, uma vez que poderão O tratamento da epiglotite consiste, como
precipitar obstrução total da via aérea e para- já referido, no controlo emergente da via aérea
gem cárdio-respiratória, sendo a atitude fun- e da sua patência, seguido da administração de
damental o controlo da via aérea com entuba- ABs apropriados à etiologia, nomeadamente
ção programada, recorrendo, se necessário, a de uma combinação de uma cefalosporina de
intensivistas e a anestesistas pediátricos com terceira geração (ceftriaxone ou cefotaxime)
experiência em permeabilizar via aérea (VA) com uma penicilina antiestafilocócica (fluclo-
difícil. A visualização de uma epiglote ede- xacilina).
maciada e eritematosa durante a entubação
confirma o diagnóstico. Exames complementa- 18.3 FACTOS A RETER
res, nomeadamente hemograma, marcadores
de infeção sistémicos, cultura do exsudato da A prescrição racional de ABs é atualmente
epiglote e hemocultura só deverão ser efetua- um dos grandes desafios da medicina.
dos após estabilidade clínica e controlo da Globalmente, e especificamente em Portugal,
VA. O diagnóstico diferencial de epiglotite assiste-se a uma excessiva prescrição de ABs em
312 GUSTAVO JANUÁRIO

situações que não o justificam e por outro lado Leitura complementar


a uma prescrição exagerada de ABs de largo
espetro. As IVRS são responsáveis pela maioria Diagnóstico e Tratamento da Amigdalite Aguda na Idade
da prescrição de ABs apesar de serem causadas Pediátrica. Norma da Direção- Geral da Saúde, 2012.
maioritariamente por vírus. (https://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs.aspx).
Torna-se assim necessário seguir normas Diagnóstico e Tratamento da Otite Média Aguda na Idade
e abordagens racionais para o diagnóstico e Pediátrica. Norma da Direção- Geral da Saúde, 2012.
tratamento das IVRS, bem como usar critérios (https://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs.aspx
clínicos validados para o diagnóstico de OMA, 3) European Centre for Disease Prevention and Control.
RSA e AASGA, situações que podem beneficiar Surveillance of antimicrobial consumption in Europe,
da utilização de ABs. 2010. Stockholm: ECDC; 2013. (http://ecdc.europa.eu/
A NFA é uma infeção viral que não necessita en/publications/Publications/antimicrobial-antibiotic-
de prescrição de ABs. Na OMA, pode ser realizado -consumption-ESAC-report-2010-data.pdf).
um período de observação apenas com controlo Bisno AL. Acute pharyngitis. N Engl J Med, 2001.
da dor e sem prescrição imediata de ABs, em Ellen R. Wald, et al. Clinical Practice Guideline for the
crianças com idade igual ou superior a seis meses. Diagnosis and Management of Acute Bacterial Sinusitis
O diagnóstico de RSA exige uma persistência in Children Aged 1 to 18 Years. Pediatrics, 2013.
dos sintomas respiratórios, sem melhorias, por Chow AW, et al. IDSA Clinical Practice Guideline for Acute
um período superior a dez dias. Bacterial Rhinosinusitis in Children and Adults. Clin Infect
A AA é de origem virusal na maioria dos Dis, 2012.
casos e na suspeita de AASGA deve ser, sempre Cherry JD. Croup. N Engl J Med, 2008.
que possível, realizado o TADR para confirmação
desta etiologia.
Nas IVRS, se a decisão for a prescrição de
ABs, a amoxicilina deverá ser o AB de escolha.
Um quadro de obstrução respiratória alta,
deve ser sempre avaliado e orientado com especial
cuidado e senso clínico.
Capítulo 19.
Infeções das vias respiratórias inferiores

19
Patrícia Mação
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_19
CAPÍTULO 19. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS INFERIORES 315

19.1. CONTEXTO A transmissão ocorre por contacto direto


com partículas aerossolizadas que contêm o vírus
As doenças respiratórias, nomeadamente ou através de fomites, geralmente nos primeiros
as de causa infeciosa, são muito frequentes em seis dias de doença.
idade pediátrica. A bronquiolite aguda (BQL) e a
pneumonia adquirida na comunidade (PAC), que A infeção pelo vírus causa lesão direta das
se localizam ao aparelho respiratório baixo serão células do epitélio respiratório, destruição das
abordadas nesta lição. células ciliadas e inflamação dos pequenos brôn-
quios e bronquíolos (infiltração linfocitária). O
edema, acumulação de muco e a descamação de
19.2. DESCRIÇÃO DO TEMA células mortas levam a obstrução das pequenas
vias aéreas, atelectasias e consequentemente per-
19.2.1. Bronquiolite aguda turbação da capacidade de ventilação-perfusão
pulmonar. As lesões ciliares podem persistir por
A BQL é uma infeção que atinge as vias duas semanas.
respiratórias de pequeno calibre, que afeta so-
bretudo crianças abaixo dos dois anos de idade O curso da doença caracteriza-se por:
(pico de incidência entre os três e os seis meses),
manifestando-se tipicamente com um quadro • Fase inicial (dois a três dias): sintomas
de pieira febril. O seu diagnóstico geralmente nasais predominantes e febre;
reserva-se ao primeiro episódio de pieira, não • Fase de agravamento (terceiro a quinto
devendo ser considerado em situações de pieira dias): tosse seca, por vezes por acessos,
repetida. aumento da frequência respiratória e da
A etiologia é predominantemente vírica, sen- dificuldade respiratória (tiragem, adejo
do o vírus sincicial respiratório (VSR) responsável nasal) e hiperinsuflação torácica (aumen-
pela maioria dos casos (50 a 80%). Outros vírus to do diâmetro antero-posterior do tórax)
podem também estar implicados como: rinovírus, e a auscultação pulmonar apresenta de
parainfluenza 1, 2 e 3, metapneumovírus, influen- início aumento do tempo expiratório se-
za A e B, adenovírus e bocavírus. A co-infeção guido de sibilos e/ou fervores;
viral é comum (1/3 dos casos), podendo constituir • Fase de melhoria (quinto a sétimo dias):
um fator de risco de gravidade. Existem também podendo a tosse persistir.
relatos de infeções respiratórias e episódios de
pieira em lactentes associados ao Mycoplasma Em ex-prematuros e pequenos lactentes (me-
pneumoniae. nos de dois meses) a apneia pode ser a primeira
A infeção tem caracteristicamente um ca- manifestação.
rácter sazonal, com um pico de incidência no A evolução clínica é variável, sendo na maio-
outono e inverno. ria dos casos autolimitada e benigna. A duração
316 PATRÍCIA MAÇÃO

Figura 1. Hiperinsuflação e atelectasia do lobo superior Figura 2. Hiperinsuflação e horizontalização dos arcos
direito. Imagem do autor. costais. Imagem do autor.

da doença é em média uma semana, no entanto (segmentar ou mesmo lobar), que podem ser
podem persistir sintomas respiratórios como tosse confundidas com pneumonia, Figuras 1 e 2.
durante mais de quatro semanas em 10% dos
casos, dependendo da idade, da gravidade da Os testes rápidos para identificação de an-
doença, das co-morbilidades de alto risco e do tigénios virais (Imunofluorescência ou Enzyme-
agente etiológico. Linked Immunosorbent Assay) e as técnicas mo-
O diagnóstico de BQL é clínico, baseado leculares de diagnóstico viral (Polimerase chain
na anamnese, nas alterações no exame objeti- reaction – PCR) efetuados nas secreções brônqui-
vo, na idade da criança e na epidemiologia. Os cas ou da orofaringe permitem conhecer o agente
exames complementares de diagnóstico só estão etiológico, mas devem ser utilizados apenas em
indicados em casos particulares. estudos epidemiológicos ou de investigação e pela
A realização de radiografia do tórax pode ser possibilidade de isolamento do doente internado
considerada se a evolução for atípica, se houver com BQL.
dúvidas no diagnóstico ou evidência de compli- A gasometria é útil apenas no doente com
cações. As alterações radiológicas são variáveis e critérios de internamento em cuidados intensivos.
inespecíficas, e incluem sinais de hiperinsuflação O hemograma, doseamento da proteína
pulmonar com horizontalização dos arcos costais C reativa e estudos bacteriológicos (cultura de
e abaixamento do diafragma, atelectasias, áreas secreções brônquicas, hemocultura, urocultura)
de espessamento peribrônquico e opacidades podem ser utilizados na suspeita de complicações
CAPÍTULO 19. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS INFERIORES 317

ou infeções bacterianas associadas (i.e. bacterié- - Idade inferior a 12 semanas.


mia, meningite, infeção urinária). - História de prematuridade (idade gestacional
O ionograma sérico e urinário pode ser inferior a 37 semanas).
necessário em casos graves em que se suspei- - Cardiopatia congénita.
ta de alterações hidroelectrolíticas por Secreção - Doença pulmonar crónica do lactente
Inapropriada de Hormona Antidiurética (SIHAD). (displasia broncopulmonar, fibrose quística,
Na grande maioria dos casos o quadro clínico doença pulmonar difusa ou congénita).
de BQL é tão óbvio que não se impõe qualquer - Doença neuromuscular ou neurológica grave.
diagnóstico diferencial. Contudo nos casos de - Imunodeficiência.
pieira recorrente, nas formas clínicas atípicas ou - Trissomia 21.
sem contexto epidemiológico devem considerar-se - Exposição ao fumo de tabaco.
outras entidades como: asma, pneumonia, tosse
convulsa, aspiração de corpo estranho, refluxo
gastro-esofágico, insuficiência cardíaca e causas Quadro 1. Fatores de risco para complicações da
bronquiolite aguda.
anatómicas de compressão das vias aéreas como
é o caso de um anel vascular.
A história clínica detalhada, incluindo an- Após ter sido realizado o diagnóstico de BQL
tecedentes pessoais e familiares e um bom exa- deve ser efetuada uma avaliação da gravidade da
me objetivo são essenciais e suficientes para o doença, com implicações na orientação terapêu-
diagnóstico. tica. Após desobstrução nasal, deve registar-se
A BQL evolui habitualmente sem complicações.
Em casos mais graves e, sobretudo, em doen-
tes com fatores de risco (quadro 1), a probabi- - Idade inferior a 6 semanas.
lidade de complicações aumenta, das quais se - Saturação periférica de Oxigénio ≤ 92%.
destacam: desidratação, atelectasia, insuficiência - Incapacidade alimentar.
respiratória e infeções bacterianas secundárias, - Dificuldade respiratória moderada a grave
nomeadamente otite média aguda e pneumonia. ou em agravamento e hipoxemia.
O risco de infecção urinária, bacteriémia ou me- - Existência de fatores de risco
ningite associada é muito baixo. para maior gravidade.
A hiponatrémia por síndrome de SIHAD tam- -Incapacidade dos familiares para
bém está descrita como complicação de BQL, e prestação de cuidados e vigilância
o seu risco aumenta com a utilização de fluídos adequados ou dificuldade no
endovenosos, em particular soros hipotónicos. acesso aos serviços de saúde.
Apenas uma pequena percentagem de doen-
tes com BQL (inferior a 5%) necessita de interna-
mento hospitalar. Os critérios para internamento Quadro 2. Critérios de internamento de doentes
com bronquiolite aguda.
estão descritos no quadro 2.
318 PATRÍCIA MAÇÃO

então: a frequência respiratória (FR), medida du- para reobservação médica e como medidas te-
rante um minuto; o impacto na alimentação e grau rapêuticas: a desobstrução nasal (utilização de
de hidratação; a presença de apneia (baseada na soro fisiológico nasal, sem recurso a fármacos
observação ou história sugestiva, sobretudo se descongestionantes); elevação da cabeceira da
a idade for inferior a seis semanas); a hipoxémia cama/berço a 30º e manutenção de bom estado
determinada por oxímetro de pulso; a frequên- de hidratação e nutrição através de fracionamento
cia cardíaca; o estado de consciência; o grau de das refeições.
dificuldade respiratória com base na presença Não está provada a eficácia de nebulizações
de tiragem, incapacidade para vocalização ou com salbutamol, adrenalina, brometo de ipratró-
gemido; e o grau de ventilação apreciado pela pio, ou soro salino hipertónico. Estas medidas
expansão torácica e auscultação pulmonar. terapêuticas podem ser consideradas em casos
Existem múltiplas escalas clínicas que foram individuais, sob vigilância médica.
desenvolvidas para avaliar a gravidade da doença Os corticóides, cinesiterapia respiratória e os
em contexto de investigação, no entanto na prá- antibióticos também não estão indicados.
tica clínica a sua utilidade é limitada. Em casos de maior gravidade, a prescrição de
oxigénio de alto fluxo (aquecido e humidificado)
Na maioria dos casos de BQL são suficientes ou ventilação não invasiva, pode ser efetuada
medidas de suporte para manter a oxigenação e em algumas unidades hospitalares, de acordo
hidratação. com a preparação da respetiva unidade e com
A s orientações atuais, da A ssociação os protocolos específicos.
Americana de Pediatria (AAP) publicadas em O prognóstico é favorável na grande maioria
2014 e a norma da Direção-Geral da Saúde dos doentes.
(DGS) atualizada em 2015, recomendam para A prevenção da BQL, quer na comunidade,
o doente internado: quer associada aos cuidados de saúde, é funda-
mental.
• Oxigenoterapia: quando se verifique SpO2 Salienta-se a importância da lavagem das
inferior ou igual a 90 a 92% com ar am- mãos antes e após o contacto com os doentes
biente; na redução da transmissão da doença. É reco-
• Hidratação: adequada às necessida- mendada também a limitação de contactos com
des hídricas, por sonda naso-gástrica, os doentes e o internamento em quartos de
na criança com dificuldade respiratória isolamento nos casos em que seja isolado o VSR.
progressiva ou incapacidade alimentar; e A evicção do tabagismo passivo, que aumen-
em alternativa por via endovenosa, par- ta a suscetibilidade e agrava o prognós tico da
ticularmente no doente crítico. doença, e o incentivo do aleitamento materno
que se associa a menor gravidade e taxas mais
Na alta para o domicílio há que explicar a reduzidas de internamento, são cuidados que
evolução natural da doença e dos sinais de alarme se devem fomentar.
CAPÍTULO 19. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS INFERIORES 319

A nível nacional e internacional, as socieda- amostras adequadas e a baixa produtividade das


des de Pediatria recomendam a utilização pre- técnicas diagnósticas utilizadas.
ventiva de palivizumab (anticorpo monoclonal Os principais agentes etiológicos da PAC
humano recombinante, específico contra VSR) em são os vírus respiratórios, nomeadamente VSR,
grupos de risco (antecedentes de prematuridade, influenza A e B, parainfluenza, adenovírus, me-
displasia broncopulmonar ou cardiopatia) dado tapneumovírus humano e rinovírus. Em crianças
que reduz as taxas de hospitalização e a gravidade abaixo dos dois anos os vírus foram identificados
da doença. Está recomendada a administração em até 80% dos casos de PAC, isoladamente ou
por via intramuscular de cinco doses mensais na em associação. A sua importância diminui com a
época fria, com início em novembro. idade, sendo responsáveis por apenas um terço
dos casos em crianças com mais de cinco anos.
19.2.2 Pneumonia adquirida na comunidade A etiologia varia com a idade, estando os agentes
mais frequentes referidos no quadro 3.
O termo pneumonia refere-se ao processo
inflamatório que envolve os pulmões, nomeada- Apesar da imunização com a vacina anti-
mente os alvéolos, pleura visceral, tecido conjun- -pneumocócica conjugada ter diminuído a incidên-
tivo, vias aéreas, alvéolos e estruturas vasculares cia da doença por este gérmen, o Streptococcus
adjacentes. Trata-se de uma infeção e caracteriza- pneumoniae (Sp) continua a ser a bactéria mais
-se por febre e/ou sintomas e sinais respiratórios frequentemente implicada na etiologia de PAC
de início recente e evidência de envolvimento em crianças.
do parênquima pulmonar (alterações no exame Pelo contrário, as infeções por Haemophilus
físico ou presença de opacidades na radiografia influenzae tipo b (Hib) foram virtualmente elimina-
do tórax). das nos países em que a vacinação é obrigatória
Por adquirida na comunidade entende-se e universal, devendo contudo ser consideradas
que a infeção foi adquirida fora do ambiente hos- em pequenos lactentes não completamente imu-
pitalar, isto é, a criança não esteve internada nos nizados.
sete dias que precedem o diagnóstico ou estava O Staphylococcus aureus (Sa) e o Streptococcus
internada há menos de 48 horas. pyogenes (Spy) são causas raras de PAC em crian-
A pneumonia adquirida na comunidade ças previamente saudáveis. Manifestam-se como
(PAC) ocorre em todo o ano, embora seja mais pneumonias muito graves. Está bem descrita a
frequente nos meses frios, dada a maior circulação associação de pneumonia estafilocócica secundária
de vírus (VSR e influenza) e à maior permanência a infeção por vírus influenza.
das crianças em espaços fechados. A tosse convulsa, causada pela Bordetella
Um grande número de microrganismos estão pertussis (Bp), constitui um importante problema
implicados na etiologia da PAC. A identificação de saúde pública. Os pequenos lactentes com
do agente etiológico muitas vezes não é possível, cobertura vacinal parcial ou ausente constituem o
tendo em conta a dificuldade na obtenção de
320 PATRÍCIA MAÇÃO

Pequeno lactente Lactente e Criança mais velha e


(1 a 3 meses) idade pré-escolar adolescente (≥5anos )
(4 meses a 4 anos)
Vírus respiratórios
Mycoplasma pneumoniae
Streptococcus pneumoniae (Sp) Vírus respiratórios
Sp
Chlamydia trachomatis Sp
Vírus respiratórios
Bordetella pertussis

PAC – Pneumonia adquirida na comunidade, Sp – Streptococcus pneumoniae.


Adaptado de Manual of Childhood Infections: The Blue Book, 4th Edition, 2016

Quadro 3. Distribuição dos agentes etiológicos mais frequentes de PAC de acordo com a idade.

grupo mais vulnerável para complicações graves, As manifestações clínicas de pneumonia


nas quais se inclui a pneumonia. variam de acordo com a etiologia, as caracterís-
A pneumonia surge na sequência do com- ticas do hospedeiro e a gravidade da doença.
promisso do sistema imunitário do hospedeiro, A tríade clínica clássica da pneumonia
invasão por um agente virulento e/ou invasão pneumocócica e constituida por febre de início
por grande quantidade de inóculo. Essa inva- súbito/agudo, taquipneia e tosse, no entanto,
são pode ocorrer através de diferentes vias: via os sintomas podem ser variados e inespecíficos,
áerea, por inalação ou microaspiração (a mais particularmente numa fase inicial da doença e em
frequente) ou por via hematogénica. Os meca- pequenos lactentes. Nestes, a recusa alimentar,
nismos de defesa pulmonares são do tipo mecâ- irritabilidade e gemido podem ser a forma de
nico (reflexo da tosse e depuração mucociliar) ou apresentação.
do tipo imunológico (ação de imunoglobulinas, A febre é uma manifestação frequente, e
destruição bacteriana pelo complemento, opso- pode ser o único sinal de pneumonia em crianças
nização, ingestão macrofágica e imunidade celu- pequenas. Mas nos pequenos lactentes, pode
lar). A falência em qualquer destes mecanismos não haver febre.
desencadeia uma cascata inflamatória e leva à Após o primeiro mês de vida a tosse é o
redução da compliance pulmonar, aumento da sintoma mais comum. No caso particular da
resistência, obstrução das pequenas vias aéreas, PAC de etiologia pneumocócica a tosse pode
e pode resultar em colapso das vias respiratórias estar ausente na fase inicial da doença, dado
distais, air trapping (retenção de ar) e alteração que esta surge apenas quando há atingimento
da ventilação-perfusão pulmonar. As infecções dos recetores das vias aéreas, localizados a nível
graves estão associadas a necrose do epitélio dos brônquios e bronquíolos.
brônquico, dos bronquíolos e/ou do parênquima Outros sinais respiratórios (i.e. taquipneia)
pulmonar. podem preceder a tosse. A taquipneia é o sinal
CAPÍTULO 19. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS INFERIORES 321

Tipo de pneumonia Bacteriana (típica) Bacteriana (atípica) Viral


Gérmen Sp Mp Vírus respiratórios
Idade Qualquer Superior a 5 anos Inferior a 5 anos
Início Súbito Gradual Gradual
Contexto Não Frequente Frequente, em simultâneo
epidemiológico
Febre Sim, superior a 39ºC Não ou inferior a 38,5ºC Sim
Tosse Ausente no início, Agravamento Seca
depois produtiva progressivo, acessual
Sinais associados Dor pleurítica Cefaleias, mialgias e Coriza, conjuntivite,
sintomas constitucionais mialgias
Exame objetivo “Ar doente”. Crepitações e/ou sibilos Crepitações e
Diminuição MV e uni ou bilaterais sibilos bilaterais
crepitações localizadas.
Sopro tubário.

Sp – Streptococus pneumoniae, Mp – Mycoplasma pneumoniae, MV – Murmúrio vesicular.

Quadro 4. Manifestações clínicas de pneumonia em relação com o agente etiológico.

mais sensível e específico de pneumonia, e a sua para a avaliação do estado geral do doente, do
ausência permite praticamente excluir o diagnós- grau de hidratação, e dos sinais de síndrome
tico. Não esquecer que a frequência respiratória de dificuldade respiratória (presença de pelo
é variável em função da idade, da temperatura e menos dois dos sinais clínicos: taquipneia, tira-
da ansiedade da criança. gem, adejo nasal, gemido e cianose).
As crianças mais velhas podem referir A oximetria de pulso, é um método objetivo
dor torácica pleurítica (agrava com a respi- de avaliação da saturação periférica de oxigénio,
ração) e em alguns casos dor abdominal recomendado nos doentes com sinais de dificul-
(dor referida dos lobos inferiores do pulmão) dade respiratória.
ou também dor no ombro ou rigidez da O diagnóstico de PAC é essencialmente
nuca, quando a pneumonia se localiza aos lo- clínico. Não há indicação para a realização de
bos superiores. exames complementares de diagnóstico por ro-
Como já foi referido, o quadro clínico não tina em crianças que não apresentem critérios
é suficientemente específico para estabelecer o de internamento.
diagnóstico etiológico da pneumonia, no entanto A radiografia do tórax pode ser útil
alguns achados podem ser mais sugestivos de para confirmar o diagnóstico e avaliar a
determinada etiologia (quadro 4). existência de complicações. A incidência ha-
Após colheita da anamnese, deve ser efetua- bitualmente recomendada é a postero-anterior,
do um exame objetivo completo com destaque uma vez que permite melhor visualização do
322 PATRÍCIA MAÇÃO

Figura 3. Condensação lobar no hemitórax esquerdo, Figura 4. Infiltrado intersticial bilateral com reforço peri-hilar.
com broncograma aéreo. Imagem do autor. Imagem do autor.

campo pulmonar ao reduzir a sombra cardíaca. hiperinsuflação, associado a vírus res-


As incidências laterais não devem ser efetuadas piratórios e Mp, Figura 4;
por rotina, porque não aumentam a acuidade • Broncopneumonia: padrão bilateral di-
diagnóstica e não têm utilidade no tratamento. fuso, reforço peribrônquico e pequenos
Nem sempre existe correlação entre os achados infiltrados nodulares que se distendem
radiológicos e a clínica, sobretudo nas primeiras até à periferia, geralmente associada a
horas de evolução da doença e em lactentes e Sa e outras bactérias, Figura 5.
crianças mais pequenas.
Podem ser descritos vários padrões radio- Em circunstâncias especiais, poderá ser reali-
lógicos, que se associam a um determinado zada ecografia torácica, nomeadamente para con-
agente etiológico, embora não sejam específicos. firmação ou caracterização de derrame pleural.
Classicamente os padrões radiológicos dividem- O hemograma e os marcadores de infeção
-se em três tipos: de fase aguda (rastreio sético) são pouco espe-
cíficos. Podem ser efetuados em casos graves ou
• Alveolar: caracterizado por uma conso- com necessidade de internamento.
lidação lobar ou segmentar, geralmente Nas PAC de etiologia pneumocócica há
única e broncograma aéreo, associado a frequentemente leucocitose com predomínio de
Sp, Figura 3; polimorfonucleares e os marcadores de infeção de
• Intersticial: reforço broncovascular, fase aguda estão muito aumentados. Porém a leu-
proeminência a nível peri-hilar e cocitose não é específica das infeções bacterianas
CAPÍTULO 19. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS INFERIORES 323

há complicações, e por razões epidemiológicas


(suspeita de surto/epidemia).
A hemocultura é um exame muito específico
mas pouco sensível, sendo positiva em apenas
10% dos quadros de PAC. Está indicada em casos
com necessidade de internamento, antes de iniciar
antibioterapia empírica, ou quando a evolução
não é favorável.

Os testes rápidos para deteção dos antigénios


virais ou as técnicas de biologia molecular efetua-
das no exsudado da nasofaringe podem auxiliar na
decisão terapêutica e de medidas de isolamento
Figura 5. Padrão bilateral difuso, reforço peribrônquico e nos doentes internados, particularmente nos casos
pequenos infiltrados nodulares que se estendem à periferia.
suspeitos de agente vírico ou atípico.
Imagem do autor.
Salienta-se que a identificação viral e bacte-
riana na nasofaringe pode não refletir o agente
e também pode estar presente nas pneumonias causal da PAC, mas antes agentes colonizadores
causadas por vírus (adenovírus e influenza). da nasofaringe, não sendo rara a identificação
No caso particular da tosse convulsa (Bp) é fre- de múltiplos agentes.
quente existir leucocitose marcada com predo- Os testes serológicos permitem apenas con-
mínio de linfócitos (reação leucemóide). firmar a etiologia a posteriori, não estando por
Os marcadores de infeção de fase aguda isso indicados por rotina.
(proteína C reactiva e procalcitonina) não per- A deteção de antigénios capsulares do Sp
mitem isoladamente distinguir a etiologia da na urina não deve ser efetuada, porque não per-
pneumonia. Podem ser úteis durante a evolução mite distinguir a infeção do estado de portador,
da doença para avaliar a resposta à terapêutica. frequente em crianças menores de cinco anos.
A velocidade de sedimentação é um exame O exame bacteriológico do líquido pleural
dispensável, dada a sua elevação e diminuição (no caso de derrame) e do lavado bronco-alveolar
lentas. são o método mais eficaz para identificar o agente
Avaliar o ionograma e os biomarcadores etiológico da pneumonia, no entanto são muito
séricos de função renal (ureia e creatinina) pode invasivos, e por isso, reservados para situações
ser útil em doentes com sinais de desidratação e graves que não respondem à terapêutica instituída.
com suspeita de SIHAD. O diagnóstico diferencial de pneumo-
A investigação etiológica específica deve ser nia infeciosa deve ser equacionado em crian-
considerada nas crianças com quadros graves, ças que não respondem à terapêutica e têm
quando a evolução clínica não é típica ou quando formas de apresentação ou evolução atípicas.
324 PATRÍCIA MAÇÃO

Os diagnósticos a considerar são: aspiração de


- Idade inferior a quatro meses.
corpo estranho, bronquiolite.
- Dificuldade respiratória significativa.
A maioria dos casos de PAC resolve sem
- Hipoxémia (SpO2 inferior a 92%).
complicações.
- “Ar tóxico”.
As complicações mais frequentes são: derra-
- PAC complicada.
me pleural, pneumonia necrotizante, abcesso pul-
- Doença crónica subjacente que aumenta
monar e hiponatrémia. São muito mais frequentes
o risco de evolução desfavorável.
nas infeções bacterianas, embora também estejam
- Sinais de desidratação ou
descritas em casos de pneumonias associadas a
incapacidade de alimentação (inferior
infeções por bactérias atípicas e vírus.
a dois terços do habitual).
A decisão terapêutica nos doentes com PAC
- Falência do tratamento ambulatório.
deve ser tomada tendo em conta a idade, a clínica
- Incapacidade dos familiares para prestação
e os fatores epidemiológicos. O tratamento deve
de cuidados e vigilância adequada.
sempre incluir medidas gerais de controlo da febre
e dor, e oxigenação adequadas.
SpO2 – Saturação periférica de oxigénio; PAC – Pneumonia
Quando efetuado em ambulatório, devem
adquirida na comunidade. Adaptado de “Norma 019/2012.
sempre ser dadas indicações á família para con- Diagnóstico e Tratamento da Pneumonia Adquirida na
Comunidade em Idade Pediátrica. Direção-Geral da Saúde”.
trolo da febre e dor, e identificação de sinais de
deterioração clínica. Os critérios de internamento
estão descritos no quadro 5. Quadro 5. Critérios de internamento de doentes com PAC.

Na PAC a cinesiterapia respiratória não está


indicada e a manipulação da criança deve ser O antibiótico de primeira linha para tra-
mínima. tamento de PAC bacteriana é a amoxicilina,
A antibioterapia por via oral é segura e efi- exceto quando há forte suspeita inicial de Mp,
caz, sendo a recomendada em primeira linha. Chlamydophila pneumoniae ou outro gérmen es-
A utilização da via endovenosa reserva-se para pecífico e potencialmente mais agressivo (i.e. Sa).
casos em que a criança apresente um quadro de A dose de amoxicilina deve ser elevada (80
sépsis, pneumonia complicada ou incapacidade a 90 mg/kg/dia) para ser eficaz contra os pneu-
de absorção oral (vómitos). mococos com resistência intermédia à penicilina.
A escolha do antibiótico, quando é decidida A duração do tratamento é em geral de sete
a sua prescrição, deve ter também em linha de a dez dias. Nos casos de PAC grave ou complicada
conta o padrão esperado de sensibilidade aos podem ser necessários períodos de antibioterapia
antimicrobianos já que raramente o agente etio- mais prolongados.
lógico é identificado. No quadro 6 especifica- A terapêutica antiviral com o oseltamivir
-se os esquemas terapêuticos recomendados por (inibidores da neuraminidase) pode ser conside-
grupo etário. rada em alguns casos de infeção por influenza. As
CAPÍTULO 19. INFEÇÕES DAS VIAS RESPIRATÓRIAS INFERIORES 325

Idade Antibiótico de Dose, posologia Antibiótico Dose, posologia


primeira linha alternativo
1 a 3 meses Amoxicilina PO 90 mg/kg/dia, 3id Amox-clav PO 90 mg/kg/dia, 3id
Ampicilina EV 150 a 200 mg/kg/dia, 3-4id Ceftriaxone EV 50 mg/kg/dia, id
Eritromicina 40 mg/kg/dia, 4id
Claritromicina 15 mg/kg/dia, 2id
Azitromicina 10 mg/kg/dia, id
4 meses Amoxicilina PO 90 mg/kg/dia, 3id Amox-clav PO 90 mg/kg/dia, 3id
a Ampicilina EV 150 a 200 mg/kg/dia, 3-4id Ceftriaxone EV 50 mg/kg/dia, id
4 anos Flucloxacilina EV 100 mg/kg/dia, 3id
Vancomicina EV 30 mg/kg/dia, 3id
Claritromicina 15 mg/kg/dia, 2id
Azitromicina 10 mg/kg/dia, id
Superior ou Amoxicilina PO 90 mg/kg/dia, 3id Ceftriaxone EV 50 mg/kg/dia, id
igual a 5 anos Ampicilina EV 150 a 200 mg/kg/dia, 3-4id
Claritromicina 15 mg/kg/dia, 2id Flucloxacilina EV 100 mg/kg/dia, 3id
Azitromicina 10 mg/kg/dia, id Vancomicina EV 30 mg/kg/dia, 3id

id – número tomas por dia, PO – via oral, EV – via endovenosa, Amox-clav – Amoxicilina e ácido clavulânico. Adaptado de “Do we know
when, what and for how long to treat? Antibiotic therapy for pediatric community-acquired pneumonia. Pediatr Infect Dis J 2012”

Quadro 6. Esquemas de antibioterapia recomendados em crianças com PAC.

orientações atuais da DGS, publicadas em 2015 (ht- necessário controlo radiológico ou laborato-
tps://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs/orientacoes- rial em crianças previamente saudáveis e com
-e-circulares-informativas/orientacao-n-0072015- boa evolução clínica. Nas pneumonias redondas
-de-26012015.aspx) recomendam a sua utilização (condensações) e complicadas, ou em caso de
nas primeiras 48 horas após o aparecimento dos sintomas persistentes, o controlo radiológico
sintomas em casos selecionados (critérios de gravi- devera ser efetuado quatro a seis semanas após
dade clínica ou doença progressiva, em portadores a alta.
de doença crónica grave ou descompensada e em Nas crianças com PAC grave, empiema, der-
doentes internados). rame pleural complicado ou abcesso pulmonar é
O seguimento das crianças com PAC baseia- obrigatório o seu seguimento até à recuperação
-se em critérios de gravidade, nas alterações radio- clinica e radiológica total ou quase total.
lógicas, na recorrência da doença e persistência A prevenção da PAC é importante e possí-
dos sintomas. vel. Devem ser fortemente recomendadas medi-
A radiografia de tórax só necessita ser das de prevenção de contágio, como a lavagem
repetida se houver agravamento do quadro das mãos. A imunização para Hib, Bp, Sp e in-
ou perante suspeita de complicações. Não é fluenza tem revelado eficácia na diminuição da
326 PATRÍCIA MAÇÃO

incidência da PAC, devendo ser recomendada e Leitura complementar


monitorizada. Direção-Geral da Saúde. Norma no 016/2012 de 19/12/2012
O aleitamento materno, dado que se associa atualizada a 23/02/2015. Diagnóstico e Tratamento da
a menor incidência e menor gravidade da PAC, Bronquiolite Aguda em Idade Pediátrica. Direção-Geral
deve ser incentivado. da Saúde [Internet]. Disponível em: http://www.dgs.
pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-normativas.
aspx?cachecontrol=1469035919127
19.3 FACTOS A RETER Ralston S, Lieberthal A, Meissner H et al. Clinical Practice
Guideline: The Diagnosis, Management, and Prevention
As infeções do aparelho respiratório baixo of Bronchiolitis. Pediatrics 2014;134:e1474-1502.
são muito frequentes em idade pediátrica. Direção-Geral da Saúde. Norma no 019/2012 de 26/12/2012.
A BQL aguda manifesta-se tipicamente com Diagnóstico e Tratamento da Pneumonia Adquirida na
um quadro de pieira febril, sendo o VSR res- Comunidade em Idade Pediátrica. Direção-Geral da
ponsável pela maioria dos casos. O diagnóstico é Saúde [Internet]. Disponível em: https://www.dgs.pt/
clínico, não estando por rotina indicados exames directrizes-da-dgs /normas-e-circulares-normativas /
complementares. A maioria dos casos evolui sem norma-n-0192012-de-26122012.aspx
complicações, apenas com medidas de suporte Esposito S et al. Do we know when, what and for how long
para manter oxigenação e hidratação. to treat? Antibiotic therapy for pediatric community-ac-
A PAC caracteriza-se por febre e/ou sintomas quired pneumonia. Pediatr Infect Dis J 2012; 00:e78–85.
respiratórios de início recente com evidência de Watts K and Goodman D. Wheezing in infants: Bronchiolitis.
envolvimento do parênquima pulmonar. A etiolo- In: Kliegman R, Santon B, St. Geme J, Schor N, Berhman
gia varia com a idade, sendo os principais agentes R, editors. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia:
etiológicos os vírus respiratórios. O pneumococo Elsevier; 2011. p. 1456-59.
é a bactéria mais frequente em crianças. A ra- Direção-Geral da Saúde. Norma no 012/2013 de 30/07/2013 atua-
diografia do tórax pode ser útil para confirmar lizada a 28/12/2015. Prescrição de Palivizumab para Prevenção
o diagnóstico e avaliar a existência de complica- de Infeção pelo Vírus Sincicial Respiratório em Crianças de
ções. Não estão recomendados outros exames Risco Direção-Geral da Saúde [Internet]. Disponível em:
complementares em casos de gravidade ligeira http://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-
e sem necessidade de internamento. A decisão -normativas.aspx?cachecontrol=1469035854932
terapêutica deve ter em conta a idade, a clínica Lower respiratory tract infection. In: Sharland M, editors.
e os factores epidemiológicos. O antibiótico de Manual of Childhood Infections The Blue Book. Oxford:
primeira linha é a amoxicilina oral em dose Elsevier; 2011. p. 1456-59.
elevada. A maioria dos doentes é tratado em
ambulatório e evolui sem complicações.
Capítulo 20.
Doença alérgica

20
José António Pinheiro
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_20
CAPÍTULO 20. DOENÇA ALÉRGICA 329

20.1 CONTEXTO atópico e alergia alimentar nos primeiros anos


de vida, precedem o aparecimento de rino-con-
Definição de conceitos juntivite e asma na idade pré-escolar e escolar.

Hipersensibilidade: Doença alérgica:


Manifestações clínicas reprodutíveis, que sur- Manifestações da alergia nos vários órgãos-
gem com a exposição a um estímulo, em doses -alvo: brônquios (asma brônquica), nariz (rinite
toleradas por pessoas normais. alérgica), olhos (conjuntivite alérgica) ou pele
(eczema atópico, urticária, angioedema). Há mani-
Alergia: festações alérgicas simultâneas em vários órgãos
Reação de hipersensibilidade mediada por (anafilaxia, alergia alimentar, rino-conjuntivite,
um mecanismo imunológico [imunoglobulina E rino-asma).
(IgE) ou não IgE] que ocorre quando um indivíduo
geneticamente suscetível reage anormalmente a Phadiatop:
um antigénio. Teste laboratorial com conjunto de IgE es-
pecíficas usado para rastrear sensibilização a
Atopia inalantes.
Predisposição geneticamente determina-
da para produzir IgE em resposta a alergénios. Food-mix:
Hipótese higiénica: é uma teoria ambiental para Teste laboratorial com conjunto de IgE es-
explicar o aumento da prevalência das doenças pecíficas usado para rastrear sensibilização a
alérgicas nos países mais desenvolvidos e nos alimentos.
ambientes urbanos. Sugere que uma exposição
reduzida a micro-organismos (ou endotoxinas) nos Prick test:
primeiros meses e anos de vida pode contribuir Testes cutâneos de alergia através de picada
para o aumento das doenças atópicas. O ambiente com extratos alergénicos.
urbano e o estilo de vida moderno, ocidentalizado,
em que as crianças vivem em pequenos agrega- Prick-to-Prick:
dos familiares, com menor exposição a infeções, Testes cutâneos de alergia através de picada
mas mais medicadas com antipiréticos (paraceta- com o alergénio em natureza.
mol) e antibióticos, seriam fatores favorecedores
de doença alérgica. Paralelamente, haveria uma Prevenção das doenças alérgicas
redução na atividade das células T reguladoras. Várias intervenções têm sido propostas para
evitar o aparecimento da doença alérgica ou para
Marcha alérgica: travar a marcha alérgica. Muitas sem sucesso,
As crianças alérgicas desenvolvem doenças algumas com evidência: o aleitamento materno
alérgicas distintas em idades diferentes: eczema exclusivo até aos quatro meses, leites hidrolisados
330 JOSÉ ANTÓNIO PINHEIRO

de proteínas, probióticos e prebióticos, ácidos – Asma Induzida por Esforço (AIE) ou Asma
gordos ómega-3, vitamina D e antioxidantes. A Induzida por Alergénios (AIA). Com o cresci-
imunoterapia específica (SIT) para um determi- mento, as formas mistas são a regra.
nado alergénio é apontada por alguns autores Podemos então considerar o diagnóstico
como o único meio de travar a marcha alérgica, clínico de asma em Pediatria perante uma criança
evitando novas sensibilizações. que teve pelo menos três episódios de dispneia
expiratória, ou pieira, ou tosse equivalente asmá-
tica de predomínio noturno. Resposta positiva aos
20.2 DESCRIÇÃO DO TEMA broncodilatadores inalados é uma boa ajuda ao
diagnóstico. A exclusão de outras patologias com
As principais doenças alérgicas em Pediatria clínica semelhante é obrigatória, mas geralmen-
são: asma; rinite alérgica; anafilaxia; aler- te não são necessários exames complementares.
gia alimentar; alergia a fármacos; alergia a Recorde-se que o diagnóstico é clínico, o estudo
insetos; dermatite atópica; urticária e an- alergológico serve apenas para detetar a atopia.
gioedema. No lactente e no pré-escolar o diagnóstico dife-
rencial faz-se sobretudo com a broncopneumonia
20.2.1 Asma viral ou por bactérias atípicas e com o refluxo
gastro-esofágico. Raramente a fibrose quística se
Habitualmente começa antes dos dois anos apresenta como uma asma sem que haja outras
de idade, com uma bronquiolite viral. No entanto, manifestações da doença.
ao contrário desta situação de causa infeciosa, Na asma há hiperreatividade brônquica e
a criança asmática repete o mesmo quadro de inflamação crónica, mas geralmente o doente
dispneia expiratória quando inicia outro catarro não apresenta sintomas. Estes surgem nas cri-
respiratório. Não se deve usar o termo «bronquio- ses ou exacerbações – tosse, pieira, dispneia
lites de repetição» pois a bronquiolite raramente expiratória, aperto torácico. Os vírus respiratórios
se repete. Passará a designar-se Asma Induzida são os principais desencadeantes de crise em
por Vírus (AIV) e, a partir do segundo episó- todas as idades. As bactérias atípicas (Mycoplasma
dio, deverão ser usados nessas agudizações os pneumoniae e Chlamydia) raramente são respon-
broncodilatadores inalados e mesmo os corticoi- sáveis. Outros desencadeantes são os alergénios
des orais se necessário. Recordamos que estes a que o doente está sensibilizado (ácaros, pólens,
medicamentos não fazem parte da terapêutica animais domésticos) e os irritantes inespecíficos
da bronquiolite, são fármacos usados nas crises (sobretudo o fumo de tabaco). Fatores emocio-
de asma. Este fenótipo de AIV é o mais comum nais desencadeiam crise em alguns doentes que
na criança, mesmo na asma alérgica. Cerca de apresentam tosse, pieira ou mesmo dispneia com
25% das crianças apresenta sibilância recorrente o riso, o choro ou apenas stresse emocional (não
em idade pré-escolar. Raramente a doença surge confundir com a dispneia ansiosa e hiperventila-
mais tarde, com predomínio de outros fenótipos ção, que não cursam com broncospasmo). Quando
CAPÍTULO 20. DOENÇA ALÉRGICA 331

algum destes fatores predomina, permite definir primeiro medicamento a usar na crise – salbuta-
um fenótipo clínico desse doente. mol ou terbutalina, conforme o dispositivo que o
Na idade escolar e no adolescente é muito doente é portador e com o qual está familiarizado.
frequente o broncospasmo ou AIE. Em regra, todo Mesmo no SU é aconselhável o doente usar o seu
o doente asmático, quando inquirido, reconhece broncodilatador com o seu dispositivo, mas em
sintomas relacionados com o exercício físico – dor doses superiores. Quando a crise não cede a doses
ou aperto retro-esternal, dispneia, tosse ou pieira. generosas de broncodilatador, com dispositivo
A atividade física mais asmogénica consiste na e técnica adequados, teremos que combater o
corrida ao ar livre, frio e seco, sem aquecimento edema e a inflamação que se associam ao bron-
prévio e nos desportos de inverno. Os sintomas cospasmo. Associa-se um corticoide sistémico por
descritos obrigam o doente a interromper o exer- via oral – prednisolona, metilprednisolona, dexa-
cício ou a abrandar o ritmo. Raramente se recorre metasona ou deflazacort. A dose de referência
à prova de esforço em laboratório para confirmar para a prednisolona é de 1 a 2 mg/kg/dia (máximo
o diagnóstico - a clínica e a prova terapêutica 50 mg) em ciclo curto de três a cinco dias, sem
são suficientes. O professor de Educação Física, necessidade de desmame. Muito raramente se
treinador ou instrutor estará informado e o jovem recorre à via intravenosa, que não tem vantagens
sabe como e quando se automedicar – em regra sobre a via oral, exceto em casos de intolerância
com um broncodilatador inalado, quinze minutos ou recusa. Durante o ciclo de corticoide oral, os
antes do esforço. O inalador estará sempre dis- broncodilatadores são mantidos na dose habitual.
ponível. Quando o broncodilatador pré-esforço Os broncodilatadores inalados mais usados são os
não é suficiente, recorre-se a medicação diária agonistas dos recetores beta (β2) de curta duração
preventiva com corticoide inalado ou antagonista de ação (SABA) - salbutamol (pressurizado ou em
dos leucotrienos. pó) e a terbutalina (apenas disponível em pó).
O tratamento da crise de asma é iniciado O formoterol, agonista beta de longa duração
precocemente, logo que surge o primeiro sinto- (LABA) pelo seu início de ação igualmente rápido,
ma – um aperto torácico, como vimos, ou ape- será uma alternativa nos doentes que já o usam
nas tosse, irritativa, com agravamento noturno. em terapêutica de fundo, preventiva. O brometo
A dispneia expiratória pode traduzir-se apenas de ipratrópio, anticolinérgico com reduzida ação
por um prolongamento do tempo expiratório, broncodilatadora, aumenta o efeito dos agonistas
sobretudo nos primeiros anos de idade. A pieira beta, estando indicado em segunda linha, sempre
e os correspondentes sibilos predominam na ex- em associação. A via inalatória é a via de eleição
piração. A ausência de sibilos e o apagamento do para os broncodilatadores, pois permite um tra-
murmúrio vesicular são sinais de crise grave. Num tamento tópico, com menos doses, mais rápido e
Serviço de Urgência (SU) a saturação periférica de eficaz e com menos efeitos secundários, podendo
oxigénio (SpO2) é sempre avaliada, sendo deci- administrar-se doses repetidas em curtos interva-
siva para a administração de oxigénio. Em todas los de tempo. Recorre-se a câmaras expansoras
as circunstâncias, o broncodilatador inalado é o para os inaladores pressurizados sempre que o
332 JOSÉ ANTÓNIO PINHEIRO

doente não domina a técnica de coordenação dois fármacos no mesmo inalador. Há casos exce-
mão-pulmão, como é o caso das crianças. cionais de asma grave, de difícil controlo em que,
A terapêutica de controlo da asma, pre- mesmo depois de otimizada toda a terapêutica, o
ventiva ou de fundo, baseia-se no combate aos seu cumprimento por parte do doente, a técnica
fatores desencadeantes das crises. A dessensi- inalatória e a evicção dos fatores agravantes, não
bilização alergénica (imunoterapia específica) é se consegue controlar a doença. Ponderamos en-
usada nalguns casos de asma ou outras doenças tão associar um anticorpo monoclonal anti-IgE
alérgicas mediadas por IgE. É dirigida à alergia (omalizumab) – esta terapêutica é de uso exclusivo
em si, não à doença asmática, que nem sempre em meio hospitalar, muito dispendiosa, requer
é alérgica. Muitos doentes têm a asma contro- via injetável (subcutânea) com doses periódicas
lada sem necessidade de medicamentos preven- (quinzenais ou mensais) e por tempo prolongado
tivos – raras e leves exacerbações, sem recorrer (anos). Nenhum medicamento usado na asma é
a SU, sono e atividade sem restrições, incluindo isento de efeitos secundários eventuais. Porém,
exercício físico, as provas funcionais respiratórias usando as doses e as associações preconizadas
(espirometria) não mostram um padrão obstrutivo; e respeitando as normas para cada grupo etário,
usam apenas um broncodilatador em S.O.S. e a terapêutica é segura, mesmo usada a longo
passam semanas ou meses sem deles necessitar. prazo, sem consequências futuras.
Nos casos em que a asma não está controlada ou A terapêutica inalatória é, como dissemos,
está parcialmente controlada teremos que recor- de eleição, tanto para o tratamento das crises
rer a medicamentos preventivos, de forma contí- como de manutenção. Exige domínio da técnica
nua, diária. Em primeira linha usam-se corticoides por parte do doente e da família, sendo impres-
inalados (budesonida, fluticasona). Nas crianças cindível que os profissionais de saúde façam o
em idade pré-escolar com AIV o montelucaste é ensino e verificação de erros, bastante frequentes,
uma alternativa ao corticoide inalado, podendo aliás. Não se pode prescrever um medicamento
usar-se em monoterapia ou em associação. Em inalado sem exemplificar e confirmar que o doente
todos os doentes, o controlo da asma é baseado aprendeu e colabora, testando a sua competência
em degraus terapêuticos, procurando a medica- e adaptando o dispositivo a cada grupo etário e
ção mínima que controle a doença, satisfazendo individualmente. Na idade pré-escolar usam-se os
os critérios de asma controlada descritos acima. inaladores pressurizados (metered-dose inhaler
Até atingir esse controlo, sobem-se degraus te- - pMDI) com câmara expansora. Esta tem uma
rapêuticos, aumentando as doses de corticoide máscara facial acoplada que facilita a inalação
inalado, associando antagonistas dos recetores nos primeiros anos de vida. Pelos três ou quatro
dos leucotrienos (montelucaste é o mais usado em anos a criança já consegue inalar pelo bocal da
Pediatria) ou associando agonistas dos recetores β câmara. Os pMDI contêm uma mistura do fármaco
com longa duração de ação (formoterol ou salme- com gás pressurizado, libertando-o sob a forma
terol). Nestes casos a medicação de controlo será de spray. Só no adolescente treinado poderão ser
dupla ou tripla, havendo dispositivos que contêm usados diretamente, sem câmara. A partir dos
CAPÍTULO 20. DOENÇA ALÉRGICA 333

cinco ou seis anos, a maioria das crianças aprende chegar a cinco ou dez espirros, intervalados de
a inalar medicamentos em forma de pó seco (dry alguns segundos.
Powder Inhaler-DPI) – o fármaco encontra-se em O doente coça o nariz com a palma da mão,
contentores de pó muito fino que é inalado à num movimento ascendente descrito como sau-
custa de um dispositivo com bocal, exigindo um dação alérgica, o que causa uma típica prega
fluxo inspiratório suficiente para o transportar até transversal na pirâmide nasal e um nariz arrebita-
à árvore brônquica. São muito práticos, portáteis do, com bordos grossos nas abas nasais. Quando
e os mais usados desde a idade escolar à adoles- coça sem mão, faz esgares ou caretas. O prurido
cência, incluindo adultos. Uma referência final aos do palato e da faringe provoca sons guturais e
nebulizadores, que só são usados em SU, para pigarro. À nasoscopia vê-se hipertrofia dos cor-
administrar grandes doses de broncodilatadores netos inferiores, que estão inflamados, azulados
em casos graves ou em doentes incapazes de ou pálidos, por vezes recobertos por muco filante.
usar inaladores. Junto às pálpebras inferiores há zonas violáceas ou
acastanhadas, conferindo um aspeto olheirento,
20.2.2 Rinite alérgica devido à congestão venosa da rinossinusite que
acompanha a rinite, e que é a responsável pela dor
A rinite é a doença alérgica mais prevalente. e tensão frontal e malar. As pálpebras inferiores
Coexistindo quase sempre com a asma (80% dos têm uma dupla prega (pregas de Dennie-Morgan)
doentes asmáticos têm rinite como co-morbilida- que confere uma facies atópica caraterística.
de) pode existir de forma isolada, constituindo Na idade pré-escolar a rinite associa-se ge-
por si um fator de risco para o desenvolvimento ralmente a otite seromucosa.
de asma (cerca de 30% dos doentes com rinite A rinoconjuntivite alérgica (RCA) pode ser
têm ou virão a ter asma). Uma rinite não tratada sazonal (polínica) ou perene, dependendo da ex-
ou mal controlada pode ser responsável por uma posição ao alergénio. Nas alergias indoor (ácaros,
asma mal controlada. Afeta também a qualidade animais domésticos) havendo um contacto diário,
de vida e a escolaridade. peranual, com os alergénios, o componente obs-
Os sintomas são característicos – prurido, trutivo costuma ser predominante. Nas alergias
obstrução ou congestão, rinorreia e espirros. outdoor (pólens) o contacto é sazonal e tornam-
O prurido é referido ao nariz, olhos, faringe, pa- -se mais evidentes a rinorreia, espirros e prurido.
lato mole e por vezes aos ouvidos. A obstrução Com base na duração de sintomas, classifica-se
nasal compromete o fluxo, obrigando a respiração como persistente ou intermitente (mais/menos de
bucal, sobretudo noturna, geralmente acompa- quatro dias por semana ou mais/menos de qua-
nhada de roncopatia ou mesmo apneia do sono. tro semanas por ano); ou episódica (i.e. contacto
A rinorreia é serosa ou seromucosa, anterior e esporádico com um alergénio).
posterior (provocando um fungar repetido ou Os anti-histamínicos (AH) melhoram sobre-
uma tosse produtiva crónica). As salvas de espirros tudo o prurido, tendo algum efeito sobre a rinor-
ou crises esternutatórias são típicas, podendo reia e os espirros, mas não sobre a obstrução.
334 JOSÉ ANTÓNIO PINHEIRO

Usam-se sobretudo por via oral e apenas estão vago. O diagnóstico é clínico e o contacto recente
indicados os AH não-sedativos, de segunda ge- com um alergénio conhecido para aquele doente
ração (loratadina e desloratadina; cetirizina e le- facilita a decisão. A terapêutica é de emergência,
vocetirizina; ebastina; rupatadina). São úteis nas mesmo em caso de dúvida – administra-se adre-
agudizações, de acordo com a exacerbação dos nalina por via intramuscular na face externa
sintomas, mas também em períodos prolongados da coxa, na dose de 0,01 mg/kg (a dose máxima
(meses). Melhoram também os sintomas oculares. pediátrica é de 0,3 mg). A adrenalina, também
A azelastina é um AH tópico, nasal ou ocular chamada epinefrina, tem uma concentração de
atuando por ação local nos mesmos sintomas 1mg/ml (milesimal) pelo que usamos na prática
que os AH orais. a dose de 0,01ml/kg (ou seja 0,1ml por cada 10
Os corticoides tópicos (budesonida, flutica- kg de peso). Esta dose é repetida passados dez
sona, mometasona) atuam sobre todos os com- minutos na ausência de resposta. Em caso de cho-
ponentes da rinite, sendo imprescindíveis quando que ou paragem cárdio-respiratória procede-se às
há grande hipertrofia dos cornetos, obstrução medidas de reanimação. É necessário canalizar
e redução dos fluxos nasais. Devem usar-se por uma veia e, em caso de broncospasmo, administrar
períodos prolongados (várias semanas) sendo se- broncodilatadores por via inalatória. Os corticoides
guros em Pediatria. Porém a técnica de adminis- sistémicos e os anti-histamínicos só são usados
tração e a aceitação em idade pré-escolar limitam depois de tomadas estas medidas, já que têm um
o seu uso nos primeiros anos de vida. início tardio de ação.
Os principais alergénios causadores de anafi-
20.2.3 Anafilaxia laxia são os alimentos – proteínas do leite de vaca,
frutos de casca rija, frutos frescos, amendoim,
É uma reação alérgica sistémica grave, de peixe, marisco e ovo. A anafilaxia a medicamentos
hipersensibilidade imediata, que ocorre minutos ou é rara e às vacinas é excecional.
poucas horas após exposição a um alergénio, tem A alergia ao látex pode causar anafilaxia,
início súbito e sintomas progressivos, podendo che- sobretudo no bloco operatório, quando se desco-
gar ao choque e, potencialmente, ser fatal. Afeta nhece que o doente é alérgico. É mais frequente
vários órgãos em simultâneo. Na pele e mucosas em doentes submetidos a várias intervenções ci-
cursa com prurido, urticária e angioedema labial rúrgicas e nos doentes com espinha bífida (alga-
e palpebral, raramente da língua e da úvula. A liações repetidas). Obriga à evicção de qualquer
hipotensão, hipotonia e a síncope são frequentes, contacto com objetos de borracha, à preparação
devendo ser feito o diagnóstico diferencial com prévia de uma sala de operações “latex-free” e à
síncope vasovagal. Podem associar-se sinais res- exclusão de alergia cruzada a alguns alimentos –
piratórios (pieira, dispneia, estridor) ou digestivos castanha, kiwi, banana, pêssego, abacate, entre
(vómitos, cólicas e diarreia). Nos primeiros anos outros – conhecida como síndrome látex-frutos.
de vida deve valorizar-se a má impressão clínica – Uma forma rara e poucas vezes reconhecida
criança hipotónica e hiporreativa, pálida, com olhar de anafilaxia é a Food Dependent Exercise Induced
CAPÍTULO 20. DOENÇA ALÉRGICA 335

Anaphylaxis (FDEIA). Como o nome indica trata-se antecedentes pessoais é usual relatar-se um con-
de uma anafilaxia que surge durante o esforço tacto precoce com PLV nos primeiros dias de vida,
físico mas que está dependente de um alergénio quase sempre um “biberão de leite adaptado
alimentar previamente ingerido, a que o doente na Maternidade” responsável pela sensibilização
em geral está sensibilizado. A anafilaxia só ocorre (priming). O mecanismo imunológico nestes casos
na sequência ingestão-exercício, pelo que a pre- é mediado por IgE, como se pode evidenciar por
venção passa pelo afastamento temporal dos dois testes epicutâneos (Prick test ou Prick-to-Prick)
fatores desencadeantes (não praticar esforços nas ou pela elevação das IgE séricas específicas das
duas ou três horas que se seguem à ingestão do proteínas do leite de vaca (caseína, beta-lactoglo-
alimento identificado, em regra o trigo e outros bulina, alfa-lactalbumina, as principais). Quando
cereais, leguminosas ou leite). a APLV não é mediada por IgE as manifestações
Todo o doente com risco ou com passa- clínicas são mais inespecíficas – má progressão
do de anafilaxia deve fazer-se acompanhar de ponderal, diarreia, hematoquésia (por retocolite),
auto-injetor de adrenalina, sendo a família e os irritabilidade e cólicas abdominais. Em caso de
professores informados das indicações e técnica dúvida, a prova de provocação oral (PPO) após
de administração. Na escola ou infantário haverá um período de exclusão de PLV na dieta será
um auto-injetor acessível. sempre o meio gold standard para o diagnóstico.
O tratamento da APLV consiste na substituição
20.2.4 Alergia alimentar do aleitamento por fórmulas com proteínas ex-
tensamente hidrolisadas (eHF); excecionalmente
Trata-se de uma reação imunológica, em recorre-se a fórmulas de aminoácidos. A APLV
regra mediada por IgE, a uma proteína alimentar pode ainda surgir num lactente amamentado,
específica. Leite de vaca, ovo, peixe, frutos frescos, sendo as PLV veiculadas pelo leite materno (LM).
frutos de casca rija, mariscos, amendoim são os É uma situação rara, estando indicada a exclusão
alimentos mais vezes implicados. de produtos lácteos da dieta materna, mantendo
A alergia às proteínas do leite de vaca o LM. A aquisição de tolerância é testada se-
(APLV) representa cerca de metade das alergias quencialmente pela monitorização das IgE séricas
alimentares em idade pediátrica. É uma alergia específicas, pelos testes cutâneos e finalmente
transitória na grande maioria dos casos, visto que por uma PPO negativa. Recordamos que qualquer
80 % das crianças adquire tolerância nos primei- doente com APLV não pode ingerir nenhum ali-
ros três anos de idade. Só em 20% dos casos a mento que contenha proteína de LV ou de outros
alergia persiste. A apresentação clínica habitual é leites não testados (i.e. de cabra). As fórmulas à
uma urticária que surge nos primeiros meses de base de proteína de soja são uma alternativa nos
vida, após a ingestão de leite de fórmula ou papa casos em que há uma alergia persistente mediada
láctea num lactente exclusivamente alimentado por IgE, mas deverá sempre ser feita uma prova
com leite materno. Por vezes há angioedema ou de tolerância prévia em meio hospitalar. Como
vómitos associados, raramente anafilaxia. Nos é evidente, um doente com APLV pode ingerir
336 JOSÉ ANTÓNIO PINHEIRO

alimentos contendo lactose (açúcar do leite). A A anafilaxia é um risco sempre presente


leitura sistemática dos rótulos dos alimentos é devido à ingestão acidental do alimento em causa,
obrigatória, para evitar acidentes com alergénios pelo que todos estes doentes devem receber ins-
ocultos. A confeção em casa, nas creches e esco- truções para tratamento de emergência, fazendo-
las, nas festas de aniversário e convívios, ou em -se acompanhar de um auto-injetor de adrenalina
qualquer estabelecimento de restauração, tem (Anapen®). Até à adolescência serão os familiares
que ser investigada para cada refeição. ou cuidadores a administrar a adrenalina por via
A alergia ao ovo é a segunda mais frequen- intramuscular.
te em Pediatria, depois da APLV, representando
cerca de 25% das alergias alimentares da criança, 20.2.5 Alergia a fármacos
sendo também transitória na maioria dos casos.
A ovoalbumina e ovomucoide da clara são as Em Pediatria, a suspeita de alergia a anti-
principais proteínas responsáveis. A gema é me- bióticos β lactâmicos é frequentemente evocada,
nos alergénica, mas deve ser também testada. mas apenas se confirma em menos de 10% dos
Os testes cutâneos Prick-to-Prick são o melhor casos. Muitas crianças são rotuladas de “alergia
método de diagnóstico, pois permitem testar à penicilina” ou “alergia à amoxicilina” porque
separadamente a reatividade a ovo cru e cozido, desenvolveram um exantema durante uma doen-
à clara e à gema. A alergia mais persistente e ça infeciosa, geralmente viral, para a qual foram,
mais perigosa é à clara crua. Em casos de dúvidas erradamente, medicadas com um antibiótico.
ou para confirmar a aquisição de tolerância a Em 90% dos casos trata-se de facto de exan-
qualquer dos componentes, a PPO está indica- temas virais, específicos ou inespecíficos, por
da, sempre feita em meio hospitalar. As crianças vezes resultantes de uma interação vírus-fármaco.
com alergia confirmada ao ovo não devem ser Mesmo que a história evoque esse diagnóstico,
vacinadas contra a gripe nem febre amarela, mas há que esclarecer essa suspeita de alergia. Na
devem receber normalmente a vacina do sarampo, grande maioria dos casos, basta uma PPO com
constituinte da VASPR. Só em casos com história o fármaco, realizada com a criança saudável e
prévia de uma reação grave ao ovo, se justifica a sempre iniciada em meio hospitalar (Hospital
administração da vacina em meio hospitalar. Tal de Dia). Sob vigilância clínica são administradas
como em outras alergias alimentares, o doente doses orais fracionadas do fármaco suspeito,
e a família devem ser educados para os riscos de tendo disponível adrenalina para uma anafilaxia
acidente com alergénios ocultos, questionando imprevisível. Se não houver qualquer sinal ou
a composição de todos os alimentos suspeitos. sintoma nas primeiras horas, a criança poderá
Ao contrário da alergia ao leite e ao ovo aci- continuar a PPO e a vigilância fora do hospital,
ma descritas, geralmente transitórias, as alergias a alertando a família para os sinais de alarme e a
peixe e mariscos, frutos de casca rija, amendoim, atitude a tomar. Não havendo reação ao fim do
frutos frescos e cereais costumam persistir para tempo e das doses programadas, exclui-se aler-
toda a vida. gia. Em cerca de 10% dos casos surgem sintomas
CAPÍTULO 20. DOENÇA ALÉRGICA 337

ligeiros, geralmente exantemas maculopapulares como lesão residual. A criança ou adolescen-


não acompanhados de outros sinais de gravidade te surge com lesões nas várias fases em regra
– nestes doentes confirma-se então a alergia e com história de meses ou anos de recorrência.
recomendam-se fármacos alternativos (no caso A face é quase sempre poupada, tal como o
de alergia à amoxicilina, sugere-se o cefuroxi- couro cabeludo, nunca há lesões nas palmas,
me axetil). Somente nos casos com história de plantas ou mucosas – o que é uma boa aju-
anafilaxia ou de reação imediata está indicado o da no diagnóstico diferencial. Não são lesões
doseamento de IgE específica ou testes cutâneos graves, mas o prurido é muito incómodo e di-
antes de avançar para uma PPO. Uma forma fícil de combater, as lesões são inestéticas, de
rara de hipersensibilidade a fármacos, em geral difícil prevenção, o tratamento pouco eficaz.
a amoxicilina e cefaclor, é a Doença do Soro- Aconselha-se evitar a exposição aos insetos (de-
Like (DSL). Mediada por imunocomplexos, o seu sinfestação dos animais, inseticidas ou mosqui-
diagnóstico é meramente clínico, baseado num teiros nos dormitórios, cobrir as partes do corpo
exantema que surge sete a quinze dias após o expostas, repelentes pontualmente). Nas lesões
início da medicação, com características de eri- com grande componente inflamatório, aplicar
tema multiforme ou de vasculite e sempre acom- gelo numa fase inicial e um creme de corticoide,
panhado de artrite ou artralgias, de predomínio que será associado a um antibiótico tópico em
nos membros inferiores, causando impotência caso de impetiginização. Os anti-histamínicos
funcional. Não é necessário (nem ético) subme- tópicos não estão indicados e os orais são pou-
ter o doente a uma PPO nestes casos de DSL. co eficazes. Cortar as unhas é recomendável.
De referir que uma PPO estará também contra- A tolerância à picada dos insetos pode demorar
-indicada em casos de anafilaxia ou toxidermia vários anos a adquirir-se.
grave (Necrólise Epidérmica Tóxica, Síndrome de A alergia à picada de himenópteros
Stevens-Johnson). (abelhas e vespas) é rara em Pediatria. O ha-
bitual é uma pápula local dolorosa que deve
20.2.6 Alergia a insetos ser apenas tratada com a aplicação de gelo.
Nos casos de verdadeira alergia, o doente apre-
A Hipersensibilidade a picada de senta sinais loco-regionais e/ou sintomas e sinais
insetos (prurigo estrófulo) é a dermatite de anafilaxia – hipotensão, bradicardia, sinais
pediátrica mais comum. Consiste em reações neurológicos, respiratórios ou digestivos, an-
cutâneas localizadas à picada de pulgas, melgas gioedema. Está indicado o recurso imediato a
e mosquitos, sobretudo nos meses quentes e adrenalina intramuscular e a partir do primeiro
predominando nas pernas, braços e cintura. episódio deve ser portador de auto-injetor de
A lesão inicial é uma urticária papular de um ou adrenalina (Anapen®). Será também orientado
dois cm rosada e muito pruriginosa, que evo- para consulta diferenciada onde estará indicada
lui para uma vesícula; esta rompe, forma uma terapêutica de dessensibilização a veneno de
crosta, que ao cair deixa uma mácula acrómica himenópteros.
338 JOSÉ ANTÓNIO PINHEIRO

Leitura complementar
GINA - Global Initiative for Asthma. www.ginasthma.org.
ARIA - Allergic Rhinitis and its Impact on Asthma. www.
whiar.org.
PRACTALL - Practical Allergy - consensus report. Allergy 2008;
63:5-34 .
ICON - International consensus on pediatric asthma. Allergy
2012; 67: 976–997.
Norma DGS nº 016 de 27/09/2011, atualizada a 14/6/2012
www.dgs.pt.
Manual para a abordagem da sibilância em idade pediátrica
www.dgs.pt.
Afiliação
de Autores
GUIOMAR OLIVEIRA JORGE SARAIVA

Professora associada com agregação da Faculdade de Professor Catedrático Convidado da Faculdade de


Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). Regente Medicina da Universidade de Coimbra desde 2008,
das Unidades curriculares obrigatórias de Pediatria I Diretor do Departamento Pediátrico desde 2010 e
e II e Diretora da Clínica Universitária de Pediatria Diretor do Serviço de Genética Médica do Centro
da FMUC. Hospitalar e Universitário de Coimbra desde 1999,
Licenciatura em medicina na FMUC em 1984, especia­ com licenciatura em Medicina pela Faculdade de
lista em pediatria desde 1992, atualmente Assistente Medicina da Universidade de Coimbra, 1985, 19 valo-
Hospitalar Graduada Sénior de Pediatria do Hospital res, Diploma in Clinical Genetics (1991, Universidade
Pediátrico do Centro Hospitalar e Universitário de de Londres, Reino Unido), Mestrado em Genética
Coimbra (HP - CHUC). Coordenadora da Unidade Médica (Universidade do Porto), doutoramento em
de Neurodesenvolvimento e autismo do Centro de Medicina (Genética) (1995, Faculdade de Medicina da
Desenvolvimento da Criança e do Centro de Investigação Universidade de Coimbra) e agregação em Medicina
e Formação Clínica do HP-CHUC. Presidente eleita (2002, Faculdade de Medicina da Universidade de
da Sociedade de Pediatria do Neurodesenvolvimento Coimbra).
da Sociedade Portuguesa de Pediatria (2008 a 2013; Especialista em Pediatria (1993) e Genética Médica (1993),
2017-2019), e é desde 2009 Coordenadora Regional consultor em Pediatria (1999) e Genética Médica (2006)
da Zona Centro da Direção do Colégio de Pediatria e Assistente Graduado Sénior desde 2009. Foi presidente
Médica da Ordem dos Médicos. da Sociedade Portuguesa de Genética Humana (1999 a
Publicou 3 capítulos de livros, mais de 100 artigos 2001), do Colégio de Genética Médica da Ordem dos
científicos, destes 60 indexados na Web of Knowledge Médicos (2009 a 2015) e da Comissão Nacional da Saúde
do Institute for Scientific Information (Web of Science) Materna da Criança e do Adolescente (2014 a 2016).
com mais de 2600 citações, com h-index-19. Publicou 1 livro, 9 capítulos de livro e mais de 100
artigos científicos dos quais 58 indexados na Web of
Knowledge do Institute for Scientific Information (Web
of Science) com mais de 1.000 citações.
Ana Brett Alexandra Paul
anacbrett@gmail.com alexandra.paul@chuc.min–saude.pt
Mestrado em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Infeciologia pediátrica Pediatra – Oncologia Pediátrica
Assistente Hospitalar de Pediatria. Assistente Hospitalar de Pediatria
Serviço de Urgência e Unidade de Infeciologia Serviço de Oncologia Pediátrica, Hospital Pediátrico
Pediátrica do Hospital Pediátrico – Centro – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente Convidada  de Pediatria da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra

Andrea Dias António Jorge Correia


sofia.andrea@gmail.com ajorgemc@sapo.pt
Mestrado em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Cuidados Intensivos Pediátricos Pediatra – Nefrologia Pediátrica
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar Graduado Sénior de Pediatria
Serviço de Cuidados Intensivos Pediátricos, Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico
Hospital Pediátrico – Centro Hospitalar – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
e Universitário de Coimbra Assistente Convidado de Pediatria da Faculdade de
Assistente Convidada  de Pediatria da Faculdade Medicina da Universidade de Coimbra (1984 – 1995)
de Medicina da Universidade de Coimbra

Alexandra Oliveira António Pires


alexandraoliveira@chuc.min–saude.pt pires1961@gmail.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Doutoramento em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra.
Pediatra – Neurodesenvolvimento Pediatra e Cardiologista Pediátrico
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar Graduado
Centro de Desenvolvimento da Criança, de Cardiologia Pediátrica
Hospital Pediátrico – Centro Hospitalar Serviço de Cardiologia Pediátrica Hospital Pediátrico
e Universitário de Coimbra – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente Convidada de Pediatria da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra
Cândida Cancelinha Clara Gomes
candidacancelinha@gmail.com clara.gomes@chuc.min–saude.pt
Mestrado em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Pediatria Geral Pediatra – Nefrologia Pediátrica
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Serviço de Pediatria Médica, Hospital Pediátrico Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente Convidada de Pediatria da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra

Carla Chaves Loureiro Conceição Robalo


carlachavesloureiro@gmail.com c.robalo@chuc.min–saude.pt
Mestrado em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Alergologia pediátrica Neurologista – Neuropediatria
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar Graduada de Neurologia
Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico Serviço do Centro de Desenvolvimento da
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra Criança do Hospital Pediátrico – Centro
Tutora do Estágio de Saúde Infantil do 6º ano do Hospitalar e Universitário de Coimbra
Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra.

Carla Pinto Cristina Alves


carla.regina.pinto@gmail.com cristina.alves@me.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Cuidados Intensivos Pediátricos Masters of Science, Universidade de Toronto
Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria Ortopedista  – Ortopedia Infantil 
Serviço de Cuidados Intensivos Pediátricos, Assistente Hospitalar de Ortopedia
Hospital Pediátrico – Centro Hospitalar Serviço de Ortopedia Pediátrica do
e Universitário de Coimbra Hospital Pediátrico – Centro Hospitalar
Assistente Convidado  de Pediatria da Faculdade e Universitário de Coimbra
de Medicina da Universidade de Coimbra
Cristina Pereira Gustavo Januário
cristina.d.pereira@gmail.com gjanuario@hotmail.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Neuropediatria Pediatra – Infeciologia Pediátrica
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar de Pediatria
Serviço do Centro de Desenvolvimento da Serviço de Urgência e Unidade de Infeciologia
Criança do Hospital Pediátrico – Centro Pediátrica do Hospital Pediátrico – Centro
Hospitalar e Universitário de Coimbra Hospitalar e Universitário de Coimbra 
Assistente Convidado de Pediatria da Faculdade Assistente Convidado de Pediatria da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra de Medicina da Universidade de Coimbra

Fernanda Rodrigues Isabel Gonçalves


rodriguesfmp@gmail.com isabelgoncalves@chuc.min–saude.pt
Doutoramento em Medicina Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Pediatra – Infeciologia Pediátrica Medicina da Universidade de Coimbra
Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria Pediatra – Hepatologia Pediátrica
Serviço de Urgência e Unidade de Infeciologia Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Pediátrica do Hospital Pediátrico – Centro Unidade de transplantação hepática pediátrica
Hospitalar e Universitário de Coimbra  e de adultos, Hospital Pediátrico – Centro
Professora Auxiliar Convidada da Faculdade Hospitalar e Universitário de Coimbra
de Medicina da Universidade de Coimbra

Guiomar Oliveira Jeni Canha


guiomar@chuc.min–saude.pt jenicanha@hotmail.com
Doutoramento e Agregação em Medicina, Faculdade Doutoramento em Medicina, Faculdade de
de Medicina da Universidade de Coimbra. Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Neurodesenvolvimento Assistente Hospitalar Graduada Sénior de Pediatria
Assistente Hospitalar Graduada Sénior de Pediatria. Pediatra
Serviço do Centro de Desenvolvimento Professora Associada de Pediatria da Faculdade
da Criança, Hospital Pediátrico – Centro de Medicina da Universidade de Coimbra
Hospitalar e Universitário de Coimbra.
Professora associada convidada com
agregação de Pediatria da Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
José António Pinheiro Jorge Saraiva
japinheiro@chuc.min–saude.pt j.saraiva@chuc.min–saude.pt
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Medicina Doutoramento e Agregação em Medicina, Faculdade
de Coimbra da Universidade de Coimbra de Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Alergologia pediátrica Pediatra e Geneticista Médico
Assistente Hospitalar Graduado de Pediatria Assistente Hospitalar Graduado Sénior de Pediatria
Serviço de Pediatria Ambulatória do Serviço de Genética Médica, Hospital Pediátrico
Hospital Pediátrico, Centro Hospitalar – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
e Universitário de Coimbra Professor Catedrático convidado de Pediatria da
Assistente Convidado de Pediatria da Faculdade Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra
de Medicina da Universidade de Coimbra

José Boavida Letícia Ribeiro


boavida@chuc.min–saude.pt e leticia.ribeiro@chuc.min–saude.pt
jeboavida@gmail.com Doutoramento em Medicina.
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Assistente Hospitalar Graduada
Medicina da Universidade de Coimbra Sénior de Hematologia.
Pediatra – Neurodesenvolvimento Serviço de Hematologia, Centro Hospitalar
Assistente Hospitalar Graduado de Pediatria e Universitário de Coimbra
Serviço do Centro de Desenvolvimento
da Criança, Hospital Pediátrico – Centro
Hospitalar e Universitário de Coimbra

Carlos Cabral Peixoto Lia Gata


jccpeixoto@gmail.com liagata3@gmail.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra.
Pediatra – Neonatologia e Cuidados Pediatra – Urgência Pediátrica
Intensivos Pediátricos Assistente Hospitalar de Pediatria
Assistente Hospitalar Graduado de Pediatria Serviço de Urgência, Hospital Pediátrico – Centro
Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico Hospitalar e Universitário de Coimbra.
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Luísa Diogo Mónica Oliva
diogo.luisa@gmail.com monicaolivamail@gmail.com
Doutoramento em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra. Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Doenças Hereditárias do Metabolismo Pediatra – Pediatria Geral
Assistente Hospitalar Graduada Sénior de Pediatria Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Serviço do Centro de Desenvolvimento Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico
da Criança, Hospital Pediátrico – Centro – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Hospitalar e Universitário de Coimbra Assistente Convidada de Pediatria da Faculdade de
Professora Auxiliar Convidada de Bioquímica da Medicina da Universidade de Coimbra (2006 – 2014)
Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra Tutora do Estágio de Saúde Infantil do 6º ano do
Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra

Maria Francelina Lopes Mónica Vasconcelos


mflopes@fmed.uc.pt mvasconcellos@netcabo.pt
Doutoramento em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra. Medicina da Universidade de Coimbra
Assistente Hospitalar Graduada Mestre em Medicina do Sono: Fisiologia e Medicina.
de Cirurgia Pediátrica Pediatra – Neuropediatria
Serviço Cirurgia Pediátrica, Hospital Pediátrico – Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra Serviço de Centro de Desenvolvimento
Professora Auxiliar Convidada de Cirurgia da Criança, Hospital Pediátrico – Centro
Experimental da Faculdade de Medicina Hospitalar e Universitário de Coimbra
da Universidade de Coimbra Tutora do Estágio de Saúde Infantil do 6º ano do
Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra

Manuel João Brito Núria Madureira


mjbrito@chuc.min–saude.pt nuriamadureira@gmail.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatria – Oncologia Pediátrica Pediatra – Competência em Medicina do Sono
Assistente Hospitalar Graduado de Pediatria Assistente Hospitalar de Pediatria
Serviço de Oncologia Pediátrica, Hospital pediátrico Serviço de  Pediatria Médica do Hospital Pediátrico
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Patrícia Mação Raquel Soares
patriciamacao@gmail.com araquelcs@yahoo.com
Mestrado em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Urgência pediátrica Pediatra – Pediatria Geral
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar de Pediatria
Serviço de Urgência, Hospital Pediátrico – Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente Convidado de Pediatria da Faculdade Assistente Convidada de Pediatria da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra de Medicina da Universidade de Coimbra

Paula Estanqueiro Ricardo Ferreira


paulae@chuc.min–saude.pt ricardo.ferreira@chuc.min–saude.pt
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Reumatologia Pediátrica Pediatra – Gastroenterologia e Nutrição Pediátrica
Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria Assistente Hospitalar Graduado de Pediatria
Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Serviço de Pediatria Médica do Hospital Pediátrico
Pediátrico – Centro Hospitalar e – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Universitário de Coimbra.
Tutor do Estágio de Saúde Infantil do 6º ano do
Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra

Paulo Fonseca Rita Cardoso


pediatrapaulofonseca@gmail.com rita.cardoso@chuc.min–saude.pt
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Medicina do Adolescente Pediatra – Endocrinologia Pediátrica
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente convidado de Pediatria da Faculdade de Assistente convidada de Pediatria da Faculdade
Medicina da Universidade de Coimbra (2009–2014) de Medicina da Universidade de Coimbra
Página deixada propositamente em branco
Sónia Lemos
Sonia.lemos@chuc.min–saude.pt
Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Alergologia pediátrica
Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Tutora do Estágio de Saúde Infantil do 6º ano do
Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra.

Susana Almeida
susana.almeida.coimbra@gmail.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Gastroenterologia e Nutrição Pediátrica
Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Serviço de  Pediatria Médica do Hospital Pediátrico
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

Tabita Maia
Tabita.Maia@chuc.min–saude.pt
Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
Assistente Hospitalar de Hematologia Clínica
Unidade de Eritropatologia e Distúrbios do Ferro
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente Convidada da Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
CIÊNCIAS
DA SAÚDE
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
COIMBRA UNIVERSITY PRESS

VOL. II

LIÇÕES DE
PEDIATRIA
GUIOMAR OLIVEIRA
JORGE SARAIVA
COORDENAÇÃO
Página deixada propositamente em branco
LIÇÕES
DE
PEDIATRIA
VOLUME II

GUIOMAR OLIVEIRA
JORGE SARAIVA
COORDENAÇÃO

HENRIQUE CARMONA DA MOTA


JENI CANHA
PREFÁCIO

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


COIMBRA UNIVERSITY PRESS
COLEÇÃO SAÚDE

TÍTULO TITLE APOIO TÉCNICO TECHNICAL SUPPORT


Lições de Pediatria Maria José Alves
Pediatrics Lessons

COORDENADORES COORDINATORS AUTORES AUTHORS


Guiomar Oliveira Ana Brett
Jorge Saraiva
Andrea Dias
PREFÁCIO PREFACE Alexandra Oliveira
Henrique Carmona da Mota Alexandra Paul
Jeni Canha
António Jorge Correia
EDITOR PUBLISHER António Pires
Imprensa da Universidade de Coimbra Cândida Cancelinha
Coimbra University Press Carla Chaves Loureiro

CONTACTO CONTACT Carla Pinto


www.uc.pt/imprensa_uc Clara Gomes
imprensa@uc.pt Conceição Robalo
Cristina Alves
VENDAS ONLINE ONLINE SALES
http://livrariadaimprensa.uc.pt Cristina Pereira
Fernanda Rodrigues
COORDENAÇÃO EDITORIAL EDITORIAL COORDINATION
Guiomar Oliveira
Imprensa da Universidade de Coimbra
Gustavo Januário
INFOGRAFIA INFOGRAPHICS Isabel Gonçalves
Carlos Costa Jeni Canha

EXECUÇÃO GRÁFICA GRAPHIC EXECUTION José António Pinheiro


CreateSpace José Boavida
José Carlos Peixoto
ISBN [Vol II]
Jorge Saraiva
978-989-26-1358-1
Leticia Ribeiro
ISBN [Digital Vol I e II] Lia Gata
978-989-26-1300-0
Luisa Diogo
DOI [Vol I e II] Maria Francelina Lopes
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0 Maria Helena Estevão
Manuel Brito
DEPÓSITO LEGAL LEGAL DEPOSIT
432628/17 Mónica Oliva
Mónica Vasconcelos
Núria Madureira
Patricia Mação
Paula Estanqueiro
Paulo Fonseca
Raquel Soares
Ricardo Ferreira
Rita Cardoso
Sónia Lemos
© OUTUBRO 2017
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA Susana Almeida
COIMBRA UNIVERSITY PRESS Tabita Magalhães Maia
LIÇÕES
DE
PEDIATRIA
VOLUME II

GUIOMAR OLIVEIRA
JORGE SARAIVA
COORDENAÇÃO

HENRIQUE CARMONA DA MOTA


JENI CANHA
PREFÁCIO

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


COIMBRA UNIVERSITY PRESS
SUMÁRIO

Prefácio ................................................................................................................................................. 9
Jeni Canha e H. Carmona da Mota

VOLUME I
1. Introdução à Pediatria no contexto do ensino médico................................................................. 11
Jorge Saraiva
2. A organização da rede de cuidados de Saúde Infantil e Juvenil em Portugal............................ 21
José Carlos Peixoto
3. Programa nacional de intervenção precoce................................................................................... 33
José Boavida
4. História Clínica................................................................................................................................. 41
Guiomar Oliveira
5. Medicamentos mais utilizados em pediatria e iatrogenia............................................................ 53
Carla Chaves Loureiro
6. A genética em Pediatria.................................................................................................................. 63
Jorge Saraiva
7. Meios complementares de diagnóstico em Pediatria.................................................................... 71
Cândida Cancelinha
8. Suporte básico e noções de suporte avançado de vida pediátrico.............................................. 87
Carla Pinto
9. Neonatologia..................................................................................................................................115
José Carlos Peixoto e Carla Pinto
10. Alimentação e suplementos........................................................................................................ 157
Mónica Oliva
11. Crescimento e os seus problemas................................................................................................ 171
Raquel Soares
12. Neurodesenvolvimento e comportamento.................................................................................211
Guiomar Oliveira
13. Sono normal e problemas de sono............................................................................................. 233
Núria Madureira e Maria Helena Estevão
14. Adolescência................................................................................................................................. 245
Paulo Fonseca
15. O Programa Nacional de Vacinação e outras Vacinas................................................................ 259
Fernanda Rodrigues
16. Febre.............................................................................................................................................. 273
Alexandra Oliveira
17. Exantemas..................................................................................................................................... 279
Alexandra Oliveira
18. Infeções das vias respiratórias superiores................................................................................... 295
Gustavo Januário
19. Infeções das vias respiratórias inferiores.................................................................................... 315
Patricia Mação
20. Doença alérgica........................................................................................................................... 327
José António Pinheiro
Afiliação de Autores.......................................................................................................................... 339

VOLUME II
21. Infeção urinária.............................................................................................................................. 11
Clara Gomes
22. Vómitos........................................................................................................................................... 25
Susana Almeida
23. Diarreia aguda e crónica............................................................................................................... 35
Susana Almeida
24. Dor abdominal aguda e crónica................................................................................................... 49
Ricardo Ferreira
25. Causas cirúrgicas de dor abdominal............................................................................................. 55
Maria Francelina Lopes
26. Patologia frequente em cirurgia de ambulatório........................................................................ 61
Maria Francelina Lopes
27. Ortopedia, variantes da normalidade e problemas frequentes................................................. 67
Cristina Alves
28. Obstipação, encoprese e enurese................................................................................................. 87
Mónica Oliva
29. Problemas dermatológicos mais comuns em Pediatria............................................................. 103
Gustavo Januário
30. Infeções da pele e dos tecidos moles......................................................................................... 127
Fernanda Rodrigues
31. Púrpuras/Vasculites...................................................................................................................... 139
Paula Estanqueiro
32. Bacteriémia e sépsis..................................................................................................................... 149
Andrea Dias
33. Meningite e meningoencefalite................................................................................................. 161
Ana Brett
34. Hematúria e proteinúria.............................................................................................................. 175
António Jorge Correia
35. Cefaleias....................................................................................................................................... 199
Mónica Vasconcelos
36. Poliúria e polidipsia......................................................................................................................211
Rita Cardoso
37. Anemias........................................................................................................................................ 219
Leticia Ribeiro e Tabita Magalhães Maia
38. Acidentes e Intoxicações............................................................................................................. 245
Lia Gata
39. Criança maltratada...................................................................................................................... 255
Jeni Canha
40. Fenómenos paroxísticos, crises epiléticas e epilepsias.............................................................. 267
Cristina Pereira e Conceição Robalo
41. Doenças cardíacas mais comuns.................................................................................................. 283
António Pires
42. Introdução às Doenças hereditárias do metabolismo............................................................... 297
Luísa Diogo
43. A criança submetida a transplante de órgãos sólidos................................................................311
Isabel Gonçalves
44. Imunodeficiências Primárias – Quando Suspeitar?.................................................................... 321
Sónia Lemos
45. Doença oncológica...................................................................................................................... 329
Manuel Brito e Alexandra Paul
Afiliação de Autores.......................................................................................................................... 353
9

P R E FÁC I O triagem das situações a ser orientadas para con-


sultas ou serviços mais diferenciados.
A Pediatria, ramo da medicina que se ocu- Tem sido tradição da escola de Pediatria de
pa da saúde da criança e do adolescente, integra Coimbra a adequação dos conteúdos das aulas
o programa de formação obrigatória do ensino à realidade das crianças do nosso país, forne-
pré-graduado da Faculdade de Medicina, dada cendo apoio de estudo da disciplina através da
a relevância dos seus conteúdos para os futuros publicação de textos e indicação das referências
médicos. bibliográficas para cada tema.
Trata-se de uma área fascinante da ciência, As “Lições de Pediatria”, que ajudaram a
naturalmente orientada para o futuro. Assistir formar várias gerações de médicos, há muito ne-
uma criança desde o nascimento até ao final da cessitavam de revisão e atualização. Esta tarefa
adolescência, acompanhando as diferentes etapas foi agora levada a cabo com grande empenho e
do seu crescimento e desenvolvimento, caracte- rigor pelo corpo docente da disciplina e por ele-
rísticas específicas que a diferenciam do adulto, mentos do corpo clínico do Hospital Pediátrico,
é notável e gratificante e, simultaneamente, de abrangendo grande diversidade de temas.
grande responsabilidade.
A Pediatria é uma especialidade clínica por Aqui está a nova versão dos apontamen-
excelência, cujo objetivo consiste na promoção tos, “Lições de Pediatria”, mantendo a
da saúde e do bem-estar da criança, criando as maioria dos temas, revistos e atualiza-
condições para que esta possa atingir a idade dos, e ampliada com os que decorrem
adulta nas melhores condições físicas, psíquicas da evolução da medicina, em geral, e da
e emocionais. Cabe ao pediatra e médico de me- pediatria, em particular, ao longo dos
dicina geral e familiar, a vigilância do estado de últimos anos.
saúde da criança e do adolescente, a prevenção Estou certa de que estes apontamentos
e tratamento das suas doenças, a identificação e serão muito úteis aos alunos e a todos
resolução dos seus problemas. Para cumprir estes os clínicos que se interessam pela saúde
desideratos é indispensável uma abordagem clíni- da criança e do adolescente.
ca global da criança/adolescente, compreendê-la
como ser interativo e integrante de uma família Jeni Canha
e de uma comunidade, privilegiando o diálogo,
aliado a uma observação clínica cuidadosa.
Com a frequência da disciplina não se Saúdo todos os que contribuíram para
pretende formar especialistas, mas fornecer os a nova edição das Lições de Pediatria.
elementos necessários que permitam, ao recém- Das primeiras edições muito se disse;
-licenciado e médico geral, cumprir a vigilância da retenho a de uma pediatra, minha ami-
saúde infanto-juvenil, a resolução dos problemas ga: Vocês conseguiram tornar simples a
mais comuns da prática clínica e a identificação/ Pediatria.
Passe o exagero foi este o elogio que mais
bem sublinhou a nossa tentativa; estou
certo que “Lições de Pediatria” manterá
esse espírito – Pediatria para todos os
médicos.
Em meu nome e no dos antigos, dou os
parabéns aos coordenadores, Guiomar
Oliveira e Jorge Saraiva, professores de
Pediatria da Universidade de Coimbra.

H. Carmona da Mota
Capítulo 21.
Infeção urinária

21
Clara Gomes
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_21
CAPÍTULO 21. INFEÇÃO URINÁRIA 13

21.1 CONTEXTO (infeção confinada à bexiga), outras pielonefrite


aguda (PNA) ou ITU alta (infeção com envolvi-
A infeção do trato urinário (ITU) é uma das mento do parênquima renal) e numa minoria de
infeções bacterianas mais frequentes na idade casos, sobretudo em pequenos lactentes, pode
pediátrica. Define-se pela presença de bactérias ainda associar-se bacteriémia e sépsis. Tem sido
na urina associada a sintomas. proposto que a via hematogénea seria uma via
Pelos oito anos cerca de 7% das raparigas de ITU nestes pequenos lactentes. Contudo, a mi-
e 2% dos rapazes já tiveram um episódio de ITU. crobiologia destas infeções e a elevada incidência
Pela sua frequência, por se poder associar de anomalias urológicas associadas, levantam a
a anomalia nefrourológica e pelo risco de lesão questão se a ITU tem origem hematogénea ou
renal permanente que pode condicionar, a ITU se não é apenas uma ITU ascendente que se as-
tem sido alvo de múltiplos estudos para definir a sociou a bacteriémia. Em cerca de um terço dos
melhor estratégia quanto ao diagnóstico, inves- recém-nascidos com ITU documenta-se bacterié-
tigação e tratamento. mia com o mesmo micróbio da urocultura, e uma
parte desenvolve também meningite. O risco de
bacteriémia vai diminuindo com a idade sendo
21.2 DESCRIÇÃO DO TEMA muito baixo a partir dos três meses.

21.2.1 Etiopatogenia Quando as bactérias invadem o rim, desen-


volve-se um processo inflamatório local que pode
Em crianças saudáveis a urina do aparelho ativar processos imunes sistémicos com ampli-
excretor urinário, incluindo a da bexiga, é esté- ficação da resposta inflamatória, produção de
ril. A uretra é colonizada por bactérias. As mal- citoquinas e quimioquinas. A exacerbação da lesão
formações do aparelho urinário que favorecem renal aguda favorece a evolução posterior para
estase urinária, a capacidade que algumas bac- lesão cicatricial.
térias têm de aderir à mucosa uroepitelial (por
exemplo algumas Escherichia coli com fímbrias) 21.2.2 Epidemiologia
e a disfunção vesical são fatores predisponentes
para o desenvolvimento de ITU. A incidência de ITU varia com a idade e o
Os agentes etiopatogénicos mais frequentes na sexo e é difícil de estimar porque os estudos epide-
ITU são da família das Enterobacteriaceae, nomea- miológicos publicados são heterogéneos quanto
damente a Escherichia coli (60 a 90%), o Proteus à sua definição e à metodologia utilizada para a
mirabilis, a Klebsiella, o Enterobacter; e ainda os colheita de urina. No primeiro ano e sobretudo
Enterococcus, as Pseudomonas, o Staphylococcus nos primeiros seis meses de vida, é uma a uma
coagulase negativo e o Staphylococcus saprophyticus. vez e meia mais frequente no sexo masculino e
A maioria das ITU ocorre por via ascendente. a partir dos 12 meses passa a ser três vezes mais
Algumas crianças desenvolvem apenas cistite prevalente no sexo feminino. No recém-nascido
14 CLARA GOMES

de termo estima-se uma prevalência de 1.1% mas, ser valorizados. Nas crianças mais velhas, o qua-
na criança até aos dois anos de idade com febre, dro clássico é a presença de febre e lombalgia
sobe para 5%. mas a febre isolada é também uma forma de
Aos 16 anos estima-se uma incidência acu- apresentação comum.
mulada no sexo feminino de 11,3% versus 3,6% Pela clínica inespecífica o diagnóstico dife-
no masculino. rencial entre cistite e PNA nem sempre é fácil.
As crianças de raça caucasiana apresentam Dum modo geral considera-se PNA ou ITU alta,
uma prevalência de ITU superior às de raça negra. a ITU com febre, a ITU em criança com menos
de dois anos e a ITU associada a lombalgia. Na
21.2.3 ITU recorrente criança com dois ou mais anos, a ITU sem febre
denomina-se cistite.
As raparigas têm maior predisposição para Nas crianças com menos de três anos, cor-
ITU recorrente do que os rapazes assim como as retamente vacinadas, com febre (superior a 38
crianças que têm a primeira ITU em idade preco- graus) sem foco, a PNA é a causa mais frequente de
ce. Estima-se que ¾ das crianças com uma ITU infeção bacteriana grave. Urina turva ou com odor
no primeiro ano de vida, e 40% das raparigas e fétido devem evocar o diagnóstico. Em crianças
30% dos rapazes, com primeira ITU após o ano com mais de dois anos podem existir outros sinais
de vida, irão repetir outro episódio. As raparigas e sintomas como disúria, polaquiúria, ou lombalgia.
têm maior probabilidade de recorrência de ITU Na história clínica podem identificar-se al-
com a idade, o que não acontece nos rapazes. guns dados que sugerem ITU associada a pa-
Para efeitos de investigação imagiológica tologia grave subjacente: jacto urinário fraco,
considera-se ITU recorrente pelo menos duas PNA, história sugestiva ou confirmada de ITU prévia,
três cistites, ou uma PNA e uma cistite. febre recorrente de etiologia desconhecida, diag-
nóstico pré-natal de malformação nefrourológica,
21.2.4 Diagnóstico história familiar de refluxo vesico-ureteral (RVU)
ou doença renal, obstipação, sinais de disfunção
Clínica miccional, massa abdominal, lesão medular ou
Para o diagnóstico de ITU é necessário com- má evolução ponderal.
provar a presença de bactérias na urina e existirem
queixas clinicas. A cistite manifesta-se habitualmente por
A PNA é mais frequente nas crianças mais disúria, polaquiúria, dor supra-púbica ou incon-
pequenas e o principal sinal é a febre. Nos lacten- tinência urinária, sem febre. No entanto, este
tes pode acompanhar-se de sintomas inespecífi- quadro semiológico pode dever-se a outras pa-
cos como irritabilidade, vómitos e má progressão tologias como vulvovaginite, parasitose intestinal
ponderal e nos recém-nascidos pode nem existir ou alterações funcionais da micção.
febre e sinais e sintomas como letargia, recusa Assim, a suspeita clínica de ITU na criança
alimentar, gemido ou icterícia prolongada devem exige sempre a realização de análises de urina.
CAPÍTULO 21. INFEÇÃO URINÁRIA 15

Teste Sensibilidade % (IC) Especificidade % (IC)


Esterase leucocitária 83 (67-94) 78 (64-92)
Nitritos 53 (15-82) 98 (90-100)
Esterase leucocitária e nitritos positivos 93 (90-100) 72 (58-91)
Leucócitos (microscopia) 73 (32-100) 81 (45-98)
Bactérias (microscopia) 81 (16-99) 83 (11-100)
Esterase leucocitária, nitritos e microscopia positiva 99,8 (99-100) 70 (60-92)

Adaptado de National Collaborating Centre for Women’s and Children’s Health, Commissioned by the National Institute for Health
and Clinical Excellence. Urinary tract infection in children: diagnosis, treatment and long-term management. London: RCOG Press;
2007; Practice parameter: the diagnosis, treatment and evaluation of the initial urinary tract infection in febrile infants and young
children. American Academy of Paediatrics. Paediatrics 1999; 103:843-52.IC- intervalo de confiança.

Quadro 1. Sensibilidade e especificidade da tira-teste e da urina tipo II no diagnóstico de ITU.

Exames laboratoriais de bactérias no sedimento urinário. Os resultados


Para o diagnóstico é fundamental a colheita das diversas provas devem ser valorizados em
assética de urina por técnica correta e a realiza- conjunto (Quadro 1). Uma análise de urina tipo
ção de uma urocultura. II com leucocitúria, nitritos positivos e bactérias é
Como os resultados da urocultura não são muito sugestiva de ITU. A urina deve ser exami-
imediatos, existem provas rápidas de rastreio de nada imediatamente após a colheita para evitar
ITU como o exame de urina com tira-teste e a multiplicação de bactérias contaminantes.
observação da urina ao microscópio que permitem
estimar a probabilidade do diagnóstico e antecipar A técnica correta de colheita da urina é fun-
o início da terapêutica. damental para evitar erros de diagnóstico e suas
Na tira-teste considera-se urina alterada e consequências. Uma ITU que não se diagnostica
sugestiva de ITU a positividade dos nitritos e da atrasa o tratamento e pode favorecer a lesão
esterase leucocitária que indica a presença de renal e agravamento do estado geral do doen-
leucócitos. Os nitritos resultam do desdobramento te. Um diagnóstico incorreto de ITU por urina
pelas bactérias dos nitratos urinários provenientes contaminada exige procedimentos terapêuticos
da dieta. A presença de nitritos é muito sugestiva e de investigação evitáveis e não isentos de riscos
de ITU mas a sua ausência não a exclui: algumas (iatrogenia).
bactérias (gram-positivas) não os produzem ou Os métodos de colheita de urina para ras-
se houver polaquiúria pode não haver tempo ne- treio de ITU são o jato médio nas crianças com
cessário para a sua formação. controle de esfíncteres e o saco coletor nas outras.
Na urina tipo II valoriza-se para além da pre- Estas técnicas apresentam risco de contaminação
sença de nitritos e de leucocitúria (≥8 leucócitos/ da urina, principalmente o saco coletor. O risco
campo ou ≥ 40leuc/µl) a deteção microscópica deve ser reduzido com uma lavagem perineal
16 CLARA GOMES

correta (com água e sabão e não desinfetante) sendo necessário confirmar com novas colhei-
e substituição periódica do saco coletor (de 30 tas. A urocultura positiva é indispensável para
em 30 minutos). o diagnóstico de ITU, mas isolada não permite
A colheita por punção vesical (PV) aspirativa, o diagnóstico nem consegue avaliar a gravidade
suprapúbica, é a técnica ideal para evitar a conta- da infeção. Apenas os dados clínicos combinados
minação da urina em crianças mais pequenas. No com a urocultura permitem o diagnóstico seguro
entanto, é um procedimento invasivo, doloroso e de ITU.
nem sempre consegue obter urina, o que pode
ser melhorado se for guiado com ecografia. A bacteriúria assintomática é um exemplo
A algaliação é um método também invasi- da presença de bactérias na urina sem sintomas
vo, tecnicamente mais fácil de executar e menos – não deve ser considerada uma ITU e não exige
doloroso do que a PV, mas não é isento do ris- tratamento.
co de contaminação e no rapaz pode provocar A sua prevalência é significativa: 2 a 3% nos
traumatismo uretral. Tal como na colheita por recém-nascidos do sexo masculino, 1.5 a 2% nos
jato médio, deverá ser desperdiçada a primeira lactentes e 0.8 a 2% em meninas com mais de
porção de urina. dois anos com um pico de prevalência nas rapari-
gas em idade escolar. Habitualmente confirma-se
A urocultura da colheita por saco coletor em uroculturas consecutivas crescimento signi-
só deve ser valorizada se fôr negativa – não per- ficativo do mesmo gérmen, único e que não se
mite diagnóstico de ITU devido à elevada taxa acompanha de alterações do sedimento urinário,
de contaminação. A PV, o cateterismo e o jato nomeadamente piúria, exceto nalgumas situações.
médio são as únicas técnicas consideradas assé- Habitualmente não condiciona complicações
ticas e que devem ser usadas para confirmar o mesmo se associada a RVU, e por isso o tratamen-
diagnóstico de ITU e como técnicas de colheita to é desnecessário e contraindicado pelo risco de
inicial nos doentes que necessitam de tratamento selecionar estirpes mais agressivas.
antibiótico urgente.
Tipicamente a ITU é provocada por um úni- Como nem sempre é fácil o diagnóstico di-
co microorganismo. Cada bactéria dá origem a ferencial entre cistite e PNA alguns exames labo-
uma colónia. Para o diagnóstico laboratorial de ratoriais podem ajudar: a proteína C reativa ou a
ITU é necessária uma elevada concentração de procalcitonina elevadas e a presença de leucocito-
colónias na amostra urinária que vai depender se neutrófila são a favor do diagnóstico de PNA.
do método da colheita da urina: por saco e jato A hemocultura pode também ser positiva,
médio considera-se positiva se ≥ 100.000 (105) sobretudo em pequenos lactentes com maior risco
colónias por ml de urina, por PV e por cateterismo de bacteriémia.
se ≥ 1.000 (103) bactérias/ml. O cintigrama renal com ácido dimercapto-
Quando a urina é contaminada podem existir succínico (DMSA) marcado com tecnécio 99-m
culturas mistas de bactérias e contagens inferiores efetuado na fase aguda, é o exame de eleição
CAPÍTULO 21. INFEÇÃO URINÁRIA 17

para confirmar o envolvimento do parênquima • Doente imunocomprometido.


renal, mas não está disponível na prática clínica • Problema sócio-familiar que dificulte o
em muitos centros. cumprimento da terapêutica.
• Ponderar se suspeita de malformação
21.2.5 Tratamento urológica ou uropatia grave já conhecida.
• Falência de resposta ao tratamento oral.
O objetivo do tratamento é aliviar a sintoma-
tologia, erradicar a infeção mas sobretudo reduzir Como a Escherichia coli  é o gérmen predo-
o risco de lesões parenquimatosas renais. A es- minante, o antibiótico inicial empírico deve ter em
colha do antibiótico, via de administração e du- conta o seu padrão local de sensibilidade. Cerca
ração do tratamento dependem da apresentação de 50% das Escherichia coli  são resistentes à
clínica mas também é fundamental conhecer os amoxicilina ou ampicilina e numa percentagem
padrões locais de microbiologia e a sensibilidade variável à amoxicilina+ácido clavulânico, cotrimo-
aos antibióticos. Os principais agentes microbio- xazol e cefalosporinas de primeira geração. Em
lógicos (Escherichia coli, Proteus e Klebsiella) vão crianças que estão sob profilaxia antibiótica ou
alterando a sua sensibilidade de acordo com o uso que fizeram recentemente antibiótico por outro
habitual dos antibióticos. É necessário ir monitori- motivo, o risco de resistências a vários antibió-
zando, em cada centro, o padrão de sensibilidade ticos é ainda maior e deve ser considerado. Nas
que deve orientar o tratamento empírico inicial. crianças com ITU recorrente, a escolha empírica
A terapêutica precoce e agressiva, isto é do antibiótico deve ter em conta a suscetibilidade
nas primeiras 48 a 72 horas de apresentação dos agentes das ITU anteriores.
da ITU, pode prevenir a lesão renal. Deve ser As cefalosporinas de 2ª e 3ª geração (ce-
iniciada imediatamente após colheita de urina furoxime, cefotaxime, cefixime e ceftriaxone) e
correta, sobretudo nas crianças que apresentam os aminoglicosídeos (gentamicina e amicacina)
febre elevada (superior a 39°C) há mais de 48 são os agentes de primeira linha. Contudo estes
horas, alteração do estado geral, lombalgia ou antibióticos não são eficazes contra Enterococcus
tenham imunodeficiência ou anomalias urológicas e na sua suspeita (anomalia urológica, manipu-
conhecidas. lação do aparelho urinário, recém-nascido) deve
Os critérios para internamento e/ou tera- associar-se ampicilina.
pêutica endovenosa são: Em diversos estudos conclui-se que não se
encontram diferenças significativas em nenhuma
• Todos os lactentes com menos de dois das variáveis analisadas (tempo médio de desapa-
meses. recimento da febre, recorrência de ITU sintomáti-
• Alteração do estado geral (aspeto tóxico, ca, lesão renal permanente) entre a administração
hipotensão arterial, desidratação, altera- antibiótica exclusivamente por via oral e a adminis-
ções hidroelectrolíticas). tração endovenosa (EV) de curta duração seguida
• Via oral inviável (vómitos, diarreia). de via oral ou entre a administração por via EV
18 CLARA GOMES

Idade Antibiótico Duração Observações


Recém-nascido Ampicilina ev 40-100mg/ Se o quadro inicial não
kg/dia, 6/6 horas tiver sido grave e evolução
+ 7-10 dias favorável, considerar
Gentamicina ev completar tratamento com
4mg/kg/dia, uma toma antibiótico por via oral de
acordo com o gérmen
e antibiograma
1 mês - < 3 meses Cefuroxime ev Pode passar a oral após apirexia*
80-100 mg/Kg/dia, 8/8 horas 7-10 dias
≥ 3 meses Cefuroxime-axetil oral*
20-30 mg/Kg/dia, 12/12 7-10 dias
horas (máximo 1g/dia)

Quadro 2. Tratamento empírico da PNA

de curta duração seguida da via oral versus a via para as crianças com PNA e tratamento curto (três
EV exclusiva durante todo o tratamento. Assim, a cinco dias) para as crianças imunocompetentes
os doentes com ITU febril, sempre que o estado com ITU não febril.
geral o permita e sem patologia nefro-urológica
subjacente, podem ser tratados de modo seguro Nos quadros 2 e 3 resume-se o protocolo
por via oral. usado no Hospital Pediátrico de Coimbra. O tra-
Quando se inicia pela administração paren- tamento empírico da cistite pode ser efetuado
teral esta deve manter-se até o doente melhorar com amoxicilina+ácido clavulânico por via oral.
clinicamente, ficar apirético e conseguir tolerar Agentes orais como ácido nalidíxico e ni-
a medicação oral. trofurantoína, que são excretados na urina mas
Nos recém-nascidos o risco de urosépsis é não proporcionam níveis séricos adequados, não
maior (12 a 30%), pelo que neste grupo é mais devem ser administrados para tratar ITU febril
seguro que o tratamento seja parentérico em re- nas quais o envolvimento do parênquima renal
gime de internamento durante sete a dez dias. é elevado assim como o risco de bacteriémia.
Vários estudos têm demonstrado eficácia em
tratamentos de curta duração (dois a quatro dias) Vários estudos observacionais têm demons-
na erradicação das bactérias em crianças com ITU trado que após o início do tratamento não são
não febril. Não existem muitos dados em crianças necessários controlos analíticos de urina se a evo-
com PNA mas a tendência é para reduzir o tempo lução clínica for favorável nas primeiras 48 horas.
de antibioterapia. As recomendações atuais vão No entanto, se houver má evolução clínica
no sentido de tratamento longo (sete a dez dias) sem resolução dos sintomas após 48 a 72 horas
CAPÍTULO 21. INFEÇÃO URINÁRIA 19

Idade Antibiótico Duração


<2 anos Tratar como PNA
Amoxicilina + ácido clavulânico, oral
>2 anos 40-50 mg/Kg/dia, 8/8 horas (12/12 horas para formulação DUO ou
5 dias
ES) (máximo de ácido clavulânico - 1,2g/dia)
*Se intolerância ao cefuroxime-axetil optar por amoxicilina + ácido clavulânico

Quadro 3. Tratamento da ITU não febril.

ou se o gérmen isolado não for sensível ao antibió- recorrente e nas crianças com anomalias urológi-
tico instituído, a terapêutica empírica inicial deve cas e risco de PNA até à cirurgia.
ser revista e adaptada ao resultado do antibio- Os fármacos mais adequados são o trime-
grama. Outras causas para a falência terapêutica toprim, cotrimoxazol, cefadroxil, cefatrizina ou
podem incluir uropatia obstrutiva e abcesso renal; nitrofurantoína, administrados no terço da dose
nestas circunstâncias a ecografia renal e vesical terapêutica, numa toma oral à noite.
pode ser útil.
21.2.7 Outras terapêuticas
21.2.6 Profilaxia
A disfunção vesical, alteração frequente em
Nos últimos anos o uso de antibioterapia raparigas entre os quatro e os 12 anos, é uma
profilática, em dose baixa (habitualmente 1/3 da causa de ITU. Depois de excluídas causas neuroló-
dose terapêutica) por rotina, após a primeira ITU gicas e urológicas, deve-se investir na terapêutica
tem sido contestado. Vários estudos, com algu- não farmacológica com o reforço de ingestão
mas falhas metodológicas, não têm demonstrado hídrica adequada, micções regulares e completas e
claramente redução da recorrência de ITU e da controle da obstipação. Pode ser necessária tera-
cicatriz renal nas crianças sob profilaxia versus pêutica farmacológica com oxibutinina ou outros
placebo, exceto em situações de RVU mais in- fármacos de acordo com o tipo da disfunção.
tenso onde parece ter algum efeito benéfico. Na
verdade, evidência científica recente sugere que o Os processos inflamatórios do parênquima
RVU diagnosticado após ITU febril ou sintomática renal na fase aguda da PNA estão relacionados
submetido a profilaxia com cotrimoxazol reduziu com a génese da cicatriz renal que tem sido o
em 50% a recorrência de ITU, principalmente a enfoque da investigação e tratamento. Alguns
febril e a associada a disfunção vesical, mas não estudos têm avaliado o papel potencial de agentes
teve efeito na redução de cicatriz renal. anti-inflamatórios como corticóides (dexametaso-
A prática mais consensual consiste na admi- na e metilprednisolona) associados aos antibióti-
nistração de profilaxia em determinadas situações cos na fase aguda. Os resultados parecem apontar
como crianças com RVU intenso (≥ a grau III), ITU para redução do risco de cicatriz renal sem afetar
20 CLARA GOMES

a taxa de recorrência da ITU. Esta pode vir a ser e lesão crónica (cicatriz) com sensibilidade muito
uma vertente terapêutica com interesse clínico. superior à da ecografia e eco doppler. Estudos
experimentais demonstram que atinge uma sen-
21.2.8 Investigação imagiológica sibilidade de 85 e especificidade de 95% face ao
resultado histopatológico.
O objetivo principal na investigação imagio- De um modo geral considera-se anormal
lógica após uma ITU consiste em detetar anoma- se existe uma redução da função dum rim rela-
lias congénitas ou adquiridas do rim e do trato tivamente ao outro superior a 5% ou evidência
urinário ou RVU que são fatores de risco para ITU de zonas de hipocaptação cortical com distor-
recorrente e lesão renal. ção ou perda do contorno renal normal. Estas
Nos últimos anos a investigação de ITU tem alterações podem ser agudas e resolverem, ou
sido um dos temas mais controversos com ten- permanecerem. O cintigrama renal tardio, que
dência a ser simplificada. deve ser efetuado pelo menos seis meses após
o episódio de ITU, permite fazer o diagnóstico
A ecografia renal, um exame inócuo, de diferencial: a existência de defeitos de captação
fácil acesso é um exame de primeira linha na nesta fase representa cicatrizes que permanecerão
avaliação após uma ITU. É pouco sensível para como sequelas.
o diagnóstico de PNA e de RVU. Contudo, per- Em crianças com menos de dois anos com
mite identificar dilatação das vias urinárias ou PNA e maior risco de desenvolver cicatriz renal, o
alterações como localização, assimetria renal ou cintigrama renal na fase aguda (primeiros cinco a
alterações vesicais e ajuda a orientar os exames sete dias após o início da febre) pode ser útil para
posteriores. orientar a estratégia diagnóstica posterior – neces-
As indicações mais consensuais para a reali- sidade de cistografia ou cintigrama renal tardio.
zação de ecografia são: em crianças com menos Um DMSA normal durante o primeiro episódio
de dois anos com primeiro episódio de PNA; em de ITU febril exclui a presença de RVU intenso
qualquer criança com ITU febril recorrente; crian- sem risco de cicatriz posterior. Pelo contrário um
ças com uma ITU e história familiar de doença DMSA alterado na fase aguda é preditivo de RVU
renal ou urológica, má progressão ponderal ou significativo com maior risco de recorrência da
hipertensão arterial e falência de resposta a te- ITU e de cicatriz renal.
rapêutica antibiótica apropriada. Na prática, a indisponibilidade do DMSA nos
A ecografia com doppler aumenta a sensibi- primeiros dias de ITU febril em muitos centros,
lidade para o diagnóstico de PNA, mas é menos limita o seu uso.
disponível e mantem escassa sensibilidade para
detetar RVU. A cistografia direta é o exame ideal para
diagnosticar RVU. Pode ser radiológica, isotópi-
A cintigrafia renal com DMSA é o método ca ou ecográfica. O procedimento consiste na
de eleição para identificar lesão renal aguda (PNA) introdução de produto de contraste (radiológico,
CAPÍTULO 21. INFEÇÃO URINÁRIA 21

isotópico ou ecogénico) dentro da bexiga e avaliar A cistografia ecográfica, a menos usada, é


se existe fluxo ascendente durante o preenchimen- isenta de radiações mas requer treino do operador
to e esvaziamento vesical. É sempre necessária a para obter um rendimento semelhante ao das
algaliação o que pode favorecer o aparecimento outras técnicas.
de ITU. Existe outra possibilidade de cistografia,
a indireta quando se realiza um cintigrama re- 21.2.9 ITU, RVU e cicatriz renal
nal de eliminação e a criança, já com controle
de esfincteres, é capaz de colaborar retendo a Após uma PNA deteta-se RVU em 30 a 40%
urina a nível vesical com o marcador isotópico. em crianças com menos de dois anos e em 20
É muito menos sensível que a cistografia direta a 25% de raparigas em idade escolar com ITU
mas dispensa a algaliação. recorrente.
A cistografia radiológica ou cistouretrografia O RVU é uma anomalia urológica comum
miccional é o método de eleição para o estudo na criança que se define pelo fluxo retrógrado de
anatómico da bexiga e da uretra permitindo ava- urina da bexiga até ao ureter ou ao bacinete. A
liar de forma mais completa o RVU quando existe. sua prevalência exata é desconhecida mas estu-
A classificação internacional de RVU baseia-se dos apontam para uma taxa de 1 a 6% em idade
neste tipo de cistografia: RVU de grau I se atinge pediátrica. A maioria dos casos de RVU primário
apenas o ureter; grau II se atinge a pélvis renal é diagnosticada na investigação de uma ITU.
mas sem dilatação; grau III se atinge a pélvis O papel do RVU no desenvolvimento de PNA
renal e associa dilatação ligeira a moderada do foi documentado em trabalhos experimentais nos
ureter, pélvis e cálices; grau IV se a dilatação do anos 60 e 70. Crianças mais pequenas, nos pri-
excretor é moderada com tortuosidade do ureter; meiros dois anos de vida ficavam mais suscetíveis
grau V se a dilatação do excretor é severa com a sofrerem sequelas renais pelas pielonefrites e
grave tortuosidade do ureter e perda da impressão a recorrência de ITU era superior nas crianças
das papilas renais. É o único método que permite com RVU.
também avaliar a uretra e o que se deve efetuar na Em estudos com realização de cintigrama
suspeita de válvulas da uretra posterior (dilatação renal na fase aguda tem-se documentado lesão
pielo-calicial bilateral ou alterações da ecografia renal aguda em 40 a 70% dos doentes com menos
vesical em rapazes). de dois anos e ITU febril. São fatores favorece-
A cistografia isotópica tem menos dose de dores de lesão renal aguda o atraso de início
radiação mas não permite um estudo anatómico da terapêutica antibiótica eficaz (> 48 a 72H) e
da bexiga e vias urinárias. Pode ser o primeiro a existência de RVU mais intenso (de grau III ou
exame para investigar RVU nas raparigas ou nos superior).
rapazes cuja ecografia não mostre alterações ve- Seis a 15% dos doentes com menos de dois
sicais suspeitas de válvulas da uretra posterior, no anos vão desenvolver cicatriz renal após a primei-
seguimento e controle de RVU e na investigação ra PNA, sendo raro o seu aparecimento após os
familiar de crianças com RVU. quatro anos. A baixa idade (menos de dois anos),
22 CLARA GOMES

o atraso no tratamento eficaz, a ITU recorrente, Definiam ITU atípica como toda a ITU manifesta-
o RVU intenso e a uropatia obstrutiva são os da com doença grave, jato urinário fraco, massa
fatores de risco para lesão definitiva – a cicatriz abdominal ou vesical, creatinina sérica elevada,
renal. É esta lesão sequelar que pode condicio- septicémia e infeção por microorganismos que
nar hipertensão arterial, proteinúria persistente e não a Escherichia coli ou ITU que não responde
evolução para insuficiência renal terminal e que ao tratamento em 48 horas. Sugeriam ainda a
passou a ser o foco que assume maior relevância possível necessidade de realização de cistografia
na orientação da ITU. nas crianças entre os seis meses e os três anos
Nos últimos anos tem-se questionado o inte- com ITU atípica ou recorrente e dilatação pie-
resse da cistografia de rotina em todas as crianças localicial na ecografia renal, jato urinário fraco,
com ITU. O diagnóstico do RVU e a possibilida- ITU não causada pela Escherichia coli e história
de de correção cirúrgica parecia ser a solução familiar de RVU.
para prevenir lesão renal. No entanto, depois Em 2011 foram publicadas as orientações
do entusiasmo inicial nos anos 80, começou a da Academia Americana de Pediatria que dei-
verificar-se que muitos casos de RVU resolviam xaram de recomendar a cistografia de rotina
espontaneamente, e que algumas crianças em para todas as crianças com a primeira ITU febril
que se resolvia cirurgicamente o RVU, continua- e a propõem apenas após a segunda ITU, exce-
vam a ter ITU repetida e noutras, mesmo sem to se existirem circunstâncias clínicas atípicas
ITU aparente, as lesões renais evoluíam. Alguns ou complexas ou se a ecografia renal revelar
defeitos renais atribuídos a cicatriz eram na ver- hidronefrose, cicatrizes renais ou achados su-
dade lesões displásicas pré-natais. O papel do gestivos de RVU de grau elevado (IV ou V) ou
RVU não é então suficiente nem necessário para de uropatia obstrutiva.
o desenvolvimento da lesão cicatricial, e a eficácia
do tratamento do RVU na prevenção de cicatriz A tendência atual é realizar cistografia nas
também é controverso em vários estudos. crianças com dois ou mais episódios de PNA e
Assim, apesar do risco de cicatriz renal poder nas crianças com uma PNA e história familiar
aumentar com RVU mais intenso, não é claro nos de doença renal ou urológica, ou má progres-
estudos, que o benefício, em diagnosticar e tratar são ponderal, ou hipertensão arterial, ou se a
o RVU por rotina em todas as crianças, ultrapasse ecografia renal ou o cintigrama renal revelarem
os riscos e custos inerentes. alterações.
As guidelines do National Institute for Health Tradicionalmente a cistografia era diferida
and Clinical Excellence (NICE) publicadas em 2007 pelo menos três a quatro semanas após a ITU
constituíram uma mudança radical na orientação para evitar falsos positivos de RVU. Atualmente
da ITU com redução significativa na investiga- preconiza-se que a altura em que é feita não
ção imagiológica. Estas orientações sugeriam a influencia a presença ou a gravidade do RVU,
cistografia nas crianças com idade inferior a seis podendo ser efetuada durante o tratamento da
meses e ITU recorrente (definição atrás) ou atípica. ITU, logo que a criança esteja assintomática.
CAPÍTULO 21. INFEÇÃO URINÁRIA 23

21.2.10 Vigilância a longo prazo

As crianças com ITU recorrente ou associada


a anomalias nos exames imagiológicos devem
ser vigiados regularmente e a longo prazo. As
cicatrizes renais, sobretudo quando são bilaterais,
podem condicionar proteinúria, hipertensão arte-
rial ou alteração da função renal que é necessário
monitorizar e tratar.

21.3 FACTOS A RETER

Para o diagnóstico de ITU é indispensável a


realização de uma urocultura com colheita assé-
tica de urina.
O tratamento empírico inicial de uma ITU
depende do estado clínico da criança e deve ter
em conta as sensibilidades locais das bactérias
mais frequentes; este conhecimento pressupõe
uma monitorização regular do padrão de sensi-
bilidade em cada centro.
A tendência atual é para não efetuar investi-
gação imagiológica por rotina a todas as crianças
após uma ITU, mas valorizar aspetos que podem
indicar maior risco de lesão renal.
Os pais devem ser alertados para reconhece-
rem sintomas sugestivos de ITU e a importância
do diagnóstico e tratamento precoces.
Os protocolos são linhas de orientação, que
devem estar em contínua atualização.
Capítulo 22.
Vómitos

22
Susana Almeida
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_22
CAPÍTULO 22. VÓMITOS 27

22.1 CONTEXTO 22.2 DESCRIÇÃO DO TEMA

Designa-se por «vómito», a expulsão forçada O vómito em idade pediátrica surge ge-
do conteúdo gástrico pela boca, resultado de uma ralmente associado à gastroenterite aguda, no
resposta autonómica organizada. Trata-se de um entanto, é um sintoma inespecífico, podendo cor-
sintoma muito frequente em idade pediátrica. responder à apresentação inicial de patologias
A regurgitação por refluxo gastro esofágico, infeciosas, extra digestivas (infeção respiratória
tão frequente no primeiro ano de vida, é frequen- alta, pielonefrite, meningite, septicémia); de ano-
temente confundida com o vómito. Por questões malias digestivas (refluxo gastro esofágico, este-
didácticas, será também abordada nesta lição. nose hipertrófica do piloro, invaginação intestinal,

Recém - nascido /lactente Pré escolar e escolar Adolescência


Mecânica Refluxo gastroesofágico Obstipação severa Obstipação severa
Estenose hipertrófica piloro Hérnia encarcerada Hérnia encarcerada
Invaginação intestinal Obstrução intestinal Obstrução intestinal
Hérnia encarcerada
Volvo intestinal
Infeciosa/ Gastroenterite aguda Gastroenterite aguda Gastroenterite aguda
Inflamatória Enterocolie necrotizante Meningite Gastrite
Sépsis Pneumonia Apendicite
Meningite Amigdalite Pancreatite
Pneumonia Otite Doença Hepatobiliar
Otite Apendicite Meningite

Génito-urinária Pielonefrite Pielonefrite Pielonefrite


Cólica renal
Gravidez
Torção testicular/ovárica
Sistema Nervoso Hidrocefalia Migraine Migraine
Central Hemorragia intracraniana Hidrocefalia Hidrocefalia
Tumor Hemorragia intracraniana Hemorragia intracraniana
Tumor Tumor
Metabólica Hiperplasia suprarrenal Cetoacidose diabética Cetoacidose diabética
congénita Doença hereditária Doença hereditária
Doença hereditária metabolismo metabolismo
metabolismo
Cetoacidose diabética
Outras Ingestão tóxicos Ingestão tóxicos Ingestão tóxicos
Munchausen by proxy Munchausen by proxy Munchausen

Quadro1. Mecanismos e causas de vómitos por grupo etário.


28 SUSANA ALMEIDA

atresia intestinal, volvo e outras oclusões como Embora tratando-se de um sintoma muito
hérnia encarcerada); de lesões intracranianas (por inespecífico, uma história clínica e exame objetivo
hipertensão intracraniana) e de doenças endócri- cuidadosos são geralmente reveladores da causa
nas e metabólicas. A classificação etiológica por subjacente aos vómitos.
faixa etária pode ser útil e está pormenorizada Na colheita da anamnese devem abordar-se
no Quadro 1. os seguintes aspetos:

O vómito resulta de um mecanismo au- • Características dos vómitos (quantidade,


tonómico coordenado, envolvendo respostas cor, presença de sangue vivo ou digerido,
neuronais, hormonais e musculares originado presença de bílis, cheiro fétido - fecaloide).
na formação reticular do bolbo raquidiano. O • Cronologia (início, duração, frequência,
reflexo do vómito pode desencadear-se como hora do dia em que surgem os vómitos,
resposta a estímulos diversos, periféricos ou potenciais desencadeantes).
centrais (Quadro 2). Uma vez desencadeado o • Sintomas associados (diarreia, febre, dor e
reflexo do vómito, ocorre uma contração dos distensão abdominal, anorexia, cefaleias,
músculos da parede abdominal, torácica e dia- vertigens, tosse, odinofagia, otalgia, ri-
fragma, contra a epiglote encerrada. O aumento gidez da nuca, letargia, débito urinário,
de pressão intra-abdominal supera a pressão disúria, amenorreia).
negativa intra-esofágica e força o conteúdo gás-
trico a progredir até à cavidade oral. O reflexo Antecedentes pessoais:
do vómito altera também a motilidade intestinal
gerando uma onda retro peristáltica que dire- • Inquirir sobre presença de doenças co-
ciona o conteúdo do intestino proximal para o nhecidas, alergias, viagens recentes, trau-
estômago. matismo craniano recente, exposição a

Estímulos centrais
Vestibular
Infecioso
Cortical
Fármacos
Hormonais
Metabólicos
Estímulos periféricos
Estimulação faríngea
Irritação da mucosa gástrica
Distensão gástrica e intestinal

Quadro 2. Estímulos desencadeantes do reflexo do vómito.


CAPÍTULO 22. VÓMITOS 29

tóxicos ou medicações, atividade sexual lábios no sexo feminino, e hiperpigmen-


e data da última menstruação (adoles- tação escrotal no masculino.
centes).
A relembrar:
O exame objetivo deverá ser sistematizado • A presença de vómitos associados a le-
e minucioso: targia ou outras alterações do estado de
consciência / exame neurológico, são si-
• Verificar presença de febre, sinais de de- nais de alarme em qualquer idade.
sidratação, reconhecer sinais precoces de • Vómitos biliares num recém-nascido ou
choque hipovolémico (taquicardia, au- pequeno lactente sugerem patologia
mento do tempo de reperfusão capilar). obstrutiva do tubo digestivo.
• Observar a pele na procura de exantema • Vómitos, má progressão ponderal, desi-
purpúrico (sepsis) ou lesões urticariformes dratação e alterações ao exame genital
e angioedema (alergia). de um recém-nascido ou pequeno lacten-
• Avaliar estado de consciência, sinais de te são sugestivos de hiperplasia congénita
hipertensão intracraniana, sinais menín- da suprarrenal.
geos. • Vómitos matinais associados a cefaleia
• O exame otorrinolaringológico pode devem fazer-nos suspeitar de patologias
revelar uma amigdalite, adenoidite ou que cursem com hipertensão intracrania-
otite média aguda, que poderão explicar na.
o quadro de vómitos. • A presença de vómitos hemáticos suge-
• O exame do tórax, nomeadamente a aus- rem lesão orofaríngea, esofágica ou gás-
cultação pulmonar, pode orientar para trica, sendo a história clínica e o exame
uma pneumonia. objetivo geralmente orientadores. Na
• Ao exame abdominal deverá avaliar-se forte suspeita de hemorragia digestiva
existência de distensão abdominal, a alta deve proceder-se a uma exploração
presença e as características dos ruídos endoscópica alta.
hidroaéreos, e os sinais de defesa e irri- • Vómitos com conteúdo fecaloide sugerem
tação peritoneal. A presença de hepato- patologia obstrutiva gastrointestinal, e
megália e ou esplenomegália sem conte- requerem investigação etiológica.
xo de infeção, fará suspeitar de doença
metabólica. As causas mais frequentes de vómitos são
• O exame dos genitais é importante na gastrointestinais, em todas as faixas etárias,
suspeita de hiperplasia congénita da su- descrevendo-se em seguida as mais frequentes
prarrenal no recém-nascido e pequeno e aquelas que pela sua gravidade deverão ser
lactente, podendo existir hipertrofia do prontamente reconhecidas. Apesar de se tratar
clitóris e hiperpigmentação dos grandes de uma causa extraintestinal rara abordar-se-á
30 SUSANA ALMEIDA

brevemente a hiperplasia congénita da suprar- correspondente ao piloro, bem como ondas de


renal. A gastroenterite aguda será abordada no reptação. O diagnóstico é estabelecido com base
capítulo da diarreia aguda. em critérios ecográficos e o tratamento é cirúrgico
(piloromiotomia de Ramstedt).
22.2.1 Corpos estranhos intra
esofágicos e intra gástricos 22.2.3 Invaginação intestinal

Nem sempre a ingestão de corpos estra- Mais frequente entre os três e os dezoito
nhos é presenciada. Geralmente há referência meses de vida. Deve-se ao movimento telescópico
a quadro inicial de dificuldade respiratória com de uma ansa intestinal proximal para o lúmen
noção de engasgamento, seguida de sialorreia, de uma ansa mais distal, originando obstrução,
queixas variáveis de disfagia e sensação de im- edema e hipoperfusão da mucosa. O local mais
pacto esofágico. Em alguns casos a criança fica frequente de invaginação é a transição ileocólica.
inicialmente assintomática, sobrevindo vómitos Acima dos dois anos de idade, ou em localizações
posteriormente (corpo estranho intra gástrico). mais atípicas, deve pensar-se em patologias da
mucosa que funcionem como cabeça da invagina-
22.2.2 Estenose hipertrófica do piloro (EHP) ção (pólipos, tumores, doença celíaca, púrpura de
Henoch Schonlein, divertículo de Meckel). A clíni-
Deve-se à hipertrofia da musculatura circu- ca de apresentação de uma invaginação intestinal
lar do piloro, com obstrução do lúmen. É mais consiste em episódios paroxísticos de vómitos, dor
frequente entre a terceira e a sexta semanas de abdominal podendo acompanhar-se de dejeções
vida. Os vómitos são projetados e não biliares, com muco e sangue e má impressão clínica. Entre
e o bebé tem fome após o vómito (ao contrário os episódios a criança fica geralmente letárgica
do que ocorre nos quadros infeciosos). Não são e recusa alimentar-se.
acompanhados por diarreia nem febre. São fatores O diagnóstico estabelece-se geralmente com
de risco história familiar de EHP, sexo masculino, recurso à ecografia abdominal, e em mãos expe-
primeira gestação e toma prévia de eritromicina. rientes, o enema com ar ou soro fisiológico resolve
A apresentação clássica é de um pequeno lactente geralmente a invaginação sem recurso à cirurgia
desidratado, com sinais de má progressão ponde- (desinvaginação hidrostática ecoguiada). A taxa
ral, com alcalose metabólica hipoclorémica, hipo- de recorrência de reinvaginação após redução eco
volémia, hipoglicémia e hipocaliémia. Felizmente guiada é de cerca de 10%, devendo por esse mo-
a maioria dos casos apresenta-se sem desidra- tivo manter-se o internamento durante 24 horas.
tação significativa e sem alterações eletrolíticas
ou do equilíbrio ácido-base. Ao exame objetivo 22.2.4 Hérnia inguinal
poderá observar-se em período pós prandial a
designada oliva pilórica, uma formação arredon- Embriologicamente o peritoneu estende-se
dada palpável à direita da coluna na localização pelos anéis inguinais externo e interno em direção
CAPÍTULO 22. VÓMITOS 31

ao escroto, formando a túnica vaginal. Quando hidro-aéreos e ausência de ar intraintestinal, na


não ocorre involução completa deste processo, cavidade pélvica. O tratamento deverá incluir
pode haver passagem de uma ansa intestinal pelo medidas de suporte hemodinâmico e uma lapa-
trajeto remanescente em direção à virilha. A hér- rotomia emergente, evitando a necrose intestinal
nia pode ser redutível, ou irredutível. As hérnias e consequente perda de ansas intestinais.
redutíveis apresentam-se como massas inguinais,
palpáveis no canal inguinal externo após estímulos 22.2.6 Hiperplasia congénita da suprarrenal
que aumentem a pressão intra abdominal, como
a defecação, o choro ou a tosse. As hérnias en- A designação de hiperplasia congénita da
carceradas apresentam-se com vómitos, recusa suprarrenal compreende um grupo de doenças
alimentar, agitação e massa palpável na região autossómicas recessivas que envolvem deficiências
inguino escrotal. O tratamento da hérnia inguinal enzimáticas da síntese do cortisol, aldosterona ou
é cirúrgico. A intervenção pode ser programada ambas. A forma mais comum deve-se à deficiência
a curto prazo no caso da hérnia redutível, mas é da enzima 21-hidroxilase, sendo responsável por
emergente quando está encarcerada. cerca de 90% dos casos. O fenótipo depende do
tipo e gravidade do defeito enzimático. A apresen-
22.2.5 Volvo intestinal tação clínica clássica, designada por crise perde-
dora de sal ocorre durante o período neonatal.
Pode ocorrer em qualquer idade mas é mais É mais frequente no sexo masculino e caracteriza-
frequente durante o período neonatal. O volvo -se por um quadro de vómitos, recusa alimentar,
ocorre secundariamente à malrotação intestinal. desidratação e má progressão ponderal. Ao exame
Durante o período embrionário, o mesentério objetivo, para além dos sinais de desidratação,
adere ao retroperitoneu ao longo de uma linha podem observar-se sinais de virilização dos geni-
entre o ligamento de Treitz e o cego. Quando tais femininos e hiperpigmetação cutânea, mais
tal não sucede a aderência ocorre de forma laxa evidente a nível dos genitais externos em ambos
ao longo do eixo celíaco predispondo à torção os sexos. Laboratorialmente, a crise perdedora de
intestinal, com a consequente isquémia de an- sal caracteriza-se pela presença de hiponatrémia
sas. A apresentação típica do volvo compreende e hipercaliémia (hipoaldosteronismo). O diagnós-
um quadro de rebate sistémico com mau esta- tico é estabelecido recorrendo a doseamentos de
do geral, podendo simular septicémia, vómitos cortisol e aldosterona, que estarão diminuídos,
biliares, dor abdominal e choque hipovolémico. conjuntamente com a determinação dos seus pre-
O exame objetivo abdominal revelará uma parede cursores plasmáticos que estarão aumentados.
abdominal distendida, tensa, e ruídos hidroaéreos O tratamento compreende uma fase inicial de
inicialmente de timbre metálico e posteriormente normalização da volémia, com preenchimento
inexistentes. Uma radiografia simples do abdó- vascular com soro fisiológico, e após colheitas
men mostrará distensão gasosa do estômago hormonais o início de glucocorticoides e poste-
e duodeno (imagem da “dupla bolha”), níveis riormente também mineralocorticoides.
32 SUSANA ALMEIDA

22.2.7 Síndrome dos vómitos cíclicos a idade, embora algumas crianças desenvolvam
migraine clássica na idade adulta.
O síndrome dos vómitos cíclicos é uma per-
turbação funcional gastrointestinal de etiologia 22.2.8 Refluxo gastroesofágico (RGE) e
desconhecida, caracterizada por episódios súbitos, doença do refluxo gastroesofágico (DRGE)
recorrentes e paroxísticos de náusea e vómitos
incoercíveis, de duração variável e autolimitada. O refluxo gastroesofágico é uma perturba-
Nos intervalos entre as crises os doentes estão ção funcional frequente em lactentes, traduz-se
tipicamente assintomáticos. O crescimento não é clinicamente pela regurgitação, que consiste na
geralmente afetado, dado que durante o intervalo expulsão de conteúdo gástrico pela boca sem
entre crises recuperam o apetite e o peso perdido. esforço. A ocorrência de vómitos neste contexto
É mais frequente no sexo feminino, e embora não é frequente (a definição de vómito implica
possa surgir em qualquer idade, é habitual entre expulsão forçada do conteúdo gástrico). O RGE
os cinco e os nove anos de idade. Uma crise é não complicado não necessita de investigação
geralmente precedida por um pródromo, durante imagiológica nem endoscópica, e o tratamento
o qual a criança refere sensação de episódio emi- compreende apenas medidas gerais.
nente, fica letárgica, seguindo-se uma sensação Quando pela sua frequência, intensidade
de náusea intensa que precede os vómitos, que ou composição, o refluxo supera a capacidade
classicamente são projetados e numerosos (até defensiva da mucosa esofágica, dando origem a
seis por hora), podendo tornar-se biliares ou até esofagite, ou a sintomas extra digestivos pertur-
hemáticos (síndrome de Mallory Weiss). Durante badores para a criança (apneias no recém nas-
o episódio são frequentemente referidas cefaleias, cido, pieira recorrente nocturna, má progressão
foto e fonofobia. A criança permanece deitada, ponderal...) passa a designar-se por doença do
pode não deglutir a saliva ou pelo contrário ingerir refluxo gastroesofágico.
pequenos golos de água fria e açucarada para O RGE do lactente é um fenómeno fisiológi-
alívio da náusea. Após um período de tempo va- co, que se intensifica durante os primeiros quatro
riável os vómitos cessam e a criança retoma a sua meses de vida, para depois melhorar significativa-
atividade e apetite normais. Em muitos casos os mente até aos seis meses. Pelos 15 meses de idade
progenitores identificam fatores desencadeantes, os episódios de regurgitação serão excecionais.
geralmente emoções fortes, quer positivas quer Esta evolução sintomatológica é explicada
negativas. O tratamento é sobretudo de supor- por caraterísticas anatómicas do pequeno lacten-
te, evitando a desidratação. Pode recorrer-se a te (menor capacidade gástrica, «incompetência»
antieméticos como o ondansetron e fármacos fisiológica do angulo de His), aspetos nutricionais
ansiolíticos na tentativa de abortar a crise. Como (alimentação exclusivamente líquida e a intervalos
a etiopatogenia não é conhecida, o tratamento muito frequentes), e pela permanência prolongada
de base não está estabelecido. Relativamente ao na posição em decúbito. A melhoria significativa
prognóstico, as crises tendem a melhorar com das regurgitações depois do primeiro semestre
CAPÍTULO 22. VÓMITOS 33

relaciona-se positivamente com a introdução dos A DRGE é rara nos primeiros três meses de
sólidos na alimentação e a maturação neuroló- vida, em lactentes saudáveis.
gica com aumento do tónus axial, permitindo a Existem dois mecanismos fisiopatológicos para
posição sentada. explicar as complicações do RGE. Complicações se-
O tratamento do RGE não complicado ba- cundárias ao pH ácido e conteúdo em pepsina do
seia-se em medidas gerais: material regurgitado e complicações devidas princi-
palmente ao fenómeno mecânico da regurgitação,
Recomendações dietéticas mesmo quando o pH não é acido. Excetuando a
• Fracionamento das refeições. esofagite, que é sobretudo pH ácido dependente,
• Logo que possível, evitar refeições no- todas as outras parecem ter contribuição dos dois
turnas (após o primeiro mês de vida). mecanismos fisiopatológicos descritos.
• Recurso a fórmulas lácteas anti regur- Assim a DRGE pode manifestar-se com:
gitação (reduzem apenas o volume das
regurgitações, não intervindo nos me- • Sintomas e sinais que evocam esofagite
canismos de refluxo. A utilizar em casos (sialorreia persistente associada a recu-
esporádicos, por indicação de Pediatra). sa alimentar e choro durante a refeição;
disfagia, pirose, ardor retroesternal e ra-
Medidas posicionais ramente vómitos hemáticos na criança
Têm um papel fundamental na prevenção mais velha e no adolescente).
das regurgitações e da maioria das possíveis com- • Apneias ou Apparent Life-Threatening
plicações. Deve recomendar-se a posição ereta ao Event (ALTE) Brief Resolved Unexplained
colo durante os 30 minutos após cada refeição Events (BRUE) no prematuro e recém
e a elevação da cabeceira a mais de 30º. A utili- nascido.
zação de «berços anti refluxo» começa a ganhar • Pieiras de repetição e tosse noturna.
popularidade e possuem para além da inclinação • Pneumonias de repetição (mais fre-
da cabeceira ideal, um sistema de retenção in- quente em crianças com atraso de de-
corporado, que evita o deslizamento do lactente senvolvimento psicomotor e doenças
para o fundo da cama. neurológicas).
O tratamento com fármacos procinéticos, • Laringite ou disfonia sem outra causa evi-
dada a sua relativa ineficácia em ensaios clínicos dente, raramente no pequeno lactente
e possíveis efeitos secundários (perturbações do pode ser causa de otites de repetição
rimo cardíaco, sintomas neurocomportamentais) (evidência controversa).
está reservado para casos pontuais, e deve ser • Mais raramente associa-se a má progres-
orientado por um especialista na área. são ponderal, anemia ou uma manifesta-
O tratamento com fármacos antiácidos, na ção neurocomportamental designada por
ausência de evidência sólida de esofagite está Síndrome de Sandifer com opistótonus
contraindicado. e desvio lateral do pescoço.
34 SUSANA ALMEIDA

Quando a história clínica e a normalidade do


exame objetivo apontam para um RGE não com-
plicado, não há necessidade de realizar qualquer
exame complementar de diagnóstico. A explicação
da história natural e a tranquilização parental,
em conjunto com as medidas gerais anti-refluxo
são suficientes.
Se a história clínica sugere refluxo compli-
cado, poderão estar indicados exames especí-
ficos e invasivos como a pHmetria com impe-
dância esofágica ou a endoscopia digestiva alta.
A decisão da sua realização deve caber a um
Gastroenterologista Pediátrico. Da mesma forma
a realização de um estudo contrastado do tubo
digestivo alto, na ausência de malformações ana-
tómicas, pouco acrescenta em relação à história
clínica na caraterização do RGE, devendo reservar-
-se para casos selecionados.
O tratamento da DRGE passa por medidas
gerais dietéticas e posturais, à semelhança das
recomendações para o RGE não complicado. Nas
crianças em idade escolar e adolescentes, deve
ser desaconselhada a ingestão de alimentos antes
de deitar, as bebidas com cafeína ou gaseificadas
bem como o consumo do tabaco. No entanto
pode ser necessária terapêutica antiácida para
cicatrização da esofagite péptica ou mesmo tera-
pêutica cirúrgica (Fundoplicatura de Nissen) para
resolução dos sintomas em doentes selecionados
e refratários a medidas farmacológicas.

Leitura complementar
“Vomiting in Children”. L. Chandran, M. Chitkara. Pediatrics
in Review 2008, 29 (6).
Capítulo 23.
Diarreia aguda e crónica

23
Susana Almeida
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_23
CAPÍTULO 23. DIARREIA AGUDA E CRÓNICA 37

23.1 CONTEXTO osmótica o hiato aniónico fecal, calculado pela


fórmula [290- (Na + K) x2], está aumentado (>
Define-se diarreia como a alteração do trân- 280 mOsml/L).
sito intestinal com aumento do número e diminui-
ção da consistência das dejeções, relativamente Diarreia secretora
ao padrão habitual. Alteração do processo de transporte entero-
Na diarreia aguda a duração habitual é até citário, com aumento da secreção, excedendo a
sete dias, passando a denominar-se de diarreia capacidade de absorção. Causada geralmente por
crónica quando se prolonga por mais de duas germens que aderem ou invadem as vilosidades
semanas de evolução. Entre os sete dias e as duas intestinais ou que produzem enterotoxinas (i.e.
semanas designa-se por diarreia prolongada. cólera). A diarreia secretora é abundante e não
Nas crianças é um motivo muito frequente melhora com o jejum. O hiato aniónico fecal é
de consulta. normal ( < 280 mOsml/L).

Diarreia Inflamatória
23.2 DESCRIÇÃO DO TEMA Lesão enterocitária com diminuição da ca-
pacidade de absorção (i.e.doença inflamatória
23.2.1 Mecanismos fisiopatológicos do intestino).

Reconhecem-se quatro mecanismos fisio- Diarreia por aumento da motilidade


patológicos principais: osmótico, secretor, infla- Pode ser causada por agentes infeciosos
matório e por aumento da motilidade intestinal. que produzam enterotoxinas que alterem a mo-
Excecionalmente, estará envolvido apenas um tilidade, mas o exemplo clássico corresponde ao
destes mecanismos, sendo habitual a contribui- Síndrome do Intestino Irritável e à diarreia do
ção de vários para a explicação do caso clínico hipertiroidismo.
em concreto.
23.2.2 Diarreia Aguda
Diarreia osmótica
Incapacidade da mucosa intestinal absorver A causa mais frequente de diarreia aguda
convenientemente substâncias osmoticamente é a Gastroenterite Aguda infecciosa (GEA),
activas (i.e. sorbitol, xilitol), por perda das en- sendo a segunda doença aguda mais frequente,
zimas envolvidas na absorção de carbohidratos depois do catarro respiratório superior, sobretu-
(i.e. lactose) ou por sobrecarga de substâncias de do em crianças em idade pré-escolar. Nos países
elevada osmolaridade (i.e. sumos). As substâncias sub-desenvolvidos é ainda uma causa importante
não absorvidas impedem a absorção normal da de morbilidade e mortalidade infantil.
água endoluminal, originando diarreia, que tipica- A GEA pode ser causada por vírus, bac-
mente resolve com a pausa alimentar. Na diarreia térias ou parasitas, é geralmente um processo
38 SUSANA ALMEIDA

auto limitado, exceto na infeção parasitária que apresenta um quadro típico de diarreia aguda que
frequentemente se prolonga na ausência de tra- se prolonga para além do esperado, ou que após
tamento. um período de melhoria volta a apresentar deje-
Nos países industrializados a etiologia virusal ções diarreicas. Está frequentemente associado a
é a mais comum em todas as idades. Os agen- vírus que invadem e destroem o topo das vilosida-
tes mais frequentes são o rotavirus, adenovirus des intestinais, onde se encontram a maioria das
e norovirus. dissacaridases. Esta perda enzimática secundária
A via de transmissão das gastroenterites origina uma diarreia osmótica por malabsorção
infecciosas é a fecal-oral. Alguns adenovirus en- da lactose. Com a recuperação das vilosidades e
téricos transmitem-se também por via aérea. Os reposição das dissacaridases a criança volta a tole-
gérmens que são infeciosos com inóculos peque- rar normalmente a lactose. O diagnóstico é clínico,
nos (Rotavirus, Escherichia coli, Shigella, Giardia mas em caso de dúvida pode determinar-se o pH
lamblia, Amoeba) podem ser transmitidos de fecal (que será ácido) e a presença de substân-
pessoa a pessoa. cias redutoras nas fezes. A redução transitória de
ingestão de produtos lácteos ou a utilização de
23.2.2.1 Gastroenterite aguda virusal fórmulas sem lactose controlam os sintomas, até
O Rotavirus é o agente principal, e é mais à recuperação da mucosa.
frequente nos meses de inverno. O período de
incubação é curto, de um a três dias. O pico de 23.2.2.3 Gastroenterite aguda bacteriana
incidência atinge as crianças com menos de dois É mais frequente no verão e no outono.
anos, e é mais frequente nos infantários e insti- O período de incubação é variável e depende
tuições de solidariedade social. do agente: uma a seis horas se a causa for o
O início dos sintomas é súbito, com vómitos, Staphylococcus aureos e Bacillus cereus; um a três
febre e dor abdominal ligeiras e diarreia aquosa dias se for a Salmonella enteritidis, Escherichia
com perda de grande quantidade de líquidos, coli enterotoxigénica, Shigella e Yersinia ente-
condicionando facilmente desidratação. Em cerca rocolytica; uma a duas semanas no caso de ser
de um terço dos casos existe catarro superior Salmonella thyphi ou parathyphi.
concomitante ou prévio. As gastroenterites bacterianas associam-se
O mecanismo da diarreia é predominante- geralmente a febre alta, dor abdominal importante
mente osmótico, por lesão de células vilositárias e dependendo do mecanismo fisiopatológico da
com perda de dissacaridases. Este processo é auto diarreia à presença de muco e/ou sangue nas fezes.
limitado e completamente reversível, sendo a du- As bactérias que invadem a mucosa intes-
ração habitual do quadro de uma semana. tinal ou produzem citotoxinas provocam uma
diarreia predominantemente inflamatória, com
23.2.2.2 Síndrome pós gastroenterite aguda presença de muco e sangue (Salmonella, Shigella,
É uma complicação da GEA, mais frequen- Campylobacter, Yersinia, Escherichia coli enteroin-
te entre os seis meses e os três anos. A criança vasora)
CAPÍTULO 23. DIARREIA AGUDA E CRÓNICA 39

Desidratação ligeira Desidratação moderada Desidratação grave


< 3 %* 3 – 10 %* > 10 %*

Alteração estado consciência


Sede (irritabilidade/apatia)
Colapso cardiocirculatório
Aumento FC**
TRC *** > 3 segundos

TRC *** 2- 3 segundos


Anúria
Sem sinais desidratação Prega cutânea, mucosas secas
Oligúria
Prega cutânea, mucosas secas
Olhos profundamente encovados
Olhos encovados
Fontanela deprimida
Fontanela deprimida
Ausência lágrimas

*% peso corporal perdido; ** frequência cardíaca (FC); *** tempo de recoloração capilar (TRC)

Quadro 1. Sinais e sintomas que caracterizam os diferentes graus de desidratação.

As bactérias que produzem enterotoxinas, lágrimas, sede ou irritabilidade e diminuição da


que por sua vez interferem com os mecanis- diurese (sinais de desidratação).
mos de absorção intestinal, provocam uma Antecedentes relevantes: idade; portador
diarreia de predomínio secretor (Escherichia de doença crónica (insuficiência renal, diabetes,
coli enterotoxigénica, Staphylococcus aureos, imunodeficiência, transplantados, síndrome do
Vibrio cholerae, Bacillus cereus, Clostridium intestino curto); viagens recentes a países tropicais
perfringens). ou endémicos para determinado agente infecioso;
ingestão de alimentos suspeitos (arroz reaqueci-
Diagnóstico do, frango ou ovos mal cozinhados); imunização
O diagnóstico de GEA é clínico. Na maioria para rotavírus.
dos casos não se justifica a pesquisa do agente O exame objetivo permite estimar o grau de
etiológico. desidratação, sempre que o último peso conhe-
Na história clínica devem valorizar-se os se- cido não seja recente, para que se possa calcular
guintes aspetos: a percentagem de peso perdida.
Anamnese detalhada, com caracterização da Os sinais e sintomas que caracterizam os três
cronologia e características dos sintomas: início graus de desidratação estão descritos no quadro 1.
dos sintomas e duração do quadro; presença de
febre; vómitos (número, quantidade aproximada); Avaliação Analítica
dejeções (número, volume aproximado, presença Não é necessária na maioria das crianças
de muco ou sangue, cheiro fétido); ausência de com GEA.
40 SUSANA ALMEIDA

Em crianças com desidratação moderada a


severa, ou quando existe doença crónica asso-
ciada, em que se prevê alterações electrolíticas
ou ácido base, é recomendável realizar avalia-
ção analítica com hemograma (hematócrito),
ureia, creatinina, ionograma sérico, glicémia,
e gasimetria venosa.
Na suspeita de gastroenterite de etiologia
bacteriana a colheita de fezes para coprocultura
pode ser útil.
A pesquisa de antigénios para vírus nas fezes
por método de ELISA (rotavirus e adenovirus) não
está recomendada por rotina, reservando-se para
casos pontuais, em contexto de infeção nosoco-
mial e para estudos epidemiológicos.
Figura 1. Transporte acoplado de sódio-glicose
a nível enterocitário.
Tratamento
O tratamento da GEA assenta em dois pila-
res fundamentais, a rehidratação e a introdu-
ção precoce da alimentação. Ocasionalmente quatro a cinco horas; na desidratação moderada
poderão estar indicados antibióticos no trata- 75 a100 ml/Kg em três a quatro horas.
mento da gastroenterite bacteriana. A utilização Ao volume estimado para rehidratar cada
precoce de probióticos parece ter uma eficácia caso, deve adicionar-se o volume correspondente
modesta na duração da diarreia, de acordo com às perdas continuadas pelas dejeções (10 ml/Kg
os estudos existentes e a utilização de fármacos por cada dejeção diarreica) e pelos vómitos (2
anti-secretores (racecadrotil) pode estar indicada ml/Kg por cada vómito).
em alguns casos. A utilização de fármacos anti
diarreicos está contraindicada. Tipo de solutos de rehidratação oral (SRO):
A descoberta do transporte acoplado da
Princípios gerais da rehidratação: glicose e do sódio na mucosa do intestino del-
Sempre que possível deve preferir-se a via gado (Figura 1), traduzindo-se em melhor ab-
entérica, quer oral quer por sonda nasogástrica.O sorção de sódio e água sempre que as soluções
início da rehidratação deve ser precoce e deve contenham glicose, permitiu a formulação dos
concluir-se em cerca de quatro horas. atuais solutos de rehidratação oral. Os precurso-
O volume de soluto de rehidratação a res do soluto tipo ESPGHAN (European Society
administrar depende do grau de desidratação: na of Pediatric Gastroenterology, Hepatology and
desidratação ligeira administrar 30 a 50 ml/Kg em Nutrition), preconizados pela Organização
CAPÍTULO 23. DIARREIA AGUDA E CRÓNICA 41

Solutos Na Glicose K Cl Osmolaridade Base


(meq/L) (mmol/L) (meq/L) (meq/L) (mOsm/L) (meq/L)
OMS - 2 75 75 20 65 245 30

Redrate® 90 111 20 80 311 30

ESPGHAN 60 74-111 20 > 25 200-250 10

Dioralyte® 60 90 20 60 240 10

Miltina E® 60 90,7 20 50 230 10

OralSuero® 60 80 20 38 212 14

Coca Cola® 2 700 0 - 750 13

Bebida Desportiva 20 255 3 - 330 3


Canja 250 0 8 - 500 -

Na – sódio; K-potássio; Cl-cloro;

Quadro 2 - Composição dos diversos solutos de rehidratação oral e outros líquidos utilizados em contexto de diarreia aguda.

Mundial de Saúde (OMS), continham mais só- A persistência de vómitos, comprometendo


dio, para responder às necessidades em países o sucesso da rehidratação via entérica, é também
sub-desenvolvidos, onde a diarreia por cólera indicação para rehidratação por via endovenosa,
predominava, com grandes perdas daquele nos casos de desidratações ligeiras a moderadas.
electrólito. Na realidade da europa os solutos Perante uma desidratação grave com colapso
hipotónicos (menos sódio) tipo ESPGHAN são cardiocirculatório, é prioritário o preenchimen-
perfeitamente adequados, e são os que actual- to vascular rápido com bólus de soro fisiológico
mente se recomendam. de10 ml/Kg a perfundir em 20 a 30 minutos, que
poderá ser repetido, completando um volume de
Existem vários SRO disponíveis no mercado. 20 ml/Kg numa hora.
A sua composição e a comparação com outras Na ausência de compromisso circulatório, a
bebidas utilizadas na rehidratação oral estão des- rehidratação endovenosa poderá efetuar-se em
critas no Quadro 2. 24 horas, calculando-se o ritmo de perfusão de
forma a garantir a reposição do défice volume ao
Na desidratação grave existe frequentemente qual se deve acrescentar o ritmo de manutenção
necessidade de preenchimento vascular rápido e (necessidades hídricas basais), não esquecendo
com grande volume de líquidos, sendo difícil a a reposição das perdas continuadas (vómitos e
sua administração entérica, mesmo com recurso dejeções).
à sonda nasogástrica. Por esse motivo recorre-se O ritmo de manutenção calcula-se com base
habitualmente à via endovenosa. na regra de Holliday e Segar disponivel no Quadro 3.
42 SUSANA ALMEIDA

Peso corporal Volume Ritmo horário


Utilização de antibióticos na diarreia aguda
total 24h
0 a 10Kg 100 ml/Kg 4ml/Kg/hora A antibioterapia não está indicada de
11 a 20Kg 1000 ml + 40 + 2 ml/ forma sistemática na gastroenterite bacteria-
50 ml/Kg* Kg/hora* na. São indicações excecionais de antibiotera-
>20Kg 1500 ml + 60 + 1 ml/
pia as seguintes: infeção por Bacillus cereus e
20 ml/Kg** Kg/hora**
Staphilococcus aureos; baceriémia ou infeção gra-
* por cada Kg acima dos 10 Kg;
** por cada Kg acima dos 20 Kg ve a Salmonella, Shigella, Campylobacter, Vibrio
cholerae e Yersinia; idade inferior a três meses;
Quadro 3. Necessidades hídricas basais, segundo Holliday e Segar. imunodeprimidos (imunodeficiências primárias e
secundárias, transplantados, esplenectomizados,
corticoterapia ou imunossupressão prolongada,
malnutrição grave).
O tipo de soro a utilizar depende do valor
da natrémia. Perante uma desidratação hiperna- Quando indicada, a antibioterapia deverá
trémica (natrémia > 150 mEq/L), devem utilizar-se ser dirigida ao agente:
soros isotónicos com glicose a 5%, e evitar descidas Campylobacter: eriromicina ou azitromicina;
bruscas da natrémia (nunca superiores a 10 mEq/dia), Shigella: ceftriaxone; Vibrio cholerae: azitromicina
evitando complicações cerebrais, como convulsões, ou eritromicina; Yersinia: cefotaxime ou cotrimo-
hemorragia e trombose. Quanto mais elevada a xazol; Salmonella typhi: ceftriaxone; Salmonella
natrémia, mais lenta deve ser a sua correção.Na enteritidis: ampicilina, cotrimoxazol ou ceftriaxo-
desidratação hiponatrémica (natrémia < 130mEq/L ) ne (reduz risco de estado portador); Escherichia
devem utilizar-se soros isotónicos para reposição da coli: cotrimoxazol (risco de síndrome hemolitico
volémia e calcular o défice de sódio corporal para urémico com a estirpe O157:H7).
proceder à sua correção com NaCl a 3%, pois valores
de natrémia inferiores a 120 mEq/L predispõem, Prevenção da gastroenterite
entre outras complicações, a convulsões. aguda infecciosa:
A prevenção passa fundamentalmente por
Reinício precoce da alimentação medidas universais de controlo da infeção e de
A alimentação oral deve introduzir-se pre- segurança alimentar. Estão disponíveis no merca-
cocemente, logo após a rehidratação. do duas vacinas anti-rotavirus, uma monovalente
Não estão recomendadas fórmulas especiais, outra pentavalente.
sem lactose, hidrolizadas ou diluídas.
O aleitamento materno é recomendado sem- 23.2.3 Diarreia crónica
pre que possível.
Na criança mais velha, a alimentação deve A diarreia crónica é o sintoma principal de
obedecer às regras de uma alimentação saudável, uma grande variedade de doenças em idade pe-
sem restrições especiais. diátrica, algumas relativamente frequentes, outras
CAPÍTULO 23. DIARREIA AGUDA E CRÓNICA 43

raras (diarreias congénitas, tumores enterocro- quadro de dor abdominal recorrente, que alivia
mafins, linfangiectasia intestinal) que não serão caracteristicamente com a defecação e que se
abordadas nesta lição. associa a alteração do tipo ou frequência das
Apesar da definição mais vezes referida na dejeções. É frequente o agravamento em perío-
literatura considerar um limite temporal superior dos de stresse. As queixas não são noturnas, a
a duas semanas de duração, alguns autores de- criança cresce bem e as dejeções podem conter
fendem um tempo de evolução que ultrapasse as muco mas a presença de sangue coloca em causa
quatro semanas, evitando assim investigações des- o diagnóstico. Clinicamente distinguem-se três
necessárias em quadros de diarreia prolongados subtipos, com predomínio de diarreia, predomínio
mas auto limitados (síndrome pós-gastroenterite). de obstipação ou mistos. Para estabelecer este
Do ponto de vista prático, a maioria das diagnóstico devem cumprir-se critérios bem esta-
patologias que se manifesta com diarreia crónica belecidos (critérios de Roma IV) e excluir-se causas
têm impacto no estado nutricional e crescimento, orgânicas que justifiquem o quadro (doença ce-
e apresentam-se com outros sinais e sintomas que líaca, doença inflamatória intestinal, intolerância
permitem distingui-las entre si. Essa distinção à lactose). O tratamento passa pela explicação da
entre diarreia crónica com e sem rebate no doença à criança e aos pais e na tranquilização.
crescimento, é fundamental na prática clínica. A maioria dos casos melhora com medidas gerais
Patologias que geralmente não se asso- de controlo do stresse (desporto em geral, ioga).
ciam a má progressão ponderal e/ou estatu-
ral: síndrome do intestino irritável; intolerância 23.2.3.2 Intolerância primária a lactose
primária à lactose; hipersensibilidade às proteínas É uma entidade de transmissão autossómi-
do leite de vaca não IgE mediada; erros alimen- ca recessiva, que condiciona a perda progressi-
tares (diarreia osmótica por abuso de sumos, va da atividade da lactase. A sua prevalência é
sorbitol, xilitol); variável, sendo de aproximadamente 10 a 20%
Patologias habitualmente associadas em idade adulta, nos países mediterrânicos.
a má progressão ponderal e/ou estatural: É uma entidade rara antes da adolescência tardia.
doença celíaca; doença inflamatória intestinal; A lactose não digerida é metabolizada pelas bac-
giardíase; fibrose quística. térias do cólon aumentando a produção gasosa,
e os carbohidratos não digeridos atuam como
23.2.3.1 Síndrome do intestino irritável substâncias osmoticamente ativas provocando
É uma perturbação funcional do intestino, diarreia. Clinicamente caracteriza-se por distensão
mais frequente no sexo feminino, em idade escolar abdominal e flatulência, diarreia aquosa e ácida.
e na adolescência, embora os sintomas possam O diagnóstico pode estabelecer-se realizando uma
ter início no segundo ano de vida. A etiopato- prova de evicção de lactose, com completa re-
genia é multifactorial, resultando da interação solução das queixas em dois a três dias, seguida
entre fatores genéticos, ambientais, psicosociais de uma reintrodução com reprodução da clínica.
e o eixo cérebro-intestino. Caracteriza-se por um O teste do hidrogénio marcado no ar expirado,
44 SUSANA ALMEIDA

permite fazer o diagnóstico de malabsorção des- resolução da sintomatologia com a dieta, o diag-
te carbohidrato após ingestão de um preparado nóstico de certeza exige uma prova de provocação
com lactose. O tratamento consiste na evicção oral cerca de quatro semanas depois. A HPLV é uma
da lactose da dieta. doença de bom prognóstico, em que a maioria dos
lactentes tolera a proteína do leite de vaca aos 12
23.2.3.3 Hipersensibilidade às proteínas meses, e excecionalmente alguns persistirão com
do leite de vaca não IgE mediada dieta de evicção até aos três anos.
A hipersensibilidade às proteína do leite
de vaca não IgE mediada (HPLV) é uma doença 23.2.3.4 Doença celíaca
imuno-mediada, com tradução clínica entre as A doença celíaca (DC) é uma enteropatia
duas semanas e os seis meses de vida, sendo autoimune causada por uma intolerância total e
mais frequente aos dois meses. Pode manifestar- permanente ao glúten em indivíduos com predis-
-se como uma retocolite (o mais frequente), uma posição genética. A sua prevalência é de 1:100
enterocolite (envolvimento do intestino delgado) a 1:200, sendo portanto uma doença frequente.
ou atingimento de todo o tubo digestivo (muito Pode manifestar-se em qualquer idade, e a forma
raro). A apresentação típica da retocolite é a do de apresentação é muito variável, sendo consi-
lactente alimentado com leite materno, com bom derada uma doença multissistémica.
estado geral e boa progressão ponderal, que surge Nos primeiros anos de vida predominam as
com diarreia com muco e sangue, habitualmente formas de apresentação digestiva com anorexia,
precedida de cólica. O quadro clínico será mais diarreia crónica, distensão abdominal, desnutri-
exuberante no lactente alimentado com fórmu- ção com perda acentuada das massas musculares,
las para lactentes, e na enterocolite haverá má muito evidente a nível glúteo, e irritabilidade. As
progressão ponderal. Por definição, esta forma manifestações digestivas nas crianças em idade
de alergia à proteína do leite de vaca não tem escolar e adolescentes são menos exuberantes que
envolvimento sistémico nem respiratório, embora nos primeiros anos e podem confundir-se com
os lactentes afetados possam apresentar eczema a síndrome do intestino irritável. Em crianças de
atópico. Existem com frequência antecedentes idade escolar, adolescentes e adultos, são mais
familiares de atopia. frequentes as formas de apresentação monossin-
O diagnóstico baseia-se na clínica, apoiada tomáticas, como anemia refratária ao ferro oral,
por uma prova de evicção de proteínas do leite de hipertransaminasémia isolada, baixa estatura iso-
vaca e outras que possam condicionar reacção cru- lada, atraso pubertário, amenorreia, obstipação
zada, como a soja e os frutos secos. Para tal deve refratária, artralgias e osteoporose, hipoplasia do
recorrer-se a uma fórmula extensamente hidroli- esmalte dentário, aftas de repetição, fadiga crónica
zada, ou à evicção na dieta materna dos referidos entre outras, pelo que é importante um elevado
alergenos se o aleitamento for materno exclusivo. nível de suspeição para estabelecer o diagnóstico.
As fórmulas parcialmente hidrolisadas ou à base Existem grupos de risco para DC, onde o diagnós-
de soja não são recomendadas. Constatando-se tico é realizado por rastreio (familiares de primeiro
CAPÍTULO 23. DIARREIA AGUDA E CRÓNICA 45

e segundo graus de doentes celíacos, síndrome proceder à biopsia duodeno-jejunal e confirmar


de Turner, trissomia 21, diabetes mellitus, tiroidi- o diagnóstico antes de iniciar a dieta sem glúten.
te autoimune, algumas doenças reumatológicas Confirmando-se a presença de DC o tratamen-
entre outras). Estes indivíduos são muitas vezes to consiste numa dieta sem glúten (presente no
assintomáticos à data do diagnóstico. trigo, centeio, cevada e aveia contaminada), que
Os anticorpos actualmente disponíveis para normalizará os valores dos anticorpos e as alte-
rastreio serológico são altamente sensíveis e es- rações histológicas do intestino delgado. A dieta
pecíficos. Perante a suspeita clínica de DC, deve sem glúten deve ser cumprida para toda a vida,
proceder-se à determinação da IgA sérica total e sem exceções.
(para excluir défice de IgA) e dos anticorpos anti-
transglutaminase tecidular IgA, que estarão au- 23.2.3.5 Doença inflamatória intestinal
mentados. Se o indivíduo apresenta valores séricos A Doença inflamatória intestinal (DII) é uma
baixos de IgA devem ser doseados os anticorpos entidade que engloba a doença de Crohn e a colite
anti transglutaminase tecidular IgG. Nas crianças ulcerosa. São doenças crónicas, com início mais
com menos de dois anos devem ser doseados frequentemente na adolescência e no adulto jovem.
também os anticorpos anti-gliadina desaminada No entanto, podem apresentar-se em qualquer ida-
do tipo IgA. Os anticorpos anti-gliadina IgG têm de durante a idade pediátrica, inclusivamente antes
uma especificidade baixa para doença celiaca, dos quatro anos de idade (doença inflamatória
podendo ser detetáveis em situações como a giar- intestinal de inicio precoce). A fisiopatologia da DII
díase, por exemplo. Os anticorpos anti-endomísio é complexa, sabendo-se que existe predisposição
IgA são doseados caso a suspeita clínica seja forte genética e uma influência importante do ambiente,
e os anteriores não forem diagnósticos. O estudo de infecções gastrointestinais e desequilíbrios do
genético para a determinação da presença dos microbioma intestinal. A nível da mucosa intesti-
genes do complexo - major histocompatibility nal, fatores relacionados com a imunidade inata
complex (HLA) DQ2 e DQ8 é de grande importân- e adquirida, vão desencadear uma resposta infla-
cia pois a sua negatividade tem um elevado valor matória continuada e auto perpetuada, que leva à
preditivo negativo, ou seja, invalida praticamente lesão intestinal. A evolução da DII é marcada por
a suspeita do diagnóstico de DC. Isoladamente agudizações e períodos de remissão clínica, em-
a sua positividade não serve para o diagnósti- bora o processo inflamatório se mantenha, o que
co, pois estes haplótipos podem estar presentes justifica as complicações a longo prazo, caso não
em até 30% da população saudável. O estudo seja convenientemente tratada (fibrose da parede
genético é útil sobretudo para determinar quais intestinal, complicações fistulizantes, osteoporose
dos indivíduos dos grupos de risco beneficiam do e repercussão no crescimento).
rastreio serológico regular.
Na presença de um rastreio serológico 23.2.3.6 Doença de Crohn
positivo deve proceder-se à referenciação para Na doença de Crohn existe um atingimen-
um centro de Gastrenterologia Pediátrica para to transmural do processo inflamatório crónico,
46 SUSANA ALMEIDA

de forma descontínua. Pode envolver qualquer pela corticoterapia ou alimentação oral polimérica
segmento do tubo digestivo, desde a boca até exclusiva (preferencialmente). Todos os doentes
ao ânus. A forma de apresentação depende do deverão iniciar tratamento com imunossupressor
grau de inflamação e do segmento do tubo di- (azatioprina e/ou fármacos anti inibidores dos
gestivo atingido. Na ileite terminal, a anemia e fatores de necrose tumoral - anti TNF).
febre vespertina, associados a perda ponderal e à
diminuição da velocidade de crescimento podem 23.2.3.7 Colite ulcerosa
ser os únicos sintomas. Quando o atingimento é Na colite ulcerosa existe um atingimento
ileo-cólico é típica a diarreia crónica com muco contínuo da mucosa intestinal pelo processo in-
e sangue, acompanhada de dor abdominal, sin- flamatório, com início no reto e extensão proximal,
tomas constitucionais (astenia, anorexia, perda que frequentemente atinge todo cólon, em idade
ponderal, febre) e rebate no crescimento. Quando pediátrica (pancolite). A forma de apresentação
presente, a doença perianal fistulizante é uma mais frequente é a diarreia crónica com muco e
complicação da doença que tem grande impac- sangue, acompanhada de dor abdominal, sin-
to na qualidade de vida. As manifestações extra tomas constitucionais e rebate no crescimento.
intestinais podem também ser o primeiro sinto- São frequentes as queixas de diarreia noturna e
ma da doença, ou surgir em qualquer altura da tenesmo. As manifestações extra-intestinais mais
sua evolução (artrite periférica, eritema nodoso, frequentemente associadas à colite ulcerosa são
episclerite, úveite, litiase renal). a colangite esclerosante, pioderma gangrenoso,
O diagnóstico da doença de Crohn está de- eritema nodoso, artrite periférica e espondilite
pendente do reconhecimento de clínica compatí- anquilosante, uveíte e episclerite. Na colite ul-
vel, corroborada por alguns marcadores analíticos cerosa de longa evolução (mais de dez anos) é
de inflamação crónica (anemia, leucocitose, trom- importante o rastreio do carcinoma coloretal.
bocitose, velocidade de sedimentação globular, e O diagnóstico da colite ulcerosa à semelhan-
proteína C reativa sérica aumentadas e calprotec- ça da doença de Crohn, baseia-se na suspeita
tina fecal aumentada) e da exclusão de infeções clínica e achados laboratoriais compatíveis com in-
(Campylobacter, Yersinia, Salmonella) que possam flamação cónica, embora em casos de atingimento
mimetizar o quadro. A doença é confirmada pelo exclusivamente distal (proctite, proctosigmoidite)
exame endoscópico do tubo digestivo, que deverá os marcadores de inflamação possam estar mini-
incluír uma endoscopia digestiva alta e uma colo- mamente alterados. Deve pedir-se coprocultura
noscopia com ileoscopia. O aspeto macroscópico para exclusão de etiologia infecciosa.
da mucosa intestinal é muito característico, com A doença é confirmada pelo exame en-
ulcerações lineares, pseudopólipos e placas de doscópico do tubo digestivo, que deverá incluír,
fibrina de atingimento descontínuo. O estudo em idade pediátrica, à semelhança da doença
histológico da mucosa intestinal permite fazer de Crohn, uma endoscopia digestiva alta e uma
o diagnóstico. O tratamento inicial tem como colonoscopia com ileoscopia. O aspecto macros-
objetivo a entrada em remissão e pode passar cópico da mucosa intestinal é muito caracteristico,
CAPÍTULO 23. DIARREIA AGUDA E CRÓNICA 47

com edema, perda do padrão vascular e erosões/ O tratamento por via oral é eficaz, e pode realizar-
ulcerações que atingem toda a mucosa, de for- -se com metronidazol 15 mg/kg/dia (máximo de
ma contínua. O estudo histológico da mucosa 750 mg), 3 tomas diárias, durante 5 a 7 dias;
intestinal permite confirmar o diagnóstico. O tra- albendazol 15 mg/kg/dia (máximo de 400 mg),
tamento inicial tem como objetivo a entrada em toma diária única, 5 dias; tinidazol 50 mg/kg (má-
remissão e pode passar pela administração de ximo de 2 g), dose única.
corticoterapia oral ou endovenosa dependendo
da extensão e da gravidade da doença, ou pela 23.2.3.9 Fibrose quística
utilização de compostos aminosalicilados 5-ASA A fibrose quística, com uma incidência na
nas formas mais distais. Nas colites extensas em população caucasiana entre 1:3.500 e 1:5.500
idade pediátrica é aconselhável o tratamento com recém-nascidos, é uma doença genética de trans-
imunossupressor, geralmente a azatioprina em missão autossómica recessiva, resultante de mu-
conjunto com messalasina em dose de manu- tações do gene regulador do transportador iónico
tenção. A utilização de anti TNF está sobretudo de membranas da fibrose quistíca (CFTR). Das
indicada em casos refratários à corticoterapia. múltiplas mutações conhecidas a mais frequente
é a F508del. Trata-se de uma doença crónica,
23.2.3.8 Giardíase com envolvimento de vários orgãos e sistemas,
A Giardia lamblia é um parasita unicelular com uma morbilidade e mortalidade importantes.
flagelado que invade o intestino delgado pro- O prognóstico tem vindo a melhorar na última
vocando atrofia vilositária e consequentemente década com a introdução de novas terapêuticas,
malabsorção. A infeção tem um periodo de in- como os antibióticos inalados, técnicas de cine-
cubação de uma a duas semanas e a clínica de siterapia respiratória e a otimização nutricional.
apresentação é muito variável, desde quadros li- O gene CFTR tem diversas funções, sendo o
geiros, semelhantes a uma gastroenterite comum, transporte de cloro e sódio através das membra-
ou mesmo assintomática, até diarreia crónica com nas celulares o mais importante. Está distribuído
má progressão ponderal, distensão abdominal e por numerosos epitélios (respiratório, seios peri-
anemia. As dejeções são fétidas, abundantes e -nasais, glândulas sudoríparas, pâncreas, tubo
pálidas, podendo existir esteatorreia. As formas digestivo, sistema reprodutivo, fígado e vias bi-
de apresentação mais graves atingem sobretudo liares e epitélio renal), com produção de secre-
doentes com malnutrição prévia, com défice de ções espessas, o que explica a sintomatologia
IgA ou outras imunodeficiências. A giardiase é multissistémica. No entanto, são as complicações
uma causa importante de diarreia do viajante. respiratórias (infeções de repetição, bronquiec-
A idade de apresentação mais frequente é entre o tasias) e as digestivas, descritas de seguida, que
segundo semestre de vida e os dois anos. O diag- mais condicionam o curso da doença em idade
nóstico estabelece-se pela presença de quistos de pediátrica.
Giardia nas fezes, ou muito raramente, pelo acha- As manifestações digestivas podem iniciar-se
do de trofozoitos em biópsias duodeno-jejunais. durante o período neonatal, com ileos meconial
48 SUSANA ALMEIDA

(obstrução do intestino delgado por mecónio (em homozigotia ou heterozigotia composta).


espesso), atraso na eliminação de mecónio ou O diagnóstico pré-natal está disponível e recente-
colestase neonatal principalmente por síndrome mente a doença foi incluida no rastreio neonatal,
da bílis espessa. A insuficiência pancreática (se- através do doseamento da tripsina imunoreactiva,
cundária à autodigestão enzimática do pâncreas que estando aumentado, implica confirmação
por obstrução canalicular) é progressiva ao longo diagnóstica com teste do suor ou estudo gené-
dos primeiros anos de vida, sendo mais precoce tico. Actualmente, a orientação diagnóstica dos
e grave nos doentes com algumas mutações, tal recém-nascidos detetados em rastreio realiza-
como a F508del. Manifesta-se por diarreia com -se em três Centros Nacionais, um dos quais o
esteatorreia (dejeções volumosas, fétidas e bri- Hospital Pediátrico de Coimbra. O tratamento
lhantes). As crianças com fibrose quística têm dos doentes com fibrose quística é multidiscipli-
habitualmente apetite aumentado (exceto quando nar, e tem como objetivo evitar as complicações
estão infetadas), já que não existe enteropatia, pulmonares (profilaxia e tratamento precoce das
mas sim maldigestão dos nutrientes, com a conse- infeções respiratórias) e melhorar o estado nu-
quente malabsorção. Nas crianças sob terapia en- tricional (suplementos de enzimas pancreáticas,
zimática de substituição, a obstipação, por vezes suplementos alimentares hipercalóricos). Estão em
com prolapso rectal pode ser uma manifestação curso diversos ensaios clínicos de fármacos com
da doença. Outra complicação grave nos doentes potencial para regular o gene CFTR e o poder de
com fibrose quística, principalmente nos meses modificar o curso natural da doença.
quentes, é a perda excessiva de sódio e cloro pelo
suor, com risco de desidratação hiponatrémica Leitura complementar
e alcalose metabólica hipoclorémica e hipoca- Desidratação aguda na criança. M. Salgado, S. Martins et al.
liémica. O diagnóstico de fibrose quística pode Saúde Infantil 2009, 31 (3)
estabelecer-se nos doentes com suspeita clinica, Evidence-Based Guidelines for Management of Gastroenteritis.
recorrendo ao teste do suor quantitativo que evi- A. Guarino et al. JPGN 2014 59 (1)
denciará um valor aumentado de cloro, superior Chronic Diarrhea in Children. G Zella, E Israel. Pediatrics in
a 60 mmol/L em duas determinações distintas Review 2012, 33 (11)
e/ou presença de duas mutações do gene CFTR
Capítulo 24.
Dor abdominal aguda e crónica

24
Ricardo Ferreira
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_24
CAPÍTULO 24. DOR ABDOMINAL AGUDA E CRÓNICA 51

24.1 CONTEXTO definida na sua localização, tem a característica,


tal como o nome indica, de doer num local muito
A dor abdominal é uma das queixas mais fre- diferente do local da lesão (i.e. dor no ombro da
quentes em Pediatria. Apesar da sua frequência, patologia subdiafragmática ou dor abdominal na
na grande maioria dos casos trata-se duma situa- pneumonia da base).
ção benigna. Pode até inclusive tratar-se duma
situação não abdominal, como por exemplo a dor Etiologia
referida ao abdómen na pneumonia da base ou Como se referiu anteriormente, as causas de
a simples somatização de estados de ansiedade. dor abdominal são múltiplas, podendo ser gas-
trointestinais ou envolver outros órgãos e sistemas
Apesar de apenas cerca de 1% dos casos de intra-abdominais (génito-urinário por exemplo)
dor abdominal aguda ser de causa cirúrgica, esses ou até ter a sua causa fora do abdómen (causas
casos têm que ser atempadamente diagnostica- pulmonares, cardíacas, hematológicas, metabó-
dos, sob pena de se perder definitivamente parte licas, neurológicas ou até causas desconhecidas
do intestino ou até serem causa de mortalidade ou mal definidas (i.e. dor abdominal funcional,
de que são exemplos a invaginação, a isquémia, cólicas do lactente – primeiro trimestre).
e o volvo intestinais.
A idade da criança é um fator importante a
ter em conta ao elencar as hipóteses de diagnósti-
24.2 DESCRIÇÃO DO TEMA co causal. Se é verdade que a GEA ou a obstipação
podem ocorrer em qualquer idade, há patologias
Tipos de dor mais frequentes em alguns grupos etários. As
Classicamente são classificados três tipos de causas com componente malformativo congéni-
dor: dor visceral, dor somato-parietal e dor refe- to são obviamente mais frequentes no pequeno
rida, consoante a origem do estímulo doloroso e lactente (malrotação intestinal com volvo, doença
a condução neurológica dos estímulos nocicetivos de Hirschsprung, por exemplo) mas por vezes
(tipo de fibra nervosa, nível de entrada na espinhal podem manifestar-se mais tarde. A invaginação
medula). A dor visceral é indefinida, de localização intestinal é mais frequente nos primeiros meses
vaga e tem origem na serosa, no mesentério, na de vida (3 a 18 meses) e se ocorrer acima dos dois
camada muscular e até na mucosa das vísceras anos deve pensar-se numa doença de base que
ocas. A dor somato-parietal é mais precisa na predisponha à invaginação do intestino (ver lição
sua localização, mais intensa e situa-se no local de vómitos). A doença inflamatória intestinal é
de maior inflamação. Traduz envolvimento do mais frequente a partir da idade pré-pubertária.
peritoneu parietal e da musculatura abdominal, A GEA, a obstipação ou uma banal infeção
é agravada pelo movimento, pelo que habitual- viral aguda são as causas médicas mais frequen-
mente o doente está imóvel e concentrado na tes de dor abdominal e a causa cirúrgica mais
dor. A dor referida, apesar de ser relativamente frequente é sem dúvida a apendicite aguda, mas
52 RICARDO FERREIRA

outras etiologias podem estar envolvidas e não de abdómen cirúrgico, nomeadamente oclusão
podem ser esquecidas pois o atraso diagnóstico intestinal. Para além das características da dor, é
acarreta acréscimo de morbilidade e até de mor- muito importante inquirir acerca dos fatores que
talidade. São exemplo as situações associadas a precipitam, agravam ou aliviam, assim como a
a hemorragia digestiva, oclusão ou perfuração progressão dos sintomas associados. Por exemplo,
intestinal, mas também causas extra-digestivas em relação ao vómito, classicamente nas situações
que põem em risco a vida como a miocardite ou cirúrgicas a dor precede o vómito e por vezes alivia
pericardite, cetoacidose diabética e outras causas com o mesmo, enquanto nas situações médicas o
de hipoperfusão intestinal e ainda as vasculites e vómito precede a dor e esta é menos cíclica.
o sindrome hemolítico-urémico.
As situações médicas e cirúrgicas mais fre-
Diagnóstico quentemente envolvidas na dor abdominal aguda
Uma história clínica detalhada e uma ob- (GEA e apendicite aguda, respetivamente) muitas
servação clínica minuciosa são primordiais para vezes apresentam uma progressão de sintomas
a orientação diagnóstica. No entanto, em muitos clássicos que importa conhecer, embora algumas
casos o diagnóstico definitivo não é conseguido vezes possam ter uma apresentação atípica. Na
após uma única observação, pois numa fase inicial GEA habitualmente há febre a preceder ou desde
a clínica pode ser demasiado inespecífica, pelo o início do quadro, anorexia, náusea ou vómitos
que a vigilância, as observações seriadas e o uso que por vezes podem ser incoercíveis mas rara-
judicioso de alguns exames complementares são mente são biliares. O abdómen pode apresentar-
fundamentais. -se com distensão ligeira a moderada mas não
No que diz respeito à semiologia diagnóstica localizada e habitualmente os ruídos abdominais
da dor abdominal, embora esta seja frequentemen- estão aumentados de frequência mas não de tim-
te mal definida, as lesões com origem no esófago bre. As dejeções são líquidas e abundantes caso
distal e estômago apresentam dor epigástrica, as a infeção seja predominantemente do intestino
do intestino delgado apresentam dor na região delgado (frequentemente por rotavírus ou vírus
abdominal mediana ou peri-umbilical e as do cólon Norwalk - género Norovirus). Quando a infeção
nos quadrantes abdominais inferiores. As lesões afeta predominantemente o intestino grosso (co-
relacionadas com a obstrução intestinal são clas- lite infeciosa), as dejeções podem ser de pequena
sicamente do tipo cólica com ou sem intervalo quantidade, com muco e/ou sangue e nestes casos
livre e acompanhadas de vómitos que poderão ser a etiologia bacteriana é mais provável (Salmonela,
biliares se a obstrução é abaixo da ampola de Vater. Campylobacter, Escherichia coli, de entre outros).
Um exemplo clássico em Pediatria de oclusão do Na apendicite aguda habitualmente há anorexia
tubo digestivo sem vómitos biliares é a estenose e a dor tem um padrão de evolução muito típica,
hipertrófica do piloro, mas habitualmente a dor dependendo da intensidade da inflamação, da
não é um sinal predominante. Um doente com progressão do quadro e das estruturas anató-
vómitos biliares deve sempre levantar a suspeita micas e fibras nervosas envolvidas na condução
CAPÍTULO 24. DOR ABDOMINAL AGUDA E CRÓNICA 53

do estímulo nervoso. Inicialmente a dor é mal ulcerosa duodenal. O exame abdominal é de im-
definida e surda de localização peri-umbilical e portância primordial, sendo todos os seus aspetos
só depois progride para uma dor do tipo parietal, igualmente importantes (inspeção, auscultação,
intensa e bem localizada à fossa ilíaca direita. palpação e percussão). Na palpação abdominal o
local que previsivelmente seja mais doloroso deve
A anamnese e o exame objetivo devem ob- ser deixado para último, para não perdermos a
viamente ser completos, dada a multiplicidade de confiança da criança, sem a qual toda a observa-
etiologias médicas e cirúrgicas potencialmente ção fica comprometida. Logo quando vamos ini-
envolvidas. Claro, não devem ser esquecidos os ciar a palpação podemos detetar algumas pistas:
dados epidemiológicos que possam sugerir etio- o doente com dor abdominal real habitualmente
logia infeciosa (viagens, coabitantes com a mes- está a olhar para as nossas mãos, com receio que
ma sintomatologia), nem os dados relacionados a palpação desencadeie dor, enquanto o doente
com a medicação, por exemplo, anti-inflamatórios com dor por ansiedade ou com simulação não
não esteroides (gastrite), anti-epiléticos, imunos- olha para as nossas mãos e por vezes nem sequer
supressores (pancreatite) ou com antecedentes olha para nós, está relativamente alheio ao que
cirúrgicos (bridas). estamos a fazer. Para além dos pontos dolorosos
O rebate sobre o estado geral e hemodinâ- clássicos, é obrigatório procurar sinais de irritação
mico é um dado essencial, pois podem estar em peritoneal, visceromegálias, massas palpáveis ou a
causa situações que exijam um esclarecimento presença de ascite ou de ar livre intra-peritoneal.
rápido (volvo intestinal, invaginação intestinal, A obstipação é uma causa relativamente
hemorragia digestiva significativa). A presen- frequente de dor abdominal (aguda e crónica).
ça de febre traduz habitualmente infeção ou Muitas crianças obstipadas podem apresentar de-
inflamação e está presente nos casos médicos jeções diárias ou em dias alternados, o que por
mais precocemente do que nos casos cirúrgicos. vezes pode atrasar o diagnóstico de obstipação.
O doente grave pode apresentar-se muito irrita- O diagnóstico de obstipação não deve basear-se
do (ou pelo contrário prostrado), com gemido e apenas na frequência das dejeções, pois este crité-
com alteração do tempo de reperfusão capilar, rio por vezes é enganador. Deve inquirir-se acerca
sugerindo mau preenchimento vascular. Nas si- dos hábitos defecatórios para identificar restantes
tuações de dor parietal com irritação peritoneal características: esforço ao defecar, consistência
habitualmente o doente tenta manter-se imóvel, das fezes, diâmetro das mesmas. Apesar de terem
enquanto nas situações de dor visceral mexe- dejeções diárias que por vezes até parecem ser
-se com frequência não apresentando posição diarreicas (falsa diarreia da obstipação), algumas
de conforto. A presença de icterícia e/ou colúria crianças apresentam retenção fecal significativa.
com ou sem acolia sugerem fortemente um en- A palpação abdominal permite identificar feca-
volvimento hepatobiliar. Por outro lado, a dor lomas retidos e em alguns casos está indicada a
epigástrica em barra com irradiação para o dorso radiografia simples do abdómen para avaliação
pode indiciar patologia pancreática ou doença da massa fecal.
54 RICARDO FERREIRA

Por vezes a chave para o diagnóstico causal patologia cuja incidência tem vindo a aumentar
encontra-se fora do abdómen, como já foi dito de forma consistente entre nós. Na suspeita de
anteriormente. É o caso da púrpura de Henoch- doença inflamatória intestinal, os marcadores
Schönlein, uma doença clássica da Pediatria. Por inflamatórios podem ajudar, particularmente na
vezes a dor abdominal precede o exantema que doença de Crohn, nomeadamente a velocidade
tem distribuição e características típicas, pelo que de sedimentação e a proteína C reactiva, mas
a criança pode apresentar dor tipo cólica e até também a trombocitose e a anemia normocrómica
sintomas sub-oclusivos e dejeções com muco e normocítica (anemia da doença crónica). Na doen-
sangue e só quando surge o exantema e/ou al- ça de Crohn por vezes não está presente a tríade
terações articulares é que o diagnóstico se torna clássica (dor abdominal, diarreia e emagrecimento)
óbvio. e a dor abdominal crónica associada a paragem
Os exames complementares a realizar evi- no crescimento ou atraso pubertário podem ser
dentemente devem ser orientados pela história os únicos sinais clínicos. Na suspeita de oclusão
clínica. São úteis não apenas para o diagnóstico, ou de perfuração intestinal, a radiografia sim-
mas também para a deteção de complicações. ples do abdómen continua a ser fundamental. De
A pesquiza de vírus nas fezes, pela rapidez do preferência deve ser obtida de pé (em alternativa
seu resultado é um excelente exame a pedir nos se deitado, solicitar com raios horizontais). Ter
casos em que há dúvida acerca da presença de atenção ao ar livre intra-abdominal (que com o
GEA. Já a coprocultura tem pouco interesse prá- doente de pé se pode coletar na região subdia-
tico, não deve ser solicitada por rotina até porque fragmática direita), à presença de níveis hidroá-
mesmo na diarreia aguda bacteriana nem sempre reos, mas também à distribuição das ansas, que
está indicada a antibioterapia. A ecografia ab- sendo muito assimétrica pode também ser uma
dominal é um exame facilmente disponível, sem pista para sub-oclusão.
radiações e em mãos experientes é altamente No que diz respeito à terapêutica da dor
informativo. É particularmente útil na suspeita de abdominal, esta vai depender do diagnóstico em
invaginação intestinal, onde tem uma acuidade causa. No entanto, não é raro não se conseguir
diagnóstica elevada e até pode ser terapêutica identificar a etiologia para a dor abdominal. Por
(redução hidrostática da invaginação). Permite vezes esta torna-se recidivante, podendo con-
também diagnosticar uma série de situações mé- figurar um quadro de patologia funcional (dor
dicas e cirúrgicas e suas complicações (patologia abdominal funcional recorrente) cujas caracte-
hepatobiliar e pancreática, nefro-urológica, apen- rísticas se encontram agrupadas na classificação
dicite aguda, malrotação intestinal, ascite). Nos internacional dos distúrbios funcionais do apare-
últimos anos tem-se revelado extremamente útil lho digestivo, desenvolvida e atualizada periodi-
na suspeita diagnóstica de doença inflamatória camente por um grupo de peritos internacionais
intestinal (doença de Crohn e colite ulcerosa), (Critérios de Roma IV).
Capítulo 25.
Causas cirúrgicas de dor abdominal

25
Maria Francelina Lopes
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_25
CAPÍTULO 25. CAUSAS CIRÚRGICAS DE DOR ABDOMINAL 57

25.1 CONTEXTO abdómen despertada pela pressão no quadran-


te inferior esquerdo) e o sinal de Blumberg /
Na urgência de cirurgia pediátrica as causas McBurney (hipersensibilidade à palpação no
mais frequentes de dor abdominal aguda por fai- quadrante inferior direito do abdómen com in-
xa etária são: a hérnia inguinal encarcerada e a tensificação da dor à descompressão) podem ser
invaginação intestinal no lactente, e a apendicite positivos. O risco de perfuração ocorre com a
aguda em criança em idade escolar, incluindo a duração dos sintomas por mais de 36 a 48 horas
adolescência. e é suspeitada se existir febre alta (38,5°C), se for
palpada massa abdominal ou retal e se existirem
sinais de peritonite localizada ou difusa.
25.2 DESCRIÇÃO DO TEMA Deve-se fazer o diagnóstico diferencial com:
adenite mesentérica, GEA, patologia anexial no
25.2.1 Apendicite na criança sexo feminino (quisto do ovário /torção, gravidez
ectópica) e infeção urinária.
A apendicite aguda - inflamação aguda do Exames complementares de diagnóstico:
apêndice ileo-cecal com infiltrado neutrofílico da ecografia abdominal e pélvica. Eventualmente
camada muscular - é a causa mais comum de poderão realizar-se hemograma (pode existir
abdómen agudo cirúrgico em crianças de idade ou não leucocitose com neutrofilia) e proteína
escolar e adolescentes; o pico da incidência situa- C reativa (pode estar elevada). A tomografia
-se entre os 10 e os 12 anos e há aumento da axial computorizada realiza-se excecionalmente.
taxa de perfuração nas crianças mais pequenas. Preparação para a cirurgia: administrar flui-
A taxa de mortalidade é de 0,25%. dos endovenosos e antibioterapia endovenosa
A história clássica inclui início com dor pe- logo que estabelecido o diagnóstico e o consen-
riumbilical difusa acompanhada por anorexia, timento informado.
náuseas e vómitos seguida por localização da Principais riscos: complicações infeciosas e
dor ao quadrante inferior direito do abdómen lesão iatrogénica de órgãos adjacentes.
após cerca de seis horas de evolução e febre O tratamento é cirúrgico: a apendicectomia
moderada. pode ser efetuada por laparotomia ou por lapa-
No exame físico pode haver taquicardia, tem- roscopia. A apendicectomia poderá ser diferida
peratura corporal ligeiramente elevada - 37,2 a em seis a 12 semanas se existir estabilidade he-
37,5°C na apendicite aguda não perfurada, ou modinâmica em apendicite perfurada com massa
febre (38 a 39°C) na apendicite em vias de per- abdominal palpável de longo tempo de duração
furação ou perfurada. Pode haver agravamento (aproximadamente uma semana); neste caso opta-
da dor quando se pede à criança para saltar, o -se pelo tratamento conservador (antibioterapia
que significa irritação peritoneal. endovenosa).
A manobra de Rovsing (hipersensibilida- Evolução pós-operatória na apendicite aguda
de à palpação no quadrante inferior direito do não perfurada:
58 MARIA FRANCELINA LOPES

• Duração habitual de internamento: um O risco de perfuração apendicular aumenta


a três dias. com a duração dos sintomas superior a 36-48
• Uma toma de antibiótico endovenoso horas.
(até três). O tratamento primário da apendicite aguda
• Risco de infeção de ferida cirúrgica ou é cirúrgico.
de abcesso abdominal pélvico: 1 a 2%. A perfuração apendicular aumenta muito o
• Regresso à escola / atividade escolar: uma risco de complicações pós-operatórias.
a duas semanas depois.
Evolução pós-operatória na apendicite aguda 25.2.2 Invaginação intestinal
perfurada:
• Duração habitual de internamento: cinco A invaginação intestinal é uma situação em
dias a uma semana. que uma ansa intestinal proximal se introduz den-
• Duração da antibioterapia: sete a dez tro de outra mais distal. É a causa de obstrução
dias. intestinal mais frequente no segundo semestre
• Recuperação mais prolongada: duas a de vida. Nesta faixa etária em 90% dos casos é
quatro semanas. ileo-cólica, sendo na maioria idiopática. Sessenta
• Maior risco de complicações infeciosas: por cento dos doentes têm menos de um ano de
abcesso de parede, intra-abdominal ou idade, com 40% dos casos ocorrendo entre os
pélvico em 10 a 20% dos casos. quatro e os dez meses de idade.
• Ileus prolongado. O quadro clínico típico caracteriza-se por
• Obstrução intestinal. períodos de irritabilidade súbita com choro inten-
• Obstrução das trompas. so e vómito, alternando com períodos de acalmia
e prostração. Dejeções gelatinosas vermelho-
Não esquecer -escuras (aparentando geleia de framboesa) são
A apendicite aguda pode surgir em qualquer um sinal tardio, significando isquemia intestinal
idade mas é mais frequente entre os dez e os e inflamação mucosa. Ao exame físico, em 85%
doze anos. dos casos palpa-se tumoração no quadrante su-
As idades mais precoces têm risco acresci- perior direito, com fossa ilíaca direita vazia. Para
do de perfuração apendicular e de aumento de diagnóstico e tratamento a ecografia abdominal
complicações abdominais pós-operatórias. é o exame de escolha. Na ausência de peritonite
A dor abdominal persistente com mais de seis o tratamento faz-se por redução hidrostática
horas de evolução, especialmente se associada a ecoguiada. Nas contraindicações (peritonite, per-
outros sinais ou sintomas sugere apendicite aguda. furação intestinal) e no insucesso da redução
A clínica pode bastar para o diagnóstico de hidrostática ecoguiada está indicada a interven-
apendicite aguda, mas a ecografia abdominal e ção cirúrgica que consistirá na redução manual
pélvica é um precioso auxiliar nos grupos etários da invaginação e eventual resseção intestinal
pediátricos. em caso de necrose. A recidiva da invaginação
CAPÍTULO 25. CAUSAS CIRÚRGICAS DE DOR ABDOMINAL 59

ocorre em cerca de 5 a 10% de casos, sendo A consequência mais temível é a necrose


habitualmente ileo-ileal e surgindo nas primeiras extensa do intestino e suas sequelas: mortalidade
duas semanas de pós-operatório, havendo ne- elevada ou a síndrome de intestino curto com
cessidade de reintervir cirurgicamente em 75% todas as suas implicações, incluindo a eventual
destes casos. necessidade de transplante intestinal.

Não esquecer Não esquecer


Um lactente no segundo semestre de vida Pequeno lactente com início súbito de dor
que inicia subitamente choro intenso (grita), flete abdominal e vómitos, a maioria das vezes bilia-
as pernas sobre o abdómen e vomita ficando, de res, e com rápida progressão para mau estado
seguida, quieto, e eventualmente apático, pálido geral e silêncio abdominal levanta a suspeita deste
e sonolento evoca o diagnóstico de invaginação diagnóstico. De prognóstico reservado, é uma
intestinal e requer investigação imagiológica (eco- das maiores emergências em cirurgia pediátrica.
grafia abdominal) adicional com vista ao diagnós-
tico e tratamento. 25.2.4 Hérnia inguinal encarcerada

25.2.3 Volvo do intestino médio Na hérnia inguinal encarcerada há aprisiona-


em malrotação intestinal mento no canal peritoneo-vaginal de uma víscera
ou órgão peritoneal. Esta patologia é a causa mais
O volvo do intestino médio é aqui apre- frequente de obstrução intestinal no primeiro se-
sentado principalmente pela extrema gravidade mestre de vida da criança. Setenta por cento dos
envolvente. encarceramentos ocorre em crianças com menos
Ocorre em 90% dos casos no primeiro de um ano de idade. O quadro clínico típico inclui
ano de vida, mas é especialmente frequente no irritabilidade, dor abdominal tipo cólica e vómito.
primeiro mês. Afeta os lactentes com anoma- No exame físico palpa-se tumefação dolorosa ten-
lias de rotação/ fixação intestinal. Na história sa, globosa e lisa na região inguinal ou inguino-
clínica e exame físico realçam-se o início súbito -escrotal. Dependendo da duração dos sintomas,
de manifestações de dor abdominal, os vómi- pode ocorrer distensão abdominal. A redução
tos, o mau estado geral e o silêncio abdomi- da hérnia encarcerada, sob sedação, pode ser o
nal. Dejeção com sangue é já um sinal tardio. único tratamento específico necessário no serviço
A imagiologia (radiografia simples do abdómen de urgência. Em caso de insucesso o tratamento
de pé e eventualmente o estudo contrastado é cirúrgico, procedendo-se à inguinotomia sob
gastrointestinal, assim como a ecografia) pode anestesia geral, redução do conteúdo herniado e
sugerir o diagnóstico. Requer tratamento cirúr- herniotomia/herniorrafia. Eventualmente, em caso
gico de emergência. O tratamento consiste na de necrose de ansa, será necessário proceder a
laparotomia exploradora, desrotação do volvo resseção intestinal pela mesma via (inguinotomia)
e operação de Ladd. ou por laparotomia.
60 MARIA FRANCELINA LOPES

Não esquecer
No exame físico no pequeno lactente com
sinais de dor tipo cólica e ou vómitos nunca esque-
cer a observação e palpação das regiões inguinais.
Capítulo 26.
Patologia frequente em
cirurgia de ambulatório

26
Maria Francelina Lopes
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_26
CAPÍTULO 26. PATOLOGIA FREQUENTE EM CIRURGIA DE AMBULATÓRIO 63

26.1 DESCRIÇÃO DO TEMA (60% dos casos), mas pode ser esquerda (30%)
ou bilateral (10%). Esta patologia é diagnosticada
26.1.1 Hérnias em idade pediátrica num terço dos casos no primeiro ano de vida, com
maior frequência no recém-nascido prematuro ou
Em idade pediátrica as localizações mais com baixo peso. O conteúdo habitual da hérnia no
frequentes de hérnias da parede abdominal são sexo masculino é uma ansa de intestino, ou rara-
a região inguinal, umbilical e linha branca. mente uma franja de epíploon, que se exterioriza
A hérnia da linha branca ou epigástrica através do “processus vaginalis” não obliterado,
é a menos frequente das hérnias da parede ab- enquanto no sexo feminino é o ovário, ou uma ansa
dominal. Manifesta-se como pequena tumefação de intestino, que se exterioriza através do canal
supra umbilical localizada a qualquer nível da linha de Nuck patente. Os pais habitualmente relatam
branca. O seu conteúdo habitual é uma franja de uma tumoração intermitente, na região inguino-
epíploon que pode ficar aprisionado num defeito -escrotal no menino, ou inguino-labial na menina,
congénito da linha branca e originar desconfor- que se manifesta ou aumenta de tamanho com o
to. Não cura espontaneamente e tem indicação choro ou com o esforço. A hérnia não encarcerada
cirúrgica eletiva para herniorrafia sob anestesia geralmente causa apenas desconforto. O encarce-
geral. Não deve ser confundida com a diástase ramento herniário é evidenciado por tumefação
dos retos, uma situação de abaulamento global da dura e dolorosa à palpação na região inguinal
linha branca supra umbilical, causada pelo afasta- acompanhada ou não de sintomas de obstrução
mento dos músculos retos abdominais e que evolui intestinal. O diagnóstico é clínico, feito com base no
espontaneamente para a cura com o crescimento. relato dos pais e na palpação de um espessamento
A hérnia umbilical é frequente no recém- inguinal ou de uma tumefação com as localizações
-nascido. É mais frequente na raça negra rela- já mencionadas. Os principais diagnósticos dife-
tivamente à caucasiana (90% versus 10%). Na renciais no sexo masculino incluem o hidrocelo,
maioria das crianças (95% dos casos) encerra o quisto do cordão e o varicocelo, enquanto no
espontaneamente até aos três anos de idade. sexo feminino inclui o quisto de canal de Nuck.
Geralmente a hérnia umbilical é assintomática, re- A hérnia inguinal requer tratamento cirúrgico. Na
querendo apenas observação. O encarceramento ausência de complicações, a correção cirúrgica
é excecional. Em caso de persistência do orifício (herniotomia ou herniorrafia) é eletiva e atempada
herniário, a herniorrafia eletiva está indicada entre para prevenir o desenvolvimento de complicações
os quatro e os cinco anos de idade. que podem ter consequências graves, tais como o
A hérnia inguinal é a principal causa de encarceramento e o estrangulamento.
cirurgia por hérnia da parede abdominal em idade
pediátrica. É quase sempre de origem congénita 26.1.2 Hidrocelo
(99% dos casos) e afeta aproximadamente 1 a 5%
das crianças. É mais frequente no sexo masculino e No hidrocelo ou no quisto do cordão há
é, habitualmente, unilateral e de localização direita acumulação de líquido peritoneal na bolsa escrotal
64 MARIA FRANCELINA LOPES

ou em quisto inguino-escrotal ao longo de “pro- testículo retrátil é uma situação fisiológica tem-
cessus vaginalis” patente em criança do sexo porária em que habitualmente não está indicada
masculino. O hidrocelo uni ou bilateral é muito a intervenção cirúrgica.
frequente nos recém-nascidos e habitualmente A normal descida do testículo da sua posição
evolui para a resolução espontânea durante os retroperitoneal para a bolsa escrotal começa na
primeiros seis meses de vida ou até aos três anos vida fetal. A prevalência de bolsa escrotal vazia
de idade. O diagnóstico é clínico, não sendo ne- é especialmente alta (30%) no recém-nascido
cessários exames complementares de diagnóstico. prematuro. Aproximadamente 3% dos recém-
Habitualmente há aumento do volume da bolsa -nascidos de termo apresenta bolsa escrotal vazia,
escrotal ao longo do dia, sendo esta mais visível diminuindo para 1% aos seis meses de idade e
ao final do dia. O principal diagnóstico diferencial mantendo a mesma prevalência após o primeiro
é a hérnia inguino-escrotal, sendo que a transilu- ano de vida.
minação permite, habitualmente, o diagnóstico de O TMD é, com maior frequência, unilateral
hidrocelo. A cirurgia eletiva (laqueação e seção alta e localizado à direita, mas em aproximadamente
do “processus vaginalis”) apenas está indicada se 10% dos casos é bilateral. A avaliação em consulta
a patologia persistir após os três anos de idade. de cirurgia pediátrica inicia-se pelos seis meses de
O quisto do canal de Nuck ocorre no sexo idade. O diagnóstico baseia-se na história clínica
feminino e equivale ao quisto do cordão no sexo e na palpação inguino-escrotal, não estando indi-
masculino. A tumoração palpável na região in- cada a realização de ecografia antes da primeira
guinal é habitualmente móvel e indolor e o trata- observação pela cirurgia pediátrica. Dos TMD, ha-
mento cirúrgico (laqueação e seção alta do canal bitualmente em 80% dos casos palpa-se testículo
de “Nuck”) é realizado eletivamente após os três no canal inguinal e em 20% dos casos este não se
anos de idade se a patologia persistir. palpa. Na criança com testículo palpável no canal
inguinal faz-se o diagnóstico de TMD se não se
26.1.3 Bolsa escrotal vazia conseguir tracionar o testículo para a bolsa ou
se, uma vez tracionado até a bolsa, o testículo
A bolsa escrotal vazia é um problema fre- subir para o canal inguinal logo que largado. Nas
quente em pediatria que habitualmente corres- crianças com testículo não palpável este pode ser
ponde a uma das seguintes entidades: testículo atrófico, não existir (agenesia) ou ter localização
não descido (denominado na cirurgia pediátrica intra-abdominal, estando então indicada a ecogra-
portuguesa por testículo maldescido) ou testí- fia abdominal e escrotal para o seu diagnóstico.
culo retrátil. O diagnóstico diferencial entre as O tratamento do TMD é cirúrgico. A opera-
duas situações faz-se pela história clínica e pela ção está indicada entre o primeiro e o segundo
palpação da região inguino-escrotal, sendo da ano de vida. Consiste na orquidopexia (reposicio-
maior importância a sua distinção, uma vez que namento cirúrgico do testículo na bolsa escrotal,
o testículo maldescido (TMD) é uma situação habitualmente por via inguinal) ou na orquidec-
patológica que requer tratamento cirúrgico e o tomia de um testículo atrófico.
CAPÍTULO 26. PATOLOGIA FREQUENTE EM CIRURGIA DE AMBULATÓRIO 65

Nas situações de localização testicular intra- normal do prepúcio à glande. A resolução es-
-abdominal, ou não identificação do testículo, está pontânea da fimose fisiológica ocorre em 89%
indicada laparoscopia para diagnóstico e trata- dos casos nos primeiros três anos de idade e em
mento. Na orquidopexia realiza-se a laqueação 95% a 99% nos primeiros 16 anos. A indicação
e seção do “processus vaginalis” quase sempre para tratamento com corticosteroide tópico pode
patente (90% dos casos) e o testículo é fixado à colocar-se a partir dos três anos de idade se existi-
bolsa escrotal com pontos de sutura reabsorvíveis. rem manifestações de balanites de repetição (pelo
A orquidopexia pode reduzir, mas não previne, menos dois episódios). Nestas, a massagem do
complicações potenciais a longo prazo, como a prepúcio com um creme (ou pomada) de beta-
infertilidade e a neoplasia maligna do testículo. metasona a 0,5mg/g, aplicada duas vezes por dia
A orquidopexia facilita a vigilância de maligniza- durante quatro a seis semanas, e a manutenção
ção testicular ao permitir a palpação testicular. de fisioterapia no banho após paragem do fárma-
O risco de malignidade do testículo (seminoma) co resolve 95% das situações. Por vezes os pais
é quarenta vezes mais elevado nos homens com referem, além da impossibilidade de retrair o pre-
antecedentes de TMD em comparação com a púcio, a formação de um balão durante a micção,
população masculina sem TMD, justificando-se o que é normal. Nos casos de fimose fisiológica
vigilância pós-operatória a longo prazo. assintomática a criança deverá ser referenciada
A distinção entre TMD palpável na região a partir dos oito anos de idade para a consulta
inguinal e o testículo retrátil (variante do normal, de cirurgia pediátrica. A avaliação nesta consulta
sem indicação cirúrgica) faz-se pelos seguintes poderá indicar, em primeira fase, a corticoterapia
critérios de diagnóstico: 1) o testículo vem à bolsa tópica; se persistir fimose, a intervenção cirúrgica
quando tracionado e aí permanece por algum (circuncisão ou prepucioplastia) será indicada na
tempo quando largado; 2) o testículo tem dimen- maioria dos casos até aos doze anos de idade.
sões normais; 3) há história de que o testículo re- A fimose patológica (cicatricial) caracteriza-
side espontaneamente na bolsa por períodos. Na -se pela existência de sinais de cicatrização no
maioria dos casos de testículo retrátil a situação orifício prepucial. Esta é, na maioria das vezes,
evolui para a cura espontânea até à adolescên- pós-traumática, provocada pelo ferimento do pre-
cia. Nos raros casos em que o testículo retrátil púcio após a sua retração forçada, mas pode ser
evolui para TMD está indicada a orquidopexia, consequência de situações clínicas inflamatórias,
justificando-se vigilância a longo prazo. como por exemplo seguindo-se a balanites de
repetição ou por balanite xerótica obliterante.
26.1.4 Fimose A fimose cicatricial tem indicação cirúrgica (cir-
cuncisão ou prepucioplastia) independentemente
Na fimose há um aperto do prepúcio que da idade.
impede a sua retração e impossibilita a exposição O principal diagnóstico diferencial com a
completa da glande. A fimose é habitualmente fimose fisiológica é a existência de aderências
fisiológica nos primeiros anos de vida, por fusão balanoprepuciais. Neste caso estas desaparecem
66 MARIA FRANCELINA LOPES

espontaneamente ao longo dos primeiros anos ocorre poucas horas depois, após completa recu-
de vida não havendo indicação para a sua lise. peração anestésica e após tolerância de ingestão
A fimose não deve ser confundida com a de alimentos. O controlo pós-operatório é reali-
parafimose, situação em que o encarceramento zado na consulta de cirurgia pediátrica entre uma
da glande em prepúcio retraído necessita de tra- a três semanas após a cirurgia.
tamento urgente, procedendo-se á manipulação
prepucial e seu reposicionamento normal sobre
a glande. 26.2 FACTOS A RETER

A intervenção cirúrgica das patologias su- Na consulta de cirurgia pediátrica de am-


pracitadas em crianças saudáveis, excetuando bulatório as patologias mais frequentes incluem
os recém-nascidos é normalmente realizada em fimose, hérnias da parede abdominal, nomeada-
regime de cirurgia de ambulatório, isto é, com mente hérnia inguinal indireta e hérnia umbilical,
internamento de duração reduzida, inferior a 24 hidrocelo e escroto vazio. Porém, as indicações
horas. Habitualmente não é requerida avaliação cirúrgicas mais frequentes incluem a hérnia in-
laboratorial ou de outros exames no pré-operató- guinal e o testículo maldescido, uma vez que
rio. Quando verificada a ausência de critérios de a hérnia umbilical, a fimose, o hidrocelo e o
exclusão a criança é admitida no hospital, no dia testículo retrátil evoluem frequentemente para
marcado para a operação, com um jejum de seis resolução espontânea. As crianças saudáveis são
horas. Após observação conjunta pelo anestesista, boas candidatas para a intervenção cirúrgica em
cirurgião e enfermeira é realizada a cirurgia, em regime de ambulatório, sem pernoita habitual
regra sob anestesia geral. A alta para o domicílio no hospital.
Capítulo 27.
Ortopedia, variantes da normalidade
e problemas frequentes

27
Cristina Alves
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_27
CAPÍTULO 27. ORTOPEDIA, VARIANTES DA NORMALIDADE E PROBLEMAS FREQUENTES 69

27.1 CONTEXTO genu varum ou valgum, são motivos frequentes


de preocupação das famílias e referenciação ao
O conceito de ‘Ortopedia’, surgiu em 1741, Pediatra ou Ortopedista.
quando Nicholas Andry, Professor na Universidade
de Paris, publicou o livro ‘Orthopédie’, onde apre-
sentava uma teoria sobre a anatomia humana, 27.2 DESCRIÇÃO DO TEMA
a estrutura do esqueleto e as características do
crescimento. Aí defendeu para o tratamento de 27.2.1 Noções básicas de crescimento
deformidades músculo-esqueléticas na criança o
exercício, a manipulação e a utilização de talas. A formação dos ossos ocorre em três esta-
Andry criou o termo‘Orthopédie’ pela junção de dios: condensação das células mesenquimatosas
duas palavras gregas: ‘Orthos’, que significa ‘rec- que se tornam modelos para os futuros ossos;
to’ ou ‘sem deformidade’ e ‘pais’, que designa condrificação e ossificação intramembranosa ou
‘criança’. Dois anos depois, o livro foi traduzido endocondral.
para inglês com o título de “Orthopaedia”. A ossificação endocondral ocorre na maioria
dos ossos. Durante o período fetal, os centros de
A Ortopedia desenvolveu-se como especia- ossificação primários desenvolvem-se na diáfise
lidade médico-cirúrgica, dedicada à abordagem dos ossos longos. A ossificação ocorre primeiro
e tratamento das doenças e deformidades dos sob o pericôndrio. Na cartilagem, as células hiper-
ossos, músculos, ligamentos e articulações. As trofiadas degeneram. Em seguida, ocorre a inva-
especificidades da criança e as particularidades são por vasos sanguíneos e o centro do modelo
do esqueleto em crescimento promoveram o de- de cartilagem ossifica-se para formar o núcleo de
senvolvimento da Ortopedia Pediátrica ou Infantil, ossificação primário. A ossificação endocondral
uma vasta área da Ortopedia, dedicada à abor- continua na interface cartilagem-osso. Mais tarde,
dagem e tratamento da criança com problemas desenvolvem-se os núcleos de ossificação secun-
músculo-esqueléticos. É crucial que a maioria dos dários nas extremidades dos ossos. A cartilagem,
médicos tenha noções sobre o crescimento da interposta entre os núcleos de ossificação
criança, variantes da normalidade e problemas primários e secundários transforma-se em
ortopédicos frequentes, de modo a que a referen- placa de crescimento.
ciação das crianças que necessitam de cuidados
ortopédicos possa ocorrer de forma correta e Os núcleos de ossificação primários dos
adequada, já que um diagnóstico precoce está ossos longos desenvolvem-se antes do nascimen-
frequentemente associado a melhor prognóstico. to, enquanto os núcleos de ossificação primários
para os ossos pequenos, como a rótula e ossos de
As variantes da normalidade do desenvolvi- carpo e tarso, desenvolvem-se durante a infância.
mento dos membros inferiores, tal como a marcha Os núcleos de ossificação secundários desen-
com progressão interna ou externa dos pés, o volvem-se também durante a infância e fundem-se
70 CRISTINA ALVES

Figura 1. Linha de prisão de Harris observada na tíbia distal de criança de sete anos e sete meses após ter sofrido uma artrite sép-
tica do tornozelo. A linha é paralela à fise de crescimento, inferindo-se assim que ocorreu um insulto em determinado momento,
seguido de recuperação da atividade fisária. Também se observa linha de Harris no perónio distal. Imagem do autor.

com os núcleos de ossificação primários no final do nascimento. O osso reticulado é gradualmente


deste periodo, adolescência e início da vida adulta. substituído pelo osso lamelar durante a infância.
Assim, e dado que a maturação óssea continua A espessura cortical também aumenta durante
durante toda a infância e adolescência de forma toda a infância. Estas mudanças são fatores im-
razoavelmente ordeira, a extensão da ossificação portantes na origem de padrões variáveis de le-
documentada radiograficamente, constitui um sões esqueléticas observadas durante a infância,
padrão para avaliar a maturidade esquelética. adolescência e vida adulta. A espessura crescente,
Durante o período fetal é formado o osso a estrutura lamelar e a proporção de cálcio ósseo
reticulado. Este tipo de osso caracteriza-se por mais elevada contribuem para dar grande resistên-
ter pouca estrutura, apresentando um teor de cia às forças de tensão, mas pouca flexibilidade.
colagénio elevado, e uma grande flexibilidade A placa de crescimento dos ossos longos
que se torna essencial para a moldagem no pro- desenvolve-se entre os núcleos de ossificação
cesso de descida pelo canal de parto na altura primários e secundários. A função da placa de
CAPÍTULO 27. ORTOPEDIA, VARIANTES DA NORMALIDADE E PROBLEMAS FREQUENTES 71

crescimento é determinar o crescimento longitu- Durante o crescimento, as proporções do


dinal. Este processo é conseguido através de um corpo assumem gradualmente a forma adulta.
sistema complexo de proliferação e maturação dos O crescimento dos membros superiores ocorre mais
condrócitos, da produção da matriz óssea e mi- cedo do que o dos inferiores. Nos membros infe-
neralização, seguida de ossificação endocondral. riores são os pés que crescem mais precocemente.
As placas de crescimento dos ossos redondos, Nos primeiros dois anos de vida, o crescimento
tais como os ossos do tarso ou corpos vertebrais, rápido ocorre no tronco, enquanto na adolescência
têm um potencial de crescimento mais limitado. acontece sobretudo nos membros inferiores.
A velocidade de crescimento é superior nos
A placa de crescimento tem três zonas: primeiros anos de vida, declina depois e aumenta
a zona de reserva fica junto aos núcleos de na puberdade. Uma criança atinge cerca de
ossificação secundários e é uma zona de relativa três quartos da sua altura adulta por volta
inatividade, que não participa no crescimento dos nove anos de idade. As zonas de cres-
longitudinal do osso, mas produz matriz e tem cimento são variáveis: no membro superior, o
funções de armazenamento; a zona proliferativa crescimento é mais rápido nas regiões do ombro e
é a área de replicação das células cartilagíneas punho; no membro inferior o crescimento é mais
e de crescimento rápido, possibilitado pela alta rápido na região do joelho.
taxa metabólica e pelo abundante suprimento de A taxa de crescimento dos tecidos varia com
sangue, oxigênio, glicogénio; e a zona hiper- a idade. A gordura subcutânea desenvolve-se du-
trófica consiste em três subzonas (maturação, rante o primeiro ano, fornecendo reserva nutricio-
degeneração, e calcificação provisória). nal e protegendo contra o frio e lesões. O depósito
A metáfise, sendo muito vascularizada, é o desta gordura também disfarça o arco longitudinal
local onde ocorre a formação e a remodelação do pé, contribuindo para uma aparência de pé
do osso. A matriz calcificada é removida, sen- plano, que é normal nos primeiros anos de vida.
do formado osso fibroso que é posteriormente Para além do pé plano, outras variações tran-
substituído por osso lamelar. sitórias do crescimento da criança, como a
marcha com progressão interna ou externa
Os problemas na placa de crescimento dos pés e o genu varum ou valgum podem
constituem uma proporção significativa das doen- ser confundidas com alterações patológicas.
ças do sistema músculo-esquelético na criança. A maioria destas situações, que constituem
A placa de crescimento e a metáfise são os lo- variantes da normalidade, resolve-se com o
cais preferencialmente atingidos por infeções, tempo e raramente necessita de qualquer
neoplasias, fraturas e distúrbios metabólicos e tratamento.
endócrinos, que podem afetar o crescimento.
Breves períodos de atraso de crescimento podem No período da adolescência, e até à matu-
traduzir-se por linhas de prisão de Harris, que ridade esquelética, podem ocorrer algumas
podem ser observadas em radiografias. (Figura 1). doenças como a escoliose ou a epifisiólise
72 CRISTINA ALVES

femoral superior. A determinação da maturi- 27.2.2 Abordagem da criança com suspeita


dade esquelética e a estimativa do crescimento de problema músculo-esquelético
global, em determinada fase, são importantes
na abordagem e para a decisão terapêutica A avaliação clínica é o primeiro e mais im-
em diversos contextos, desde a assimetria portante passo nesta abordagem. Cada situação
de comprimento dos membros à escoliose. requer um diagnóstico, mas apenas algumas
A estimativa da idade/maturidade óssea necessitam tratamento. A avaliação da criança
pode se obtida por diversos métodos, a se- é muitas vezes difícil, no que concerne à reali-
lecionar consoante a situação concreta, tais zação da história clínica e exame objetivo. Lidar
como: radiografias da mão e do punho não adequadamente com a família é crucial.
dominantes (interpretação de acordo com o
atlas de Greulich-Pyle); radiografia do cotovelo A deformidade, a alteração da função
(baseado na ossificação da apófise olecranea- e a dor são as grandes categorias de queixas
na); estádio de Tanner (ver lição de adolescên- que motivam Consulta em Ortopedia Pediátrica.
cia); sinal de Risser (extensão da ossificação Aqui como em todos os quadros pediátricos, é
da crista ilíaca em radiografia com incidência essencial considerar a idade da criança.
anteroposterior).
As deformidades posicionais como pro-
As doenças que afetam o sistema músculo- blemas rotacionais, pés planos, e alterações do
-esquelético e causam limitação das atividades eixo dos membros inferiores são preocupações
são frequentes na criança e nalgumas a sua pre- comuns, mas raramente têm significado patoló-
valência tem aumentado, já que as crianças têm gico. Problemas mais significativos, tais como as
maior probabilidade de sobreviver hoje a doenças deformidades congénitas e de causa neuromus-
que eram fatais no passado (quadro 1). cular, exigem uma avaliação cuidadosa, devendo
ser estabelecido quando ocorreu o seu início. Se
a família tiver fotografias prévias da criança, estas
podem auxiliar a estabelecer a evolução da doença.
A alteração da função pode ser atribuída à
Doença Prevalência
estimada/1000 presença de deformidade, fraqueza muscular, ou
Paralisia Cerebral 2.5 dor. A expressão da dor depende da idade:
Trissomia 21 1.1
o lactente apresenta-se geralmente irritado
Displasia do desenvolvimento 1.0
da anca e evita mobilizar a região dolorosa, sendo
Pé boto 1.0 aparente uma pseudoparalisia do membro;
Distrofia muscular 0.06 a criança pode apresentar diminuição da
função, evitar mover a parte afetada, ou
Quadro 1. Prevalência estimada de problemas ortopédicos queixar-se de desconforto; o(a) adolescente
na criança.
geralmente verbaliza a queixa de dor.
CAPÍTULO 27. ORTOPEDIA, VARIANTES DA NORMALIDADE E PROBLEMAS FREQUENTES 73

A dor é um sintoma importante e evoca global do sistema músculo-esquelético, necessá-


diagnósticos que podem traduzir situações de ria para compreender o problema específico. Por
trauma, inflamação, infeção ou patologia neo- exemplo, o conhecimento da presença de laxidez
plásica. É frequente atribuir o problema ligamentar generalizada é valioso na avaliação de
musculo-esquelético da criança ao trauma, um pé plano. A criança deve ser observada pela
mas importa salientar que este é um evento frente, pelos lados e por detrás e o exame físico
frequente em pediatria, pelo que a história deve incluir: inspeção geral: olhar para a con-
clínica e o exame objetivo devem ser suficien- figuração corpo, simetria, proporções e presença
temente criteriosos para excluir patologia de deformidades; pélvis: colocar as mãos sobre as
de maior gravidade, como as infeções ou as cristas ilíacas e localizar as espinhas ilíacas antero-
doenças neoplásicas. -superiores e verificar se estão niveladas; pedir à
criança para levantar uma perna de cada vez, para
A história prévia da criança é essencial, verificar se existe fraqueza dos músculos abdutores;
para compreender o seu estado de saúde geral coluna: observar o alinhamento sagital da coluna
e contextualizar o problema actual. É importante e avaliar a simetria torácica e lombar e pedir à
conhecer factos referentes a: história pré e pe- criança para se inclinar para a frente, mantendo os
rinatal; idade de aquisição das etapas chave do joelhos em extensão, de forma a verificar eventual
neurodesenvolvimento; intuição e preocupações assimetria ou evidência de escoliose (manobra de
dos pais; história familiar: se outros familiares têm Adams); marcha: observar o andar, primeiro com
problemas semelhantes. a marcha normal e, em seguida, se possível, na
ponta dos pés e em calcanhares. Procurar assi-
27.2.3 Exame físico metria, irregularidade da cadência, ou fraqueza
muscular; mobilidade articular: geralmente, o
É importante aproximar-se da criança de for- arco de movimento é maior na infância e diminui
ma amigável e gentil e, em alguns casos, pode com a idade; avaliação de deformidades: em
ser útil começar por observá-la no colo da mãe. referência aos planos do corpo (frontal, sagital,
Há que tranquilizar a criança. Se a criança perma- transverso), na posição anatómica. A maioria das
necer assustada ou pouco colaborante, pode-se deformidades são multiplanares e não ocorrem
começar por observar um dos pais ou irmãos. Se a apenas num dos planos; palpação: procurar mas-
criança não quiser caminhar, os pais podem levá-la sas e pontos dolorosos.
para um lado da sala e afastar-se depois, já que
ela irá geralmente caminhar ou correr de volta 27.2.4 Variantes da normalidade
para eles. Se a criança tem dor, o local doloroso
deve ser examinado por último. 27.2.4.1 Problemas torsionais
Um exame geral deve preceder o exame dirigi- dos membros inferiores
do à queixa principal. Assim, não se ignoram outros Os problemas torsionais, que as famílias
problemas ortopédicos e adquire-se uma visão verbalizam como ‘andar com os pés para dentro’
74 CRISTINA ALVES

Figura 2. O ângulo de progressão do pé é estimado Figura 3. Rotações interna e externa das ancas avaliadas
pela observação da criança a caminhar. A variabilidade com a criança em decúbito ventral. A variabilidade
da normalidade é mostrada a verde. da normalidade é mostrada a verde.

ou ‘pés para fora’ são, na sua maioria, variantes crescimento está associado com rotação lateral,
da normalidade, que não carecem de qualquer é expectável que a anteversão femoral e a torção
tratamento, mas causam ansiedade significativa tibial melhorem com o tempo. Em contraste, a
à família. torção lateral da tíbia geralmente agrava com o
Versão, em ortopedia, é um termo que des- crescimento.
creve variações normais de rotação do membro, Na abordagem dos problemas torsionais, é
enquanto torsão significa versão além de ± 2 necessário estabelecer um diagnóstico correto e
desvios-padrão da média, sendo ‘anormal’ e lidar de forma eficaz com a família.
correspondendo a uma «deformidade». De salien- A história é importante na avaliação da re-
tar que o membro inferior gira externamente com percussão deste problema e na exclusão de ou-
a idade, com diminuição da anteversão femoral tros. É importante ter conhecimento do seu início,
e aumento da versão externa da tíbia. da gravidade, da limitação funcional e do trata-
O membro inferior gira em sentido medial mento prévio. A história do neurodesenvolvimento
(interno) durante a sétima semana fetal, para é essencial, para excluir patologia neuromuscular.
conduzir o hallux para a linha média. Com o É importante saber a história familiar, dado que os
crescimento, a anteversão femoral diminui para problemas rotacionais são geralmente herdados.
cerca de 30˚ ao nascimento e 10˚ na maturida- A observação do perfil rotacional permite
de, podendo ser maior no sexo feminino e em obter as informações necessárias para estabelecer
algumas famílias. Com o crescimento, a tíbia gira o nível e a gravidade de qualquer problema de
lateralmente de cerca de 5˚ ao nascimento para torção na criança. Para isso é necessário avaliar
cerca de 15˚ na maturidade esquelética. Porque o quatro aspetos: marcha e corrida da criança
CAPÍTULO 27. ORTOPEDIA, VARIANTES DA NORMALIDADE E PROBLEMAS FREQUENTES 75

Figura 4. A. Em decúbito ventral, e deixando o pé cair para a Figura 5. Pé aduto, com Figura 6. Pé normal, com
sua posição de repouso natural, é possível verificar o ângulo bordo externo curvo. bordo externo recto.
coxa-pé e a forma do pé.

(figura 2): estimar o ângulo de progressão do pé


(diferença angular entre o eixo do pé e a linha
de progressão durante a marcha); versão femo-
ral (figura 3): medir a rotação interna e externa
da anca com a criança em decúbito ventral e os
joelhos flectido a 90º (ambos os lados devem
ser avaliados simultaneamente, sendo a rotação
interna geralmente inferior a 70º); torção tibial
(figura 4): avaliar o ângulo coxa-pé (diferença
angular entre os eixos do pé e da coxa) com a
criança em decúbito ventral e o joelho fletido em Figura 7. Menina de seis anos com anteversão femoral exagerada.
ângulo reto. O ângulo coxa-pé mede o estado
de rotação tibial; avaliar o pé para a presença
de aduto (figura 5): o bordo lateral do pé é nor-
malmente reto (figura 6). aumentada e ou torção tibial interna, corrige-se ge-
ralmente de forma espontânea, ao longo do tempo.
Realizado o exame geral e o perfil rotacio- A anteversão femoral exagerada (figura 7)
nal, é geralmente possível estabelecer a causa da é mais acentuada entre os quatro e os seis anos
deformidade rotacional. de idade, resolvendo-se progressivamente. Estas
A marcha com ‘pés para dentro’, fre- crianças gostam de se sentar em W e têm uma
quentemente relacionada com anteversão femoral rotação interna das ancas superior a 70º. Contudo,
76 CRISTINA ALVES

Figura 8. Os valores normais para o ângulo do eixo do joelho, Figura 9. Joelho varo (genu varum): observa-se aumento da
com ± 2 desvios-padrão (adaptado de Heath e Staheli, 1993). distância intercondiliana (entre os côndilos femorais mediais).

qualquer tentativa para controlar a forma como no intervalo normal são fisiológicas. O intervalo
a criança caminha, se senta ou dorme, contribui da normalidade para o ângulo de alinhamento
apenas para gerar frustração e conflito entre a do joelho altera-se com a idade.
criança e os pais. Sapatos ortopédicos, palmi- No segundo ano de vida, é frequente o genu
lhas ou talas noturnas são ineficazes e não varum (Figura 9), enquanto o genu valgum é co-
têm qualquer benefício a longo prazo. mum pelos três a quatro anos (Figura 10).

Enquanto a torção tibial interna melhora com Na avaliação de uma criança com genu va-
o tempo, a torção tibial externa tende a agravar e rum ou valgum é importante estabelecer o início
pode estar associada a dor no joelho, que surge da deformidade, se houve lesão ou doença prece-
na articulação patelofemoral e é presumivelmen- dente, se a deformidade é progressiva, se existem
te causada pelo desalinhamento do joelho. Este fotografias antigas ou radiografias disponíveis
fenómeno é mais acentuado quando a torção para rever, qual a saúde geral da criança, se a
tibial externa se associa a torção femoral interna, dieta é adequada e se existem outros membros
produzindo um ‘síndrome do mau-alinhamento’. da família afetados.

Genu varum e genu valgum Perante a suspeita de um desvio do eixo sub-


Genu Varum (joelho varo) e genu valgum jacente a uma alteração patológica, será de realizar
(joelho valgo) são deformidades do plano frontal uma radiografia anteroposterior extra-longa dos
do joelho, em que o ângulo de alinhamento dos membros inferiores, preferencialmente em carga.
joelho se encontra ± 2 desvios padrão desviado da Se a criança tem uma deformidade generaliza-
média (Figura 8). As variações que se encontram da, será necessário realizar exames laboratoriais,
CAPÍTULO 27. ORTOPEDIA, VARIANTES DA NORMALIDADE E PROBLEMAS FREQUENTES 77

Figura 10. Joelho valgo (genu valgum): observa-se aumento


da distância intermaleolar (entre maléolos tibiais mediais).

incluindo hemograma e doseamentos de cálcio,


fósforo, fosfatase alcalina e creatinina.

27.2.4.2 Pé plano
O pé plano caracteriza-se por uma grande
área de contato plantar. Está geralmente associado
a um calcanhar valgo e a uma redução na altura do
arco longitudinal. Pode ser fisiológico ou patológi-
co. O fisiológico é flexível e constitui uma variante
da normalidade; o patológico apresenta alguma
rigidez, e, geralmente, necessita de tratamento.
O pé plano flexível ou fisológico está pre-
sente em quase todas as crianças, e em cerca
de 15% dos adultos. O pé plano é muitas vezes
familiar, sendo mais frequente nas sociedades
em que as pessoas usam sapatos, nos obesos e
nos indivíduos com laxidez articular generalizada.
Em ortostatismo, o pé encontra-se plano e o
calcanhar pode mostrar valgo. O arco reaparece
quando a criança se coloca em pontas dos dedos,
observando-se uma concomitante varização do Figura 11. Pé plano flexível, que não necessita qualquer
tratamento.
calcanhar (Figura 11).
78 CRISTINA ALVES

O torcicolo persiste geralmente até ao ano


de idade.
A etiologia do torcicolo não está completa-
mente esclarecida. O exame clínico é geralmente
suficiente para estabelecer o diagnóstico. A eco-
grafia e a ressonância magnética cervical devem
ser realizadas em raros casos selecionados.
O tratamento do torcicolo é essencialmente
conservador, geralmente por fisioterapia, devendo
os pais também receber instruções que lhes per-
mitam realizar fisioterapia parental no domicílio.
Figura 12. Torcicolo congénito. O alongamento manual controlado é seguro e
eficaz no tratamento do torcicolo muscular congé-
nito em crianças com idade de inferior a um ano.
O pé plano flexível não requer tratamento, As indicações para tratamento cirúrgico são
nem é fonte de incapacidade funcional. muito raras. A fibrose do esternocleidomastoideu
A seleção dos sapatos é uma preocupação desaparece espontaneamente, na grande maioria
das famílias, educadores e profissionais de saúde. dos lactentes.
O sapato deve proteger o pé de traumatismos e
de variações de temperatura. Os melhores sapatos 27.2.5.2 Escoliose
são aqueles que menos interferem com a função A escoliose é uma deformidade complexa da
e melhor mimetizam o estado de pés descalços. coluna, que atinge os planos frontal, transverso
Devem estar bem ajustados, para evitar quedas e sagital. Define-se como uma curva com ângulo
e compressão dos dedos. superior a 10º numa radiografia extralonga da
coluna, realizada no plano frontal. Na criança
27.2.5 Problemas ortopédicos frequentes em crescimento, estas curvas podem progredir
de forma significativa.
27.2.5.1 Torcicolo congénito A escoliose classifica-se consoante a idade
O torcicolo afecta 0,4% dos recém-nascidos de início como escoliose infantil, se ocorre em
e resulta do encurtamento unilateral do esterno- crianças menores de três anos de idade; esco-
cleidomastoideu. Ocasionalmente, pelas duas a liose juvenil, se ocorre em crianças dos quatro
três semanas de idade pode detetar-se uma tu- aos nove anos, e escoliose do adolescente,
moração palpável e indolor no esternocleidomas- se ocorre em pessoas com mais de dez anos.
toideu, com cerca de um a três cm de diâmetro. Atualmente define-se a escoliose como precoce
A cabeça encontra-se inclinada e flectida para o ou tardia, consoante ocorre antes ou depois de
lado da tumoração (Figura 12). cinco anos de idade.
CAPÍTULO 27. ORTOPEDIA, VARIANTES DA NORMALIDADE E PROBLEMAS FREQUENTES 79

Figura 14. Proeminência costal aquando da realização da


manobra de Adams, sugestiva de escoliose.

É fundamental perceber a idade de início


da deformidade da coluna e estimar o potencial
de progressão da curva, uma vez que este será
tanto maior quanto menor for a maturidade es-
quelética da criança.
Figura 13. Sinais clínicos sugestivos de escoliose: ombros É importante realizar um exame neurológico,
desnivelados, curvatura da coluna vertebral, cintura pélvica
incluindo as caraterísticas da marcha, e avaliar
assimétrica.
o comprimento dos membros e a marcha. Há
que verificar a simetria do tronco e das cinturas
A maioria dos casos de escoliose (80%) é escapular e pélvica (Figura 13).
idiopática, já que não é identificada qualquer A manobra de Adams consiste em pedir ao
causa. Os restantes 20% ocorrem no contexto doente para flectir o tronco para a frente, man-
de síndromes (escoliose síndrómica) ou anomalias tendo os joelhos em extensão e permite avaliar a
congénitas da coluna vertebral (escoliose con- simetria da grelha costal e detectar uma eventual
génita). No exame clínico, é essencial excluir ou rigidez da coluna (Figura 14).
confirmar estigmas sugestivos de síndrome de
Marfan ou de neurofibromatose. É importante Na radiografia da coluna com incidência
determinar se a criança tem dor, já que as for- postero-anterior, a curva escoliótica mede-se pelo
mas dolorosas sugerem etiologia inflamatória, método Cobb: ângulo entre as duas vértebras com
infeciosa ou neoplásica. maior inclinação relativamente ao sacro. (Figura 15).
80 CRISTINA ALVES

Nos doentes com escoliose a monitorização


regular da progressão da curva tem que ser regu-
lar, geralmente a cada seis meses. As opções tera-
pêuticas resumem-se a vigilância, ortótese (colete)
ou correção cirurgica. Cerca de 90% das curvas
são de pequenas dimensões e exigem apenas
monitorização. Está provado que exercícios físicos,
estimulação elétrica e técnicas de manipulação
são ineficazes e devem ser evitadas.
De uma forma geral, curvas com ângulos de
Cobb <20˚, necessitam apenas de observação e
curvas > 20º necessitam de seguimento, sendo
que as curvas progressivas com ângulo de Cobb>
25º em crianças com crescimento residual im-
portante devem ser alvo de aplicação de colete,
reservando-se a correção cirúrgica para curvas
que excedem os 40º.

27.2.5.3 Displasia do Desenvolvimento


da Anca
A Displasia do Desenvolvimento da Anca
(DDA) é um termo que descreve um espetro de
anomalias anatómicas da anca que podem ser
congénitas ou desenvolver-se durante a infância
ou adolescência. O espetro da doença engloba
desde formas leves, de displasia acetabular a si-
Figura 15. Radiografia de doente com escoliose de curva tuações graves, como as luxações teratológicas
tripla e medição do ângulo de Cobb em cada curva.
da anca. Estas, ocorrem antes do nascimento e
cursam com deformidade grave do acetábulo e
O sinal de Risser, mede a proporção de fémur proximal.
ossificação da crista ilíaca, permitindo estimar As estimativas de incidência da DDA de-
a maturidade esquelética, crescimento residual pendem dos critérios de diagnóstico. A instabili-
expectável para a coluna e o risco de progressão dade da anca pode ser observada em 0,5 a 1%
da curva. Este risco é mais importante para os das articulações. A DDA ocorre em cerca de 1 a
graus de Risser 0-1-2 , sendo inferior no grau de 20:1000 crianças nascidas. Pensa-se que metade
Risser 3, quando já se observa 75% de ossificação das mulheres que desenvolvem coxartrose tem
da apófise ilíaca. displasia acetabular pré-existente.
CAPÍTULO 27. ORTOPEDIA, VARIANTES DA NORMALIDADE E PROBLEMAS FREQUENTES 81

Figura 16. Protocolo de rastreio selectivo da DDA em Figura 17. Sinal de Ortolani: é possível sentir um ‘clunk’, por
Portugal, para crianças com factores de risco e sinais de vezes audível, correspondente à redução da anca.
instabilidade da anca.

A etiologia da DDA é multifactorial, podendo Reconhecendo que o diagnóstico preco-


existir formas poligénicas hereditárias. A DDA é mais ce da DDA é fundamental para um bom resul-
frequente nas meninas, em crianças nascidas de tado, a Sociedade Portuguesa de Ortopedia e
parto pélvico e em crianças com laxidez articular. Traumatologia e a Sociedade Portuguesa de
A anca esquerda é a mais frequentemente afectada. Pediatria e a Associação Portuguesa de Medicina
A displasia acetabular residual é frequente Geral e Familiar estabeleceram um protocolo de
em crianças com DDA e pode ocorrer mesmo após rastreio selectivo da DDA (Figura 16) .
redução precoce e adequada da anca. A dor é Todos os recém-nascidos devem ser exa-
mais frequente na adolescência ou idade adulta minados, no sentido de verificar a presença
em doentes com subluxação grave ou quando ou ausência de sinais de instabilidade da anca.
existe um falso acetábulo. Os sinais de Ortolani (o observador sente que a
82 CRISTINA ALVES

Figura 18A. Limitação da abdução da anca esquerda em Figura 18B. Ecografia da anca: Luxação da cabeça femoral.
lactente.

anca é colocada no acetábulo enquanto realiza


manobra de abdução e ligeira tracção da anca
em flexão) e Barlow (o observador sente que a
anca é luxável quando realiza manobra de adu-
ção e pressão em sentido posterior) devem ser
pesquisados (Figura 17).

É importante ter a noção de que os sinais de


DDA mudam com a idade da criança. A incidência
de instabilidade da anca diminui cerca de 50% Figura 19. Radiografia da bacia numa criança com luxação
da anca esquerda.
na primeira semana de vida. O exame deve ser
repetido de forma gentil e suave. A criança deve
estar tranquila e confortável. Os sinais clássicos de
limitação da abdução da anca e encurtamento do Quando estão presentes fatores de risco para
membro (sinal de Galeazzi) aumentam ao longo DDA, a criança deve ser examinada repetidamente
das primeiras semanas e meses de vida (Figura e submetida a um exame imagiológico. A ecografia
18). As luxações bilaterais da anca são as mais da anca será o exame de escolha até aos quatro
difíceis de diagnosticar. a seis meses de idade (Figura 18B), sendo que, no
CAPÍTULO 27. ORTOPEDIA, VARIANTES DA NORMALIDADE E PROBLEMAS FREQUENTES 83

Figura 20. Protocolo de utilização da tala de Pavlik, seguido no Serviço de Ortopedia Pediátrica do Hospital Pediátrico- CHUC.

Hospital Pediátrico de Coimbra, a radiografia é uti- que dificulte uma eventual redução fechada ou
lizada geralmente só após essa idade e/ou quando aberta.
a ecografia é de difícil execução ou não permite a Em crianças com idade superior a seis meses
visualização adequada de todas as estruturas (figura ou falência de tratamento com tala de Pavlik, está
19). Numa anca displásica, o ângulo alfa (ângulo indicada a redução fechada ou aberta. No Serviço
entre o ilíaco e o teto acetabular) é inferior a 60º. de Ortopedia Pediátrica do Hospital Pediátrico –
Na abordagem de crianças com DDA, os CHUC, os pais podem escolher entre redução fe-
principais objetivos são o diagnóstico precoce, a chada gradual por programa de tracção no arco ou
redução da luxação, evitar a necrose avascular, redução sob anestesia geral no Bloco Operatório,
e corrigir a displasia residual. com tenotomias do adutor longus ± psoas e gesso
Até aos seis meses de idade, a tala de Pavlik, pelvipodálico. Em crianças com idade superior a 18
que permite o movimento em flexão e abdução meses, além da redução aberta, são geralmente
da anca, pode ser aplicada no tratamento da DDA necessárias osteotomias do fémur e/ou ilíaco. Se
(Figura 20). É necessário monitorizar a criança a obtenção de uma redução concêntrica da anca
clínica e imagiologicamente. Se a anca não estiver é fulcral, evitar a necrose avascular é de extrema
reduzida em duas a três semanas, este tratamento importância, já que esta complicação altera o
deve ser abandonado, para evitar deformidade da crescimento femoral proximal, cria deformidade,
cabeça femoral ou fixação da anca em posição e leva a artrite degenerativa prematura.
84 CRISTINA ALVES

Figura 21. Pé boto bilateral.

Após a cirurgia, a criança deve ser cuida- O pé boto trata-se preferencialmente pelo
dosamente acompanhada para avaliar o efeito Método de Ponseti, sendo a taxa de sucesso su-
do tempo sobre o crescimento, a redução, e o perior a 90% para o pé boto idiopático. A cor-
desenvolvimento acetabular. A frequência de es- reção gradual é conseguida pela manipulação e
tudos radiográficos é individualizada, de acordo engessamento, segundo o Método de Ponseti
com a gravidade da DDA e a evolução. (Figura 22). O equino é a última deformidade a ser
corrigida, geralmente através de uma tenotomia
27.2.5.4 Pé Boto percutânea do tendão de Aquiles. Quando reti-
O pé boto é uma deformidade congénita rado o ultimo gesso, é aplicada uma ortótese de
complexa que inclui componentes de cavo, aduto, Dennis-Bowne, com duas botas unidas por uma
varo, equinismo e rotação medial do pé (Figura 21). barra, que visa manter o pé corrigido e deve ser
A deformidade ocorre em aproximadamente 1 em mantida durante o periodo noturno até a criança
1000 nascimentos, é bilateral em metade dos casos, ter cinco anos de idade.
e afeta mais frequentemente o sexo masculino. O pé boto deve ser diferenciado do me-
tatarso aduto e varo. Esta é a deformidade
A etiologia do pé boto é multifatorial. Pode mais frequente do pé e caracteriza-se por uma
ser idiopático ou estar associado com outras ano- convexidade do bordo lateral do pé. Está as-
malias congénitas, defeitos do neuro-eixo, ano- sociado com a displasia da anca em 2% dos
malias do sistema urinário ou sistema digestivo, casos, pelo que é essencial um exame clínico
e outros problemas músculo-esqueléticos. cuidado.
CAPÍTULO 27. ORTOPEDIA, VARIANTES DA NORMALIDADE E PROBLEMAS FREQUENTES 85

Figura 22. Tratamento do pé boto pelo Método de Ponseti,com gessos sucessivos.

27.3 FACTOS A RETER Leitura complementar


Herring, J. Tachjan’s Pediatric Orthopaedics. 5th Edition.
É essencial que os Médicos que observam Elsevier Saunders. Philadelphia, 2014.
Crianças com suspeita de problemas músculo- Seabra, JF. Ortopedia Infantil: O Fundamental. ASIC. Coimbra,
-esqueléticos, saibam diferenciar variantes 2016.
da normalidade de situações patológicas. Staheli, L. Fundamentals of Pediatric Orthopaedics.4 th
Geralmente, a realização de uma história clínica Edition. Wolters Kluwer, Lippincott Williams&Wilkins.
e exame objetivo cuidadosos são suficientes para Philadelphia, 2008.
estabelecer esta distinção e orientar adequada- Weinstein, S. Lovell and Winter’s Pediatric Orthopaedics. 7th
mente a criança e família. Edition. Wolters Kluwer, Lippincott Williams&Wilkins.
Philadelphia, 2014.
Capítulo 28.
Obstipação, encoprese e enurese

28
Mónica Oliva
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_28
CAPÍTULO 28. OBSTIPAÇÃO, ENCOPRESE E ENURESE 89

28.1 OBSTIPAÇÃO E ENCOPRESE


Presença de dois ou mais dos seguintes
critérios, pelo menos durante um mês:
28.1.1 Definições e epidemiologia

1. ≤ duas dejeções / semana (na sanita


A obstipação é uma doença muito preva-
se idade mental ≥ 4 anos);
lente em idade pediátrica, mas frequentemente
2. retenção fecal excessiva ou
subdiagnosticada e tratada de forma pouco efi-
posturas retentivas;
caz. A sua orientação constitui um desafio não
3. dejeções dolorosas ou difíceis;
só para o médico mas também para o doente
4. fezes de grande diâmetro;
e sua família.
5. elevado volume fecal no reto;

A definição de obstipação deve ter em conta


Após controlo do esfíncter, incluir também:
não só as características das fezes (consistência,
6. ≥ um episódio / semana de
frequência das dejeções) mas também sinais/sin-
incontinência fecal;
tomas associados tais como dor, retenção e perda
7. fezes de diâmetro elevado,
de fezes (encoprese ou incontinência fecal).
passiveis de obstruir a sanita.
Segundo os critérios de Roma IV, o diagnós-
tico de obstipação funcional ou seja sem doença
orgânica subjacente, implica a presença de dois
ou mais dos seguintes parâmetros assinalados Quadro 1. Critérios do diagnóstico de obstipação funcional
- Roma IV (2016).
no quadro 1.

Define-se encoprese ou incontinência fe-


cal como a eliminação involuntária ou voluntária O pico de incidência da obstipação ocorre
de fezes em locais inapropriados (roupa interior, entre os dois e os quatro anos, idade do treino
chão,…), em crianças com idade cronológica ou do controlo do esfincter anal.
mental de pelo menos quatro anos e que não
resulta da utilização de fármacos (i.e. laxantes) 28.1.2 Etiologia
ou outra doença que não a obstipação. O tempo
necessário para se fazer o diagnóstico difere con- A grande maioria das obstipações (90 a 95%
soante os critérios utilizados, pelo menos um mês dos casos após o período neonatal) é de natureza
(Roma IV) ou três ou mais meses (Diagnostic and funcional ou seja sem causa orgânica subjacente.
Statistical Manual of Mental Disorders 5 – DMS 5).
As idades-chave para o estabelecimento de
Ao contrário da obstipação na qual não pa- obstipação funcional na criança são a idade do
rece haver predomínio de género em idade pediá- treino do controlo do esfíncter anal, a idade esco-
trica, a encoprese é mais frequente nos rapazes. lar e, mais raramente, na diversificação alimentar
90 MÓNICA OLIVA

ou na substituição do leite materno por leite de cuidadores (punição, rejeição,…). Este tipo de
fórmula. incontinência fecal resolve após tratamento da
obstipação.
A idade de controlo do esfíncter anal e de Nos restantes casos, verifica-se uma perda
treino da defecação varia de criança para criança. voluntária de fezes, sem retenção fecal. As fe-
Aos quatro anos, 98% das crianças apresenta zes são de características normais, as perdas são
esta competência pois o desenvolvimento neuro- intermitentes. Está frequentemente associada a
-psico-social atingido, permite-lhes ter a perceção distúrbios de oposição e desafio ou de conduta.
da sensação de defecação, a compreensão da
pressão social para que a dejeção ocorra no local 28.1.3 Fisiopatologia
apropriado, a ativação dos músculos voluntários
envolvidos na continência fecal e a procura do Os clínicos devem estar familiarizados com
bacio/sanita. a fisiopatologia da obstipação funcional, pois só
Uma má experiência no momento de retirar a assim poderão explicá-la à criança e aos pais -
fralda pode determinar obstipação crónica e incon- etapa fundamental para aumentar a adesão ao
tinência fecal subsequente. É importante aguardar tratamento.
pela maturação de cada criança e que este treino
decorra num ambiente tolerante e construtivo. O desencadeante mais frequente da obsti-
pação é uma dejeção dolorosa que pode resultar
As raras causas orgânicas de obstipação po- de fezes muito duras ou de uma fissura anal. Na
derão ser: neuropáticas (doença de Hirschsprung), criança pequena, uma dejeção dolorosa no bacio
anatómicas (ânus anterior), endócrinas (hipotiroi- ou na sanita leva frequentemente à evicção desses
dismo), imunológicas (doença celíaca, alergia às locais. Essa aversão pode ainda dever-se a um
proteínas do leite de vaca), metabólicas (hipercal- treino da defecação prematuro e/ou coercivo.
cémia), entre outros exemplos. Na criança mais velha verifica-se frequentemen-
te indisponibilidade para defecar, ou por querer
Cerca de 90% dos casos de incontinência continuar a brincar, ou por recusa em utilizar
fecal são secundários a obstipação funcional com casas-de-banho fora de casa.
impactação fecal. Nesta situação as fezes elimi- O medo de defecar e o seu adiamento
nadas são habitualmente mais moles e ocorrem conduzem a retenção fecal voluntária, da qual
habitualmente durante o dia. Frequentemente, a resulta estagnação fecal mantida. Estas fezes so-
criança mais velha sente-se envergonhada, evitan- frem reabsorção progressiva de água, adquirindo
do situações em que poderá ficar mais exposta dimensões maiores e tornando-se cada vez mais
como ir a acampamentos ou à escola. O impacte duras. Neste ponto instala-se um ciclo vicioso
negativo causado depende do efeito que tem na que agrava a retenção fecal.
autoestima da criança, do grau de ostracismo A distensão progressiva do reto e das suas
social por parte dos colegas e da atitude dos terminações nervosas leva à perda da sensibilidade
CAPÍTULO 28. OBSTIPAÇÃO, ENCOPRESE E ENURESE 91

Figura 1. Fisiopatologia da obstipação funcional e encoprese. EAI – Esfincter anal interno.


(adaptado de Obstipação e Incontinência Fecal na Criança. Saúde Infantil 2012; 34(1): 25-30)

defecatória. Como consequência, quando se dá o A pesquisa de sinais de alarme visa a exclusão


reflexo de relaxamento do esfíncter anal interno de causas orgânicas.
(em resposta às contrações retais), ocorre fuga
involuntária de fezes. Habitualmente, são fezes Na anamnese, a idade atual da criança e de
mais recentes, pouco consistentes, que passam início das queixas são importantes uma vez que
entre a parede retal e as fezes impactadas (figura há faixas etárias consideradas de risco para o
1). Alguns autores chamam ”soiling” a esta perda aparecimento de obstipação. O início no período
involuntária de fezes líquidas que sujam a roupa neonatal é a favor de causa orgânica.
interior. O padrão de dejeções, isto é, a frequência e
o tipo de fezes (frequentemente volumosas ou em
É muito importante transmitir aos pais que cíbalas) é importante, bem como a presença de
a incontinência fecal no contexto de obstipação retorragias. Na ausência de fissura anal, a presen-
é involuntária, não devendo a criança ser culpa- ça de retorragias representa um sinal de alarme.
bilizada. Os episódios de incontinência fecal devem
ser bem caracterizados, em relação à sua frequên-
28.1.4 Diagnóstico cia, tipo de fezes perdidas e ocorrência de episó-
dios noturnos (sinal de alarme). Os pais devem ser
Na grande maioria dos casos a história clínica questionados sobre possíveis comportamentos de
permite diagnosticar uma obstipação funcional. retenção fecal, nos quais a criança habitualmente
92 MÓNICA OLIVA

contrai as nádegas e o pavimento pélvico, faz Muitas crianças com obstipação e encoprese
hiperextensão dos membros inferiores, cruza-os também têm enurese e por vezes refluxo vesico
alternadamente e adota outras posturas bizarras, ureteral, que pode levar a infeções urinárias de
fazendo-o frequentemente longe da vista dos repetição; comorbilidades frequentes mas que po-
adultos. Não é raro os pais interpretarem ”soi- dem indicar causa orgânica. Por outro lado algumas
ling“ como resultado de higiene insuficiente por doenças cursam com obstipação, nomeadamente,
parte da criança; outros interpretam-no como diabetes mellitus, hipotiroidismo, hiperparatiroidismo,
sendo diarreia. paralisia cerebral e neurofibromatose. A realização de
Os principais sinais e sintomas acompanhan- medicação crónica com anticolinérgicos, antiepiléti-
tes da obstipação são: dor abdominal ou à defe- cos, anti-inflamatórios não esteroides, suplementos
cação, distensão abdominal, anorexia, náuseas, de cálcio e ferro também pode estar na origem da
vómitos (se ausência de dejeções há vários dias). obstipação.

Nos antecedentes pessoais é necessário ques- Quanto aos antecedentes familiares, a exis-
tionar sobre a eliminação de mecónio. Perante um tência de obstipação noutros elementos da famí-
atraso (após as primeiras 48 horas de vida), deve-se lia (particularmente na mãe) e de doenças como
suspeitar de oclusão intestinal (atrésia, mal-rotação, hipotiroidismo, doença celíaca e fibrose quística
volvo intestinal), doença de Hirschsprung ou fibrose são relevantes.
quística. Recorde-se que a eliminação de mecónio
ocorre às 24h em 90% dos recém-nascidos de Por último, não esquecer a história psicos-
termo e às 48h em mais de 99%. social, designadamente, alterações no ambiente
A idade em que a criança adquiriu o controlo familiar e/ou escolar, comportamentos de oposi-
de esfíncteres e como decorreu o treino também ção, viagens recentes, suspeita de abuso sexual,
é importante. entre outros.
É fundamental a garantia de que a criança apre-
senta um crescimento estato-ponderal e um desen- O exame objetivo deve ser completo.
volvimento psicomotor adequados. Emagrecimento Distensão abdominal e/ou pregas de desnutrição
ou má progressão ponderal são a favor de causa à inspeção, bem como uma cicatriz de cirurgia
orgânica. prévia, representam sinais de alarme. A inspe-
O conhecimento do tipo de alimentação é par- ção peri-anal revela frequentemente fezes e pode
ticularmente importante: aporte diário de água e mostrar achados que justifiquem a retenção fecal,
fibra, idade de início e cronologia da diversificação como fissura anal (localização habitual às 6/12h)
alimentar, pela possibilidade de no lactente se tratar e anusite infeciosa. Constituem sinais de alarme
de uma obstipação secundária a doença celíaca ou à inspeção peri-anal: ânus anterior, prolapso re-
alergia às proteínas do leite de vaca. tal (obstipação grave, fibrose quística), fístula ou
É importante questionar sobre antecedentes abcesso (doença de Crohn). A inspeção da região
de infeções urinárias e/ou incontinência urinária. sacro-coccígea visa excluir lesões sugestivas de
CAPÍTULO 28. OBSTIPAÇÃO, ENCOPRESE E ENURESE 93

etiologia neurológica (solução de continuidade, A realização de uma radiografia simples do


massa, tufo de pêlos). abdómen para determinar a presença de distensão
A palpação abdominal de crianças com e/ou preenchimento por fezes do cólon é contro-
obstipação revela habitualmente fecalomas na versa, uma vez que não existe correlação entre
fossa ilíaca esquerda e cordão cólico nas im- a imagem radiológica de acumulação de fezes e
pactações fecais mais graves. a clínica de obstipação. Contudo, alguns auto-
A realização de toque retal numa primeira res consideram a possibilidade da sua realização
abordagem é controversa. Este procedimento perante dúvida diagnóstica nas crianças obesas,
adquire maior importância na presença de sinais devido à espessura do panículo adiposo; nas crian-
de alarme, na suspeita de doença orgânica ou ças relutantes à realização do toque retal (fatores
nos casos refratários à terapêutica, após ex- psicológicos, abuso sexual, …) e ainda quando a
plicação à criança e aos pais do seu objetivo. história clínica é sugestiva, mas não existem fezes
O toque retal permite avaliar a sensibilidade palpáveis ao toque retal.
anal, o tónus esfincteriano, o diâmetro retal No caso de atraso na eliminação de mecónio,
e a presença e o tipo de fezes na ampola. é importante excluir doença de Hirschsprung e
Na obstipação funcional é comum o tónus es- fibrose quística. Na suspeita de outra patologia
fincteriano estar ligeiramente diminuído, o reto orgânica, a principal investigação inclui rastreio de
encontrar-se distendido e haver um grande vo- doença celíaca e pesquisa de causas endócrino-
lume de fezes duras na ampola retal. O toque -metabólicas com doseamento sérico de TSH, T4
retal sugere doença de Hirschsprung perante livre, Ca2+ e K+. Um exame imagiológico da coluna
os seguintes achados: tónus muito aumentado, lombossagrada está indicado se houver evidência
ausência de fezes na ampola retal com palpa- de lesão medular.
ção abdominal de fecalomas, saída explosiva
de fezes líquidas e/ou gás após retirada do 28.1.6 Tratamento
dedo do reto.
O exame neurológico é fundamental. Os três grandes objetivos do tratamento são:
A sensibilidade, a força muscular e os reflexos dos desimpactação fecal, prevenção da reacumulação
membros inferiores estão alterados nas patologias de fezes e criação de hábitos intestinais regula-
com envolvimento das raízes sagradas. res. Para atingir estes objetivos recorre-se a três
modalidades complementares: educação, dieta
28.1.5 Exames complementares e fármacos.
de diagnóstico A educação é uma das fases mais impor-
tantes do tratamento da obstipação. Consiste
A história clínica completa permite na grande em desmistificar esta patologia, explicando aos
maioria dos casos excluir causas orgânicas, dispen- pais e, sempre que possível, à criança a sua
sando a necessidade de qualquer meio complementar fisiopatologia, levando-os a compreender que
de diagnóstico. a incontinência fecal é involuntária. O treino
94 MÓNICA OLIVA

intestinal diário consiste em ensinar a criança A desimpactação fecal deve ser realizada
a defecar num horário regular, cinco a dez mi- preferencialmente por via oral, recorrendo em
nutos após duas ou três refeições, aproveitando primeira linha aos laxantes osmóticos. Os laxan-
o reflexo gastro-cólico, relaxadamente e com tes estimulantes podem ser utilizados nos casos
apoio adequado dos pés. Esta medida é impor- refratários ou nos casos de intolerância aos la-
tante para horizontalizar o ângulo ano-retal, xantes osmóticos.
facilitando assim a dejeção. Os laxantes osmóticos orais tais como a lac-
A criança mais velha deve ser incentivada a tulose, o macrogol e o hidróxido de magnésio, têm
registar num diário as suas dejeções e eventuais como principal função aumentar a concentração
episódios de incontinência fecal. Este registo en- de água nas fezes, diminuindo a sua consistência
volve ativamente a criança no processo terapêu- e facilitando a sua eliminação. Não provocam
tico e permite melhor avaliação pelo médico na dependência.
consulta subsequente. Os laxantes estimulantes orais, como o bi-
O reforço positivo das dejeções em local sacodilo e o senne, têm como mecanismo de
apropriado é muito importante, sobretudo na ação o aumento da peristalse intestinal no íleon
criança que está a iniciar o treino da defecação. terminal e no cólon, diminuindo a absorção e
aumentando a secreção de água e eletrólitos
A alimentação destas crianças deve ser pela mucosa do cólon. Os seus principais efeitos
saudável, rica em fibras solúveis e com ingestão adversos são cólicas, melanosis coli reversível
adequada de líquidos. Contudo, o aumento do seu e possibilidade de dependência em uso pro-
consumo para além da dose diária recomendada longado.
não está comprovadamente associado a maior A desimpactação exclusiva por via retal
eficácia do tratamento. deve ser evitada. O uso de microclisteres, su-
positórios e enemas são procedimentos rela-
Em relação à terapêutica farmacológica, a tivamente invasivos, associados a maior risco
desimpactação fecal é normalmente a primeira de iatrogenia e dano psicológico. Têm como
medida necessária antes do início da terapêutica de vantagem permitir uma dejeção num tempo
manutenção, sendo mandatória nos casos em que e espaço adequados, sendo particularmente
existe incontinência fecal. A impactação fecal é úteis nas impactações agudas observadas nos
então definida pela presença de um ou mais dos serviços de urgência.
seguintes aspetos: incontinência fecal, massa dura
localizada nos quadrantes inferiores do abdómen A terapêutica de manutenção visa evitar
durante o exame físico, ampola retal dilatada com a reacumulação de fezes e o reaparecimento de
abundante quantidade de fezes no toque retal e comportamentos de retenção; consiste no uso
quantidade excessiva de fezes no cólon identificada diário de laxantes osmóticos como terapêutica
pela radiografia abdominal, nos casos em que está de primeira linha. O período mínimo de trata-
indicada a sua realização. mento é de dois a três meses, tempo necessário
CAPÍTULO 28. OBSTIPAÇÃO, ENCOPRESE E ENURESE 95

para o reto readquirir o seu diâmetro e sensibi- Mais de metade dos indivíduos seguidos em
lidade habituais. A dose ideal é a que permite a hospitais terciários ficam assintomáticos após um
passagem, pelo menos uma vez por dia, de fezes ano de tratamento e cerca de 65 a 70% depois de
de consistência normal, sem efeitos secundários dois. No entanto, mesmo sob tratamento farma-
relacionados com a dose de fármaco utilizada. cológico e comportamental inicial intensivo, cerca
Os laxantes estimulantes não são habitualmente de um terço das crianças irá manter obstipação
usados como terapêutica diária, contudo podem após cinco anos de seguimento e algumas até
ser utilizados de forma intermitente nos casos após a adolescência. Outro dado importante é
de obstipação grave e refratária, preferencial- que aproximadamente metade das crianças tra-
mente sob a supervisão de gastroenterologista tadas tem uma recidiva nos cinco anos seguintes.
pediátrico. O aparecimento de obstipação antes dos 12 meses
e a presença de incontinência fecal são indicado-
Deve ser explicado aos pais que o processo res de pior prognóstico.
de tratamento é lento (duração habitual superior
a seis meses), caracterizando-se por avanços e 28.1.8 Factos a reter
recuos naturais. Tentativas precoces de suspen-
são farmacológica associam-se a maior taxa de • A obstipação é um diagnóstico com ele-
recidiva. vada prevalência em Pediatria.
• Após o período neonatal 90 a 95% das
Outros tratamentos obstipações são funcionais.
A maioria das crianças e adolescentes com • Em 90% dos casos a encoprese é secun-
obstipação são tratados com as medidas educa- dária à obstipação.
cionais, correção do tipo de alimentação e a te- • A história clínica completa é fundamental
rapêutica convencional previamente descritas. No para o diagnóstico e identificação de si-
entanto, nalgumas crianças o tratamento médico nais de alarme.
é prolongado e pouco eficaz, podendo ser ne- • Raramente são necessários exames com-
cessário intervenção em regime de internamento. plementares de diagnóstico.
Casos refratários poderão ser candidatos a outras • O tratamento deve ser precoce e tem como
modalidades terapêuticas. objetivo a desimpactação, a prevenção da
reacumulação fecal e a criação de hábitos
28.1.7 Prognóstico intestinais regulares.
• A educação da criança e da família, uma
A obstipação e a incontinência fecal, apesar alimentação saudável e o uso de laxantes
de ”benignas“ na sua etiopatogenia e potencial- osmóticos constituem os três pilares do
mente tratáveis, estão associadas a compromisso tratamento.
da qualidade de vida e repercussões sociais im- • O prognóstico depende da eficácia da
portantes. intervenção.
96 MÓNICA OLIVA

28.2 ENURESE após um período de pelo menos seis me-


ses de continência noturna. Está mui-
28.2.1 Definições e epidemiologia tas vezes associada a acontecimentos
ansiogénicos como nascimento de um
À semelhança da obstipação, a enurese é irmão, morte de um familiar próximo,
também um motivo frequente de consulta em divórcio dos pais, mudança de escola,
Pediatria. entre outros.
A criança geralmente adquire o controlo do • Enurese monossintomática: enurese
esfíncter vesical entre os três e os seis anos, ini- numa criança sem qualquer outro sin-
cialmente durante o dia e posteriormente à noite. toma das vias urinárias inferiores e sem
Classicamente consideram-se os cinco anos como história de disfunção vesical.
a idade expectável para a aquisição da continência • Enurese não monossintomática: enure-
urinária noturna. se numa criança com sintomas das vias
urinárias inferiores (aumento/diminuição
A International Children´s Continence Society da frequência miccional, incontinência
define enurese ou enurese noturna como in- diurna, urgência ou hesitação miccional,
continência urinária intermitente durante o sono, polaquiúria, jacto urinário fraco, mano-
numa criança com pelo menos cinco anos. Segundo bras de retenção, sensação de esvazia-
os critérios da DMS-5 esta emissão involuntária e mento incompleto, disúria).
repetida de urina durante o sono, deve ocorrer pelo
menos duas vezes por semana durante três meses Nesta lição iremos abordar apenas a enurese
consecutivos ou causar ansiedade/compromisso noturna monossintomática por ser a forma de
social, não deve ser atribuível a efeito secundário apresentação mais frequente.
de fármaco (i.e. diuréticos, anti psicóticos) ou a
doença (i.e. diabetes, espinha bífida, epilepsia) e A prevalência da enurese depende dos cri-
a criança deverá ter uma idade cronológica ou térios de diagnóstico utilizados. Estima-se que
mental igual ou superior a cinco anos. cerca de 10% das crianças de sete anos, molham
regularmente a cama. Embora a enurese tenda a
A enurese pode ser classificada como pri- desaparecer naturalmente, com uma taxa de re-
mária ou secundária e monossintomática ou não missão espontânea anual de 15%, cerca de 1-2%
monossintomática: permanecerão enuréticos até à idade adulta.
Existe um predomínio no género masculino
• Enurese primária: quando a criança não (1,5-2:1).
teve um período consecutivo de noites Fatores genéticos determinam não só a pro-
secas igual ou superior a seis meses. babilidade de uma criança ter enurese (44% se
• Enurese secundária: quando se verifica a um dos pais foi enurético, 77% se foram os dois)
instalação novamente de noites molhadas mas também a idade da resolução do quadro.
CAPÍTULO 28. OBSTIPAÇÃO, ENCOPRESE E ENURESE 97

Mecanismo Fisiopatologia
monossintomática ou não. É então necessário
Défice noturno de Poliúria noturna
saber a frequência de noites molhadas, o número
vasopressina
Hiperatividade ↓ Capacidade
de episódios/noite e o horário em que ocorrem, a
noturna do detrussor vesical noturna facilidade para despertar com episódios enuréticos
Limiar elevado Não acordam com a ou outros estímulos. A quantidade, o horário e o
de despertar distensão vesical ou com tipo de líquidos ingeridos também é importante
a contração do detrussor
saber. Por exemplo, bebidas com cafeína podem
ter um efeito diurético e causar hiperatividade da
Quadro 2. Mecanismos patogénicos envolvidos na enurese bexiga. A presença de polidipsia e/ou polifagia,
monossintomática.
de alterações do jato urinário, do volume de urina
ou da capacidade de retenção; a presença de in-
continência urinária diurna, de disúria, polaquiúria
28.2.2 Fisiopatologia ou urgência miccional; hematúria ou história de
litíase; obstipação e/ou encoprese; cefaleias, con-
A enurese monossintomática é quase sem- vulsões ou ausências, podem sugerir existência
pre uma situação benigna, explicada por um ou de patologia orgânica.
mais dos mecanismos fisiopatogénicos listados Devem ser identificados fatores predispo-
no quadro 2. nentes como antecedentes familiares de enurese,
características da família, conflitos familiares, nas-
Raramente a enurese pode ser um sintoma cimento de um irmão ou morte de um familiar,
de uma doença orgânica tal como acontece na mudança de escola ou residência, internamento
infeção urinária, nas malformações nefrouroló- recente, entre outros.
gicas, na insuficiência renal, na hipercalciúria, na Deve ser questionado se já foi realizada algu-
diabetes insípida central ou nefrogénica, na dia- ma investigação e/ou terapêutica e os respetivos
betes mellitus, em doenças do sistema nervoso resultados.
central, doenças neurológicas lombossagradas É também necessário avaliar a existência de
ou epilepsia. comorbilidades que podem ter um papel impor-
tante na patogénese e serem responsáveis por
28.2.3 Diagnóstico ausência de resposta à terapêutica instituída.
São exemplo: a obstipação, presente em cerca
Mais uma vez é fundamental realizar uma de um terço dos casos, infeções urinárias de re-
história clinica completa e detalhada. Esta permi- petição (indicador de disfunção vesical), patologia
tir-nos-á fazer o diagnóstico de enurese e identi- do neurodesenvolvimento ou psiquiátrica como
ficar sinais de alarme. perturbação de hiperatividade e défice de aten-
Na anamnese deve ser recolhida informa- ção, ansiedade, depressão; distúrbios do sono
ção que permita classificar a enurese como con- como o síndrome de apneia obstrutiva do sono
tinua ou intermitente, primária ou secundária, e parassónias.
98 MÓNICA OLIVA

Por último é fundamental avaliar como é enurese. Assim é importante analisar a densidade
que a criança e família lidam com este problema urinária (diabetes insípida), glicosúria e cetonúria
(indiferença? vergonha? culpa? castigos? prémios (diabetes melitus), leucocitúria e presença de ni-
pelas noites secas?), a perturbação que causa na tritos (infeção urinária), hematúria e proteinúria
qualidade de vida e no sono de ambos e a atual (doença renal).
motivação de todos. Perante uma enurese não monossintomática,
na suspeita de doença orgânica, ou na ausência
O exame objetivo da criança enurética é de resposta ao tratamento, outros exames po-
habitualmente normal. No entanto este deve ser derão ser necessários e deverão ser solicitados
minucioso para identificar alterações anatómi- caso-a- caso: sumária de urina com sedimento
cas ou neurológicas que possam ser responsáveis urinário e urocultura, ecografia reno-vesical, es-
pela enurese. Deve-se prestar especial atenção à tudo urodinâmico, entre outros.
avaliação do crescimento, da tensão arterial, dos
genitais, da região lombossagrada e efetuar um 28.2.5 Tratamento
exame neurológico. Um atraso estatural pode
acompanhar uma insuficiência renal crónica ou A intervenção deverá iniciar-se pela educa-
outras doenças nefrourológicas que cursam com ção. É necessário explicar à criança e à família o
poliúria. Muitas nefro e uropatias acompanham-se normal funcionamento do trato urinário inferior
de hipertensão arterial. Alterações dos genitais e a patogenia da enurese, salientado que se trata
e da região lombossagrada podem associar-se a de um problema comum que afeta muitas crianças
malformações urológicas. No abdómen, a palpa- e que ninguém é culpado, pelo que a criança não
ção de globo vesical pode indicar obstrução e a deve ser castigada.
presença de fita cólica, obstipação. Alterações da Deverão então ser aconselhadas medi-
marcha, dos reflexos osteotendinosos, da força das comportamentais: assegurar a ingestão
ou tónus muscular dos membros inferiores, da adequada de líquidos durante o dia, limitar o
sensibilidade perineal ou do tónus do esfíncter seu consumo no final do dia e restrição total
anal sugerem patologia neurológica. uma hora antes de deitar; evitar bebidas com
cafeína, alimentos com elevado teor proteico
28.2.4 Exames complementares ou sal; incentivar micções regulares durante o
de diagnóstico dia (quatro a sete/dia) e a última mesmo antes
de deitar. Solicitar o registo das noites secas/
Na avaliação inicial de uma enurese noturna molhadas num calendário. Esta medida tem um
primária monossintomática o único exame neces- efeito psicoterapêutico por si só e permite avaliar
sário é uma análise sumaria de urina ou um teste de forma mais objetiva a resposta às medidas
rápido de urina (tira-teste). Este exame simples, instituídas. Está desaconselhado o uso de fralda
barato e universalmente disponível permite ex- e não é necessário acordar a criança durante a
cluir algumas doenças que podem cursar com noite para urinar.
CAPÍTULO 28. OBSTIPAÇÃO, ENCOPRESE E ENURESE 99

Alguns casos resolvem apenas com esta É a estratégia mais eficaz no tratamento
abordagem. Nesta fase o médico e/ou a família de enurese com uma taxa de sucesso estimada
poderão decidir não progredir na intervenção. em 66 a 70%.

Para além destas medidas gerais, que de- Desmopressina: análogo sintético da vaso-
vem ser instituídas a toda a criança enurética, pressina, diminui a produção noturna de urina e
existem duas opções terapêuticas de primeira por isso é particularmente útil nas crianças com
linha: o alarme e a administração de desmo- poliúria noturna e capacidade vesical normal. Está
pressina. também indicada quando não há motivação para a
Antes dos sete anos não é previsível uma prescrição do alarme ou este não foi eficaz. Cerca
taxa de resposta ao tratamento superior à taxa de de um terço das crianças tem resposta completa e
remissão espontânea da enurese. Contudo este 40% parcial. O potencial de cura é baixo, com uma
pode ser iniciado antes, se o impacte da enurese taxa de recaída elevada. Consoante a formulação
na criança ou na família for negativo. utilizada deverá ser administrado meia a uma hora
Nos casos em que também existem sintomas antes da última micção, ao deitar. É um fármaco
diurnos ou obstipação, estes devem ser tratados seguro, com poucos efeitos secundários, mas se
em primeiro lugar pois poderão ser responsáveis a criança ingerir uma quantidade excessiva de
pela falência do tratamento. líquidos, há risco de intoxicação hídrica, hipona-
trémia e convulsões. Por este motivo recomenda-
Alarme: dispositivo que emite um sinal, -se reduzir a ingestão de líquidos à noite e a sua
habitualmente sonoro, quando o sensor colo- restrição uma hora antes da administração da
cado na roupa interior, humedece. A criança desmopressina e nas oito horas seguintes.
deve acordar com o alarme, ir à sanita terminar
a micção, ajudar na mudança de lençóis e voltar A escolha da terapêutica deve ser discuti-
a aplicar o alarme. Este processo tem que ser da com a família tendo em conta o mecanismo
monitorizado por um adulto para garantir que fisiopatogénico subjacente, as características da
a criança cumpra todos estes passos e simples- criança e a motivação familiar. Perante uma crian-
mente não desligue o alarme e volte a ador- ça com poliúria noturna associada a capacidade
mecer. Pretende-se com este dispositivo criar vesical normal a desmopressina será a melhor
uma resposta condicionada à repleção vesical, opção. Nos outros casos deve-se recomendar o
sendo necessário o seu uso diário. Segundo al- alarme. Na ausência de resposta a um dos trata-
guns autores, o alarme também pode aumentar a mentos deve ser oferecido o outro ou até a sua
capacidade vesical durante a noite. Por requerer associação. Se mesmo assim mantiver enurese
o envolvimento da criança e da família, está ape- é necessário verificar se o tratamento foi feito
nas indicado quando ambos estejam motivados. corretamente, se não se trata de enurese não
É uma boa opção para crianças sem poliúria e monossintomática, que requer outro tipo de in-
com capacidade vesical reduzida. tervenção; se existe alguma comorbilidade como
100 MÓNICA OLIVA

obstipação que deverá ser tratada. Nesta fase, se tratamento a instituir. Permitem ainda identificar
ainda não foi feito, é necessário um diário miccio- famílias pouco motivadas.
nal e pode estar indicada investigação adicional.
O passo terapêutico seguinte será a prescri- Avaliação e orientação das crianças com
ção de um anticolinérgico (terapêutica de segunda enurese secundária devem seguir esta mesma
linha). O fármaco mais utilizado é a oxibutinina, abordagem, tentando identificar e se possível
que atua diminuindo a atividade do detrussor orientar o fator desencadeante.
e aumentando a capacidade vesical. É particu-
larmente útil na enurese não monossintomática 28.2.6 Prognóstico
mas pode ser usada na enurese noturna com
capacidade funcional reduzida, nomeadamente Trata-se habitualmente de uma situação
em associação à desmopressina. benigna, embora uma proporção significativa
A imipramina, um antidepressivo tricí- continue a molhar a cama durante a adolescên-
clico, antigamente muito usada no tratamento cia e alguns até à idade adulta. Este facto pode
da enurese constitui atualmente uma opção de ter um impacte negativo considerável na criança/
terceira linha, a ser utilizada apenas em centros adolescente e na sua família, tornando nestes
diferenciados, tendo em conta o seu potencial casos o tratamento mandatório.
efeito cardiotóxico, podendo ser fatal em caso O efeito negativo depende da limitação que
de intoxicação. causa nas atividades do dia-a-dia (por exemplo
ir dormir a casa de um amigo, ir acampar), da
Eventualmente antes de iniciar o tratamento autoestima da criança, do grau de ostracismo
ou sempre que falhar a primeira opção é útil por parte dos colegas e da forma como os pais
solicitar aos pais e à criança o registo de dados ou cuidadores lidam com esta situação.
objetivos num diário miccional. Durante pelo
menos dois dias deve ser contabilizado o volume 28.2.7 Factos a reter
das micções e de líquidos ingeridos e durante
uma semana registar os episódios de enurese • A enurese é um problema frequente em
(com determinação do volume de urina perdi- idade pediátrica.
do), de incontinência urinária diurna, eventuais • Embora habitualmente benigna, pode
sintomas das vias urinárias inferiores e hábitos causar alterações importantes na auto-
intestinais. -estima da criança e na dinâmica familiar.
Os diários fornecem dados objetivos, ajudam • Os três mecanismos patogénicos envolvi-
a identificar crianças com enurese não monossin- dos são a existência de poliúria noturna,
tomática ou que necessitam de investigação (por hiperatividade do músculo detrussor e um
exemplo com polidipsia), o mecanismo patogéni- limiar de despertar aumentado.
co preponderante (capacidade vesical diminuída • Na avaliação inicial de uma criança com
ou poliúria noturna) e assim escolher o melhor enurese monossintomática recomenda-se
CAPÍTULO 28. OBSTIPAÇÃO, ENCOPRESE E ENURESE 101

uma história clínica dirigida e completa


e uma análise sumária de urina ou tira-
-teste urinária.
• A intervenção inicial passa por estabelecer
hábitos miccionais e de ingestão hídrica
adequados.
• O alarme e a desmopressina são os trata-
mentos de primeira linha. A escolha entre
eles depende do mecanismo patogénico
predominante e do grau de motivação
familiar.

Leitura complementar
Roda J, Rubino G, Lapa P, Oliva M. Obstipação e Incontinência
Fecal na Criança. Saúde Infantil 2012; 34(1): 25-30.
Neveus T, Eggert P, Evans J, et al. Evaluation of and treat-
ment for monosymptomatic enuresis: a standardization
document from the International Children’s Continence
Society. J Urol 2010;183(2): 441-447.
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Capítulo 29.
Problemas dermatológicos
mais comuns em pediatria

29
Gustavo Januário
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_29
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 105

29.1 CONTEXTO habitualmente exclusivas do período neonatal e


pelo seu carácter benigno e transitório, refletindo
Os problemas dermatológicos são muito sobretudo a imaturidade dos vários compartimen-
frequentes em Pediatria. tos cutâneos, sendo o reflexo da transição da vida
No desenvolvimento deste tema vamos di- intrauterina para o meio exterior. Apesar da sua
vidir a sua abordagem em duas áreas: a pele do benignidade, estas são muitas vezes interpretadas
recém-nascido (RN) e do pequeno lactente e as como anormais e portanto geradoras de dúvidas
suas alterações fisiológicas; e de seguida os pro- para os pais e para os médicos. Não necessitam
blemas da pele nas crianças em geral. de tratamento mas o seu diagnóstico diferencial
prende-se com situações patológicas e poten-
cialmente graves que exigem reconhecimento e
29.2 DESCRIÇÃO DO TEMA tratamento célere.

29.2.1 Alterações cutâneas fisiológicas do Fisiologia da Pele do RN


recém-nascido e do lactente A pele do RN providencia uma barreira
entre o hospedeiro e o ambiente que o rodeia,
As alterações cutâneas fisiológicas do re- na sua dimensão física, química e biológica. É
cém-nascido (RN) são caracterizadas por serem responsável por funções de proteção mecânica,

Figura 1. Corte transversal da superfície cutânea. São três as camadas que constituem a pele: epiderme (estrato córneo é o mais
superficial), derme e a gordura subcutânea.
106 GUSTAVO JANUÁRIO

A B

Figuras 2. Descamação fisiológica exuberante. Fotografia de Manuel Salgado e do autor.

termoregulação, imunovigilância e prevenção da de bolhas e de erosões. As glândulas sebáceas


perda de fluídos corporais, e é também uma po- encontram-se bem formadas e desenvolvidas na
tencial porta de entrada para agentes infeciosos, altura do nascimento sendo bastante ativas no
bem como alvo de agressão por agentes tóxicos. período neonatal, principalmente quando sofrem
É constituída por compartimentos individuais estimulação pelas hormonas esteroides transpla-
com tipos celulares específicos e estruturas di- centares e endógenas, resultando por exemplo,
ferenciadas das quais se destacam as unidades em situações benignas e transitórias como o apa-
pilo-sebáceas, as glândulas sudoríparas, os nervos recimento de acne neonatorum. Após o primeiro
e a rede vascular, que têm papel anatómico e ano de vida assiste-se a um declínio progressivo
funcional na homeostase cutânea (figura 1). na produção de sebo. Pelo contrário, as glându-
A diferença mais evidente entre a pele do las écrinas (sudoríparas) estão ainda numa fase
RN e a do adulto é a existência de uma substância imatura da sua evolução.
esbranquiçada, húmida e gordurosa que é o vérnix De seguida iremos descrever sumariamente
caseoso. Esta substância persiste nos primeiros as principais alterações cutâneas fisiológicas
dias de vida. do RN.
O RN de termo tem uma pele que é histo-
logicamente semelhante à do adulto. Possui uma 29.2.1.1 Vérnix caseoso
epiderme com estrato córneo bem desenvolvido Apresenta-se na superfície cutânea ao
e com uma propriedade de barreira excelente (tal nascimento liberalmente disperso ou mais con-
não acontece no RN pré-termo). A pele é con- centrado em áreas como as pregas inguinais
tudo, mais sensível no período neonatal, o que e axilares, genitais e zonas retro-auriculares.
se deve a uma fragilidade temporária da junção Possui uma aparência esbranquiçada e uma
dermo-epidérmica que pode resultar na formação consistência cremosa e é constituído por uma
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 107

29.2.1.3 Lanugo
O lanugo corresponde ao pêlo, suave e
delicado, não-pigmentado e sem medula cen-
tral (figura 3). É o primeiro pêlo formado pelo
folículo piloso fetal e possui dois períodos de
crescimento que terminam em dois períodos
de queda. O primeiro período de queda ocor-
re in-útero por volta dos sete a oito meses de
gestação, e o segundo surge perto do termo
da gestação ou mesmo após o nascimento.
Figura 3. Lanugo no recém-nascido. O lanugo é um indicador útil na determina-
Fotografia de Luís Januário.
ção da idade gestacional, fazendo parte in-
clusivamente de algumas das escalas construí-
das com esse propósito (Ballard modificada).
mistura de células epiteliais que descamaram, A presença de lanugo num RN é assim caraterís-
sebo e por vezes cabelo. Tem funções de lubri- tico do pré-termo onde se mostra exuberante,
ficação e atua como barreira de permeabilidade cobrindo os ombros e a totalidade do dorso.
na proteção da pele do líquido amniótico que A parte distal dos membros é menos atingida.
a rodeia. A sua espessura aumenta com a ida- O envolvimento da face pode ser bilateral e ex-
de gestacional, embora os RN pós-termo não tenso. Mais tarde o lanugo desaparece, em pri-
se apresentem com vérnix, e a sua coloração meiro lugar na zona inferior do dorso e depois
alterada pode ser uma pista que denuncia so- nas restantes. A substituição de lanugo por pêlo
frimento fetal. terminal ocorre nos primeiros meses de vida.

29.2.1.2 Descamação fisiológica 29.2.1. 4 Mancha mongólica


A maioria dos RN de termo apresentará Representa uma coleção de melanócitos mui-
uma descamação fina da pele entre as 24 e as to alongados e fusiformes, localizados na derme
48 horas de vida, geralmente localizada às mãos e com disposição paralela à superfície cutânea.
e aos pés (figuras 2, a) b)). No RN pré-termo, A sua incidência é variável nas várias etnias, sen-
habitualmente esta descamação só será visível do particularmente prevalente nos bebés Afro-
após ter completado duas a três semanas de vida. Americanos (95,5 %) e Asiáticos (81 %), enquanto
É porém no RN pós-termo que a descamação nos Caucasianos é observada menos frequen-
é mais exuberante ao nascimento, atingindo as temente (9,6 %). São máculas ou manchas de
mãos, os pés, o tronco inferior e a fronte. O diag- coloração cinzento-azulada ou negra que se loca-
nóstico diferencial inclui formas de ictiose bem lizam preferencialmente na zona lombo-sagrada e
como displasias ectodérmicas. nadegueira, porém podem existir noutras regiões
108 GUSTAVO JANUÁRIO

Figura 4. Mancha mongólica no recém-nascido com Figura 5. Recém-nascido com Arlequim.


localização lombo-sagrada. Fotografia de Luís Januário. Fotografia de Manuel Salgado.

como nos ombros e nos membros, podendo ser inferior (linha nigra), a rodear a aréola do mamilo,
únicas ou múltiplas, medir poucos milímetros ou na axila e na base ungueal. É mais comum no
ultrapassar os dez centímetros (figura 4). A cor RN de raça negra e tem um carácter transitó-
azulada da melanose dérmica é o resultado do rio. Esta hiperpigmentação deve-se sobretudo
efeito Tyndall (absorção da luz do comprimento à ação estimuladora da hormona melanocítica
de onda vermelho e reflexão da luz de compri- (MSH). Em certas ocasiões o padrão de hiper-
mento de onda azul pelo pigmento melanínico pigmentação não tem origem hormonal (hiper-
que é castanho e profundo). O seu diagnóstico queratose por trauma mecânico in-utero), o que
diferencial prende-se com outras formas de hi- se traduz na existência de bandas horizontais de
perpigmentação dérmica como os nevos de Ito hiperpigmentação no abdómen e no dorso. Este
(localizado nos braços ou nos ombros) e de Ota tipo de hiperpigmentação também é transitório.
(localizado na região bucinadora ou no olho) ou O diagnóstico diferencial faz-se sobretudo com
com equimoses. Trata-se de uma situação be- a hiperplasia congénita da supra-renal que exige
nigna, cuja tendência é a de desaparecer por diagnóstico precoce, mas que se acompanha de
volta dos cinco anos se localizada às zonas típicas um quadro clínico típico (ver lição de vómitos).
referidas, podendo persistir quando localizada
noutras áreas. 29.2.1. 6 Cutis marmorata e Arlequim
A imaturidade do RN pode manifestar-se
29.2.1.5 Hiperpigmentação dérmica pela exibição de anomalias distintas do fluxo
Trata-se da coloração negra transitória que sanguíneo cutâneo. Assim a constrição capilar e
é observada na região genital (grandes lábios e venular, em resposta ao frio, produz um padrão
escroto), em estrias lineares na região abdominal violáceo reticulado típico, que quando ocorre
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 109

A B

Figuras 6 a) b). Eritema tóxico do recém-nascido.


Fotografias do autor.

em zonas mais acrais (distais) que centrais pode secundária a imaturidade hipotalâmica. Apesar
produzir uma coloração violácea intensa ou azul de benigno a existência deste fenómeno para
das mãos, pés e lábios - fenómeno conhecido além do período neonatal deverá levar a uma
como acrocianose. É típica do RN pré-termo, investigação causal.
tendo caráter transitório e melhoria rápida após
aquecimento. A sua tendência a recorrer diminui 29.2.1. 7 Eritema tóxico neonatorum
com a idade. O diagnóstico diferencial faz-se com É considerada por muitos autores como a
situações patológicas como a cutis marmorata erupção benigna mais comum no período neo-
telangiectásica congénita e as cardiopatias con- natal e pode existir em até metade dos RN de
génitas cianóticas (cianose central). termo. Correlaciona-se com a idade gestacional
Arlequim é um fenómeno raro em que a e com o peso de nascimento, sendo raro em
quantidade de fluxo sanguíneo difere marcada- pré-termos e naqueles que nascem com menos
mente entre o lado direito e o esquerdo do corpo de 2500 gramas. Surge habitualmente entre as
com demarcação evidente na linha média (figura primeiras 24 a 48 horas de vida, embora estejam
5). Ocorre quando o RN se encontra em decúbito descritos casos em que está presente ao nasci-
lateral, em que o lado dependente exibe vasodi- mento e outros em que aparece após os dez dias
latação, sendo marcadamente mais vermelho que de vida. Habitualmente as lesões desvanecem
a metade superior. A face e os órgãos genitais num período que poderá atingir os sete dias.
podem ser poupados. Estes episódios duram se- A erupção clássica é a de uma mácula, pápula
gundos, mas podem ter uma duração de minutos, ou pústula amarelada com um a três milímetros
sendo facilmente reversíveis. O mecanismo fisiopa- de maior diâmetro que se encontra rodeada por
tológico subjacente é a disautonomia autonómica, um halo eritematoso irregular (figuras 6 a) b)).
110 GUSTAVO JANUÁRIO

estafilocócico (pústulas mais bem desenvol-


vidas e definidas – figura 7), a candidíase
congénita (teste com hidróxido de potássio
– KOH - é positivo e as lesões são mais des-
camativas), a melanose pustulosa neonatal
transitória (sempre presente ao nascimento
com desaparecimento rápido das pústulas dei-
xando máculas pigmentadas, com esfregaço
rico sobretudo em neutrófilos), e a miliária
rubra (pode apresentar-se com pápulo-pústulas
eritematosas, mas que predominam sobretudo
Figura 7. Impétigo estafilocócico do recém-nascido. na cabeça e no pescoço, sendo mais pequenas
Fotografia de Manuel Salgado.
e sem halo eritematoso).

29.2.1. 8 Melanose pustulosa


Na maioria dos casos as lesões são discretas neonatal transitória
e dispersas, mas por vezes, observam-se casos Ocorre sobretudo em Afro-Americanos de
exuberantes. Atinge a face e depois o tronco ambos os sexos, sendo que as lesões estão sempre
e as extremidades, mas pode surgir em qual- presentes ao nascimento. É uma situação que
quer local do corpo, exceto palmas e plantas. ocorre tipicamente em RN de termo. São descritas
Histologicamente corresponde a pústulas eosi- três fases e portanto três tipos de lesões:
nofílicas intrafoliculares que se localizam acima
da entrada do ducto sebáceo. Postula-se que 1ª -vésico-pústulas superficiais (com dois a
na sua origem fisiopatológica esteja uma rea- dez milímetros de diâmetro) sem eritema
ção do tipo enxerto-versus-hospedeiro contra circundante que podem estar presen-
os linfócitos maternos, mas tal hipótese não foi tes in-utero e virtualmente sempre ao
ainda completamente esclarecida. O diagnósti- nascimento. Após o nascimento não se
co é clínico, mas se houver dúvida poderá ser desenvolvem habitualmente novas le-
realizado um esfregaço que revelará a riqueza sões, mas as originais podem progredir,
de eosinófilos nas lesões. formando uma crosta acastanhada, ou
sofrer rutura deixando colar esbranqui-
O diagnóstico diferencial faz-se com as çado e fino.
alterações pustulares do RN, nomeadamente 2ª - colar fino esbranquiçado de escamas
com a acropustulose infantil (a distribuição que rodeia a pústula em resolução.
é mais acral que truncal), a infeção cutanêa 3ª - máculas hiperpigmentadas castanhas
por herpes simplex (carácter vesiculoso com que surgem no local da pustulação prévia
formação subsequente de crostas), o impétigo num período de dias (hiperpigmentação
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 111

pós-inflamatória transitória). Alguns nas-


cem com estas máculas (fase pustulosa
presumivelmente in-utero).

Pode haver combinação das várias fases


em dado período. A localização típica é em
agregados infra-mentonianos, na fronte e zona
retro-auricular, pescoço, tronco superior, região
inferior das costas e nos membros (palmas e plan-
tas também podem ser afetadas). O esfregaço
do conteúdo pustular é estéril e mostra apenas
neutrófilos com raros ou nenhuns eosinófilos. Figura 8. Miliária rubra. Fotografia de Manuel Salgado.
As pústulas tendem a resolver rapidamente, mas
as máculas hiperpigmentadas podem demorar
meses a desaparecer.
O diagnóstico diferencial inclui o eritema
tóxico (aparece alguns dias após nascimento,
é inflamatório e as vesículas contém predomi- ao aprisionamento muito superficial de suor
nantemente eosinófilos), acropustulose in- que produz as típicas pequenas vesículas cris-
fantil (aparece mais tardiamente e predomina talinas que mimetizam gotas de água na pele,
nas mãos e nos pés), impétigo estafilocócico, de consistência frágil. Outra forma de miliária,
candidíase congénita (teste com KOH positivo, também comum no período neonatal - miliária
visualizando-se esporos e pseudohifas), miliária rubra – é característica do recém-nascido so-
cristalina ou rubra (não deixa hiperpigmentação breaquecido e febril (heat rash), apresentando-
pós-inflamatória). -se como pápulas ou pápulo-pústulas de um
a três milímetros, eritematosas, localizadas
29.2.1. 9 Miliária preferencialmente na cabeça, pescoço, face e
É o termo geral utilizado para descre- tronco (figura 8). Histologicamente existe in-
ver a obstrução do ducto écrino cujas mani- flamação dérmica com obstrução mais baixa
festações variam dependendo do local exato do ducto écrino. A miliária profunda corres-
da obstrução. Tende a ocorrer em lactentes ponde à manifestação objectiva da obstrução
de climas quentes, naqueles mantidos artifi- mais profunda do ducto sudoríparo localizada
cialmente aquecidos e nos que estão febris. à junção dérmico-epidérmica ou mesmo abaixo
No período neonatal imediato a forma mais dela. É uma situação rara no período neonatal.
comum de miliária é a mais superficial – mi- O diagnóstico diferencial das diferentes formas
liária cristalina (sudamina) - em que a obs- de miliária é variado mas o seu tratamento con-
trução ductal é sub ou intra-córnea, levando siste apenas na correção do sobreaquecimento.
112 GUSTAVO JANUÁRIO

Figura 9. Mília. Fotografia do autor.

29.2.1.10 Hiperplasia sebácea situações coexistem. Não é necessário qualquer


A hiperplasia das glândulas sebáceas é mais tratamento para a hiperplasia sebácea assistindo-
frequente nos RN de termo, ocorrendo em cerca -se à sua involução nas primeiras semanas a meses
de metade destes, mas também pode existir nos de vida.
pré-termo, embora menos frequentemente. São
pequenas pápulas que se agrupam caracteristica- 29.2.1. 11 Mília
mente em placas, de aparência folicular e de con- A mília apresenta-se como pequenas pápulas,
sistência mole com coloração branco-amarelada. que medem até dois milímetros, que ocorrem pri-
Localizam-se predominantemente na face, espe- mariamente na face e no couro cabeludo (figura 9).
cialmente em redor do nariz e do lábio superior e Possuem uma coloração esbranquiçada e têm
não têm halo eritematoso. A sua predileção por superfície macia sendo normalmente discretas
estas zonas da pele prende-se com o facto de e existindo habitualmente em número reduzido.
ser precisamente nestas áreas que a densidade Podem estar presentes desde o nascimento ou
de glândulas sebáceas é superior. A hiperplasia aparecer posteriormente, e apesar de serem mais
sebácea resulta da estimulação por androgéneos frequentes na face podem ocorrer em qualquer
maternos ao nível do folículo pilo-sebáceo, que local do corpo. As pérolas de Epstein e os nó-
ocorre durante as semanas finais da gestação e dulos de Bohn são muito semelhantes à mília,
que provoca um aumento no número e no volume embora ocorram na cavidade oral. Se localizados
das células sebáceas. O diagnóstico diferencial é ao palato chamam-se pérolas de Epstein e quando
com a mília, outra situação benigna, caracterizada se localizam nas pontes alveolares chamam-se
por pequenas pápulas, maioritariamente solitárias nódulos de Bohn. A mília corresponde histologi-
e mais esbranquiçadas. Muitas vezes estas duas camente a pequenos quistos de inclusão situados
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 113

na epiderme e que contêm camadas concêntricas localização particular. O diagnóstico é clínico e é


de estrato córneo queratinizado. O seu diagnós- evidenciado pelo comportamento de sucção que
tico é clínico e o principal diagnóstico diferencial o RN exibe quando lhe é apresentada a extremi-
é com outra situação benigna, típica do período dade atingida. A localização mais característica
neonatal - a hiperplasia sebácea – que se carac- é, de longe, a superfície radial do punho, mas
teriza igualmente por pequenas pápulas brancas, também podem existir no dorso da mão ou no
embora com maior tendência a formar agregados dorso dos seus dedos.
à volta do nariz de coloração mais amarelada e
que ocorrem em grandes placas. A resolução da 29.2.1.13 Ectasias capilares
mília é espontânea e tende a ocorrer ao longo de São máculas ou placas eritematosas que
vários meses sem necessidade de qualquer tipo ocorrem na nuca “picadas de cegonha”, pálpebras
de intervenção. “beijos de anjo”, glabela e mais raramente no nariz
e no lábio superior (figuras 10 a) b)). Representam
29.2.1. 12 Bolhas de sucção malformações vasculares minor, que histologi-
As bolhas de sucção estão quase sempre camente correspondem a capilares ectasiados
presentes ao nascimento, podendo ser solitárias na derme superior, recobertos por pele normal.
ou bilaterais. A lesão primária é uma bolha tensa São muito frequentes em Caucasianos, Latinos
que contém fluído e que se encontra rodeada por e Afro-Americanos, mas são raras em Asiáticos.
pele de aparência normal. A ruptura desta bo- A maioria resolve num período de meses a anos
lha resulta habitualmente em erosão. A etiologia mas cerca de 25 a 50% das lesões na nuca e uma
destas lesões parece resultar do ato de sucção percentagem menor das lesões na glabela podem
vigoroso e repetitivo, que acontece in-utero, numa persistir durante a vida. O diagnóstico diferencial
114 GUSTAVO JANUÁRIO

A B

Figuras 10. Ectasias vasculares na pálpebra direita “beijos de anjo” (a) e na região da nuca “picadas de cegonha” (b). Fotografia do
autor e de Manuel Salgado.

mais importante destas lesões transitórias são as Leitura complementar


manchas vinho-do-Porto cuja localização é mais Lawrence F. Eichenfield et al. Neonatal and Infant Dermatology,
lateral, não resolvem com a idade e muitas vezes 3rd Edition, 2015.
continuam a escurecer e a aumentar de espessura, Josie A Pielop and Moise L Levy. Benign skin lesions in the
podendo estar associadas a patologia. newborn, UpToDate August, 2016.
Lawrence A. Schachner and Ronald C. Hansen.  Pediatric
Não esquecer dermatology, 3rd Edition MOSBY 2003, Elsevier Limited.
A semiologia dermatológica durante o pe- Januário G, Salgado M. The Harlequin phenomenon, J Eur
ríodo neonatal é excecionalmente rica. Acad Dermatol Venereol. 2011.
A ocorrência de dermatoses neste período é
uma situação comum, sendo que a maioria destas 29.2.2 Patologia mais comum
é transitória, benigna e não exige qualquer tipo
de tratamento. 29.2.2.1 Eczema atópico
O seu reconhecimento é fácil, embora por O eczema atópico (EA), muitas vezes de-
vezes, algumas das alterações cutâneas do RN signado como dermatite atópica, é uma doença
possam ser o primeiro sinal de doença grave. inflamatória crónica da pele cuja patogénese é
O diagnóstico correto e a identificação do complexa e envolve na sua origem factores am-
tipo de dermatose em causa permite, em pri- bientais, imunológicos e genéticos, que conduzem
meiro lugar, tranquilizar os pais mas também a disfunção da barreira cutânea e a desregula-
impedir o tratamento intempestivo e muitas ção do sistema imunitário. É a dermatose crónica
vezes invasivo de situações fisiológicas benignas mais comum em idade pediátrica, afetando cerca
e transitórias. de dez a vinte por cento das crianças em países
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 115

desenvolvidos, e caracteriza-se por períodos de livre as regiões à volta do nariz e da boca, e às


“crise” em que há exacerbação da doença e outros superfícies extensoras dos membros inferiores
de remissão espontânea. Frequentemente, pela e superiores, poupando caracteristicamente a
sua gravidade e extensão, tem uma interferência região da fralda. Após esta idade, o EA localiza-
negativa na qualidade de vida da criança e até -se sobretudo nas pálpebras, lábios e pescoço e
dos seus cuidadores, levando a perturbação das tende a envolver as flexuras cubitais e poplíteas,
atividades diárias e do sono. Por outro lado, tem atingindo também os tornozelos. Por vezes ob-
um impacto económico significativo, não apenas servamos também os aspectos crónicos das le-
pelos custos elevados da medicação diária mas sões de EA, nomeadamente a liquenificação que
também pelo absentismo escolar e laboral e pro- se carateriza pelo acentuar das pregas cutâneas.
cura frequente de cuidados médicos. Os avanços A existência de prurido e de pele seca (xerose),
recentes no tratamento do EA têm-se focado na são elementos perenes do EA, na ausência de
reparação da barreira epidérmica, uma vez que os tratamento.
estudos efetuados têm demonstrado a relevância Existência de história pessoal ou fami-
de mutações genéticas com implicação funcional liar de atopia – 50 a 60% dos doentes com
nas proteínas epidérmicas, nomeadamente a fila- EA tem um familiar de primeiro grau com EA,
grina, resultando em pele seca e sensível. asma ou rinite. Deverá ser pesquisada a existên-
cia de potenciais factores desencadeantes ou
Diagnóstico exacerbadores (história alimentar e potencial de
O diagnóstico de EA é clínico e tem como alergia alimentar, aeroalergenos, alergenos de
base elementos da história clínica e do exame contacto e irritantes), classificada a gravidade
objectivo (quadro 1), tais como: da doença, e a resposta a tratamentos atuais
Idade de início das lesões cutâneas - o e/ou prévios. O impacto na criança, pais ou
EA surge habitualmente entre os três e os seis cuidadores e a avaliação do neurodesenvolvi-
meses de vida. Aproximadamente 60% dos doen- mento e crescimento fazem parte da avaliação
tes desenvolve lesões típicas no primeiro ano de inicial do EA.
vida e 90% fá-lo até aos cinco anos. A maioria
dos indivíduos afetada ao atingir a idade adulta Tratamento
apresenta resolução da doença, embora cerca O tratamento do EA tem como objetivos
de 15% mantenha sintomas e uma percentagem principais a redução ou eliminação dos sinais
menor desenvolva a clínica apenas neste periodo. e sintomas da doença e a prevenção ou dimi-
Padrão de envolvimento cutâneo - as nuição das recidivas. Visa igualmente provi-
lesões que caracterizam o EA são lesões tipica- denciar medidas preventivas de exacerbação
mente pruriginosas (o prurido é um elemento a longo prazo e modificar o curso natural da
fundamental para o diagnóstico) e exsudativas na doença. Qualquer tipo de tratamento deve ser
fase aguda. Nas crianças com menos de dois anos sempre acompanhado de medidas de eliminação
localizam-se preferencialmente à face, deixando de factores que contribuem para potenciar a
116 GUSTAVO JANUÁRIO

Características essenciais – Têm de estar presentes:


• Prurido
• Eczema (agudo, subagudo, crónico)
• Morfologia típica e padrões específicos da idade*
• História de cronicidade e de recidivas
* Padrões incluem:
1. Envolvimento facial, cervical e das superfícies extensoras em lactentes e crianças
2. Lesões flexurais atuais ou no passado, em qualquer idade
3. Ausência de lesões na região inguinal e axilar
Características importantes – Observadas na maioria dos casos dando suporte ao diagnóstico:
• Início em idade precoce
• Atopia
• História pessoal e/ou familiar
• Nível aumentado de imunoglobulina E total ou específica
• Xerose
Características associadas – Ajudam a sugerir o diagnóstico de EA mas são inespecíficas para serem
utilizadas na detecção ou definição de EA em estudos epidemiológicos:
• Respostas vasculares atípicas (ex. palidez facial, dermografismo branco)
• Queratose pilar, pitiríase alba, hiperlinearidade palmar, ictiose
• Alterações periorbitárias e outras localizadas (alterações periorais e lesões periauriculares)
• Acentuação perifolicular, liquenificação, lesões de prurigos.

Condições que excluem EA – Doenças que fazem diagnóstico diferencial com EA:
• Escabiose
• Eczema seborreico
• Eczema de contacto
• Ictioses
• Psoríase
• Imunodeficiência

Legenda. EA- eczema atópico

Quadro 1. Diagnóstico do Eczema Atópico.

exacerbação ou agravamento do EA, nomea- A roupa aconselhada é a de algodão devendo


damente os banhos excessivos e prolongados, evitar-se a de lã e os produtos sintéticos. O
ambientes de baixa humidade, stresse emocio- calçado deve ser arejado.
nal, a xerose cutânea, o sobreaquecimento da O controlo do prurido pode ser um desafio
pele e a exposição a detergentes e solventes. e muitas vezes é necessário recorrer aos anti-
A evicção destas situações é benéfica na redu- -histamínicos H1 por via oral, quando a hidrata-
ção do número de exacerbações agudas bem ção cutânea com emolientes e hidratantes não
como no controle da doença a longo-prazo. é suficiente para a sua acalmia. Muitas vezes é
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 117

Eczema atópico ligeiro Eczema atópico moderado Eczema atópico grave


Emolientes Emolientes Emolientes
Corticoides tópicos de
Corticoides tópicos potentes
moderada potência
Corticoides tópicos de Inibidores tópicos da calcineurina Inibidores tópicos da calcineurina
Pensos
baixa potência
Fototerapia
Pensos
Terapêutica sistémica

Quadro 2. Abordagem escalonada do eczema atópico.

necessário recorrer a anti-histamínicos sedativos igualmente ser aplicados imediatamente após


como a hidroxizina, o dimentideno, ou a oxatomi- o banho, em pele ainda ligeiramente húmida,
da. No caso de surgirem os seus efeitos secundá- aproveitando a maior capacidade de absorção.
rios, nomeadamente sonolência exagerada, deve- O banho deve ser realizado preferencialmen-
rá ser ponderada a utilização de anti-histamínicos te ao final do dia (para maximizar o tempo de
não sedativos como a loratadina, desloratadina, aplicação e de permanência do emoliente em
lexocetirizina ou ebastina. Os anti-histamínicos contacto com a pele), ser de duração curta e
tópicos estão proscritos . com utilização de água morna. Está disponível
Os profissionais de saúde deverão utilizar uma gama extensa de emolientes adequados ao
uma abordagem terapêutica escalonada e ade- tratamento do EA e todas as marcas comerciais
quar a potência do tratamento à gravidade do têm disponíveis produtos de higiene indicados no
EA (Quadro 2). EA, caso dos pains (leites sólidos que servem de
sabonete), syndets (detergentes sintéticos com
• Emolientes tensoactivos suaves) e dos surgras (associação
A hidratação cutânea é o componente cha- de ácidos gordos ao sabão).
ve do tratamento do EA, motivo pelo qual os
emolientes são usados em todas as fases de • Corticoides Tópicos
intervenção, inclusivamente quando não existem Os corticoides (CT) tópicos, também cha-
quaisquer lesões e a pele está aparentemente mados de dermocorticoides, têm uma ação
sã. Vários estudos têm comprovado que os emo- anti-inflamatória não-seletiva. A sua utilização
lientes reduzem a necessidade de tratamento é muitas vezes necessária para controlo eficaz
com corticoides tópicos e deverão ser utilizados das lesões de EA, quando a ação dos emolientes
liberalmente, pelo menos duas a quatro vezes por se revela insuficiente. É importante realçar que
dia, devendo estar disponíveis na escola, infantá- a absorção dos CT tópicos depende da formu-
rio ou em qualquer outro local que a criança fre- lação (cremes menos absorvidos que pomadas)
quente com regularidade. Os emolientes devem e do local onde são aplicados (quadro 3). Na
118 GUSTAVO JANUÁRIO

Diferenças regionais de penetração


Membranas mucosas
Escroto
Pálpebras
Face
Tronco
Metade proximal dos membros
Metade distal dos membros
Dorso das mãos e dos pés
Pele palmoplantar
Unhas

Quadro 3 – Diferenças na penetração dos corticoides tópicos por ordem decrescente.

criança, os CT tópicos utilizados deverão ser os aplicar é também importante. Um sistema de


de mais baixa potência possível e a sua aplicação quantificação fácil de utilizar é o da fingertip
na região da face e das pregas (zonas de absor- unit (F TU), em que a quantidade de creme
ção elevada) deverá ser realizada com particular colocada na falange distal de um dedo adulto
atenção e cuidado. A zona da face, incluindo corresponde a uma F TU, sensivelmente 0,5
as pálpebras, tem uma maior penetração com- gramas de creme.
parativamente ao tronco e aos membros, pelo A quantidade de creme ou pomada a aplicar
que deve ser evitada a aplicação de CT tópicos está estabelecido consoante as zonas afetadas.
mais potentes nesta área, bem como limitada a • Inibidores Tópicos da Calcineurina
sua duração. Preferencialmente deverá ser uti- Os inibidores tópicos da calcineurina (ITC)
lizada a hidrocortisona a 1%, o aceponato de são fármacos de segunda linha no tratamento do
metilprednisolona ou a mometasona. EA e não estão recomendados no tratamento das
Os CT tópicos devem ser aplicados em es- formas ligeiras. A sua utilização reserva-se aos ca-
quemas de curta duração, directamente sobre sos em que há falência do tratamento com a corti-
as lesões de eczema, uma a duas vezes por coterapia tópica ou quando há efeitos secundários
dia (preferencialmente à noite após o banho), importantes dos CT tópicos, tais como atrofia
durante cinco a sete dias. Após este período cutânea ou existência de estrias. Contrariamente
poder-se-á combinar o CT tópico com o creme aos CT tópicos, os ITC não induzem atrofia cutâ-
hidratante, em proporções iguais de modo a nea, e podem ser usados em todo o tegumento,
que a quantidade de CT a aplicar seja meta- incluindo a face, local particularmente sensível à
de da do período anterior, e aplicar durante aplicação crónica de CT tópicos. O tacrolimus, na
cinco a sete dias novamente, efetuando as- concentração de 0,03%, é o fármaco habitual-
sim o desmame. A quantidade de CT tópico a mente utilizado e é o protótipo de ITC, não sendo
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 119

recomendada a sua aplicação em crianças com


menos de dois anos. A pomada deve ser aplicada,
duas vezes por dia durante um período máximo
de três semanas, e depois uma vez por dia, até
ao desaparecimento da lesão. O pimecrolimus na
concentração de 1% é outra alternativa. Os ITC
são fármacos caros e não devem ser utilizados
como primeira linha. Na sequência da notificação
de casos de cancro de pele e linfoma em doentes
que tinham utilizado estes fármacos, a Agência
Europeia do Medicamento realizou uma reava-
liação do seu perfil de segurança e concluiu que
o benefício associado à sua utilização é superior Figura 11. Lesão de eczema facial com sobreinfecção
bacteriana. Fotografia do autor.
ao risco, não tendo sido possível estabelecer uma
relação causal entre a utilização dos ITC e o apare-
cimento de cancro de pele e linfoma. Recomenda-
se que só os médicos com experiência, quer no à alteração da barreira epidérmica e à redução de
diagnóstico quer no tratamento do EA, deverão péptidos antimicrobianos cutâneos. As infecções
iniciar terapêutica com estes fármacos e que a por Staphylococcus aureus meticilino- resistentes
sua utilização contínua e prolongada deve ser (SAMR) têm aumentado na população geral em
evitada, suspendendo o tratamento logo que o alguns países, nomeadamente nos Estados Unidos
eczema desapareça. da América, mas apenas uma minoria dos doentes
com EA estão colonizados com SAMR. Os doentes
• Tratamento da infeção com EA e com sinais de infecção cutânea devem
Os doentes com EA têm um risco aumen- ser tratados com antimicrobianos. Os sinais de
tado de infeções cutâneas bacterianas, virais e infecção incluem a existência de lesões exsuda-
fúngicas. A sobreinfeção bacteriana, sobretudo tivas e/ou crostosas amareladas e de foliculite.
por Staphylococcus aureus, mas também por A mupirocina e o ácido fusídico são eficazes no tra-
Streptococcus pyogenes, é uma das causas mais tamento tópico destas infecções sendo indicada a
comuns de exacerbação aguda do EA ou de fa- utilização de penicilinas resistentes às penicilinases
lência do tratamento, devendo ser sempre iden- por via oral, como a flucloxacilina, no tratamento
tificada e tratada (figura 11). de infecções mais extensas. Não é recomendado
O Staphylococcus aureus coloniza frequen- o uso de antibióticos se não houver sinais clínicos
temente a pele dos doentes com EA podendo ser de infecção.
isolado na pele em 76 a 90% dos doentes (versus O Eczema herpético corresponde à sobrein-
dois a 25% nos indivíduos sem EA). As maiores ta- fecção das lesões de EA por Herpes Simplex tipo
xas de colonização são provavelmente secundárias 1. Quando se localiza na face e envolve a região
120 GUSTAVO JANUÁRIO

29.2.2.2 Eczema seborreico e crosta láctea


O eczema seborreico (ES) tem habitualmente
início mais precoce que o EA, sendo mais frequente
entre as quatro e as seis semanas de vida. Atinge
primariamente o couro cabeludo, formando a
crosta láctea, e as áreas intertriginosas, nomea-
damente as pregas cervicais e retroauriculares, as
axilas, o pescoço e umbigo. Ao contrário do EA,
o ES não poupa o maciço centro-facial e as lesões
são menos inflamatórias. Pode afetar a região da
fralda com atingimento característico das pregas e
envolvimento posterior das superfícies convexas, e
Figura 12. Eczema herpético envolvendo região ocular contrariamente à dermatite das fraldas candidiásica
direita. Fotografia do autor.
não apresenta lesões satélites. Outra característica
distintiva, em relação ao EA, é ausência de prurido
e de irritabilidade. As crianças com ES normalmente
ocular constitui uma urgência médica devendo alimentam-se sem qualquer dificuldade.
ser tratado com aciclovir endovenoso, motivo A característica crosta láctea do ES sur-
pelo qual deverá ser referenciado a um serviço ge habitualmente semanas após o nascimento e
de urgência Pediátrico (figura 12). A maioria dos é geralmente limitada aos três primeiros meses
profissionais de saúde utiliza aciclovir sistémico de vida. Visualizam-se escamas leves e untosas,
no tratamento do eczema herpético, indepen- aderentes ao vértex e à fontanela anterior, que
dentemente da sua localização. se podem estender a todo o couro cabeludo,
podendo inflamar e exsudar, resultando numa
Critérios de envio à Consulta escama coerente que pode cobrir a maioria do
de Dermatologia couro cabeludo (figuras 13, a) b) c)). Não ne-
A maior parte das situações de EA pode cessita habitualmente de medidas agressivas de
ser orientada em cuidados de saúde primários tratamento podendo instituir-se apenas cuidados
pelo médico de Medicina Geral e Familiar e pelo locais simples, nomeadamente de emolientes ou
Pediatra, no entanto a referenciação à consulta de mousses e champôs suaves recomendados para a
Dermatologia Pediátrica deverá ser considerada remoção de crostas e escamas do couro cabelu-
quando houver dúvidas no diagnóstico, quando o do. Não é aconselhada a utilização de champôs
EA se localiza na face e é resistente ao tratamento queratolíticos ou a remoção mecânica agressiva.
instituído, se houver suspeita de dermatite de con-
tacto alérgica, na presença de infeções recorrentes 29.2.2.3 Dermatite das fraldas
ou de alterações hematológicas e na ausência de A dermatite das fraldas (DF) é uma dermatose
resposta à terapêutica de primeira linha. exclusivamente localizada, pelo menos inicialmente,
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 121

à área coberta pela fralda, e ocorre nos períodos da


vida em que a mesma é utilizada. A DF não deve ser
interpretada como uma entidade diagnóstica espe-
cífica, mas sim como um termo lato que designa um
diagnóstico topográfico e que engloba um amplo
grupo de dermatoses de etiologia multifactorial,
nomeadamente a DF irritativa primária (a forma
mais comum), a dermatite de contacto alérgica
A
(muito rara), dermatites exacerbadas pelo uso de
fraldas (EA e ES, psoríase, dermatite candidiásica)
e dermatites que não se relacionam com o uso de
fraldas (acrodermatite enteropática, histiocitose de
Langerhans, dermatite estreptocócica perianal e
impétigo bolhoso).

• Dermatite da Fralda Irritativa Primária


Trata-se da forma mais comum de DF e afe-
ta 25 a 65% das crianças entre os seis e os 12
meses de idade. A conjugação de vários factores,
nomeadamente a oclusão resultante do uso de
fraldas aliada à fricção, à humidade e à tempera-
B
tura aumentada levam a uma perda da integridade
da barreira cutânea. A existência de fezes e uri-
na conduz a uma irritação química e aumenta a
agressão numa pele já lesada. Ao exame objetivo
surge um eritema brilhante, confluente com as-
pecto “envernizado”, que varia de intensidade ao
longo do tempo. Por vezes apresenta-se na forma
de pápulas eritematosas associadas a edema e a
ligeira descamação. Atinge tipicamente as áreas
de maior contacto com a fralda - “dermatite em
W “ (figura 14) – isto é, as superfícies convexas
das nádegas, coxas, parte inferior do abdómen,
C
púbis, grandes lábios e escroto. As pregas são
inicialmente poupadas.
A complicação mais frequente da DF irritativa Figuras 13 a) b) c) – Crostas lácteas exuberantes com escamas
aderentes e com zonas de alopécia. Fotografias do autor.
primária é a sobreinfeção, nomeadamente por
122 GUSTAVO JANUÁRIO

Figura 14. Dermatite da Fralda Irritativa Primária. Figura 15. Dermatite da fralda candidiásica.
Fotografia do autor. Fotografia do autor.

Candida albicans. O ambiente húmido e quente afetada ao ar, se a temperatura ambiente o permi-
favorece a proliferação desta levedura que ao tir. A higiene diária deverá consistir na lavagem da
penetrar o estrato córneo, activa a via alterna do região com água morna e algodão e na utilização
complemento e induz um processo inflamatório, de produtos de ação suave e com efeito emolien-
com alteração do aspecto da dermatose em que te, não se recomendando, por rotina, toalhetes de
surge descamação, pápulas, pústulas e atingi- limpeza uma vez que poderão ser irritantes. Poder-
mento das pregas (figura 15). A diarreia crónica se-á igualmente aplicar, em cada muda de fralda,
ou o uso de antibioterapia de largo espetro são um creme barreira ou uma pasta com óxido de
duas situações que frequentemente favorecem a zinco. As preparações com ácido bórico e pó de
infeção por Candida albicans. talco deverão ser evitadas pela sua toxicidade e
capacidade de provocar granulomas. O controlo da
No quadro 4 é apresentado o diagnóstico sobreinfeção é fundamental mas não deverão ser
diferencial de algumas patologias que podem utilizados antimicrobianos de forma “preventiva”
causar DF. e a infeção por Candida albicans deverá apenas ser
considerada em dermatites com mais de três dias
O tratamento da DF tem como objetivos man- de evolução e sob as medidas recomendadas. O
ter a área seca, limitar a mistura e a dispersão da tratamento da DF candidiásica consiste na aplicação
urina e das fezes, reduzir o seu contacto com a pele, tópica de nistatina ou derivados do imidazol.
evitar a irritação e a maceração e manter, sempre
que possível, um pH ácido, respeitando a máxima 29.2.2.4 Hemangiomas Infantis
“pouca humidade e muito ar”. Para tal recomenda- Os hemangiomas infantis (HI) são os tumo-
-se mudanças frequentes da fralda e expor a zona res de tecidos moles mais comuns na infância.
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 123

Trata-se de uma proliferação benigna do tecido de crescimento rápido que dura habitualmente
endotelial que ocorre entre quatro a dez por cento três a seis meses mas que se pode prolongar até
das crianças com idade inferior a um ano (figuras aos 24 meses. Segue-se então um período de
16 a) b)). São mais frequentes em caucasianos, estabilização e de involução espontânea, que é
no sexo feminino, em prematuros e nos recém- lenta e gradual e que não deixa habitualmente
-nascidos de baixo peso. A biopsia das vilosidades sequelas (redundância cutânea, telangiectasias
coriónicas constitui igualmente um factor de risco e tecido fibroso). Apesar de serem muitas vezes
para o seu aparecimento. Caracterizam-se por causadores de stresse familiar, exacerbado pelo
um perfil evolutivo e um padrão de crescimento uso incorreto por parte dos pais e cuidadores
típicos. Estão geralmente ausentes ao nascimento, da informação disponível on-line, os HI têm, na
embora em alguns casos possa estar presente uma maioria das situações, um prognóstico excelente
lesão precursora, sendo evidentes nas primeiras e uma resolução espontânea com bom resultado
semanas de vida assistindo-se então a uma fase cosmético.

Dermatite Morfologia Localização História


Irritativa Primária Eritema brilhante, confluente de Superfícies convexas das Evolução por surtos. História
aspecto envernizado. Por vezes nádegas, coxas, parte de diarreia recente. Muda de
pápulas eritematosas associadas inferior do abdómen, fraldas pouco frequentes.
a edema e ligeira descamação. púbis, grandes lábios e
escroto. Poupa as pregas.
Candidiásica Eritema vermelho e vivo Pregas cutâneas atingidas. Antibioterapia ou diarreia.
com descamação periférica Pesquisar atingimento
ou pústulas satélites. concomitante da
cavidade oral.
Seborreica Placas descamativas, Pregas cutâneas atingidas Assintomática, raramente
bem delimitadas de e envolvimento posterior queixas de prurido.
tonalidade salmão. Presença de das superfícies convexas. Surge após o nascimento
escamas gordas amareladas. Ao Couro cabeludo, face, (primeiros três meses de
contrário da candidiásica não pregas retroauriculares, vida). Geralmente com boa
apresenta lesões satélites. axilas, pescoço e umbigo. resposta ao tratamento.
Impétigo Bolhoso Bolhas flácidas e grandes que surgem Múltiplas lesões Coloração pelo
em pele aparentemente normal. Após envolvendo as Gram e cultura.
ruptura da bolha, surgem erosões coxas, nádegas e
vermelhas e húmidas com formação abdómen inferior.
posterior de crostas melicéricas.
Pode ocorrer disseminação rápida
para outros locais do corpo.
Dermatite Eritema vivo, bem História de prurido e dor Cultura de zaragatoa
Estreptocócica demarcado, perianal. durante a defecação. peri-anal.
peri-anal Pode ocorrer fissuração peri-anal. História familiar de faringites
estreptocócicas de repetição.

Quadro 4. Diagnóstico diferencial de dermatite das fraldas.


124 GUSTAVO JANUÁRIO

A B

Figuras 16 a) b). Hemangiomas infantis da fronte (a) e da coxa direita (b).


Fotografias do autor.

Em cerca de 10% dos lactentes com HI po- (superiores a 2 mg/Kg/dia). As taxas de resposta
derá ser necessário instituir algum tipo de trata- eram variáveis (30 a 80%) com melhorias duas a
mento, para além da vigilância habitual. Assim três semanas após o início do tratamento, mas os
preconiza-se intervenção terapêutica no caso de efeitos secundários eram múltiplos (fácies cushin-
HIs com risco de vida associado (localização nas goide, insónia, irritabilidade, alteração do cresci-
vias respiratórias superiores e hemangiomatose mento, hipertensão e cardiomiopatia hipertrófica).
hepática, com risco associado de insuficiência A cirurgia reserva-se habitualmente para situações
respiratória e insuficiência cardíaca de alto dé- muito pontuais, nomeadamente HIs pediculados.
bito); na presença de complicações locais como Recentemente foi descrito um tratamento
hemorragia (raramente é significativa), ulceração utilizando o propranolol, um beta-bloqueador não
(comum, sobretudo no lábio, pescoço e região selectivo, que veio revolucionar a abordagem dos
genital) e necrose; na presença de compromisso HIs. Graças à sua excelente eficácia, comprovada
das funções sensitivas (no caso de HIs localizados num ensaio randomizado e controlado, rapida-
à região peri-ocular com compromisso da abertura mente se tornou no tratamento de primeira linha
palpebral, ou na proximidade do meato auditivo); dos HI. É atualmente o tratamento recomendado
ou na presença de risco cosmético significativo pelas principais sociedades científicas estando dis-
que poderá levar a deformidades permanentes (lo- poniveis protocolos de orientação. O propranolol
calização na asa nasal, lábio superior ou auricular). deverá ser utilizado durante a fase proliferativa
O tratamento dos HIs, reservado para as e os seus efeitos terapêuticos são consistentes e
situações anteriormente descritas, era classica- rápidos alterando a história natural dos HIs. É um
mente efetuado utilizando corticoides sistémi- fármaco com boa tolerância clínica embora os
cos, sendo habitualmente necessário doses altas efeitos secundários habitualmente associados ao
CAPÍTULO 29. PROBLEMAS DERMATOLÓGICOS MAIS COMUNS EM PEDIATRIA 125

propranolol (hipoglicemia, hipotensão, bradicardia


e broncospasmo) devam ser vigiados.

Leitura complementar
National Institute for Clinical Excellence. Management of
atopic eczema in children from birth up to the age of
12 years. London: NICE; 2007.
Eichenfield LF et al. Guidelines of care for the management
of atopic dermatitis. J Am Acad Dermatol. 2014.
Léauté-Labrèze C, Dumas de la Roque E, Hubiche T, Boralevi F,
Thambo JB, Taïeb A. Propranolol for severe hemangiomas
of infancy. N Engl J Med. 2008.
Lawley LP, Siegfried E, Todd JL. Propranolol treatment for
hemangioma of infancy: risks and recommendations.
Pediatr Dermatol. 2009.
Capítulo 30.
Infeções da pele e dos tecidos moles

30
Fernanda Rodrigues
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_30
CAPÍTULO 30. INFEÇÕES DA PELE E DOS TECIDOS MOLES 129

30.1 CONTEXTO A orientação terapêutica dependerá do


diagnóstico, das caraterísticas do hospedeiro e
As infeções da pele e dos tecidos moles são do microrganismo mais provavelmente implicado
muito frequentes em idade pediátrica. na infeção, sendo muito importante o conheci-
A pele é formada por três camadas: a mais mento das suscetibilidades aos antimicrobianos
superficial designada por epiderme, seguida pela a nível local e nacional, que são obtidas através
derme (que inclui os folículos pilosos, glândulas de vigilância epidemiológica contínua. Deverá
sebáceas e sudoríparas) e, abaixo desta, a hipo- escolher-se um antibiótico ativo contra a bacté-
derme ou tecido celular subcutâneo, constituída ria em causa, mas com espectro o mais estreito
por tecido conjuntivo e gordura. possível. A antibioterapia deverá ser adequada aos
A pele íntegra é uma barreira contra a in- exames microbiológicos sempre que estes tiverem
feção. Nela podemos encontrar a flora residente sido efetuados bem como à evolução clínica. Por
(onde predominam Staphylococcus epidermidis e vezes é também necessário tratamento cirúrgico.
Propionibacterium acnes), que é pouco virulenta As infeções da pele e tecidos moles têm
e raramente causadora de doença, e a flora oca- habitualmente resolução rápida, no entanto, em
sional e transitória (predominantemente composta alguns casos, podem ser graves e mesmo deixar
por Staphylococcus aureus e Streptococcus pyo- sequelas.
genes), que pode ser patogénica em particular Para além das bactérias, os agentes etiológi-
se a integridade da pele for atingida. cos das infeções da pele podem ser vírus, fungos
A infeção pode localizar-se à pele ou es- e parasitas, sendo este capítulo particularmente
tender-se em profundidade, atingindo os tecidos dedicado aos primeiros, mas com uma breve re-
moles adjacentes que compreendem o tecido adi- ferência a algumas infeções víricas frequentes em
poso, a fáscia e o músculo. As bactérias podem idade pediátrica. Não serão abordadas infeções
ainda entrar na corrente sanguínea, causando fúngicas e parasitárias.
bacteriémia, septicémia ou outros focos infeciosos
à distância.
Staphylococcus aureus e Streptococcus 30.2 DESCRIÇÃO DO TEMA
pyogenes são as bactérias mais frequentemente
envolvidas, no entanto, as manifestações clínicas 30.2.1 Infeções bacterianas
e os agentes microbiológicos podem variar se a
infeção ocorrer numa criança com alterações da 30.2.1.1 Impétigo
imunidade, se estiver associada aos cuidados de Trata-se de uma infeção superficial da pele,
saúde, se resultar de exposição a animais, terra atingindo a epiderme, muito comum na criança.
ou água ou se surgir após viagens a outros países. Pode ocorrer em pele sã (impétigo primário) ou em
Nesta lição serão abordadas fundamentalmente áreas de pele lesada tais como zonas de trauma-
as infeções da pele e dos tecidos moles adquiridas tismo, picadas de inseto ou eczema (impétigo se-
na comunidade em crianças saudáveis. cundário por vezes designado de impetiginização).
130 FERNANDA RODRIGUES

É mais frequentemente encontrado em crianças Impétigo não bolhoso


dos dois aos cinco anos embora possa ocorrer Agentes etiológicos:
em qualquer idade. É muito contagioso e pode Staphylococcus aureus e Streptococcus pyo-
apresentar-se sob a forma de: genes.

Impétigo bolhoso É a forma mais comum de impétigo, corres-


Agente etiológico: pondendo a mais de 70% das lesões.
Staphylococcus aureus produtor de toxina Habitualmente começa por uma lesão ma-
A esfoliativa. culo-papular eritematosa que rapidamente evolui
para uma vesícula com halo eritematoso e poste-
Inicia-se por uma vesícula que evolui para riormente transforma-se em pústula com crosta
uma bolha de parede fina, com conteúdo claro cor de mel. Esta evolução demora habitualmente
que mais tarde se torna turvo, flácida, não dolo- uma semana. Não é doloroso e apresenta prurido
rosa, habitualmente de diâmetro superior a um ocasional. Tem predomínio peri-orificial na face ou
centímetro, que rompe deixando uma base eri- nos membros inferiores, frequentemente em pele
tematosa e húmida. Ocorre em crianças de baixa previamente traumatizada. Embora possa haver
idade. No recém-nascido as áreas mais afetadas várias lesões, são habitualmente localizadas. Não
são o períneo, região peri-umbilical e axilas. tem manifestações sistémicas e cura sem sequelas.
Os recém-nascidos são particularmente sus- São fatores predisponentes a humidade, o
cetíveis à disseminação de Staphylococcus aureus calor (é mais frequente no Verão), má higiene,
produtores de toxinas esfoliativas, dando origem atopia e trauma, atingindo predominantemente
ao síndrome da Pele Escaldada Estafilocócica crianças com mais de dois anos. Resulta habi-
(SSSS). A toxina atua a nível da zona granulosa tualmente de auto-inoculação ou contacto com
da epiderme resultando na formação de bolhas pessoas ou objetos contaminados.
muito frágeis. Inicia-se habitualmente por febre,
irritabilidade, prostração e eritema difuso que A glomerulonefrite pós-estreptocócica é uma
começa frequentemente em volta da boca. Em complicação possível do impetigo estreptocócico,
um a dois dias aparecem bolhas flácidas, de con- ocorrendo entre uma a duas semanas após a infe-
teúdo claro, em grandes áreas da pele, que após ção cutânea. Não é claro que o tratamento antibió-
rotura apresentam uma base eritematosa. Ocorre tico adequado reduza o risco desta complicação.
descamação superficial da pele aos pequenos
toques (sinal de Nikolsky), por separação da epi- Éctima
derme. A recuperação é habitualmente rápida Agente etiológico mais frequente:
com restitutium ad integrum da pele, mas po- Streptococcus pyogenes.
dem ocorrer complicações tais como alterações
hidro-electrolíticas e sobre-infecções bacterianas Trata-se de uma forma ulcerada de impéti-
graves. go em que as lesões se estendem até à derme.
CAPÍTULO 30. INFEÇÕES DA PELE E DOS TECIDOS MOLES 131

A úlcera está coberta por uma crosta de cor ama- A lavagem das mãos é fundamental para
relada e tem bordos elevados violáceos. prevenir a disseminação da infeção.
As crianças podem regressar à escola 24 horas
A cultura de pús ou exsudato de lesões de após instituição de tratamento antibiótico adequa-
impétigo ou éctima está habitualmente recomen- do, devendo ser cobertas as lesões exsudativas.
dada para identificação e monitorização dos gér- Dada a gravidade clínica, o SSSS exige in-
mens e suas suscetibilidades mas o tratamento ternamento. O tratamento é com antibiótico en-
sem esta investigação é aceitável nos casos clínicos dovenoso com atividade contra Staphylococcus
com manifestações típicas. Não estão indicados aureus (flucloxacilina).
outros exames complementares.
Quando diagnóstico de SSSS é colocado, 30.2.1.2 Foliculite, carbúnculo e furúnculo
devem ser efetuadas culturas de sangue, da na- Agente etiológico mais frequente:
sofaringe, do umbigo ou qualquer outro foco sus- Staphylococcus aureus.
peito de infeção. As bolhas intactas são estéreis.
O objetivo do tratamento do impétigo é redu- São um grupo de infeções que têm em co-
zir a transmissão e desconforto, devendo na forma mum a sua origem nos folículos pilosos.
não bolhosa ser utilizado um antibiótico (flucloxa- As lesões de foliculite estão localizadas ao
cilina) com atividade para Staphylococcus aureus e folículo piloso, com reação tecidular mínima, e
Streptococcus pyogenes, pois ambos podem estar com pús na epiderme. São habitualmente peque-
envolvidos. Sempre que for efetuada cultura, o nas (inferiores a 5mm de diâmetro), múltiplas,
antibiótico deverá ser ajustado a este resultado. agrupadas, eritematosas por vezes com pústula
Uma revisão da Cochrane de 2012, concluiu que há no centro da lesão e com prurido.
evidência de que a mupirocina e o ácido fusídico A coalescência de vários folículos inflamados
tópicos são igualmente ou mais eficazes de que o com drenagem purulenta designa-se carbúnculo.
tratamento com antibiótico oral para esta infeção, Quando o processo envolve o folículo piloso
quando se trata de lesões únicas ou em número e o material purulento se estende aos tecidos
limitado. Por falta de estudos em impétigo extenso, adjacentes (derme e tecido celular subcutâneo),
não é claro se a antibioterapia oral é superior à com formação de pequenos abcessos, designa-
tópica nestes casos. Estas são também as reco- -se furúnculo.
mendações da Sociedade Americana de Doenças A cultura do material purulento das lesões
Infeciosas (IDSA), atualizadas em 2014. No caso pode ser efetuada mas o tratamento sem esta
de lesões numerosas ou surtos deverá utilizar-se investigação é aceitável nos casos clínicos com
antibioterapia oral para reduzir a transmissão. manifestações típicas.
O tratamento do éctima deverá ser sempre oral. As lesões de foliculite são habitualmente
A duração da terapêutica tópica é de cinco auto-limitadas, não necessitando tratamento.
dias e da terapêutica oral para impétigo ou éctima Poderá ser instituído tratamento tópico com áci-
deverá ser de sete. do fusídico se persistentes.
132 FERNANDA RODRIGUES

O carbúnculo e furúnculo são tratados com frequentemente numa área de pele traumatizada
incisão e drenagem. Antibioterapia com flucloxaci- que permite a entrada das bactérias. A área atin-
lina poderá ser associada nos casos com manifes- gida apresenta-se com edema, eritema, calor e
tações sistémicas, lesões múltiplas, resposta clínica dor, tem limites mal definidos e não tem bordos
inadequada à incisão e drenagem e em doentes elevados. Pode ocorrer em qualquer local do corpo
com co-morbilidades. A duração do tratamento mas os membros são os locais mais frequentemen-
depende da resolução clínica, sendo habitual- te envolvidos. Pode variar em gravidade, desde
mente suficientes cinco a sete dias. formas localizadas a outras mais extensas com
manifestações sistémicas como febre. A evolução
30.2.1.3 Dermatite perianal estreptocócica é habitualmente mais lenta do que a da erisipela.
Agente etiológico: O diagnóstico é clínico. A realização de
Streptococcus pyogenes. hemocultura ou aspiração da lesão com agulha
têm pouca utilidade em quadros ligeiros, sendo
Caracteriza-se por um eritema perianal de a percentagem de positividade muito baixa. A
bordos bem definidos, com exsudação, prurido, hemocultura ou cultura de pús podem ser úteis
dor local e dor à defecação, ocorrendo por vezes em quadros com manifestações sistémicas, lesões
dejeções com sangue, fissuras anais e obstipação. extensas ou existência de co-morbilidades.
Não há febre ou outra sintomatologia sistémica. O tratamento deverá ser feito com fluclo-
Atinge predominantemente crianças entre os xacilina oral, podendo nos casos mais graves ser
seis meses e os dez anos, sendo mais frequente necessária a via endovenosa. A duração depende
no sexo masculino. da resposta clínica, sendo habitualmente adequa-
O diagnóstico clínico poderá ser confirmado dos cinco a dez dias.
através da cultura do exsudato local.
O tratamento deverá ser feito com amoxicilina. 30.2.1.5 Erisipela
Apesar de não haver resistências do Streptococcus Agente etiológico:
pyogenes à penicilina, por razões não bem escla- Streptococcus pyogenes.
recidas, por vezes esta infeção não resolve com
este tratamento. Se tal ocorrer, a segunda escolha A erisipela localiza-se à camada superficial
deverá ser amoxicilina e ácido clavulânico. da derme, com grande envolvimento linfático.
O início dos sintomas é habitualmente súbito e
30.2.1.4 Celulite inclui manifestações sistémicas tais como febre e
Agentes etiológicos mais frequentes: mal-estar. Apresenta-se com edema, rubor, calor
Staphylococcus aureus e dor. A área atingida tem bordos elevados e
e Streptococcus pyogenes. limites bem definidos. A pele pode ter aspeto de
casca de laranja, por vezes com vesículas. Mais
Caracteriza-se por uma inflamação da derme tarde, ocorre descamação e pigmentação. Por
profunda e do tecido celular subcutâneo. Surge vezes associa-se a linfangite.
CAPÍTULO 30. INFEÇÕES DA PELE E DOS TECIDOS MOLES 133

As extremidades inferiores são as mais fre- cutânea vermelho-arroxeada para áreas de cor
quentemente atingidas. azul-acinzentada por trombose venosa com ne-
O diagnóstico é clínico. A hemocultura ou crose tecidular, por vezes com bolhas.
cultura de exsudato podem ser úteis em quadros Como se trata de uma infeção grave com
com manifestações sistémicas, lesões extensas ou manifestações sistémicas, deverá ser efetuada
co-morbilidades. avaliação laboratorial com hemograma, proteína C
O tratamento de primeira linha é a penicilina. reativa e hemocultura. Deverá ser sempre efetuada
Quando há manifestações sistémicas deverá ser colheita de material biológico (exsudatos, produ-
endovenoso, passando para oral logo que haja tos de drenagem cirúrgica) para identificação do
melhoria clínica. gérmen por cultura e/ou biologia molecular. Na
Se houver dificuldade em distinguir erisipela suspeita de fasceíte necrotizante a ressonância
de celulite deverá ser escolhido um antibiótico magnética (RM) é o melhor exame para carate-
com atividade contra Streptococcus pyogenes e rizar as lesões.
Staphylococcus aureus (flucloxacilina). Esta infeção tem uma elevada morbilidade
A duração do tratamento depende da res- e mortalidade. É necessária terapêutica médica e
posta clínica, sendo cinco a dez dias habitual- cirúrgica com fasciectomia e remoção dos tecidos
mente adequado. necrosados. Quando se suspeita de infeção por
Streptococcus pyogenes, o tratamento antibiótico
30.2.1.6 Fasciíte necrotizante deverá ser com penicilina associada a clindamicina.
Agente etiológico mais frequente: Os potenciais benefícios deste último antibiótico
St r e p t o c o c c u s pyogenes; outros: são o facto de grandes inóculos e lenta prolifera-
Staphylococcus aureus, estreptococcus ção bacteriana levarem a uma menor expressão
anaeróbios; polimicrobiana. das proteínas de ligação à penicilina, tornando os
β-lactâmicos potencialmente menos ativos (Eagle
É uma infeção do tecido celular subcutâneo effect). Além disso, ao contrário dos β-lactâmicos,
progredindo rapidamente pela fascia superficial, e a sua atividade antimicrobiana não é afetada pelo
que se pode estender à fascia profunda e músculo, inóculo, tem efeito prolongado após última ad-
com necrose maciça do tecido celular subcutâ- ministração e atua sobre as bactérias inibindo a
neo. Ocorre habitualmente como extensão de síntese de toxinas. Poderá ser suspensa após de-
uma lesão cutânea, que em alguns casos pode saparecimento da febre e estabilização do doente.
ser uma lesão banal. Na criança pode estar as- Dada a gravidade desta infeção, quando há
sociada a varicela, queimadura, picada de inseto, possibilidade de haver outros microrganismos en-
traumatismo ou eczema. A apresentação inicial volvidos, o tratamento antibiótico deve incluir um
pode ser semelhante à da celulite mas com dor β-lactâmico com inibidor de β-lactamases (por
muito intensa e poucos sinais inflamatórios visí- exemplo: piperacilina-tazobactam) ou um carba-
veis. Associa febre alta, prostração, mau estado penemo associado a clindamicina e vancomicina.
geral. Evolui rapidamente de uma tonalidade A terapêutica deverá ser posteriormente ajustada
134 FERNANDA RODRIGUES

ao microrganismo ou microrganismos identifi- Porque se trata de uma infeção sistémica,


cados e respetivos antibiogramas. A terapêutica deverá ser efetuada avaliação laboratorial (hemo-
antibiótica deverá ser mantida até 14 dias após grama, hemocultura e proteína C reativa), cultura
a última cultura positiva do material orgânico do dos produtos de drenagem e imagem. A RM é
desbridamento. o exame de eleição. Se não estiver disponível
Poderá ser administrada imunoglobulina em- poderá ser efetuada tomografia axial computo-
bora a sua eficácia não esteja bem estabelecida. rizada. A ecografia poderá dar informação útil
em particular nos estádios mais avançados em
30.2.1.7 Piomiosite que já existe abcesso.
Agente etiológico mais frequente: Quando o doente se apresenta no pri-
Staphylococcus aureus. meiro estádio, poderá ser tratado apenas
com antibiótico ativo contra Staphylococcus
É também designada piomiosite tropical por aureus e Streptococcus pyogenes (flucloxa-
ser mais frequente nestas regiões embora com um cilina). Nos segundo e terceiro estádios é
reconhecimento crescente em climas temperados. habitualmente necessário antibiótico e dre-
Trata-se de uma infeção purulenta do músculo es- nagem cirúrgica.
quelético, habitualmente com formação de abcesso A clindamicina é frequentemente associa-
no decurso de bacteriémia. Os traumatismos são da nestas infeções pelas razões acima referidas.
fatores predisponentes e a infeção poderá ocorrer A duração da terapêutica depende da evolução
no local do hematoma ou de perfusão aumentada. clínica estando habitualmente indicadas duas a
Apresenta-se com febre e dor habitualmente quatro semanas, inicialmente endovenosa mas
localizada a um único grupo muscular. É mais que poderá passar a oral quando o doente estiver
frequente nos membros inferiores mas qualquer estável e se a evolução tiver sido boa.
grupo muscular pode estar envolvido.
Evolui habitualmente em três estádios, assim 30.2.1.8 Mordeduras humanas
caraterizados: e de animais
Agentes etiológicos mais frequentes
1º- início insidioso com dor local e febre bai- na mordedura humana:
xa. Há edema localizado, por vezes duro. Staphylococcus aureus, Eikenella
2º - ocorre 10 a 21 dias após o aparecimento corrodens e anaeróbios tais como os
inicial dos sintomas com febre, arrepios, Fusobacterium, Peptostreptococcus,
dor a nível do músculo, edema e por Prevotella e Porphyromonas spp.
vezes eritema cutâneo na região afetada.
3º - dor intensa no local afetado, que se Agentes etiológicos mais frequentes
apresenta eritematoso, por vezes com na mordedura de animais:
flutuação. Há sinais sistémicos como fe- aeróbios e anaeróbios incluindo Staphylococcus
bre alta e por vezes choque. aureus e Pasteurella multocida.
CAPÍTULO 30. INFEÇÕES DA PELE E DOS TECIDOS MOLES 135

As mordeduras humanas, de cães e gatos po- utilizado isoladamente no tratamento da doença


dem resultar em infeções da pele e tecidos moles. invasiva por Streptococcus pyogenes.
O tratamento deverá ser com amoxicilina As primeiras estirpes de Staphylococcus
associada ao ácido clavulânico. Em alguns casos aureus resistentes à penicilina surgiram pouco
(mordedura de gato e de cão grave, especialmente após a comercialização deste antimicrobiano.
nas mãos e face, ou se não puder ser adequada- As penicilinas resistentes às penicilinases, de
mente limpa) está indicada a prescrição profilática que a meticilina é o padrão, permitiram ultra-
de antibiótico durante três a cinco dias. passar temporariamente este problema mas
rapidamente surgiram estirpes hospitalares de
Exames complementares Staphylococcus aureus meticilina resistentes
Como vem sendo abordado ao longo do (SAMR), que mais tarde se alargaram à comu-
texto, o diagnóstico das infeções da pele e teci- nidade. Em Portugal, os dados relativos a SAMR
dos moles é, na maioria dos casos, baseado na hospitalares são extensos e amplamente conhe-
história clínica e no exame objetivo cuidadoso. cidos mas a informação sobre estas estirpes
Sempre que possível deverá ser efetuada colheita na comunidade é escassa. A vigilância anual
de material biológico (exsudatos, pús) para iden- efetuada no Hospital Pediátrico de Coimbra
tificação do gérmen por cultura e/ou biologia desde 1998, tem demonstrado valores baixos
molecular. Em infeções moderadas ou graves e de SAMR da comunidade, com taxas que va-
quando existe sintomatologia sistémica, deverá ser riaram entre 0 a 3,5% dos Staphylococcus au-
efetuada avaliação laboratorial com hemograma, reus da comunidade identificados (dados não
proteína C reativa e hemocultura. publicados). Estes valores permitem-nos manter
Na suspeita de celulite, fasceíte necrotizante a flucloxacilina como o antibiótico de primeira
ou piomiosite poderá ser efetuada ecografia de linha nas infeções causadas por Staphylococcus
tecidos moles, mas para os dois últimos a RM é aureus adquiridas na comunidade.
o exame de escolha para melhor definição das
lesões. O quadro 1 sumariza os agentes etio-
lógicos bacterianos e as respetivas escolhas
Escolha do antimicrobiano terapêuticas.
As resistências aos antimicrobianos variam,
entre outros fatores, com a área geográfica e com 30.2.2 Infeções víricas
o facto de se tratar de gérmens da comunidade
ou associados aos cuidados de saúde. São muitas as infeções víricas que na sua
Streptococcus pyogenes é universalmente apresentação incluem manifestações cutâneas.
suscetível à penicilina. Dados nacionais do estudo Em seguida apresentaremos quatro, que
Viriato, referem para a idade pediátrica (até aos são frequentes em idade pediátrica e nas quais
18 anos), em 2007, resistências à clindamicina de as manifestações cutâneas são dominantes no
8%. Por esta razão, este antibiótico não deve ser quadro clínico.
136 FERNANDA RODRIGUES

Diagnóstico Microrganismo(s) mais frequente Tratamento


Impétigo Staphylococcus aureus (SA), Ácido fusídico ou flucloxacilina
Streptococcus pyogenes (SP)
Foliculite SA Sem tratamento/Ácido fusídico

Carbuncúlo e Incisão e drenagem ± flucloxacilina


Furúnculo
Dermatite SP Amoxicilina
perianal
estreptocócica
Celulite SA, SP Flucloxacilina
Erisipela SP Penicilina seguida de amoxicilina
Fasciíte SP Penicilina + Clindamicina**
necrotizante* SA meticilina-suscetível Flucloxacilina + Clindamicina**
Polimicrobiana com SA Piperacilina-Tazobactan +
meticilina-resistente Clindamicina** + Vancomicina
Piomiosite* SA Flucloxacilina + Clindamicina**
SP
Mordeduras SA, Pasteurella multocida e anaeróbios Amoxicilina + ácido clavulânico
humanas e
de animais
*Tratamento médico e cirúrgico; **Suspender após estabilização. SA- Staphylococcus aureus; SP- Streptococcus pyogenes

Quadro 1. Agentes etiológicos bacterianos mais frequentes em infeções da pele e tecidos moles e respetiva antibioterapia.

30.2.2.1 Varicela termina habitualmente cerca de 72 horas após o


Agente etiológico: aparecimento do exantema. Os sintomas gerais
vírus da varicela. desaparecem em 24 a 72 horas.
O diagnóstico é clínico, não sendo habitual-
Após um período de incubação de 10 a 21 mente necessários exames complementares. O tra-
dias (habitualmente 14 a 16), surgem febre, mal tamento é apenas sintomático. Não está recomen-
estar e cefaleias. Cerca de 24 a 48 horas depois dado uso de aciclovir oral por rotina em crianças
aparece exantema caraterizado por máculas eri- saudáveis com varicela. A sua administração nas
tematosas dispersas, incluindo no couro cabelu- primeiras 24 horas após aparecimento do exan-
do, que evoluem rapidamente para vesículas com tema resulta apenas numa modesta diminuição
conteúdo claro, rodeadas de eritema e evoluindo semiológica. No entanto, este antivírico deve ser
finalmente para crosta, muito pruriginosas. Por considerado em crianças com risco acrescido de
vezes atingem a orofaringe e os genitais. Podem varicela moderada ou grave (adolescentes não
observar-se lesões em vários estádios de evolução vacinados, crianças com doenças crónicas cutâ-
e podem surgir novas durante um a sete dias. No neas ou pulmonares, crianças sob tratamento com
indivíduo imunocompetente a replicação do vírus esteroides, e alguns peritos recomendam a sua
CAPÍTULO 30. INFEÇÕES DA PELE E DOS TECIDOS MOLES 137

administração ao segundo caso na família, nos na infância. O homem é único hospedeiro co-
quais a doença é habitualmente mais grave do nhecido. É transmitido pelo contato direto pele-
que no primeiro). -a-pele, podendo ocorrer em qualquer parte do
O reaparecimento da febre no decurso da corpo. Pode também ser transmitido através de
doença deve fazer pensar em complicações, no- auto-inoculação ao tocar numa lesão ou através
meadamente infeções da pele e tecidos moles de fomites nas toalhas de banho. Está descrita
tais como celulite e fasceíte necrotizante, onde o associação de molusco contagioso com a fre-
Streptococcus pyogenes e Staphylococcus aureus quência de piscinas.
estão habitualmente envolvidos. O período de incubação é habitualmente
entre duas e seis semanas.
30.2.2.2 Herpes zoster Causa uma infeção localizada caraterizada
Agente etiológico: por lesões papulares da cor da pele, de 2 a 5
vírus varicela-zoster (VZV). mm de diâmetro, com uma superfície brilhante
e umbilicação. Pode existir prurido. Por vezes as
O Herpes zoster resulta da reativação de lesões apresentam-se visivelmente inflamadas,
uma infeção latente do VZV no gânglio sensorial. podendo ser um sinal de regressão, não devendo
Carateriza-se por pápulas eritematosas que rapi- tal aspeto ser confundido com infeção bacteriana.
damente evoluem para vesiculas dolorosas, que Pode aparecer em qualquer parte do corpo,
geralmente ocorrem em um dermátomo torácico exceto nas palmas e plantas. As áreas mais fre-
ou lombar. Ocasionalmente pode haver algumas quentemente atingidas incluem o tronco, axilas,
vesículas dispersas localizadas a alguma distância fossas antecubital e poplítea.
do dermátomo envolvido. Passados três a quatro Em crianças saudáveis, geralmente desapa-
dias as lesões vesiculares evoluem para pústula e rece espontaneamente com resolução completa
crosta. Aos sete a dez dias já não são consideradas entre seis a doze meses. Numa minoria de casos
infeciosas. A dor é habitualmente menos intensa persiste por períodos mais longos. A maioria das
na criança do que no adulto. lesões de molusco contagioso resolve sem cica-
O diagnóstico é clínico. O benefício da tera- trizes. Esta natureza auto-limitada e a escassez
pêutica antivírica não é claro, podendo acelerar de evidência que definitivamente apoie a inter-
a resolução das lesões cutâneas quando iniciada venção terapêutica, levantam questões sobre a
nas primeiras 72 horas de doença. necessidade de tratamento. As vantagens deste
incluem limitação da progressão das lesão, redu-
30.2.2.3 Molluscum contagiosum ção do risco de transmissão para outras pessoas,
Agente etiológico: resolução do prurido quando presente, prevenção
Molluscum contagiosum. de cicatrizes que podem resultar de lesões trau-
matizadas ou secundariamente infetadas.
O Molluscum contagiosum é um poxvírus A remoção com uma cureta resulta em re-
que provoca uma infeção cutânea muito comum solução imediata da lesão embora por vezes seja
138 FERNANDA RODRIGUES

necessária mais do que uma sessão. Pode causar sempre que possível porque permitem conhecer os
desconforto e ser muito demorada. Existe uma microrganismos envolvidos e suas suscetibilidades
extensa lista de tratamentos tópicos. aos antimicrobianos. Outros exames complemen-
tares são necessários apenas em alguns casos. As
30.2.2.4 Verrugas palmo-plantares infeções bacterianas são habitualmente causadas
Agente etiológico: por Staphylococcus aureus e Streptococcus pyoge-
Papilomavírus humano (HPV). nes. Algumas podem ser tratadas com antibiótico
A manifestação clínica mais comum da infe- tópico, outras com antibiótico sistémico e outras
ção por HPV são as verrugas. Existem muitos tipos necessitam também de incisão e drenagem. Como
de HPV, que tendem a infetar locais específicos o tratamento antibiótico inicial é sempre empíri-
do corpo. O HPV tipo 1 geralmente origina as co, devemos conhecer as suscetibilidades locais
verrugas plantares. e nacionais de forma a poder fazer a escolha
Esta infeção ocorre pelo contacto pele-a- mais adequada, ajustando-a depois aos exames
-pele em locais macerados ou de trauma predis- microbiológicos efetuados.
pondo à inoculação, podendo no entanto também
ocorrer em pele normal. Leitura complementar
O período de incubação é de dois a seis Long S, Pickering L, Prober C. Bacterial skin infections. Skin
meses. Infections. Principles and Practice of Pediatric Infectious
As verrugas podem ter diferentes formas, Diseases. 4th ed. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2012.
apresentar-se como lesão única ou em grupo. Cherry J, Demmler-Harrison G, Kaplan S, Steinbach W,
O diagnóstico é clínico. Têm aspeto de pequena Hotez P. Skin and Soft-Tissue Infections. Feigin and
formação dura encastoada na planta do pé, so- Cherry’s Textbook of Pediatric Infectious Diseases. 7th
bretudo nas áreas de pressão. São habitualmente ed. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2013.
dolorosas. Stevens DL, Bisno AL, Chambers HF, et al. Practice guidelines
A remissão espontânea das verrugas ocorre for the diagnosis and management of skin and soft tissue
em até dois terços dos doentes dentro de dois infections: 2014 update by the Infectious Diseases Society
anos. A recorrência é comum. O tratamento mais of America. Clin Infect Dis. 2014;59:e10-52.
usado em pediatria é o ácido salicílico local, em-
bora existam outras opções.

30.3 FACTOS A RETER

As infeções da pele e tecidos são frequentes


em idade pediátrica. São diagnosticadas através
de uma história clínica e exame físico cuidadosos.
Os exames microbiológicos devem ser efetuados
Capítulo 31.
Púrpuras/ Vasculites

31
Paula Estanqueiro
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_31
CAPÍTULO 31. PÚRPURAS/VASCULITES 141

31.1 CONTEXTO O tipo, a localização e a extensão da púrpu-


ra, em relação com a aparência geral da criança e
A púrpura é um dos achados alarmantes no a presença ou não de febre, ajudam na orientação
exame objetivo de uma criança. Pode representar diagnóstica inicial.
uma condição clínica relativamente benigna rela-
cionada com pequenos traumatismos frequentes 31.2.1 Púrpura por alteração do número
nas crianças, ou ter subjacente uma doença grave das plaquetas
ameaçadora da vida, tal como a meningococcémia.
As alterações plaquetares (em número ou
função) determinam geralmente uma hemorragia
31.2 DESCRIÇÃO DO TEMA superficial e petequial, e mais raramente equi-
mótica, mas quando são graves podem produzir
O termo púrpura designa lesões cutâneas hemorragias digestivas, genitourinárias e do sis-
eritemato-violáceas que resultam do extravasa- tema nervoso central. O número de plaquetas
mento de eritrócitos dos vasos para a pele e mu- normal é superior a 150.000/mm3 e geralmente
cosas. Dependendo do tamanho, as lesões podem não há hemorragia com contagens plaquetares
classificar-se em petéquias (lesões punctiformes acima de 30.000/mm3 (exceto se houver trauma
com diâmetro inferior a dois mm) ou equimoses ou intervenção cirúrgica).
(lesões confluentes geralmente superiores a cinco
- dez mm). Ao contrário de outras lesões cutâneas Trombocitopenias
vasculares ou eritematosas, as lesões de púrpura A trombocitopenia pode ser causada por
não branqueiam com a digitopressão. três mecanismos: aumento da destruição pla-
A púrpura pode ser secundária a disrupção quetar (imune ou não imune), diminuição da sua
da integridade vascular (por trauma, infeção, vas- produção (congénita ou adquirida) ou sequestro
culite, doenças do colagénio) ou pode resultar esplénico.
de alterações primárias ou secundárias da he- No recém-nascido (RN) normalmente as
mostase (trombocitopenia, disfunção plaquetar, trombocitopenias são de etiologia aloimune,
deficiências ou anomalias da função de fatores autoimmune ou infeciosa, sendo raras as trom-
da coagulação). bocitopenias primárias associadas a alterações
Geralmente, a trombocitopenia manifesta-se quantitativas e funcionais das plaquetas.
com lesões petequiais (não palpáveis), hemorra- As trombocitopenias autoimunes são
gia das mucosas ou, raramente, hemorragia do causadas pela passagem transplacentária de
sistema nervoso central. As doenças da coagula- autoanticorpos maternos dirigidos contra anti-
ção apresentam-se com equimoses e hemartro- génios também expressos nas plaquetas do RN.
ses, mas também hemorragias gastrointestinais, Geralmente associam-se a doenças maternas do
genitourinárias ou do sistema nervoso central. tecido conjuntivo como o lúpus eritematoso sis-
A púrpura palpável é caraterística das vasculites. témico (LES), a púrpura trombocitopénica imune
142 PAULA ESTANQUEIRO

(PTI) ou trombocitopenias induzidas por fármacos. mecanismos fisiopatológicos como a diminuição


Em contraste com a trombocitopenia aloimune, da produção de plaquetas e efeitos mediados
os anticorpos responsáveis ligam-se às plaquetas pelas células T.
da mãe e do RN, causando trombocitopenia em Clinicamente apresenta-se com petéquias,
ambos. No RN a trombocitopenia acontece em equimoses e hemorragia ligeira das mucosas (epis-
cerca de 10% dos casos. taxis em 10 a 20% dos casos) numa criança com
A causa mais comum de trombocitopenia bom estado geral e aparentemente saudável. São
isolada no RN saudável é a trombocitopenia igualmente afetados ambos os géneros, com um
neonatal aloimune, cuja fisiopatologia é so- pico de incidência entre o um e os cinco anos de
breponível à da isoimunização Rh. É causada idade. É frequente ser precedida por uma infeção
pela passagem transplacentár ia de anticorpos vírica das vias aéreas superiores, podendo também
maternos dirigidos contra antigénios plaquetá- estar relacionada com vacinação (por exemplo,
rios fetais herdados do pai, e ausentes na ma ̃e. após VASPR).
Contrariamente à isoimunização Rh, o primeiro Para além das manifestações hemorrágicas
filho pode ser atingido (40 a 50% dos casos). Na o exame físico deve ser normal; contudo, em 5
raça caucasiana, mais de 75% dos casos deve-se a 10% dos doentes pode haver esplenomegália
à incompatibilidade feto-materna para o aloan- mínima. A presença de sintomas constitucionais,
tigénio HPA-1a. como febre e emagrecimento, hepatomegália,
Na trombocitopenia neonatal aloimune as esplenomegália moderada ou linfadenopatia, dor
manifestações clínicas ocorrem, na maioria dos óssea ou articular, deve fazer suspeitar de outra
casos, nos primeiros dias de vida do RN com doença subjacente nomeadamente infeciosa ou
petéquias ou equimoses, sem outras alterações neoplásica.
ao exame objetivo. No entanto, podem ocorrer Analiticamente na PTI está presente trombo-
outras manifestações hemorrágicas como he- citopenia isolada, sem outras alterações no hemo-
morragia digestiva (30%), hemorragia do sistema grama, e as provas de coagulação são normais. Na
nervoso central (10 a 20%), hemoptises (8%), presença de anemia, leucocitose ou leucopenia,
hemorragia retiniana (7%) e hematúria (3%). suspeitar de doença infiltrativa medular.
A complicação mais temida é a hemorragia intra- Geralmente a PTI tem uma duração autoli-
craniana, que em 50% dos casos ocorre in uteru, mitada de algumas semanas, com 80 a 90% das
com risco de sequelas neurológicas irreversíveis crianças a normalizarem os valores de plaquetas
e de morte. em seis a doze meses. A PTI crónica é mais pro-
A púrpura trombocitopénica imune (PTI) vável nos adolescentes e crianças com doenças
é a causa mais frequente de trombocitopenia autoimunes subjacentes.
adquirida na criança (<100.000/mm3 plaquetas). Pelo facto do risco de hemorragia ativa grave
É causada pela produção de autoanticorpos IgG ser baixo, pode optar-se por um plano de inter-
contra antigénios da membrana das plaquetas e venção expetante com vigilância clínica. Quando
dos megacariócitos, envolvendo também outros está indicada terapêutica específica esta baseia-se
CAPÍTULO 31. PÚRPURAS/VASCULITES 143

na perfusão de imunoglobulina endovenosa (0,8 podendo também ocorrer febre, envolvimento


a 1 gr/kg) ou um curso curto de corticoterapia. renal e gastrointestinal. Geralmente é causada
A trombocitopenia não imune ocorre, por uma deficiência adquirida ou hereditária (mais
por exemplo, no síndrome hemolítico urémico, raramente) numa enzima ADAMTS13 que é res-
na púrpura trombocitopénica trombótica ou na ponsável pela clivagem do fator de Von Willebrand
coagulopatia intravascular disseminada. (FvW) em subunidades. A falta desta ação en-
O síndrome hemolítico urémico (SHU) é a zimática resulta na persistência no plasma dos
causa mais frequente de insuficiência renal aguda multímeros de FvW de muito alto peso molecular,
entre um e os dez anos de idade. Carateriza-se de alta afinidade plaquetária, que condiciona a
pela tríade de anemia hemolítica microangiopá- formação de microtrombos plaquetares na mi-
tica (não imune), trombocitopenia e lesão renal crovascularização.
aguda. A apresentação é variável, mas nos ca- Na coagulopatia intravascular dissemi-
sos típicos manifesta-se após um pródromo de nada (CID) ocorre uma ativação generalizada das
alguns dias até duas semanas de gastroenterite vias de coagulação dentro dos pequenos vasos,
(menos frequente após uma infeção respiratória com formação de fibrina e depleção dos fatores
superior) associada a uma infeção pela Escherichia de coagulação e plaquetas. Esta situação ocorre
coli O157:H7, produtora de verotoxina. Surge le- por exemplo em quadros séticos bacterianos, par-
são endotelial e deposição de fibrina na micro- ticularmente na meningoccocémia, apresentando-
vascularização renal com destruição de glóbulos -se a criança com febre, aspeto muito doente,
vermelhos e plaquetas, e formação de trombos petéquias e outras lesões purpúricas extensas e
plaquetares. Os sintomas habituais são gastroin- rapidamente progressivas.
testinais (náuseas ou vómitos, dor abdominal, A trombocitopenia na criança pode ser
diarreia com ou sem sangue), febre baixa ou au- secundária a uma miríade de entidades incluin-
sente, palidez cutânea, edemas, oligúria ou anúria do infeções, fármacos e doenças hematológicas
e hipertensão arterial. Cerca de 90% dos doentes primárias.
desenvolve trombocitopenia mas raramente se As infeções podem causar trombocitopenia
manifesta com púrpura. O sistema nervoso cen- por supressão direta da medula óssea ou por
tral pode ser envolvido num terço dos doentes aumento do consumo periférico de plaquetas.
(irritabilidade, convulsões e alteração do estado Entre os vírus mais frequentes estão os do gru-
de consciência). po TORCH (toxoplasmose, outros vírus como o
Na púrpura trombocitopénica trombó- parvovírus B19, rubéola, citomegalovirus, herpes
tica tal como no SHU ocorre uma aglutinação simplex vírus), vírus Epstein Barr e vírus da imu-
plaquetária sistémica, principalmente a nível da nodeficiência humana.
microcirculação, com consequente trombocito- Os fármacos são causa de trombocitopenia
penia, hemólise microangiopática e isquémia oclu- por inibição da produção (por supressão da pro-
siva, sendo o orgão alvo principal o cérebro com dução de megacariócitos) ou destruição aumenta-
preponderância da sintomatologia neurológica, da (formação de anticorpos contra as plaquetas).
144 PAULA ESTANQUEIRO

No primeiro mecanismo estão enquadrados a car- presente ao nascimento e pode estar associada
bamazepina, o cloranfenicol e o ácido valpróico. com alterações esqueléticas.
Entre os fármacos que podem induzir mecanismos
imunes estão o trimetoprim-sulfametoxazol e a 31.2.2 Púrpura por alteração da função
fenitoína. das plaquetas
As doenças neoplásicas na criança que As alterações da função plaquetária podem
causam infiltração da medula óssea podem apre- ser hereditárias ou adquiridas (fármacos).
sentar-se com púrpura por trombocitopenia como Das causas hereditárias constam: as deficiên-
a leucemia, histiocitose e neuroblastoma. cias congénitas em glicoproteínas da membrana
Nos adolescentes com trombocitopenia é plaquetar como a trombastenia de Glanzmann (gp
mais provável que se trate de uma doença crónica, IIbIIIa) e a doença de Bernard-Soulier (gp Ib) que
devendo ser consideradas as doenças autoimu- causam defeitos na agregação plaquetar; e outras
nes associadas com trombocitopenia como o LES, doenças como o síndrome de Chediak-Higashi
a imunodeficiência comum variável e síndromes em que ocorre uma deficiência nos grânulos das
linfoproliferativos autoimunes, particularmente plaquetas e uma libertação deficitária de adeno-
se as citopenias são múltiplas. sina difosfato (ADP) e serotonina, essenciais para
Há doenças hereditárias raras (anemia de a agregação e formação do tampão plaquetário.
Fanconi, síndrome trombocitopenia e ausência de Nas causas adquiridas, fármacos como a
rádio (TAR), síndrome de Wiskott-Aldrich, trombo- aspirina inibem a síntese de prostaglandinas e
citopenia amegacariocítica congénita, síndrome de previnem a libertação de ADP e tromboxano A2
Bernard-Soulier, doença von Willebrand tipo IIB, essenciais à agregação plaquetar; assim como o
doenças associadas ao MYH-9) que também estão ibuprofeno e outros anti-inflamatórios não este-
associados à diminuição da produção de plaquetas. roides (AINEs), a furosemida, a nitrofurantoina, a
A anemia de Fanconi carateriza-se por heparina e os bloqueadores simpáticos também
pancitopenia, hiperpigmentação e manchas café interferem na função plaquetária.
com leite, baixa estatura, anomalias esqueléticas
e várias anomalias sistémicas. As alterações he- 31.2.3 Púrpura por deficiência ou alteração
matológicas geralmente surgem após os dois a funcional dos fatores de coagulação
três anos de idade. A púrpura pode ser a primeira manifestação
O síndrome de Wiskott-Aldrich é uma clínica da deficiência congénita dos fatores de coa-
doença recessiva ligada ao cromossoma X que gulação (hemofilia A (VIII), hemofilia B (IX) e doença
apresenta eczema, microtrombocitopenia e infe- de von Willebrand), ou adquirida (sépsis, doença
ções recorrentes secundárias a imunodeficiência. hepática, deficiência de vitamina K e urémia).
A sobrevida curta das plaquetas neste síndrome As hemofilias são doenças hemorrágicas
resulta de uma anomalia intrínseca das plaquetas. de hereditariedade ligada ao cromossoma X que
A trombocitopenia amegacariocítica con- afetam o género masculino. A gravidade destas
génita carateriza-se por trombocitopenia grave doenças depende da quantidade de fator circulante
CAPÍTULO 31. PÚRPURAS/VASCULITES 145

funcional (doença grave <1%, moderada 1 a 5%, de proteína C e S em quadros de infeções ví-
ligeira >5%). A hemofilia A é a mais frequente e ricas ou bacterianas graves. As proteínas C e S
estima-se que ocorra num em cada 5000 nados são glicoproteínas dependentes da vitamina K com
vivos do sexo masculino. As hemofilias geralmente propriedades antitrombóticas e profibrinolíticas.
apresentam-se no RN com cefalohematoma grave, As manifestações clínicas são equimoses
hemorragia gastrointestinal ou umbilical, sendo extensas bem delimitadas com halo inflamató-
raras as manifestações purpúricas. Na hemofilia rio, localizadas predominantemente em zonas
grave as hemorragias espontâneas são frequentes, de pressão, que evoluem para bolhas e escaras
enquanto nas formas moderadas e ligeiras as perdas necróticas, e rapidamente progridem para uma
hemáticas surgem geralmente na sequência de trau- CID com trombose, complicações neurológicas e
matismos ou cirurgias. A hemartrose (hemorragia falência multiorgão.
intra-articular) dos joelhos, cotovelos e tornozelos
é a manifestação mais frequente, apesar da he- 31.2.4 Púrpura por fatores vasculares
morragia poder acontecer em qualquer localização.
A doença hemorrágica congénita mais fre- Vasculites
quente é a de von Willebrand (~1% da popula- A vasculite é definida pela presença de in-
ção). Resulta de alterações quantitativas ou qualita- flamação em vasos sanguíneos, resultante de
tivas do fator de von Willebrand. É de transmissão um processo primário ou secundário a doença
hereditária autossómica dominante, com penetrân­ subjacente. O fenótipo clínico e a gravidade da
cia variável. Deve suspeitar-se desta anomalia pe- vasculite são muito variáveis e dependentes do
rante uma situação clínica de equimoses fáceis, tipo e localização dos vasos envolvidos e da ex-
hemorragia das mucosas (epistaxis, menorragia) e tensão da inflamação. A púrpura palpável resulta
hemorragia prolongada após extração dentária. Ao da inflamação dos pequenos vasos cutâneos (vas-
contrário da hemofilia, as hemorragias articulares culite leucocitoclástica), que origina extravasa-
ou musculares são muito raras. mento de eritrócitos para a pele. Nas entidades
A púrpura fulminans é um síndrome raro que envolvem pequenos e médios vasos estão
de trombose intravascular e enfarte hemorrágico presentes nódulos subcutâneos, púrpura e livedo
da pele rapidamente progressiva e acompanhada reticularis fixo; nas vasculites de grandes vasos
por CID. Apresenta-se habitualmente no período ocorre ulceração e necrose.
neonatal e está associada a défice de proteína C. A maioria das vasculites cutâneas da criança
Os indivíduos heterozigóticos podem ser assinto- é primária sendo a mais frequente a púrpura de
máticos ou apresentar trombose venosa na vida Henoch-Schönlein. As vasculites podem ser se-
adulta, enquanto os défices homozigóticos têm cundárias a infeção, doença maligna, exposição
níveis muito baixos de proteína C e risco elevado a fármacos e doenças reumáticas como o LES e
de púrpura fulminans. a dermatomiosite juvenil. Só ocasionalmente as
Os lactentes e crianças maiores podem ter vasculites causam púrpura palpável, devendo
um quadro semelhante por défice adquirido no entanto considerar-se a possibilidade de LES,
146 PAULA ESTANQUEIRO

dermatomiosite, granulomatose com poliangeí- clínica em 50% dos doentes. O exantema é de-
te (anteriormente designada Granulomatose de pendente da força da gravidade e da pressão
Wegener), na presença de lesões que sugiram e por isso predomina nos membros inferiores e
uma vasculite cutânea secundária. A poliarterite nádegas, com distribuição simétrica, mas pode
nodosa, a arterite de Takayasu ou a doença de ser mais disperso. As lesões podem ser predomi-
Kawasaki geralmente não se apresentam com le- nantemente purpúricas, petequiais ou com padrão
sões purpúricas. misto, e podem surgir por surtos. Nas crianças
O diagnóstico das vasculites é desafiante e pequenas é frequente o edema das extremidades
implica um alto índice de suspeição pois os achados e nas mais velhas o edema escrotal equimótico.
clínicos iniciais podem ser inespecíficos como febre, Cerca de 70% tem artralgias ou artrite (si-
mal-estar, emagrecimento, mialgias ou artralgias. métrica), afetando uma ou mais articulações,
À medida que o quadro progride as lesões dos sobretudo os tornozelos e os joelhos. As manifes-
vasos que são os achados mais caraterísticos (exan- tações gastrointestinais estão presentes em 60%
tema purpúrico ou outro), ou lesão de órgãos es- dos casos, com dor periumbilical, podendo ocorrer
pecíficos (glomerulonefrite, por exemplo), ou a nalguns casos melenas e invaginação intestinal.
deteção de certos anticorpos como os anticorpos O envolvimento renal (glomerulonefrite) pode
anticitoplasma de neutrófilos (ANCA) aumenta a ocorrer em até 40% dos casos com hematúria
suspeita de um processo inflamatório vascular. microscópica isolada ou associada a proteinúria e
O diagnóstico de vasculite deve ser consi- raramente é a expressão inicial da doença. Outras
derado em crianças e adolescentes com sintomas manifestações raras podem ser neurológicas (cefa-
sistémicos persistentes e evidência de disfunção leias, convulsões, hemorragias), pulmonares (he-
multiorgão. morragia pulmonar ou pleural), orquite e uretrite.
A púrpura de Henoch-Schönlein (PHS) é O desenvolvimento de lesão renal ocorre
a vasculite mais comum em pediatria com uma habitualmente nas primeiras quatro semanas após
incidência anual estimada de 10 a 20 por 100.000, o início da PHS. Das crianças que persistem com
habitualmente autolimitada e de bom prognósti- alteração do sedimento urinário para além do
co. É uma vasculite de pequenos vasos, mediada primeiro mês de doença, cerca de 30% tem re-
por IgA, com ativação da via alternativa do com- solução completa até ao terceiro mês. O risco
plemento, que afeta mais frequentemente a pele, de doença renal crónica está relacionado com a
as articulações, o trato gastrointestinal e os rins. apresentação da clínica inicial, sendo inferior a
Cerca de 75% dos casos ocorre entre os três e 2% naqueles que manifestaram apenas hema-
os dez anos, e é duas vezes mais frequente no túria e/ou proteinúria mínima e até 10 a 20%
género masculino. Segue um padrão sazonal com nos casos em que surgiu síndrome nefrítico e
um pico no inverno e existe uma infeção prévia do nefrótico. Os fatores de risco para nefrite incluem:
trato respiratório superior em 30 a 50% dos casos. idade da criança superior a sete anos, púrpura
A púrpura não trombocitopénica (presente com duração superior a um mês e presença de
em 100% dos casos) é a primeira manifestação hemorragia intestinal.
CAPÍTULO 31. PÚRPURAS/VASCULITES 147

O diagnóstico de PHS é clínico, não existindo A doença de Kawasaki (DK) é uma doença
nenhum teste laboratorial específico. Na apresen- inflamatória autolimitada associada a vasculite que
tação típica não é necessário efetuar qualquer afeta predominantemente as artérias de médio
biópsia. A biópsia renal pode ter utilidade prog- calibre, particularmente as artérias coronárias. Não
nóstica, estando indicada apenas nos casos que se se descreve aqui este tema por ser abordado nas
acompanham de síndrome nefrótico ou nefrítico lições 17 – exantemas e 41 – doenças cardíacas
com deterioração rápida da função glomerular. mais comuns.
A biópsia cutânea revela uma vasculite leucoci-
toclástica com deposição de IgA nas paredes dos 31.2.5 Púrpura por outras causas
vasos sanguíneos. Além das vasculites, outras causas adquiridas
O curso da doença geralmente é autolimi- de púrpura vasculogénica incluem as infeções
tado a duas a quatro semanas, mas um terço (por lesão direta dos vasos sanguíneos como na
dos casos pode apresentar duas ou três recidivas meningococcémia e riquetesioses) e causas mecâ-
consecutivas, e em 10% estima-se que surjam nicas (por aumento da pressão venosa de retorno,
recidivas tardias. O tratamento habitualmente é como ocorre nas petéquias de esforço na face,
sintomático. Os corticosteroides são utilizados na após um acesso intenso de tosse ou vómito).
nefrite grave, mas o seu uso inicial não a previne. Entre as causas congénitas inclui-se por
Nos lactentes e crianças até aos dois anos exemplo a fragilidade vascular, por alterações no
com bom estado geral e lesões purpúricas de colagénio, no síndrome de Ehlers-Danlos (hipere-
aparecimento súbito, associados a edema das lasticidade cutânea, hipermobilidade articular e
extremidades envolvendo particularmente o dorso fragilidade cutânea e dos vasos) e a telangiectasia
das mãos e pés, deve considerar-se o diagnóstico hemorrágica hereditária.
de edema agudo hemorrágico da infância
(síndrome de Finkelstein). Trata-se de uma vascu- 31.2.6 Avaliação da criança com púrpura
lite leucocitoclástica autolimitada dos pequenos Na avaliação de um doente com púrpura é ne-
vasos da derme, geralmente pós-infeciosa, sem cessário realizar uma história clínica completa e um
envolvimento visceral e raramente com depósi- exame físico sistematizado e cuidadoso. Na história
tos de IgA. A distribuição das lesões purpúricas clínica deve inquirir-se sobre petéquias ou equimoses
extensas, com palidez central, afeta a face e as fáceis, e outras manifestações hemorrágicas como
extremidades. A duração é autolimitada a uma a gengivorragias, epistaxis, melenas e hematúria.
três semanas e o tratamento é sintomático. A presença de febre sugere em primeiro lugar uma
Nos casos “atípicos” de PHS deve-se suspeitar etiologia infeciosa (a excluir infeção bacteriana), mas
de outras formas de vasculites, cuja terapêutica se for prolongada e associada a emagrecimento,
e prognóstico são totalmente diferentes, como a palidez e adenopatias considerar sempre a hipóte-
poliarterite nodosa e as vasculites ANCA positivo se de doença neoplásica. Avaliar outros sintomas
em que o exantema pode evocar a PHS. Pela sua ra- acompanhantes como exantemas, dor abdominal,
ridade na criança não serão abordadas neste texto. diarreia e artralgias. É importante averiguar infeções
148 PAULA ESTANQUEIRO

recentes, imunizações e terapêuticas em curso. A ou pequenas pode indiciar uma trombocitopenia


história familiar é também importante no domínio hereditária. Deve ser excluída a pseudotrombo-
das causas hereditárias de púrpura ou de doenças citopenia por aglutinação plaquetar dependente
maternas com repercussão no RN. do ácido etilenodiamino tetra-acético (EDTA) ou
No exame físico é de particular importân- por má colheita venosa.
cia a observação da pele (petéquias, equimoses, A avaliação da medula óssea na PTI aguda
palidez, icterícia), mucosa oral e nasal, olhos (se não está recomendada, exceto se houver ano-
hemorragia sugere envolvimento do SNC), abdó- malias no hemograma e/ou esfregaço de sangue
men (esplenomegália, hepatomegália), gânglios periférico além da trombocitopenia, a presença
linfáticos (adenopatias), edemas, exame neuro- de sintomas sistémicos sugestivos de doença lin-
lógico e musculoesquelético. foproliferativa ou esplenomegália inexplicada.
As lesões de equimose exclusivamente loca-
lizadas em locais de fácil traumatismo (nas per- Leitura complementar
nas e braços – mais zonas expostas) são achados Raffini L, Fleisher GR, Wiley JF. Evaluation of purpura in
frequentes e não sugerem nenhuma doença da children. UpToDate. 2016. Disponi ́vel em: < http://www.
coagulação. Pelo contrário, numa criança com uptodate.com/online>. Acesso em: 02/04/2016.
equimoses e petéquias dispersas (sobretudo se são Eleftheriou D, Batu ED, Ozen S, Brogan PA. Vasculitis in
aparentes várias fases de evolução), ou em locais children. Nephrol Dial Transplant. 2015 Apr;30 Suppl
do corpo geralmente não sujeitos a trauma, sem 1:i94-103.
trombocitopenia e sem alterações da coagulação, Leung AK, Chan KW. Evaluating the child with purpura. Am
deve considerar-se a possibilidade de maus tratos. Fam Physician. 2001 Aug 1;64(3):419-28.
O estudo laboratorial deve incluir um hemo- Eleftheriou D, Levin M, Shingadia D, Tulloh R, Klein NJ, Brogan
grama e estudo do esfregaço de sangue periféri- PA. Management of Kawasaki disease. Arch Dis Child.
co. Perante quadro infecioso solicitar culturas de 2014 Jan;99(1):74-83.
produtos biológicos e proteína C reativa. Se estiver McCarthy HJ1, Tizard EJ. Clinical practice: Diagnosis and
associada sintomatologia renal ou hipertensão management of Henoch-Schönlein purpura. Eur J Pediatr.
arterial proceder a estudo da função glomerular 2010 Jun;169(6):643-50.
e sumária de urina, e provas da função hepática Labarque V, Van Geet C. Clinical practice: immune thrombocy-
se houver sinais ou sintomas sugestivos de he- topenia in paediatrics. Eur J Pediatr. 2014 Feb;173(2):163-72.
patopatia. Perante uma suspeita de alteração da Cabral D, MBBS, Morishita K, Sundel R, TePas E. Vasculitis in chil-
coagulação solicitar provas de coagulação (tem- dren: Evaluation. UpToDate. 2016. Disponi v́ el em: <http://
po de protrombina e tempo de tromboplastina www.uptodate.com/online>. Acesso em: 02/04/2016
parcial ativada). Acharya SS. Rare bleeding disorders in children: identifica-
A avaliação do esfregaço permite excluir es- tion and primary care management. Pediatrics. 2013
quizócitos (presentes nos doentes com síndrome Nov;132(5):882-92.
hemolítico urémico e na púrpura trombocitopéni-
ca trombótica). A presença de plaquetas gigantes
Capítulo 32.
Bacteriémia e sépsis

32
Andrea Dias
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_32
CAPÍTULO 32. BACTERIÉMIA E SÉPSIS 151

32.1 CONTEXTO 32.2 DESCRIÇÃO DO TEMA

A febre é um sinal comum entre as crianças 32.2.1 Definições


que procuram os cuidados de saúde e por vezes
o único sinal de infeção bacteriana grave. Define-se bacteriémia como a presen-
A maioria das crianças com febre apresen- ça de bactérias viáveis na corrente sanguínea.
ta uma doença vírica auto-limitada ou menos Quando uma criança se apresenta com doença
frequentemente uma focalização bacteriana. aguda febril, bom estado geral e não se identi-
Quando os dados da história e do exame físico fica, através da história e do exame objectivo,
não permitem identificar um foco numa criança um foco de infeção, considera-se bacteriémia
com doença aguda febril, considera-se uma si- oculta como uma hipótese de diagnóstico. Se a
tuação de febre sem foco. criança apresenta sinais sistémicos de resposta à
Uma pequena percentagem destas crianças infeção terá uma sépsis.
vai apresentar uma bacteriémia oculta ou sépsis, A resposta do hospedeiro aos agentes in-
sendo fundamental estabelecer um diagnóstico feciosos é desencadeada quando as células do
correto e atempado, para adequada intervenção sistema imune inato reconhecem e se ligam aos
terapêutica. microrganismos. Do balanço da atividade dos
Anualmente são registados no Hospital mediadores pró-inflamatórios que conduzem à
Pediátrico cerca de 60.000 a 60.700 episódios lesão celular (Síndrome de Resposta Inflamatória
de urgência, dos quais 2.000 são situações co- Sistémia = Systemic Inflammatory Response
dificadas como síndrome febril sem foco (3%), Syndrome - SIRS) e dos anti-inflamatórios que con-
(Fonte: base de dados do Hospital Pediátrico de tribuem para a reparação celular (Compensatory
Coimbra, anos 2012 a 2014). Anti-inflammatory Response Syndrome – CARS),
desenvolve-se um quadro clínico de sépsis, cuja
A febre pode resultar de causas infeciosas e gravidade estará na dependência da suscetibili-
não infeciosas, mas na maioria das crianças que dade genética e estado imunitário do indivíduo,
se apresenta com febre esta tem uma etiologia bem como da agressividade/patogenecidade do
infeciosa. O objetivo da avaliação de uma crian- microrganismo.
ça com febre é identificar focos de infeção que Em pediatria foram publicadas em 2005 as
necessitem de avaliação adicional e tratamento definições de sépsis e SIRS, que resultaram do
específico. A maioria terá uma doença vírica au- International Consensus Conference on Pediatric
tolimitada e mais raramente um foco identificável Sepsis. Estas definições foram estabelecidas com
para a febre, como amigdalite, otite média aguda, o objetivo de identificar os casos de sépsis numa
pneumonia, pielonefrite, meningite ou artrite, de fase precoce, permitindo uma intervenção rápida
entre outras situações possíveis. Numa pequena e atempada que impeça a progressão da dissemi-
percentagem não vai ser possível identificar um nação da infeção e respetiva resposta inflamatória.
foco bacteriano que explique o quadro febril. As principais diferenças relativamente ao adulto
152 ANDREA DIAS

prendem-se com os limites relativos à quantifica- era identificada a Neisseria meningitidis (NM).
ção dos sinais vitais, sendo a hipotensão um sinal A vacinação dos lactentes com vacinas conjugadas
tardio em pediatria, dada a capacidade da criança contra Hib e SP veio alterar de forma dramática
manter o débito cardíaco, através do aumento da a prevalência de doença invasiva por estes mi-
frequência cardíaca, durante períodos de tempo crorganismos, reduzindo para menos de 1% a
prolongados. incidência de bacteriémia oculta em crianças com
Segundo este consenso define-se SIRS pela bom estado geral que se apresentam com febre.
presença de pelo menos dois dos quatro indica-
dores (sendo necessário alteração da temperatura O objectivo da avaliação de uma criança com
ou da contagem de leucócitos): a) temperatura bom estado geral, sem aparente foco de infeção,
central > 38.5ºC ou <36ºC; b) leucocitose ou leu- é identificar uma infeção bacteriana e/ou risco
copenia, ou mais de 10% de leucócitos imaturos; de infeção oculta grave que exija investigação
c) taquicardia (frequência cardíaca superior a dois adicional e terapêutica antibiótica urgente. Deve
desvios padrão do valor médio para a idade, na fazer parte da avaliação por rotina destas crianças
ausência de estímulo ou drogas), ou aumento a realização de uma história clínica completa, in-
inesperado da frequência cardiaca em mais de 30 vestigando a duração da febre e periodicidade, al-
minutos a quatro horas; ou se em lactentes com teração do estado geral ou da atividade, sinais ou
menos de um ano a presença de bradicardia não sintomas acompanhantes como tosse, dificuldade
explicada de outra forma; d) frequência respiratória respiratória, vómitos, dor abdominal ou sintomas
superior a dois desvios padrão do valor médio para urinários. Devemos também questionar acerca
a idade ou necessidade de ventilação mecânica dos antecedentes patológicos, nomeadamente
em situação aguda, não relacionada com doença perceber se existe algum fator predisponente
neuromuscular ou anestesia. para infeção grave (asplenia, imonodeficiência,
Define-se sépsis quando estamos peran- doença crónica); bem como o estado vacinal.
te um quadro de SIRS associado a uma infeção As crianças com menos de seis meses de idade,
suspeita ou confirmada. pelo seu estado imunitário e por terem ainda
vacinação incompleta, terão um risco acrescido
32.2.2 Avaliação de bacteriémia oculta.
O exame físico deve também ser rigoroso.
Nalguns países, antes da imunização por Uma criança com febre poderá apresentar um re-
rotina contra os gérmens Haemophillus influen- lativo bom estado geral ou, pelo contrário, ter um
zae tipo b (Hib) e o Streptococcus pneumoniae “ar doente”, revelando-se prostrada, hipotónica,
(SP), a frequência de bacteriémia oculta era de com sinais de má perfusão periférica (extremida-
5% nas crianças febris dos três aos 36 meses de des frias, tempo de reperfusão capilar superior a
idade com relativo bom estado geral, sendo os dois segundos, marmoreado cutâneo), pálida e/
principais germens isolados o SP em 80%, o Hib ou cianosada. Neste caso, até prova em contrário,
em 20% e numa pequena percentagem de casos a criança tem uma infeção bacteriana e como tal
CAPÍTULO 32. BACTERIÉMIA E SÉPSIS 153

deve ser internada e fazer uma avaliação detalha- de leucóticos tem sensibilidade e especificidade
da: frequência cardíaca, frequência respiratória, reduzidas como indicador de infeção bacteriana
saturação periférica de oxigénio (SpO2), sinais de grave, sobretudo quando outros germens, como o
dificuldade respiratória (SDR), auscultação pulmo- Staphylococcus aureus, se tornam mais frequentes.
nar e cardíaca, avaliação abdominal e musculo- Estudos na era após introdução da vacina anti-
-esquelética, pesquisa de sinais meníngeos e de -pneumocócica sete valente revelaram que uma
alterações cutâneas. Seguidamente devem ser rea- contagem de leucócitos >15.000/μl tem um valor
lizados os exames complementares de diagnóstico preditivo positivo de apenas 1.5 a 3.2% para a pre-
(ECD) adequados, sempre orientados pelos achados sença de bacteriémia oculta. De forma semelhante
do exame objectivo, e iniciar terapêutica empírica um estudo australiano publicado em 2014, revelou
apropriada, caso esteja indicada. Fazem normal- que em crianças abaixo dos cinco anos de idade
mente parte dos ECD: hemograma com leucogra- um limiar de contagem de leucócitos de 15.000/
ma, biomarcadores de fase aguda de inflamação μl falhava na identificação de quase metade de
como a proteína C reactiva (pCr) e a procalcitoni- infeções bacterianas graves (sensibilidade 47% e
na (PCT), hemocultura, sumária de urina tipo II e especificidade de 76%), corroborando a opinião
urocultura (colheita por método assético) e análise de vários autores que consideram a contagem de
citoquímica e cultura de líquido cefalorraquídeo leucócitos insuficiente como método isolado para
(LCR), se suspeita de meningite. A realização de deteção de doença infeciosa grave. No entanto,
radiografia de tórax será decidida caso a caso, valores de leucócitos >20.000/μl apresentam uma
perante a suspeita de infeção respiratória baixa. sensibilidade superior a 90%, tornando muito pro-
A extrema importância de detetar uma infeção vável a presença de uma infeção bacteriana grave.
grave e potencialmente ameaçadora da vida não Os níveis séricos de pCr e de PCT elevam-
deve ser dissociada dos potenciais efeitos adver- -se na presença de infeção bacteriana. Apesar
sos da realização de ECD excessivos e invasivos e da elevação da PCT parecer ser mais precoce,
da instituição de terapêuticas desneces­sárias, que os valores de sensibilidade e especificidade para
levam ao aumento da resistência aos antibióticos. deteção de infeção grave continuam a revelar-se
O julgamento clínico deve sempre guiar a nossa muito variáveis. Uma meta-análise de cinco estu-
decisão na avaliação destas crianças. dos incluindo 1.379 crianças com febre até aos
Não existe um teste de diagnóstico ideal, nem 36 meses concluiu que valores de pCr <20mg/l
uma conjugação deles que permita com 100% de e PCT<0.5ng/ml apresentavam uma sensibilidade
certeza identificar as crianças com febre que apre- >80% e especificidade de 70% para baixo risco
sentam bacteriémia oculta e que portanto estão em de infeção bateriana grave.
risco de desenvolver um quadro sético. Vários estu- Um estudo levado a cabo com 72 crianças
dos identificaram um risco acrescido de bacteriémia com febre entre um e os 36 meses revelou que a
oculta por SP entre as crianças não imunizadas com acuidade diagnóstica da contagem leucocitária, da
leucocitose ≥15.000/ul e contagem de neutrófilos pCr e da PCT são semelhantes à realização de um
≥10.000/ul. No entanto, isoladamente, a contagem score clínico na avaliação da criança com febre.
154 ANDREA DIAS

As culturas são indispensáveis no estudo germens isolados e respetivo resultado do TSA. Se


destas crianças. Na era pós vacinal, a maioria das forem isolados SP, NM e germens gram negativos
hemoculturas apresenta resultados falsos positi- deve cumprir-se antibioterapia com ceftriaxone
vos refletindo o crescimento de contaminantes. respetivamente de 10, 7 e 10 a 14 dias .
Continuam contudo, juntamente com o teste de
sensibilidade aos antibiótios (TSA), a ser um mé- 32.2.3 Meningococcémia
todo fundamental para guiar a escolha antibiótica A NM é um diplococo gram negativo, co-
e o seu ajuste/descalação, permitindo monitorizar mensal, que habita a nasofaringe. Na maioria das
a resistência aos antimicrobianos. Na suspeita vezes, a colonização por NM é assintomática, no
de bacteriémia, a hemocultura deve ser colhida entanto, ocasionalmente, estes microrganismos
antes da administração do antibiótico, embora invadem a corrente sanguínea e causam doença
esta conduta não deva atrasar o seu início numa invasiva. Entre os adultos a prevalência de por-
criança gravemente doente. A criança com sus- tadores assintomáticos na orofaringe é de 10%
peita de bacteriémia e que aparenta bom estado e a transmissão faz-se por via respiratória. São
geral poderá, mediante julgamento clínico, iniciar conhecidos 13 serogrupos, capsulados e não
terapêutica antibiótica que, de acordo com a evo- capsulados, estando a cápsula polissacarídica
lução clínica e resultado bacteriológico do sangue associada a patogenicidade. Os serogrupos A,
negativo, virá a suspender-se em 48 a 72 horas. B, C, Y, W-135 e mais recentemente o X, são os
Um estudo recente revelou que na maioria que mais frequentemente causam doença, so-
das doenças febris nos lactentes até aos 90 dias bretudo em crianças com menos de cinco anos.
de vida, os patogéneos são identificados até às Embora se reporte nalguns países um pico de
24 horas após a colheita da hemocultura, o que incidência na adolescência, em Portugal tal não
poderá suportar uma revisão da conduta actual se tem verificado.
perante estas crianças, evitando prolongar a te- Com a introdução de forma generalizada
rapêutica antibiótica desnecessariamente. no Plano Nacional de Vacinação em 2006 da va-
Se porventura a criança apresentar sinais cina contra a NM do serogrupo C, assistiu-se ao
de sépsis e mau estado geral, deve ser iniciada decréscimo da doença meningocócica invasiva.
prontamente terapêutica antibiótica, sobretudo No entanto, em Portugal, a NM, sobretudo o
na presença de exantema macular ou petequial serogrupo B (com uma vacina disponível desde
que surja nas primeiras horas de febre, sugesti- 2014), continua a ser causa importante de mor-
vo de meningococémia. Deve ser administrada bilidade e mortalidade.
uma cefalosporina de 3ª geração (ceftriaxone ou A doença meningocócica apresenta-se a
cefotaxime), à qual se deve associar um antibióti- maioria das vezes como sepsis (25%), meningite
co dirigido a Listeria monocytogenes (ampicilina) (15%) ou combinação das duas (60%). Consititui
abaixo dos três meses de idade. a principal causa de morte por doenças infecio-
Na presença de hemocultura positiva, o ajus- sas na criança pequena e causa de importante
te da terapêutica antibiótica deve ser guiado pelo morbilidade, estimando-se que 10 a 15% dos
CAPÍTULO 32. BACTERIÉMIA E SÉPSIS 155

sobreviventes apresentem sequelas a longo prazo, causas bacterianas de purpura fulminans como
nomeadamente perturbações do neurodesenvol- o SP, Staphyilococcus aureus e outros gérmens
vimento, surdez e necessidade de amputações gram negativos. Na presença de choque deve
dos membros, por lesão vascular. ser feita uma reanimação agressiva, com fluidos
Os mecanismos responsáveis pela passagem endovenosos, e proceder como na abordagem
de colonização a doença invasiva não são to- de uma criança gravemente doente.
talmente conhecidos, no entanto pensa-se que Embora seja fundamental isolar o microrga-
resulte de uma combinação entre a virulência do nismo para uma diagnóstico preciso e definitivo
microrganismo, fatores ambientais e suscetibilida- e instituição das medidas de saúde pública, as
de do indivíduo, nomeadamente asplenia e défice colheitas não devem atrasar o início da terapêutica
dos fatores terminais da cascata do complemento. antibiótica. A nível laboratorial ocorre normalmente
A clínica de apresentação pode progredir de uma elevação dos parâmetros de inflamação de
forma fulminante levando a falência multiorgânica fase aguda, no entanto não devemos esquecer
e morte em poucas horas. Daí ser fundamental que uma contagem leucocitária normal/baixa pode
um elevado índice de suspeição para iniciar o estar presente e ser um factor de mau prognóstico.
tratamento em tempo oportuno. Geralmente, as Caso não seja possível a realização de culturas
primeiras quatro a seis horas de doença podem prévia à administração de antibiótico, podemos
mimetizar sintomas de envolvimento do aparelho recorrer posteriormente às técnicas de biologia
respiratório superior como constipação, faringite, molecular de reação em cadeia da polimerase
associando-se febre, anorexia, náuseas, vómitos (PCR), com elevada sensibilidade e especificidade.
e irritabilidade abaixo dos cinco anos e cefaleias A punção lombar só deve ser realizada, na
nas crianças mais velhas. Desenvolve-se geral- fase inicial, caso a criança não apresente sinais ou
mente nas primeiras horas de febre um exantema sintomas que a contra-indiquem, nomeadamente
maculopapular disperso e muitas crianças refe- purpura, discrasia sanguínea, choque, insuficiência
rem uma dor inespecífica na perna “leg pain”. respiratória, hipertensão intracraniana, ou sinais
Nas situações de meningite pode estar presente neurológicos focais. Devem completar-se sete dias
exantema num quarto dos casos. O exantema de tratamento antibiótico.
clássico, purpúrico, está presente em 40 a 80% A replicação da NM na corrente sanguínea
dos casos de sépsis meningocócica. Mesmo que leva a uma grande libertação de endotoxinas, com
aparentemente possa parecer uma doença vírica, ativação do sistema imunitário e lesão do endo-
estas crianças devem ser mantidas sob vigilância, télio microvascular, que origina vasoconstrição/
uma vez que os sinais de sépsis, choque sético ou dilatação, coagulação intravascular disseminada
meningite se podem desenvolver rapidamente. e depressão miocárdica. São preditores de mau
Perante suspeita, devem obter-se culturas prognóstico: temperatura central baixa, choque
e ser iniciado antibiótico, geralmente ceftria- na apresentação, contagem leucocitária <5.000/
xone ou cefotaxime, em dose meníngea, uma μl, trombocitopenia <100. 000/μl e purpura ful-
vez que não se podem excluir ab initio outras minans.
156 ANDREA DIAS

Dias depois do início da doença (4 a 12), O diagnóstico inicial de sépsis é sempre clí-
uma inflamação dos tecidos secundária à depo- nico, dada a sua potencial gravidade e necessi-
sição de complexos antigénio-anticorpo pode dade de iniciar terapêutica atempada. Os sinais e
complicar 6 a 15% dos casos de doença me- sintomas são inespecíficos e muitas vezes o início
ningocócica. Estas reações de hipersensibilidade é insidioso, tornando-se imperativo um elevado
tipo III manifestam-se como artrite, vasculite, irite, índice de suspeição. Os sinais e sintomas mais
epiesclerite, pleurite e pericardite, ressurgindo frequentes são: irregularidades da temperatura
concomitantemente febre e elevação dos bio- corporal, alteração do estado geral e da perfusão
marcadores de inflamação. cutânea, dificuldades alimentares, instabilidade
cardiorespiratória, convulsões e desequilíbrio gli-
32.2.4 Bacterémia e sépsis cémico. Por vezes, é possível identificar um foco
no recém-nascido (RN) para a infeção, nomeadamente celulite, abcesso,
onfalite, meningite ou osteomielite.
No RN, a sépsis é causa de elevada taxa A sépsis neonatal pode dividir-se em dois
de morte e incapacidade, mesmo em cerca de síndromes distintos relativamente à idade de apre-
39% daqueles que são atempadamente tratados sentação: precoce e tardia. A de início precoce
com antibiótico, não se verificando redução ocorre nos primeiros cinco a sete dias de vida e
da mortalidade nas últimas décadas, apesar é normalmente uma doença sistémica fulminan-
do uso de antibióticos de largo espectro e da te, que evolui rapidamente para choque sético e
melhoria dos cuidados de saúde. A frequência morte. A transmissão do gérmen é feita intraparto
varia inversamente com a idade gestacional, através do trato genital da mãe. A sépsis de início
podendo atingir 60% dos RN prematuros. Os tardio ocorre a partir do quinto dia de vida. Tem
consensos para definição de sépsis pediátrica geralmente um início mais insidioso e não se rela-
estabelecidos em 2005 excluem os RN pré-ter- ciona com complicações obstétricas. Normalmente,
mo, não existindo definições clinicas claras para associada à sépsis, ocorre meningite. As bactérias
esta faixa etária. As definições usadas para os responsáveis são as adquiridas do tracto genital
adultos e para as crianças não podem ser ex- materno assim como germens adquiridos através
trapoladas para o RN. No adulto e mesmo na do contacto humano e com material contaminado,
criança mais velha é dada muita relevância à sendo a transmissão feita de forma horizontal.
presença de hemoculturas positivas. No entanto, Os principais fatores de risco apontados para a
isto só será válido quando são colhidas várias ocorrência de sépsis neonatal são: prematuridade
amostras e com volume sanguíneo adequado, o e baixo peso ao nascimento, rotura prolongada de
que se torna difícil no RN. Por outro lado, nesta membranas, febre intraparto ou infeção materna.
faixa etária o número de colónias bacterianas Dada a inespecificidade dos sinais e sinto-
é muitas vezes baixo e verifica-se uma maior mas é importante fazer o diagnóstico diferen-
suscetibilidade à infeção pela imaturidade do cial com outras patologias do RN: taquipneia
sistema imunitário. transitória, aspiração meconial, pneumonia,
CAPÍTULO 32. BACTERIÉMIA E SÉPSIS 157

“stroke”, síndrome de privação, doença meta- gestação) e a profilaxia antibiótica intraparto


bólica e enterocolite necrozante. das mulheres colonizadas, tem-se assistido a
Embora o hemograma completo seja co- uma alteração dos germens responsáveis pela
mumente utilizado para avaliação de sépsis no sépsis de início precoce. No entanto, muitos
RN, os valores podem sofrer múltiplas altera- centros continuam a reportar o SGB como prin-
ções secundárias a factores maternos como cipal responsável pela sépsis de início precoce,
hipertensão e mesmo do próprio RN, como a seguido dos germens gram negativos, em espe-
idade gestacional e as horas de vida. Por ou- cial a Escherichia coli. Outros germens incluem:
tro lado, a imaturidade fisiológica torna difícil Lysteria monocytogenes, Staphylococcus aureus
valorizar a temperatura para a definição de e epidermidis, Enterococci, germens anaeró-
sépsis. A taxa de hemoculturas falsas-positivas bios, Haemophilus influenzae e Streptococcus
é inversamente proporcional à idade do bebé pneumoniae.
e atinge 17% em crianças com menos de 12 Os germens responsáveis pela sépsis de
semanas de vida. Apesar de uma hemocultura início tardio tendem a variar consoante o local,
positiva ser considerada “gold standard” para o sendo os mais prevalentes os Staphylococcus
diagnóstico de infeção, a sépsis clínica com cul- coagulase negativos, especialmente epidermi-
turas negativas é considerada uma entidade real dis, seguido de gram negativos (Pseudomonas,
em todos os grupos etários e principalmente Klebsiella, Serratia e Proteus), Staphylococcus au-
no período neonatal. Quando a hemocultura e reus, SGB e fungos. O uso de profilaxia intraparto
outras culturas de produtos biológicos de locais não alterou a epidemiologia da sépsis de início
estéreis são negativas, mas a criança manifesta tardio. Associadamente, o SGB e a Escherichia
sinais clínicos de infeção, deve considerar-se coli são responsáveis por 70% das sépsis no
o diagnóstico de sépsis clínica e atuar-se em período neonatal.
conformidade. A falta de critérios clínicos e laboratoriais
O uso de profilaxia adequada como a admi- específicos e sensíveis leva muitas vezes ao
nistração de ampicilina intraparto num período uso exagerado de antibióticos. O tratamen-
superior a quatro horas antes do nascimento das to na maioria das vezes é iniciado antes da
mulheres colonizadas com Streptococcus do grupo identificação do agente causal. A escolha da
B (SGB), reduz eficazmente a incidência de sépsis antibioterapia empírica está dependente da
de início precoce causada por este agente. Os idade do RN, dos gérmens mais provavelmente
factores de risco para infeção neonatal precoce implicados, do padrão de suscetibilidades do
por SGB são: parto pré-termo, rotura de membra- local de prescrição e da presença ou não de
nas superior a 18 horas, febre intraparto, infeção um foco de infeção. Está geralmente indicado
urinária durante a gravidez por SGB e infeção o uso de ampicilina associado a um amino-
neonatal prévia por SGB. glicosídeo ou uma cefalosporina de terceira
Com a generalização do rastreio do SGB geração, como o cefotaxime. Caso se prove
no final da gravidez (35 a 37 semanas de a existência de meningite ou esta não tenha
158 ANDREA DIAS

sido excluída, a ampicilina deve ser usada em 32.3 CONLUSÃO


dose meníngea. Quando se identifica o agente
etiológico, o espetro do antibiótico deve ser A bacteriémia refere-se à presença de bac-
estreitado, para evitar resistências microbianas térias viáveis na corrente sanguínea. Quando uma
e risco acrescido de toxicidade. O SGB é uni- criança se apresenta com doença aguda com febre
formemente suscetível à ampicilina. Quando e relativo bom estado geral e não se identifica,
se isola Escherichia coli resistente à ampicilina através da história e do exame objectivo um foco
deve continuar-se a terapêutica com genta- de infeção, poderá ter uma bacteriémia oculta. Na
micina ou cefotaxime, durante 14 dias se foi presença de sinais sistémicos de resposta à infeção
excluída meningite, caso contrário pode ne- estamos perante uma sépsis. A sua gravidade es-
cessitar de um curso mais prolongado. Se o tará na dependência da suscetibilidade genética
germen for um produtor de β-lactamases de e do estado imunitário do indivíduo assim como
espetro expandido está indicado o uso de me- da agressividade do microrganismo envolvido.
ropenem. Nas situações de sépsis nosocomial Com a introdução de novas vacinas para os
é necessária uma cobertura especifica para germens potencialmente envolvidos na infeção
Staphylococcus aureus usando-se a vancomi- grave assistimos a uma alteração marcada da pre-
cina associada a um aminoglicosídeo, como valência de doença invasiva bacteriana, reduzindo
a gentamicina ou a amicacina. A duração da a incidência de bacteriémia oculta em crianças
terapêutica está dependente do resultado das com bom estado geral. No entanto, devido à
culturas, do curso clínico e do germen em causa potencial gravidade, é fundamental manter um
e em geral preconiza-se um período de 10 a elevado índice de suspeição, sendo o diagnóstico
14 dias. Se as culturas forem negativas e o RN essencialmente clínico.
estiver clinicamente bem, pode suspender-se Embora seja fundamental isolar o microrga-
a antibioterapia após 48 horas. Se as culturas nismo para uma diagnóstico preciso e definitivo
forem negativas mas o RN continuar a apre- e institução das medidas de saúde pública, as
sentar sinais clínicos compatíveis com infeção colheitas não devem atrasar o início da terapêutica
deve cumprir-se terapêutica antibiótica pelo antibiótica nas situações de potencial gravidade.
menos durante dez dias. Logo que seja isolado o germen, o espetro
Quando o diagnóstico é efetuado de forma antibiótico deve ser ajustado de acordo com o pa-
atempada, a maioria irá recuperar sem sequelas. drão de suscetibilidade, de forma a evitar aumento
Contudo a mortalidade continua a ser significati- das resistências microbianas e da toxicidade.
va, 5 a 10% na sépsis de início precoce e 2 a 6% A duração da terapêutica estará na depen-
na de início tardio. Estas taxas são ainda supe- dência da positividade das culturas e do tipo de
riores para os RN de baixo peso e prematuros. É germen.
importante manter o seguimento para averiguar a Apesar da melhoria dos cuidados de saúde
presença de sequelas, nomeadamente sensoriais e do uso de novas vacinas e antibióticos a morta-
e neurológicas. lidade e sequelas continuam a ser consideráveis.
CAPÍTULO 32. BACTERIÉMIA E SÉPSIS 159

32.4 FACTOS A RETER

Para o diagnóstico de bacteriémia e sépsis na


criança e no RN é necessário um elevado índice
de suspeição.
No RN os sinais e sintomas de sépsis são
inespecíficos, sendo necessário fazer o diagnóstico
diferencial com as outras patologias com envol-
vimento sistémico desse grupo etário.
Nenhum exame de diagnóstico é 100% sen-
sível e específico.
Perante evidência clínica de sépsis os exa-
mes de diagnóstico não deve atrasar o início da
antibioterapia.
Após isolamento de germen em cultura, o
espetro antibiótico deve ser estreitado de forma a
reduzir as resistências microbianas e a toxicidade.

Leitura complementar
Sepsis. In: Gomella TL, Cunningham MD, Eyal FG. Neonatology,
management, procedures, on-call problems, diseases and
drugs. USA, 7th edition, Mc Graw Hill Education 2013.
Doern GV. Blood cultures for the detection of bacteremia.
UpToDate 2014.
Allen CH. Fever without a source in children 3 to 36 month
of age. UpToDate 2014.
Neviere R. Pathophysiology os sepsis. UpToDate 2014.
Pomerantz WJ, Weiss SL. Systemic inflammatory response
syndrome (SIRS) and sepsis in children: definitions, epide-
miology, clinical manifestations and diagnosis. UpToDate
2014.
Feverish ilness in children under 5 years. NICE guidelines 2014.
Goldstein B, Giroir B, Randolph A, et al. International pedia-
tric sepsis consensus conference: definitions for sepsis
and organ dysfunction in pediatrics. Pediatr Crit Care
Med 2005; 6:2-8.
Capítulo 33.
Meningite e meningoencefalite

33
Ana Brett
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_33
CAPÍTULO 33. MENINGITE E MENINGOENCEFALITE 163

33.1 CONTEXTO outros. Com o rastreio materno da colonização


genital por Streptococcus do grupo B e a pro-
As infeções mais frequentes do Sistema filaxia antibiótica intraparto, tem-se observado
Nervoso Central (SNC) são a meningite e en- diminuição na incidência de meningite bacteriana
cefalite/meningoencefalite. A meningite é uma por este agente no período neonatal.
inflamação das meninges, geralmente das lep- O quadro 1 apresenta, por ordem de fre-
tomeninges (aracnóide e pia mater), por agente quência, os principais agentes de meningite bac-
microbiano, habitualmente bactéria ou vírus. A teriana nos diferentes grupos etários na criança
encefalite traduz uma inflamação do encéfalo, previamente saudável.
que quando associada a meningite se designa
por meningoencefalite. O seu diagnóstico precoce
Faixa etária Bactérias
é fundamental para reduzir a probabilidade de
sequelas graves. Recém-nascido Streptococcus do grupo B
Escherichia coli
Outros bacilos gram negativos
Listeria monocytogenes
33.2 DESCRIÇÃO DO TEMA
Staphylococcus spp
1 a 2 meses Streptococcus do grupo B
33.2.1 Meningite bacteriana Enterobacteriaceas
Listeria monocytogenes
A meningite bacteriana é uma emergência Streptococcus pneumoniae
Neisseria meningitidis
médica, com uma mortalidade de quase 100%
Haemophilus influenzae tipo b
quando não tratada. Mesmo com diagnóstico e
3 meses a 9 anos Streptococcus pneumoniae
tratamento precoces, pode ocorrer morbilidade Neisseria meningitidis
e mortalidade, sendo as sequelas neurológicas (Haemophilus influenzae tipo b)
comuns. ≥ 10 anos Neisseria meningitidis
Streptococcus pneumoniae

Epidemiologia e etiologia Adaptado de Uptodate 2016 e Recomendações da Sociedade


Após a introdução da vacina contra o de Infeciologia Pediátrica e da Sociedade de Cuidados
Intensivos Pediátricos da SPP - Meningites agudas bacterianas
Haemophilus influenzae tipo b (Hib) no Programa
Nacional de Vacinação (PNV), a comercialização Quadro 1. Etiologia da meningite bacteriana
por grupo etário.
em 2001 e posterior introdução no PNV da va-
cina anti-meningocócica grupo C em 2006 e da
vacina conjugada anti-pneumocócica em 2015,
verificou-se diminuição importante da incidên- A etiologia da meningite bacteriana dife-
cia da meningite bacteriana em todos os grupos re no período neonatal precoce (inferior a sete
etários, exceto em lactentes com menos de dois dias), em que habitualmente estão envolvidos mi-
meses onde os microrganismos mais comuns são crorganismos da flora genital materna (exemplo:
164 ANA BRETT

Streptococcus grupo B, Escherichia coli) adquiridos a mais baixa de sempre. Tal pode-se justificar em
por transmissão vertical, e no período neonatal parte pela quase ausência de casos de doença pelo
tardio, em que já pode ocorrer transmissão no- grupo C desde a introdução da vacina no PNV. Foi
socomial ou da comunidade. No entanto, até aos recentemente comercializada uma vacina contra o
três meses poderá ocorrer infeção por agentes grupo B, desenvolvida por vacinologia reversa, sendo
adquiridos da flora genital materna. A Listeria a cobertura pela vacina contra o meningococo B
monocytogenes, causa muito rara de meningite estimada em 78% para as estirpes circulantes na
grave, deve ser sempre incluída no diagnóstico Europa. Existem ainda vacinas polissacarídeas ou
diferencial de meningite abaixo dos três meses e conjugadas contra os restantes grupos.
particularmente no período neonatal. Com a introdução da vacina contra o Hib,
Após os três meses de vida, os principais este cocobacilo gram negativo tornou-se numa
agentes bacterianos são o Streptococcus pneu- etiologia rara de meningite, não tendo sido subs-
moniae (SP) e a Neisseria meningitidis (NM). tituído por outros serotipos capsulares.
O Streptococcus pneumoniae é um diplo- Estas três bactérias (NM, SP e Hib) possuem
coco gram positivo com mais de 90 serotipos uma cápsula polissacárida e capacidade de colo-
conhecidos, dos quais cerca de 12 a 15 causam nizar a nasofaringe, sem provocar reação local ou
a maioria dos casos de patologia na criança, pro- sistémica. O Streptococcus pneumoniae coloniza
vocando doença principalmente abaixo dos dois cerca de 50% das crianças abaixo dos dois anos
anos de vida. A vacina anti-pneumocócica agora e 8% dos adultos. Já a Neisseria meningitidis é
incluída no PNV protege contra 13 dos serotipos comensal em 8 a 20% das pessoas saudáveis,
que habitualmente provocam doença invasiva. em particular adolescentes e adultos jovens.
Observou-se uma importante redução no número A transmissão destes agentes é por gotículas
de casos por serotipos vacinais, embora tenham ou secreções das vias respiratórias, sendo os
ocorrido um pequeno número por serotipos não portadores a principal fonte de transmissão da
vacinais (substituição). bactéria.
A Neisseria meningitidis é um diplococo gram
negativo cujo único reservatório é o homem. A qua- Existem vários fatores que aumentam o risco
se totalidade dos casos de doença são provocados de meningite: imunodeficiência, contacto com
pelas estirpes capsuladas dos grupos A, B, C, W doente com meningite por NM ou Hib, infeção
e Y. Na Europa predominam os serogrupos B e recente (vias respiratórias superiores), viagem à
C. É no grupo de crianças abaixo dos cinco anos África sub-sahariana onde a infeção por NM é
que há maior incidência de doença invasiva me- muito frequente, traumatismo craniano pene-
ningocócica, particularmente no primeiro ano de trante – fratura da base, otorraquia, rinorraquia,
vida. Atualmente o grupo B é o mais frequente em presença de implantes cocleares ou de quisto
Portugal, representando mais de 70% dos casos dermóide e derivação ventriculoperitoneal.
nos últimos 12 anos. A taxa de incidência global de Perante situações especiais, como imunode-
doença em 2014 foi de 0,527/100 000 habitantes, ficiência por défice de complemento ou défice na
CAPÍTULO 33. MENINGITE E MENINGOENCEFALITE 165

imunidade humoral, alterações anatómicas como consoante se tratem de lactentes ou outras idades
quisto dermóide ou mielomeningocelo, poderão (quadro 2). Estes sinais são muitas vezes precedi-
estar implicados na meningite outros agentes dos de sintomas de infeção respiratória superior.
etiológicos (i.e. Neisseria meningitidis nos défices
de complemento; Staphylococcus epidermidis e
Lactentes Crianças
Staphylococcus aureus nos quistos dermóides).
Instabilidade térmica Febre
(febre ou hipotermia) Cefaleias
Fisiopatologia
Letargia Fotofobia
A meningite bacteriana é transmitida princi- Dificuldade Náuseas
palmente por via hematógena mas, em algumas respiratória, apneia Vómitos
situações, pode ocorrer por contiguidade (pato- Icterícia Anorexia
logia otorrinolaringológica como otite, mastoidite Recusa alimentar Confusão
ou sinusite; celulite orbitária,...), ou por solução Vómitos, diarreia Letargia
Convulsões Irritabilidade
de continuidade como por exemplo na fratura
Irritabilidade Sinais meníngeos
da base do crânio.
Fontanela anterior
As bactérias que colonizam a mucosa do
abaulada (hipertensa)
hospedeiro, invadem e, com os fatores de virulên-
cia que possuem, conseguem sobreviver na cor-
Adaptado de Recomendações da Sociedade de Infecciologia
rente sanguínea, atravessando a barreira hemato- Pediátrica e da Sociedade de Cuidados Intensivos Pediátricos
-encefálica e multiplicando-se a nível do líquido da SPP - Meningites agudas bacterianas

cefalo-raquídeo (LCR). Muitas das complicações


provocadas pela infeção são decorrentes da liber- Quadro 2. Sinais e sintomas meningite em lactentes e crianças.
tação de citoquinas no LCR quando o hospedeiro
desenvolve uma resposta inflamatória adequada.
Em particular, a NM pode provocar uma Os sinais meníngeos são:
meningococcémia fulminante, que condiciona • Rigidez da nuca: limitação da flexão ativa
colapso vascular por endotoxinas e coagulação e passiva da região cervical com impos-
intravascular disseminada, com elevada morta- sibilidade de colocar o mento a nível do
lidade se não for adequadamente tratada nas esterno.
primeiras horas. • Sinal de Kernig: na posição supina, com
a coxa e joelhos fletidos a 90º, o doente
Manifestações clínicas não consegue estender o joelho mais de
A apresentação clínica da meningite bacte- 135º e/ou flete o joelho oposto.
riana pode ser progressiva ou fulminante, com • Sinal de Brudzinski: na posição supina,
evolução em horas para choque séptico. A maio- quando é realizada a flexão passiva
ria das crianças apresenta-se com febre e sinais do pescoço, o doente flete ambos os
ou sintomas de irritação meníngea, que diferem joelhos.
166 ANA BRETT

Os sinais meníngeos são difíceis de observar em pediátrica, principalmente em lactentes e até aos dez
recém-nascidos e lactentes. Como tal é importante anos de idade. O pico anual de incidência é desde
valorizar outros sintomas, descritos no quadro 2. o final da Primavera ao início do Outono, embora
Nos casos mais avançados podem estar pre- ocorram casos esporádicos ao longo do ano.
sentes sinais de hipertensão craniana, que incluem: A causa mais comum de meningite viral
parésia do III, IV e VI pares cranianos, cefaleias, são os enterovírus (poliovírus, echovírus e os
fontanela anterior abaulada, alteração do estado coxsackievírus), sendo responsáveis por 85 a 95%
de consciência e edema papilar (sinal raro, implica dos casos. Outros vírus que podem ser causa de
excluir outros diagnósticos como abcesso, trom- meningite viral são os parechovírus, herpesvírus,
bose do seio venoso ou empiema subdural). Em arbovírus e vírus influenza, entre outros.
algumas situações o doente pode apresentar sinais
neurológicos focais como hemiparésia, paralisia Fisiopatologia
facial e alterações visuais. Cerca de um quarto Relativamente ao principal agente de menin-
dos doentes pode ter convulsões nas primeiras 48 gite viral, o enterovírus, a forma de transmissão
horas, tipicamente tónico-clónicas generalizadas. é fecal-oral, embora também possa ocorrer por
Os doentes podem apresentar um exan- gotículas respiratórias. Há uma infeção inicial das
tema purpúrico, mais frequente nas infeções superfícies mucosas do trato respiratório e gas-
por NM. As lesões são mais frequentes nas trointestinal, seguido de replicação viral nos gân-
extremidades, podem ser precedidas de glios linfáticos regionais. Posteriormente ocorre a
exantema macular, e habitualmente evoluem virémia primária, com disseminação do vírus pelos
em horas no início do quadro febril. diferentes órgãos, como fígado, baço e coração,
onde há replicação e início dos sinais e sintomas
de infeção. É durante a virémia secundária que
33.2.2 Meningite vírica há passagem transendotelial do vírus a nível dos
vasos dos plexos coróides, meninges e cérebro,
A meningite vírica é definida como uma com consequente meningite.
infeção do SNC associada a sinais de irritação A fisiopatologia dos restantes vírus pode ser
meníngea, mas sem disfunção neurológica (em um pouco diferente, particularmente no grupo
contraste com as encefalites) ou evidência de dos herpesvirus (citomegalovírus - CMV e Epstein
bactérias no LCR, numa criança que não realizou Barr vírus- EBV), em que a disseminação pode ser
antibioticoterapia. É mais comum que a meningi- por via hematógena, por extensão direta após
te bacteriana e traduz habitualmente um quadro infeção da mucosa nasofaríngea ou através de
de menor gravidade, geralmente autolimitado. vias neuronais.

Epidemiologia e etiologia Manifestações clínicas


A meningite vírica pode ocorrer em qual- As manifestações clínicas são semelhantes
quer idade, mas a incidência é superior em idade às da meningite bacteriana, mas habitualmente
CAPÍTULO 33. MENINGITE E MENINGOENCEFALITE 167

menos graves (quadro 2). Na infeção por entero- Epidemiologia e etiologia


vírus, o quadro febril é geralmente acompanhado A incidência de meningoencefalite é desco-
por sintomas constitucionais inespecíficos como nhecida em Portugal, existindo uma variedade de
náuseas, vómitos, diarreia, mialgias, sintomas res- microgarnismos que podem provocar este quadro
piratórios e por vezes exantema (micropapular, clínico. Os vírus são a causa mais comum, mas
vesicular). Habitualmente há queixas importantes também pode ser causada por bactérias, fungos e
de cefaleias e acompanha-se de sinais de irritação parasitas (quadro 3). De destacar o vírus herpes
meníngea, numa criança com bom estado geral. simplex tipo 1 (HSV-1) como principal agente
de encefalite em idade pediátrica. No entanto,
33.2.3 Meningoencefalite muitas vezes a etiologia permanece desconhecida,
mesmo após investigação exaustiva.
A encefalite é uma disfunção aguda do SNC,
com evidência imagiológica e/ou laboratorial de Para melhor esclarecimento da etiologia,
inflamação cerebral, que pode ou não estar as- é importante uma história epidemiológica que
sociada a meningite. aborde se existiu: doença viral ou vacinação nas

Vírus Bactérias Fungos


Vírus herpes simplex tipo 1 e 2 Mycoplasma pneumoniae Cryptococcus neoformans
Enterovírus Listeria monocytogenes Coccidioides spp
Varicella zoster, EBV, CMV Mycobacterium tuberculosis Histoplasma capsulatum
Herpes vírus 6 e 7 Treponema pallidum Candida spp
Arbovírus (vírus West Nile, vírus da Bartonella henselae Parasitas
encefalite japonesa, vírus St. Louis, …) Borrelia burgdorferi Toxoplasma gondii
Adenovírus, vírus sincicial respiratório Coxiella burnetii Plasmodium falciparum
Influenza Rickettsia spp Naegleria fowleri
Vírus do sarampo, parotidite e Brucella spp Acanthamoeba spp
rubéola Ehrlichia chaffeensis Taenia solium
Raiva (...) Trypanosoma brucei gambiense
(...) (…)

Adaptado de Uptodate 2016 e Recomendações da Sociedade de Infecciologia Pediátrica


e da Sociedade Portuguesa de Neuropediatria - Encefalites

Quadro 3. Etiologias possíveis de encefalite/meningoencefalite.


168 ANA BRETT

quatro semanas precedentes, viagens recentes, disfunção cognitiva e convulsões, que podem
piqueniques ou outras atividades recreativas, con- ser focais. As manifestações clínicas diferem de
tacto com animais e insetos (carraças, mosquitos, acordo com a área afetada do SNC, com o agente
entre outros) e contacto com pessoas doentes. etiológico e fatores intrínsecos do hospedeiro.
Pela sazonalidade de algumas infeções, é impor- A criança pode apresentar pródromos como
tante contextualizar a estação do ano em que a exantema, lesões vesiculares, escara ou infeção
meningoencefalite é diagnosticada. respiratória, entre outros, que podem fornecer
pistas relativamente ao agente etiológico.
Fisiopatologia Podem surgir complicações decorrentes da
A encefalite aguda primária ocorre por meca- encefalite, como status convulsivo, edema cere-
nismo direto, com replicação do agente infecioso bral, síndrome de secreção inapropriada da hor-
no SNC, sendo atingida principalmente a substân- mona anti-diurética (SIADH), falência cardiorres-
cia cinzenta. A invasão direta pode ocorrer como piratória e coagulação intravascular disseminada.
complicação de uma meningite vírica, secundária
a virémia ou por via retrógrada através dos nervos 33.2.4 Diagnóstico diferencial
periféricos (HSV, vírus da raiva).
Também pode tratar-se de uma encefalite Perante uma criança com sintomas de infe-
pós-infeciosa. Esta ocorre duas a quatro semanas ção do SNC, as prováveis etiologias de meningite
após outra doença infeciosa ou vacinação, por ou meningoencefalite (bacteriana, vírica, outras)
uma resposta imunológica que atinge predomi- devem ser avaliadas. Nem sempre é evidente,
nantemente a substância branca, com alterações numa fase inicial, qual o agente mais provável.
da mielina. Não se identifica o agente no SNC. No caso da presença de sinais neurológicos
Considera-se que a encefalite pós-infeciosa cor- focais é importante considerar outros diagnósticos
responde a cerca de um terço dos casos de en- como abcesso cerebral, tumor cerebral ou hemor-
cefalite aguda. ragia subaracnoideia. Principalmente nos doentes
com disfunção neurológica, deve-se colocar o diag-
Manifestações clínicas nóstico diferencial com doenças desmielinizantes
Para além dos sintomas já descritos que do SNC, encefalite autoimune, encefalopatias me-
também se manifestam num quadro de menin- tabólicas e intoxicações, entre outras.
gite (quadro 2), nomeadamente febre, cefaleias,
náuseas e vómitos, estão também presentes 33.2.5 Diagnóstico
sinais de disfunção neurológica, com alte-
ração do estado de consciência, alterações A abordagem inicial de uma criança com
de comportamento e/ou da personalidade, infeção do SNC implica estabilizar o doente, obter
sinais neurológicos focais (afasia, hemiparé- um a dois bons acessos venosos e monitorizar.
sia, hemianópsia, entre outros), alterações Só devem ser realizados exames complementares
na sucção e deglutição, manifestações de de diagnóstico posteriormente.
CAPÍTULO 33. MENINGITE E MENINGOENCEFALITE 169

As análises sanguíneas podem incluir, de acor- intracraniana, presença de défices neurológicos fo-
do com a clínica: hemograma, provas de coagula- cais ou infeção cutânea no local da punção. Nestas
ção, glicémia, ionograma, ureia e creatinina, fun- situações deve ser realizada tomografia computo-
ção renal e hepática, gasometria, lactato, proteína rizada crânio-encefálica para excluir complicações,
C-reativa/procalcitonina e hemocultura (positiva mas este procedimento não deve atrasar o início
em mais de metade dos casos, de acordo com os do tratamento empírico com antimicrobianos, que
microorganismos: 80% de Hib e 50% de SP e NM). deve ser o mais cedo possível.
No caso de suspeita de meningoencefalite, poderá A PL pode ser realizada com o doente dei-
ter interesse, em casos particulares, a realização tado ou sentado, devendo o local da punção
de serologias para CMV, EBV, Mycoplasma pneu- ser a nível da crista ilíaca, entre os espaços in-
moniae, Borrelia burgdorferi ou outros agentes, tervertebrais lombares (L): L3-L4 ou L4-L5. As
bem como o estudo molecular do genoma do características típicas do LCR consoante os tipos
microorganismo por polymerase chain reaction de meningite estão representadas no quadro 4.
(PCR) para vírus nas secreções nasofaríngeas. Na suspeita de meningite bacteriana é fun-
A punção lombar (PL) é o exame de diag- damental a realização do exame direto do LCR
nóstico nas infeções do SNC. No entanto, está com coloração gram, mas se este for negativo
contraindicada em situações de instabilidade he- não exclui o diagnóstico. A esterilização do LCR
modinâmica, alterações da coagulação, alteração ocorre cerca de uma hora após tratamento com
do estado de consciência, sinais de hipertensão antibiótico adequado no caso da NM e quatro a

Normal Bacteriana Viral Tuberculosa


Aspeto água de rocha turvo límpido límpido ou opaco
Células/mm 3
0a5 >1000 <1000 25 a 500
(0 a 20 no RN)
Polimorfonucleares 0 predomínio precoce ± (precoce)
Mononucleares 5 tardia predomínio predomínio
Glicose (mg/dL) 40 a 80 baixa normal baixa
(<50 a 60%
glicémia)
Glicose LCR/plasma >50% <40% normal <30%
Proteínas (mg/dL) 5 a 40 aumentada ± aumentada aumentada
(20 a 120 no RN)
Exame direto negativo positivo negativo positivo
Cultura negativa positiva negativa positiva

RN – recém-nascido

Quadro 4. Características do LCR na meningite.


170 ANA BRETT

dez horas no caso do SP. É também útil o estudo enterovírus e, de acordo com a clínica e epide-
molecular por PCR no LCR para pesquisa de NM e miologia, para outros microrganismos. No caso
SP. Atualmente considera-se a determinação dos da PCR para HSV, esta pode ser negativa nos
antigénios capsulares como um exame com sensi- primeiros dias de doença, pelo que poderá
bilidade diagnóstica baixa para os microoganismos ser necessário repetir a PL se a suspeita clí-
mais comuns. Na suspeita de meningite vírica, nica se mantiver.
pode também ser solicitado o estudo molecular Nos doentes com meningoencefalite é
por PCR para enterovírus. recomendada a realização de outros exames.
Embora o quadro 3 seja orientador na in- O eletroencefalograma (EEG) é um marcador pre-
terpretação da análise do LCR, é necessário ter coce e sensível de disfunção cerebral, embora
em atenção que na meningite vírica pode ocorrer pouco específico. Em 87 a 96% dos casos existe
inicialmente predomínio de polimorfonucleares, lentificação focal ou difusa. No caso particular da
surgindo horas depois a preponderância típica de encefalite herpética, cerca de 75% dos doentes
linfócitos (daí o nome meningite vírica ou linfocitá- apresenta alterações típicas no EEG, com anoma-
ria). Já na meningite bacteriana, numa fase muito lias lentas temporais e atividade periódica. A gravi-
precoce, um valor normal de células não exclui dade das alterações no EEG pode correlacionar-se
esta etiologia e pode até haver predomínio de com a deterioração do estado de consciência e
linfócitos na fase inicial (embora raro), sobretudo as alterações observadas desaparecem mais len-
nos casos em que os doentes já tenham inicia- tamente que a sintomatologia. Idealmente deve
do tratamento antibiótico. A pleocitose também ainda ser realizado exame de neuroimagem, sen-
pode não ser significativa, e algumas meningites do a ressonância magnética crânio-encefálica o
bacterianas podem ter glicorráquia normal, numa exame mais sensível e específico.
fase inicial, nunca se devendo esquecer a análise
da relação do valor da glicorráquia com o da 33.2.6 Tratamento
glicémia doseada em simultâneo. De referir
que, em alguns casos, o tempo para normalização Nas infeções do SNC, é fundamental a esta-
das alterações no LCR pode ser longo. bilização hemodinâmica, a correção dos distúrbios
Relativamente às meningoencefalites, as hidroelectrolíticos, da hipoglicémia e da coagulo-
alterações no LCR são semelhantes às encontra- patia se existirem. O tratamento de suporte inclui
das na meningite vírica, com glicorráquia nor- repouso, controlo da febre e da dor e elevação da
mal, proteínas normais ou ligeiramente elevadas cabeceira a 30º. É necessário monitorizar os sinais
e tipicamente a contagem de 50 a 200 células/ de edema cerebral e hipertensão intracraniana,
mm3, embora possa ultrapassar as 1000. A pre- bem como de convulsões, e tratar estes eventos
sença de eritrócitos no LCR pode ser sugestiva graves imediatamente.
de infeção por HSV. Devem ser sempre realizados O tratamento antimicrobiano deve ser sem-
gram e cultura, mas é importante a execução de pre iniciado o mais precocemente possível. Tendo
estudo molecular por PCR no LCR para HSV e em conta as suas especificidades, irá ser abordado
CAPÍTULO 33. MENINGITE E MENINGOENCEFALITE 171

separadamente o tratamento da meningite bac- recomendada terapêutica empírica em que se


teriana e meningoencefalite. associa a ampicilina e a cefotaxima com ou sem
Perante uma criança com meningite vírica, associação à gentamicina. Ente o mês de idade
clinicamente estável, apenas é necessário trata- e os três meses recomenda-se associar a am-
mento de suporte, sendo esta uma doença auto- picilina com a cefotaxima com ou sem associa-
-limitada, com bom prognóstico. ção à vancomicina, para tratar as bactérias mais
frequentes. Após os três meses a terapêutica
Meningite bacteriana empírica recomendada é o ceftriaxone associado
Deve-se selecionar um antibiótico que apre- à vancomicina. Dado a incidência aumentada de
sente boa penetração na barreira hemato-ence- resistência do SP à penicilina e às cefalosporinas
fálica, com efeito bactericida no LCR. Deve ser de 3ª geração, na suspeita de meningite por este
iniciado logo após a colheita de LCR ou antes, se agente etiológico deve ser associada vancomicina
a PL for protelada. até ser conhecido o agente e padrão de susce-
A antibioticoterapia empírica deve ser dirigi- tibilidades.
da para os microrganismos mais prováveis, tendo Posteriormente a antibioticoterapia deve ser
em conta a idade, antecedentes patológicos e ajustada ao microrganismo causal identificado
fatores predisponentes. e ao antibiograma. A duração recomendada de
Em crianças saudáveis, sem condições pa- tratamento depende deste (quadro 5). No caso
tológicas especiais, no período neonatal é de meningite sem agente isolado no pequeno

Bactéria Confirmar antibiograma Duração (dias)


Streptococcus pneumoniae 10 a 14
CIM para ceftriaxone <0.06 Cefotaxima/ceftriaxone
CIM para ceftriaxone >0.12 Cefotaxima/ceftriaxone e vancomicina
Enterobacteriacea Cefotaxima 21
(+ gentamicina até esterilização LCR)
Streptococcus do grupo B Ampicilina 14 a 21
Listeria monocytogenes (+ gentamicina até esterilização LCR)
Neisseria meningitidis Cefotaxima/ceftriaxone 7
Haemophilus influenzae tipo b 10
Staphylococcus aureus Flucloxacilina 14
meticilino-susceptível
Staphylococcus aureus Vancomicina e rifampicina 14
meticilino-resistente

CIM – concentração inibitória mínima


Adaptado de Uptodate 2016 e Recomendações da Sociedade de Infecciologia Pediátrica e da Sociedade de Cuidados Intensivos
Pediátricos da SPP - Meningites agudas bacterianas.

Quadro 5. Antibioticoterapia recomendada nas meningites bacterianas.


172 ANA BRETT

lactente com idade inferior a três meses deve-se 33.2.7 Complicações e prognóstico
manter antibioticoterapia por um período entre
os 14 e os 21 dias. Depois desta faixa etária o Atualmente, nos países desenvolvidos, a
tratamento deve manter-se entre os sete e os mortalidade causada por um quadro de meningite
dez dias. bacteriana devidamente tratada é aproximada-
mente de 5% (mais elevada no período neonatal
A administração de corticoides na meningite e na meningite pneumocócica). Em cerca de 15 a
bacteriana é controversa. A dexametasona modula 25% dos casos ocorrem sequelas, nomeadamente
a resposta inflamatória mediada por citoquinas, alterações de comportamento e cognitivas, défices
havendo benefício demonstrado na sua adminis- neurológicos (epilepsia, défices motores, parali-
tração nos casos em que se suspeita de meningite sia cerebral), diminuição da acuidade auditiva ou
por Hib (reduz número de casos de surdez), mas défices visuais.
o mesmo não se verifica na infeção por SP. No Os fatores de mau prognóstico na me-
entanto, os efeitos adversos atribuídos à corticote- ningite bacteriana são: doença em recém-nas-
rapia como dissimular a clínica, exacerbar a febre cidos e lactentes com idade inferior a seis meses,
após a sua suspensão e diferir a esterilização do défice imunitário, presença de sinais neurológicos
LCR (principalmente na meningite pneumocócica), focais e/ou coma (escala de Glasgow inferior a
têm colocado dúvidas quanto ao seu benefício. 13) na apresentação clínica, tipo e virulência do
microrganismo (mais virulentos: gram negativos,
Meningoencefalite SP e microrganismos multirresistentes aos antimi-
Perante uma suspeita de encefalite/menin- crobianos), glicorráquia <20 mg/dL na admissão,
goencefalite, é fundamental iniciar terapêutica atraso no diagnóstico e no início do tratamento,
com aciclovir o mais rapidamente possível, pois a atraso na esterilização do LCR e aparecimento
infeção por HSV pode ser devastadora. Contudo, de convulsões tardias (>72 horas após início da
até ser possível excluir uma meningite bacteriana, antibioticoterapia).
está recomendada a associação com cefriaxone. O prognóstico de encefalite depende da
De acordo com a clínica e epidemiologia, idade do doente, das alterações neurológicas na
poderá ser necessário associar terapêuticas especí- admissão e do agente causal. São fatores de mau
ficas para determinados agentes. Por exemplo, na prognóstico: infeção em recém-nascido ou pe-
suspeita de infeção por Mycoplasma pneumoniae queno lactente, escala de Glasgow inferior a 6,
deve-se prescrever ciprofloxacina ou levofloxacina infeção causada por HSV ou Mycoplasma pneu-
(esta última com melhor penetração no SNC), moniae, atraso no início do tratamento e ausência
embora não haja evidência que o antibiótico altere de melhoria do traçado do EEG.
o prognóstico neste quadro infecioso. A encefalite por HSV, se não for adequa-
A duração do tratamento vai depender do damente tratada, tem muito mau prognóstico,
microrganismo isolado. No caso da encefalite her- com taxas de morbilidade (atraso global do de-
pética é recomendada uma duração de 21 dias. senvolvimento psicomotor, epilepsia, entre outras
CAPÍTULO 33. MENINGITE E MENINGOENCEFALITE 173

alterações neurológicas) e mortalidade elevadas. Quando é necessário realizar tomografia


O tratamento reduz significativamente as seque- computorizada crânio-encefálica, a administra-
las, todavia estas podem atingir até cerca de dois ção de antibiótico não deve ser diferida.
terços dos doentes. A terapêutica e duração do tratamento deve
ser ajustada de acordo com o microrganismo isolado.
Após o tratamento, as crianças que sofreram Quando indicado, as doenças de declara-
infeção do SNC devem ser orientadas para con- ção obrigatória devem ser notificadas e iniciada
sulta de infeciologia, de otorrinolaringologia e de profilaxia de contactos.
neurodesenvolvimento. De acordo com a situação Os doentes devem manter vigilância em
clínica, pode haver necessidade de providenciar consultas específicas.
outras intervenções multidisciplinares.
Leitura complementar
33.2.8 Profilaxia Filipa Prata F, Marta Cabral M, Lurdes Ventura L, Paula
Regina Ferreira PR, Maria João Brito MJ. Meningites
A profilaxia dos contactos está recomendada agudas bacterianas - Recomendações da Sociedade de
nos casos de meningite por NM e Hib, devendo ser Infecciologia Pediátrica e da Sociedade de Cuidados
feita o mais precocemente possível, nas primeiras Intensivos Pediátricos da SPP. Disponível online em www.
24 horas. Deve ser contactado o delegado de saú- spp.pt, 2013.
de, que selecionará os casos com indicação para Maria João Brito MJ, Catarina Luís C, Rita Silva R,
profilaxia de acordo com guidelines específicas. Catarina Gouveia C, José Pedro Vieira JP. Encefalites -
Em ambas as etiologias está preconizada Recomendações da Sociedade de Infecciologia Pediátrica
profilaxia com rifampicina, podendo, no caso da e da Sociedade Portuguesa de Neuropediatria. Acta
meningite por NM ser usado em alternativa o Pediatr Port 2011;42(6):284-91.
ceftriaxone ou a ciprofloxacina. Cherry J, Demmler-Harrison GJ, Kaplan SL, Steinbach WJ,
Deve ser preenchido o impresso de notifi- Hotez P, eds. Feigin and Cherry’s Textbook of Pediatric
cação de doença de declaração obrigatória na Infectious Diseases. 7th ed. Saunders: Elsevier. 2013.
doença invasiva por NM, SP e Hib. Long S, Pickering L, Prober C, eds. Principles and Practice
of Pediatric Infectious Diseases. 4th ed. Philadelphia:
Elsevier Saunders, 2012. 
33.3 FACTOS A RETER Pickering LK, Baker CJ, Kimberlin DW, Long SS, eds. Red Book:
2012 Report of the Committee on Infectious Diseases.
As infeções do SNC são emergências médicas. 29th ed. Elk Grove Village, IL: American Academy of
O diagnóstico é feito pela punção lombar. Pediatrics, 2012.
É necessário assegurar que a criança está Sharland M, ed. Manual of Childhood Infections - the Blue
clinicamente estável antes da realização da PL, Book. 3rd ed. Oxford: Oxford University Press, 2011.
nunca se devendo atrasar o início da antibio-
terapia.
Capítulo 34.
Hematúria e Proteinúria

34
António Jorge Correia
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_34
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 177

34.1 CONTEXTO GV/campo (objetiva de 400x) em 10 ml de urina


fresca centrifugada ou mais de cinco GV/mm3 em
Na criança a presença de hematúria ou pro- urina fresca não centrifugada, em três amostras
teinúria pode ser transitória surgindo muitas vezes consecutivas, separadas entre si por um período
em situações febris e acompanhando infeções de tempo de duas a quatro semanas.
virusais. A hematúria macroscópica ou o achado A hematúria macroscópica define-se pela
acidental de hematúria ou proteinúria na tira rea- presença mais de 5.000 GV/mm3, podendo na
gente urinária é um sinal alarmante para os pais. apresentação clínica ter uma coloração de san-
A presença de hematúria associada a pro- gue vivo, cor de tijolo ou “coca-cola”. É menos
teinúria é um marcador significativo de doença frequente que a hematúria microscópica na idade
glomerular, assim como de doença renal crónica. pediátrica.
Enquanto a orientação da criança com he- A morfologia dos GV ajuda a identificar a
matúria e proteinúria ou alteração da função glo- origem da hematúria, sendo que o predomínio
merular é consensual, a orientação da criança de eritrócitos dismórficos é indicador de prove-
com hematúria microscópica isolada é motivo de niência glomerular.
contínuo debate. Um conjunto de causas pode originar urina
vermelha sem haver hematúria: hemoglobinúria,
mioglobinúria, vários medicamentos (como a ri-
34.2 DESCRIÇÃO DO TEMA fampicina), corantes alimentares, doenças meta-
bólicas (como a porfiría), presença de cristais de
34.2.1 Hematúria uratos e a hematúria do Síndrome de Münchausen
«by proxy» («por procuração»), situação rara, que
Hematúria significa a presença de glóbulos ocorre quando um parente, quase sempre a mãe
vermelhos (GV) na urina em quantidade superior (85 a 95%), de modo persistente ou intermitente
ao normal. Pode ser microscópica ou macroscó- simula de forma intencional hematúria no seu filho.
pica e a sua origem encontrar-se em qualquer As tiras reagentes urinárias (ComburR) per-
ponto do aparelho urinário. mitem a determinação qualitativa, são usadas de
A prevalência da hematúria microscópica rotina no diagnóstico de hematúria microscópica e
assintomática varia entre 0.5 a 1.6 % nas crianças são altamente sensíveis (mais para a hemoglobina
em idade escolar. A hematúria pode indicar ou livre do que para os eritrócitos). A sensibilidade
não a presença de doença renal. A Academia é de 91 a 100% para identificar dois a cinco GV/
Americana de Pediatria recomenda o seu rastreio campo (400x) e a especificidade de 65 a 99%.
na idade escolar, entre os quatro e os cinco anos Os falsos negativos são raros (urina muito ácida,
de idade, e durante a adolescência entre os 11 presença de substâncias redutoras como o áci-
e os 21 anos. Não existe consenso na definição do ascórbico e deterioração das tiras). Os falsos
de hematúria microscópica. A definição mais positivos surgem na presença de hemoglobinú-
aceite corresponde à presença superior a cinco ria (anemias hemolíticas, hemoglobinopatias,
178 ANTÓNIO JORGE CORREIA

hemoglobinúria paroxística e da marcha, quei- dismórficos indicam hematúria de causa


maduras...), mioglobinúria (traumatismos, con- glomerular.
vulsões generalizadas, exercício físico intenso, • A presença de cilindros eritrocitários é
eletrocussão, insolação, drogas como a heroína patognomónica de hematúria de causa
e anfetaminas, venenos...), presença de peroxi- glomerular.
dases bacterianas e leituras tardias. • A presença de cilindros leucocitários sig-
A identificação de reação positiva ao san- nifica inflamação glomerular.
gue em tira reagente, exige sempre confirmar a • A urina normal pode conter cristais de
presença de GV no estudo microscópico. A urina fosfato de cálcio e oxalato de cálcio.
mais fiável é a primeira urina da manhã, colhida
a meio do jato, evitando exercício físico intenso A hematúria macroscópica acompanha-se
48 horas antes da colheita e analisando a urina sempre de proteinúria, geralmente discreta devido
em menos de uma hora após a colheita. à presença de proteínas plasmáticas. Quando se
associa a proteinúria marcada (+++/++++) sugere
Factos a reter no exame da urina: etiologia glomerular.
• É importante confirmar que a urina ver- A fase da micção em que surge a hematúria
melha é devida a hematúria, pela de- macroscópica pode informar quanto à sua origem
monstração de GV no exame microscó- no aparelho urinário. Se a hematúria surge no
pico. início da micção (hematúria inicial) e tem uma
• A presença de cristais de uratos na coloração de sangue vivo, corresponde a lesão
urina de lactentes, pode causar uma sangrante da uretra. A hematúria que surge no
coloração rosa nas fraldas, mas não é final da micção (hematúria terminal) de coloração
hematúria, nem tem significado clinico. sangue vivo corresponde, em regra, a lesão san-
• A hematúria do Síndrome de Münchausen grante da bexiga (trígono). Se a hematúria persiste
«by proxy» deve ser considerada no diag- em toda a micção (hematúria total), poderá ter
nóstico diferencial. etiologia renal, ureteral ou corresponder a lesão
sangrante da bexiga como a cistite hemorrágica
Uma vez confirmada a existência de hematú- causada por vírus (adenovirus).
ria é importante localizar a origem glomerular ou
não glomerular da mesma, que permitirá não só A infeção do trato urinário é a causa
estabelecer a etiologia, como também orientará mais comum de hematúria macroscópica na
a investigação posterior. idade pediátrica.

Factos a reter no exame A hematúria macroscópica de causa glome-


microscópico da urina: rular tem cor castanho uniforme, que é compa-
• A morfologia dos GV pode ajudar a rada a “coca-cola” ou cor de tijolo, não apre-
identificar a origem da hematúria: GV senta coágulos, o sedimento revela a presença
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 179

de cilindros hemáticos e os eritrócitos são na sua a hipertensão arterial, doença renal crónica ou
maioria dismórficos (acima de 80%). Associa-se proteinúria, deve ser investigada de forma rápida.
com frequência a proteinúria (> ++). Na hematúria microscópica assintomáti-
A hematúria macroscópica de causa extra- ca com proteinúria deve-se avaliar o grau da
glomerular tem coloração de sangue vivo ou rosa, proteinúria quantitativamente, proteinúria em
a sua cor pode não ser uniforme e serem visíveis mg/metro2 /hora (mg/m2 /h) ou qualitativamente
coágulos, não existindo ao exame microscópico da através da relação Proteinas urina /Creatinina urina
urina cilindros hemáticos e os eritrócitos dismór- (Prot u /Cr u). Se a proteinúria for de nível nefró-
ficos são raros ou inexistentes (abaixo de 20%). tico (> 40 mg/m2/h ou Protu/Cru> 200 mg/
mmol) orienta para origem glomerular. Se for
Factos a reter na hematúria macroscópica: de nível ligeiro ou moderado pode ter origem
• A infeção do trato urinário é a causa mais tubulointersticial ou vascular. Na hematúria mi-
comum de hematúria macroscópica. croscópica sintomática as manifestações clínicas
• Na presença de hematúria macroscópica associadas podem ser gerais (febre, mal estar,
deve-se iniciar uma investigação urgente. dor abdominal), inespecíficas (exantema, púr-
• A hematúria induzida pelo exercício físico pura, artrite, icterícia, alterações respiratórias
não está associada a doença renal. ou gastrointestinais) ou específicas do aparelho
• Se associada a alteração da função glo- urinário (sintomas micionais, enurese, edema,
merular, proteinúria ou hipertensão ar- hipertensão arterial).
terial a orientação deve ficar a cargo de
nefrologista pediátrico. Factos a reter na hematúria microscópica:
• Só cerca de 30% das crianças continua
A hematúria microscópica assintomá- a ter hematúria microscópica seis meses após
tica isolada é a forma de apresentação mais o achado inicial.
frequente, muitas vezes descoberta num exame • A criança com hematúria microscópica
de urina com tira reagente. É necessário confir- associada a insuficiência renal, protei-
mar a hematúria através de exame microscópico núria significativa ou hipertensão tem
e comprovar a sua existência em três amostras risco de ter uma causa preocupante
obtidas com intervalo de duas a quatro semanas. devendo ser referenciada ao nefrolo-
Se a avaliação inicial destas crianças não revela o gista pediátrico e investigada de forma
diagnóstico etiológico, recomenda-se um período rápida.
de seguimento de um a dois anos apenas com • A etiologia da hematúria varia em função
exame de urina, para determinar se persiste a da idade.
hematúria microscópica, antes de prosseguir es- • As causas de hematúria dividem-se ha-
tudo com exames mais invasivos. A relação cálcio/ bitualmente em dois grandes grupos:
creatinina da urina, permite avaliar se existe hiper- glomerular e não glomerular, renal e
calciúria. Se a hematúria microscópica se associa extra-renal, quadro 1.
180 ANTÓNIO JORGE CORREIA

Hematúria Glomerular Hematúria não glomerular


Infeciosas Renal
• Glomerulonefrite aguda pos-infeciosa 1. Nefropatia intersticial
• Endocardite bacteriana, nefrite do shunt • Infeciosa (pielonefrite aguda, tuberculose renal)
• Outras • Metabólica (cálcio, oxalato, ácido úrico)
• Tóxica (fármacos, outros tóxicos)
• Necrose tubular
2. Doenças quísticas renais
Primárias 3. Patologia vascular
• Nefropatia de Imunoglobulina A (IgA) • Trombose, malformações dos vasos renais
• Outras glomerulopatias • Drepanocitose
4. Traumatismos
5. Tumores
• Wilms, nefroma mesoblástico
Doenças Sistémicas
• Púrpura de Henoch-Schönlein Extra-renal
• Síndrome hemolítico-urémico • Hipercalciúria, hiperuricosúria
• Lúpus eritematoso sistémico • Infeção urinária (cistite, uretrite)
• Outras • Malformações (uropatia obstrutiva, refluxo vesico-uretral)
• Litíase
• Traumatismo
• Fármacos (ciclofosfamida)
Familiares • Tumores (rabdomiossarcoma)
• Síndrome de Alport • Coagulopatia
• Nefropatia de membrana fina (hematúria familiar • Malformações vasculares
benigna) • Exercício físico

Quadro 1. Diagnóstico diferencial entre hematúria glomerular versus não glomerular.

O diagnóstico de hematúria na criança tem renal progressiva e/ou irreversível (uropatias mal-
como objetivo confirmar a sua existência, iden- formativas, tumores).
tificar a causa e reconhecer a gravidade do pro- Uma história clínica detalhada e precisa com
cesso, identificando alterações com risco de vida uma análise de urina e do sedimento urinário dão
para o doente e que requerem atuação urgente informações que permitem localizar a hematúria
(hipertensão arterial, insuficiência renal aguda) e (trato urinário alto versus baixo) e a urgência da
eliminar causas que possam originar deterioração avaliação.
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 181

Na anamnese saber se exitem antecedentes ausente e se o exame do sedimento urinário não


de hematúria em familiares próximos, consangui- apresenta GV dismórficos, a hematúria não tem
nidade, surdez, quistos renais, litíase, hipertensão origem glomerular. Se a criança tem hematúria e
arterial, insuficiência renal crónica (IRC), doenças sintomas sugestivos de cólica renal a ecografia ou
hematológicas (drepanocitose, coagulopatias). a tomografia axial computorizada (TAC) permitem
Não esquecer de realizar sempre a análise de confirmar o diagnóstico de litíase. O doseamento
urina aos pais e irmãos através de tira reagente. na urina de 24 horas da excreção aumentada
Nos antecedentes pessoais procurar anteceden- de várias substâncias (cálcio, oxalatos, cistina...)
tes neonatais (trombose renal, cardiopatia con- permite identificar causas de litíase.
génita...), infeções urinárias prévias, medicação Se a hematúria é macroscópica, persiste e
habitual, tipo de exercício que pratica e história não se confirmou infeção urinária: pesquisar an-
de traumatismo ou extração dentária. tigénios estreptocócicos e cultura do exsudato
Na anamnese saber as características da he- da orofaringe, realizar hemograma e reagentes
matúria (cor, relação com a micção, duração), cir- de inflamação de fase aguda como a proteína C
cunstâncias acompanhantes (traumatismo abdomi- reativa e a velocidade de sedimentação, estudo
nal ou lombar, exercício físico prévio, antecedentes da coagulação, ureia, creatinina, ionograma, áci-
de infeção respiratória ou cutânea prévia, disúria). do úrico, proteínas totais, albumina, colesterol,
No exame físico avaliar crescimento (peso, transaminases, estudo imunológico (titulo de
estatura e evolução estato-ponderal), tensão arte- antiestreptolisina O, C3 e C4) e ecografia renal
rial, presença de edemas, manifestações cutâneas (exame imagiológico de primeira linha).
hemorrágicas (petéquias, equimoses), exantemas, Se existe uma história recente de trauma-
sinais de cardiopatia, ascite, globo vesical, massas tismo, está indicado um estudo imagiológico do
abdominais, genitais externos (balanite, dermatite trato urinário (ecografia, TAC). De acordo com a
das fraldas), artralgia, presença de sinais de artrite evolução clínica e caso a caso, ponderar a reali-
e alterações da marcha. zação de outros exames complementares.
É essencial investigar a hematúria de modo a A causa mais frequente de hematúria
identificar a causa. Na investigação nem todos os microscópica persistente na criança é a he-
exames laboratoriais estão indicados na primeira matúria familiar benigna, que tem bom prog-
fase. A análise de urina é o exame de primeira nóstico a longo prazo.
linha, incluindo o aspecto macroscópico, a tira
reagente (pesquisa de glicose, proteínas, nitritos) Na presença de hematúria sem antecedentes
e o estudo microscópico do sedimento urinário. familiares de IRC, se a proteinúria é nefrótica,
Se a hematúria se associa a sintomas de infeção a hematúria tem origem glomerular. As crian-
do trato urinário, realizar também a urocultura ças com hematúria microscópica e hipertensão,
para confirmar o diagnóstico. história familiar de doença renal e proteinúria
Na presença de hematúria sem antecedentes significativa ou nefrótica, podem ter indicação
familiares de IRC, se a proteinúria é mínima ou para biópsia renal.
182 ANTÓNIO JORGE CORREIA

Factos a reter na avaliação de uma criança os capilares glomerulares limitam a filtração de


com hematúria: macromoléculas pelo seu tamanho molecular e
• Confirmar a existência de hematúria ver- pela sua carga elétrica. As proteínas de maior peso
dadeira. molecular não aparecem (globulinas) ou aparecem
• Na avaliação da hematúria ter em con- em quantidades muito pequenas no filtrado glo-
sideração se é microscópica ou macros- merular, enquanto as de menor peso molecular
cópica, a história recente da criança, são parcialmente filtradas. A maior parte destas
sintomas associados e o exame físico. proteínas é reabsorvida no túbulo proximal.
• Uma investigação adequada é essencial A proteinúria intensa origina hipoproteiné-
para identificar a etiologia, em particular mia, diminuição da pressão oncótica vascular e
se a hematúria é macroscópica, sintomáti- perda de líquido do espaço intravascular para o
ca, associada a proteinúria, com alteração extravascular e manifesta‑se principalmente por
da função glomerular ou hipertensão. edema. O edema pode ser localizado ou gene-
• Avaliação clínica minuciosa (história clí- ralizado (anasarca). Os locais em que mais pre-
nica e um exame cuidadoso) para iden- cocemente surge o edema de causa renal são
tificar possíveis causas e investigação as pálpebras, membros inferiores e escroto nos
adequada. O tratamento depende da rapazes.
causa. As tiras reativas são um método qualitativo
• Identificar doentes que necessitam de de pesquisa de proteinúria, que determina a
orientação para a nefrologia pediátrica. concentração de albumina por reação colori-
métrica com tetrabromofenol, mudando de cor
34.2.2 Proteinúria amarela para diferentes intensidades de verde
que se comparam com uma escala. A sua relação
Proteinúria é a perda excessiva de proteínas aproximada é: vestígios (15 a 30 mg/dl), 1+ (30
na urina e pode indicar lesão renal ou ser apenas a 100 mg/dl), 2+ (100 a 300 mg/dl), 3+ (300 a
um achado laboratorial. A presença de proteinú- 1000 mg/dl) e 4 + (> 1000 mg/dl). As maiores
ria em crianças assintomáticas é frequente em vantagens das tiras reativas são a comodidade
pediatria. Pode ser transitória ou persistente. A de utilização e o resultado imediato, e os incon-
primeira é uma condição benigna que não re- venientes são não detetar proteínas de baixo
quer mais investigações e pode estar presente peso molecular (teste negativo nas proteinúrias
em situações como febre, atividade física intensa tubulares). Os falsos positivos acontecem em
e stresse, enquanto a segunda pode ser um sinal situações de urina alcalina, presença de antis-
importante e precoce de disfunção renal e indicia séticos (clorohexina, detergentes) e contrastes
risco de progressão da glomerulopatia. radiológicos iodados.A urina diluída pode ser
A perda urinária excessiva de proteínas causa de falsos negativos.
está relacionada com uma perturbação da sua A determinação quantitativa da protei-
filtração ou reabsorção. Em condições normais, núria com ácido sulfossalicílico é um método
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 183

colorimétrico com maior sensibilidade que as tiras doentes diabéticos, hipertensos e com redução
reativas (5 a 10 mg/dl) e que deteta todo o tipo da massa glomerular.
de proteínas. Tem falsos positivos: urina muito Existem quatro mecanismos para a excre-
concentrada, contrastes radiológicos e medica- ção excessiva de proteínas na urina: aumento
mentos (penicilinas, cefalosporinas, sulfamidas da filtração glomerular, inadequada reabsorção
e tolbutamida). Os falsos negativos são: urina tubular, por sobrecarga (overflow) e aumento da
muito diluída ou muito alcalina. Para pesquisar secreção tubular. Segundo a sua origem a protei-
proteinúria tubular ou microalbuminúria são ne- núria classifica-se em glomerular, tubular e por
cessários métodos específicos como técnicas de sobrecarga de filtração.
radioimunoanálise ou nefelometria. Designa-se a proteinúria de seletiva, se a
percentagem de albumina na urina é superior a
Proteinúria fisiológica: 85% do total da proteinúria. A proteinúria não
Considera-se fisiológica uma eliminação seletiva deve-se a lesões renais mais graves.
até 100 mg/m /dia ou <4 mg/m /hora. Quando
2 2

existe dificuldade em obter uma colheita de uri- Proteinúria transitória:


na de 12 ou 24 horas pode utilizar-se a relação É muito frequente variando a sua incidência
proteínas/creatinina numa amostra isolada de entre 5 e 15% das crianças. Pode surgir nos sín-
urina, de preferência a primeira urina da manhã, dromes febris, exercícios violentos, convulsões,
considerando-se valores normais: <0.2 (mg/mg) insuficiência cardíaca, de entre outros, mas pode
ou <20 (mg/mmol). ocorrer sem causa desencadeante aparente, não
se associa a edema e raramente é superior a 1000
Microalbuminúria: mg/dL. Isolada não tem significado patológico.
A eliminação normal de albumina é de 5 a
30 mg/dia/1.73 m2. A partir deste valor até 300 Proteinúria ortostática:
mg considera-se microalbuminúria patológica. Define-se como o aumento da excreção de
Acima deste valor define-se como albuminúria. proteínas na urina na posição ortostática, mas
A dificuldade na recolha de urina por períodos com excreção normal nas amostras recolhidas
de 8 a 24 horas, fez com que a determinação após repouso e decúbito. Surge em adolescentes
da relação microalbumina/creatinina (nas uni- com hiperlordose em ortostatismo prolongado e
dades de μg/mg), que se correlaciona bem com ocorre em 2 a 5% dos adolescentes (rara após
a determinação das perdas em 24 horas, seja os 30 anos). Não implica mau prognóstico a não
utilizado como método de rastreio. A microalbu- ser que se associe a hipertensão ou a alterações
minúria pode estar presente de forma transitória do sedimento urinário.
em situações de febre, exercício e insuficiência
cardíaca. Valores persistentemente elevados sig- Proteinúria persistente:
nificam lesão glomerular incipiente, pelo que a Pode ter origem glomerular (primária ou
determinação é muito importante no controlo de secundária), origem tubular ou de sobrecarga
184 ANTÓNIO JORGE CORREIA

de filtração (rara em pediatria). A principal cau- diurese, presença de edemas, hipertensão arterial,
sa de proteinúria glomerular grave ou nefrótica infeção estreptocócica recente ou história familiar
na criança é o síndrome nefrótico de lesões de doença renal sugerem uma doença renal subja-
glomerulares mínimas. Menos frequentes são cente com proteinúria persistente. Outros sinais ou
outras causas como: glomeruloesclerose seg- sintomas como febre, púrpura, exantemas, artrite,
mentar e focal, glomerulonefrite membranosa, dor abdominal são sugestivos de uma nefropatia
mesangial, pós‑estreptocócica, nefropatia a IgA, associada a uma doença sistémica.
e nefrite em contexto de infeção por vírus da A primeira atitude perante o achado de pro-
imunodeficiência humana (VIH) ou da hepatite B. teinúria numa tira reativa é repetir a análise de
Nos lactentes considerar como causa provável os urina. Muitas vezes o episódio de proteinúria é tran-
sindromes nefróticos congénitos tipo finlandês e sitório. Confirmada a proteinúria em duas análises
a esclerose mesangial. O lúpus eritematoso sisté- de urina, se a criança está assintomática, realizar
mico, a púrpura de Henoch-Shönlein, as vasculites teste da proteinúria ortostática. Consiste em dosear
e os quadros autoinflamatórios, podem ser causa a relação proteínas/creatinina na primeira urina
de proteinúria na criança. da manhã obtida em casa em decúbito, antes de
A biópsia renal em crianças com proteinúria se levantar (tendo esvaziado a bexiga ao deitar
isolada está indicada se a proteinúria for superior na noite anterior) e repetir o exame na amostra
a 500 mg/m /dia, excluída a proteinúria ortos-
2
de urina após umas horas em posição de pé. Um
tática ou quando surge hipertensão arterial ou valor normal na amostra de urina em decúbito e
alterações da função renal. alterado após horas em ortostatismo indica pro-
São causas de proteinúria tubular primária: teinúria ortostática, que requer controlo anual.
proteinúria tubular isolada, familiar ou esporá- Se a relação proteínas/creatinina urinária
dica, associada a hipercalciúria (sindrome de persiste alterada nas duas amostras de urina
Dent), sindrome de Fanconi primário. São causas considera-se a proteinúria persistente, que
de proteinúria tubular secundária: sindrome de requer uma avaliação rigorosa com o objetivo
Fanconi secundário, doença poliquística, doença de identificar a causa. Começar com o exame
mitocondrial, intoxicação por metais pesados, do sedimento urinário procurando sinais de le-
nefrite túbulo-intersticial, uropatias obstrutivas são glomerular ou do parênquima renal como a
e necrose tubular aguda. hematúria e a piúria. Quantificar a proteinúria
Na avaliação da criança com proteinúria de 24 horas, determinar a creatinina, ureia e iões
começar por realizar uma história clínica e exame séricos como exames complementares básicos. Só
físico orientados para determinar a etiologia. A depois, em função destes resultados, do quadro
proteinúria que surge durante um episódio febril, clínico e da evolução, se prossegue a investigação:
depois de exercício físico intenso, no contexto proteínas totais, proteinograma, imunoglobulinas,
de uma convulsão, situações de stresse ou cirur- complementos, teste de infeção estreptocócica,
gia recente é sugestiva de proteinúria transitó- anticorpos anti-nucleares (ANA), serologias de
ria. Alterações na cor da urina e do volume da hepatite B, C e VIH, assim como ecografia renal.
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 185

A decisão de realizar biópsia renal deverá ser do • Bacteriologia e anticorpos anti-estrepto-


nefrologista pediátrico. cócicos: pesquisa de Ags estreptocócicos
na orofaringe (teste rápido), doseamento
34.2.3 Síndrome nefrítico do título de antiestreptolisina O (TASO),
anti-DNAse B.
O síndrome nefrítico é um conjunto de ma- • Imunologia: estudo do complemento
nifestações clínicas causado por um início agudo (C3, C1q e C4), anticorpo anticitoplas-
de lesão e inflamação glomerular com diminuição ma neutrófilo (ANCA), anticorpos anti-
da filtração glomerular, retenção hidrossalina (hi- nucleares (ANA), anticorpos anti-dsDNA
pertensão arterial, edemas periféricos e nos casos e anti-membrana basal glomerular.
mais graves insuficiência cardíaca congestiva e • Função renal (creatinina e ureia elevadas
edema pulmonar), hematúria (microscópica ou na insuficiência renal aguda), ionograma
macroscópica) e insuficiência renal aguda (oligúria, (alterações hidro-eletrolíticas – hiperka-
elevação da ureia e creatinina em 25 a 30%). A liémia), cálcio e fósforo, gasimetria e
proteinúria é em regra discreta (< 1 g/L). proteínas plasmáticas.
A etiologia pós-infeciosa é a mais frequen- • Hematologia: hemograma com esfregaço
te, mas pode ser secundário a doenças primárias do sangue periférico.
glomerulares (como a nefropatia a IgA) ou doen- • Radiografia do tórax, ecografia renal e
ças sistémicas (como lúpus eritematoso sistémico, cardíaca.
púrpura de Henoch-Schönlein, poliarterite nodosa
e outras vasculites, síndromes como hemolítico- As causas mais comuns de síndrome nefrí-
-urémico e Goodpasture) e doenças renais como tico na idade pediátrica são a glomerulonefrite
a nefrite tubulo-intersticial e nefrite pós-radiação. aguda pós-infeciosa, a nefropatia a IgA e nefrite
Na criança, o síndrome nefrítico agudo apre- da púrpura de Henoch‑Schönlein (PHS).
senta-se com hematúria, edemas ou hipertensão,
mas formas de apresentação sub-clínica são co- Factos a reter nas características
muns. Raramente, surge como glomerulonefrite clínicas de uma criança
rapidamente progressiva. com síndrome nefrítico agudo
não sugestivos de glomerulonefrite
Factos a reter na avaliação inicial na criança aguda pós-estreptocócica:
com sindrome nefrítico agudo: • História familiar de doença glomerular.
• Análise de urina: para confirmar hema- • Idade da criança (< 4 anos ou > 15 anos).
túria de origem glomerular (eritrócitos • História prévia de sintomas similares.
dismórficos no sedimento), cilindros • Evidência de doença extra-renal.
eritrócitarios e quantificar proteinúria • Evidência de doença aguda ou crónica
(relação proteínas/creatinina urinária na não estreptocócica.
primeira urina da manhã). • Evidência de doença crónica renal.
186 ANTÓNIO JORGE CORREIA

34.2.3.1 Glomerulonefrite antigénico vai ativar mecanismos imunes (ativação


aguda pós-infeciosa de células imunocompetentes e produção de anti-
A glomerulonefrite aguda é uma doença corpos pelos linfócitos B), formação de imunocom-
renal com inflamação do glomérulo, secundária plexos, ativação do complemento (podem estar
a um mecanismo imunológico. A maioria dos epi- envolvidos elementos da cascata do complemento
sódios de glomerulonefrite aguda está associada e sistemas complementares de regulação), surgin-
a um estado pós-infeccioso. do a infiltração de leucócitos e a proliferação de
A etiologia da glomerulonefrite aguda células glomerulares e finalmente libertação de
pós-infecciosa (GNAPI) é múltipla: bacteriana mediadores. São sobretudo complexos circulantes
(Streptococcus beta-hemolítico do grupo A - de antigénio e anticorpo que ficam retidos no
EBHGA, Staphylococcus, Streptococcus pneu- filtro glomerular, dado o seu elevado peso mo-
moniae...), vírica (Epstein-Barr, vírus da hepatite lecular e dimensões. Daqui, resulta a ativação do
B, influenzae, coxsackie B, herpes...), ricketsias, complemento e, localmente, uma reação de tipo
fungos e parasitas (schistosoma, plasmodium, to- inflamatório com infiltração leuco­citária, lesão
xoplasma...). A etiologia vírica tem aumentado de do endotélio capilar com aderência plaquetária,
frequência. O EBHGA é o agente mais implicado deposição de fibrina e des­truição tecidular. Este
sendo responsável pela forma clássica de glome- mecanismo parece ser responsável pela maioria
rulonefrite aguda pós‑estreptocócica. das glomerulone­frites pós-infeciosas.
A incidência da GNAPI é desconhecida, por- A gravidade e a progressão para lesão cróni-
que numa percentagem elevada a doença é ligeira ca dependem da duração e quantidade da expo-
ou assintomática (estima-se que a relação entre sição ao antigénio e da capacidade do hospedeiro
pacientes assintomáticos e sintomáticos seja de para remover os imunocomplexos depositados.
2:1 a 3:1). Se a localização dos imunocomplexos circu-
A prevalência da GNAPI relaciona-se estrei- lantes ocorrer no mesângio vai originar uma pro-
tamente com as condições sociais e económicas teinúria ligeira e hematúria; se for na membrana
das sociedades. Nos países industrializados, pela basal glomerular, origina proteinúria maciça. As
melhoria das condições de vida e, provavelmente, alterações estruturais renais vão desde a prolife-
por fatores relacionados com a prevalência e viru- ração celular (endotelial, mesangial e epitelial),
lência dos próprios agentes infeciosos, assistiu-se depósitos de imunocomplexos no lado endotelial
nas últimas duas a três décadas a um declínio ou epitelial da membrana basal, intramembrano-
aparente da doença, mas pode estar a haver um sos ou no mesângio até hialinização ou esclerose
discreto aumento nos últimos anos dos casos de (lesão irreversível).
GNAPI em idade pediátrica. O diagnóstico diferencial faz-se entre situa-
Existem hoje provas convincentes que nos ções que cursam com hematúria e nefrite: glome-
permitem afirmar que as lesões glomeru­lares exis- rulonefrite membranoproliferativa (suspeita se os
tentes na glomerulonefrite aguda são motivadas níveis de C3 forem persistentemente baixos após
por um mecanismo imunológico. Um estímulo seis semanas de evolução); nefrite da PHS (valor
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 187

de C3 e C4 normais; rash purpúrico característico); proteínas catiónicas e estreptoquinase. A cascata


nefropatia de IgA (suspeita se episódios recorren- inflamatória que provoca lesão renal pode ser
tes de hematúria macroscópica associados a infe- desencadeada por: 1) ativação do plasminogéneo
ção respiratória); outras situações menos comuns em plasmina, pela estreptoquinase ou proteínas
(como a nefrite lúpica, recorrência e/ou recaída de estreptocócicas similares; 2) deposição nos glo-
glomerulonefrite crónica, de entre outras). mérulos de imunocomplexo antigénio/anticorpo
pré-formados; ou por 3) ligação de anticorpos
34.2.3.1.1 Glomerulonefrite pré‑formados contra estreptococos a proteínas
aguda pós-estreptocócica renais estruturalmente homólogas.
Vamos focar algumas particularidades da Vai haver uma reação cruzada entre compo-
glomerulonefrite mais frequente na criança, a nentes glomerulares e antigénios estreptocócicos,
glomerulonefrite aguda pós-estreptocócica a formação de anticorpos contra laminina, cola-
(GNAPE). Esta forma de glomerulonefrite surge génio, elementos do mesângio, membrana basal
sobretudo dos três aos 14 anos, com um pico glomerular, com formação de imunocomplexos
de incidência entre os cinco e os oito anos e circulantes e in situ e ativação do complemento.
abaixo dos dois anos é inferior a 5% dos casos. As infeções faríngeas são mais frequentes
A incidência é superior no sexo masculino (2:1). no inverno e primavera e as infeções cutâneas no
Os sintomas clínicos surgem habitualmente verão e outono. Somente 10 a 15% dos doentes
8 a 21 dias (mais frequente 10 a 14 dias) infetados com estirpes nefritogénicas do EBHGA
após infeção estreptocócica das vias respira- desenvolvem GNAPE, sugerindo que fatores do
tórias superiores (amigdalite) ou 3 a 6 semanas hospedeiro podem ser importantes. O risco de
após uma infeção da pele (impétigo). Aqui, o nefrite varia com o serotipo do estreptococo.
intervalo é mais difícil de determinar. Este período A ocorrência simultânea de febre reumática e
de latência, antes do aparecimento dos sintomas glomerulonefrite aguda, embora descrita, é ex-
de doença renal, é mais uma prova da presença tremamente rara.
de um mecanismo imunológico.
Surge habitualmente como doença esporá- Formas de apresentação da GNAPE:
dica, mas pode ocorrer em epidemias (sobretudo
nos países subdesenvolvidos). Os casos epidé- Síndrome nefrítico agudo:
micos têm melhor prognóstico do que a doença A hematúria glomerular está presente em
esporádica. 100% dos casos (em cerca de 1/3 é macroscópica,
O início do processo de nefrite ocorre quan- e resolve-se em dias). A hematúria microcópica
do o hospedeiro susceptível desenvolve anticorpos pode persistir um ano ou mais e agravar-se com
contra os antigénios nefritogénicos, as proteínas infeções respiratórias ou exercício. Os edemas
M de alguns EBHGA (piodermites M 47, 49, 55, estão presentes em 90% e a hipertensão em 60
57 e infeção faríngea M 1, 2, 4 e 12), endoestrep- a 80% dos doentes. A oligúria (50%) associa-se a
tosina, o recetor da plasmina associado a nefrite, um grau variável de insuficiência renal aguda (25 a
188 ANTÓNIO JORGE CORREIA

30%). A proteinúria geralmente é inferior a 1g/L. Dado que dois sinais clinicos (hipertensão
Complicações raras como urémia (necessidade de e oligúria) vão condicionar todas as medidas
diálise <5%), insuficiência cardíaca congestiva terapêuti­cas, é absolutamente necessário, numa
(<5%) e encefalopatia hipertensiva (excecional) criança com suspeita glomerulonefrite aguda, sa-
estão igualmente descritas. ber se eles estão presentes ou não.
A determinação da tensão arterial só pode
Sub-clínica (~50%): ser bem efetuada numa criança se a braçadeira
Hematúria microscópica associada a redu- cobrir cerca de 2/3 do braço. De contrário, os
ção de C3. A tensão arterial pode ser normal valores encontrados são fal­sos; é pois necessário
ou elevada. Nos surtos epidémicos é a forma de dispor de braçadeira com medidas (5 e 12 cm)
apresentação mais frequente. adequadas às dimensões do doente.
A forma mais fiel e mais prática de saber
Síndrome nefrótico (<4%): da existência de uma diminuição importante da
Proteinúria intensa é pouco frequente em diurese é a determinação do peso da criança
idade pediátrica, sendo uma apresentação mais em dias seguidos e até duas vezes por dia.
frequente em adultos. Perante um doente com uma sintomatologia
sugestiva de glomerulonefrite aguda, a investiga-
GMN rapidamente progressiva (<2%): ção inicial deve incluir análise sumária de urina,
Azotémia progressiva e oligúria. Biópsia renal pesquisa de focos de infeção estreptocócica, estu-
com proliferação extracapilar, com crescentes na do do complemento e avaliação da função renal.
microscopia ótica. A análise de urina com sedimento urinário
indica-nos em todos os casos a presença de he-
Nas formas mais graves de glomerulone- matúria e, frequentemente, cilindrúria eritrocitária
frite aguda, a retenção de água e de eletrólitos e proteinúria. A pesquisa da proteinúria (relação
pode originar insuficiência cardíaca, hiperkalié- Prot/Creat, na primeira urina da manhã) é positiva
mia, acidose, hiperfosfatémia e hipocalcémia. em cerca de 97% dos casos. Durante a fase aguda
A retenção de água e de eletrólitos, por um da doença, a urémia está aumentada (superior a
lado, e de produtos azotados por outro, podem 6 mmol/L) em cerca de 90% dos doentes. Com
motivar hiper­tensão e, na ausência de trata- estes três exames, com a clínica e com a noção
mento, o estado mais temido: a encefalopatia exata da tensão arterial e das variações do peso
hipertensiva com convulsões, edema cerebral, da criança que refletem a diurese, consegue-se
coma e morte. na maioria dos casos fazer o diagnóstico e tratar
Na grande maioria dos casos a evolução dos adequadamente.
doentes é bem mais moderada, o que não justifica Dois outros exames são importantes (so-
banalizarmos os casos de glomerulonefrite aguda. bretudo no diagnóstico diferencial com o sín-
Todos necessitam de vigilância clínica regular, não drome nefrótico): 1) Doseamento da globu-
só durante a fase aguda, como depois. lina beta-1-C ou terceiro componente do
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 189

complemento (C3) que se encontrará baixo A realização de biópsia renal está reservada
durante a fase aguda da glomerulonefrite agu- para os casos cuja apresentação clínica, investiga-
da pós-estrep­tocócica. O resultado é normal no ção laboratorial ou evolução seja atípica.
síndrome nefrótico idiopático. No estudo do
complemento (C3, C4, CH50), o valor de C3 Tratamento:
está diminuído em mais de 90% dos casos nas O tratamento na fase aguda influencia con-
duas primeiras semanas de doença e o C4 está sideravelmente a morbilidade e mortalidade pre-
quase sempre normal (baixa inicial discreta e coce da doença. Deve incluir medidas de suporte
transitória). 2) Doseamento das proteínas séricas (tratamento da infeção estreptocócica, repouso,
e em particular da albuminémia que, na grande restrição de líquidos e sal) e outras dirigidas a
maioria dos casos de glomerulone­frite aguda potenciais complicações como a hipertensão ar-
(cerca de 93%) estará normal (acima de 35 g/L), terial com dieta sem adição de sal, diuréticos de
enquanto se verificará uma hipoalbuminémia no ansa (furosemida), bloqueadores dos canais de
síndrome nefrótico. cálcio (nifedipina).
A pesquisa de infeção estreptocócica é Na glomerulonefrite rapidamente progressi-
efetuada através do doseamento do TASO, anti- va está indicada corticoterapia (iniciar com “pul-
-DNAse B e cultura do exsudato faringeo ou da sos” de metilprednisona) e imunossupressores.
pele; a elevação dos títulos de anticorpos contra As resinas permutadoras de iões estão in-
antigénios estreptocócicos, em duas determina- dicadas na hiperkaliémia isolada. Se houver as-
ções com 2 a 3 semanas de intervalo, é mais fide- sociação de urémia progressiva e/ou congestão
digna para o diagnóstico do que um TASO isolado circulatória ou persistência de hiperkaliémia, está
≥ 250 U. Dos anticorpos anti-estreptococos: o indicada diálise.
TASO eleva-se na primeira semana (máximo 2 a A maioria dos casos de glomerulonefrite
4 semanas) e normaliza em 6 a 12 meses. Nas aguda apresenta uma evolução benigna. Nestes
infeções cutâneas eleva-se apenas o anti-DNAse casos, a atitude mais importante é avaliar cuida-
B (eleva-se de forma mais rápida). dosamente a clínica. Se a criança não apresentar
As alterações da função renal (creatinina, uma sintomatologia intensa e se, sobretudo, não
ureia), de eletrólitos (hiperkaliémia), cálcio e fós- hou­ver hipertensão nem oligúria, após a con-
foro, gasimetria correlacionam-se diretamente firmação laboratorial do diagnóstico poderá ser
com a gravidade da lesão renal. A sobrecarga seguida ambulatoriamente. Para eliminar pos-
hidrossalina pode ser desproporcionada ao nível síveis focos de infeção estreptocócica, deverá
de insuficiência renal aguda (IRA). O hemograma, administrar-se amoxicilina (50 mg/kg/dia dividida
proteínas plasmáticas e perfil lipídico devem em três tomas) durante 10 dias ou penicilina
também fazer parte da investigação. Ecografia benzatínica G intramuscular dose única 600
renal, radiografia do torax e ecografia cardíaca 000 U antes dos cinco anos; e 1 200 000 após os
devem fazer parte da investigação das formas de cinco anos. A criança deve permanecer em casa
apresentação mais graves. durante a fase aguda, com dieta sem adição de
190 ANTÓNIO JORGE CORREIA

sal, reduzindo a atividade mas não é necessário executados dois exames: proteinúria e sedimen-
um repouso estrito. O peso deverá ser avaliado to urinário. Uma hematúria microscópica pode
semanalmente, bem como a tensão arterial, o persistir durante anos sem que isso implique um
que implica um controlo clínico. prognóstico mais reservado ou qualquer forma
de tratamento.
Quando internar na glomerulonefrite A persistência de hematúria macroscópica
aguda pós-estreptocócica: mais de três semanas, de hipertensão ou de pro-
Está indicada hospitalização sempre que a teinúria significativa para além de seis meses, deve
criança apresentar: hipertensão arterial, oligú- fazer suspeitar uma evolução menos fa­vorável.
ria, sinais clínicos graves (edema generalizado, A criança deverá ser enviada a uma consulta de
creatinina sérica elevada, alterações eletrolíticas, nefrologia pediátrica afim de proceder ao exa-
convulsões, alterações do ritmo cardíaco) ou qual- me mais detalhado da função renal e eventual
quer outro sinal que indique tratar-se de uma biópsia renal.
forma não benigna. A mortalidade na fase aguda Segundos episódios de GNAPE são raros.
é excecional e o prognóstico é favorável para a Isto pode dever-se à persistência de anticorpos
maioria das crianças. para os antigénios estreptocócicos associados
a nefrite.
Evolução:
A resolução das manifestações clínicas, em Prognóstico:
geral, é rápida. O edema resolve em cinco a dez O prognóstico na fase aguda é excelente,
dias e a tensão arterial normaliza habitualmente com evolução favorável e completa resolução em
após duas a três semanas. A hematúria macros- 95% casos. Cerca de 4% curam com um ligeiro
cópica desaparece em uma a três semanas e a défice da função renal. A mortalidade na fase
microscópica após 12 meses; a proteinúria nos aguda é muito rara (pode ocorrer por hiperka-
primeiros dois a três meses. O valor de C3 nor- liémia, edema do pulmão…). Estudos de segui-
maliza após oito a dez semanas. mento longos (10 a 20 anos), revelam a presença
As principais complicações com influência na de alterações urinárias (proteinúria e hematúria
mortalidade são: IRA com necessidade de diálise microscópica) em 5 a 20%. Considerar a possi-
(<5%); insuficiência cardíaca, edema agudo do bilidade de doença renal crónica (<1%) sempre
pulmão (raro) e encefalopatia hipertensiva (ex- que a hematúria e proteinúria persistam mais de
cecional). um ano.
Uma vez passada a fase aguda (desapare-
cimento dos sintomas clínicos, normalização da 34.2.4 Nefropatia IgA
ureia plasmática e do C3) o doente deverá con-
sultar regularmente, por exemplo uma vez por A nefropatia a IgA teve a primeira descri-
mês durante os primeiros três meses, e a seguir ção em 1968 (Berger). Pode surgir em qualquer
cada seis meses. Nestas consultas deverão ser idade, mas é mais comum na segunda e terceira
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 191

décadas de vida, sendo rara abaixo dos três anos. nefropatia a IgA existe elevação sérica da IgA, su-
Tem predomínio no sexo masculino (65%) e é gerindo o diagnóstico. No entanto, esta elevação
mais frequente na raça caucasiana. A forma de sérica da IgA não é suficiente para o diagnóstico,
apresentação clínica mais frequente é o apa- que deve ser feito com biópsia renal. Como a
recimento de hematúria macroscópica, muitas apresentação clínica não permite o diagnóstico
vezes precepitada por uma infeção respiratória é importante dosear o C3, TASO e anticorpos
alta. O intervalo entre a infeção precipitante e anti-nucleares para excluir outras causas.
o início da hematúria macroscópica é de um a A semelhança histológica entre a nefropatia
dois dias, em contraste com o intervalo médio de IgA e a nefrite da PHS sugere uma relação
de duas semanas entre a infeção estreptocócica patogénica estreita entre estas duas entidades.
e o início da GNAPE. Na apresentação clínica, O prognóstico da nefropatia de IgA na crian-
além da hematúria macroscópica, pode surgir ça é melhor do que nos adultos.
como: hematúria microscópica assintomática e
proteinúria; sindrome nefrítico agudo; síndrome Factos a reter na Nefropatia de IgA:
nefrótico (<10%); síndrome nefrótico-nefrítico • Em regra apresenta-se com hematúria
e mais raramente glomerulonefrite rapidamente macroscópica um a dois dias após uma
progressiva com crescentes (>50% dos gloméru- infeção respiratória alta.
los) e insuficiência renal aguda (necrose tubular • A maioria das crianças afetada tem he-
com cilindros hemáticos intratubulares e gloméru- matúria microscópica persistente.
los pouco alterados). • O prognóstico é melhor do que nos adul-
A patogenia é desconhecida, mas está de- tos. As crianças mais jovens e as que não
monstrado que os depósitos de IgA no mesângio apresentam hematúria macroscópica têm
pertencem à subclasse IgA1. A IgA1 é anómala melhor prognóstico a longo prazo.
(defeito de glicosilação), induz formação de auto-
-anticorpos e imunocomplexos circulantes com 34.2.5 Síndrome nefrótico
deposição no mesângio (proliferação celular, liber- O síndrome nefrótico (SN) é a manifesta-
tação de mediadores inflamatórios, complemen- ção clínica de alterações bioquímicas produzidas
tos). A lesão anatomo-patológica mais frequente por lesão glomerular que tem como ponto funda-
é a glomerulonefrite proliferativa mesangial (hi- mental a alteração da permeabilidade da parede
percelularidade mesangial e aumento da matriz capilar glomerular, dando origem a uma proteinú-
mesangial), mas as lesões podem variar de lesões ria intensa com hipoalbuminémia. As manifesta-
mínimas a proliferação endocapilar/extracapilar ções clínicas são devidas a esta hipoalbuminémia.
generalizada. O SN idiopático é aquele que não é se-
O diagnóstico de nefropatia a IgA só pode cundário a nenhuma doença causal, sendo
ser feito, com certeza, demonstrando os depósitos ele a única manifestação de doença, devendo
granulares de IgA predominantes no mesângio excluir-se deste o SN iniciado no primeiro ano
glomerular. Em menos de 20% das crianças com de vida, cujas características etiopatogénicas e
192 ANTÓNIO JORGE CORREIA

evolução clínica são diferentes e lhe conferem uma e ao modo de resposta ao tratamento. Por outro
entidade especial. A importância desta diferença lado, a administração de corticoides de uma forma
tem implicação no tratamento a realizar no SN prolongada implica riscos: baixa estatura, altera-
secundário e no SN no primeiro ano de vida. ções da face, acne, osteoporose, estrias cutâneas,
suscetibilidade às infeções.
Definição:
O SN é caracterizado por hipoalbuminé- Factos a reter no síndrome
mia, proteinúria maciça e edema. A hiperco- nefrótico idiopático:
lesterolémia que acompanha habitualmente o SN, • Mais comum no sexo masculino,
não é constante. O SN idiopático define-se como nos árabes e indianos.
uma doença glomerular primária com proteinúria> • Pico de incidência entre os dois
40 mg/m /hora, albuminémia <2,5 g/dL e edema
2
e os cinco anos.
generalizado. A sua incidência é 17,5 a 20 novos • A lesão histológica mais comum
casos por ano e por milhão de crianças entre os é a doença de lesões mínimas.
0 e os 14 anos de idade. • Evidências indiretas implicam, na sua
O SN idiopático atinge, em regra, crianças etiologia, componentes genéticos.
de um a seis anos, iniciando-se por edema,
progressivamente mais intenso, acompanhados Fisiopatologia do síndrome sefrótico:
de oligúria e aumento excessivo de peso. Não Na sequência dum processo imunológico
há hematúria macroscópia e a tensão arterial é cuja natureza não é ainda perfeitamente conheci-
normal. Há proteinúria maciça e hipoalbuminémia. da, origina-se uma lesão da membrana glomerular
A hipercolesterolémia e hipertrigliceridémia são aumentando-lhe a permeabilidade. Este aumento
frequentes. de permeabilidade origina uma perda de proteí-
Antes do emprego dos antibióticos, o SN nas na urina. Esta albuminúria maciça e repetida
idiopático (que constitui 85% dos casos em durante alguns dias leva a uma hipoalbuminémia
Pediatria) era uma doença grave com uma taxa e, secundariamente, a uma diminuição da pressão
de mortalidade de cerca de 67%. Estas crianças oncótica e a uma diminuição do volume plasmá-
morriam, na maior parte das vezes de infeção (por tico circulante. Daqui resultam três fenómenos:
exemplo peri­tonite pneumocócica). Curiosamente,
já nesta época, 33% destas crianças entravam 1. Como resultado duma hipovolémia, há
espontanemante em re­missão após o primeiro diminuição da filtração glomerular, por-
episódio. A utilização dos corticoides reduziu a tanto uma insuficiência renal pré-renal
mortalidade a cerca de 5%. mais ou menos grave.
Apesar dos resultados obtidos com os 2. A própria hipovolémia (contração do volu-
corticoides, ainda subsistem muitos pontos de me extracelular) tem uma ação direta no
interrogação no que se refere aos mecanismos tubo proximal aumentando a reabsorção
imunológicos que estão na base do SN idiopático do sódio.
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 193

3. A hipovolémia contribui para uma secre- totais, albumina e globulinas, colesterol,


ção exagerada de aldosterona, o que triglicerídeos, complementos (C3 e C4)
favorece a reabsorção de sódio ao nível e IgG. Hemograma.
do rim. Este triplo mecanismo con­tribui
para a formação de edema. Se o doente Definições referentes à resposta ao
não for tratado, ao edema segue-se a for­ tratamento corticoide:
mação de ascite e acumulação de líquido 1. Remissão: quando sem proteinúria
na pleura e no pericárdio - anasarca. (< 4 mg/m 2 /hora ou índice proteína /
creatinina urinária < 20) ou tira reativa
O metabolismo dos lípidos também se en- negativa / indícios durante cinco dias
contra alterado no síndrome nefrótico, em­bora a consecutivos.
exata natureza desta alteração não esteja ainda - Remissão parcial: normaliza a albumi-
completamente esclarecida. némia (> 3g/L) e persiste proteinúria
não nefrótica (4 a 40 mg/m2 /hora).
Factos a reter na hipovolémia no síndrome - Remissão total: sem proteinúria e albu-
nefrótico idiopático: minémia normal.
• A criança com síndrome nefrótico está 2. Recaída (ou recidiva): proteinúria
em risco significativo de hipovolémia. significativa (tira reativa> ++) durante
• Dor abdominal na criança com SN é um três dias consecutivos ou se apresenta
sintoma de hipovolémia ou peritonite. edemas.
• A avaliação clínica pode ser difícil. Sinais
importantes de hipovolémia significativa A resposta ao tratamento com corticoides,
incluem extremidades frias, atraso da ve- diferencia os seguintes tipos de SN:
locidade de reperfusão capilar e redução - Corticossensíveis (CS): quando a respos-
da pressão venosa jugular. ta à prednisona, administrada segundo
um protocolo, tem remissão completa do
Factos a reter na investigação laboratorial síndrome clínico e bioquímico. Segundo
do síndrome nefrótico idiopático: a evolução classificam-se:
• Na urina: análise de urina e sedimento uri-
nário. Quantificar a proteinúria (relação Sem recaídas:
proteínas/creatinina urinária na primeira Sem recidivas após tratamento do episódio
urina da manhã). Colheita de urina de 12 inicial (cerca de 25%).
ou 24 horas para quantificar proteinúria.
Sódio urinário quando se suspeita de hi- Recaídas pouco frequentes:
povolémia. <2 recaídas nos 6 meses que seguem o pri-
• No plasma: ureia, creatinina, ionogra- meiro tratamento ou <4 recaídas durante
ma, cálcio e fósforo, albumina, proteínas um período de 12 meses.
194 ANTÓNIO JORGE CORREIA

Recaídas múltiplas: • C3 ou C4 baixos.


Duas ou mais recaídas durante um período • Sem resposta ao tratamento inicial com
de 6 meses que segue o primeiro tratamento prednisona.
ou 4 ou mais recaídas durante um período
de 12 meses. A biópsia renal está indicada também: no
SN secundário a doença sistémica ou infeciosa,
- Corticodependentes (CD): apresentar 2 tratamento prolongado com anticalcineurínicos
recaídas consecutivas ao reduzir a pred- (Tacrolimus, Ciclosporina) e na evolução de cor-
nisona ou quando suspende o tratamen- ticossensíveis ou corticodependentes para corti-
to aparecer uma recaída nas 2 semanas corresistentes.
seguintes.
- Corticorresistentes (CR): resistência aos As lesões primárias glomerulares podem
corticoides (persiste o SN): ausência de classificar-se do seguinte modo:
remissão após 8 semanas de tratamento
ou 4 semanas mais “pulsos” de metil- 1. Lesões mínimas: os glomérulos são
prednisona. praticamente normais, assim como o
parênquima renal. No SN da criança
Biópsia renal: (idiopático) constituem cerca de 75%
Entre os métodos de diagnóstico enunciados, das imagens observadas no micros-
a biópsia renal é aquele que fornece melhores cópio ótico (Estudo Internacional de
indicações, embora não absolutas, quanto ao Doenças Renais na Criança – ISKDC-
prognóstico. Não existe unanimidade nas indica- encontrou lesões mínimas em 76%).
ções para biópsia renal. Na criança, o consenso é Esta taxa de lesões mínimas diminui a
não realizar biópsia renal antes do tratamento com partir dos oito anos e sobretudo du-
corticoides, já que a maioria são corticossensíveis rante a adolescência. As crianças com
(admitindo-se corresponder a lesões mínimas). lesões mínimas respondem, em geral,
A biópsia renal está indicada em determinadas favoravelmente aos corticoides (85%
situações: após três semanas de tratamento e
91% após cinco semanas de tratamen-
• Idade <12 meses (síndrome nefrótico con- to). Na microscopia eletrónica, há alte-
génito e infantil). rações ultraestruturais nos podócitos.
• Idade> 16 anos (caraterísticas de síndrome Por definição, nas lesões mínimas não
nefrótico do adulto). há alterações na microscopia ótica. Pode
• Hipertensão presente. haver em algumas biópsias hipercelula-
• Hematúria persistente ou macroscópica. ridade e espessamento da matriz me-
• Compromisso da função renal que não sangial (glomerulonefrite proliferativa
responde à correção da hipovolémia. mesangial) e na imunofluorescência
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 195

depósitos de IgM, IgG e C3 (raros de Tratamento do síndrome nefrótico:


IgA). Os depósitos mais frequentes são 1. Tratamento com corticoides: o corticoide a
os de IgM, objeto de discussão, quan- empregar será a prednisona ou predniso-
to ao valor prognóstico e resposta ao lona. Inicialmente, administram-se 60mg/
tratamento. m2 /dia durante 4 a 6 semanas. Este trata-
2. Glomerulosclerose focal e segmentar: as mento diário é, em geral, seguido duma
lesões atingem apenas al­guns glomérulos remissão ao fim de uma a duas semanas.
e apenas um segmento de cada gloméru- A dose diária de prednisona pode ser re-
lo. Constituídas por proliferação celular e partida dando 2/3 de manhã e 1/3 à noite.
esclerose associada, estas lesões apare- Após este tratamento diário, no caso de
cem em cerca de 10% dos casos (aumen- remissão, o tratamento é continuado da
to da percentagem na adolescência). Em seguinte forma: 40mg/m2 /dias alterna-
regra resistente ao tratamento corticoide dos (em toma única), até perfazer 4 a
e evolução para insuficiência renal. 6 semanas. Segue-se, redução progres-
3. GN membrano-proliferativa (rara abaixo siva em 6 a 12 semanas, até suspender
dos 8 anos, 11% na adolescência). a terapêutica, se a criança se mantiver
4. GN membranosa (rara). em remissão, o que acontece na grande
O prognóstico das for­mas 2 e 3 maioria dos casos.
é particularnente reservado. 2. Fase aguda: se a criança se apresenta com
hipovolémia grave, colapso ou ascite, de
Prognóstico do síndrome nefrótico tal forma importante que interfira com a
idiopático na criança: mobilização do diafragma e com a venti-
Cerca de 80% responde habitualmente com lação pulmonar, o tratamento consistirá
uma remissão ao tratamento com corticoides e num expansor do plasma, por exemplo,
20% são desde logo resistentes. Dos 80% de albumina humana na dose máxima de 1g/
casos que respondem favoravelmente, 20% evo- kg (5ml/kg de solução a 20%) em perfu-
luirão para a cura, 30% farão recaídas raras e são endovenosa durante cerca de 2 horas.
30% farão recaídas frequentes. O grupo com No meio da perfusão, administrar um
mais problemas será constituído pelos resistentes diurético de ansa, furosemida (LasixR). A
aos corticoides, corticodependentes e pelos que finalidade deste tratamento será diminuir a
apresentarão re­caídas frequentes. ascite e melhorar temporariamente a pro-
Nestes dois últimos grupos (em particular teinémia e, consequentemente, a volémia.
nos corticodependentes que necessitam de doses
elevadas de corticoides para estar em remissão), Factos a reter na avaliação e tratamento da
têm algum risco, na evolução, de poder tornar-se, hipovolémia no síndrome nefrótico:
mais tarde, resistentes o que agravará o prog- • A criança com síndrome nefrótico requer
nóstico final. uma avaliação cuidadosa e repetida do seu
196 ANTÓNIO JORGE CORREIA

estado circulatório; se diagnosticada hipo- cistite hemor­rágica, neutropenia, suscep-


volémia deve ser prontamente tratada. tibilidade a infeções e, sobretudo, esteri-
• A administração de albumina não deve lidade definitiva) levam que se reconside-
ser feita por rotina a todas as crianças em re a sua indicação nestas circunstâncias,
recidiva e pode ser perigosa na criança face ao uso prolongado de corticoterapia
com síndrome nefrótico sem hipovolémia. (Prednisona ou Deflazacorte) em baixa
dose em dias alternados.
Deve ser ensinado aos pais da criança a for-
ma de executar diariamente a determinação quali- Se o SN persiste corticodependente e há
tativa da proteinúria com Albustix ou Combur na
R R
sinais evidentes de efeitos secundários dos cor-
primeira micção da manhã. Além disso, a criança ticoides, ponderar, após prévia biópsia renal,
deve ser pesada semanalmente e controlada em tratamento com imunossupressores como mico-
consulta ex ­terna. fenolato de mofetil, ciclosporina ou tacrolimus.
Resultados obtidos com método semi- Nos casos corticorresistentes, a biópsia renal
-quantitativo (Albustix ou Combur ):i) ausência
R R
é importante para defenir o prognóstico e para
de proteinúria - Albustix negativo ou vestígios;
R
a orientação do tratamento, mas o prognóstico
ii)proteinúria significativa - Albustix entre 2 e
R
é reservado.
4+; iii) se Albustix a 1+, este resultado não é
R

interpretável e deve ser repetido. 4. Antibióticos: dado que muitas infeções


podem precipitar uma recaída, deve-se
No caso de recaída, a criança seguirá um tratar energicamente toda a intercor-
esquema semelhante com as mesmas doses de rência com o antibiótico indicado. Não
prednisona oral com uma única diferença: o tra- está provada a eficácia da antibioterapia
tamento diário não será mantido durante seis profilática.
semanas, mas só até que se obtenham três dias 5. Conselhos particulares: O repouso é acon-
seguidos sem al­buminúria. selhado na fase aguda com anasarca e
dificuldade respiratória. A restrição de
3. Tratamento dos casos corticodependentes sódio está indicada enquanto persistir o
ou com recidivas frequentes: nestes casos, edema e proteinúria significativa.
quando há efeitos secundários dos cor-
ticoides para manter o SN em remissão, Factos a reter:
podem utilizar-se com algum êxito certas • O SN é um quadro clínico que consiste
drogas imunosupressoras, nomeadamen- em proteinúria, +++ na tira-fita urinária
te a ciclofosfamida (EndoxanR). Se bem (> 40mg/m2/hora), hipoalbuminémia <2,5
que eficazes, em especial nos casos com g/dL e edema, com ou sem hipercoles-
recidivas frequentes, a frequência e gra- terolémia. Na criança, o quadro clássico
vidade dos efeitos secundários (alopécia, típico do SN é o de lesões mínimas.
CAPÍTULO 34. HEMATÚRIA E PROTEINÚRIA 197

• Porque a maioria das crianças com SN de


lesões mínimas responde ao tratamento
com corticoides, o tratamento empírico
das crianças com características clínicas
clássicas de lesões mínimas é iniciado sem
realizar uma biópsia renal.

Leitura complementar
Avner ED, Ed. Pediatric Nephrology. 6th Ed. Springer - Verlag
Heidelberg; 2009.
Capítulo 35.
Cefaleias

35
Mónica Vasconcelos
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_35
CAPÍTULO 35. CEFALEIAS 201

35.1 CONTEXTO faz-se através do nervo trigémio, enquanto que


a transmissão a partir dos vasos infrantentoriais
A cefaleia é uma das queixas mais frequentes faz-se através dos três primeiros nervos cervicais.
na população em geral e, em particular, na idade O parênquima cerebral, seu epêndima e as me-
pediátrica. É um sintoma pouco comum antes ninges (com exceção da dura) não têm recetores
dos quatro anos e a sua incidência relaciona-se para a dor.
de uma forma positiva com o aumento da idade, As estruturas extra-cranianas que provocam
estimando-se que atinja 15 a 45 % das crianças dor são a pele, o tecido subcutâneo, os músculos e
no período pré-escolar e escolar, valor este que as artérias do couro cabeludo. Os ossos do crânio
ascende a 50 a 80 % na adolescência. são insensíveis mas o periósteo, especialmente
A correta caraterização da cefaleia nos mais nos seios e junto aos dentes, é doloroso quando
novos é muitas vezes difícil tendo em conta os inflamado. Os músculos que estão ligados ao crâ-
aspetos maturacionais neurobiológicos e psicoló- nio provocam dor provavelmente por contração
gicos envolvidos e também porque a criança tem prolongada, nomeadamente os extensores do
dificuldade em expressar as queixas álgicas e a pescoço, o masseter e os músculos frontais e
sua intensidade, em descrever detalhadamente os temporais.
sintomas e em reconhecer as manifestações asso- A dor das raízes cervicais e dos nervos cra-
ciadas. A criança apenas vai conseguir descrever nianos é geralmente devida a um mecanismo de
os sintomas de acordo com o seu desenvolvimento tração por lesão ou malformação.
intelectual e experiência.
No entanto, é preciso reconhecer a impor- 35.2.2 Classificação das cefaleias
tância das cefaleias e avaliar a sua repercussão
no desenvolvimento psicológico, no desempenho A classificação mais frequentemente utiliza-
escolar, na atenção e na interação social. da é a da International Headache Society (IHS),
sendo a revisão mais recente de 2013 (a primeira
data de 1988 e a segunda de 2004). Esta classi-
35.2 DESCRIÇÃO DO TEMA ficação apresenta 196 diagnósticos possíveis de
cefaleias, dos quais 113 foram descritos na popula-
35.2.1 O que provoca a dor? ção pediátrica. De acordo com a etiologia classifi-
ca as cefaleias em primárias, ou seja, intrínsecas
As principais estruturas dentro do crânio sen- ao sistema nervoso central e secundárias, estas
síveis à dor são os vasos sanguíneos, através da atribuídas diretamente a outra causa (associação
sua vasodilatação, inflamação, tração e desloca- causa-efeito com uma etiologia específica). As
mento. O aumento da pressão intra-craniana leva primárias têm habitualmente início na infância,
à dor essencialmente por tração e deslocamento na adolescência ou no início da vida adulta, sendo
das artérias intra-cranianas. A transmissão da dor as mais frequentes a enxaqueca e as cefaleias de
a partir dos vasos intracranianos supratentoriais tensão. Quanto às cefaleias secundárias, estas
202 MÓNICA VASCONCELOS

podem ser sintoma de uma grande variedade são sempre um sinal de alerta e obriga a suspeitar
de patologias, sendo nesta idade mais comuns de uma possível hemorragia intra-craniana.
as secundárias a infeções. Um doente pode, no
entanto, ter uma cefaleia primária que tenha
sido exacerbada por uma causa secundária (i.e.
“Life-threatening”
cefaleia pós-traumática num doente com enxa- • Infeção sistema nervoso central (meningite,
queca). Numa pequena percentagem de casos encefalite, abcesso cerebral)
(0,4 a 4%) uma cefaleia aguda ou crónica pode • Hemorragia subaracnoideia
(trauma, malformações vasculares,
ser o sintoma de apresentação de uma doença distúrbios hematológicos)
intracraniana grave. • Traumatismos (acidentais ou não):
hemorragia intracraniana
• Hidrocefalia
Factos a reter:
• Disfunção de shunt ventriculo-peritoneal

• Cefaleias Primárias (idiopáticas). Não Comuns


• Síndrome febril
há lesão orgânica. Tratar cefaleia!
• Infeção das vias aéreas superiores,
• Cefaleias Secundárias – cefaleia é um otite, faringite, sinusite
sintoma duma patologia subjacente. • Infeção dentária
• Primeiro episódio de enxaqueca
• Traumatismo minor
Do ponto de vista prático quando uma crian-
ça recorre à consulta ou ao serviço de urgência Outras
• Tóxicos / abuso substâncias
com estas queixas, é fundamental tentar perceber
(monóxido de carbono,...)
qual é o padrão evolutivo das cefaleias: agudas, • Pós-ictal
recorrentes, crónicas (progressivas ou não pro- • Hipertensão arterial
gressivas).

35.2.3 Classificação das cefaleias segundo o Quadro 1. Causas de cefaleias agudas.


padrão evolutivo

As cefaleias agudas são aquelas que mais Causas de cefaleias recorrentes incluem
frequentemente recorrem ao serviço de urgência, a enxaqueca, síndromes periódicos associados à
quadro 1. Na grande maioria dos casos são crian- enxaqueca, a cefaleia tipo tensão, “cluster heada-
ças com febre associada a síndromes gripais ou che”, disfunção temporo-mandibular e a causada
infeções respiratórias superiores. Nestes casos, é por fármacos e drogas.
sempre essencial excluir uma infeção do sistema As cefaleias com evolução progressi-
nervoso central, nomeadamente uma meningite. va são sempre motivo de preocupação e obri-
As cefaleias de grande intensidade descritas como gam a excluir um processo orgânico com hi-
lancinantes, “a pior cefaleia alguma vez sentida”, pertensão intra-craniana, nomeadamente lesão
CAPÍTULO 35. CEFALEIAS 203

ocupando espaço (tumor, abcesso, hematoma, ...).


Características das cefaleias que sugerem
Os tumores infra-tentoriais (da fossa posterior)
hipertensão intracraniana
são os que mais frequentemente dão uma clínica
• Cefaleias persistentes
de hipertensão intra-craniana por obstrução. Os
• Cefaleias noturnas ou presentes ao despertar
mais frequentes são o astrocitoma do cerebelo,
• Aumento da frequência e/
o meduloblastoma, o ependimoma e o glioma
ou gravidade das queixas
da protuberância. Nestes casos, a cefaleia (por
• Existência de vómitos associados
vezes occipital) pode ser o primeiro sintoma, mas
• Agravamento das queixas com a
a criança apresenta frequentemente náuseas e
tosse ou mudanças de posição
vómitos matinais, irritabilidade ou alterações do
comportamento e/ou do desempenho escolar. Os
sinais neurológicos como diplopia, estrabismo,
ataxia ou défices focais podem aparecer muito Quadro 2. Características das cefaleias que sugerem hiper-
tensão intracraniana.
mais tarde. A fundoscopia é funtamental para
excluir a existência de estase papilar.
A hipertensão intracraniana benigna idio-
pática (pseudotumor cerebri) ou secundária (en- frequentes as cefaleias secundárias a excesso de
docrinopatia, medicamentosa, doença sistémica) analgésicos e as relacionadas com a privação de
também cursa com sinais e sintomas de hipertensão cafeína e a habituação a refrigerantes (colas).
intra-craniana, quadro 2. O exame neurológico
pode mostrar apenas estase papilar ou, adicional- Como já foi dito a classificação das cefa-
mente, paralisia do VI par uni ou bilateral. Nestes leias segundo a International Classification
casos o exame de neuroimagem cerebral é normal Headache Disorder (ICHD) divide as cefaleias
e uma punção lombar (PL) com manometria revela em primárias e secundárias, quadro 3.
uma pressão de liquor muito elevada. Destas, vamos referir apenas as causas de
cefaleias com que habitualmente lidamos na prá-
As cefaleias crónicas não progressivas tica clínica diária.
caracterizam-se por uma duração superior a 15
dias por mês durante três meses, com a duração 35.2.4 Enxaqueca
de pelo menos quatro horas por dia. São mais
frequentes no sexo feminino. Estão habitualmente A enxaqueca constitui o tipo de cefaleia
associadas a comorbilidades (abuso medicamen- primária mais comum, com uma prevalência de
toso, faltas à escola, deterioração do desempe- 5 a 20% na idade escolar e na adolescência e de
nho escolar, fadiga, dor abdominal, artralgias, 2,5% no período pré-escolar. A fisiopatologia
tonturas, síncopes, obesidade, perturbação do subjacente parece ser de origem neurovascular
sono,...). Exemplos são a enxaqueca crónica e a (vascular e inflamação neurogénica). Existe um
cefaleia de tensão crónica. Na adolescência são componente hereditário muito importante, com
204 MÓNICA VASCONCELOS

aumentando de frequência com a idade. Uma ca-


Cefaleias Primárias
racterística importante são as náuseas e os vómitos
• Enxaqueca
que por vezes são mais incomodativos que as cefa-
• Cefaleias de tensão
leias e que também podem ser acompanhados por
• Cefalalgias autonómicas do trigémio (cluster,
dores abdominais. A foto e a fonofobia associadas
hemicrânia paroxística, SUNCT, SUNA)
podem-se inferir pelo comportamento da criança,
• Outras cefaleias primárias
que geralmente interrompe a atividade em curso
e que melhora com o repouso e o sono. Os pais
Cefaleias Secundárias
frequentemente referem que o filho fica pálido,
• Traumatismo encefálico e/ou cervical
com olheiras, irritável e menos ativo, procurando
• Doença vascular craniana / cervical
espontaneamente a calma, o escuro e o silêncio.
• Doença intracraniana não vascular
Na escola, deita a cabeça nos braços sobre a mesa.
• Uso de substâncias ou sua privação
Na enxaqueca com aura, esta precede o
• Infeção
início da cefaleia. Caracteriza-se por episódios
• Alteração da homeostase
recorrentes de sintomas neurológicos reversí-
• Patologia do crânio, pescoço, olhos, nariz,
veis (visuais, sensoriais ou outros) que surgem
ouvidos, dentes, seios perinasais,...
gradualmente e que duram minutos, seguido de
• Doença psiquiátrica
cefaleias com características de enxaqueca. As
manifestações mais frequentes são as visuais com
queixas de escotoma (diminuição da área de visão
Quadro 3. Classificação das cefaleias - International dentro do campo visual), hemianópsia, fosfenos
Classification Headache Disorder (ICHD)
(estrelinhas), fotopsia (lampejos de luz), teicopsia
(linhas brancas em ziguezague), amaurose tran-
sitória, micro ou macropsia.
antecedentes familiares desta patologia, sobretu- Para o diagnóstico de enxaqueca de acordo
do do lado materno, em mais de 80% dos casos. com os critérios da ICHD-3, são necessários pelo
Pode ter um grande impacto na qualidade de vida menos cinco episódios com as seguintes caracte-
das crianças e das suas famílias, levando a uma rísticas: cefaleia com duração de duas a 72 horas;
diminuição do envolvimento nas atividades da cefaleia com pelo menos dois dos seguintes sinais:
escola, em casa e nas atividades sociais. localização uni ou bilateral, pulsátil, intensidade
A enxaqueca sem aura é a forma mais moderada a grave, agrava com a atividade física de
frequente em pediatria (60 a 85% dos casos). rotina (ou causa a sua evicção); durante a cefaleia
Geralmente apresenta-se como uma cefaleia de pelo menos um dos seguintes sinais: náusea e/ou
curta duração (dura mais de uma hora, geralmente vómito, fotofobia e fonofobia (comportamento...).
não mais de 24 horas), pulsátil, localizada à re-
gião frontal ou temporal. A natureza hemicraniana Podemos dizer que estamos perante um
da enxaqueca é rara na criança pequena e vai estado de mal migranoso quando temos uma
CAPÍTULO 35. CEFALEIAS 205

cefaleia tipo enxaqueca de grande intensidade e desequilíbrio, de início súbito, em que a criança
duração superior a 72 horas. parece ficar assustada e com medo, chegando
por vezes a vomitar. Têm intensidade máxima
Equivalentes de enxaqueca. no seu início, a criança pode ser incapaz de se
Nas crianças existem síndromes diferentes manter em pé, fica pálida, deitando-se no chão
que podem ser considerados como variantes da ou agarrando-se a alguém; mantém-se sempre
enxaqueca, sendo o seu diagnóstico difícil por- consciente. Os episódios geralmente são raros,
que a sintomatologia frequentemente não inclui duram minutos e podem recorrer a intervalos
cefaleias. Os síndromes episódicos que podem ser irregulares.
associados a enxaqueca ou síndromes periódicos O torcicolo paroxístico benigno carate-
da criança incluem a perturbação gastro-intestinal riza-se por episódios recorrentes de inclinação
recorrente (vómitos cíclicos, enxaqueca abdomi- lateral da cabeça, por vezes com ligeira rotação,
nal), a vertigem paroxística benigna da criança e que resolvem espontaneamente em minutos ou
o torcicolo paroxístico benigno. dias. Ocorrem em lactentes e crianças pequenas,
O síndrome de vómitos cíclicos é carac- com um pico de incidência entre os dois e os oito
terizado por episódios recorrentes de vómitos meses. A cabeça da criança pode ser colocada
e náuseas intensas que ocorrem de uma forma em posição neutra durante os ataques, apesar
estereotipada, duram geralmente um a dois dias, de alguma resistência poder ser encontrada. Por
sendo muito caraterística a natureza ciclíca com vezes está associado a palidez, irritabilidade, mal-
que surgem. São tipicamente auto-limitados, com -estar, vómitos e ataxia.
períodos de completa normalidade entre estes
episódios. A idade de início é aproximadamente 35.2.5 Cefaleias de tensão
de cinco anos e geralmente desaparecem por
volta dos dez anos. A história e o exame físico São uma causa comum de cefaleias na crian-
não revelam sinais de doença gastro-intestinal. ça e no adolescente, sendo a idade média de
A enxaqueca abdominal é uma situação início aos sete anos, tendo mais de metade destes
recorrente, idiopática, caraterizada por dor abdo- doentes também enxaqueca. A dor é tipicamen-
minal episódica da linha média, que se manifesta te bilateral, tipo pressão ou aperto, predomínio
em episódios que duram entre duas a 72 horas, vespertino, de intensidade ligeira a moderada e
com normalização entre estes. A dor é moderada que não agrava com a atividade física de rotina.
a intensa, interferindo nas atividades da vida diária Não está associada a náuseas ou vómitos, mas
e associada a sintomas vasomotores, náuseas e fono ou fotofobia podem estar presentes.
vómitos. Para o diagnóstico de cefaleias de tensão de
A vertigem paroxística benigna é uma acordo com os critérios da ICHD-3, são necessá-
perturbação da infância e da idade escolar (em- rios pelo menos dez episódios com as seguintes
bora possa ocorrer em crianças mais velhas) em características: cefaleia com duração de 30 mi-
que surgem episódios breves e recorrentes de nutos a sete dias; cefaleia com pelo menos dois
206 MÓNICA VASCONCELOS

dos seguintes sinais: localização bilateral, tipo da sinusite, mas geralmente não é necessária.
pressão / aperto (não pulsátil), intensidade ligeira É frequente, quando solicitada por outros moti-
a moderada, não agravada com a atividade roti- vos, mostrar evidência de sinusite assintomática.
neira; ambos: ausência de náuseas e/ou vómitos,
fotofobia ou fonofobia. 35.2.7 História clínica

35.2.6 Cefaleia por sinusite 35.2.7.1 Anamnese


A história clínica minuciosa é fundamental
É uma causa rara de cefaleia na criança. na avaliação destes doentes. A anamnese cuida-
Quando a sinusite está presente a criança tem dosa, incluindo a história familiar (nomeadamente
um ar doente, muitas vezes febril, com congestão na enxaqueca) e um exame físico detalhado são
ou corrimento nasal e dificuldade em manter a os fatores mais importantes para chegar a um
via aérea limpa. A dor é localizada à percussão diagnóstico clínico correto. A abordagem inicial
dos seios maxilares e ou frontais, enquanto que implica saber se estamos perante uma cefaleia
a inflamação dos seios etmoidais e esfenoidais primária ou secundária e dentro destas qual é o
causa dor a nível da linha média por trás do nariz. diagnóstico mais provável, para depois podermos
Não esquecer que os seios maxilares e et- identificar quais as crianças que necessitam de
moidais estão presentes desde o nascimento e são investigação complementar e quais as que neces-
os mais frequentemente envolvidos nas crianças. sitam de algum tipo de terapêutica.
O seio frontal desenvolve-se entre os seis e os oito Na anamnese de uma criança com cefaleias,
anos e o seio esfenoidal durante a puberdade. a sua classificação e o diagnóstico correto irão
Para atribuir a cefaleia a uma sinusite tem depender das informações recebidas sobre a sua
que haver evidência imagiológica ou clínica de dor. Claro que quanto mais nova for a criança e
uma sinusite aguda ou agudização de uma sinu- menor for o tempo de evolução das suas queixas,
site crónica. maior será a dificuldade em obter estes dados e
A cefaleia é tipo pressão, geralmente bi- por isso temos muitas vezes que procurar infor-
lateral, pior durante a manhã (congestão dos mações indiretas que nos permitam caracterizar
seios perinasais na posição supina durante a os sintomas.
noite) e dura vários dias. As dores relacionadas Na caraterização da cefaleia é importante
com as sinusites maxilar ou frontal são referidas questionar sobre a idade / data de início das quei-
à região inter, supra ou retro-orbitária. A dor xas, o seu padrão evolutivo (aguda, recorrente,
da sinusite etmoidal localiza-se na linha média, crónica progressiva ou não progressiva), tipo de
entre os olhos, perto da hipófise e dos seios dor (pulsátil, aperto,...), localização (generaliza-
cavernosos e necessita de uma terapêutica mais da, hemicrânia,...), intensidade (pode ser inferida
agressiva. pelo comportamento da criança: se continua a
A tomografia axial computorizada crânio-en- brincar ou se pára e tem que se deitar), dura-
cefálica (TAC-CE) é muito sensível na identificação ção e frequência dos episódios, horário (matinal,
CAPÍTULO 35. CEFALEIAS 207

vespertino, noturno; dias da semana). É impor- difícil e é subestimado. Além disso, é mais fácil
tante pesquisar a presença de pródromos (sin- para uma criança queixar-se de dores de cabeça
tomas que precedem ou anunciam a crise), de do que referir que tem um sono de má qualidade.
sintomas associados (náuseas, vómitos, fotofobia, Assim, o sintoma “cefaleia” deve ser avaliado de
fonofobia,...), factores de alívio ou agravamen- diferentes pontos de vista, incluindo uma ava-
to (ingestão de determinados alimentos, jejum liação cuidadosa da higiene do sono e dos seus
prolongado, sono excessivo, sono não reparador, problemas (a cefaleia matinal pode ser um sinal
stresse, ciclo menstrual, esforço físico), alterações de apneia obstrutiva do sono nas crianças!).
de comportamento e qual a resposta aos anal-
gésicos. A mudança de posição da cabeça e as 35.2.7.2 Exame físico
manobras de Valsalva que agravam de modo claro É importante a realização de um exame
a cefaleia, devem levar à suspeição de uma pato- objetivo completo com observação cutânea (i.e.
logia que curse com hipertensão intracraniana. O manchas café-com-leite, entre outras), percussão
sucesso escolar, as dificuldades de aprendizagem, dos seios faciais, avaliação da tensão arterial e um
a exigência posta nos resultados escolares pelo exame neurológico cuidadoso que inclua estado
próprio ou pela família, a sobrecarga de horários mental, nervos cranianos, reflexos e provas de
e atividades extra-curriculares, a prática despor- coordenação. A fundoscopia é fundamental para
tiva, as relações com os pares, a personalidade excluir a presença de papiledema, atrofia ótica
da criança e outros fatores psico-sociais também ou hemorragias retinianas; a ausência de edema
podem ser relevantes para o diagnóstico. papilar não exclui completamente a possibilidade
Não nos devemos esquecer de inquirir sobre de hipertensão intra-craniana.
a qualidade do sono. Nos últimos anos tem-se
dado grande importância à relação estreita que 35.2.7.3 Exames complementares de
existe entre o sono e cefaleias. Sabemos que as diagnóstico
perturbações do sono estão associadas a cefaleias Uma história clínica cuidadosa e reavalia-
e que episódios de cefaleia podem ocorrer durante ções regulares são os principais fatores e os que
e após o sono e em relação com vários ciclos de apresentam melhor custo-eficácia, mesmo em
sono. Por outro lado, as próprias cefaleias podem crianças em idade pré-escolar. Um exame normal
interferir no sono e estar associadas a vários tipos apresenta uma relação fortemente positiva com a
de problemas, que incluem um sono insuficiente, ausência de um processo intracraniano grave em
dificuldades em adormecer, ansiedade relacionada doentes pediátricos e adultos e permite excluir
com o sono, sono agitado, despertares noturnos, na grande maioria dos casos a necessidade de
pesadelos e fadiga durante o dia. Sabemos que investigação adicional.
um excesso de sono, a sua privação, um sono O electroencefalograma (EEG) raramente é
de má qualidade ou de duração inadequada são informativo nos casos de cefaleias e a presença de
fatores desencadeantes de cefaleias. Nas crianças, alterações inespecíficas pode confundir o normal
a perceção de um problema de sono por vezes é processo diagnóstico.
208 MÓNICA VASCONCELOS

A Punção Lombar (PL) deve ser realizada Têm indicação para exame de neuroimagem
nos casos de suspeita de infeção/inflamação do as cefaleias com as seguintes características:
sistema nervoso central, alterações na pressão patologia antecedente (tumor operado, deri-
do líquido cefalorraquídeo e nos doentes imu- vação ventrículo-peritoneal); idade inferior a três
nocomprometidos. Na suspeita de uma lesão anos; padrão progressivo ou alteração recente das
estrutural focal com efeito de massa, em que características da cefaleia; presença de cefaleias e
o risco de herniação é elevado, a PL pode estar vómitos matinais; agravamento por manobras de
contra-indicada e deve ser precedida de um Valsalva, tosse ou mudanças bruscas de posição;
exame de neuroimagem. instalação aguda de cefaleia lancinante; latera-
O exame de neuroimagem deve ser fei- lização fixa ou localização occipital persistente;
to apenas em casos selecionados e sempre em alterações no exame neurológico.
função da história clínica, nomeadamente nos
casos de cefaleia de grande intensidade de início 35.2.8 Tratamento
recente, alteração do padrão de cefaleia, cefa-
leia crónica progressiva e qualquer alteração no A terapêutica da cefaleia deve ser individua-
exame neurológico. A ressonância magnética lizada, tendo em consideração o grau de inter-
crânio-encefálica é o método imagiológico de ferência na vida diária da criança. Deve incluir a
escolha, enquanto que a TAC-CE é uma mais evicção de fatores desencadeantes, o tratamento
valia em situações de emergência ou quando a das crises e, se necessário, tratamento profilático.
ressonância não está disponível ou está contra- O plano de tratamento deve ter em conside-
-indicada (i.e. uso de pacemaker). ração estratégias de natureza farmacológica e não
As guidelines da American Academy of farmacológica de acordo com o comprometimen-
Neurology e “ Practice Committee of the Child to funcional da cefaleia e sintomas associados.
Neurology Society” recomendam a realização Nem todas as crianças necessitam de terapêutica
de exame de neuroimagem nos seguintes casos: farmacológica.
alterações no exame neurológico, apresentação O tratamento não farmacológico implica
atípica (vertigem, vómitos incoercíveis ou des- medidas de higiene do sono e hábitos de vida sau-
pertares noturnos por dor), evolução recente dáveis (alimentação adequada, prática de exercício
(menos de seis meses), alteração recente do tipo físico); evitar fatores desencadeantes conhecidos
de cefaleia, agravamento progressivo da dor, (jejum prolongado, stresse, certos alimentos,...);
idade inferior a seis anos, ausência de história permitir que a criança fique num quarto escuro,
familiar de cefaleia primária, cefaleia occipital, sem ruídos, e, eventualmente, recorrer a técnicas
cefaleia de novo numa criança imunocompro- de relaxamento e biofeedback. O repouso em
metida; primeira ou pior cefaleia sentida pela ambiente adequado (com pouca luminosidade
criança, sinais e/ou sintomas sistémicos, cefa- e silencioso) e um breve período de sono são
leias associadas a confusão, alteração do estado muitas vezes eficazes para abortar uma crise de
de consciência ou sinais neurológicos focais. enxaqueca. Na infância esta medida é mais fácil de
CAPÍTULO 35. CEFALEIAS 209

adotar do que na idade adulta, pelo que deve ser Não esquecer de garantir que a criança não apre-
encorajada, evitando assim a utilização excessiva senta nenhuma contra-indicação para o uso do
de analgésicos. propranolol (asma, diabetes, patologia cardíaca).
O tratamento sintomático da dor deve O tratamento do estado de mal migranoso
ser administrado precocemente após o início das implica o repouso em quarto escuro e silencioso,
queixas, sendo o fármaco de primeira linha o hidratação endovenosa, antieméticos/procinéticos
ibuprofeno numa dose de 7,5 a 10 mg/kg. A sua (metoclopramida, clorpromazina), corticoterapia
eficácia é superior à do paracetamol e de mais e valproato de sódio endovenoso.
rápida ação. Não deve ser usado mais de duas
a três vezes por semana pelo risco de cefaleia Leitura complementar
por abuso medicamentoso - atenção à cefaleia Cefaleia no Serviço de Urgência – protocolo do Hospital
rebound por analgésicos! Pediátrico.
Se a criança tiver náuseas e vómitos pode-
mos recorrer à terapêutica retal com analgésicos
ou, eventualmente, a anti-eméticos (metoclopra-
mida, ondansetron).
Os triptanos (agonistas dos receptores 5-HT
da serotonina) podem ser usados em casos sele-
cionados em adolescentes com enxaqueca, no-
meadamente o almotriptano, o sumatriptano e
o zolmitriptano nasal ou oral.
O tratamento profilático da enxaqueca
está reservado para os casos em que as crises são
frequentes (superior a uma a duas por semana
ou a três a quatro vezes por mês), com implica-
ções nas atividades da vida diária (faltas à escola)
ou quando existem crises de grande intensidade
ou complicadas (i.e. enxaqueca hemiplégica).
É importante pedir à criança para fazer um registo
“diário” das cefaleias, para ter um conhecimento
correto da sua frequência e para depois avaliar a
resposta ao tratamento. Os medicamentos mais
habitualmente utilizados são o propranolol, a
flunarizina e, nos adolescentes, a amitriptilina, o
topiramato e o valproato de sódio. O tratamento
deve ser feito durante um período de quatro a
seis meses, com introdução e suspensão graduais.
Capítulo 36.
Poliúria e polidipsia

36
Rita Cardoso
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_36
CAPÍTULO 36. POLIÚRIA E POLIDIPSIA 213

36.1 CONTEXTO uma semivida de cinco a 15 minutos. Através da


ligação aos recetores V1 no músculo liso, provoca
A poliúria na criança define-se por um débito contração do trato gastrointestinal e vasocons-
urinário superior a 2 litros/m2/dia (> 5 ml/Kg/h). trição (por isso a designação de vasopressina).
Deve ser diferenciada de outras queixas mais ha- Quando os osmorecetores hipotalâmicos
bituais como a polaquiúria ou nictúria, em que detetam aumento da osmolaridade sérica (basta
o volume total de urina não está aumentado, no aumento de 1% relativamente ao normal) a HAD
entanto a nictúria pode ser o primeiro sinal de é secretada. O limiar em termos de osmolaridade
poliúria uma vez que durante a noite há restri- para esta secreção é de 280 a 290 mOsm/litro(L).
ção de ingestão de líquidos. Está habitualmente Pelo contrário a diminuição da osmolaridade sé-
associada a polidipsia com aumento da ingestão rica em 1% leva à sua supressão permitindo a
de água (> 100 ml/Kg/dia; 6 litros/dia). diurese de água.
A diminuição da volémia ou a diminuição da
pressão arterial em 10 a 20% determina também
36.2 DESCRIÇÃO DO TEMA a secreção de HAD, sendo este estimulo mais
potente do que a osmolaridade. A náusea é outro
36.2.1 Regulação da homeostasia de água dos estímulos para a sua produção.
e osmolaridade No entanto a HAD não consegue diminuir
a diurese abaixo do limiar necessário para a
A hormona antidiurética (HAD) também excreção da carga de solutos que têm que ser
conhecida como arginina vasopressina é sinteti- eliminados pelo rim, sendo necessários outros
zada no núcleo supraóptico e paraventricular do mecanismos.
hipotálamo anterior e vai através dos axónios dos Outra forma de combater a perda de água é
neurónios, ser armazenada sob a forma de grânu- a sede, que é regulada por osmorecetores hipo-
los na hipófise posterior, entrando na circulação talâmicos menos sensíveis que os da HAD. O limiar
sistémica através do seio cavernoso e da veia cava osmótico para despertar sede é 5 a 10 mOsm/L
superior. A HAD, considerada a principal hormona superior ao limiar para a secreção de HAD.
envolvida na regulação da homeostasia da água
e osmolaridade, tem como primordial função a 36.2.2 Causas
diminuição do débito urinário aumentando a rea-
bsorção de água livre no túbulo contornado distal 36.2.2.1 Diurese Osmótica
e ducto coletor dos nefrónios através da ligação
aos recetores V2. Promove também a reabsorção Diabetes mellitus tipo 1 e tipo 2
de cloreto de sódio a nível da ansa de Henle. A diabetes mellitus (DM) é a causa mais fre-
Assim, contribui para o aumento da osmolaridade quente de poliúria e polidipsia.
urinária diminuindo a osmolaridade plasmática. O É uma patologia do metabolismo dos hidra-
seu efeito é rapidamente reversível apresentando tos de carbono e dos lípidos. A DM tipo 1 resulta
214 RITA CARDOSO

de um défice absoluto na produção de insulina mg/dl com ou sem cetonémia e cetonúria. Pode
por destruição das células beta pancreáticas e também haver aumento da hemoglobina A1C
na tipo 2, inicialmente há resistência à ação da (HbA1C≥6,5%).
insulina e posteriormente há um défice relativo da O melhor teste de rastreio consiste na realiza-
sua produção. Apesar da incidência da diabetes ção de uma glicémia capilar e de um teste rápido de
tipo 2 ter vindo a aumentar nas últimas décadas, urina para pesquisa de glicosúria e cetonúria. Sempre
associada ao aumento da obesidade nas crianças que possível deve ser também, ou em alternativa à
e jovens, a diabetes tipo 1 continua a ser a causa cetonúria, pesquisada a cetonémia que é detetada
mais frequente de diabetes mellitus em idade mais precocemente que a cetonúria e normaliza
pediátrica. antes, sendo útil na monitorização do tratamento.
Na diabetes tipo 1 encontram-se presentes os auto
A incidência da DM tipo 1 tem vindo também anticorpos (anti insulina, anti descarboxílase do ácido
a aumentar principalmente nas crianças com ida- glutâmico, anti ilhéus de Langherans).
de inferior a cinco anos. A patogénese combina As crianças com suspeita deste diagnóstico
fatores de risco genéticos (complexo major de devem ser referenciadas de imediato a um
histocompatibilidade do cromossoma 6) a fatores serviço de urgência de Pediatria pelo risco de
ambientais que despoletam o processo autoimune vida associado.
de destruição de células β. Os auto anticorpos
podem estar presentes anos antes da manifes- 36.2.2.2 Diabetes insípida
tação da doença. Excreção de um volume elevado urina diluí-
O défice de produção de insulina está asso- da. Que se caraterizada por densidade urinária
ciado a hiperglicémia com incapacidade da glicose <1.010 ou osmolaridade urinária <300 mOsm/
entrar nas células e aumento da excreção renal de kg; osmolaridade plasmática> 290 mOsm/kg com
glicose (glicosúria) com diurese osmótica associa- osmolaridade urinária <300 mOsm/kg.
da. Surge então a sintomatologia característica A diabetes insípida (DI) tem uma incidência
conhecida como os três Ps, poliúria, polidipsia de 3/100.000 na população em geral com pre-
e polifagia. A incapacidade de utilização da gli- dominância discreta no género masculino (60%).
cose leva a utilização dos lípidos como fonte de
energia alternativa resultando na produção de Diabetes insípida central
corpos cetónicos, que por sua vez pode resultar Também designada como neuro-hipofisária
em cetoacidose. À data do diagnóstico a maioria ou neurogénica está associada a um défice de
dos doentes apresenta sinais de desidratação e secreção da hormona antidiurética. Pode estar as-
podem apresentar acidose metabólica (hiperventi- sociada a malformações cerebrais congénitas (5 a
lação) e um hálito cetónico típico (cheiro a maçã). 10%), trauma, tumores e cirurgia hipofisária (50%
Perante a sintomatologia típica o diagnós- das causas adquiridas), infeções do sistema nervo-
tico é feito associando uma glicémia em jejum ≥ so central, histiocitose de células de Langerhans
126 mg/dl ou em qualquer altura do dia ≥ 200 (10% das causas adquiridas), encefalopatia
CAPÍTULO 36. POLIÚRIA E POLIDIPSIA 215

hipóxico-isquémica, destruição autoimune das cé- por base um aumento na ingesta de água com
lulas produtoras de HAD ou pode ser idiopática (10 supressão da HAD e produção de quantidade
a 20%). Raramente, em menos de 10%, existem de urina equivalente à ingesta de água. A poliú-
casos familiares (formas autossómicas dominantes; ria melhora durante a noite com diminuição do
síndrome DIDMOAD-diabetes insípida, diabetes aporte de água. Pode ocorrer em doentes com
mellitus, atrofia ótica e surdez-deafness), inferior patologia psicológica/psiquiátrica ou com lesões
a 10%. Os eletrólitos podem ser normais já que hipotalâmicas que afetem o centro da sede. Uma
a criança com acesso e capacidade para ingerir osmolaridade plasmática> 295 mOsm/kg e sódio
água não tem hipernatrémia. O início da poliúria é sérico> 143 mEq/L com ingestão de água ad libi-
rápido. O volume de urina é elevado, está presente tum exclui esta etiologia.
nictúria e há preferência por ingestão de água
gelada. Nestes casos há resposta à desmopressina 36.2.3 Diagnóstico e diagnóstico diferencial
(fármaco análogo da vasopressina-HAD).
Clínica: irritabilidade; má progressão pon-
Diabetes insípida nefrogénica deral; anorexia; obstipação; febre intermitente;
Ocorre por diminuição da capacidade de cefaleias; desidratação grave nas doenças corren-
concentração renal por resistência à ação da HAD. tes banais, ambiente quente ou na ausência de
Pode ser adquirida (mais comum e menos grave) ingestão de água; dilatação de ureteres e bexiga;
ou familiar. convulsões e coma.
As formas adquiridas podem estar asso-
ciadas a distúrbios metabólicos (hipercalcémia, Nos recém-nascidos e lactentes é difícil de-
hipocaliémia), doença renal crónica, uropatia pós- tetar poliúria e polidipsia, pode ocorrer irritabili-
-obstrutiva e fármacos (lítio, rifampicina). dade mantida, vómitos, fraldas muito molhadas,
As formas familiares estão relacionadas com necessidade muito frequente de mamar, pele seca,
mutação do recetor V2 da vasopressina na forma extremidades frias e insuficiente aumento ponde-
ligada ao cromossoma X (manifestam-se habitual- ral ou mesmo convulsões e choque hipovolémico.
mente no primeiro ano de vida) ou da aquapo- O diagnóstico dos tipos parciais de diabetes
rina 2 na forma de hereditariedade autossómica insípida pode ser difícil e as formas familiares
dominante (mais tardia). podem manifestar-se de modo progressivo com
O diagnóstico implica a demonstração da agravamento da poliúria e polidipsia nos primeiros
incapacidade de concentração renal na presença seis anos de vida.
de um doseamento de HAD normal e não respon-
dem à introdução da desmopressina. Anamnese - questões importantes a colocar:
Há aumento do volume de urina ou aumento
Polidipsia primária do número de micções?
Também designada como polidipsia psi- Há polidipsia ou formas estranhas de saciar
cogénica. Ocorre mais em adolescentes e tem a sede?
216 RITA CARDOSO

A necessidade de beber e urinar interfere sugestivo de diabetes insípida; Na séri-


nas atividades diárias normais? co> 145 mmol/L ou osmolaridade sérica>
Há nictúria ou enurese inapropriadas para 300 mOsm/Kg com osmolaridade urinária
a idade? <600 mOsm/Kg confirma o diagnóstico
Interrompe o sono para beber? de diabetes insípida – não se deve fazer
Qual a bebida preferida? prova de restrição hídrica nestes casos).
Há perda de peso? Ou alteração do cres-
cimento? ii) Colheita de urina de 24 horas (avaliar
Idade de início sintomas? volume total urina), avaliação do sódio
História familiar de diabetes mellitus ou in- sérico, osmolaridade sérica; osmolaridade
sípida? e densidade urinárias.
Antecedentes de neurocirurgia, traumatis- As osmolaridades plasmática e urinária,
mo crânio-encefálico, meningite, doença são importantes para decidir a investiga-
psiquiátrica ou patologia renal? ção posterior. Se a relação entre a osmo-
Toma de fármacos como diuréticos, lítio, laridade urinária e plasmática for inferior
analgésicos, vitamina D, cálcio ou fár- a 0,7: deve ser efetuada uma prova de
macos nefrotóxicos? restrição hídrica para diferenciar polidipsia
Tem infeções recorrentes? primária de diabetes insípida. Se for su-
perior a 1.5 considerar diurese osmótica.
Exame objetivo A interpretação dos parâmetros analíticos
Deve ser completo devendo incluir sempre em casos de poliúria e polidipsia sem gli-
a avaliação de peso e estado nutricional e os cosúria encontra-se resumida no quadro 1.
sinais de desidratação. Avaliar sinais de puberda-
de precoce ou alterações ao exame neurológico iii) Prova de restrição hídrica – doseamento
(ponderar fundoscopia). de HAD sérica, osmolaridade plasmática
e urinárias seriadas durante quatro a seis
Investigação laboratorial horas de restrição de ingesta hídrica.
Muito importante quantificar o volume diário
de urina e a ingesta hídrica. Permite avaliar se em condições de res-
trição da ingestão hídrica a manutenção
i) Avaliação simultânea do sódio (Na) sérico da poliúria determina que o sódio sérico
e da densidade urinária na primeira urina e a osmolaridade plasmática subam para
da manhã constituem a forma de rastreio valores patológicos.
mais apropriada para a diabetes insípida Permite a diferenciação entre diabetes
(Na sérico> 143 mEq/L na presença de insípida central e nefrogénica.
densidade urinária baixa e na ausência Esta prova está a cargo de especialistas
de aumento da ingesta de água é muito desta área, pelos riscos que acarreta.
CAPÍTULO 36. POLIÚRIA E POLIDIPSIA 217

Diagnóstico Volume diário Na sérico Osm sérica Densidade Osm


urina (L) (mmol/L) (mOsm/L) urinária urinária
Valores normais 0,5 – 1* 135-145 280 >1.010 50-1400
Diabetes insipida central 4-10 >145 >300 <1.010 <200
Diabetes insipida nefrogénica 4-10 170 >300 <1.005 <300
Polidipsia primária 2,5-20 140 >280 <1.020 <200
*normal para a idade: RN-
0,05-0,3L; 1ºano vida
0,4-0,5 L; criança 0,5-1L;
adolescentes 0,7-1,4L.

Quadro 1. Interpretação dos parâmetros analíticos em quadro de poliúria, polidipsia sem glicosúria.

Os resultados podem ser difíceis de inter- Correção da desidratação e desequilíbrios


pretar nos doentes com diabetes insípida eletrolíticos associados.
neurogénica parcial, resultante da secre- Insulinoterapia (introduzir apenas em ser-
ção subnormal de HAD ou nos doentes viço de urgência com pediatria) - em perfusão
com diabetes insípida nefrogénica parcial continua após um período inicial de hidratação
resultante da resposta parcial do rim a com soro fisiológico e posteriormente com análo-
concentrações normais de HAD. gos de insulina de ação lenta administrados uma
iv) Avaliação de outras hormonas hipofisárias ou duas vezes por dia para mimetizar a insulina
(hipófise anterior) basal e análogo de insulina de ação rápida de
acordo com os hidratos de carbono ingeridos às
v) Ressonância magnética crânio-encefálica refeições e correção da hiperglicemia – esquema
para esclarecimento da etiologia da diabetes in- basal bólus (método mais fisiológico).
sípida, exclusão de tumores ou espessamento
da haste hipofisária; é muito característico não Podem ser utilizados sistemas de perfusão
se observar a imagem brilhante típica da neuro- subcutânea contínua de insulina que permitem
-hipófise (pode ser normal na fase inicial da dia- a sua administração através de um cateter sub-
betes insípida e a imagem do tumor só surgir cutâneo, com possibilidade de ajustar de forma
anos mais tarde). mais precisa as doses de insulina às necessida-
des de cada criança, permitindo melhor controlo
36.2.4 Tratamento metabólico e melhor qualidade de vida para as
crianças e suas famílias.
Diabetes mellitus
Correção da cetoacidose (pH <7,3 ou bicar- Deve ser feita contagem dos hidratos de
bonato de sódio <1,5 mmol/L) com glicémia > carbono das refeições e administrada a insulina de
200 mg/dl (é uma emergência com risco de vida). acordo com a ingesta, sempre antes da refeição,
218 RITA CARDOSO

devendo fazer uma alimentação saudável como Conclusão, em caso de clínica de poliúria
qualquer criança da mesma idade, mas com li- e polidipsia:
berdade alimentar.
Os pais e as crianças devem receber educação • Confirmar poliúria (medir densidade uri-
terapêutica adequada e permanente para promover nária e pesar).
o melhor controlo metabólico que irá impedir ou • Pode ser causada por diurese de água (os-
atrasar as complicações que podem estar associadas molaridade urinária < plasmática) ou osmó-
à diabetes mellitus (agudas-hipoglicémia ou cetoa- tica (osmolaridade urinária ≥ plasmática).
cidose; crónicas-retinopatia, nefropatia, neuropa- • Excluir infeção urinária e diabetes me-
tia e patologia cardiovascular). O rigor terapêutico llitus (glicémia, cetonémia, glicosúria e
é particularmente importante nestas idades pelo cetonúria).
tempo de evolução natural que a doença vai ter. • Fazer avaliação da ureia, creatinina, gaso-
Os adolescentes constituem um grupo de metria, cálcio, sódio sérico, osmolaridade
difícil abordagem pelas alterações hormonais exis- sérica, osmolaridade urinária. Ponderar
tentes nesta fase associadas a insulinorresistência e prova de restrição hídrica.
maior dificuldade no controlo das glicémias e pelos
comportamentos de fraca adesão à terapêutica.
36.3 FACTOS A RETER
Diabetes insípida central
Desmopressina: análoga da vasopressina, Não deixar de suspeitar de diabetes melli-
administrada por via oral a cada 8 a 12 horas, tus perante uma criança com poliúria e polidip-
início de ação em 15 a 30 minutos, em alternativa sia, devendo ser avaliadas: glicémia e glicosúria,
pode ser usada a via intranasal ou endovenosa. cetonúria/cetonémia.
Não deve ser administrada insulina fora
da urgência pediátrica (risco de edema cere-
Diabetes insípida nefrogénica bral). Deve ser iniciada de imediato hidratação
Acesso livre à água. endovenosa com soro fisiológico.
Correção dos distúrbios metabólicos, sus- A diabetes insípida apesar de rara é uma
pensão de fármacos que estejam a usar. causa importante de poliúria na criança.
Nas formas familiares são recomendados O ionograma normal não exclui o diagnós-
diuréticos tiazidicos, amiloride e indometacina e tico de diabetes insípida.
efetuada restrição de sódio na dieta. Estes casos É fundamental saber diagnosticar diabetes
se forem diagnosticados precocemente, com tra- mellitus e diabetes insípida e referenciar de ime-
tamento adequado podem ter desenvolvimento diato a um serviço de Pediatria.
e esperança de vida normais apesar de apresen- A investigação e abordagem da diabetes me-
tarem má progressão ponderal e baixa estatura llitus e insípida devem ficar a cargo de especialistas
pela má nutrição associada à polidipsia mantida. nas áreas de endocrinologia/nefrologia pediátrica.
Capítulo 37.
Anemias

37
Leticia Ribeiro
e Tabita Magalhães Maia
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_37
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 221

37.1 CONTEXTO A Hb e o Htc aumentam com a altitude e


são mais elevados nos fumadores, em doentes
A anemia é definida como um valor de he- com cardiopatia cianótica ou com doença respi-
moglobina (Hb) dois desvios padrão (2DP) abaixo ratória crónica, nos casos de policitémia vera e
da média dos valores da população padrão, tendo na eritrocitose congénita.
em conta a idade e o sexo. O volume globular médio (VGM) e a hemo-
Os sintomas relacionados com a anemia globina globular média (HGM) são mais elevados
são inespecíficos e dependem do ritmo de des- no recém-nascido, são mais baixos nas crianças
cida da Hb. Se a anemia se instala rapidamente, e estabilizam na adolescência.
como na hemorragia aguda, a sintomatologia
depende da hipovolémia e o doente pode entrar
em choque ainda com um hematócrito (Htc) Gestação Hemoglobina Hematócrito Reticulócitos

normal. No entanto, se a mesma quantidade (semanas) (g/dL) (%) (%)

de sangue for perdida de uma forma insidio- 37- 40 16.8 53 3-7


32 15.0 47 3-10
sa, a anemia é bem tolerada, porque há um 28 14.5 45 5-10
aumento compensatório dos ritmos cardíaco e 26-30 13.4 41 -
respiratório e uma diminuição da afinidade da
Hb para o oxigénio (O2). Quadro 1. Parâmetros eritrocitários no recém-nascido.
Na abordagem de um doente com anemia,
para além dos dados clínicos, da história pessoal
e familiar, é imprescindível a interpretação cor- Outro parâmetro importante a considerar
reta dos parâmetros hematológicos e o estudo é o valor do width red cell distribution (RDW)
morfológico do esfregaço de sangue periférico que traduz o índice de variação do tamanho dos
(ESP). glóbulos vermelhos (GV). O seu valor normal situa-
-se entre 11,5 a14,5%, dependendo do contador
celular utilizado. O RDW é especialmente útil no
37.2 DESCRIÇÃO DO TEMA diagnóstico diferencial das causas de anemias
hipocrómicas e microcíticas mais comuns – side-
37.2.1 Parâmetros hematológicos ropenia e talassemia minor, Figura 1.

Os níveis de Hb são mais elevados no perío- Os GV têm uma vida média de 120 dias, por
do neonatal (Quadro 1), decrescem até por volta isso o RDW deve ser interpretado de um ponto
do segundo mês de vida, sobem gradualmente de vista dinâmico: na fase de instalação ou recu-
até aos 15 a 18 anos de idade e mantêm-se es- peração de uma sideropenia é elevado, porque
táveis no adulto. A partir da adolescência a Hb há GV normocíticos e outros microcíticos, numa
é cerca de 1,5 g mais elevada no sexo masculino sideropenia grave e prolongada é baixo, porque
(Quadro 2). já todos os GV são microcíticos, Figura 2.
222 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA

Hb g/dL Htc % VGM fL HGM pg CHGM g/dL


Idade Média -2DP Média -2DP Média -2DP Média -2DP Média -2DP
1M 14.0 10.0 43 31 104 85 34 28 33 29
2M 11.5 9.0 35 28 96 77 30 26 33 29
3-6M 11.5 9.5 35 29 91 74 30 25 33 30
0.5 - 2 A 12.0 10.5 36 33 78 70 27 23 33 30
2-6A 12.5 11.5 37 34 81 75 27 24 34 31
6 - 12 A 13.5 11.5 40 35 86 77 29 25 34 31
12-18A-F 14.0 12.0 41 36 90 78 30 25 34 31
12-18A- M 14.5 13.0 43 37 88 78 30 25 34 31
18-49A-F 14.0 12.0 41 36 90 80 30 26 34 31
18-49A – M 15.5 13.5 47 41 90 80 30 26 34 31

A- anos, CHCM - concentração de hemoglobina globular média, F- feminino, Hb- hemoglobina , HGM-hemoglobina globular
média, Htc-hematócrito, M-masculino, M- meses, VGM- volume globular médio.
Adaptado de Daliman, P. R.: In Pediatrics, 16th ed. Rudolph, A (ed.), New YorK Appleton-Century Crotts 1977, p. liii.

Quadro 2. Parâmetros eritrocitários – média e limite inferior do normal (-2DP).

Sideropenia b -Talassémia minor Sideropenia 1 mês após Fe oral


Hb g/dL 10,9 Hb g/dL 11,7 Hb g/dL 6,7 Hb g/dL 11,6
VGM fL 71 VGM fL 70 VGM fL 59 VGM fL 70
HGM pg 22 HGM pg 22 HGM pg 13 HGM pg 20
CHGM % 30 CHGM % 31 CHGM % 22 CHGM % 29
RDW % 19,8 RDW % 15,2 RDW % 12,1 RDW % 31,5

Figura 1. Parâmetros hematológicos e RDW na sideropenia Figura 2. O RDW é o primeiro parâmetro a subir na resposta
e na β-talassemia minor. Na sideropenia há GV de tamanho ao tratamento com Ferro (Fe). No histograma da imagem da
normal e outros microcíticos (VGM baixo): RDW elevado; na direita pode observar-se um alargamento da base devido à
talassemia os GV são uniformemente mais pequenos (VGM coexistência de duas populações de GV, uma microcítica e
baixo): RDW ligeiramente elevado. Para os mesmos valores de outra normocítica.
VGM e HGM, na sideropenia os níveis de Hb são mais baixos
e o RDW é mais elevado.
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 223

A taxa de reticulócitos é um bom indicador ou na morfologia dos GV. Em termos fisiopatoló-


da atividade medular e é essencial a sua análise gicos podemos dividir as anemias em duas cate-
no diagnóstico diferencial entre anemias aplás- gorias, que não se excluem mutuamente: anemias
ticas e hemolíticas. A policromasia no Esfregaço por alteração da produção dos GV (eritropoiese
do Sangue Periférico (ESP) indica reticulocitose. ineficaz - aplasia eritroide) e anemias por destrui-
O estudo morfológico do sangue perifé- ção aumentada dos GV (perdas hemorrágicas -
rico é imprescindível na orientação do diagnóstico hemólise).
de uma anemia.
A classificação morfológica, baseada nas
37.2.2 Classificação da anemia características dos GV, é um bom suporte ao ra-
ciocínio na prática clínica, embora não tenha em
Os diferentes tipos de anemia (anemias) po- conta a associação de fatores etiológicos múltiplos
dem ser classificados com base na sua fisiopatologia (Quadro 3).

sideropenia
Adquiridas processo inflamatório crónico
intoxicação pelo chumbo
Hipocrómicas talassemia
e microcíticas algumas Hbs instáveis
Congénitas alterações congénitas do metabolismo do
heme - anemias sideroblásticas
alterações congénitas do metabolismo do ferro - IRIDA
défice de vitamina B12
Megaloblásticas
défice de ácido fólico
doença hepática
alcoolismo
hipotiroidismo
Macrocíticas secundárias a drogas
Não
algumas anemias hemolíticas
megaloblásticas
falência medular - anemia deseritropoiética congénita
anemia aplástica
síndrome mielodisplásico
anemia de Blackfan-Diamond
anemias hemolíticas
Normocrómicas hemorragia aguda
e normocíticas hiperesplenismo
doença renal crónica

Quadro 3. Classificação morfológica das anemias mais frequentes na prática clínica.


224 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA

37.3 ANEMIAS HIPOCRÓMICAS E MICROCÍTICAS longo da infância, independentemente da posterior


correção da sideropenia.
A hemoglobina é formada por dois pares de O Fe existente no organismo resulta de um
cadeias globínicas (2 α e 2 não α) e um grupo equilíbrio entre a quantidade que é absorvida e
heme constituído por um ião de ferro (Fe) num a fração necessária para o crescimento tecidular,
anel de protoporfirina. Quando há falta de ferro a expansão do volume sanguíneo e a compensa-
para a formação do grupo heme, ou há poucas ção das perdas fisiológicas ou outras. Há vários
cadeias globínicas disponíveis, há uma diminuição fatores que alteram este equilíbrio e a sua impor-
da síntese da hemoglobina, os glóbulos vermelhos tância varia de acordo com as diferentes fases
são mais pequenos (microcitose) e menos corados do desenvolvimento: no primeiro ano de vida,
(hipocromia). na adolescência e na gravidez há maior utiliza-
Causas da hipocromia e/ou microcitose: sidero- ção tecidular do Fe; na mulher em idade fértil as
penia; doença inflamatória; intoxicação pelo chum- perdas menstruais representam um grande risco
bo; talassemia; algumas formas de hemoglobinas de sideropenia, Quadro 4.
instáveis; alterações congénitas do metabolismo
do heme (i.e: anemias sideroblásticas) e alterações Factos a reter:
congénitas do metabolismo do ferro (i.e. IRIDA). Grupos de risco para sideropenia: primeiro
ano de vida e adolescência.
37.3.1 Anemia sideropénica A anemia por carência de ferro é, muitas
vezes, o primeiro sinal de alerta da doença celíaca
A deficiência em Fe é a causa mais fre- ou da doença inflamatória intestinal. A infeção da
quente de anemia em todo o mundo. Em mucosa gástrica por helicobacter pylori também
Portugal diversos estudos populacionais revelam tem sido associada a anemia sideropénica por
que a sideropenia é frequente em todos os es- micro hemorragias.
tratos sócio-económicos, com maior prevalência Vários estudos demonstraram que uma taxa
nas populações com poucos recursos. elevada de mulheres com fluxo menstrual abun-
O Fe é um nutriente essencial para o crescimen- dante tem alterações hereditárias da hemostase,
to e o desenvolvimento psicomotor, e a sua carência nomeadamente doença de Von Willebrand. Nestes
tem sido associada a uma diminuição da capacidade casos, se a história pessoal e familiar for compa-
de aquisição de conhecimentos, insucesso escolar, tível com tendência hemorrágica, deve ser feita
irritabilidade, alterações do sono, assim como a uma pesquisa de coagulopatia.
diminuição da tolerância ao esforço e da imunidade
celular. Vários estudos demonstram que crianças com Avaliação diagnóstica – laboratorial e clínica
deficiência de Fe moderada ou grave nos primeiros O diagnóstico de sideropenia baseia-se
anos de vida têm um desenvolvimento cognitivo numa história clínica precisa, tendo em atenção
inferior ao das crianças não carentes ou com carência a etiologia mais frequentemente associada aos
ligeira. Esta desvantagem intelectual mantem-se ao diferentes grupos de risco:
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 225

0-12 meses Baixo peso ao nascimento


Hemorragias feto-maternas
Erros na diversificação alimentar
Intolerância às proteínas do leite de vaca
Introdução precoce do Leite de vaca
2 anos - Erros alimentares – quantidade excessiva de leite, dieta sem carne ou peixe
adolescência Parasitas (giardia)
Doença celíaca ( sideropenia pode ser a primeira manifestação)
Doença inflamatória do tubo digestivo
Divertículo de Meckel
Malformações vasculares
Adolescência Erros alimentares - baixo teor de ferro na alimentação,
Ingestão excessiva de leite e/ou chá
Hemorragias menstruais abundantes
Crescimento rápido
Doença celíaca
Patologia do tubo digestivo

Quadro 4. Idades de risco e causas de sideropenia.

- Na criança o peso de nascimento e a his- dos casos, para se estabelecer o diagnóstico: a


tória alimentar nos primeiros anos de vida são anemia sideropénica é, tipicamente, hipocrómica
dados essenciais para o diagnóstico de anemia por e microcítica, com um valor de RDW elevado; a
carência de Fe. A palidez, anorexia, irritabilidade, ferritina sérica tem uma boa correlação com as
alterações do sono ou a pica são os sinais que reservas de Fe do organismo, exceto nos primeiros
mais frequentemente chamam a atenção dos pais. meses de vida. Uma ferritina inferior a 12 mg/mL
- Na adolescência são as menorragias, é sinónimo de sideropenia. Na infeção ou infla-
muitas vezes pouco valorizadas pela própria, o mação a ferritina pode estar inespecificamente
crescimento rápido e a alimentação inadequada elevada. Na intoxicação pelo chumbo e na anemia
os motivos de sideropenia. A sintomatologia é sideroblástica congénita há hipocromia e micro-
inespecífica com queixas de astenia, fraqueza citose com ferritina elevada, por incapacidade de
muscular, fadiga, palpitações, lesões das muco- formação do heme.
sas (estomatite, glossite, queilite) e dos fâneros Outras análises disponíveis para avaliação
(coiloníquia e queda do cabelo). do status do ferro têm limitações e são pouco
Os valores dos parâmetros hemotológi- fidedignas na avaliação de sideropenia. O Fe sé-
cos e da ferritina são suficientes, na maioria rico apenas indica o Fe em circulação no plasma
226 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA

num determinado momento, sofrendo variações Após exclusão de sideropenia, uma hipocromia
diurnas consideráveis. A taxa de saturação da e microcitose, com ou sem anemia, é fortemente
transferrina tem baixa sensibilidade e especifici- sugestiva de talassemia e deve ser realizado um
dade, deve ser determinada em jejum e pode ter estudo de Hbs com doseamento de Hb A2 e de Hb F.
interesse na avaliação da sobrecarga de ferro, no Perante uma anemia hipocrómica e micro-
diagnóstico da anemia das doenças inflamatórias cítica ligeira a moderada, uma prova terapêutica
e de algumas alterações congénitas do metabo- com Fe oral é a forma mais eficaz de confirmar
lismo do ferro. A  dosagem da concentração de o diagnóstico de sideropenia, Figura 3. Deve-se
zinco-protoporfirina está aumentada quando há reavaliar a Hb e o RDW entre duas a quatro sema-
diminuição da síntese do heme: sideropenia, ane- nas depois do início da terapêutica marcial; nos
mia das doenças inflamatórias e na intoxicação casos em que a anemia é mais grave a reavaliação
pelo chumbo. deve ser feita dentro de uma semana.

Figura 3. Prova terapêutica com Fe oral.


CAPÍTULO 37. ANEMIAS 227

Se não houver resposta, e a ferritina for deve iniciar-se com doses baixas e infusões lentas,
normal ou elevada, suspeitar de uma talassemia porque podem ocorrer reações anafiláticas graves.
ou de uma anemia das doenças inflamatórias
(em caso de proteína C reativa e/ou velocidade Profilaxia da sideropenia
de sedimentação elevadas); se ferritina reduz é A anemia por carência de Fe na criança pode
porque o Fe não está a ser administrado ou não ter consequências nocivas a curto e a longo pra-
está a ser absorvido em quantidade que supere zo, pelo que a sua profilaxia é prioritária. No
as perdas. Verificar se o ferro está a ser tomado primeiro ano de vida há algumas normas básicas
de forma correta (excluir erros alimentares), se há que devem ser seguidas: i)promover o aleitamen-
perdas hemorrágicas abundantes e, se necessário, to materno, sempre que possível, ou o leite de
investigar doença celíaca ou perdas sanguíneas fórmula suplementado com Fe; ii) ingerir cereais
ocultas. enriquecidos com Fe na altura da diversificação
alimentar, ou fazer suplementação com Fe oral (2
Tratamento da sideropenia a 3 mg/kg/dia) entre os 6 e os 24 meses; iii) não
Sideropenia, com ou sem anemia, deve ser administrar leite de vaca em natureza antes do
tratada com sulfato ou gluconato ferroso oral, na ano de vida, nos casos em que não seja possível
dose de 3 a 4 mg/kg/dia na criança e 100 a 200 evitá-lo, proceder a suplementação de Fe oral; iv)
mg/dia nos adolescentes. A prescrição de doses os RN de baixo peso devem ser suplementados
elevadas de Fe é contraproducente, uma vez que a com Fe oral na dose de 2 mg/kg/dia a partir do
capacidade de absorção é limitada e provoca efeitos primeiro ou segundo mês de vida.
secundários que levam ao abandono da terapêutica.
Para ser mais bem tolerado, e bem absorvido, o Fe O leite materno tem um bom teor de Fe
deve ser acompanhado com uma refeição que con- que é facilmente absorvível (elevada biodispo-
tenha alimentos ricos em ácido ascórbico (vitamina nibilidade), no entanto, alguns estudos sugerem
C), nomeadamente citrinos e saladas. Os fitatos, o que mesmo as crianças alimentadas com leite
leite e o chá inibem a sua absorção. materno necessitam de suplementação com Fe.
A terapêutica deve ser mantida entre 4 a Nas crianças que vivem em más condições
6 meses, findos os quais se houver recidiva da socioeconómicas é aconselhável fazer um hemo-
anemia é porque a quantidade de Fe administrada grama para rastreio de anemia. Se é detetada
não foi suficiente para preencher os depósitos no sideropenia, para além da terapêutica com Fe
sistema reticulo-endotelial (SRE), ou porque as oral e desparasitação, devem ser corrigidos os
perdas continuam a ser abundantes ou o aporte/ erros alimentares.
absorção de ferro são deficientes. Nas jovens com menorragias é aconselhável
Na sideropenia prolongada e grave a capaci- que, para além de um seguimento por ginecolo-
dade de absorção de Fe no intestino é baixa, por gia, sejam aconselhadas a tomar Fe pelo menos
atrofia da mucosa intestinal, e pode ser necessário um a dois meses por ano, para evitar recidiva
administrar o Fe por via parenteral. A terapêutica da anemia.
228 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA

Factos a reter refeição que inclua alimentos ricos em


A anemia sideropénica é a forma de ane- ácido ascórbico. Prescrever outro prepa-
mia mais comum, a sua prevenção é um pro- rado de Fe. Doses elevadas não melhoram
blema de saúde pública que levou vários países a absorção, causam efeitos secundários
a suplementar os alimentos com Fe. É de con- e abandono da terapêutica.
siderar o seu rastreio no primeiro e segundo 3. outras causas de má absorção: doença
ano de vida em prematuros não suplementados celíaca? ingestão de grandes quantidades
com Fe, em crianças com deficiências nutri- de leite de vaca ou de ice-tea?
cionais e nas adolescentes com menorragias. 4. manutenção da perda de sangue: mens-
O tratamento preventivo com suplemento de truações abundantes? hemorragia oculta?
Fe é recomendado: nos prematuros e RN de Desparasitar. Investigar patologia do tubo
baixo peso com início ao mês de vida; e nas digestivo.
crianças no primeiro ano de vida, se na altura
da diversificação alimentar não for introduzido Se o valor de ferritina for normal ou alto,
devidamente a carne ou o peixe, ou cereais considerar:
suplementados com Fe, ou se o leite de vaca
for introduzido precocemente. 1. talassemia: proceder ao estudo de Hbs
Se uma anemia sideropénica não melhorar com doseamento de Hb A 2 e de Hb F
com o tratamento com Fe oral em dose adequada para pesquisa de hemoglobinopatia.
é porque há aporte insuficiente, erros alimentares, 2. doença inflamatória crónica.
má absorção ou perdas abundantes. 3. distúrbio congénito do metabolismo do
heme ou ferro.
Em resumo:
uma anemia hipocrómica e microcítica que
não responde à administração de Fe oral: 37.3.2 Anemia das doenças inflamatórias
Se o valor de ferritina for baixo, considerar:
É uma anemia ligeira a moderada, hipo-
1. toma inadequada do Fe – esquecimento? crómica e microcítica, com ferritina elevada e
má adesão por intolerância? toma incor- saturação de transferrina baixa. Resulta de uma
reta (com leite ou chá)? Doentes com eritropoiese deficiente em Fe em consequência
sideropenias graves manifestam com de um aumento da hepcidina que bloqueia a
frequência uma melhoria excelente após absorção de Fe no enterócito e a libertação
umas semanas de tratamento com Fe e do Fe do SRE. É relativamente frequente em
abandonam a terapêutica. crianças com infeções de repetição, doenças
2. toma de preparados com doses insufi- inflamatórias crónicas ou neoplasias. O trata-
cientes de Fe ou com baixa biodisponi- mento da anemia pressupõe o tratamento da
bilidade? Sugerir a ingesta do Fe numa doença de base.
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 229

37.3.3 Anemia por intoxicação pelo chumbo hipocrómica e microcítica, com Hb A 2


elevada (>3,5%) - b-talassemia minor.
Na intoxicação pelo chumbo a anemia é mo- - Se os dois alelos do gene estiverem muta-
derada, hipocrómica e microcítica, com pontuado dos (homozigotia ou heterozigotia com-
basófilo grosseiro nos eritrócitos. As crianças com posta), mas ainda sintetizarem algumas
sideropénia têm maior suscetibilidade à intoxicação cadeias globínicas (b+/ß+) há uma anemia
pelo chumbo, e têm uma anemia mais grave que moderada, hipocrómica e microcítica,
não responde adequadamente à terapêutica com com Hb A 2 e Hb F elevadas - b-talasse-
ferro. A história clinica é fundamental para fazer mia intermédia.
este diagnóstico, juntamente com a observação - Se não houver síntese de cadeias (bo/bo; bo/
do ESP que revela pontuado basófilo exuberante. b+), não há Hb A (ou há uma quantidade
muito escassa), a Hb F está elevada e a
37.3.4 Talassémias anemia é grave, dependente de transfu-
sões desde o primeiro ano de vida
No feto a Hb predominante é a Hb F, que
ao nascimento representa cerca de 60 a 90 % - b-talassemia major.
da Hb total e diminui gradualmente ao longo dos Grandes deleções no cluster dos genes β
primeiros seis a 12 meses. Depois do primeiro podem originar dβ- gdβ-talassemia, que em he-
ano de vida a Hb é constituída por Hb A (a2b2) terozigotia têm parâmetros hematológicos seme-
(≈ 97 %), Hb A 2 (a2d2) (2 a 2,5 %) e Hb F (a2g2) lhantes à β-talassemia minor, mas com Hb F mais
(0,5 a 1 %). elevada no caso da dβ-talassemia.
Se há redução ou ausência de síntese de A b-talassemia tem uma elevada prevalên-
uma das cadeias globínicas a Hb é produzida em cia nas populações mediterrânicas; em Portugal
menor quantidade, há microcitose e hipocromia tem uma distribuição heterogénea, com zonas
– talassemias (b e a). de maior prevalência nas regiões centro e sul.

b-Talassemias a-Talassemias
A síntese de cadeias globínicas b depende Para a síntese das cadeias globínicas a há
da expressão de um gene localizado no cromos- dois genes homólogos, a2 e a1, em cada cromos-
soma 11 (b/b). Este gene pode ter mutações, mais soma 16 (aa/aa). As a-talassemias resultam,
frequentemente pontuais, que impossibilitem a mais frequentemente, da deleção de um ou dos
síntese de cadeias – mutações bo, ou que apenas dois genes num dos alelos.
reduzem a quantidade de cadeias sintetizadas – Nas populações portuguesa e africana são
mutações b+. mais frequentes as deleções de um só gene (-a3.7)
e (-a4.2). A heterozigotia (-a3.7/aa) cursa sem
- Se só um dos alelos do gene estiver mutado anemia e com VGM e HGM no limite inferior
(heterozigotia), há uma anemia ligeira, da normalidade. A homozigotia (-a/-a) cursa
230 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA

com anemia ligeira, hipocrómica e microcítica, A definição das formas major e intermédia
semelhante à β-talassemia minor, mas com Hb é clínica e pode ser difícil distingui-las na altura
A 2 e Hb F com percentagens normais. A deleção do diagnóstico. A identificação das mutações
de dois genes num mesmo alelo é frequente nos permite confirmar o diagnóstico, estabelecer o
orientais (--SEA). prognóstico e evitar transfusões intempestivas
nas formas intermédias.
O problema na prática clínica Os doentes com b-talassemia major ou inter-
média devem ser suplementados com ácido fólico.
b-Talassemias A sobrevida dos doentes com as formas
O estado de portador de β-talassemia (b− graves de b-talassemia é condicionada pela
-talassemia minor) não é patológico, se os por- sobrecarga de ferro que provoca uma falência
tadores apresentarem sintomas deve ser procu- multiorgânica, nomeadamente hipogonadismo,
rada outra etiologia. Têm uma anemia ligeira, diabetes, hipotiroidismo e miocardiopatia. Para
hipocrómica e microcítica, com Hb A 2 >3,5% e diminuir a hemossiderose devem fazer quelação
Hb F normal ou ligeiramente elevada. do ferro com infusões subcutâneas de desferro-
A b-talassemia intermédia é habitualmen- xamina, durante oito a dez horas entre quatro a
te diagnosticada na infância. Cursa com esple- cinco vezes por semana, ou tomar diariamente
nomegália, anemia hemolítica moderada (Hb:7-9 um quelante oral – deferiprone ou deferasirox.
g/dL), VGM e HGM baixos, com RDW e taxa de O tratamento mais indicado é o transplante de
reticulócitos elevada, Hb A 2 >3,5%, Hb F entre medula óssea, doada de um familiar compatível.
10 a 60%. No esfregaço de sangue periférico Após o diagnóstico de b-talassemia é funda-
há uma anisopoiquilocitose e hipocromia muito mental explicar aos pais a sua forma de transmis-
acentuadas, com muitos micrócitos. são, com vista à prevenção do aparecimento das
A gravidade do quadro clínico é heterogé- formas graves da doença. Um casal em que ambos
nea, dependendo do tipo de mutações. A anemia os elementos são portadores de b-talassemia,
é, em geral, bem tolerada mas agrava em situa- tem 25% de probabilidade, em cada gestação,
ções de infeção. As crianças têm, habitualmente, de ter uma criança com b talassemia major ou b
um quadro clínico mais grave, podendo neces- talassemia intermédia (dependendo do tipo de
sitar de algum suporte transfusional e eventual mutações).
esplenectomia.
A b-talassemia major apresenta-se nos a-Talassemia
primeiros meses de vida com palidez, anorexia, Nas populações portuguesa e africana as
má progressão ponderal, hepatoesplenomegália formas graves de a-talassemia são muitíssimo
e anemia grave, mal tolerada, dependente de raras, porque as mutações mais frequentes são as
transfusões. Praticamente só sintetizam Hb F e deleções de apenas um dos genes a (-a3.7 ou -a4.2).
uma percentagem irrelevante de Hb A 2, podendo Na população de origem oriental são fre-
formar pequenas quantidades de Hb A (b /b ).
o +
quentes as formas intermédias e graves de
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 231

a-talassemia - doença da Hb H e Hb Bart’s dentro de 2 a 4 semanas depois, Figura 3. Se


- hidropsia fetal. Na doença da Hb H (--/-a), houver melhoria dos parâmetros, a terapêutica
apenas um gene a funcionante, há uma anemia com ferro deve ser continuada durante mais 3
moderada (Hb: 7-10 g/dL), com reticulocitose e a 4 meses. Se os parâmetros se mantiverem
esplenomegália. A Hb Bart’s - hidropsia fetal (-- inalterados deve ser doseada a ferritina sérica
/--) a deleção dos quatro genes a é incompatível e proceder ao estudo de Hbs com doseamento
com a vida e há morte fetal in utero. de Hb A 2 e de Hb F para pesquisa de hemoglo-
binopatias, Figura 4.
Avaliação diagnóstica
Os portadores de talassemia são habitual- A a-talassemia só pode ser diagnosticada
mente diagnosticados em “análise de rotina», por técnicas de biologia molecular, no entanto,
em que é detetada uma anemia ligeira, hipo- tal investigação só se justifica em casos clínicos
crómica e microcítica, com RDW ligeiramente complexos ou para o aconselhamento genético
elevado. Sendo a sideropenia a causa mais fre- de um casal em idade fértil, quando ambos os
quente de anemia, a primeira atitude deve ser pais apresentem anemia hipocrómica e microcítica
medicar com Ferro oral e repetir o hemograma ou uma variante alfa de Hb.

Figura 4. Após terapêutica com Ferro, uma anemia ligeira, hipocrómica e microcítica, com ferritina normal, é suspeita de talasse-

mia. O doseamento de Hb A 2 elevado permite confirmar uma β talassemia minor. Os parâmetros hematológicos dos pais podem

ajudar a orientar o diagnóstico, sobretudo quando há outras patologias associadas.


232 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA

Na doença da Hb H (--/-a) os GV têm in- sua regulação permitiu descrever novas, e raras,
clusões de Hb H que podem ser observadas num entidades que cursam com anemia sideropénica
ESP com coloração supra-vital. congénita que não responde à terapêutica com
ferro oral. As formas mais comuns são: a Iron-
37.3.5 Alterações congénitas Refractory Iron Deficiency Anaemia (IRIDA) e a
do metabolismo do heme doença da ferroportina.
A IRIDA tem transmissão autossómica re-
De entre as alterações congénitas da síntese cessiva e caracteriza-se por anemia hipocrómica
do heme as mais comuns são as anemias sidero- e microcítica moderada a grave, com ferritina e
blásticas congénitas. São doenças raras, com uma percentagem de saturação da transferrina baixas.
gravidade heterogénea, caracterizadas por anemia É refractária ao Fe oral e responde parcialmente
hipocrómica e microcítica com RDW elevado, dimor- ao Fe endovenoso.
fismo acentuado no sangue, ferritina e percentagem A doença da ferroportina tem transmissão
de saturação de transferrina elevadas, deseritro- autossómica dominante e resulta de uma redução
poiese e sideroblastos em anel na medula óssea. de síntese da ferroportina, uma proteína de trans-
A forma mais frequente e mais moderada tem porte transmembranar do Fe, com consequente
transmissão ligada ao cromossoma X: as crianças do acumulação de Fe no SRE e uma eritropoiese
sexo masculino podem ter a doença e as do sexo femi- deficiente em Fe. O quadro clínico é heterogé-
nino podem ser homozigóticas, o que é muito raro, ou neo mas, em geral, há anemia hipocrómica e
ser portadoras, no entanto, devido a uma lionização microcítica moderada, ferritina sérica elevada e
desequilibrada do cromossoma X em favor do alelo percentagem de saturação da transferrina baixa.
mutado, as portadoras podem apresentar a doença, Na presença de uma anemia sideropénica
mais frequentemente a partir da quarta década de que, comprovadamente, não responde ao Fe oral,
vida. Alguns doentes respondem parcialmente à ad- o doente deve ser enviado a uma consulta de
ministração da piridoxina. As principais complicações Hematologia.
estão associadas a sobrecarga de ferro, o que obriga
a monitorização regular e tratamento quelante. 37.4 Variantes de hemoglobina
As formas autossómicas recessivas são mais
graves, apresentam-se no primeiro ano de vida As variantes de Hb (Quadro 5) resultam
com esplenomegália, anemia e sobrecarga de Fe de mutações pontuais nos genes das cadeias
e podem ser sindrómicas. globínicas a, b ou g conduzem à substituição
de um ou mais aminoácidos (aa); menos fre-
37.3.6 Alterações congénitas quentemente são devidas a deleções, inserções
do metabolismo do ferro ou fusão de genes. O seu fenótipo é muito
variável, porque depende do tipo de aa subs-
Os avanços recentes na elucidação do me- tituído e do local em que este se localiza na
tabolismo do Fe e das proteínas envolvidas na cadeia globínica.
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 233

Variantes de Hb Clínica
Hb S Portadores AS – assintomáticos, hematologicamente normais
SS; SC; SD; HbS/b-talassemia - drepanocitose
Hb D Punjab Portadores AD – assintomáticos, hematologicamente normais
Homozigóticos DD – anemia ligeira
Heterozigóticos compostos HbD/b-talassemia – anemia ligeira hipocrómica e microcítica
Heterozigóticos compostos SD - drepanocitose
Hbs instáveis Anemia hemolítica
Hbs com alteração Alta afinidade - poliglobulia
da afinidade Baixa afinidade - cianose
Hbs M Cianose
Hbs com fenótipo Hb Lepore – anemia hipocrómica e microcítica
de talassemia Hb E - hipocromia e microcitose
Hb Constant Spring- hipocromia e microcitose

Hb- Hemoglobina, AS – portadores de Hb S, SS- homozigóticos para Hb S, SC heterozigóticos compostos para Hb S e Hb C,


SD heterozigóticos compostos para Hb S e Hb D

Quadro 5. Variantes de Hb com importância na prática clínica.

Em Portugal as variantes de Hb mais frequen- heterozigóticos compostos (HbS/b-talassemia, SC,


tes são a Hb S, a Hb D e a Hb Lepore Baltimore SD) têm drepanocitose - uma anemia hemolí-
(d 68Leu
-b 84Thr
). tica moderada, com fenómenos vaso-oclusivos,
A Hb Lepore resulta de um gene de fusão que provocam isquémia com dores intensas e se
db. Em heterozigotia cursa com anemia ligeira, acompanham de uma morbilidade e mortalidade
hipocrómica e microcítica, Hb A 2 normal, Hb F importantes.
2-5% e Hb Lepore 5-15%. Em homozigotia cursa
com um quadro clínico de talassemia intermédia, 37.4.1 Drepanocitose
com esplenomegália, anemia moderada e apenas
Hb Lepore e Hb F. A drepanocitose (anemia de células falci-
A Hb S tem elevada prevalência nos afri- formes) é, na maioria dos casos, diagnosticada
canos, mas existe nos caucasianos. Resulta da no primeiro ano de vida e a forma mais frequente
substituição de uma valina por ácido glutâmico de apresentação é a de uma criança que chora
na posição 6 da cadeia globínica b. Esta troca copiosamente e tem edema dos pés ou das mãos.
de aa faz com que, em áreas com baixa tensão Devido à falciformação dos GV em condições
de O2, a Hb polimerize e se ligue à membrana de baixa tensão de O2, os doentes com drepanoci-
deformando os GV que ficam rígidos, em “forma tose têm inúmeros episódios vaso-oclusivos, com
de foice”, e vão obstruir os pequenos capilares. fenómenos de isquémia, que se acompanham de
Os portadores de Hb S (AS) têm parâmetros dores muito violentas e causam lesões multiorgâ-
hematológicos normais; os homozigóticos (SS) ou nicas. As manifestações são, predominantemente,
234 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA

a nível ósseo, pulmonar, renal, esplénico, sistema bacterianos capsulados. Em geral cada doente tem
nervoso central e genital (priapismo). os seus locais habituais de dor, se a dor é atípica
Os fenómenos de vaso-oclusão surgem, devem ser feitos os procedimentos necessários
maioritariamente, na sequência de um quadro para o diagnóstico etiológico.
febril, desidratação ou mudanças bruscas de Só se deve proceder a transfusão de GV
temperatura. Deve ser instituída, de imediato, se houver agravamento significativo da anemia.
uma analgesia eficaz e administrados líquidos em Em caso de transfusão, devem ser selecionadas
abundância. As infeções devem ser prontamen- unidades de concentrado de eritrócitos (CE) sem
te tratadas com antibióticos com cobertura para Hb S, com fenótipo alargado compatível e com
agentes capsulados, uma vez que estes doentes pouco tempo de colheita.
têm hipoesplenismo/asplenia funcional.
O sequestro esplénico que é uma das causas
Avaliação diagnóstica mais comuns de morte nas crianças com drepa-
Os portadores de Hb S (AS) não têm alte- nocitose, caracteriza-se por um súbito e rápido
ração dos parâmetros hematológicos e apenas aumento de volume do baço, por retenção
podem ser identificados com um estudo de Hbs de uma grande quantidade de sangue, que pro-
e um teste de solubilidade da Hb S. voca uma anemia aguda e necessita de transfu-
Os doentes com drepanocitose têm uma são imediata. Contudo, não se deve transfundir
anemia hemolítica moderada (Hb: 6-8g/dL), com agressivamente porque o sangue retido no baço
reticulocitose e células falciformes (drepanócitos) vai voltar à circulação e o hematócrito final não
no ESP. No estudo de Hbs detetam-se apenas as deve ser superior a 30%. A sequestração é tão
Hb S e Hb F. O teste de solubilidade confirma o maciça e desencadeia-se tão rapidamente que
diagnóstico. muitas vezes os doentes morrem antes de chegar
A dupla heterozigotia Hb S/b talassemia tem ao hospital. Os pais devem ser alertados para a
um fenótipo semelhante à homozigotia SS, mas possibilidade de ocorrência destas situações e
a anemia é hipocrómica e microcítica. O estudo devem ser ensinados a localizar o baço.
hematológico dos pais ajuda a fazer o diagnóstico
diferencial, porque um deve ter uma b talassemia A aplasia eritroide transitória (infeção por par-
minor e o outro ser portador de Hb S. vovirus B19), caracteriza-se por uma diminuição
rápida da Hb, sem alteração do volume esplénico,
Tratamento das complicações agudas crise vaso-oclusiva ou contexto infecioso aparente.
mais frequentes Os doentes apresentam reticulocitopenia – a con-
Na crise vaso-oclusiva óssea há procedimen- tagem de reticulocitos é importante em todos os
tos básicos que é obrigatório seguir: hidratação, doentes com febre e/ou agravamento da anemia
analgesia eficaz, oxigenação, evitar o frio, tratar a e habitualmente há uma serologia IgM positiva
causa - se for infeciosa, dirigir antibiótico ao foco especifica do parvovirus. O tratamento consiste
com atenção particular à cobertura de agentes na transfusão de CE para um hematócrito máximo
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 235

de 30%. A recuperação é espontânea, depois de renal, a retinopatia e a necrose assética da cabeça


5 a 10 dias e precedida pelo aparecimento de do fémur ou do ombro.
eritroblastos e reticulócitos no sangue periférico.
O síndrome torácico agudo pode ser secundá- Medidas profiláticas
rio a uma pneumonia, enfarte ou tromboembolia As crianças com drepanocitose, e as suas
pulmonar. É a segunda causa de morte dos doentes famílias, devem ser educados a ingerir muitos
com drepanocitose. Deve ser abordado de forma líquidos, evitar as mudanças bruscas de tempe-
rápida. É obrigatória a realização de oximetria de ratura, tomar de imediato antipiréticos em caso
pulso e se a saturação periférica de O2 for infe- de febre e procurar o médico para tratar pron-
rior a 92% em ar ambiente, deve proceder-se a tamente as infeções.
avaliação da função respiratória por gasimetria Os fenómenos de enfarte a nível do baço
arterial. Devem ser cumpridos os princípios gerais desencadeiam fibrose esplénica e hipoesplenismo,
da crise e, se presentes critérios de gravidade, pode que obriga à profilaxia das infeções a microorga-
ser necessário realizar exsanguineo-transfusão nismos capsulados gram positivos e gram negati-
(envolvimento multilobar, taquipneia, hipoxémia vos, pela administração de vacinas e antibióticos
<60mmHg e acidose PH < 7.35). profiláticos. Até aos cinco anos de idade devem
fazer profilaxia com amoxicilina, com amoxicilina/
O acidente vascular isquémico, acidente ácido clavulânico ou com claritromicina.
isquémico transitório ou hemorragia intracra- A atividade física deve ser o mais normal pos-
niana são das complicações mais importantes e sível, sendo o esforço condicionado pelo próprio
devastadoras nos doentes com drepanocitose. doente. Atenção à ingestão de líquidos!
Podem ocorrer em todas as idades, mas são mais
frequente nas duas primeiras décadas de vida. Todos os doentes devem ser suplementados
Para além das medidas terapêuticas habituais, diariamente com ácido fólico. A terapêutica com
está indicado fazer transfusão-permuta urgente. hidroxiureia melhora significativamente o quadro
clínico de muitos doentes, reduzindo o número e a
No priapismo agudo, em geral com início gravidade dos fenómenos vaso-oclusivos.A hidro-
dos sintomas entre os 15 e os 20 anos, deve de xiureia aumenta a síntese da Hb F, que diminui a
imediato proceder-se a analgesia com opióides suscetibilidade da Hb S para polimerizar. Os casos
e ou sedação, hidratação e transfusão-permuta. mais graves de drepanocitose podem beneficiar com
Contactar Urologista para decidir terapêutica um transplante de progenitores hematopoiéticos.
específica. É muito importante explicar aos pais a for-
ma de transmissão da doença. Um casal em que
As complicações mais frequentes a longo ambos os elementos são portadores de Hb S (AS),
prazo são a sobrecarga de ferro nos doentes ou em que um é AS e o outro tem b-talassemia
frequentemente transfundidos, a hipertensão minor, têm, em cada gestação, 25% de probabi-
pulmonar, a doença vascular cerebral, a doença lidade de ter um filho com drepanocitose.
236 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA

Não esquecer que os portadores de Hb S equilíbrio entre a forma desoxigenada e a forma


têm parâmetros hematológicos normais e que a oxigenada da molécula ou as ligações ao ferro
Hb S também existe nos caucasianos. hémico. As Hbs M são um outro tipo de varian-
tes que resultam especificamente da substituição
37.4.2 Hemoglobinas instáveis dos resíduos de histidina distal ou proximal na
bolsa hémica e que condicionam um aumento
Algumas variantes de Hb são instáveis devido da oxidação do ferro.
à substituição de aminoácidos que, pela sua lo-
calização e estrutura, têm um papel fundamental Variantes com afinidade aumentada pelo O2
na estabilidade da molécula de Hb. Estas Hbs estão associadas a eritrocitose congénita, muitas
desnaturam e precipitam dentro dos GV lesando vezes familiar (transmissão autossómica dominante).
a sua membrana e provocando hemólise. A gravi-
dade da anemia depende do grau de instabilidade As Hbs de baixa afinidade e as Hbs M estão
da Hb e pode ir de anemia ligeira a grave, mas associadas a cianose. O diagnóstico destas varian-
raramente necessita de suporte transfusional. tes é importante para evitar múltiplas investiga-
A esplenectomia está indicada nos casos graves, ções do foro cardíaco e respiratório e tranquilizar
mas não reduz significativamente a hemólise. os pais e o médico. Para além da cianose e de um
O diagnóstico baseia-se no quadro clínico valor de Hb um pouco abaixo do normal, não há
e laboratorial de anemia hemolítica crónica; no outras complicações associadas.
esfregaço de sangue periférico visualizam-se GV
com alterações de stress oxidativo e podem en- No RN a cianose com metahemoglobiné-
contrar-se “corpos de Heinz” com uma coloração mia pode estar associada a Hbs M resultantes
supra-vital, Em muitos casos o estudo de Hbs é de mutações nos genes das cadeias g- α- ou
normal, ou apenas com pequena elevação da β-globínicas. No caso das variantes gamma a per-
percentagem de Hb F, noutros casos é possível centagem da Hb M vai decrescendo nos primeiros
detetar uma variante de Hb. A identificação da 6 meses de vida, fica em níveis residuais e a cia-
variante é feita por técnicas de biologia molecular. nose desaparece. No sentido oposto a percenta-
O quadro clínico tem transmissão autossó- gem das variantes M das cadeias β-globínicas vai
mica dominante embora, na maioria dos casos, aumentando ao longo do primeiro ano de vida.
se trate de mutações de novo.
Factos a reter
37.4.3 Hemoglobinas com alteração Numa anemia hipocrómica e microcítica que
da afinidade pelo oxigénio não responde ao Fe deve ser feito um estudo
de Hbs.
Variantes de Hb com uma afinidade alterada Aos portadores de talassemia deve ser ex-
pelo O2 são devidas à substituição de aminoácidos plicado claramente que são indivíduos normais,
que, pela sua localização e estrutura, vão alterar o não necessitam de quaisquer cuidados específicos,
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 237

o defeito não lhes traz nenhuma doença e não as anomalias de membrana (esferocitose
necessitam de fazer análises de controlo. É im- hereditária (EH), eliptocitose hereditária
portante que entendam claramente o modo de (Elip H), piropoiquilocitose hereditária e es-
transmissão e a forma de prevenir o aparecimento tomatocitose hereditária) e os défices enzimáti-
das formas graves das hemoglobinopatias. cos (défice de piruvato quinase (PK), défice de
A uma criança com edemas das mãos e/ou glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD).
pés, com dor, fazer hemograma, e se tiver anemia
hemolítica deve-se suspeitar de drepanocitose. O quadro clínico das anemias hemolíticas
crónicas tem uma gravidade muito variável que
Erros mais frequentes depende da etiologia e, dentro de cada patolo-
Pensar em talassemia antes de pensar em gia, depende da lesão molecular subjacente. Na
sideropenia. maioria dos casos há um aumento de volume
Não considerar que um portador de talasse- do baço, a urina é escura, há icterícia com hi-
mia também pode ter uma sideropenia. perbilirrubinémia não conjugada e anemia com
Não valorizar uma hipocromia e/ou microci- reticulocitose, que se agravam na sequência de
tose quando a Hb tem um valor normal. intercorrências infeciosas. Há maior tendência
Considerar os portadores de talassemia para a formação de cálculos vesiculares e para
como doentes. Não informar adequadamente os acumulação de ferro – hemossiderose. Em alguns
portadores de talassemia, criando injustificadas casos a hemólise pode estar compensada e haver
ansiedades e angústias. apenas reticulocitose e icterícia ligeira.
Esquecer que os portadores das variantes de Nos episódios de hemólise aguda pode haver
Hb mais frequentes (AS, AD) não têm alterações astenia, tremores, febre, dor abdominal e lombar
dos parâmetros hematológicos. e urina escura.
Numa drepanocitose é tão importante a
abordagem correta das crises como explicar aos 37.5.1. Anemias hemolíticas por anomalias
pais e aos doentes como as podem evitar. da membrana do gv
Transfundir intempestivamente os doentes
com drepanocitose aquando de crises vaso-oclusi- Alterações quantitativas e/ou qualitativas das
vas. O valor de Hb não é indicativo de transfusão e proteínas da membrana dos GV modificam a sua
quando houver necessidade de transfundir, devem estrutura, levando à perda de membrana, à dimi-
ser escolhidas cuidadosamente as unidades de CE. nuição da relação superfície/volume e ao aumento
da fragilidade dos GV e consequente hemólise.
37.5 ANEMIAS HEMOLÍTICAS CONGÉNITAS COM Na esferocitose hereditária (EH) as proteínas
MAIOR RELEVÂNCIA NA PRÁTICA CLÍNICA que mais frequentemente estão diminuídas são a
anquirina, a banda 3 e a proteína 4.2. (8%). A elipto-
São as hemoglobinopatias (talassemia inter- citose hereditária (Elip H) resulta de uma diminuição
média, drepanocitose e Hbs instáveis); de espectrina e, mais raramente, da proteína 4.1.
238 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA

Esferocitose Hereditária As crianças esplenectomizadas têm uma


A EH é a anemia hemolítica mais comum maior propensão para infeções graves e sepsis por
nos caucasianos. Streptococus pneumoniae e outros Streptococus,
Tem uma transmissão hereditária autossó- Neisseria meningitidis, Escherichia coli, Hemofilus
mica dominante em 75% dos casos e não domi- influenza e, Stafilococus. Devem ter o calendário
nante em 25%. O fenótipo é muito heterogéneo, vacinal atualizado. A vacina antipneumocócica
desde anemia ligeira, por vezes só detetada na tem que ser realizada algumas semanas antes da
idade adulta, até anemia grave com necessidade cirurgia, caso ainda não tenha sido administrada.
de múltiplas transfusões até à necessidade de É aconselhável fazer profilaxia antibiótica contínua
esplenectomia. até aos 14 anos de idade. Os antibióticos mais
As crianças, sobretudo no primeiro ano de indicados são a penicilina benzatínica mensal ou
vida, têm uma anemia mais acentuada e fazem a penicilina oral, a amoxicilina ou a claritromicina
episódios de hemólise aguda mais frequentes em doses profiláticas.
e graves na sequência de episódios infeciosos.
O diagnóstico baseia-se na presença de anemia Eliptocitose Hereditária
hemolítica de grau variável com reticulocitose, Pode ser de transmissão autossómica domi-
CHGM elevada (>35 mg/dL) e esferócitos no nante ou recessiva, dependendo das mutações
ESP. O diagnóstico confirma-se por um teste de subjacentes.
eosin-5’-maleimida (EMA) positivo e crioteste ou Os fenótipos graves são raros, a maioria dos
teste da lise por glicerol acidificado (AGLT) posi- indivíduos não tem anemia ou esta é ligeira, sem
tivos. A identificação do défice proteico pode ser esplenomegália.
realizada através da eletroforese das proteínas da O diagnóstico baseia-se nos valores do VGM
membrana dos GV, com quantificação densito- e do HGM que se situam nos limites inferiores da
métrica. Nos casos de diagnóstico duvidoso ou normalidade e confirma-se através da presença de
se necessário aconselhamento pré-natal, pode-se eliptócitos no ESP. O teste de EMA, o crioteste e
recorrer ao estudo por biologia molecular. o AGLT só são positivos nas eliptocitoses graves.
Relativamente ao tratamento a esplenec- A piropoiquilocitose é uma forma neonatal
tomia, para além de curar a anemia e as suas e grave da Elipt H. A forma mais frequente dimi-
complicações, previne a formação de cálculos nui de gravidade nos primeiros meses de vida e
vesiculares. Têm indicação para esplenectomia transforma-se numa forma ligeira.
os doentes com mais de 4 a 6 anos de idade As alterações hereditárias da permeabilida-
com anemia e hemólise importantes. Quando há de da membrana dos GV designam-se por esto-
cálculos vesiculares, mas a anemia não é signifi- matocitose. Uma particularidade importante da
cativa, a remoção do baço é controversa e deve estomatocitose, é que, ao contrário de todas as
ser ponderada caso a caso. Todas as crianças anemias hemolíticas congénitas, a esplenecto-
com EH com hemólise acentuada devem ser su- mia está contra-indicada, pelo seu enorme risco
plementadas com ácido fólico. trombótico.
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 239

37.5.2 Anemias hemolíticas por défices Défice de Glicose-6-Fosfato


enzimáticos do GV Desidrogenase (G6PD)
O défice de G6PD é a enzimopatia mais co-
Para suprir as necessidades metabólicas, os mum em todo o mundo, com maior incidência
GV necessitam de energia que obtêm, sob a for- nos africanos, porque confere alguma proteção
ma de adenosina trifosfato (ATP), através da via de contra a malária.
Embdem-Meirhof (via glicolítica) e para se prote- É uma doença hereditária ligada ao cro-
gerem do stresse oxidativo necessitam de manter o mossoma X. As portadoras (heterozigóticas), por
potencial redutor, através da via da hexose monofos- lionização desequilibrada do cromossoma X em
fato. O défice de uma das enzimas destas vias leva a favor do alelo mutado, podem ter uma atividade
uma diminuição da semivida dos GV e à hemólise. baixa de G6PD.
A grande maioria dos indivíduos com défice
Défice de Piruvato Kinase (PK) de G6PD são clínica e hematologicamente nor-
O défice de PK é o défice enzimático da via mais, mas desencadeiam uma hemólise intravascu-
glicolítica mais frequente. lar aguda, com hemoglobinúria, quando ingerem
A transmissão hereditária é autossómica re- substâncias oxidantes como as favas e algumas
cessiva. O espetro clínico é muito variável, depen- drogas, quadro 6 ou na sequência de episódios
dente da lesão molecular. Nos casos mais graves infeciosos. Durante os episódios hemolíticos ne-
o diagnóstico é feito no período neonatal e as cessitam de medidas de suporte, fora destes não
crianças são dependentes de transfusões CE até necessitam de cuidados especiais para além da
à realização de esplenectomia. Mais frequente- evicção de ingesta de substâncias oxidantes.
mente o diagnóstico é feito durante a infância ou Há algumas variantes de G6PD muito raras
adolescência, num quadro de anemia hemolíti- que cursam com anemia hemolítica crónica.
ca crónica - esplenomegália, icterícia, anemia e O diagnóstico baseia-se no doseamento da
reticulocitose - com episódios de hemólise mais atividade enzimática fora dos episódios hemolí-
graves nas intercorrências infeciosas. ticos. Nos episódios hemolíticos o exame do ESP
O diagnóstico baseia-se no doseamento da pode revelar a presença de GV com alterações
atividade enzimática num quadro clinico de ane- típicas de stresse oxidativo.
mia hemolítica crónica de gravidade variável, com Para além da evicção dos agentes que desen-
reticulocitose, e ausência de alterações morfoló- cadeiam crises, o ácido fólico deve ser prescrito
gicas características no ESP. nas crises, para além de medidas de suporte.
Os doentes devem ser suplementados com
ácido fólico e a esplenectomia reduz a intensi- 37.6 Anemias macrocíticas
dade da hemólise. A sobrecarga de ferro que
pode ser importante; mesmo os doentes pouco As anemias macrocíticas podem ser megalo-
transfundidos podem necessitar de medidas de blásticas (deficiências de vitamina B12 ou de ácido
quelação. fólico) ou não megaloblásticas (secundárias a
240 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA

Substâncias que podem desencadear hemólise nos indivíduos com défice de G6PD

Associação definida possível duvidosa


Alimentos Favas
Medicamentos
Antimaláricos Primaquina Cloroquina Quinacrina
Pamaquina Quinino
Sulfonamidas Sulfanilamida (Otocalma*) Sulfasalazina Sulfisoxozole
Sulfacetamida Salazopirina Sulfasalazina
Sulfapiridina Sulfasalazina Sulfisoxazole
Sulfamethoxazole
Sulfonas Dapsona
Nitrofuranos Nitrofurantoina (Furadantina*)
Antipiréticos/ analgésicos Acetanilid Aspirina Acetaminophen
Fenacetina
Outros Rasburicase Ciprofloxacina PAS
Ácido Nalidíxico Cloranfenicol Doxorubicina
Niridazole Análogos da Vit. K Probenecid
Azul-de-metileno Ácido Ascórbico Dimercaprol
Fenazopiridina Ácido p-Aminosalicílico
Septrin
Outros químicos Naftaleno
Trinitrotolueno
Adaptado de L.Luzzatto, Hematology 2006; 2:63-68.

Quadro 6. Drogas que devem ser evitadas na deficiência de G6PD.

diversas drogas ou patologias, nomeadamente B12 por défice de factor intrínseco. Na deficiência
doença hepática, hipotiroidismo, falência medular de vitamina B12 ocorrem, com frequência, distúr-
e mielodisplasia), quadro 3. bios neuropsiquiátricos. A terapêutica com ácido
fólico corrige parcialmente as alterações mega-
37.6.1 Anemias megaloblásticas loblásticas do défice de vitamina B12, mas não os
distúrbios neurológicos. Em regimes alimentares
Os défices de vitamina B12 e de ácido fólico estritamente vegetarianos há, com frequência,
afetam a síntese do ADN, com repercussão nos um défice de vitamina B12.
precursores eritróides, mielóides e megacariocí- A suplementação com ácido fólico deve
ticos, de que resulta anemia macrocítica com ou ser feita nas crianças com anemias hemolíticas
sem neutropenia e/ou trombocitopenia. No sangue crónicas, na terapêutica com antiepiléticos e nas
periférico observam-se macrócitos, pontuado ba- doenças intestinais crónicas.
sófilo e neutrófilos grandes e hipersegmentados. Embora as anemias megaloblásticas sejam
As causas mais frequentes são a deficiência muito raras na criança, devem fazer parte do
nutricional de folatos e a malabsorção da vitamina diagnóstico diferencial de anemia macrocítica.
CAPÍTULO 37. ANEMIAS 241

Anemias megaloblásticas congénitas não são evidentes alterações megaloblásticas na


O défice congénito mais comum de vitamina medula, nem neutrófilos hipersegmentados no
B12 deve-se a uma incapacidade de absorção do sangue periférico. A correção dos parâmetros
complexo vitamina B12 /factor intrínseco a nível do hematológicos está dependente da resolução da
ileon. Trata-se da doença de Imerslund Grasbeck patologia desencadeante.
que é autossómica recessiva e que se manifesta Entre as anemias não megaloblásticas congéni-
em geral, pelos dois anos de idade, quando se tas as mais frequentes são as anemias deseritropoié-
esgotam as reservas de vitamina B12 de origem ticas congénitas e a anemia de Blackfan-Diamond.
materna. Cursa com anemia macrocítica, por As anemias deseritropoiéticas congénitas (CDA)
vezes leucopenia e trombocitopenia, em cerca são um grupo heterogéneo de anemias resultantes
de metade dos doentes há proteinúria ligeira, de alterações características nas formas tardias dos
sem doença renal, e, se o diagnóstico for feito percursores eritroides. Às formas clássicas: CDA tipo
tardiamente, serão evidentes alterações neuro- I, CDA tipo II e CDA tipo III, juntou-se recentemente
lógicas. As alterações hematológicas controlam- a CDA tipo IV e a CDA com macro-trombocitopenia,
-se com a administração de vitamina B12 por via resultantes de mutações nos genes dos fatores de
intramuscular, que deve ser mantida ad eternum. transcrição KLF1 e GATA1, respetivamente.
O quadro clínico, a transmissão hereditária e As CDA são, em geral, diagnosticadas em
a terapêutica da deficiência congénita de factor crianças ou adolescentes que apresentam esple-
intrínseco é semelhante à doença de Imerslund nomegália, icterícia e anemia com reticulocitose,
Grasbeck, mas sem proteinúria. que é mais baixa do que o esperado atendendo à
A deficiência de transcobalamina é uma gravidade da anemia. No sangue periférico há ani-
doença autossómica recessiva que se manifesta sopoiquilocitose (macrócitos, ovalócitos, microes-
nos primeiros meses de vida por atraso de cres- ferócitos) e, em alguns casos, pontuado basófilo.
cimento, letargia, infeções frequentes, anemia A transmissão hereditária das anemias dos
megaloblástica, ou pancitopenia. O quadro clínico tipos CDA I e II é autossómica recessiva, a das CDA
responde à administração regular de hidroxicoba- III e IV é autossómica dominante e a CDA com
lamina por via intramuscular, de modo a manter macro-trombocitopenia é recessiva ligada ao X.
concentrações séricas elevadas. A anemia de Blackfan-Diamond é um síndro-
me congénito raro caracterizado por hipoplasia/
37.6.2 Anemias macrocíticas aplasia seletiva dos precursores eritróides, de que
não megaloblásticas resulta anemia normocrómica macrocítica, com
reticulocitopenia. O quadro clinico é heterogéneo,
Uma macrocitose, com ou sem anemia, desde casos de anemia ligeira a formas depen-
pode ocorrer no decurso de doença hepática, dentes de transfusões. A atividade da enzima
hipotiroidismo, hemólise, aplasia, infiltração ou adenosina deaminase eritrocitária (eADA) e a
displasia da medula óssea, quadro 3. Ao contrário Hb F estão aumentadas na maioria dos casos.
das anemias megaloblásticas, nestas patologias O diagnóstico é confirmado no primeiro ano de
242 LETICIA RIBEIRO E TABITA MAGALHÃES MAIA

vida em 90% dos casos; cerca de metade associam deste tipo de anemias. Uma anemia pode ser nor-
malformações congénitas. mocítica no estádio inicial, e evoluir para micro
A maioria dos casos são esporádicos, mas ou macrocítica. Quando há associação de vários
também pode haver transmissão autossómica fatores etiológicos, por exemplo nas patologias do
dominante ou ligada ao cromossoma X. O diag- tubo digestivo com malabsorção de ácido fólico e/
nóstico diferencial deve ser feito com eritroblas- ou da vitamina B12 e carência de Fe a anemia pode
topenia transitória da infância ou com infeção ser normocítica com RDW elevado.
por parvovirus B19. Cerca de 40% dos doentes
responde à corticoterapia. 37.8 Anemia no recém-nascido

37.7 Anemias normocíticas As perdas hemorrágicas, nomeadamente a


transfusão feto-materna, são a causa mais comum
As causas mais frequentes de anemia normo- de anemia neonatal. Quando há hemorragia fetal
cítica são: hemorragia aguda, hemólise, doença crónica o recém-nascido (RN) tolera bem a anemia
inflamatória crónica, doença renal, hiperesplenis- que, a maioria das vezes, passa sem diagnóstico.
mo e falência medular (quadro 3). O diagnóstico Se as perdas fetais são agudas, o RN tem um
diferencial é estabelecido com base numa história quadro clínico grave com falência cardiovascular.
clínica cuidadosa e nos exames laboratoriais ne- O diagnóstico de transfusão feto-materna
cessários à pesquisa das etiologias mais frequentes é feito através da pesquisa de células fetais no

Causas obstétricas
Hemorragia feto-materna
Perdas Hemorragia feto-placentar
hemorrágicas Hemorragia feto-fetal
Hemorragia interna
Perdas iatrogénicas (amostras laboratoriais)
Anemias hemolíticas hereditárias - Defeitos de membrana
- Défices enzimáticos
- Hemoglobinopatias
Hemólise Hemólise imune - Incompatibilidade Rh
- Incompatibilidade ABO
Hemólise associada a infecção
Diminuição da Anemia da prematuridade
eritropoiese Infeção por parvovirus B19
Anemia aplásica ou hipoplásica (ie: anemia de Blackfan-Diamond)

Quadro 7. Causas mais frequentes de anemia neonatal.


CAPÍTULO 37. ANEMIAS 243

sangue da mãe com um teste de Kleihauer-Betke fototerapia. Nos casos mais graves é necessária a
ou por quantificação de células fetais por cito- terapêutica com administração de imunoglobulina
metria de fluxo. por via endovenosa e exsanguíneo-transfusão.
Os RN que sofreram perdas hemorrágicas, Alertar os pais no momento da alta para a vigi-
e os prematuros, devem fazer terapêutica com lância de icterícia que é essencial para prevenir
Fe nos primeiros meses de vida na dose de 2 a o kernicterus.
3 mg/Kg/dia. No RN uma anemia com reticulocitopenia é
uma entidade rara, resulta de uma eritropoiese
Num RN com anemia, reticulocitose e bilir- insuficiente, e pode ser transitória - prematuri-
rubina livre aumentada, na ausência de infeção, dade, infeção por parvovirus B19 - ou uma apla-
o diagnóstico mais provável é de incompatibili- sia/hipoplasia eritróide pura, como a anemia de
dade ABO ou Rh, EH, ou mais raramente, uma Blackfan-Diamond.
deficiência de PK.
A história familiar pode ajudar no diagnós- A anemia megaloblástica no período neona-
tico diferencial e a observação morfológica do tal está, frequentemente, associada a uma dieta
ESP permite identificar uma anemia hemolítica vegetariana da mãe e nestes casos só é necessá-
esferocítica. A EH pode ser confundida com a rio suplementar nessa altura com vitamina B12. Os
incompatibilidade ABO porque ambas cursam com défices congénitos de vitamina B12 são raros: os
esferócitos no sangue periférico, pode não ha- défices de transporte manifestam-se no período
ver história familiar de EH e na incompatibilidade neonatal, no entanto, os défices de absorção só se
ABO o teste de antiglobulina directo (TAD) pode manifestam por volta dos dois anos de vida. Todos
ser negativo. Em qualquer das situações deve ser os casos devem ser cuidadosamente diagnosticados
feita uma monitorização cuidadosa, se necessá- e tratados para evitar as complicações neurológicas.
rio, instituir medidas de suporte, e aguardar a
evolução. Se for necessária transfusão ou exsan- Leitura complementar
guíneo-transfusão antes de ter sido estabelecida Hematology in Infancy and Childhood, 7th edition, By Stuart
a etiologia, é imprescindível colher antes uma H. Orkin, MD, David E. Fisher, MD, PhD, A. Thomas Look,
amostra de sangue em anticoagulante (EDTA). MD, Samuel E. Lux, IV, David Ginsburg, MD and David
A incompatibilidade do sistema Rh é, em ge- G. Nathan, MD, 2009
ral, mais grave, o TAD é positivo e, ao contrário Sickle Cell Information Center - http://www.emory.edu/
da incompatibilidade ABO, só acontece depois de PEDS/SICKLE/
uma gestação anterior em que o feto seja Rh D, Current American Academy of Pediatrics Policy Statements
ou a mãe tenha sido transfundida com eritrócitos ­- http://www.aap.org/policy/pprgtoc.cfm
RhD. (consultar http://www.lusoneonatologia.com/ Consenso Clínico “Doença Hemolítica do Feto e Recém-
site/upload/consensos/2014-D_Hemolitica.pdf). nascido”, Secção de Neonatologia, Sociedade Portuguesa
Nos RN com icterícia é imperiosa a monito- de Pediatria. http://www.lusoneonatologia.com/site/
rização dos níveis de bilirrubina, a hidratação e a upload/consensos/2014-D_Hemolitica.pdf
Capítulo 38.
Acidentes e intoxicações

38
Lia Gata
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_38
CAPÍTULO 38. ACIDENTES E INTOXICAÇÕES 247

38.1 CONTEXTO mantem-se significativo o número e sobretudo


a morbilidade associada.
Os acidentes são importantes causas de mor- As crianças, entre um e cinco anos de ida-
bilidade (incapacidade funcional e internamento) de, são particularmente vulneráveis aos aciden-
e de mortalidade na idade pediátrica. Ao longo tes (quedas, queimaduras, afogamento, aspiração
das últimas duas décadas, tem sido constante e ou ingestão de corpos estranhos e intoxicações).
consistente, a redução do número de mortes por A aquisição progressiva de competências motoras e
acidente ou lesão. No entanto, as causas externas cognitivas, permite-lhes mobilidade e expressão do
de lesão e envenenamento são a primeira causa de normal comportamento exploratório, no entanto,
morte de crianças com mais de um ano de idade sem capacidade para reconhecer o perigo. Na idade
e de jovens até aos dezanove anos, em Portugal. escolar são frequentes os traumatismos por queda
Os acidentes rodoviários são a primeira causa de e aumenta o número de traumatismos por acidente
morte acidental. rodoviário. Na adolescência predominam os trau-
Os traumatismos, justificaram cerca de 15% matismos por queda ou acidente rodoviário e as
das admissões no Serviço de Urgência do Hospital intoxicações voluntárias e as intoxicações aciden-
Pediátrico em 2014. As lesões traumáticas in- tais, nomeadamente com substâncias psicoativas.
cluíram, predominantemente lesões ortopédicas,
feridas e traumatismos cranianos. As queimaduras
foram um motivo pouco frequente de admissão 38.2 DESCRIÇÃO DO TEMA
e os afogamentos foram muito raros. Na globa-
lidade, as intoxicações acidentais foram pouco 38.2.1 Acidentes
frequentes, no entanto, no grupo dos adolescen-
tes a intoxicação voluntária representou cerca de Na avaliação e tratamento de um doente que
1% das admissões. sofreu um acidente, independentemente do tipo
Nos últimos anos tem havido várias cam- (traumatismo, intoxicação ou outro) a priorida-
panhas de sensibilização para a prevenção de de é assegurar funções vitais. A metodologia
acidentes em idade pediátrica (i.e. campanhas ABCDE [via aérea (A), respiração (B), circulação
de prevenção de acidentes, quedas, acidentes (C), neurológico - disability (D) e exposição (E)] é
rodoviários, afogamentos e intoxicações da a recomendada. Esta permite avaliar e corrigir, de
Associação para a Promoção da Saúde Infantil forma sequencial e sistematizada, a permeabilidade
- APSI) e mudanças importantes na legislação, da via aérea (A), a ventilação e oxigenação (B),
como o uso obrigatório de sistemas de retenção a frequência cardíaca, tensão arterial e perfusão
para crianças nos automóveis e a proibição de periférica (C), o estado de consciência, tamanho e
publicidade e comércio de novas substâncias reactividade das pupilas (D) e as lesões externas (E).
psicoactivas. No entanto, as estatísticas ainda Nas lesões traumáticas o tratamento da dor
são preocupantes. Apesar da redução da mor- é, também, prioritário e deve ser assegurado logo
talidade associada a alguns tipos de acidentes, após a avaliação primária (ABCDE).
248 LIA GATA

38.2.1.1 Aspiração de corpo estranho ser evitada, adiando a colocação de acesso venoso
A idade de maior risco situa-se entre os seis ou a realização de radiografia e deixando a crian-
meses e os três anos. As crianças colocam objetos ça em posição confortável, tomando as medidas
na boca como forma de exploração do ambiente, necessárias para a realização emergente de bron-
a mastigação é ainda imatura por ausência de coscopia rígida com apoio anestésico. Quando a
molares e a via aérea é estreita. situação evolui para paragem respiratória devem
Os corpos estranhos (CE) mais frequente- ser, de imediato, instituídas medidas de suporte
mente aspirados são de origem vegetal (amen- básico de vida (ver lição de suporte básico de vida
doim, castanha, tremoço ou feijão), mas qualquer e noções de suporte avançado de vida).
objeto pode ser aspirado.
As manifestações clínicas são variadas e ines- Factos a reter
pecíficas (estridor, tosse, dificuldade respiratória, Perante uma história consistente de aspira-
febre, sibilos ou assimetria do murmúrio vesicular). ção de CE e manifestações clínicas sugestivas deve
Nem sempre o episódio de engasgamento/ ser realizada broncoscopia diagnóstica, mesmo
sufocação foi presenciado mas o seu relato é o que a radiografia do tórax seja normal.
dado clínico mais importante para o diagnóstico;
estes episódios caracterizam-se por tosse, dificul- 38.2.1.2 Ingestão de corpos estranhos
dade respiratória, apneia, com ou sem cianose A ingestão acidental de corpos estranhos
ou vómito. ocorre mais frequentemente em crianças entre os
A obstrução por CE pode ocorrer a nível da seis meses e os três anos de idade. Num número
via aérea principal (laringe ou traqueia) mas mais significativo de casos a criança é levada ao serviço
frequentemente ocorre a nível brônquico. de urgência, apesar de estar assintomática, por-
Os CE localizados a nível da via aérea prin- que a ingestão foi presenciada. As manifestações
cipal são potencialmente mais graves pelo risco clínicas mais frequentes são: salivação excessiva,
de obstrução completa. recusa alimentar, disfagia e dor cervical ou retro-
A maioria dos CE não é radiopaca e um quar- -esternal.
to das radiografias do toráx é normal. Os achados A localização e tipo do corpo estranho são
radiológicos incluem hiperinsuflação localizada, determinantes para a decisão de remoção por
atelectasia e consolidação pulmonar. O atraso no via endoscópica.
diagnóstico pode causar pneumonia, enfisema A radiografia permite a identificação e lo-
obstructivo e bronquiectasias ou abcessos. calização de corpos radiopacos (osso ou metal).
A maioria das crianças apresenta obstrução A nível esofágico existem três locais anató-
parcial da via área e nestes casos será necessário micos de constrição natural onde pode ocorrer a
garantir a oxigenação até à realização de bron- impactação do corpo estranho: músculo cricofa-
coscopia que será diagnóstica e terapêutica. Nos ríngeo, arco aórtico e esfíncter esofágico inferior.
casos em que via aérea está instável com risco de São indicações para endoscopia urgente: pi-
obstrução total, a manipulação da criança deve lhas tipo disco impactadas no esófago, obstrução
CAPÍTULO 38. ACIDENTES E INTOXICAÇÕES 249

esofágica por alimentos e objetos cortantes ou fatores: estadío do desenvolvimento psicomotor


pontiagudos retidos no esófago ou estômago. da criança; características físicas do tóxico e da
O mecanismo principal pelo qual as pilhas tipo embalagem; acessibilidade ao tóxico e supervisão
disco podem causar lesão grave com perfuração por adultos. A criança, sobretudo entre o um e os
esofágica é a hidrólise dos tecidos adjacentes ao cinco anos, tem especial interesse pela exploração
polo negativo da pilha onde é gerada a corrente do ambiente, é atraída por substâncias coloridas
elétrica; a lesão pode ocorrer por pressão local ou embalagens que lhe são familiares e não tem
com risco de isquémia e por queimadura secun- ainda noção de risco. Se o tóxico estiver acessível
dária ao derrame do conteúdo da pilha. Foram e a supervisão pelos adultos for inadequada o
descritas lesões esofágicas graves apenas duas contacto poderá ocorrer. São exemplo de situa-
horas após ingestão de pilhas. ções de risco elevado, comprimidos deixados ao
A ingestão de moedas raramente é uma ur- alcance da criança e produtos de limpeza guar-
gência, estando indicada a sua remoção se esti- dados em embalagens originais ou não originais
verem localizadas a nível esofágico e causarem mas de uso comum (garrafa de água) acessíveis
sintomas. Atenção que a localização esofágica à criança. Raramente, a intoxicação resulta de
alta pode causar obstrução da via área por com- doses elevadas inadvertidamente administradas.
pressão da traqueia. Na adolescência as intoxicações são maiori-
tariamente intencionais, com recurso a fármacos
Factos a reter disponíveis no domicílio.
A presença de uma pilha no esófago está As intoxicações ocorrem maioritariamente
associada a risco elevado de lesão esofágica grave, por ingestão, no domicílio e no final do dia. Na
pelo que há indicação para remoção endoscópi- infância, o pedido de ajuda e assistência é mais
ca urgente, mesmo se decorrido pouco tempo precoce, pelo que um número muito significativo
desde a ingestão e ainda que a criança esteja de crianças não desenvolve sintomas. Na adoles-
assintomática. cência as intoxicações são na maioria dos casos
sintomáticas, resultantes da exposição a maior
38.2.2 Intoxicações quantidade de tóxico ou ingestão de múltiplos
tóxicos e de pedido de ajuda e intervenção tera-
O pico de incidência das intoxicações ocor- pêutica mais tardios.
re entre o primeiro e quarto ano de vida. Um Na infância, em Portugal, os fármacos são
segundo pico ocorre na idade adulta, entre os as sustâncias mais envolvidas em intoxicações: o
30 e os 50 anos, mas com menor expressão em paracetamol com maior frequência, seguido dos
termos de incidência. Na infância há um predo- anti-inflamatórios não esteróides, anti-histamí-
mínio de intoxicações no sexo masculino que se nicos sistémicos, ansiolíticos (benzodiazepinas) e
inverte a partir dos dez anos e que se mantem antipsicóticos. Os produtos de uso doméstico e
na idade adulta. Na infância, as intoxicações são industrial (lixívia de uso doméstico e detergentes
maioritariamente acidentais e resultam de vários manuais) ocupam o segundo lugar. Os cosméticos
250 LIA GATA

ocupam o terceiro lugar e os pesticidas o quar- Frequentemente a exposição é múltipla. A dose de


to. Neste último grupo destacam-se os raticidas fármacos ingerida pode ser estimada se conhecido
anticoagulantes. o número de comprimidos que existia no domicí-
Também na adolescência predominam as lio, a sua dosagem e o número de comprimidos
intoxicações por fármacos, destacando-se as in- em falta nas embalagens.
toxicações por ansiolíticos, seguidas das intoxica- O Centro de Informação Antivenenos (CIAV),
ções por outros psico-fármacos (antidepressivos e pode ser uma fonte imediata de informação sobre
antipsicóticos). A intoxicação por etanol é, ainda, a toxicidade de substâncias menos conhecidas e
uma causa frequente de intoxicação. São raras as sobre as medidas terapêuticas recomendadas.
intoxicações com produtos de uso doméstico e No entanto, o mais urgente num doente ex-
industrial e com pesticidas. O número de intoxica- posto a uma substância tóxica é assegurar funções
ções por novas substâncias psicoactivas (criadas e vitais e preservar a função de orgãos.
sintetizadas para imitar os efeitos de substâncias,
naturais ou sintéticas, já controladas no âmbito das 1. A avaliação inicial deve obedecer à me-
leis) diminuiu de forma muito significativa após a todologia de avaliação do doente crítico,
publicação, em 2013, de legislação que proíbe a ou seja, ABCDE.
venda, produção e publicidade destas substâncias, 2. Se disponível, outro membro da equi-
antes vendidas em “smart-shops” e on-line, sob pa deverá obter junto da família ou
a forma de incensos, fertilizantes e sais de ba- acompanhante informação sobre o(s)
nho. Estas substâncias, consumidas pelos efeitos tóxico(s), dose e hora de exposição,
estimulantes e alucinogénicos, podem ter efeitos sintomas e medidas terapêuticas ins-
adversos graves e não previsíveis uma vez que a tituídas (i.e. doente transferido de outra
composição e concentração são desconhecidas. unidade de saúde onde foi administrado
descontaminante intestinal).
38.2.2.1 Terapêutica 3. A remoção do tóxico, pode diminuir a
Na maioria dos casos, na infância, a subs- dose absorvida. O carvão ativado é a me-
tância tóxica é conhecida. Por vezes a história de dida de descontaminação intestinal
intoxicação é clara, no entanto a substância impli- recomendada nas intoxicações por inges-
cada é desconhecida, porque a família não sabe o tão. O carvão ativado é administrado por
que estava na embalagem, ou não a trouxe ou a via oral ou através de sonda nasogástri-
informação do rótulo não é esclarecedora. Além ca (dose 1g/kg); tem eficácia máxima na
da substância, pode ser determinante para a orien- primeira hora após ingestão do tóxico,
tação terapêutica, conhecer a quantidade ingerida pelo que raramente tem vantagem após
(dose por kilograma a que a criança foi exposta) e este período. A maioria das substâncias
o tempo que decorreu desde a exposição. é adsorvida pelo carvão ativado, exceto
Na adolescência é, habitualmente, mais difícil ácidos e bases, álcoois (etanol e etileno-
esclarecer quais as substâncias e dose ingeridas. glicol), inseticidas e pesticidas (excluindo
CAPÍTULO 38. ACIDENTES E INTOXICAÇÕES 251

o paraquat), metais (ferro e lítio) e hidro- ocular (D - decontamination). No E devem


carbonetos. A administração do carvão ser diagnosticadas e tratadas as altera-
ativado está contra-indicada quando ções electrocardiográficas com risco de
a via área não está segura (i.e. doente arritmia, por exemplo prolongamento do
com depressão do estado de consciência). QRS por intoxicação com antidepressivos
A diluição (ingestão de água ou leite) tricíclicos. A hipertermia (F) pode ser um
e a indução do vómito com xarope de sinal de intoxicação (i.e. salicilatos).
ipeca, estão contra-indicados. A lavagem
gástrica prévia à administração de car- 38.2.2.2 Tóxicos específicos
vão ativado não tem vantagem adicional
para a redução da absorção intestinal Ingestão de Paracetamol
dos tóxicos. A toxicidade por paracetamol pode causar
4. São poucos os tóxicos com antídotos e falência hepática aguda. Nas primeiras horas o
a sua administração não tem prioridade doente está assintomático e os sintomas iniciais são
sobre as intervenções que visam asse- inespecíficos (náuseas e vómitos). A elevação das
gurar as funções vitais. São exemplos de transaminases tem início após as primeiras 24 horas.
antídotos, a N-acetlcisteína para o para- Não ocorrerá toxicidade hepática, se a ad-
cetamol, a naloxona para os opiáceos e ministração do antídoto (N-acetilcisteína) for
o flumazenil para as benzodiapepinas. iniciada nas primeiras oito horas (duração da
5. A avaliação inicial, na intoxicação aguda, perfusão endovenosa - 21 horas). Uma dose in-
tem especificidades: ABCD3EF. gerida superior a 150 mg/kg ou 7,5 g (adulto)
O D3 inclui: disability (estado de consciên- tem risco de toxicidade. O nível sérico de para-
cia, tamanho e reactividade das pupilas), cetamol e a sua interpretação de acordo com a
drugs e decontamination. O E representa curva de toxicidade do nomograma (100mg/L
electrocardiogram e o F fever. A hipogli- à quarta hora após ingestão), determinam a in-
cémia pode ser a causa de alteração do dicação para tratamento com N-acetilcisteína.
estado de consciência (D – disability) e O nomograma só pode ser utilizado a partir da
deve ser corrigida nesta fase com bólus quarta hora após ingestão.
de glicose endovenosa (D – drugs), se não
foi previamente diagnosticada. Um doen- Ingestão de benzodiazepinas
te em coma com pupilas mióticas deve Os sintomas mais comuns são: sonolência,
evocar uma intoxicação por opiáceos (D incoordenação motora, ataxia e disartria. Na into-
- disability) e neste caso está indicada xicação acidental o quadro é habitualmente ligeiro,
a administração do antídoto naloxona de início súbito e regride rapidamente, pelo que
(D - drugs); nesta fase há também indi- será necessária observação no serviço de urgência
cação para descontaminação urgente, durante algumas horas. A ingestão é comprovada
por exemplo remoção de caústico a nível pela deteção de benzodiazepinas na urina.
252 LIA GATA

Na intoxicação grave com depressão do es- inibem a síntese de fatores da coagulação


tado de consciência e depressão respiratória, está dependentes da vitamina K, pelo que a sua
indicada a administração do antídoto, flumazenil. toxicidade se traduz por prolongamento do
A oxigenação deve ser assegurada, se necessário tempo de protrombina (TP) e aumento do ín-
com suporte ventilatório (B da avaliação ABCDEF), dice internacional normalizado (INR). As alte-
tendo esta prioridade sobre a administração do rações analíticas precedem as manifestações
antídoto. hemorrágicas e podem ser detetadas ao fim
das primeiras 24 horas.
Ingestão de etanol Na intoxicação acidental, a dose ingerida
A intoxicação ligeira carateriza-se por: al- é habitualmente muito pequena (menos de um
teração do humor com desinibição, euforia e bloco de raticida) e o risco de toxicidade é quase
verborreia ou discurso lentificado e vómitos; a inexistente. Nestes casos, a vigilância pode ser
intoxicação grave causa depressão do estado de efetuada no domicílio, recomendando-se no en-
consciência. O hálito etílico é um dado clínico tanto a determinação do TP e INR às 24 e às 48
que auxilia no diagnóstico. O nível sérico de horas após ingestão. A ausência de coagulopatia
etanol correlaciona-se com a gravidade clínica e às 48 horas exclui toxicidade.
a sua determinação está indicada na intoxicação Na ingestão de doses tóxicas (intoxicação
moderada ou grave, se dúvida diagnóstica ou intencional), está indicada a administração de
se traumatismo (i.e. doente em coma e com carvão activado na primeira hora. Neste caso,
sinais de traumatismo por queda). A hipogli- será necessária a vigilância clínica no hospital,
cémia e a hipotermia são as complicações mais com monitorização do TP e INR. A administração
frequentes. profilática de vitamina K não tem vantagem e a
Na intoxicação moderada ou grave é prio- vitamina K só está indicada em quadro de coa-
ritário assegurar funções vitais (ABCDEF) e cor- gulopatia e enquanto este persistir.
rigir a hipoglicémia com glicose endovenosa
e a hipotermia com medidas de aquecimento Ingestão de Caústicos
externo. A administração de carvão ativado só A ingestão acidental de caústicos por crian-
tem utilidade se houver co-ingestão de subs- ças resulta do acondicionamento do produto em
tâncias absorvíveis. embalagens não originais (i.e. garrafas de água) e
A maioria dos casos ligeiros ou moderados da utilização indevida no domicílio de produtos de
regride em horas. uso industrial (altamente corrosivos), deixados ao
alcance da criança. As substâncias mais frequente-
Ingestão de raticidas mente implicadas têm pH alcalino e estão presentes
Os raticidas mais comercializados em em produtos de limpeza doméstica e industrial.
Portugal são as superwarfarinas; têm potência É importante identificar o produto e o pH
e semi-vida superior à da warfarina, dos rati- do mesmo (potência do ácido ou da base) para
cidas de primeira geração. As superwarfarinas prever a gravidade das lesões associadas.
CAPÍTULO 38. ACIDENTES E INTOXICAÇÕES 253

O hipoclorito de sódio (lixívia doméstica) é Factos a reter


uma base fraca, que apenas poderá causar irrita- 1.A intoxicação por paracetamol pode ser
ção das mucosas, não estando indicada qualquer assintomática nas primeiras horas e os
medida terapêutica. sintomas iniciais são inespecíficos. Um
Os sintomas e sinais mais frequentes re- nível sérico acima da curva do nomo-
sultantes da ingestão de cáusticos são: lesões grama, quatro horas ou mais após inges-
orais e faríngeas por corrosão, salivação, dis- tão, indica necessidade de tratamento
fagia, vómitos, dor abdominal e em casos gra- com antídoto. Se a administração de
ves obstrução da via área superior por edema N-acetilcisteína for iniciada nas primeiras
laríngeo. oito horas, será evitada a hepatoxicidade.
Estão contra-indicados, a diluição com 2.Suspeitar de intoxicação por benzodiaze-
água ou leite, ou a indução de vómito. A avaliação pinas, se quadro sugestivo e de início
endoscópica de lesões esofágicas deve ser reali- súbito, em crianças de um a cinco anos.
zada sempre que haja forte suspeita de ingestão, Nestes casos a deteção de benzodiaze-
mesmo que não estejam presentes lesões orais. pinas na urina é útil.
O tratamento com inibidores da bomba de pro- 3.A intoxicação etílica deve ser considerada
tões está recomendado quando há lesão esofági- possível em jovens com alteração do es-
ca. A utilização de corticoides é controversa e o tado de consciência. Na intoxicação não
seu uso não está recomendado. A antibioterapia presenciada o hálito etílico é orientador
de largo espetro está indicada quando há evi- e a determinação do nível sérico é um
dência de perfuração esofágica. A manutenção indicador adicional da gravidade. A hipo-
do tratamento depende da presença e gravidade glicémia é uma complicação frequente.
das lesões de esofagite. A estenose esofágica é 4.O risco de toxicidade por superwarfarinas
a complicação mais frequente. é mínimo quando foi ingerida pequena
quantidade, o que acontece nas into-
Maus tratos xicações acidentais em crianças. Nas
Deve ser considerada a hipótese de maus ingestões voluntárias, o risco de toxici-
tratos: em crianças com idade inferior a 12 me- dade é superior, pois as doses ingeridas
ses ou compreendida entre os seis e os 11 anos são habitualmente elevadas. A alteração
(idades em que as intoxicações acidentais são do INR e do TP pode ocorrer até às 48
menos frequentes), quando a história descrita horas, sem qualquer sintomatologia
pelos cuidadores é inconsistente, a dose de tóxico acompanhante.
a que a criança foi exposta é elevada, estão envol- 5.A lixívia doméstica é um produto com
vidos múltiplos tóxicos ou substâncias de abuso, toxicidade mínima e a sua ingestão não
há antecedentes familiares de intoxicação (i.e. implica medidas terapêuticas.
irmãos) e quando há evidência de outras formas 6.Na ingestão de caústicos a avaliação en-
de abuso ou negligência. doscópica de lesões esofágicas deve ser
254 LIA GATA

realizada mesmo que não haja lesões • proteção de piscinas e outros planos de
orais. água construídos em edifícios residen-
7.A intoxicação aguda pode ser uma forma ciais, estabelecimentos educativos e es-
de apresentação de maus tratos, sobre- paços de lazer.
tudo em crianças com idades não com- • alterações nas construções de forma a
preendidas entre um e os cinco anos, evitar quedas de janelas de edifícios com
quando são mais frequentes as intoxi- mais de um andar (i.e. guardas ou limi-
cações acidentais. tadores de abertura).
• obrigatoriedade de embalagens de me-
38.2.3 Prevenção dicamentos com abertura resistente às
crianças.
A prevenção de acidentes é a medida mais • embalagens de produtos de utilização do-
determinante para a redução da mortalidade em méstica com abertura resistente às crianças.
idade pediátrica, em Portugal. • os cuidados no acondicionamento e ar-
Entre múltiplas medidas preventivas, de rumação de produtos de utilização do-
grande impacto, destacam-se: méstica.
• divulgação de informação e recomen-
• uso correto e sistemático de sistemas de dações de segurança sobre o risco de
retenção para crianças nos automóveis. asfixia com alimentos, balões, sacos de
• utilização do cinto de segurança. plástico, bolsas de transporte, fios de
• utilização correta e sistemática de capa- estores/cortinas e cordões da roupa.
cete pelas crianças e adolescentes. • divulgação, junto dos jovens, dos riscos
• redução da velocidade junto de estabele- do consumo de substâncias psicoativas.
cimentos educativos e zonas residenciais.
Capítulo 39.
Criança maltratada

39
Jeni Canha
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_39
CAPÍTULO 39. CRIANÇA MALTRATADA 257

39.1 CONTEXTO negligência, da agressão psicológica, do abuso


sexual, entre muitos outros.
A história da violência exercida sobre a crian- Muitas situações de maus tratos infantis
ça é conhecida, desde a antiguidade aos nossos e do adolescente ficam ainda no anonimato e
dias, confundindo-se com a história da própria hu- dolorosamente silenciadas por incapacidade de
manidade, embora o conceito de mau trato ape- muitos técnicos, que, ou não têm a capacidade
nas tenha sido definido e identificado na segunda de os identificar, ou ingenuamente acreditam que
metade de século XX. A aquisição progressiva de essas situações possam vir a melhorar, e até a
novos conceitos sobre a criança, nomeadamente o resolver-se, com o passar do tempo. A experiên-
reconhecimento como ser autónomo e interativo cia mostra-nos uma realidade bem mais trágica.
desde o nascimento, o conhecimento das suas É fundamental ter a noção de que o mau trato
necessidades básicas, a importância da vinculação exercido sobre a criança tem um carácter recorren-
mãe-filho e da estimulação para o seu crescimen- te e progressivo, que se vai repetindo ao longo do
to e desenvolvimento, bem como a necessidade tempo, provocando lesões cada vez mais graves.
da sua proteção, modificaram decisivamente as Os maus tratos são frequentes, desconhe-
atitudes face à criança. Só à luz destas novas cendo-se no entanto a sua verdadeira incidência.
aquisições foi sendo possível a identificação de Nos EUA, cerca de 1.4 milhões de crianças por ano
diferentes formas de a maltratar. (3% da população abaixo dos 18 anos) sofrem
pelo menos um tipo de abuso; 160.000 crianças/
Foram surgindo diversas propostas para ano sofrem lesões graves; aproximadamente 1.500
designar e definir esta «nova doença», acabando crianças morrem por ano devido a lesões físicas.
por prevalecer o termo «criança maltratada». Em
1969, D. Gil definiu mau trato como «qualquer Além de poder provocar a morte, particu-
ato deliberado, por omissão ou negligência, ori- larmente no primeiro ano de vida, pode causar
ginado por pessoas, instituições, ou sociedades, lesões cerebrais de que resultam défices neuro-
que prive a criança dos seus direitos e liberdades lógicos irreversíveis e ser responsável por muitas
ou que interfira com o seu desenvolvimento», outras sequelas a curto, médio e longo prazo.
conceito que continua atual e unanimemente As principais sequelas a longo prazo incluem o
aceite. atraso de crescimento, o atraso de desenvolvimen-
Dadas as suas características próprias, por ser to, problemas cognitivos, atraso de linguagem,
mais pequena, dependente e indefesa, a criança dificuldades de relacionamento social, insucesso
é um dos elementos da família de maior vulne- escolar, perturbações da personalidade, baixa da
rabilidade, constituindo um alvo fácil e frequente autoestima, aumento de comportamentos de-
da violência doméstica e de todo o tipo de abuso linquentes e de criminalidade. Acresce, ainda,
ou exploração. Embora a violência física seja a que a convivência diária com um meio familiar
sua faceta mais visível, muitos outros tipos de violento e conflituoso proporciona a aquisição
maus tratos, e não menos nefastos, resultam da de modelos de vida deturpados, considerados
258 JENI CANHA

responsáveis pela perturbação da relação entre o Núcleo Hospitalar de Apoio à Criança e Jovem
pais e filhos e pela transmissão do mau trato às em Risco, criado em 1985.
gerações seguintes.
Trata-se, portanto, de uma patologia que 39.2 DESCRIÇÃO DO TEMA
deve preocupar não só pela sua frequência mas,
principalmente pela potencial gravidade. 39.2.1 Fisiopatologia
Por todas estas razões, o diagnóstico pre-
coce do mau trato e a sua orientação adequada Na fisiopatologia do mau trato é classica-
tornam-se indispensáveis para evitar a cascata mente considerada uma tríade de fatores de ris-
de acontecimentos mais ou menos previsíveis e co: fatores inerentes aos pais, fatores inerentes
altamente danosos do percurso de vida de uma à criança, associados geralmente a uma situação
criança maltratada. de crise familiar.
A responsabilidade de todos os técnicos que
trabalham com crianças - médicos, enfermeiros, Factores de risco nos pais:
educadores, professores, técnicos de serviço • baixo nível socioeconómico e cultural.
social, psicólogos ou outros - é hoje acrescida. • antecedentes de maus tratos na sua pró-
Ignorar um caso de maus tratos é pôr em cau- pria infância.
sa a vida e o futuro de uma criança e perder a • pais muito jovens (mães adolescentes sem
oportunidade de intervir numa família em crise. apoio ou suporte familiar).
Conhecer os factores favorecedores do apa- • défice intelectual de um ou de ambos os
recimento dos maus tratos, os seus diferentes progenitores.
tipos, as principais manifestações e formas de • personalidade imatura, impulsiva ou
apresentação, a conduta mais adequada e as agressiva.
medidas de prevenção, tornam-se tarefas prio- • hábitos de alcoolismo ou de consumo de
ritárias para compreender esta problemática e drogas.
permitir planear e pôr em prática as estratégias • ausência de hábitos de trabalho.
de apoio e vigilância às crianças e respectivas • mudanças frequentes de parceiros e de
famílias. residência.
• antecedentes de criminalidade.
No Hospital Pediátrico de Coimbra foram
diagnosticadas centenas de crianças vítimas de Factores de risco nas crianças:
maus tratos, a grande maioria das quais nas úl- • crianças pequenas (abaixo dos três anos).
timas duas décadas. Apesar de poder ter existi- • fruto de gravidez de mãe muito jovem,
do um aumento da violência, o maior número solteira ou só.
de diagnósticos deve-se à maior capacidade de • fruto de gravidez não desejada.
identificação dos casos, resultante do trabalho e • separação prolongada da mãe no período
preparação da equipa multidisciplinar que integra pós parto.
CAPÍTULO 39. CRIANÇA MALTRATADA 259

• crianças que não correspondem às ex- Os dois sexos são igualmente atingidos, à
pectativas dos pais. exceção dos casos de abuso sexual, em que con-
• crianças com deficiência, portadoras de tinuam a predominar as vítimas do sexo feminino.
doença crónica ou de défice intelectual. O espetro deste tipo de abuso tem vindo, no
• crianças com alterações de comporta- entanto, a modificar-se, registando-se nos últi-
mento. mos anos um aumento do número de rapazes
• crianças com insucesso escolar. abusados sexualmente.

Situação de crise: 39.2.2 Tipos de maus tratos


• agravamento de dificuldades económicas.
• acontecimento perturbador da dinâmica Podem classificar-se os maus tratos infantis
familiar (separação ou divórcio dos pais, em diversos tipos: o mau trato físico, a negli-
recaída de alcoolismo/toxicodependência). gência, o abuso sexual, o mau trato psico-
• depressão da mãe ou do pai. lógico, o abandono, a rejeição, o síndrome
• morte de familiar. de Munchausen por procuração, a prática da
mendicidade, a exploração pelo trabalho, a
O mau trato atinge crianças de todas as prostituição infantil.
idades, sendo no entanto mais frequente nas
crianças mais pequenas, as mais dependentes e No mau trato físico, cujo protótipo é a
indefesas. Cerca de 80% dos casos fatais ocor- criança batida, estão incluídos a criança abanada,
re nos primeiros quatro anos de vida, metade os ferimentos, as equimoses e hematomas, as
dos quais no primeiro ano. Dos casos fatais, 50 queimaduras, as fraturas, os traumatismos cra-
a 80% apresenta evidências de lesões de maus nioencefálicos e as intoxicações. Este tipo de mau
tratos anteriores. trato é responsável por elevada morbilidade e
constitui a principal causa de mortalidade.
É conhecido que o mau trato acontece em
todas as camadas sociais, económicas e culturais, A negligência consiste na incapacidade de
embora seja mais frequente nas famílias mais po- proporcionar à criança a satisfação das suas neces-
bres, com baixo nível de instrução e cultura, nas sidades básicas de higiene, alimentação, afeto, saú-
famílias mais desorganizadas e disfuncionais, com de e vigilância, indispensáveis ao seu crescimento
más condições habitacionais, de sobrelotação e e desenvolvimento normais. É o tipo de mau trato
ambientes de promiscuidade. Pais pertencentes mais frequente, com graves repercussões, nomea-
às classes sociais mais elevadas também podem damente o risco de morte, de acidentes, atraso
maltratar os seus filhos, a maior parte das ve- de crescimento e de desenvolvimento psicomotor.
zes fazem-no de forma mais subtil, sem marcas
aparentes, de que o mau trato psicológico é o O abuso sexual implica o envolvimento da
exemplo paradigmático. criança ou adolescente em atividades que visam a
260 JENI CANHA

satisfação sexual de um adulto ou de outra pessoa frequente a associação de vários tipos de agressão
mais velha, geralmente sob coação da força ou da na mesma criança, o que naturalmente agrava as
ameaça. Estão incluídas nesta definição a partici- suas repercussões.
pação da criança em atividades de exibicionismo,
fotografia ou filmes pornográficos, contatos com 39.2.3 Agressor
os órgãos sexuais, penetração anal ou vaginal ou
práticas sexuais aberrantes. Isto significa que uma Na grande maioria dos casos, os maus tratos
criança pode ser abusada sexualmente sem que infantis são provocados dentro da própria família,
apresente lesões físicas, nomeadamente a nível geralmente pelo elemento que cuida da criança,
dos órgãos genitais. a mãe, o pai, o companheiro/a de um dos pro-
genitores ou a ama.
O mau trato psicológico resulta da inca- Os agressores do sexo feminino são os mais
pacidade em proporcionar à criança um ambiente frequentes; os do sexo masculino são os que agri-
de tranquilidade, bem estar emocional e afetivo. dem geralmente com maior violência, provocando
Estão incluídas neste tipo, a ausência de afeto, as as lesões e sequelas mais graves.
recriminações e humilhações verbais frequentes, Mesmo nos casos de abuso sexual, a grande
as situações de grande violência e conflito familiar maioria dos casos é provocada por um dos ele-
que originem um clima de terror e de medo. mentos do agregado familiar, pessoas conhecidas
ou da confiança da criança e da família. Pertencem
O abandono inclui as crianças abandonadas maioritariamente ao sexo masculino.
nas maternidades, hospitais ou outras instituições
ou as crianças fechadas em casa ou deixadas na 39.2.4 Manifestações clínicas
rua, sem providência de alimentação e vigilância.
As manifestações clínicas são muito variadas,
A rejeição deve ser entendida como o não dependendo do tipo do mau trato, não existindo
reconhecimento da criança como elemento da fa- lesões patognomónicas. São consideradas lesões
mília por parte de um ou de ambos os progenitores, sugestivas: as equimoses e hematomas com tem-
associado à ausência de ligação afetiva e emocional. pos de evolução diferente, com diferentes colo-
rações, localizados preferencialmente na face,
O síndrome de Munchausen por pro- pescoço, pavilhões auriculares, tronco e nádegas;
curação, raro, consiste na simulação de sinais e hematoma subdural em lactentes, particularmente
sintomas por um elemento da família, criando se associados à presença de hemorragias reti-
doenças na criança que obrigam a sucessivos nianas.
internamentos e investigações.
Sinais de alarme
Cada um destes tipos de maus tratos pode Devem ser considerados sinais de alarme
ser exercido isoladamente. No entanto, é mais nos primeiros três anos de vida:
CAPÍTULO 39. CRIANÇA MALTRATADA 261

• consultas médicas muito frequentes, apa- • diagnóstico de doenças sexualmente


rentemente sem razão. transmitidas.
• aspeto malcuidado ou sujo. • lesões inflamatórias anais ou genitais.
• manifestação de fome no regresso à cre-
che (i.e.após fim de semana). 39.2.5 Diagnóstico
• má progressão ponderal ou malnutrição.
• criança triste ou demasiado assustada. Perante a suspeita de uma situação de maus
• história de quedas frequentes - da cama, tratos, conhecendo os fatores de risco e manifes-
do colo, de escadas. tações clínicas sugestivas, é indispensável efetuar
• história de intoxicações - medicamentos, um exame físico completo à criança e obter uma
bebidas alcoólicas, cáusticos história clínica minuciosa. O índice de suspeita
queimaduras. associado à recolha dos dados, constituem os
• equimoses e/ou hematomas - face, mãos, passos mais importantes para a identificação de
unhas, tronco, nádegas. uma criança maltratada.
• fraturas dos membros no primeiro ano Uma história inverosímil, com diversas
de vida /traumatismo craniano. versões ou contradições, a observância de dis-
crepâncias entre a história relatada e as lesões
Na criança mais crescida apresentadas, aliadas a um atraso na procura
• equimoses ou hematomas frequentes. de cuidados médicos, constituem a chave para
• história de «acidentes» de repetição. o diagnóstico.
• diminuição do rendimento ou insucesso
escolar. 39.2.6 Orientação
• perturbações do sono.
• perda do controlo de esfíncteres. A orientação destes casos deve estar a car-
• manifestações ou queixas psicossomáticas. go de profissionais experientes e diferenciados.
• alterações de comportamento – isolamen- A criança e a família devem ser ouvidas e aten-
to, tristeza, agressividade, fugas de casa didas em separado, em ambiente de privacidade
• depressão, tentativa de suicídio. e confidencialidade.
O principal objetivo da equipa responsável
No caso do abuso sexual, além dos sinais deve consistir na proteção da criança e interven-
atrás mencionados, devem ser considerados ção na família, criando as condições para o seu
sinais de alarme: regresso ao domicílio sem riscos, evitando que
os maus tratos continuem. Na prática, poderá ser
• relato ou confissão da criança. necessária a separação temporária da criança do
• corrimentos genitais crónicos. seu ambiente familiar, ao mesmo tempo que se
• lesões traumáticas dos genitais, anais ou iniciarão todas as medidas para o estudo familiar
do períneo. e social completo.
262 JENI CANHA

A separação da criança far-se-á através do responsabilidade pela educação e vigilância das


internamento hospitalar, se a situação clínica o crianças, dedicando mais atenção e afeto às crian-
exigir. Quando esta necessidade não se verifica, ças, não deixando de impor as regras de conduta
as alternativas incluem o recurso a um elemento recomendadas em cada caso. Passou, assim, a
da família que mereça confiança, a um centro de ser a extensão da equipa hospitalar na família
acolhimento ou outra instituição, enquanto se e o interlocutor privilegiado entre os técnicos, a
processa o estudo das soluções mais adequadas. família, a creche e a escola.
Seja qual for a solução encontrada para cada O investimento na procura de uma pessoa
caso, as crianças e respetivas famílias deverão de referência foi regra, embora em muitos casos
ser acompanhadas regular e continuadamente, não fosse possível encontrar essa pessoa, sim-
com visitas domiciliárias, depois de identificadas. plesmente porque não existia.
O diagnóstico, que vai permitir a abertura à in- No estudo prospectivo de cinco anos de
tervenção dos técnicos numa família em crise, é acompanhamento de 102 crianças maltratadas,
apenas o primeiro passo de um longo percurso que efectuámos, comparando o grupo de crianças
que visará a vigilância e segurança da criança. com intervenção de uma pessoa de referência com
Já havia sido provado por vários estudos que o grupo de crianças sem pessoa de referência,
o apoio domiciliário reduz o número de crianças obtiveram-se melhores resultados no primeiro
maltratadas ou negligenciadas, o número de nas- grupo. Constatou-se uma diferença estatistica-
cimentos não programados, a menor dependência mente significativa no que diz respeito à menor
das famílias da segurança social e a menor vio- frequência e menor gravidade das recidivas, às
lência dentro da família, entre outros benefícios. melhores competências no quociente de desenvol-
vimento e nas capacidades intelectuais, na lingua-
A estratégia inovadora de intervenção no gem e no comportamento. Neste grupo, estava
Hospital Pediátrico, desde os anos 80, pelo Núcleo ainda integrado, com diferenças estatisticamente
Hospitalar de Apoio à Criança de Risco, com o significativas, o maior número de crianças que
recurso a uma pessoa de referência, veio revelar obtiveram melhor rendimento escolar, a maior
resultados altamente encorajadores no seguimen- percentagem das que tinham um autoconceito
to destas crianças e suas famílias. Investiu-se na positivo e uma expetativa positiva quanto à sua
procura em cada agregado familiar, sobretudo na vida futura.
família alargada, de um elemento de confiança,
aceite e respeitado na família e na comunidade, 39.2.7 Prevenção
com capacidade de exercer alguma autoridade e
lhes pudesse servir de modelo, impondo regras A prevenção deve constituir parte importan-
e normas de vida. Este elemento foi designado te da estratégia e da atitude no que diz respeito
por “pessoa de referência”. à abordagem dos maus tratos infantis.
A pessoa de referência – avó, tia, madri- A prevenção primária tem como objetivo
nha ou até uma vizinha – passou a assumir a principal a identificação das crianças e famílias de
CAPÍTULO 39. CRIANÇA MALTRATADA 263

risco. Com o conhecimento dos fatores de risco, A mãe tinha 19 anos, não tinha profissão ou ocu-
é possível a identificação de potenciais crianças pação laboral. O pai, de 20 anos, sem trabalho, era
de risco durante a gravidez, na maternidade e um homem agressivo, conflituoso e havia deserta-
nas consultas de saúde infantil. O maior apoio do do serviço militar. Existiam dúvidas quanto ao
e vigilância à mãe; a implementação de visitas consumo de drogas em ambos. Referência a con-
domiciliárias; o ensino de regras de puericultu- flitos e agressões físicas frequentes entre o casal.
ra; a promoção do aleitamento materno e da A gravidez não foi desejada nem vigiada.
vinculação mãe/filho; o acompanhamento mais O T. nasceu na maternidade do hospital da área de
frequente e regular nas consultas de saúde infantil; residência. Com três semanas de idade foi obser-
o ensino da prevenção de acidentes; a integração vado naquele hospital por apresentar equimoses
da criança em creche ou jardim-de-infância são na face, nas mãos e nas unhas. Aos dois meses
exemplos de medidas a pôr em prática. foi reobservado no hospital local por apresentar
A prevenção secundária consiste em evitar equimoses dispersas pelo corpo, má progressão
a recorrência do mau trato após o diagnóstico, ponderal e ser uma criança muito chorona. A mãe
promovendo o regresso da criança a casa, sem referia que o pai o abanava muito.
riscos. Inclui o tratamento adequado da criança e Dada a gravidade do seu estado, necessi-
a intervenção na família, o apoio e vigilância no tou de internamento na Unidade de Cuidados
domicílio e na comunidade. Deve incluir visitas Intensivos, foi submetido a intervenção neuroci-
domiciliárias de enfermeiras, a intervenção de rúrgica para drenagem de hematoma subdural.
técnicas do serviço social, a colaboração do mé- Os exames realizados revelaram lesões cerebrais
dico de família e a intervenção das autoridades recentes e antigas e hemorragias retinianas.
judiciais quando necessário. À data da alta hospitalar, apresentava hemiparésia
e dificuldades visuais. O prognóstico era reservado
39.2.8 Casos clínicos quanto a problemas de ordem física, intelectual
e cognitiva.
Caso clínico 1
O T. tinha três meses de idade quando Comentários
deu entrada no serviço de urgência do Hospital Esta criança apresentava vários fatores de
Pediátrico em coma, muito pálido e com convul- risco que deveriam ter sido valorizados logo no
sões, segundo os pais após uma queda do sofá, primeiro atendimento - era uma criança fruto de
no dia anterior. Pouco tempo após a chegada ao gravidez não vigiada, pais muito jovens e sem
hospital, fez uma paragem cardio-respiratória pelo autonomia financeira, ambiente familiar violen-
que necessitou de ser reanimado. Tinha fratura to - apresentando lesões cutâneas altamente
de crânio recente com hemorragia subdural e suspeitas. Nesta altura, não foi efetuado qual-
fraturas mais antigas de várias costelas. quer estudo familiar e a criança teve alta sem o
Era o primeiro filho de um casal muito jovem, diagnóstico correto e consequentemente sem a
que pertencia a uma classe social média baixa. orientação adequada. Como resultado dessa falta
264 JENI CANHA

de intervenção, foi sendo submetido a agressões sono, perda do controlo de esfíncteres, dimi-
cada vez mais frequentes e violentas, que justi- nuição do rendimento escolar, isolamento das
ficaram nova ida à urgência com dois meses e outras crianças. Durante a consulta quase não
finalmente aos três meses chega-nos em estado fala, parece muito assustada. É internada para
quase agónico. esclarecimento da situação. Após alguns dias de
Do ponto de vista clínico houve um claro se certificar de que pode confiar em nós, relata
atraso na procura de cuidados médicos, a história minuciosamente o que lhe vinha acontecendo.
que os pais relatavam não era, de modo algum, Era abusada sexualmente pelo pai. Referia-nos
compatível com o tipo de lesões encontradas que isto acontecia havia bastante tempo, mas
(a queda não justificava os achados clínicos) e tinha medo e vergonha de o contar.
apresentava, carateristicamente, lesões recentes A mãe tinha uma atitude muito negligente
(traumatismo craniano com fratura) associadas com a filha e preferiu continuar a viver com o
a outras mais antigas (cerebrais e as fraturas de marido. Não existia nenhuma pessoa de referên-
costelas), o que revelava que esta criança vinha cia a quem pudéssemos recorrer nesta situação.
sendo vítima de uma enorme violência havia muito A V. foi internada numa instituição.
tempo, pelo menos desde as três semanas de vida.
A equipa hospitalar conseguiu a interven- Comentários
ção de uma pessoa de referência, uma tia-avó, Qualquer tipo de mau trato, e em particular
madrinha da mãe, que corajosamente assumiu a o abuso sexual, pode manifestar-se por sintomas
responsabilidade da educação e vigilância do T., ou sinais indiretos, como sejam as alterações de
consciente da gravidade da situação, da reserva comportamento, diminuição do aproveitamento
quanto ao prognóstico, nomeadamente as prová- escolar, perda de competências já adquiridas, sen-
veis sequelas neurológicas a curto e longo prazo. do muitas vezes chamativo o ar de sofrimento
A tutela foi-lhe atribuída judicialmente. destas crianças.
Esta criança e respetiva pessoa de referên- Neste caso, como na maioria dos abusos
cia foram regularmente acompanhadas na nossa sexuais, o diagnóstico só foi revelado tardiamente,
consulta. Precisou de cuidados e apoio da fisiatria, o agressor era um elemento da família que exercia
de terapia da fala, de oftalmologia, entre muitos o abuso sob a ação de ameaça.
outros, que foram escrupulosamente cumpridos.
Das suas sequelas só são aparentes as visuais, Caso clínico 3
corrigidas com as lentes adequadas. Foi integrado O J., de dois anos de idade, foi trazido pelo
normalmente em infantário, na escola e concluiu INEM ao Serviço de Urgência do Hospital Pediátrico
um curso técnico profissional. por quase afogamento. Tinha sido encontrado pela
avó, a boiar, roxo, como morto, num tanque de
Caso clínico 2 rega. Necessitou de ser reanimado.
A V., de oito anos de idade, consulta por É o 3º filho de um casal jovem. O pai, de 29
alterações do comportamento, perturbações do anos, era trabalhador assíduo e competente da
CAPÍTULO 39. CRIANÇA MALTRATADA 265

construção civil, a mãe, de 24 anos, era operária com uma rede alta, de malha fina, e após diligên-
fabril. Viviam numa quinta isolada da povoação, cias da Técnica de serviço social para integrar as
juntamente com os avós, tios e várias crianças crianças em infantário, assegurando deste modo
entre os 1 e os 8 anos. a sua vigilância, enquanto os adultos trabalhavam.
Da história familiar, há a registar o falecimen- As medidas mais eficazes nem sempre necessitam
to, uns anos antes, de uma irmã com 2 anos e de grandes elaborações e atitudes aparentemente
meio, por afogamento e, uma outra, com 7 anos, simples e óbvias podem evitar tragédias.
com sequelas neurológicas e atraso de desenvol-
vimento decorrentes de um quase afogamento Estes são casos reais, diagnosticados e acom-
no mesmo poço. panhados no Hospital Pediátrico de Coimbra.
Os pais e a família mostravam-se sincera- A negligência, ou qualquer outro tipo de
mente pesarosos pela «triste sina» de perderem mau trato, não devem ser casos de polícia, são
os filhos naquele poço. da nossa responsabilidade, enquanto técnicos de
O J. ficou bem, aparentemente sem sequelas. saúde, cujo prognóstico depende da nossa acui-
Apesar de clinicamente bem manteve-se internado dade diagnóstica e de uma orientação adequada.
durante cerca de uma semana. Só lhe foi dada
alta após algumas condições... Leitura complementar
Kempe CH, Silverman FN, Steel BF, Droegemveller W, Silver
Comentários HK. The battered child syndrome. JAMA 1962;181:17-24.
Esta é uma história típica de negligência Canha J. Criança maltratada. O papel de uma pessoa de
profissional, familiar e cultural, que não foi sufi- referência na sua recuperação. Estudo prospectivo de 5
cientemente avaliada pelos técnicos que assistiram anos. Coimbra: Quarteto ed. 2000.
esta família. As crianças andavam «à solta» na Meadow R. ABC of Child Abuse. London: Br Med J 1989.
quinta, sem o mínimo de condições de vigilân- Helfer RE, Kempe RS, eds.The battered child (4thed). The
cia. O 1º acidente, pelo menos, deveria ter sido University of Chicago Press 1987.
o alarme para esta situação de risco – não só o Hobbs CJ, Hanks HGI, Wynne JM. Child Abuse and Neglect: a
risco de afogamento no poço de rega, como o de clinician’s handbook. London: Churchill Livingstone 1993.
acidentes de vária ordem, nomeadamente perigo
de intoxicação com pesticidas.
A negligência é muito frequente, pode matar
e ter consequências graves ao nível do desenvol-
vimento, de sequelas neurológicas, geralmente
decorrentes de acidentes. Esta família é o exemplo
dramático do que pode acontecer por negligência
familiar e profissional.
Esta criança só teve alta do Hospital
Pediátrico depois do pai ter protegido o poço
Capítulo 40.
Fenómenos paroxísticos,
crises epiléticas e epilepsias

40
Cristina Pereira
e Conceição Robalo
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_40
CAPÍTULO 40. FENÓMENOS PAROXÍSTICOS, CRISES EPILÉTICAS E EPILEPSIAS 269

40.1 CONTEXTO evitar falsos diagnósticos de epilepsia que po-


deriam afetar negativamente a vida da criança
Fenómenos paroxísticos (FP) são eventos e da família.
clínicos de instalação súbita, geralmente de curta Deve-se saber que CE não é sinónimo de
duração que se podem manifestar por alteração epilepsia. CE na definição da Liga Internacional
da consciência, do comportamento, movimen- Contra a Epilepsia (ILAE) é a ocorrência transitória
tos involuntários, alterações do tónus, alterações de sinais e/ou sintomas decorrentes de atividade
do padrão respiratório entre outros. Englobam cerebral neuronal anómala, excessiva ou síncrona,
fenómenos fisiológicos (soluços), parassónias, enquanto epilepsia se define pela ocorrência
movimentos involuntários, alterações do com- espontânea de crises epiléticas. Qualquer pessoa
portamento, fenómenos psicogénicos (simulações, pode ter uma crise e não sofrer de epilepsia, sem-
conversões), disfunções hemodinâmicas (crises pre que a disfunção neuronal responsável pela
vaso-vagais), espasmos de choro, disfunções crise em vez de ser espontânea seja provocada
gastrointestinais (refluxo gastro-esofágico), dis- por febre, infeção, disfunção metabólica, trauma-
função respiratória e também crises epiléticas tismo craniano, intoxicação e doenças vasculares.
(CE). Os FP podem ou não estar relacionados A ILAE define epilepsia como um pro-
com descargas elétricas neuronais. Só no caso blema do cérebro que se caracteriza por uma
de CE existe uma disfunção cerebral transitória contínua tendência para gerar crises epiléticas,
que leva grupos de neurónios hipersensíveis a com todas as suas consequências neurobiológicas,
fazer súbitas descargas elétricas que se podem cognitivas, psicológicas e sociais. Esta definição
traduzir de variadíssimas formas, mudando de deu origem a um novo conceito: epilepsia é
doente para doente, ou apresentando diferentes muito mais do que ter crises. Cada vez se torna
formas no mesmo doente. As CE manifestam-se mais claro que o que no cérebro provoca crises
por alterações da consciência, sintomas motores, epiléticas, pode provocar também direta ou indi-
sensitivos, autonómicos ou psíquicos, refletindo retamente outras disfunções que se irão traduzir
as diferentes redes neuronais ativadas pelas des- em: problemas cognitivos, alterações do compor-
cargas síncronas e excessivas. O córtex cerebral tamento, problemas psiquiátricos e enxaqueca,
é a principal origem destas descargas neuronais de entre outros. Neste contexto, é interessante
de CE, mas menos frequentemente também se notar que a ILAE recomendou recentemente que
podem originar no tronco cerebral e no sistema o termo «benigno» deixe de ser usado para des-
tálamo-cortical. crever a epilepsia, por causa do grande número
Os FP são muito frequentes em idade pe- de patologias associado com formas de epilepsias
diátrica, apresentando uma incidência de 12,9% relativamente simples. Em termos clínicos talvez
no primeiro ano de vida. Metade destas crianças a mensagem mais importante é que não existe
manifesta inocentes fenómenos fisiológicos e só «epilepsia apenas». Qualquer doente com epi-
9% apresentam CE e/ou epilepsias. Teremos de lepsia deve ser visto como alguém que está em
ser cuidadosos no diagnóstico diferencial para risco de apresentar uma série de consequências,
270 CRISTINA PEREIRA E CONCEIÇÃO ROBALO

incluindo problemas cognitivos, problemas do e neuroimagem cerebral alterada. Não são fatores
comportamento, depressão, suicídio, e também consistentes preditivos de recorrência a existência
morte súbita. Não há absolutamente nenhum de antecedentes pessoais de convulsões febris,
fundamento para voltar a estigmatizar a epilepsia, antecedentes familiares de epilepsia, défices neu-
mas há todas as razões para se certificar de que rológicos pós-críticos nem estado de mal convul-
médicos, doentes, familiares, bem como educa- sivo inaugural.
dores e outros estão adequadamente prepara-
dos para reconhecer e tratar adequadamente tais 40.2.1.1. Atitude perante a primeira
dificuldades de adaptação social à medida que crise epilética
surgem. A abordagem da criança com a primeira
CE começa pelo “ABC”: A – manter a via aérea
permeável; B – manter ventilação - administrar
40.2 DESCRIÇÃO DO TEMA oxigénio e C- avaliar a função cardiocirculatória.
Ao mesmo tempo deve ser avaliada a tempe-
40.2.1. A primeira crise epilética ratura (exclusão de convulsão febril), a glicémia
(para exclusão de convulsões provocadas por hi-
Quatro a 10% das crianças vão ter uma CE poglicémia), contextualizar a crise (questionar os
até aos 16 anos. Uma crise (convulsiva ou não familiares sobre as circunstância em que ocorreu)
convulsiva) pode ocorrer como consequência e exame neurológico dirigido (postura, pele no-
de um fator precipitante como a febre, infeção meadamente exantemas e soluções de continui-
do sistema nervoso central (SNC), hipoglicémia, dade, pupilas e parésias).
distúrbios hidroeletrolíticos, traumatismo crânio- O passo seguinte é interromper a crise ad-
-encefálico (TCE), acidente vascular cerebral (AVC), ministrando uma benzodiazepina. Atualmente a
tumores do SNC, exposição a tóxicos, privação de primeira escolha recai sobre o midazolam, por
drogas, entre outras. Excluídos os fatores precipi- via intrabucal, na dose de 0,4 mg/kg/toma,
tantes diz-se que estamos perante uma crise não que pode ser repetido se a crise não ceder após
provocada. Recorrência define-se pela ocorrência cinco minutos. Nas crianças pequenas pode ser
de nova crise que surge mais de 24 horas após a administrado o diazepam retal na posologia de
primeira. O risco de recorrência após a primeira 0.5 mg/kg/toma. Enquanto isso devem obter-se
crise não provocada é de 30%. As recorrências duas vias endovenosas para eventual administra-
surgem em 97% dos casos com uma mediana ção de fármacos e colheitas séricas. As análises
de cinco meses (três meses a cinco anos) após a solicitadas devem incluir hemograma, gasometria,
primeira crise não provocada. ionograma completo, ureia, creatinina, transa-
Os fatores preditivos de recorrência conhe- minases, doseamento de antiepiléticos (crianças
cidos são: crise focal, défice intelectual ou atraso previamente medicadas), pesquisa de tóxicos,
do desenvolvimento psicomotor grave, eletroen- culturas/serologias, lactato e amónia (suspeita
cefalograma (EEG) com anomalias epileptiformes de doença metabólica). Deve ser realizada punção
CAPÍTULO 40. FENÓMENOS PAROXÍSTICOS, CRISES EPILÉTICAS E EPILEPSIAS 271

lombar para colheita de líquido cefalorraquidiano preferencialmente de Neuropediatria, para futura


(LCR) se a suspeita é de meningite ou encefalite, orientação.
ou se for em lactentes (nestes é mais difícil a
exclusão clínica das referidas entidades). A tomo- 40.2.2 Crises epiléticas/epilepsia
grafia computorizada crânio-encefálica (TC-CE)
deve ser ponderada se a criança não recuperar o 40.2.2.1 Epidemiologia
estado de consciência, se existirem sinais focais As crises epiléticas são um dos sintomas neu-
persistentes, sinais de hipertensão intracraniana rológicos mais frequentes em idade pediátrica. A
(neste caso realizar antes da punção lombar) ou epilepsia afeta em países desenvolvidos 4% das
se a etiologia for desconhecida. crianças e este número duplica em países não
No caso de crise sintomática aguda, para desenvolvidos. A incidência varia com a idade,
além do tratamento da crise convulsiva deve-se apresentando o valor mais alto durante o primeiro
proceder ao tratamento causal: corrigir-se a hi- ano de vida: 100 a 200/100.000, decaindo para
poglicémia com glicose a 10%, na dose de 5ml/ 60/100.000 durante a adolescência. A prevalência
kg, por via endovenosa, tratar-se a infeção virusal aumenta com a idade: aos 7 anos é de 2,3/1.000
ou bacteriana (aciclovir ou antibióticos respeti- e aos 10 anos é de 4 a 6/1.000.
vamente), administrar-se naloxona em caso de
intoxicação por narcóticos, ou dexametasona no 40.2.2.2 Diagnóstico diferencial
edema cerebral. No diagnóstico diferencial de todos estes
O eletroencefalograma (EEG) é o exame de fenómenos paroxísticos teremos de considerar
eleição para o esclarecimento de eventual causa três questões fundamentais:
epilética após uma crise não provocada. Deve
ser solicitado para apoiar o diagnóstico clínico 1.são ou não são fenómenos epiléticos?
de epilepsia e classificar a epilepsia e/ou o sín- 2.em caso de se tratar de fenómenos epi-
drome epilético. Quando indicado deve ser reali- léticos, de que tipo de crises se trata?
zado assim que possível (primeiras 24 a 48 horas 3.que etiologia apresentam e em que tipo
após a primeira crise). Está sempre indicada a de síndrome ou doença epilética se en-
sua realização após a segunda crise não provo- globam?
cada ou se estiverem presentes fatores de risco
de recorrência. Em 2006 a ILAE também reviu o esquema
diagnóstico para pessoas com crises epiléticas e
40.2.1.2. Orientações gerais epilepsia e considerou cinco alíneas para resolver
Após episódio de primeira CE não provocada a questão diagnóstica (quadro 1).
deverá ser prescrita e ensinada a administração em
SOS de diazepam retal ou midazolam intrabucal. Face a um doente com crises epiléticas em
Nos casos em que está indicado realizar EEG de- vez de se pensar unicamente em “tratar” será
verá sempre ser pedida consulta de Pediatria, ou mandatório tentar diagnosticar os síndromes e
272 CRISTINA PEREIRA E CONCEIÇÃO ROBALO

EIXO 1 Descrição detalhada das crises. sempre de ser considerados após a colheita da
EIXO 2 Definir o tipo de crise pela história clínica e da observação.
classificação da ILAE. O EEG ou Vídeo EEG é considerado o exame
EIXO 3 Definir o tipo de síndrome (metade auxiliar de diagnóstico mais importante para a ca-
ocorrem até à idade escolar). raterização e diagnóstico diferencial de FP epiléti-
EIXO 4 Definir o diagnóstico etiológico cos e FP não epiléticos. Nas crianças os FP quando
do síndrome (genético, acontecem, apresentam geralmente uma grande
metabólico, estrutural). frequência pelo que mais facilmente podem ser
EIXO 5 Definição de incapacidade (opcional). gravados durante o Vídeo-EEG. Em crianças, que
adormecem facilmente no laboratório, o EEG po-
derá apresentar melhor sensibilidade se incluir um
Quadro 1. Esquema diagnóstico para pessoas com crises período de vigília e um período de sono atingindo
epiléticas e com epilepsia – ILAE.
então uma sensibilidade de 80%. A repetição de
um EEG de vigília e sono eleva a sensibilidade no
diagnóstico de epilepsia para 92%. Resumindo:
as patologias que as causam. Só assim se pode- o EEG ou Vídeo EEG serve para distinguir entre
rá avançar para um tratamento adequado, mais episódios clínicos como crises epiléticas ou FP não
eficaz e um prognóstico definido. epiléticos, para ajudar a definir o tipo de crise e
A avaliação clínica é frequentemente sufi- de síndrome epilético e serve para corroborar o
ciente para estabelecer uma hipótese diagnóstica diagnóstico de epilepsia sugerido pela clínica,
correta, com base: na descrição dos episódios, na mas raramente para o excluir.
identificação dos possíveis fatores precipitantes,
na distribuição circadiana dos episódios, no cuida- 40.2.2.3 Classificação de crises epiléticas
doso exame clínico, que no caso das crianças tem Do ponto de vista clínico é muito importante
sempre de ser acompanhado de uma avaliação que os técnicos utilizem uma terminologia unifor-
do neurodesenvolvimento. É muito importante me que permita a comunicação, a investigação e
determinar se existe história familiar de epilepsia a compreensão destes fenómenos. Nasceu assim
nos familiares diretos. a necessidade de classificar crises. Podem classi-
Noutros casos a avaliação clínica é insufi- ficar-se crises de acordo com a localização da
ciente. O uso de “vídeo caseiro” pode ser muito descarga neuronal, as manifestações clínicas,
útil na avaliação inicial destas crianças com FP. a etiologia, a idade de início, e as manifesta-
Não devemos esquecer que a primeira crise é ções eletroencefalográficas. Esta categorização
frequentemente uma forma de apresentação de é essencial para estudos epidemiológicos, ensaios
outras patologias: infeciosas, metabólicas, tóxicas terapêuticos, e para a investigação biológica da
e também patologias estruturais do SNC; pelo epilepsia. Em 1981 surge a Classificação das CE
que estudos bioquímicos, plasmáticos e do LCR, da ILAE, que tem vindo a ser revista, datando
metabólicos, toxicológicos e imagiológicos terão de 2010 a última revisão (figura 1), em que a
CAPÍTULO 40. FENÓMENOS PAROXÍSTICOS, CRISES EPILÉTICAS E EPILEPSIAS 273

CRISES GENERALIZADAS CRISES FOCAIS DESCONHECIDA


Utilizam de imediato redes Origem em redes limitadas
neuronais bilaterais a um hemisfério

Tónico-clónicas Ausência Clónica Tónica Atónica Mioclónica Caracterizadas de Espasmos


Mioclónica acordo com uma ou
epiléticos
Mioclónico- mais características
atónica motoras Outros
Mioclónico- Motora
tónica Disautonómica
Típica Ausências especiais Atípica Discognitiva
Ausência mioclónica
Mioclonia palpebral
Pode evoluir para
uma crise convulsiva
generalizada

Figura 1. Classificação das crises epiléticas proposta pela ILAE, 2010.

divisão fundamental continua a ser entre crises a Epilepsia Benigna com Pontas Centrotemporais
focais e generalizadas, tendo em vista a origem/ (BECTS), a Epilepsia de Ausências Infantis (EAI) e
localização da descarga neuronal. a Epilepsia Mioclónica Juvenil (EMJ).

40.2.3 Síndromes epiléticos 40.2.3.1 Convulsões febris


Convulsões febris (CF) são os síndromes
A ILAE reconhecendo a limitação da classifi- eletroclínicos mais frequentes na infância. CF são
cação das CE desenvolveu um projeto mais ambi- definidas pela ILAE como “uma convulsão em
cioso para uma nova classificação, que agrega de- associação com uma doença febril, na ausência
terminados tipos de crise, fatores desencadeantes, de uma infeção do SNC ou desequilíbrio agudo
horário, idade de início, localização anatómica, eletrolítico em crianças com mais de um mês de
etiologia e prognóstico, constituindo síndromes. idade, sem convulsões apiréticas prévias’’. A tem-
Os síndromes distinguem-se da doença epilética peratura deve ser superior a 38,4ºC. Não necessita
porque esta junta às características já descritas, de estar elevada exatamente no momento da
etiologia e prognóstico específicos. Atualmente crise, mas sim num período de 24 horas antes ou
na proposta de classificação da ILAE de 2010, os depois da convulsão. CF são mais comuns entre os
síndromes agrupam-se pela idade de início (figura seis meses e cinco anos de idade, com um pico de
2). Neste texto trataremos com especial atenção as incidência aos 18 meses. São CF simples se forem
Convulsões Febris (CF), o Síndrome de West (SW), tónico-clónicas, autolimitadas, de curta duração
274 CRISTINA PEREIRA E CONCEIÇÃO ROBALO

SÍNDROMES ELETROCLÍNICOS AGRUPADOS POR IDADE DE INÍCIO*

Período neonatal Lactente Infância Adolescente-Adulto Idade de início


Crises benignas Crises febris* crises Crises febris*, crises Epilepsia de ausências variável
neonatais* febris plus febris plus juvenil Epilepsia familiar
Epilepsia familiar Epilepsia benigna Epilepsia occipital Epilepsia mioclónica focal com focos
beninga do lactente precoce da infância juvenil
variáveis (infância
Encefalopatia Epilepsia familiar (Síndrome de Epilepsia só com crises
à vida adulta)
mioclónica precoce benigna do lactente Panayiotopoulos) tónico-clónicas
Epilepsias reflexas
Síndrome de Ohtahara Síndrome de West Epilepsia com crises Epilepsias mioclónicas
Síndrome de Dravet mioclónico-atónicas progressivas
Epilepsia mioclónica Epilepsia de ausências Epilepsia autossómica
do lactente da infância dominante com
Encefalopatia mioclónica Epilepsia benigna características
não progressiva com pontas auditivas
Epilepsia do lactente centrotemporais Outras epilepsias
com crises focais Epilepsia autossómica familiares do
migratórias dominante noturna lobo temporal
do lobo frontal
Epilepsia occipital
Epilepsias distintas/síndromes Cirúrgicos de início tardio da Epilepsias não sindrómicas**
Epilepsia mesial do lobo temporal com infância (tipo Gastaut) Epilepsia atribuídas a causa
esclerose do hipocampo Epilepsia com ausências estrutural/ metabólica
Síndrome de Rasmussen mioclónicas -Malformações do desenvolvimento
Crises geláticas com hamartoma hipotalâmico Síndrome de Lennox- cortical (hemimegalencefalia,
Epilepsia hemiconvulsão-hemiplegia Gastaut
heterotopias, entre outras)
Encefalopatia epilética
-Síndromes neurocutâneos (Complexo
com ponta-
Esclerose Tuberosa, Sturge-Weber, e outros)
onda contínua
durante o sono -Tumor, infeção, trauma, angioma, insulto pré
Síndrome de Landau- ou perinatal, acidente vascular cerebral
Kleffner Epilepsias de causa desconhecida

Figura 2. Classificação dos síndromes eletroclínicos e outras epilepsias proposta pela ILAE, 2010.
Legenda: *Esta organização dos síndromes não reflete a etiologia; Não tradicionalmente diagnosticados como epilepsia;
**Formas de epilepsia sem critérios específicos para síndromes.

(inferior a 15 minutos), sem défice neurológico 30 minutos, ou uma série de curtas convulsões,
pós-crítico, e se não se repetirem nas 24 horas sem recuperação da consciência entre as mesmas.
seguintes. As CF são complexas se tiverem uma CF devem ser distinguidas das «crises com febre».
duração mais longa (superior a 15 minutos), ca- Estas últimas incluem qualquer convulsão, em
racterísticas focais ou se se repetirem dentro de qualquer criança, com febre de qualquer etiolo-
24 horas (várias convulsões). Status febril, pode gia. Consequentemente, crianças com meningite
ser uma crise única de longa duração, superior a ou encefalite, não têm CF, mas têm “crises com
CAPÍTULO 40. FENÓMENOS PAROXÍSTICOS, CRISES EPILÉTICAS E EPILEPSIAS 275

febre”. Entre os quatro meses e cinco anos de endovenosa. São usadas para controlar rapidamente
idade, 2% a 4% de todas as crianças terão pelo as CF que não cessam espontaneamente, como no
menos uma CF, geralmente breve. Estas crises tratamento das crises epiléticas apiréticas. Não está
aterrorizam os pais, mas não estão associadas a documentado que tratamento antipirético durante
danos cerebrais nas crianças. Em 40% das crianças as doenças febris, reduza a taxa de recorrência das
com a primeira CF regista-se CF recorrentes, mas CF. Os antipiréticos devem ser administrados para
a epilepsia desenvolve-se apenas em 2% a 4% o conforto da criança febril, mas não como medida
delas. A história familiar de CF e a idade de início para reduzir a taxa de recorrência de CF.
inferior a um ano são considerados os únicos fato-
res de risco significativos para o desenvolvimento 40.2.3.2 Síndrome de West (SW)
de epilepsia nestas crianças. A associação de “espasmos infantis e regres-
No diagnóstico diferencial das CF a questão são do desenvolvimento” foi descrita em 1841
mais importante é excluir uma infeção do SNC. pelo Dr. West ao observar os espasmos no seu
Os sinais de irritação meníngea podem ser difíceis próprio filho. Em 1950 Gibbs e Gibbs descreveram
de avaliar numa criança pequena. Justifica-se um a tríade: espasmos infantis, hipsarritmia (padrão
exame neurológico completo e se houver suspeita eletroencefalográfico caraterístico-traçado caótico,
clínica de infeção do SNC, a punção lombar deve não rítmico, assíncrono, desorganizado, com ativi-
ser realizada. No caso de CF simples não há neces- dade caraterizada por ondas lentas de alta volta-
sidade de efetuar EEG. O EEG será de considerar gem, de associação variável com pontas difusas ou
em crianças com CF complexas, prolongadas em multifocais) e atraso e/ou regressão nas aquisições
que se possa suspeitar de outro síndrome epilético do desenvolvimento psicomotor. Atualmente, a
como o síndrome de Dravet. Este síndrome associa ILAE classifica os espasmos como crises epiléticas
crises polimórficas, inicialmente CF, depois CF “de causa desconhecida”, por não apresentarem
clónicas precoces, mioclonias, ausências e crises evidência clara de serem ou focais ou generalizadas
focais complexas com deterioração neurocogniti- e o Síndrome de West como um síndrome epilé-
va. Está associado a mutações no gene - Sodium tico do lactente em que a grave desorganização
Voltage-Gated Channel Alpha Subunit 1 - SCN1A. epileptiforme do funcionamento cerebral causa
Sobre o tratamento das CF considera-se o progressiva regressão do neurodesenvolvimento.
tratamento agudo da convulsão e o tratamento O SW apresenta uma incidência de 3 a 4,5/10.000
antipirético. A profilaxia de rotina tornou-se me- nados-vivos. Setenta por cento dos casos apresenta
nos popular por causa das preocupações com os etiologias bem definidas: doença vascular perina-
efeitos colaterais dos medicamentos usados, espe- tal e encefalopatia hipóxico-isquémica, anoma-
cialmente do fenobarbital e da falta de qualquer lias congénitas cerebrais, doenças neurocutâneas
benefício comprovado na recorrência de novas CF e (complexo esclerose tuberosa), displasias corticais,
no desenvolvimento de epilepsia posterior. No tra- cromossomopatias, infeções congénitas ou adqui-
tamento agudo das CF utilizam-se benzodiazepinas, ridas, disfunções metabólicas e doenças mitocon-
diazepam e midazolam, por via retal, intrabucal e driais de entre outras. Clinicamente carateriza-se
276 CRISTINA PEREIRA E CONCEIÇÃO ROBALO

por início entre os três e os 12 meses de idade e benigna com pontas centrotemporais (BECTS) é a
predomínio no sexo masculino. Os espasmos são epilepsia focal mais comum na infância, represen-
contrações súbitas, breves da musculatura axial e tando 8 a 20% das epilepsias em idade pediátrica.
dos membros. Aparecem em clusters, em flexão, De etiologia genética, ocorre em crianças com
em extensão ou mistos. Podem ser simétricos ou desenvolvimento e exame neurológico normais.
assimétricos, por vezes associados a outro tipo de Inicia-se entre os sete e os dez anos de idade,
crises. Acompanham-se de grande irritabilidade e com um ligeiro predomínio no sexo masculino.
desconforto do bebé, que frequentemente deixa Clinicamente carateriza-se por crises com início no
de fazer contacto visual e de sorrir. O EEG tem sono em que ocorrem sintomas sensoriomotores
um padrão específico quer nas crises, quer entre faciais unilaterais (clonias da região peribucal ou
crises – padrão hipsarrítmico, pelo que o diagnós- da hemiface), manifestações orofaringolaríngeas
tico de certeza não é difícil. A sua suspeita implica (parestesias da língua, ruídos laríngeos), impossi-
a imediata referenciação a uma consulta de epi- bilidade de articulação de palavras e hipersaliva-
lepsia - neuropediatria num centro de referência. ção. A consciência encontra-se preservada mas
O protocolo de investigação e terapêutica, dada a em alguns casos as crises podem generalizar.
sua complexidade e importância, para minimizar O EEG é típico, apresentando pontas trifásicas na
graves implicações no neurodesenvolvimento, só região centrotemporal muito sensibilizadas pelo
deverá ser efetuado numa consulta de referên- sono. A ressonância crânio-encefálica (RM-CE)
cia. Neste síndrome todas as opções terapêuticas é normal e não está recomendada a sua realiza-
são de considerar: farmacológicas (antiepiléticos, ção na presença de clínica e EEG característicos.
corticoides), dietéticas (dieta cetogénica), vitamí- As crianças com BECTS só necessitam de tera-
nicas (vitamina B6) e cirúrgicas. Mesmo assim o pêutica antiepilética, se as crises forem diurnas,
prognóstico do SW, nos casos ”sintomáticos”, será frequentes e se em termos sociofamiliares se ma-
sempre o prognóstico da entidade patológica res- nifestarem de forma disruptiva. O prognóstico
ponsável, geralmente apresentando apenas 5 a das crises é bom com remissão habitualmente
12% de casos com desenvolvimento psicomotor pelos 13 anos, mas 30% das crianças apresen-
normal. Nos casos idiopáticos ou criptogénicos, ta dificuldades escolares. Existem com menor
15 a 30% atingem desenvolvimento psicomotor frequência outras epilepsias benignas focais na
normal. São fatores de bom prognóstico o desen- infância, nomeadamente a epilepsia occipital pre-
volvimento normal antes do aparecimento do SW, coce (síndrome de Panayiotopoulos) e a epilepsia
a simetria dos espasmos e a manutenção em EEG occipital de início tardio (tipo Gastaut).
de um padrão de sono adequado.
40.2.3.4 Epilepsia de ausência da infância
40.2.3.3 Epilepsia benigna A epilepsia de ausência da infância é uma
com pontas centrotemporais epilepsia generalizada que se inicia pelos cin-
A epilepsia benigna da infância ou rolândica, co a sete anos de idade, com predomínio no
designada na nova classificação como epilepsia sexo feminino. De etiologia genética, merece
CAPÍTULO 40. FENÓMENOS PAROXÍSTICOS, CRISES EPILÉTICAS E EPILEPSIAS 277

reconhecimento precoce para o controlo das crises necessidade de terapêutica antiepilética a longo
e minimizar compromissos do rendimento escolar. prazo ocorrendo recidiva em 80% dos jovens após
As crises, inúmeras ao dia (dezenas), caraterizam- suspensão do tratamento.
-se por uma alteração/perda de consciência de
início e fim abruptos com duração de quatro a 40.2.4 Orientações gerais
vinte segundos, em que a criança não responde
e modifica a sua atividade. Podem ocorrer mio- Existem recomendações para a investi-
clonias palpebrais (pestanejo) ou automatismos gação e tratamento da epilepsia em idades
associados (oromandibulares, extensão da cabe- pediátrica. As normas do National Institute
ça). O EEG apresenta um padrão típico: descargas for Health and Care Excellence (NICE) reco-
generalizadas de ponta-onda a 3 Hz, sensibilizadas mendam que todas as crianças e jovens que
pela prova de hiperpneia. É uma epilepsia que tiveram uma primeira crise apirética devam
necessita sempre de tratamento antiepilético. ser consultadas o mais rapidamente possível
O valproato de sódio em monoterapia ou a sua por um Pediatra com conhecimentos na área
associação com a etossuximida controlam as crises de epilepsia, para assegurar um diagnóstico
em 80% das crianças. O prognóstico é bom com precoce e preciso e início da terapia de acordo
remissão habitualmente pelos 12 anos de idade. com as suas necessidades.
Epilepsias que se iniciem em crianças até
40.2.3.5 Epilepsia mioclónica juvenil (EMJ) ao início da idade escolar, que não tenham diag-
A EMJ é uma epilepsia generalizada idiopáti- nóstico sindrómico específico, ou não tenham
ca que se inicia pelos 14 a 15 anos, e é de etiologia as suas crises controladas, ou revelem alteração
genética. Cursa inicialmente com mioclonias (em do seu exame neurológico, ou que apresentem
100% dos casos) de predomínio ao despertar e lesão identificada em estudo imagiológico de-
dos membros superiores e mais tarde surgem verão ser referenciadas a Centros Especializados
crises tónico-clónico generalizadas (em 90% dos de Epilepsia.
casos). Podem ocorrer ausências em 30% dos Deverá efetuar-se estudo imagiológico
jovens. São fatores precipitantes reconhecidos das sempre que a epilepsia tenha início antes dos
crises a privação de sono, o consumo de álcool, dois anos, sempre que haja crises focais (exceto
a fadiga e os estímulos luminosos. O desenvolvi- na BECTS) e sempre que a epilepsia se revele
mento neurocognitivo, o exame neurológico e a fármaco-resistente.
neuroimagem são normais. O EEG típico apresenta Deverão também referenciar-se crianças e
ponta-onda e/ou poliponta-onda irregular gene- jovens para uma consulta de epilepsia quando o
ralizada a 4 a 6 Hz e fotossensibilidade num terço diagnóstico de epilepsia não é seguro, quando
dos casos. Habitualmente ocorre normalização do não se obtém rapidamente o controlo das crises,
EEG após terapêutica e compliance adequadas. O quando há outras alterações neurológicas asso-
prognóstico sob antiepilético é bom, com contro- ciadas ou quando surgem complicações com o
lo das crises e normalização do EEG. Verifica-se tratamento.
278 CRISTINA PEREIRA E CONCEIÇÃO ROBALO

40.2.5 Estado de mal hipotensão, hipóxia e lesão neuronal. A nível do


SNC ocorre diminuição dos neurotransmissores
O estado de mal ocorre em 17 a 23/100.000 inibitórios (ácido gama aminobutírico-GABA) e
crianças por ano. Apresenta uma mortalidade aumento dos neurotransmissores excitatórios
de cerca de 3.4 a 6% dependendo da etiologia. (glutamato), a par de uma reorganização siná-
Define-se pela ocorrência de CE de duração tica com perda de interneurónios GABAérgicos
superior a 30 minutos ou crises repetidas sem (inibitórios) e aumento dos neurónios excita-
recuperação do estado de consciência. Pode ser tórios.
convulsivo quando há clínica motora evidente (i.e. De uma forma geral, dever-se-á aplicar
movimentos clónicos), ou não convulsivo quando o protocolo para o estado de mal epilético em
as manifestações motoras são escassas e ape- idade pediátrica da Sociedade Portuguesa de
nas são evidentes alterações do comportamen- Neuropediatria: http://neuropediatria.pt/sites/
to e/ou da consciência, com tradução no EEG. default/files/tratamento_estado_mal_epilepti-
É considerado refratário se a(s) crise(s) persiste(m) co_spnp.pdf.
após administração adequada de dois fármacos O primeiro fármaco a utilizar é uma benzo-
antiepiléticos de acordo com o protocolo. diazepina (midazolam ou diazepam na mesma
dose que para outra crise) podendo ser repeti-
40.2.5.1 Atitude perante um estado de mal da após cinco minutos. Se não ceder em cinco
Uma criança admitida no serviço de ur- minutos, administrar fenitoína 15 a 20 mg/
gência em crise convulsiva é considerada como kg/dose por via endovenosa em 20 minu-
estando em estado de mal convulsivo até prova tos. Se não se reverter a convulsão, deverá ser
em contrário. Deve atuar-se como se tratando de instituído midazolam na dose de 0.15 mg/
um estado de mal se a convulsão ou crise per- kg endovenoso em bólus, seguido de perfu-
siste por mais de cinco minutos. Ter em mente são. A última prescrição só deverá ser con-
que quanto mais tempo se aguardar até usar o siderada na proximidade de uma Unidade
primeiro fármaco, mais difícil será, e mais fárma- de Cuidados Intensivos Pediátricos. Outros
cos vão ser necessários, para controlar a crise. fármacos antiepiléticos também eficazes são: val-
As convulsões prolongadas desencadeiam alte- proato de sódio em perfusão (estado de mal de
rações sistémicas e do SNC. A nível sistémico, ausências, estado de mal mioclónico ou estado
na primeira fase ocorrem alterações adaptativas de mal refratário), levetiracetam em perfusão, e
com taquicardia, hipertensão, aumento do fluxo piridoxina (300 mg via endovenosa) que deverá
sanguíneo cerebral, hipertermia e hiperglicé- sempre ser administrada em crianças com idade
mia o que permite satisfazer o aumento das inferior a três anos (como prova terapêutica na
necessidades metabólicas da crise prolongada. epilepsia dependente de piridoxina que é uma
Com a continuação da crise, esgotam-se os causa metabólica rara mas tratável). O trata-
mecanismos compensatórios ocorrendo acido- mento da causa subjacente é semelhante ao da
se metabólica, hiperlactacidémia, bradicardia, primeira crise.
CAPÍTULO 40. FENÓMENOS PAROXÍSTICOS, CRISES EPILÉTICAS E EPILEPSIAS 279

40.2.6 Tratamento da epilepsia Antes de iniciar terapêutica com FAE o mé-


dico deve:
O tratamento da epilepsia engloba trata-
mento farmacológico e não farmacológico. O 1. Estar seguro do diagnóstico de epilepsia
tratamento farmacológico considera fármacos (exclusão de fenómenos paroxísticos não
antiepiléticos (FAE), corticóides (situações em epiléticos).
que a epilepsia se acompanha de encefalopatia) 2. Estar presente epilepsia ou síndrome epilé-
e neuromodulação (situações de epilepsia/ en- tico que necessite de tratamento (implica
cefalopatia autoimune). Os FAE diminuem mas conhecer a frequência das crises e a sua
não eliminam o risco de recorrência e não têm gravidade, os fatores precipitantes, a pro-
influência na remissão a longo prazo da epilep- babilidade de remissão espontânea e o
sia. O antiepilético ideal seria eficaz em múltiplos binómio risco-benefício dos FAE).
tipos de crises, não agravaria qualquer outro tipo 3. Conhecer os FAE mais adequados para
de crise, não teria efeitos secundários, teria uma o tipo de epilepsia e para a criança a
farmacocinética previsível e não deveria interagir tratar (existem fármacos que agravam
com outros fármacos. O tratamento não farma- alguns tipos de epilepsia, como por
cológico engloba a dieta cetogénica, estimulação exemplo a carbamazepina e derivados,
do nervo vago e cirurgia da epilepsia. fenitoína e lamotrigina agravam crises
Existem casos selecionados com orientações mioclónicas).
terapêuticas bem definidas: vitamina B6 (pirido- 4. Conhecer as doses recomendadas no iní-
xina) para a epilepsia dependente de piridoxina; cio da terapêutica, de titulação e de ma-
dieta cetogénica na epilepsia secundária a défice nutenção do fármaco a utilizar (introduzi-
do transportador da glicose cerebral (GLUT1) e -lo em doses progressivamente crescentes
estimulação do nervo vago em epilepsias fármaco- até dose terapêutica desejada, devendo
-resistentes especialmente em crises com gene- ser mantida a dose mínima eficaz).
ralização secundária. 5. Em caso de insucesso dos FAE deve-se
Para estudo pré-cirúrgico, devem ser orienta- questionar a compliance terapêutica ou
dos os seguintes casos: recém-nascidos e lactentes a existência de malabsorção (pode ser
com epilepsia; criança até aos dois anos de idade confirmado pela existência de níveis in-
com epilepsias não controladas, crianças com RM- fraterapêuticos na dosagem sérica, de
CE, com ou sem lesão, sem controlo terapêuti- preferência avaliados imediatamente an-
co e síndromes específicos: West sintomático, tes da toma do fármaco). Só após doses
Rasmussen (encefalite provavelmente imunome- terapêuticas máximas, será de considerar
diada que afeta um hemisfério cerebral de forma a substituição do FAE ou associação de
devastadora originando crises focais refratárias e outro fármaco.
défices neurológicos contralaterais) e hemissín- 6. Conhecer os riscos da politerapia (mais
dromes (por exemplo hemimegalencefalia). efeitos adversos, mais interações
280 CRISTINA PEREIRA E CONCEIÇÃO ROBALO

medicamentosas, dificuldade em avaliar Não está recomendada fazer avaliação ana-


a eficácia de um fármaco e pior com- lítica prévia de rotina, só apenas se clinicamente
pliance). justificada.
7. Uma vez iniciados os FAE estes geralmen-
te, só deverão ser interrompidos de forma
gradual (semanas a meses) após dois anos 40.3 FACTOS A RETER
sem crises.
Tal como já escrevemos atrás, sofrer
Os FAE mais usados em idade pediátrica, dose de de epilepsia é muito mais do que ter crises
manutenção, indicações gerais, efeitos adversos e epiléticas. O desafio do diagnóstico e tratamen-
precauções mais frequentes são os seguintes: to duma epilepsia em idade pediátrica, que se
desenvolve durante o período fundamental do
1. Levetiracetam 20 a 40 mg/kg/dia – epi- desenvolvimento cerebral é não só tratar crises,
lepsias focais e generalizadas. Efeitos mas minimizar as comorbilidades cognitivas com
adversos mais comuns – irritabilidade, importantes dificuldades de aprendizagem, as
alterações de comportamento e psicose. alterações do comportamento com elevada pre-
Precaução na insuficiência renal. valência de hiperatividade e défice de atenção, o
2. Valproato de sódio 20 a 40 mg/kg/dia – autismo e a patologia psiquiátrica com depressão
epilepsias focais e generalizadas. Efeitos e psicose que apresentam neste contexto uma
adversos mais comuns – náuseas, dispep- frequência superior à da população em geral.
sia, aumento de peso, tremor. Precaução Mesmo em crianças com epilepsias consi-
nas doenças mitocondriais, insuficiência deradas “benignas” estas fazem-se acompanhar
hepática e discrasias sanguíneas. de um importante número de comorbilidades.
3. Oxcarbazepina 20 a 40 mg/kg/dia – fárma- Crianças com epilepsia apresentam um risco 2,6
co de eleição em epilepsias focais. Efeitos vezes mais elevado de desenvolver comorbilidades
adversos mais comuns – cefaleia, náusea, psiquiátricas e/ou académicas quando comparadas
ataxia, diplopia, hiponatrémia. Reação com um grupo com uma crise única.
idiossincrática - toxidermia e síndrome
de Stevens-Johnson. Contraindicado nas Leitura complementar
epilepsias generalizadas com mioclonias Consensos da Sociedade Portuguesa de Neuropediatria.
que podem ser agravadas. Tratamento do estado de mal epiléptico em idade pe-
4. Benzodiazepinas (clobazam e clonazepam) diátrica. Acta Pediatr Port 2007; 38(4): 163-8.
– habitualmente usadas em combinação The National Institute for Health and Clinical Excellence
com outro fármaco. Efeitos adversos mais (NICE)-guideline form UK 2004.
comuns – sedação e diminuição das ca- Berg AT, Berkovic SF, Brodie MJ, Buchhalter J, Cross JH, van
pacidades cognitivas. Risco de tolerância Emde Boas W, Engel J, French J, Glauser TA, Mathern
com o uso prolongado. GW, Moshé SL, Nordli DR, Plouin P, Scheffer IE. Revised
CAPÍTULO 40. FENÓMENOS PAROXÍSTICOS, CRISES EPILÉTICAS E EPILEPSIAS 281

terminology and concepts for organization of seizures and


epilepsies: Report of the ILAE Commission on Classification
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Capítulo 41.
Doenças cardíacas mais comuns

41
António Pires
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_41
CAPÍTULO 41. DOENÇAS CARDÍACAS MAIS COMUNS 285

41.2 CONTEXTO nascimento. Têm uma incidência de cerca de 1%


(nados-vivos) e são consideradas as malformações
Em idade pediátrica, das patologias que mais congénitas mais frequentes. Nesta incidência não
frequentemente se associam a uma significati- estão incluídas as duas anomalias mais comuns: a bi-
va morbi-mortalidade, destacam-se as do foro cúspidia aórtica e o prolapso da válvula mitral. Nem
cardíaco. Daí que, a sintomatologia cardíaca é sempre são anomalias isoladas e podem associar-se
uma causa frequente de referenciação, mesmo a vários síndromes como é o caso da trissomia 21,
quando manifestamente benigna, como é o caso síndromes de Williams e de Turner, entre outros.
das síncopes vaso-vagais, a dor torácica de origem Podemos classificá-las como acianóticas,
músculo-esquelética ou as palpitações. cianóticas e obstrutivas, que passaremos a
Como tal, é importante esclarecer logo à descrever. É importante referir que algumas ar-
partida os sintomas e sinais clínicos que devem ritmias são igualmente de origem congénita e
alertar o clínico para uma possível causa cardíaca. serão discutidas em parágrafo próprio.
Qualquer doente, com as situações já referidas no As cardiopatias que serão discutidas nesta
texto, deve ser oportunamente observado pela secção são a comunicação interauricular (CIA),
Cardiologia Pediátrica se: a comunicação interventricular (CIV) e a persis-
tência do canal arterial (PCA), a tetralogia de
• tiver antecedentes de cardiopatia con- Fallot, a transposição das grandes artérias (TGA),
génita ou adquirida. a coartação da aorta (CoAo), a estenose valvular
• tiver antecedentes familiares de cardio- pulmonar (EP), o síndrome de Wolf-Parkinson-
patia (i.e.miocardiopatia hipertrófica) ou White, o síndrome do QT Longo, a miocardite e
morte súbita. a doença de Kawasaki.
• as queixas se associam ao esforço (quer
durante, quer após). 41.2.1.1 Cardiopatias congénitas acianóticas
• for portador de outras doenças com en- Implicitamente não cursam com cianose e a
volvimento cardíaco. manifestação clínica mais habitual é o sopro cardía-
co. Quando a malformação é hemodinamicamente
De seguida serão abordadas as doenças significativa, evidenciam-se então sinais de insufi-
cardíacas, congénitas e adquiridas, mais comuns. ciência cardíaca congestiva. Neste grupo também
se incluem algumas cardiopatias obstrutivas, como
é o caso da estenose valvular pulmonar, que será
41.2 DESCRIÇÃO DO TEMA discutida na secção “ Cardiopatias obstrutivas”.

41.2.1 Cardiopatias congénitas 41.2.1.1.1 Comunicação Interauricular


Incidência
Definem-se como anomalias da estrutura ou 5 a 10% das cardiopatias congénitas. Mais
função do sistema cardiovascular, presentes ao frequente quando se associa a outras cardiopatias
286 ANTÓNIO PIRES

congénitas mais complexas (30 a 50%), e é mais percutâneo do defeito. O encerramento cirúrgi-
frequente no sexo feminino (2:1). co é reservado para as comunicações de maiores
dimensões.
Tipos • Não está indicada a profilaxia da endo-
As formas mais comuns são o tipo ostium cardite bacteriana.
secundum (50%); o tipo ostium primum (30%), • Não existem contra-indicações à prática
componente habitual de uma outra cardiopatia, do desporto, mesmo após a correção
o defeito do septo aurículo-ventricular, frequen- percutânea/ cirúrgica.
te nas crianças com trissomia 21; e o tipo sinus
venosus (10%), que habitualmente se associa aos 41.2.1.1.2 Comunicação Interventricular
retornos venosos pulmonares anómalos. Incidência
Cardiopatia congénita mais frequente (15 a
Fisiopatologia 20%), excluindo a associação com outras cardio-
Devido à comunicação entre as aurículas ocor- patias mais complexas. A incidência é semelhante
re um “shunt” da aurícula esquerda (por maior entre géneros.
pressão dentro desta cavidade) para a aurícula di-
reita, condicionando uma sobrecarga de volume nas Tipos
cavidades direitas do coração e da vasculatura pul- Perimembranosa (70%) e muscular. A CIV
monar com subsequente dilatação destas estruturas. de câmara de entrada, à semelhança da CIA tipo
ostium primum, relaciona-se com os defeitos do
Clínica septo aurículo-ventriculares.
O aumento do fluxo de sangue através das
válvulas tricúspide e pulmonar resulta nas seguin- Fisiopatologia
tes alterações: desdobramento fixo do segundo Quanto maiores as dimensões da comunica-
tom cardíaco (S2) (normalmente durante a inspi- ção, maior o “shunt” interventricular e, consequen-
ração existe desdobramento do S2, mas na CIA temente maior o fluxo de sangue para a vasculatura
deixa de haver esse desdobramento) e um sopro pulmonar. Este aumento do fluxo pulmonar tam-
sistólico de ejeção. É raro o quadro de insuficiência bém depende da resistência vascular pulmonar e,
cardíaca congestiva. quanto menor, maior também o “shunt” pulmonar.
O aumento do fluxo sanguíneo resulta na sobrecar-
Tratamento ga de volume nas cavidades cardíacas esquerdas
Depende das dimensões da comunicação e e na dilatação destas. Esta sobrecarga de volume
resultante impacto hemodinâmico. As CIAs pe- resulta no aumento na pressão nas cavidades es-
quenas (inferiores a três mm) praticamente todas querdas e se mantida, em edema pulmonar.
encerram espontaneamente.
Se houver indicação para encerramen- Clínica – o sinal clínico mais evidente é o
to, atualmente preconiza-se o encerramento sopro holosistólico, pois o “shunt” interventricular
CAPÍTULO 41. DOENÇAS CARDÍACAS MAIS COMUNS 287

ocorre continuamente durante a sístole e é mais 41.2.1.1.3 Persistência do canal arterial


acentuado à esquerda do bordo inferior do ester-
no. Se a CIV for restritiva será possível palpar um Incidência
frémito precordial. Em casos de se associar hiper- 5 a 10% das cardiopatias congénitas, sendo
tensão arterial pulmonar, o S2 estará mais intenso. esta incidência muito superior nos recém-nasci-
A referir que recém-nascidos com comuni- dos prematuros ou quando associado a outras
cações interventriculares (CIVs) hemodinamica- cardiopatias congénitas mais complexas. É mais
mente significativas raramente apresentam um frequente no sexo feminino (3:1).
quadro de insuficiência cardíaca devido à elevada O canal arterial é uma estrutura tubular que
resistência vascular pulmonar típica desta faixa conecta a aorta descendente à artéria pulmonar.
etária. No entanto, por volta das quatro a seis A sua patência durante a vida fetal é essencial
semanas de vida, quando estas atingem valores para a sobrevivência do feto. Após o nascimen-
normais, surgem então os sinais clínicos sugestivos to o aumento da pressão parcial de oxigénio
de insuficiência cardíaca (má progressão ponderal, e a diminuição das prostaglandinas circulantes
taquipneia, taquicardia, galope e hepatomegália, determinam o seu encerramento, que normal-
entre outros). mente ocorre espontaneamente nas primeiras 48
horas de vida. Nas cardiopatias mais complexas
Tratamento o encerramento do canal arterial coincide com
Cerca de 30 a 40% das CIVs encerram es- as manifestações clínicas dessas patologias (ver
pontaneamente, exceto as CIVs de câmara de mais à frente). A incidência é semelhante entre
entrada. As CIVs restritivas não necessitam de géneros.
qualquer tipo de tratamento. Quando hemodina-
micamente significativas, o tratamento cirúrgico é Tipos
o mais indicado. A salientar que é possível o en- São vários os tipos morfológicos da persistên-
cerramento percutâneo das CIVs, particularmente cia do canal arterial (classificação de Krichenko).
das musculares, mas este deve ser contemplado
apenas em crianças mais velhas. Fisiopatologia
A magnitude do “shunt” entre a aorta des-
• Está indicada a profilaxia da endocar- cendente e a artéria pulmonar e, como tal, a
dite bacteriana, mesmo após o trata- magnitude do resultante hiperfluxo pulmonar
mento cirúrgico, se mantiver defeitos dependem da resistência imposta a este “shunt”
residuais. pelo canal arterial, nomeadamente da morfo-
• Não existem contra-indicações à prática logia do próprio canal arterial (diâmetro, com-
do desporto, mesmo após a correção primento, tortuosidade) e da resistência arterial
cirúrgica, salvo terem ocorrido sequelas pulmonar. Quanto maior a dimensão do canal
importantes, como o bloqueio aurículo- arterial e menor a resistência vascular pulmonar,
-ventricular pós cirúrgico. maior o fluxo pulmonar. À semelhança da CIV,
288 ANTÓNIO PIRES

o hiperfluxo pulmonar resulta na dilatação das se desenvolve no caso de patologias com


cavidades esquerdas do coração. “shunts” esquerdo-direito significativos
não serem corrigidas atempadamente.
Clínica- o sinal clínico mais evidente é o Ocorre inversão do “shunt” por aumento
sopro contínuo, pois o “shunt” através do ca- das pressões nas cavidades direitas do co-
nal arterial ocorre durante a sístole e a diástole. ração devido ao aumento das resistências
Tal como no caso da CIV, se o canal arterial for pulmonares, e habitualmente implica que
hemodinamicamente significativo é de esperar a patologia subjacente se torne inoperável.
nestas crianças um quadro de insuficiência car-
díaca congestiva. 41.2.1.2 Cardiopatias congénitas cianóticas
A cianose evidencia-se clinicamente quando
Tratamento existe cerca de 5g/dL de hemoglobina desoxigena-
O tratamento da PCA pode ser farmacoló- da no sangue e a saturação periférica de oxigénio
gico, percutâneo ou cirúrgico. é aproximadamente de 80%. Nas cardiopatias
O tratamento farmacológico com anti-infla- congénitas cianóticas, a cianose resulta da mistura
matórios não esteróides (ibuprofeno, indometaci- de sangue venoso com o arterial. Em caso de
na) é limitado a recém-nascidos prematuros com anemia, este sinal clínico pode não ser percetível.
canais arteriais hemodinamicamente significativos.
Os recém-nascidos de termo não respondem a 41.2.1.2.1 Tetralogia de Fallot
estas medidas pois a PCA neste grupo de doentes
deve-se a uma alteração estrutural e não à idade Incidência
gestacional. 10% das cardiopatias congénitas. É a cardio-
Na grande maioria dos casos recorre-se ao en- patia cianótica mais frequente fora do período neo-
cerramento percutâneo, salvo nos recém-nascidos natal. Tem incidência semelhante entre géneros.
prematuros de muito baixo peso que não respon-
dem ao tratamento farmacológico ou quando o Caraterísticas morfológicas
canal arterial é de grandes dimensões, impossibi- Anomalia composta por uma CIV sub-aórtica
litando a colocação de dispositivos. Nestes, a la- larga, obstrução da câmara de saída do ventrícu-
queação cirúrgica é o procedimento mais indicado. lo direito, habitualmente a nível infundibular, uma
• Está indicada a profilaxia da endocardite válvula aórtica mal-alinhada que “cavalga” o septo
bacteriana. interventricular e hipertrofia ventricular direita.
• Não existem contra-indicações à prática
do desporto, mesmo após a correção Fisiopatologia
percutânea/ cirúrgica. A cianose depende do grau do obstáculo
ao fluxo pulmonar. Podem ocorrer episódios sú-
Nota: o síndrome de Eisenmenger é uma bitos de cianose grave secundários a um “shunt”
doença obstrutiva vascular pulmonar que direito-esquerdo, as chamadas “crises cianóticas”.
CAPÍTULO 41. DOENÇAS CARDÍACAS MAIS COMUNS 289

Clínica Caraterísticas morfológicas


A cianose não se manifesta inicialmente mas Existe uma discordância ventrículo-arterial.
é progressiva. O sopro sistólico audível no foco A aorta (Ao) tem origem no ventrículo direito
pulmonar é o sinal auscultatório mais evidente e (VD) e a artéria pulmonar (AP) no ventrículo es-
deve-se ao obstáculo pulmonar. Durante as crises querdo (VE).
cianóticas este sopro desaparece devido à diminui-
ção do fluxo pulmonar, visto o sangue ser desviado Fisiopatologia
através da CIV para o lado esquerdo do coração. Dada a discordância ventrículo-arterial exis-
tem duas circulações em paralelo (VD-Ao; VE-AP)
Tratamento resultando numa ineficaz oxigenação da circula-
O tratamento definitivo da tetralogia de ção sistémica. Esta só é possível se existirem em
Fallot é cirúrgico, em que se encerra a CIV e se uma ou mais comunicações entre estas circulações
alarga o trato de saída do ventrículo direito. O (i.e. CIA, CIV ou PCA).
propranolol utiliza-se profilaticamente para evi-
tar as crises cianóticas. As crises cianóticas são Clínica
emergências cardíacas e necessitam de tratamento Devido às circulações em paralelo, a cia-
imediato, que inclui a posição de cócaras, admi- nose manifesta-se precocemente (nas primeiras
nistração de morfina e de bicarbonato de sódio. horas de vida), que se não for corrigida resulta
O início destes episódios sinaliza um agravamento na morte do recém-nascido. A cianose não res-
do quadro clínico e deve-se nesta fase acelerar a ponde à oferta de oxigénio. O sopro cardíaco é
correção cirúrgica. um achado raro.

• Está recomendada a profilaxia da endo- Tratamento


cardite bacteriana. O tratamento definitivo da TGA é cirúrgico, e
• Nas crianças operadas não existem con- habitualmente é realizado nas primeiras semanas
tra-indicações à prática do desporto, de vida. No entanto, logo à nascença é emergente
salvo se tiveram sequelas pós cirúrgicas corrigir a cianose, o que implica a administração
importantes. de prostaglandina E1 ( mantem o canal arterial
patente) e realizar o procedimento de Rashkind
41.2.1.2.2 Transposição das grandes (para criar uma CIA), possibilitando a mistura
artérias (TGA) de sangue venoso e arterial melhorando assim a
oxigenação do leito sistémico.
Incidência
0,2 a 0,4/1.000 nados-vivos. É a cardiopa- • Está recomendada a profilaxia da endo-
tia cianótica mais frequentemente diagnosticada cardite bacteriana.
durante o período neonatal. É mais frequente no • Nas crianças operadas não existem contra-
sexo masculino (3:1). ‑indicações à prática do desporto, salvo
290 ANTÓNIO PIRES

se tiverem sequelas pós cirúrgicas im- encerramento do canal arterial no recém-nascido


portantes. com coartação da aorta grave (o canal arterial
permite a manutenção do fluxo sistémico através
41.2.1.3 Cardiopatias obstrutivas da artéria pulmonar, visto não haver passagem
de sangue pela aorta) ou crianças assintomáticas
41.2.1.3.1 Coartação da aorta com hipertensão arterial apenas nos membros
superiores e com diminuição dos pulsos femorais
Incidência à palpação. Nestas, também pode ser percetível
8 a 10% das cardiopatias congénitas. É mais um sopro sistólico de ejeção audível na região su-
frequente no sexo masculino (2:1).Ocorre em cerca perior do bordo direito do esterno e/ou no dorso.
de 30% dos doentes portadores de síndrome
de Turner. Tratamento
Nos recém-nascidos com choque cardiogé-
Caraterísticas morfológicas nico é emergente iniciar prostaglandinas E1 para
A grande maioria localiza-se na região manter o canal arterial patente. Após estabilização
justa-ductal, distal à artéria subclávia esquerda. hemodinâmica o tratamento definitivo é cirúrgico.
A anomalia cardíaca que mais frequentemente Nas crianças assintomáticas duas possibili-
se associa à coartação da aorta é a bicúspidia dades existem: a angioplastia percutânea e, caso
aórtica (85% dos doentes). Cerca de 5 a 10% dos esta não seja bem-sucedida, a correção cirúrgica.
doentes com CoAo tem aneurismas intracerebrais Também devem ser submetidas a correção cirúrgi-
(aneurismas de Berry). ca as coartações da aorta mais complexas, como
é o caso da CoAo com hipoplasia do arco aórtico.
Fisiopatologia
Sendo um obstáculo esquerdo condiciona 41.2.1.3.2 Estenose pulmonar (EP)
um aumento da sobrecarga por pressão nas ca-
vidades esquerdas do coração. Trata-se portan- Incidência
to de um exemplo de uma cardiopatia em que 8 a 12% das cardiopatias congénitas. A EP é
verifica um aumento da póscarga com possível frequentemente associada a outras cardiopatias
compromisso do débito cardíaco. mais complexas como é o caso da tetralogia de
Fallot. A incidência é idêntica entre géneros.
Clínica
Deve-se suspeitar quando existe um dife- Caraterísticas morfológicas
rencial da pressão arterial entre os membros su- A estenose pulmonar pode ser de origem
periores e os membros inferiores de 20 mmHg valvular (frequente nas crianças com síndrome de
ou mais. Dependendo do grau de obstrução, são Noonan), infundibular (como é o caso na tetralo-
possíveis dois quadros clínicos, sendo os mais gia de Fallot) e supravalvular (mais frequente nas
habituais: choque cardiogénico coincidente com o crianças com síndrome de Williams).
CAPÍTULO 41. DOENÇAS CARDÍACAS MAIS COMUNS 291

Fisiopatologia ventricular. Deve-se à presença de uma via aces-


Sendo um obstáculo direito pode condicio- sória entre as aurículas e os ventrículos, em que
nar uma sobrecarga por pressão nas cavidades o impulso cardíaco despolariza diretamente os
direitas do coração, resultando em hipertrofia e ventrículos fazendo um bypass ao nódulo aurí-
dilatação do ventrículo direito. Pode, nos casos culo-ventricular.
mais graves (estenose crítica da pulmonar), com- Refere-se a “padrão de Wolf-Parkinson White”
prometer o débito pulmonar e implicitamente o se existirem apenas alterações eletrocardiográfi-
débito sistémico. cas que tipicamente caraterizam esta anomalia
da condução cardíaca. Quando se associa a uma
Clínica arritmia, aí usamos o termo “síndrome de WPW”.
Depende do grau de obstrução. Recém-
nascidos com estenose crítica da pulmonar mani- Incidência
festam cianose precocemente, que mais uma vez, O padrão WPW está presente em cerca de
coincide com o encerramento do canal arterial. 0,1 a 0,3% da população. A incidência é superior
Nas crianças mais velhas, um sopro sistólico de nos parentes de primeiro grau portadores deste
ejeção mais audível no segundo espaço intercos- padrão (0,5%). A incidência do síndrome é substan-
tal esquerdo (foco pulmonar) é o achado clínico cialmente mais baixa, variando entre 0,07 a 0,12%.
mais evidente. Cerca de 20 a 30% dos doentes com o padrão
WPW desenvolve arritmias, das quais a taquicar-
Tratamento dia supraventricular (TSV) é a mais comum. Esta
Nos recém-nascidos com estenose crítica arritmia, a TSV, durante a infância tem dois picos
da artéria pulmonar é emergente iniciar prosta- de incidência: primeiro ano de vida e adolescência.
glandinas E1 para manter o canal arterial patente Menos frequente á a fibrilação auricular, no entanto,
e, assim, manter o débito pulmonar para que o mais preocupante pois pode resultar na fibrilação
sangue possa ser oxigenado. Após estabilização ventricular e maior risco de morte súbita.
do doente a perfuração percutânea ou cirúrgica A cardiopatia congénita que mais frequen-
são opções terapêuticas ao nosso dispor. temente se associa ao síndrome de WPW é a
Nas crianças assintomáticas, dependendo anomalia de Ebstein da válvula tricúspide, embora,
do grau de obstrução, a dilatação percutânea é na grande maioria dos casos não se correlacione
o procedimento mais comum. com outras cardiopatias congénitas.

41.2.2 Alterações da condução cardíaca Caraterísticas


O diagnóstico de síndrome de WPW é ele-
41.2.2.1 Síndrome de Wolf-Parkinson-White trocardiográfico. A condução do impulso cardíaco
Em idade pediátrica o síndrome de Wolf- através da via anómala resulta em: intervalo PR
Parkinson-White (S.WPW) é o mais comum dos curto, complexo QRS largo, onda delta (inflexão
síndromes de pré-excitação (ativação precoce) inicial do complexo QRS).
292 ANTÓNIO PIRES

Clínica são habitualmente autossómicas dominantes.


A maioria dos portadores de sindrome WPW As formas recessivas têm um fenótipo mais agres-
é assintomático. As manifestações clínicas da sivo e podem associar-se a surdez neuro-sensorial.
TSV variam desde um desconforto precordial à As formas adquiridas são causadas por vários
descompensação cardíaca por baixo débito, par- estímulos, como, por exemplo, distúrbios meta-
ticularmente nas idades mais precoces. bólicos, eletrolíticos ou fármacos. Ao contrário
As crises de TSV são emergências car- das formas congénitas, as formas adquiridas são
díacas. As medidas usadas para tratar esta ta- reversíveis após correção da causa subjacente.
quicardia incluem: manobras vagais (gelo na face Até á data foram identificadas mutações em
nos lactentes), adenosina e, se necessário, car- 13 genes, pelo que existem 13 tipos de SQTL, de-
dioversão elétrica. signados de SQTL 1 a 13, sendo os três primeiros
O tratamento crónico consiste em adminis- os mais frequentes.
trar beta-bloqueantes para prevenir as crises de O diagnóstico é feito através da medição do
TSV. Em idade apropriada a ablação por rádio- intervalo QT em função da frequência cardíaca
-frequência é curativa em cerca de 95% dos casos. (ajustada à idade e género), ou seja, o intervalo
• A prática do desporto depende da res- QT corrigido (QTc). Para se calcular o QTc utiliza-se
posta ao esforço. Se durante uma prova a fórmula de Bazett (QTc= intervalo QT/√intervalo
de esforço se desencadearem arritmias, RR).
o desporto não é permitido.
Clínica
41.2.2.2 Síndrome do QT Longo Os doentes portadores de SQTL podem ma-
O síndrome do QT Longo (SQTL) caracteriza- nifestar um espetro de manifestações clínicas, tal
-se por um prolongamento do intervalo QT no como, palpitações, lipotimias, síncope, paragem
eletrocardiograma e por um risco aumentado de cardíaca e morte súbita.
morte súbita. É habitualmente associado a uma forma de
taquicardia ventricular conhecida por Torsades de
Incidência Pointes que, em grande parte, é desencadeada
1/25.000 a 10.000 na população, em geral. por vários fatores externos, nomeadamente, exer-
Em relação às crianças com surdez congénita, cício, mergulhar e ruídos (despertador, telefone).
estima-se que entre 0,3 a 3,7% tenham SQTL. Episódios repetidos podem induzir síncope ou
Apesar de ser mais frequente no sexo feminino, progredir para a fibrilhação ventricular.
a mortalidade é superior nos rapazes.
Tratamento
Caraterísticas Os principais objetivos do tratamento do
O SQTL pode ser congénito ou adquirido. SQTL congénito são a prevenção da morte súbita
As formas congénitas, causadas por mutações e a diminuição da sintomatologia. Não existe uma
genéticas que codificam canais iónicos cardíacos, terapêutica curativa.
CAPÍTULO 41. DOENÇAS CARDÍACAS MAIS COMUNS 293

Devem-se instituir medidas gerais tais como qual resulta uma lesão do miocárdio e por fim
evitar o consumo de fármacos que prolonguem o a miocardiopatia dilatada. Esta última fase cor-
intervalo QT e atividades físicas intensas. responde habitualmente à fase clínica, sendo as
Todos os doentes com SQTL devem ser me- duas primeiras fases consideradas assintomáticas.
dicados com beta-bloqueantes. Estes reduzem
a incidência de morte súbita de 50% para 5%. Clínica
Nos doentes de alto risco (i.e. sobreviven- As manifestações clínicas são variáveis.
tes de paragem cardíaca) deve-se considerar a As crianças assintomáticas (provavelmente apenas
implantação de um cardiodesfibrilhador implan- com alterações inespecíficas no eletrocardiogra-
tável. ma) ou aquelas com insuficiência cardíaca mas
com função contrátil preservada evoluem favo-
• A prática de desporto está contra-indicada. ravelmente. O mesmo não acontece nas crianças
com miocardiopatia dilatada, em que apenas 25%
41.2.3 Cardiopatias adquiridas recupera totalmente.

41.2.3.1 Miocardite Diagnóstico


A miocardite define-se como uma inflama- Apesar do exame gold standard ser a biópsia
ção do miocárdio. Apesar de várias causas estarem endomiocárdica, em idades pediátricas é limitado
implicadas na génese da miocardite, as infeciosas pelo seu caráter invasivo. O ecocardiograma é
são as mais comuns. Destas, as infeções víricas uma ferramenta extremamente útil na avaliação
são as mais frequentes, principalmente as causa- de doentes com miocardite. Permite o diagnóstico
das pelos adenovírus e enterovírus (coxsackie B). de miocardiopatia dilatada e avalia o grau de
O parvovírus, embora menos comum, associa-se disfunção cardíaca. Outros exames imagiológi-
a quadros clínicos mais graves. cos a que podemos recorrer são a ressonância
magnética e a cintigrafia cardíaca.
Incidência Analiticamente as troponinas cardíacas su-
Dada a variabilidade clínica da doença a ver- gerem necrose miocárdica e estão habitualmente
dadeira incidência da miocardite virusal é desco- elevadas nas miocardites víricas.
nhecida. Estima-se que 1 a 5% de doentes com A avaliação etiológica depende do contexto
infeções virusais agudas tenham atingimento do clínico. Por exemplo, em caso de um processo
miocárdio, embora a grande maioria sem qualquer infecioso recente, deve-se proceder a estudos
evidência de descompensação cardíaca. de pesquisa virusal.

Fisiopatologia Tratamento
A miocardite é uma doença trifásica: dá-se Na fase aguda da doença, um doente com
inicialmente a invasão direta do miocárdio pelo descompensação cardíaca por disfunção contrátil
vírus, seguido de uma resposta auto-imune do pode necessitar da administração de inotrópicos
294 ANTÓNIO PIRES

vasodilatadores e de terapêutica anti-congestiva. iii) alterações a nível das mãos e pés (edema,
Posteriormente, os diuréticos, os inibidores da rubor, descamação);
enzima de conversão da angiotensina e os beta- iv) exantema polimorfo; e
-bloqueantes constituem a terapêutica de base v) linfadenopatia cervical (diâmetro > 1,5cm).
desta patologia.
Trata-se de uma doença trifásica, com a
41.2.3.2 Doença de Kawasaki seguinte evolução:
A doença de Kawasaki (ver lição de exan- • fase aguda: dura cerca de uma a duas
temas) é uma vasculite sistémica de etiologia semanas e coincide com o aparecimento
desconhecida, atingindo principalmente as pe- dos sinais clínicos. Nesta fase normalmen-
quenas e médias artérias, em particular, as arté- te não se observam aneurismas coroná-
rias coronárias e condicionando a formação de rios.
aneurismas coronários (25% em doentes não • fase sub-aguda: dura entre duas a qua-
medicados). tro semanas. Observa-se a resolução dos
É, atualmente, a principal causa de cardio- sinais clínicos constatados anteriormente
patia adquirida em países desenvolvidos. e surgem a descamação dos dedos, a
trombocitose e os aneurismas coronários.
Incidência É nesta fase que há maior risco de morte.
Afeta 3,4 a 100/100.000 crianças, com um • fase de convalescença: sete a oito se-
predomínio no sexo masculino (1,5:1). Ocorre es- manas após o início do quadro clínico
sencialmente em crianças abaixo dos cinco anos e coincide com a normalização dos bio-
de idade, com uma média de dois anos. A taxa de marcadores inflamatórios (velocidade de
mortalidade pode atingir os 2%, particularmente sedimentação e proteína C reativa).
em crianças com menos de dois anos.
Face à alta probabilidade de envolvimento
Diagnóstico e clínica cardíaco, que não se limita apenas ao risco de
Os critérios propostos pela American Heart aneurismas coronários, todos os doentes devem
Association para o diagnóstico da doença de realizar uma ecocardiografia na altura do diag-
Kawasaki são: nóstico da doença, à segunda semana de doença
(coincide com o aparecimento dos aneurismas)
febre elevada com pelo menos cinco dias e entre a sexta e a oitava semana de doença
de evolução, e quatro dos cinco sinais (controlo dos aneurismas e, particularmente da
clínicos: resposta à terapêutica instituída).

i) hiperémia conjuntival bulbar bilateral sem Existe também o diagnóstico de doença de


exsudato; Kawasaki incompleta ou atípica que se carateriza
ii) alterações da mucosa oral; por quadro de febre inexplicada com duração
CAPÍTULO 41. DOENÇAS CARDÍACAS MAIS COMUNS 295

de pelo menos cinco dias e três dos critérios já


referidos. O diagnóstico desta entidade exige um
alto grau de suspeição.

Tratamento
Na doença de Kawasaki o principal objetivo
do tratamento é reduzir a incidência da doen-
ça coronária. A estratégia terapêutica inclui a
administração de imunoglobulina (que reduz a
incidência de aneurismas para 5%) que deve ser
administrada idealmente nos primeiros dez dias
da doença e o ácido acetilsalicílico em doses anti-
-inflamatórias. Após a fase aguda, o ácido acetil-
salicílico é reduzido para doses anti-agregantes
plaquetárias até à normalização da velocidade de
sedimentação e do valor de plaquetas, desde que
não haja evidência de envolvimento coronário.

Leitura complementar
Park; Myung. Park’s Pediatric Cardiology for Practitioners,
6th Edition. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2014. Print
Capítulo 42.
Introdução às doenças hereditárias
do metabolismo

42
Luísa Diogo
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_42
CAPÍTULO 42. INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS HEREDITÁRIAS DO METABOLISMO 299

42.1 CONTEXTO 42.2.2 Classificação

O metabolismo é o conjunto de reações in- Nos anos 90, Saudubray estabeleceu uma
tracelulares, catabólicas (oxidativas, produtoras de classificação das DHM que permite a sua abor-
energia - adenosina trifosfato - ATP) ou anabólicas dagem clínica compreensiva:
(de síntese, redutoras, consumidoras de ATP). Doenças afetando predominantemente
O conceito de erro inato do metabolismo um órgão/sistema, de diagnóstico mais “sim-
surgiu em 1908 (Archibal Garrod), estabelecendo ples” (i.e. osteogénese imperfeita).
a noção de bloqueio de via metabólica, quatro Doenças numa via metabólica comum
décadas antes de se identificar o primeiro défice a vários órgãos ou localizadas a um órgão e
enzimático. causando manifestações sistémicas.
As doenças hereditárias do metabolismo Abrangem três subgrupos fisiopatológicos:
(DHM) são doenças monogénicas, classicamente intoxicação, défices energéticos e alteração do
associadas a um défice enzimático. No entanto, a metabolismo de moléculas complexas.
proteína em falta/ anormal, que está na origem
do fenótipo (bioquímico/clínico), pode ter outras DHM tipo intoxicação:
funções na célula (i.e. transportador/ recetor de Incluem as do catabolismo de aminoácidos,
membrana). Excecionalmente, a mutação causal a galactosémia e a frutosémia. A acumulação de
leva a ganho de função da proteína, o que é tóxicos proximal ao bloqueio enzimático causa
igualmente deletério. uma intoxicação aguda e/ou crónica, progressiva,
traduzida por vómitos, coma precoce, insuficiência
hepática, atraso de desenvolvimento psicomotor/
42.2 DESCRIÇÃO DO TEMA défice intelectual, entre outros. Frequentemente
a sintomatologia depende de situações intercor-
42.2.1 Incidência e prevalência rentes associadas a catabolismo (i.e. infeções,
jejum prolongado, exercício físico intenso) e/ou da
Estão descritas mais de 600 DHM e o seu composição alimentar. Pode haver um “intervalo
número tem aumentado, à medida que o proteo- livre” de sinais e sintomas após o nascimento, de
ma é decifrado. São de um modo geral doenças poucas horas a muitos anos.
individualmente raras, com prevalência inferior a
1/2000 (órfãs). O interesse pelas doenças orfãs DHM tipo défice energético:
tem aumentado nos últimos anos, uma vez que, Nestas doenças predomina o defeito na pro-
estando associadas a risco de vida e/ou invalidez dução/utilização de energia, com envolvimento
crónica, no seu conjunto atingem um número dos principais órgãos produtores e/ou consumi-
significativo de indivíduos, desprotegidos pela dores: fígado, músculo (cardíaco/esquelético) e
raridade e desconhecimento da sua doença (www. cérebro. Miopatia, hipotonia generalizada, mio-
orpha.net/national/PT). cardiopatia, colapso circulatório, morte súbita,
300 LUÍSA DIOGO

malformações congénitas, atraso de crescimento tipo de hereditariedade. As mais frequentes são


ponderal e/ou estatural, hipoglicémia (com/sem de transmissão autossómica recessiva. Também
hepatomegália/ insuficiência hepática) e hiper- podem ser esporádicas.
lactacidémia são manifestações possíveis. Os Em até metade dos casos, as primeiras ma-
sintomas podem ou não estar relacionados com nifestações clínicas de DHM ocorrem no recém-
o jejum. O coma, quando surge, é mais tardio do -nascido e no lactente. De um modo geral, os
que nas intoxicações. As glicogenoses (doenças fenótipos clínicos mais graves apresentam-se
do armazenamento do glicogénio hepático e/ou em idades mais precoces. Isto explica o diag-
muscular), as acidoses lácticas congénitas e os nóstico mais frequente em idades pediátricas e
défices da oxidação dos ácidos gordos são exem- o subdiagnóstico das formas de apresentação
plos de DHM deste tipo. Nos défices de oxidação no adulto.
dos ácidos gordos de cadeia longa, ao défice Em função da grande diversidade clínica,
energético associa-se acumulação de tóxicos, o podem apresentar-se a qualquer médico, que deve
que deve ser tido em conta no tratamento. ser capaz de as suspeitar, promover as medidas te-
rapêuticas urgentes, se necessário, e orientar para
DHM de moléculas complexas: centros com experiência (Hospitais do grupo III).
Neste grupo, os sinais e sintomas são per- Nas DHM podemos distinguir várias formas
manentes, progressivos e não relacionados com de apresentação clínica:
a composição da alimentação ou situações inter-
correntes. As doenças lisossómicas, as dos pero- 42.2.3.1 Sintomatologia aguda antenatal,
xissomas, as congénitas da glicosilação (CDG) e neonatal e/ou nos primeiros meses de vida
as da síntese do colesterol, entre outras, fazem (com ou sem dismorfismos)
parte deste grupo. Vómitos, recusa alimentar global ou anorexia
Recentemente, a Society for the Study of seletiva (i.e. alimentos ricos em sacarose/frutose ou
Inborn Errors of Metabolism (SSIEM) -www.ssiem. em proteínas); letargia, coma, hipotonia, convulsões;
org/, promoveu uma classificação das DHM que hepatomegália, insuficiência hepática, colestase;
tem em conta as vias metabólicas primariamente miocardiopatia, derrame pericárdico, arritmia.
afetadas e os aspetos clínicos, diagnósticos e te-
rapêuticos. Esta deverá vir a ser integrada na pró- 42.2.3.2 Sintomatologia de início mais
xima (décima primeira) Classificação Internacional tardio, aguda e/ou recorrente
de Doenças (ICD11). Com recuperação total ou parcial nos inter-
valos das “crises”. Estas podem traduzir-se por
42.2.3 Apresentação clínica episódios de coma ou do tipo acidente vascular
cerebral, vómitos recorrentes com letargia, desi-
As DHM podem apresentar-se em qualquer dratação, ataxia recorrente, sintomas psiquiátricos
idade, causar qualquer sintomatologia, com ori- agudos, síndrome de Reye (vómitos, letargia/coma,
gem em qualquer órgão/sistema e com qualquer convulsões, edema cerebral, hiperamoniémia,
CAPÍTULO 42. INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS HEREDITÁRIAS DO METABOLISMO 301

hipoglicémia, acidose metabólica, insuficiência O recém-nascido tem um estreito leque de


hepática com esteatose), episódios de Apparent respostas à doença, pelo que o diagnóstico clíni-
Life Threatning Event (ALTE) / Brief Resolved co específico é virtualmente impossível. A DHM,
Unexplained Event (BRUE), ou morte súbita. embora rara, deve ser considerada em todas as
A presença de acidose metabólica, cetose, situações sugestivas de sépsis ou asfixia peri-natal,
hiperlactacidémia, hipoglicémia e/ou hiperamo- sobretudo quando a evolução é particularmente
niémia são sugestivas de uma alteração metabó- grave ou inesperada. A identificação de um agente
lica. Podem no entanto ser secundárias a outras infecioso não exclui uma DHM subjacente: a infe-
doenças (i.e. sépsis), que fazem diagnóstico di- ção pode desencadear uma “crise metabólica” e
ferencial com as DHM. a DHM, agravar o prognóstico de uma infeção.
Em todo o recém-nascido doente, mesmo
42.2.3.3 Sintomatologia generalizada se for prematuro ou em pausa alimentar, deve
crónica e progressiva ser acionado o rastreio neonatal urgente, ainda
Gastrointestinal (vómitos e/ou diarreia cró- que mais tarde possa ser necessário repeti-lo.
nica, anorexia/recusa alimentar, atraso de cresci-
mento), muscular (hipotonia, fraqueza, hipotrofia) 42.2.3.5.2 Alteração do estado de consciência
e/ou neurológica (atraso de desenvolvimento psi- Na criança mais velha e no adulto, episódios
comotor/ défice intelectual/regressão), frequen- de agitação psicomotora/coma de causa desco-
temente em associação. nhecida devem fazer pensar em DHM, sobretudo
se for detetado: hipoglicémia, hiperamoniémia
42.2.3.4 Sintomatologia orgânica permanente (com/sem alcalose respiratória), cetose, cetoaci-
Como hepatoesplenomegália, luxação infe- dose, hiperlactacidémia e/ou hiperglicémia com
rior do cristalino, catarata, opacidade da córnea, cetoacidose. De notar que a presença de sinais
disostose multiplex, miocardiopatia, defeito de neurológicos focais não afasta o diagnóstico de
compactação do ventrículo esquerdo. DHM. O mesmo acontece com a identificação
de um agente infecioso ou a história de trau-
42.2.3.5 Apresentações particulares matismo craniano prévio, sobretudo quando a
evolução da infeção seja inusitadamente grave
42.2.3.5.1 Recém-nascido ou as lesões traumáticas não pareçam justificar
As DHM iniciam-se frequentemente no pe- o grau de coma.
ríodo neonatal. Podem traduzir-se clinicamente
por um quadro neurológico com coma precoce 42.2.3.5.3 Epilepsia
(intoxicação) ou tardio (défice energético), dismor- As convulsões, muito frequentes na popu-
fismos, hepatomegália (com ou sem esplenome- lação geral, devem fazer suspeitar de DHM se
gália) e laboratorialmente por hiperamoniémia, ocorrerem no período neonatal, estiverem asso-
acidose metabólica, cetose, hipoglicémia e/ou ciadas a encefalopatia, forem mioclónicas e/ou
hiperlactacidémia. farmacorresistentes. O padrão de hipsarritmia ou
302 LUÍSA DIOGO

de surto-supressão no traçado do eletroencefa- “cerebrais” podem cursar igualmente com ma-


lograma (EEG) neonatal é sugestivo, embora não crocefalia. A microcefalia, que surge em diversas
específico, de DHM. De entre as convulsões que DHM com envolvimento cerebral, é um sinal me-
melhoram com o tratamento da DHM subjacente nos específico.
estão as que cursam com hipoglicémia, hipocal-
cémia ou hipomagnesiémia, as que respondem à 42.2.4 Diagnóstico
piridoxina, fosfato de piridoxal ou ácido folínico e
as associadas aos défices de biotinidase, da síntese 42.2.4.1 Rastreio seletivo
da serina, da creatina cerebral ou do transportador O diagnóstico (pré ou pós-natal) de DHM
cerebral da glicose (GLUT1). A hiperglicinémia não pode ser realizado por rastreio seletivo, ie em
cetótica manifesta-se por encefalopatia epilética indivíduos sintomáticos ou com história familiar
e não tem ainda tratamento específico eficaz. positiva de DHM.
A idade de início das manifestações clíni-
42.2.3.5.4 Atraso de desenvolvimento cas pode ser pré-natal. O diagnóstico pré-natal
psicomotor/défice intelectual sem caso índex prévio tem sido feito em algumas
Embora as DHM tenham frequentemente doenças (i.e. lisossómicas, doenças congénitas da
envolvimento cerebral, serão responsáveis por glicosilação). Ocasionalmente, uma clínica frustre
apenas 1% (até 9% em algumas séries) dos casos ou inespecífica apenas é valorizada como mani-
de atraso de desenvolvimento psicomotor glo- festação de DHM na sequência do estudo familiar
bal/défice intelectual não sindromático/isolado. de um doente. O intervalo de tempo entre o iní-
A associação com outras alterações neurológicas cio dos sintomas e o diagnóstico chega a ser de
ou sistémicas sugere DHM. Nestas, o défice é 30 anos ou mais, em formas menos graves de DHM.
frequentemente global e está muitas vezes asso- O número de diagnósticos de DHM em adultos tem
ciado a irritabilidade, alterações do sono e/ou do tido um incremento muito acentuado nos últimos
comportamento ou manifestações extra-neuro- anos, coincidente com o melhor conhecimento
lógicas. As DHM podem evoluir com progressos, destas patologias pela generalidade dos clínicos e
paragem ou regressão psicomotora/intelectual. do público em geral. Na história de doentes com
A regressão pode levar anos a notar-se, sendo DHM é relativamente comum haver familiares com
importante excluir pseudorregressão, por exemplo clínica semelhante, falecidos sem diagnóstico.
coincidente com convulsões.
42.2.4.2 Rastreio não seletivo
42.2.3.5.5 Perímetro craniano Um subgrupo de DHM “tratáveis” tem
A macrocefalia progressiva (notada nos pri- sido objeto de rastreio não seletivo. O Programa
meiros anos de vida ou mesmo pré-natal) pode Nacional de Diagnóstico Precoce (teste do pezi-
ser a forma de apresentação de algumas DHM, nho), implementado em 1979 com o rastreio da
i.e. a acidúria glutárica tipo 1 (atualmente incluída fenilcetonúria e atualmente sedeado no Instituto
no rastreio neonatal). Outras acidúrias orgânicas Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA), Porto,
CAPÍTULO 42. INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS HEREDITÁRIAS DO METABOLISMO 303

tem uma taxa de cobertura de aproximadamente potencialmente graves, “tratáveis”, devem ser
100%. A colheita da amostra de sangue para implementadas as medidas terapêuticas ade-
um cartão próprio (de “Guthrie”, em homena- quadas. No caso de familiares assintomáticos, a
gem ao autor da técnica inicialmente usada no investigação diagnóstica pode ser oferecida aos
rastreio da fenilcetonúria), deve ser realizada de indivíduos de maior idade que o solicitem.
preferência entre os terceiro e sexto dias de vida.
Com o advento da espetrometria de massa em 42.2.4.4 O estabelecimento
tandem, que permite a deteção e quantificação de um diagnóstico de DHM
de aminoácidos e acilcarnitinas, foi disponibiliza- Consiste, tal como nas outras doenças, na
do a partir de 2005 o rastreio de 24 DHM. Estas construção de um puzzle. As peças são muito
incluem algumas das do catabolismo do esqueleto variáveis e incluem sinais e sintomas, história pes-
carbonado de aminoácidos (i.e. fenilcetonúria) e soal e familiar, exames complementares, colheita
das do ciclo da ureia (i.e. citrulinémia) e a maio- de amostras biológicas em situações basais ou
ria dos defeitos da oxidação dos ácidos gordos após provas de sobrecarga, espontâneas (“crises”)
(i.e. ácidos gordos de cadeia média). A lista pode ou provocadas, exames laboratoriais gerais ou
ser consultada em www.diagnosticoprecoce.org. específicos, conhecimento dos valores de refe-
A incidência conjunta das DHM atualmente ras- rência, entre outras. A sua seleção e “encaixe”,
treadas é de 1/2.400. Note-se que o défice de ie o diagnóstico final que orienta a terapêutica
ornitina-carbamiltransferase, o mais frequente dos e o aconselhamento familiar dependem da ex-
defeitos do ciclo da ureia, não é detetado neste periência e perícia do médico responsável e dos
rastreio. Por outro lado, há a possibilidade de meios disponíveis. Tratando-se de doenças raras,
formas “tardias” das doenças incluídas no rastreio são imperativos a centralização dos doentes diag-
não serem detetadas por não apresentarem, nos nosticados/suspeitos, o trabalho “em rede” e a
primeiros dias de vida, alterações dos metabolitos formação específica.
doseados. Assim, perante a suspeita clínica,
deve prosseguir-se a investigação, mesmo 42.2.5 Quando suspeitar de DHM
que o rastreio neonatal tenha sido negativo. e como orientar

42.2.4.3 Níveis de diagnóstico 42.2.5.1 Clínica


Nas DHM podem ser considerados diversos Deve suspeitar-se de DHM perante a associa-
níveis diagnósticos: clínico, metabólico, enzimá- ção inexplicada de sinais e sintomas; a presença
tico e genético. Nenhum diagnóstico dispensa a de sintomas agudos ou intermitentes de invulgar
presença de manifestações clínicas. Esta ques- gravidade; uma doença multissistémica de causa
tão torna-se pertinente nos casos assintomáticos, desconhecida; doença crónica progressiva (fre-
detetados na sequência de estudo familiar ou quentemente com envolvimento neurológico); a
por rastreio sistemático. Uma vez feito o diag- presença de sintomas “acompanhantes”, como
nóstico de doenças com manifestações clínicas atraso de desenvolvimento psicomotor global/
304 LUÍSA DIOGO

défice intelectual ”sindromático”; história pré- acompanhar sempre que possível de espectros-
-natal ”positiva” para restrição de crescimento copia protónica. Esta é importante, por exemplo,
intra-uterino, malformações, fígado gordo agu- no diagnóstico de défices da creatina cerebral.
do da gravidez/ síndrome HELLP (haemolysis, As “análises metabólicas” devem ser orien-
elevated liver enzymes, low platelets) materno tadas pela suspeita clínica, reforçada pelos resul-
na gravidez; história familiar de abortamentos tados dos exames de primeira linha, sem esquecer
espontâneos, mortes inexplicadas em irmãos ou o diagnóstico diferencial. Não existe um “rastreio
outros familiares; consanguinidade (pela maior metabólico” aplicável à generalidade dos casos!
probabilidade de ocorrência de doenças autos- O estudo dos aminoácidos (plasmáticos, uri-
sómicas recessivas). nários e /ou do liquido cefalorraquidiano), das
Como em todas as áreas da Medicina, a his- acilcarnitinas em sangue colhido em cartão, dos
tória clínica bem feita, incluindo uma anamnese ácidos orgânicos e do ácido orótico urinários pode
dirigida e um exame físico completo é a base de ser informativo em casos suspeitos de doenças
qualquer diagnóstico. Aquela deve incluir a histó- tipo “intoxicação” ou “défice energético”.
ria alimentar e possível relação das queixas com Em determinadas circunstâncias, pode ser
períodos de jejum, refeições causais ou ingestão útil estabelecer perfis metabólicos de 24 horas
de determinado tipo de alimentos. De notar que (i.e. ciclo glicémico) ou fazer testes funcionais (i.e.
em certos casos de “intoxicação”, os doentes re- prova de jejum, teste de sobrecarga de glicose/
duzem espontaneamente os alimentos “tóxicos” outro). No entanto, o mais adequado é usar, sem-
(i.e. frutose ou proteínas) e/ou apresentam vómitos pre que possível, as amostras biológicas colhidas
e/ou alterações do estado de consciência após a durante os períodos de crise/descompensação por
sua ingestão, mormente se excessiva. serem as mais informativas e não acarretarem
riscos adicionais para o doente.
42.2.5.2 Exames complementares O rastreio das doenças dos lisossomas passa
Na primeira linha da investigação laboratorial pelo estudo dos glicosaminoglicanos e oligossa-
incluem-se os testes disponíveis em qualquer labo- cáridos urinários e/ou das enzimas leucocitárias
ratório, cujos resultados podem fornecer impor- específicas.
tantes elementos de orientação para investigação A focagem isoelétrica da transferrina permite
mais específica. É o caso da deteção de acido- o rastreio das doenças da glicosilação, já que a
se metabólica com aumento do hiato aniónico. transferina hipoglicosilada apresenta um padrão
Esta, na ausência de uma intoxicação exógena de migração anormal.
ou cetoacidose diabética, traduz acumulação de Em caso de suspeita de doença dos pero-
ácidos orgânicos endógenos, provenientes do ca- xissomas, a determinação da concentração plas-
tabolismo incompleto dos aminoácidos ou dos mática de ácidos gordos de cadeia muito longa
ácidos gordos (acidémia/acidúria orgânica) ou é o teste de primeira linha.
ainda da glicólise anaeróbica. A ressonância mag- O estudo de outros metabolitos específicos,
nética cerebral, quando indicada, deve fazer-se (i.e. ácidos biliares, pterinas, porfirinas, esteróis,
CAPÍTULO 42. INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS HEREDITÁRIAS DO METABOLISMO 305

de entre outros) deve ser do mesmo modo orien- de terapêutica específica. Esta contraria os efeitos
tado pela suspeita clínica. da perturbação metabólica e permite antecipar e
Em muitos doentes pode ser necessário fazer evitar as crises de descompensação, melhorando
investigação em tecidos para além dos leucócitos, o prognóstico vital e funcional. Nestes casos, tal
como fibroblastos da pele, tecido hepático ou como em todas as doenças crónicas, é muito im-
muscular, entre outros. portante a educação dos doentes e suas famílias.
O diagnóstico genético através do rastreio É indispensável que conheçam as características
de mutações em genes pontuais não se consegue principais da doença, os fatores precipitantes e a
num número significativo de doentes, mesmo sintomatologia de descompensação. Devem estar
quando apresentam alterações metabólicas su- capacitados para tomar as medidas de emergên-
gestivas. Muitos laboratórios oferecem atualmente cia no domicílio, antes do recurso aos Serviços
a possibilidade de investigar “painéis de genes” de Urgência Hospitalares, evitando-o em muitas
específicos para determinados grupos de situa- ocasiões. Quando aquele se figure necessário,
ções clínicas (i.e. acidoses lácticas, leucodistrofias), devem estar instruídos para se fazer acompanhar
“exomas de patologia” (rastreio dos genes em dos produtos dietéticos-terapêuticos específicos
que foram identificadas mutações patogénicas) da sua doença (i.e. misturas de aminoácidos),
ou mesmo “exoma completo”. No entanto, a in- eventualmente não disponíveis nos Serviços de
terpretação dos resultados é complexa e requer Urgência.
a contribuição de equipas multidisciplinares, in- A fenilcetonúria (PKU) é o protótipo da
cluindo Geneticistas. DHM por intoxicação proteica tratável. O défice
Em situações de evolução fatal em que per- de fenilalanina-hidroxilase hepática causa eleva-
maneça a suspeita de uma DHM, mesmo que ção da fenilalanina plasmática, aumento do ratio
tenha sido identificado um gérmen patogénico, fenilalanina/tirosina e alteração da neurotrans-
devem ser feitos estudos post mortem segundo missão com atrofia cerebral progressiva, atraso
um protocolo bem estabelecido que garanta a de desenvolvimento psicomotor global/ défice
reserva de amostras biológicas (incluindo tecidos) intelectual, défices motores, epilepsia, alterações
bem conservadas para estudos de metabolitos, do comportamento, entre outros. Ao contrário de
funcionais e genéticos. muitas outras doenças do catabolismo de ami-
noácidos, não se associa a episódios de coma,
42.2.6 Princípios gerais embora se verifique agravamento clínico (even-
do tratamento das DHM tualmente traduzido por agitação/ irritabilidade)
em situações de catabolismo e/ou aumento da
42.2.6.1 Tratamento de manutenção ingestão de fenilalanina. A fenilcetonúria foi a
As DHM tipo “intoxicação” e aquelas por primeira DHM a ser tratada com dieta de restrição
“défice energético com redução da tolerância e é o protótipo de doença rastreável. A intoxica-
ao jejum” (i.e. glicogenose tipo 1, defeitos da ção pela fenilalanina é progressiva e pós-natal (in
oxidação dos ácidos gordos) podem ser objeto útero, o fígado materno compensa o défice). O
306 LUÍSA DIOGO

“intervalo livre” de sintomas, a instalação insidiosa precursora de amónia. Pode ser vantajoso su-
da clínica e a eficácia da intervenção terapêuti- plementar a dieta com mistura de aminoácidos
ca prevenindo os défices neurológicos fazem do essenciais para evitar a sua carência, promotora
rastreio neonatal da PKU um caso de sucesso. de catabolismo proteico. Para além da referida
O tratamento consiste na restrição de fenilalanina, dieta e das medidas de evicção do catabolismo
de modo a manter os níveis plasmáticos dentro (indicadas nas “intoxicações endógenas”), é ne-
de determinados limites. A dieta implementada é cessária a administração regular de “quelantes”
restrita em proteínas naturais e suplementada com da amónia (fenilbutirato/benzoato de sódio) e
misturas de aminoácidos isentas de fenilalanina. de aminoácidos eventualmente deficitários por
Este princípio geral aplica-se às doenças interrupção do ciclo da ureia (arginina/citruli-
do catabolismo do esqueleto carbonado de ami- na), para manter níveis normais de amónia e
noácidos (i.e. leucinose, homocistinúria, acidémia de glutamina.
metilmalónica, entre outras), sendo que as mistu- Em várias DHM o tratamento inclui a ad-
ras de aminoácidos diferem no(s) aminoácido(s), ministração de cofatores enzimáticos, nomea-
tóxicos, ausentes. Em algumas daquelas doenças, damente vitaminas. É o caso dos defeitos do
os metabolitos acumulados, nomeadamente áci- metabolismo das cobalaminas ou dos do trans-
dos orgânicos, são excretados ligados à carnitina portador do ácido fólico, em que a terapêutica
(acilcarnitinas) e/ou à glicina (acilglicinas), pelo passa pela administração intramuscular crónica
que a suplementação destas substâncias pode de hidroxicobalamina ou ácido folínico, respetiva-
estar indicada. mente. Recentemente foi aprovado em Portugal
A tirosinémia tipo 1, hepatorrenal, manifes- o uso da sapropterina (BH4) para o tratamento
ta-se por insuficiência hepática com síndrome de dos fenilcetonúricos com resposta positiva. A BH4
Fanconi, nas primeiras semanas de vida ou raqui- é coenzima da fenilalanina-hidroxilase, atuando
tismo hipofosfatémico, mais tarde. Os doentes igualmente como “estabilizador” da proteína en-
têm o risco de apresentar crises de porfiria e he- zimática. Em muitas outras DHM está indicado
patocarcinoma por acumulação de intermediários fazer prova terapêutica com fatores coenzimáticos
tóxicos, nomeadamente a succinilacetona. Esta (i.e. piridoxina na homocistinúria clássica ou nas
pode ser doseada na urina, contribuindo para o convulsões piridoxino-sensíveis).
diagnóstico. Atualmente a base da terapêutica da Ocasionalmente, o metabolismo das bac-
tirosinémia tipo 1 é o NTBC (Nitisone), inibidor térias intestinais contribui para o agravamento
de uma enzima a montante do défice, que evita da intoxicação endógena, através da produção
a formação da succinilacetona, à custa de um de metabolitos tóxicos, nomeadamente propio-
aumento da tirosinémia (controlável com dieta nato e amónia. A “esterilização intestinal” com
de restrição específica). antibióticos não absorvíveis, numa base regular
Nas doenças do ciclo da ureia, o tratamen- (i.e. acidúrias metilmalónica e propiónica) ou em
to impõe a restrição da ingestão de todas as situações de urgência (i.e. hiperamoniémia), pode
proteínas, de modo a reduzir a carga azotada, ser útil em alguns casos.
CAPÍTULO 42. INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS HEREDITÁRIAS DO METABOLISMO 307

Nas doenças de intoxicação por açúcares ou se doença intercorrente. Embora nos defeitos
(galactosémia e frutosémia), que se manifestam da oxidação dos ácidos gordos possa haver ca-
por doença hepática, com/sem vómitos e hipogli- rência de carnitina livre por excesso de produção
cémia (e cataratas na galactosémia), há reversão de acilcarnitinas, a indicação para suplementação
do quadro clínico com a instituição de dieta de com carnitina é controversa, nomeadamente nos
restrição específica. No entanto, a galactosémia, défices de cadeia longa pelo possível efeito ar-
ao contrário da frutosémia, evolui com neurode- ritmogénico das acilcarnitinas de cadeia longa.
generação lentamente progressiva e insuficiência O tratamento das doenças de moléculas
ovárica, apesar da regressão completa da doença complexas é, de um modo geral, sintomático.
hepática. São exceção, entre outras, algumas doenças de
Nas glicogenoses “hepáticas” é importante acumulação lisossómica, para as quais nos últimos
prevenir a hipoglicémia, através da administração anos surgiu terapêutica de substituição enzimá-
regular de hidratos de carbono complexos (i.e. tica e/ou de redução da produção do substrato.
maltodextrinas ou amido de milho cru), inclusive A primeira, já aprovada para as doenças de Gaucher
durante a noite, de acordo com a tolerância ao tipo 1, de Pompe, de Fabry e mucopolissacaridoses
jejum. Estas medidas são indispensáveis na glico- (tipos I, II, IV e VI) e em fase de ensaio clínico para
genose tipo 1 (défice da glicose-6-fosfatase), que outras, implica a administração intravenosa com
atinge a via comum final da glicogenólise e da periodicidade de uma a duas semanas. A segunda
neoglicogénese e causa hepatomegália volumosa, tem a vantagem de, ao contrário da anterior, ser
hipoglicémia do jejum curto (duas a quatro horas administrada por via oral e atravessar a barreira
nos lactentes), hiperlactacidémia, hipocetose, hi- hematoencefálica, podendo melhorar os sintomas
pertrigliceridémia e hiperuricémia. neurológicos, muito comuns nestes doentes.
A base da terapêutica dos defeitos da oxi-
dação dos ácidos gordos, nomeadamente nos de 42.2.6.2 Tratamento de emergência
cadeia média, é a evicção do jejum prolongado. Alguns tipos de DHM podem evoluir com
Estes são os mais frequentes, atingindo sobre- manifestações agudas, frequentemente amea-
tudo indivíduos de etnia cigana. A prevenção da çadoras da vida, causando a morte ou sequelas
hipoglicémia hipocetótica pode implicar o recurso definitivas. Na maior parte das DHM que cursam
à administração intravenosa de glicose quando com descompensação aguda, o prognóstico vital
a alimentação oral é ineficaz. Nos defeitos da e funcional depende do intervalo de tempo até
oxidação dos ácidos gordos de cadeia longa é ao início do tratamento de emergência específico.
imprescindível a restrição de lípidos alimentares Assim, o episódio inaugural, antes do estabele-
(que são maioritariamente de cadeia longa) e a cimento do diagnóstico, é, de um modo geral, o
suplementação com triglicerídeos de cadeia mé- de pior prognóstico.
dia (MCT) e ácidos gordos essenciais. O reforço A avaliação laboratorial numa doença aguda
calórico deve ser feito com MCT e/ou hidratos de suspeita de DHM deve incluir glicémia, amoniémia,
carbono, nomeadamente antes do exercício físico lactacidémia, cetonémia/cetonúria e gasimetria
308 LUÍSA DIOGO

com cloro, sódio e potássio plasmáticos, para ou a hemodiálise, nomeadamente nas hiperamo-
além do rastreio de sofrimento cardíaco, hepáti- niémias graves.
co, renal e muscular, entre outros. Os resultados
desta investigação inicial devem estar disponíveis 42.2.6.2.2 As DHM com intolerância
em menos de meia hora, permitindo orientar as ao jejum
primeiras etapas do tratamento de emergência. De Incluem as da homeostase da glicose (gli-
acordo com o quadro clínico, deverão ser deter- cogenoses/armazenamento do glicogénio, defei-
minados simultaneamente acilcarnitinas, aminoá- tos da neoglicogénese) e as do catabolismo dos
cidos, ácidos orgânicos (incluindo o orótico), com ácidos gordos e da síntese/degradação dos cor-
resultados disponíveis idealmente em 24 horas. pos cetónicos (cetogénese/cetólise). Os sintomas
Nas hipoglicémias, não devem ser esquecidos os surgem após jejum mais ou menos prolongado
doseamentos hormonais na crise, para rastreio e a hipoglicémia (com/sem hepatomegália) é a
de causas endócrinas (i.e. hiperinsulinismo). principal manifestação. A administração de glicose
endovenosa ao ritmo da produção hepática (7 a
42.2.6.2.1 As DHM tipo “intoxicação” 8 mg/kg/minuto no recém-nascido a 2 a 3mg/
Incluem as do catabolismo de aminoácidos Kg/minuto no adulto) é suficiente para manter a
(ciclo da ureia, aminoacidopatias/acidúrias orgâ- glicémia. Não é necessário “forçar o anabolismo”
nicas), defeitos do catabolismo de ácidos gordos uma vez que não há intoxicação “endógena”,
de cadeia longa e as intoxicações por açúcares devida ao catabolismo, exceto nos defeitos da
exógenos (galactosémia e fructosémia). oxidação dos ácidos gordos de cadeia longa, como
Os tóxicos em causa são a amónia, aminoáci- anteriormente referido.
dos e ácidos orgânicos, acilcarnitinas ou açúcares Nos doentes em que o ritmo de glicose
tóxicos. Os episódios de descompensação podem necessário para corrigir a hipoglicémia é mui-
ser desencadeados pela alimentação (proteínas, to elevado, deve-se pensar em hiperinsulinismo.
lípidos, galactose/frutose) e/ou catabolismo (de- Este faz diagnóstico diferencial com os défices da
gradação de proteínas/ lípidos). oxidação dos ácidos gordos e da cetogénese, na
O tratamento consiste em suspender a in- medida em que causa igualmente hipoglicémia
gestão oral dos precursores tóxicos em todos os hipocetótica.
casos. Reverter o catabolismo das proteínas/lípi- Algumas DHM que comprometem o meta-
dos, promovendo o anabolismo através da admi- bolismo energético muscular (i.e. glicogenoses,
nistração de glicose em doses elevadas (e lípidos défices da oxidação dos ácidos gordos de cadeia
apenas nas doenças do catabolismo proteico com longa,) podem apresentar-se ou evoluir com into-
diagnóstico já estabelecido, estando a sua admi- lerância ao exercício e/ou crises de rabdomiólise.
nistração interdita nos defeitos da oxidação dos Estas podem ser desencadeadas por exercício
ácidos gordos), associada a insulina, se necessário. físico, jejum prolongado, exposição ao frio e/ou
Em certos casos podem ser acionadas medidas de anestesia. Traduzem-se por mialgias generaliza-
desintoxicação mecânica como a hemodiafiltração das, tumefação e rigidez muscular, impotência
CAPÍTULO 42. INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS HEREDITÁRIAS DO METABOLISMO 309

funcional, elevação acentuada da creatina kinase vómito, ataxia e disartria. O quadro regrediu em
(até>100.000UI/L), mioglobinémia com mioglo- menos de 24 horas, com perfusão intravenosa
binúria (urina avermelhada/escura, com pesqui- de cloreto de sódio e glicose. A pesquisa urinária
sa de hemoglobinúria positiva nas tiras-teste). de benzodiazepinas foi negativa. Transferida aos
A situação pode complicar-se por insuficiência cinco anos com suspeita de encefalite por novo
renal aguda e/ou síndrome compartimental. episódio de agitação, auto e hetero-agressão,
O tratamento consiste em fazer hiperhidratação vómitos frequentes, desequilíbrio e disartria.
endovenosa, com reforço da diurese (administrar Apresentava glicémia e alcoolémia normais e
manitol, se necessário) e alcalinização da urina. hipertransaminasémia (AST/ALT-329/547 UI/L).
Melhorou sob perfusão de soro com cloreto
42.2.6.2.3 Nas acidoses lácticas congénitas de sódio e glicose, mas a ataxia manteve-se.
(doenças do catabolismo do piruvato, do No intervalo destas duas intercorrências tivera
ciclo de Krebs e/ou da cadeia respiratória diversos episódios de ataxia, sonolência/insónia
mitocondrial) e alterações do comportamento (discurso incoe-
Há perturbação da via final comum da pro- rente, auto e heteroagressividade), de um a três
dução de energia. O tratamento passa pela corre- dias de duração, habitualmente sem vómitos,
ção da acidose e administração da glicose ao ritmo com anorexia e sem desencadeante óbvio. As
da libertação hepática normal. Doses de glicose alterações de comportamento, mais graves ao
mais elevadas podem agravar a hiperlactacidémia. fim do dia, foram consideradas reativas ao am-
biente familiar, perturbado pelo divórcio dos
42.2.6.3 O transplante de órgãos pais. Havia consanguinidade remota e a história
Poderá ser uma opção terapêutica em algu- de um irmão falecido nos primeiros dias de vida,
mas DHM. Esta pode colocar-se em dois tipos de de causa desconhecida. Sem história de vómitos
cenários: substituição de fígado, rim e/ou coração habituais, mas anorexia seletiva para alimentos
por falência de órgão ou neoplasia maligna (i.e. ricos em proteínas. Constatada hiperamonié-
glicogenose tipo 1, tirosinémia tipo 1, acidémia mia 360-650 umol/l (valor de referencia:11-50),
metilmalónica, algumas doenças mitocondriais) aumento acentuado da glutamina plasmática
ou como fonte da enzima deficitária (fígado em e do ácido orótico urinário. O défice de or-
doenças do catabolismo de aminoácidos, no- nitinatranscabamilase (OTC), doença do ciclo
meadamente do ciclo da ureia; medula óssea em da ureia, foi confirmado por estudo genético.
doenças lisossómicas e algumas mitocondriais). O rastreio neonatal havia sido normal, como
seria de esperar.
42.2.7 Algumas histórias reais
42.2.7.2 “Sépsis neonatal”
42.2.7.1 “Intoxicação” Recém-nascida de termo, primeira filha
Menina saudável até aos quatro anos, quan- de pais consanguíneos em primeiro grau, sob
do foi internada por episódio de sonolência, um aleitamento materno exclusivo, foi admitida no
310 LUÍSA DIOGO

Hospital aos 12 dias de vida por um quadro de 42.2.7.4 Vómitos


choque. Estava sonolenta, com recusa alimentar Rapaz previamente saudável, com história
e gemido desde o dia anterior. Evoluiu para familiar não informativa, que a partir dos seis anos
falência multiorgão rapidamente progressiva e teve quatro internamentos por vómitos com desi-
morte, apesar de tratamento intensivo. A he- dratação. Em episódio subsequente, aos oito anos,
mocultura revelou-se positiva para Escherichia foi feito o diagnóstico de doença de Addison,
Coli (E.coli). O estudo do sangue do cartão do iniciando tratamento. Pelos 12 anos surgiram difi-
rastreio neonatal permitiu o diagnóstico retros- culdade de aprendizagem e aos 13, comportamen-
petivo de galactosémia. Perante uma sépsis to obsessivo e crises de ansiedade. Pelos 14 anos
neonatal a E.coli de evolução fatal, levantou-se foram notados défice visual e alterações da mar-
a hipótese de doença metabólica subjacente. cha, com síndrome tetrapiramidal. A ressonância
Sabe-se que a galactosémia predispõe para magnética cerebral revelou leucodistrofia periven-
infeções graves a este gérmen. A amostra do tricular de predomínio posterior, compatível com
rastreio neonatal, que fica armazenada durante adreno-leucodistrofia ligada ao cromossoma X.
algum tempo, pode ser muito útil em casos A elevação plasmática dos ácidos gordos de ca-
como este. deia muito longa, seguida do estudo genético
confirmaram o diagnóstico daquela doença, a
42.2.7.3 Giba lombar mais frequente das doenças dos peroxissomas.
Lactente observado aos seis meses de idade
no Serviço de Urgência por infeção respiratória Leitura complementar
alta. Era seguido por tumefação lombar detetada http://www.vademetab.org
aos quatro meses, com displasia das vertebras http://www.springer.com/us/book/9783642157196; http://
lombares L2-L3. Tinha história de rinofaringites link.springer.com/book/10.1007%2F3-540-28962-3;
e otites frequentes e obstrução nasal habitual.
Apresentava respiração ruidosa, macrocefalia, Agradecimento
cifose lombar e hepatoesplenomegália ligeira. O Drª Paula Garcia pela revisão do manuscrito.
desenvolvimento psicomotor global era normal.
Foi colocada a hipótese de doença lisossómica. O
estudo urinário dos glicosaminoglicanos foi nor-
mal, mas não o dos oligossacáridos. Confirmou-se
o diagnóstico de oligossacaridose (manosidose)
através do doseamento da a-manosidase em leu-
cócitos e fibroblastos e do estudo genético. Foi
submetido a transplante de medula óssea, com
bom resultado. Evoluiu no entanto com atraso
de desenvolvimento psicomotor e surdez neu-
rosensorial.
Capítulo 43.
A Criança submetida a Transplante
de órgãos sólidos

43
Isabel Gonçalves
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_43
CAPÍTULO 43. A CRIANÇA SUBMETIDA A TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS SÓLIDOS 313

43.1 CONTEXTO Na década de 80 surge a ciclosporina como


imunossupressor principal permitindo o desenvol-
A transplantação de órgãos sólidos em idade vimento sustentado da atividade de transplan-
pediátrica iniciou-se no século XX, na década tação em todo o mundo. Atualmente o número
de 60. É uma história de sucesso e insucesso, de de transplantes pediátricos, por ano na Europa
desafios e inovação, considerada experimental até estima-se em 3.000 sendo o rim o de maior
meados dos anos 80 e desde então com um lugar expressão numérica. No registo UNOS (United
aceite na Medicina contemporânea. Está longe Network for Organ Sharing USA) foram realizados
de ser uma ciência baseada na evidência, embora em 2012, 1.509 transplantes de órgãos sólidos em
protocolada e acolhendo grupos de trabalho nas crianças (1 aos 17 anos inclusive) com sobrevida
várias áreas: rim, fígado, pulmão, coração e in- no primeiro ano superior a 90%. O transplante
testino. O transplante de pâncreas que se pratica renal representa 42%, fígado 28%, coração 22
em adultos não tem indicações em pediatria e por %, intestino e pulmão cerca de 2% cada. Em
isso não será considerado neste texto. Portugal em 2013 houve 17 transplantes renais, 11
O primeiro transplante com sucesso a longo de fígado e dois de coração em idade pediátrica.
prazo foi um transplante renal (quadro 1). Foi si-
multaneamente o primeiro Dador Vivo (DV), entre
gémeos idênticos contornando assim o problema 43.2 DESCRIÇÃO DO TEMA
da rejeição numa era em que apenas os corticoi-
des e a azatioprina estavam disponíveis como 43.2.1 Doação
imunossupressores.
Os dadores para pediatria nos países ociden-
tais são alocados de acordo com a lei vigente em
1954 cada país (em Portugal todos os não inscritos no
First successful KIDNEY transplantation (Boston, USA) Registo Nacional de Não Dadores – RENNDA) sen-
1967 do a maioria dos transplantes efetuada com Dador
First successful LIVER transplant (Denver, USA) Cadáver (DC) em morte cerebral. A utilização de
1974 DC em paragem cardíaca é recente e representa
First successful HEART transplant (Stanford, USA) menos de 5 % na Europa e Estados Unidos. O
1987 DV foi durante muitos anos a única opção em
First successful LUNG transplant (Toronto, CA) países como o Japão, por razões religiosas. Na
1989 Europa a transplantação de DV representa 20 a
First successful BOWEL transplant (Paris, FR) 25 % do total de transplantes hepáticos pediátri-
cos e menos de 20 % no rim. Tem vantagens em
termos de sobrevida mas envolve mais recursos
Quadro 1. Primeiros transplantes de órgãos sólidos técnicos e financeiros e eticamente continua a ser
bem sucedidos.
discutível como primeira opção em países com
314 ISABEL GONÇALVES

taxas elevadas de doação, como por exemplo em otimização na seleção de dadores-recetores e me-
Portugal. Muito controversa continua a ser a sua lhoria na imunossupressão.
indicação no transplante emergente de fígado.
Por razões óbvias é possível efetuar DV em todos 43.2.3 Indicações
os transplantes de órgão sólido à exceção do
transplante cardíaco. Em contraste com os adultos a maioria das
patologias que leva ao transplante em crianças
43.2.2 Procedimento resulta de malformações congénitas, anatómicas
ou funcionais. O momento da decisão de trans-
Tecnicamente todos os órgãos envolvem plante é condicionado por critérios estabelecidos
especificidades próprias mas em comum todos baseados ou não em fórmulas de auxílio à estra-
partilham três passos fundamentais: i) anasto- tificação (i.e. Pediatric End-Stage Liver Disease
moses arteriais; ii) anastomoses venosas, e iii) - PELD). Todos os órgãos partilham como critério
anastomoses de vias de drenagem de fluidos ou major a falência terminal de órgão e /ou a refra-
ar: biliar, ureter, intestino e traqueia, (exceção tariedade às terapêuticas instituídas. Insuficiência
do coração que só tem anastomoses vasculares). aguda só é considerada no fígado e miocárdio e
O fígado tem o transplante mais complexo com é particularmente emergente no transplante he-
tempos de cirurgia, de 6 a 12 horas. A maioria pático. Com efeito o suporte artificial de órgãos
das crianças (80%) recebe fígados de adultos que (diálise, coração de Berlim, Extracorporeal mem-
são geralmente reduzidos para permitir compa- brane oxygenation- ECMO) permite um tempo de
tibilidade anatómica. Nos restantes órgãos o espera em lista alargado que pode ser indefinido
implante é de órgão inteiro implicando dadores no caso do rim. O sistema, Molecular Adsorbent
anatomicamente compatíveis o que aumenta o Recycling System – MARS, ou Bioartificial Liver
tempo em lista de espera. device – BAL, para o fígado não tem a mesma
Os resultados hoje (quadro 2) devem-se a eficácia pelo que na prática são considerados
três fatores fundamentais: curva de aprendizagem “pontes” para a transplantação e não terapias
técnica; microcirurgia nas anastomoses vasculares; substitutivas de função de órgão.

Sobrevida pacientes (%) enxertos (%)


1 ano 5 10 1 ano 5 10
Rim 98 96 92 96.5 84-87 54
Fígado 84-90 82-85 77 84-93 81-88 75
Coração 80 68 58 86-90 68-75 -
Pulmão 83 54 44 78-88 35-41 -
Intestino 80-95 77 46 88 74 58

Quadro 2. Sobrevida de pacientes e enxertos por tipo de transplante.


CAPÍTULO 43. A CRIANÇA SUBMETIDA A TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS SÓLIDOS 315

Do ponto de vista imunológico a seleção dos de 40 a 60 % nas primeiras seis semanas


recetores é organizada de acordo com a compa- no transplante de fígado, 30 a 40 % no
tibilidade do sistema ABO. Em crianças pequenas rim, coração e pulmão inferior a 10% mas
(primeiro ano de vida) podem ser usados órgãos a documentação sistemática por biópsia
ABO - incompatíveis com resultados de sobrevida do enxerto é menor nestes órgãos.
de enxertos semelhantes. No entanto esta prática 5. são ainda comuns as reativações ou
deve ser reservada para casos muito selecionados. primoinfeções assintomáticas dos vírus
Nos transplantes cardíacos e renais há ainda cítomegalovirus (CMV) e Epstein-barr
que garantir uma boa compatibilidade HLA e ve- vírus (EBV) em relação com o grau de
rificar a presença de allo-anticorpos preformados. imunossupressão do recetor e do estado
serológico pré transplante dos dadores e
43.2.4 Complicações recetores. A infeção pelo CMV é precoce
(duas a seis semanas pós cirurgia) e é
Dividem-se em precoces (primeiros seis me- particularmente nociva no transplante
ses) e tardias (depois dos seis meses). Há compli- de rim onde foi amplamente estudada.
cações específicas de cada órgão transplantado
mas é possível estabelecer um paralelismo para A medicação nos primeiros seis meses consiste
os diferentes órgãos. em vários tipos de fármacos dos quais os imunossu-
Nas primeiras semanas temos complicações: pressores são o pilar fundamental na profilaxia da
1. vasculares (tromboses dos vasos anasto- rejeição. Os protocolos variam entre os diferentes
mosados), incidência variável nos vários órgãos sendo a imunossupressão geralmente tripla
transplantes (no figado afeta 2 a 10 % nos primeiros seis meses e baseada em tacrolimus
dos doentes). ou ciclosporina (inibidores das calcineurinas), pred-
2. infeções da “ferida cirúrgica” ocorrem nisolona e antiproliferativos (azatioprina ou micofe-
em 60% dos pacientes (geralmente por nolatos). O imunossupressor principal é doseado em
bactérias gram negativas, muitas delas cada consulta e os níveis a atingir variam também
multirresistentes). entre os diferentes transplantes (menor no fígado
3. não função de órgão (primary non-func- e mais elevados no intestino, coração e rim).
tion, PNF) e problemas em anastomoses Nos primeiros seis meses os doentes tomam
específicas (biliar, ureteres, traqueia) em em média seis a oito fármacos diferentes além
5 a 20% dos casos. dos imunossupressores já referidos: aspirina e
4. rejeição: a rejeição celular aguda (RCA) é dipiridamol (prevenção de trombose), aciclovir
a mais frequente. No rim e no coração a ou valganciclovir (profilaxia de Herpes, CMV e
rejeição humoral (mediada por anticor- EBV), cotrimoxazol (prevenção das infeções por
pos preformados ou “de-novo” dirigidos Nocardia spp e Pneumocystis jiroveci) e antihiper-
a antigénios do dador) ainda ocasiona tensores (seleção do fármaco varia nos diferentes
morbilidade. A RCA tem uma incidência órgãos transplantados).
316 ISABEL GONÇALVES

Complicações tardias livros de orientação/registo e contactos (telefone,


Com as atuais taxas de sobrevida ao fim email) que devem ser disponibilizados sempre que
de um ano (90%) as crianças com transplan- observados fora do seu Centro habitual.
te de órgãos são uma população crescente de Com a melhoria da sobrevida surgem novos
regresso a casa, à escola e a uma vida com re- problemas a médio e a longo prazo relacioná-
gras e cuidados pouco diferentes dos seus pares. veis com a medicação (cardiovasculares, renais,
Naturalmente que em 20 % as complicações diabetes - New Onset Diabetes After Transplant
recorrentes (rejeição, infeções relacionáveis com – NODAT, tumores) mas também com o estilo de
o tipo de cirurgia) determinam várias hospita- vida e a capacidade educativa necessária neste
lizações e é causa de morbilidade e até morta- contexto.
lidade nesta fase. Mas a grande maioria está
bem, embora necessite de consultas cada três Renais e cardiovasculares:
ou quatro meses com avaliações analíticas e dos São mais frequentes no transplante renal e
fármacos imunossupressores e outros exames cardíaco mas nos últimos anos com protocolos
de imagem ou histológicos (biópsias) de acordo de vigilância mais específicos, verifica-se que por
com o protocolo de vigilância. exemplo no transplante hepático e em pacientes
Em ambulatório há alguns aspetos a subli- estáveis, 15% com mais de dez anos sobre o
nhar e que devem fazer parte do conhecimento transplante apresenta taxas de filtração glomeru-
geral. As vacinas com vírus vivos e/ou atenuados lar inferiores a 60 ml /minuto/1.73 m2. A noção
não são recomendadas depois do transplante e de lesão renal progressiva é recente e obriga a
a vacina antisarampo papeira e rubéola (VASPR) avaliação de co-morbilidades como a hipertensão
deve ser antecipada (seis ou nove meses idade) arterial e a diabetes, mas sobretudo à adaptação
quando se prevê que o transplante possa ser ne- precoce dos esquemas de profilaxia da rejeição,
cessário pelos 12 meses. O contacto com varicela diminuindo as doses ou mesmo suspendendo os
ou outras epidemias na escola ou na comunidade inibidores da calcineurina. A avaliação sistemá-
devem ser notificadas ao centro de transplante tica da tensão arterial nestes pacientes deve ser
e a profilaxia quando existe deve ser iniciada de encarada como uma norma em doente de risco.
imediato. A febre nem sempre é elevada ou pode O registo de alterações obriga a monotorização
estar ausente no decurso de infeções graves nas de 24 horas em ambulatório.
crianças imunodeprimidas. Em caso de diarreia Rejeição crónica e disfunção crónica dos
alguns imunossupressores como o tacrolimus /eve- enxertos: um número crescente de imunossupres-
rolimus e sirolimus aumentam as concentrações. sores mais potentes, permitindo variadas combi-
Neste contexto o fármaco deve ser diminuído nações não reduziu a taxa de rejeição crónica ao
em 50% da dose até resolução do quadro. As longo dos anos. No fígado situa-se entre 3 e 8
interações entre os imunossupressores e alguns % e a taxa é crescente para os restantes órgãos
fármacos devem ser lembradas aquando da sua atingindo um valor máximo de 80% no intestino.
prescrição. As crianças transplantadas possuem É curioso que o fígado que tem a mais alta taxa
CAPÍTULO 43. A CRIANÇA SUBMETIDA A TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS SÓLIDOS 317

de rejeição celular aguda se torne ao longo dos Crescimento:


anos o enxerto mais tolerado (com sobrevidas A estatura final projetada numa criança em
superiores a 75% aos 20 anos em contraste com função dos progenitores não se aplica infeliz-
apenas 30 a 40 % dos rins transplantados). Muito mente na grande maioria de crianças recetoras
há ainda para investigar e aprender na complexa de órgãos mas é uma preocupação real dos cui-
relação enxerto-hospedeiro. A rejeição crónica é dadores destas crianças. Por um lado a estatura
uma das razões de retransplante condicionando é um marcador de bem estar físico, de saúde, e
morbilidade e mortalidade não negligenciável. por outro lado estabelece diferenças na aceitação
pelos pares. É um problema também emergente
Tumores de “novo”: na última década com a melhoria de sobrevida e
Surgem em crianças transplantadas, numa nesse sentido vários estudos analisaram não só
percentagem quatro a cinco vezes superior à o perfil de crescimento das crianças mas fatores
esperada na mesma faixa etária. Embora os tu- passíveis de o melhorar. Os corticoides relacio-
mores malignos (pele, intestino, tiroide) surjam nam-se negativamente com a velocidade de cres-
de forma idêntica à dos adultos, nas crianças há cimento e assistimos a um número crescente de
uma situação predominante que é a emergência protocolos de imunossupressão sem corticoides
de linfomas em associação com a infeção pelo “ab initium” ou que visam a sua suspensão nos
vírus EBV. Estes tumores designados por, Post primeiros três meses pós transplante. A disfunção
Transplant Lymphoproliferative disease- PTLD, en- crónica de enxerto (independente da etiologia)
volvem geralmente as amigdalas e /ou o tecido pela inflamação associada e a necessidade de
linfoide intestinal mas podem surgir em qualquer retomar ou aumentar os corticoides representa
órgão, tendo tropismo particular para os enxertos. outro importante fator sobretudo nas crianças
A determinação regular das cargas virais do EBV, com transplante renal e de fígado. Por outro lado
o diagnóstico precoce e a suspensão ou redução tem impacto positivo a idade em que ocorre o
da imunossupressão, mantendo apenas os corti- transplante, tendo as crianças mais pequenas (me-
coides, permitem a involução do PTLD em 90 % nos de dois anos) maior crescimento de retorno
dos pacientes. Nos restantes uma estratégia com- em comparação com as mais velhas. As crianças
binada com quimioterapia e rituximab (anticorpo com transplante cardíaco e sem corticoides na
monoclonal anti CD20) é necessária, tendo este fase de manutenção têm velocidade de cresci-
grupo uma maior morbilidade e risco de morte. mento normal.
Os PTLD têm muito baixa incidência no transplante
de rim, moderada no fígado e pulmão e muito 43.2.5 Qualidade de vida/ adaptação social
elevada no transplante de coração e intestino. e escolar /adolescência
Os tumores transmitidos pelo dador (envol- Vencidas as dificuldades e complicações do
vendo o enxerto na maioria) ocorrem num número primeiro ano após o transplante, torna-se pre-
reduzido de crianças (< 0,03%) mas o diagnóstico mente delinear um suporte global de completa
é sempre complexo. integração da criança com transplante de órgãos e
318 ISABEL GONÇALVES

respetivas famílias. A qualidade de vida (QOL) tem matemáticos baseados nas variações de níveis
sido objeto de inúmeras publicações e projetos de imunossupressores ao longo do tempo para
de investigação e engloba áreas diversas como permitir classificar e quantificar o grau de adesão
a adaptação social e escolar, desenvolvimento ou não adesão. Clinicamente é difícil e sobretudo
e crescimento neurocognitivo, comportamento delicado confrontar um doente e / ou a família
individual e familiar, adesão terapêutica, puber- com a falha de cumprimento terapêutico.
dade, contraceção e fertilidade.
De um modo geral (e para os vários tipos A puberdade é tipicamente diferida (um a
de transplante) as crianças e jovens apresentam dois anos) nas crianças transplantadas mas recu-
maiores dificuldades escolares e taxas de insu- perável e sem repercussões futuras se o enxerto
cesso (30 a 40 % em várias séries) e frequentes se mantiver estável. Quando a disfunção de en-
alterações do comportamento e dificuldades na xerto é grave e / ou persistente surgem alterações
interação / integração social. A “desculpabilização hormonais que em conjunto com a medicação
“ dos cuidadores (pais, tutores e mesmo técnicos promovem disfunções pubertárias. Nas raparigas
de saúde) face à gravidade das doenças a que dismenorreia e amenorreia primária ou secundária
foram expostos, é muitas vezes apontada como ocorrem em metade dos casos.
um dos elementos com impacto negativo mais As adolescentes devem ser orientadas para
significativo. No entanto, ao rever a vastíssima uma consulta de ginecologia de adolescentes
literatura sobre este tema, facilmente se percebe de forma idêntica à da população saudável.
que os aspetos neurocognitivos e comportamen- Da mesma forma os métodos usuais indicados na
tais da criança com transplante de órgãos são população saudável podem ser aplicados embora
complexos e que faltam estratégias de intervenção a vigilância de efeitos secundários e a interação
preventiva, individuais e familiares. com os fármacos necessários ao transplante obri-
Quando avaliados por questionários sobre gue a uma abordagem modificada sempre em
qualidade de vida, adaptados à sua condição as articulação com o Centro de Transplante.
crianças e jovens obtêm índices de resposta so-
breponíveis aos seus pares, em nítido contraste Na transição para o hospital de adultos é
com a resposta dos pais ou outros cuidadores fundamental que o relatório operatório (no caso
que é invariavelmente menos positiva. de transplante de órgãos abdominais) seja envia-
A adolescência é definitivamente um pe- do e as jovens são advertidas que o seu obstetra
ríodo complicado no seguimento destes doen- deve ter conhecimento desse mesmo relatório
tes. A maioria sente-se fisicamente bem e como em caso de gravidez.
qualquer adolescente vai tentar testar os seus
limites. O problema mais comum e expectável
é a não adesão terapêutica, outra área que tem
merecido alguma atenção de grupos de investi-
gadores. Desenvolveram mesmo alguns modelos
CAPÍTULO 43. A CRIANÇA SUBMETIDA A TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS SÓLIDOS 319

43.3 FATOS A RETER

As crianças com transplante de órgãos só-


lidos têm hoje elevada sobrevida.
Todos os clínicos irão contactar com esta
nova área da medicina.
O crescimento em todas as vertentes, a mor-
bilidade cardiovascular e renal e a emergência de
tumores devem ter monitorização interdisciplinar.
A integração social e escolar, a adesão ao
tratamento, a promoção de estilos de vida sau-
dáveis exigem o seguimento desta população em
consultas de Pediatria do neurodesenvolvimento
já existentes nalguns Centros Hospitalares.
Imunossupressão “por medida” ou viver sem
imunossupressão constitui o desafio da próxima
década.
Capítulo 44.
Imunodeficiências Primárias –
quando suspeitar?

44
Sónia Lemos
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_44
CAPÍTULO 44. IMUNODEFICIÊNCIAS PRIMÁRIAS – QUANDO SUSPEITAR? 323

44.1 CONTEXTO 44.2 DESCRIÇÃO DO TEMA

As imunodeficiências primárias (IDP) são um Atualmente as IDP estão divididas em oito


grupo de doenças que resulta de defeitos genéticos grupos de acordo com o(s) componente(s) do
que afetam o desenvolvimento e/ou a função de sistema imunológico afetado(s):
componentes do sistema imunológico. A maioria é 1.Imunodeficiências combinadas de linfócitos
monogénica, herdada de forma autossómica reces- B e linfócitos T.
siva, autossómica dominante ou recessiva ligada ao 2.Deficiências de anticorpo.
cromossoma X. Inicialmente apontadas como raras, 3.Imunodesregulação.
nas últimas décadas o número identificado tem 4.Deficiências do complemento.
vindo a aumentar. A primeira IDP foi identificada há 5.Deficiências da imunidade inata.
cerca de 60 anos e hoje estão descritas aproxima- 6.Deficiência de fagócitos.
damente 200 formas diferentes. Embora a maioria 7.Síndromes bem definidos com imunode-
seja rara, em conjunto afeta um em cada 2.000 ficiência.
nados vivos, variando entre 1/500 na deficiência 8.Síndromes auto inflamatórios.
seletiva de imunoglobulina (Ig)A (a IDP mais fre- A figura 1 ilustra a distribuição e frequência
quente mas muitas vezes assintomática) a 1/50.000 dos diferentes grupos de IDP. O mais frequente é
para as imunodeficiências combinadas graves ou o grupo das deficiências de anticorpos, que com-
Severe Combined Immunodeficiency (SCID). preende aproximadamente metade dos casos.

Figura 1. Distribuição e frequência das IDP por oito grupos. European Society for Immunodeficiencies registry 2010.
324 SÓNIA LEMOS

Embora haja padrões clínicos mais específi- A grande etapa para o diagnóstico de
cos de cada grupo de IDP, a apresentação clínica uma IDP, não é tanto reconhecer os padrões
é muito variável e ocorre grande sobreposição clínicos caraterísticos de cada grupo, mas an-
entre eles. Por exemplo: infeções de pele, abces- tes, conhecer sinais que devem alertar para a
sos profundos ou adenites por Staphylococcus possibilidade de estarmos na presença de uma
aureus, Serratia marcescens, Burkhoderia cepacia, criança com IDP.
Nocardia sp, Candida e Aspergillus são as apresen- A grande maioria dos pacientes com IDP
tações mais comuns das deficiências de fagócitos. tem infeções graves ou de repetição, contudo
Já as infeções respiratórias altas de repetição por estes não são os únicos sinais que devem sugerir
bactérias capsuladas com início depois dos seis a investigação de IDP.
meses são características do grupo das IDP com
deficiência de anticorpos. Deve suspeitar-se de IDP na criança ou
adolescente que apresente:
As IDP causam grande morbilidade e algu-
mas, como os SCIDs, evoluem inexoravelmente 1. Suscetibilidade a infeções.
para a morte no primeiro ano de vida se não 2. Fenómenos autoimunes.
tratadas rapidamente com transplante de células 3. Reações alérgicas graves.
hematopoiéticas pluripotenciais de medula óssea 4. Reações inflamatórias exageradas.
ou de cordão umbilical. O diagnóstico precoce 5. Neoplasias hematológicas (leucemias e
de IDP é por isso essencial. linfomas).

1-Manifestações a. Infeção que se enquadre no anagrama PeRIGOS (ver à frente)


clínicas b. Má progressão ponderal/diarreia persistente
c. Diabetes mellitus tipo 1 ou outra doença autoimune
e/ou inflamatória no primeiro ano de vida
d. Quadro de sepsis na ausência de infeção bacteriana
e. Cardiopatias congénitas associadas a hipocalcémia
f. Neoplasias hematológicas em crianças pequenas
g. Atraso na queda do cordão umbilical (além de catorze dias)
2-História familiar h. Familiares com IDP confirmada ou suspeita
i. Presença de consanguinidade
3-Exame objetivo j. Tamanho de órgãos linfoides
k. Manifestações dermatológicas
l. Dismorfismos faciais e microcefalia
m. Manifestações orais/dentárias
4-Exames n. Ausência de sombra tímica na radiografia do tórax
complementares o. Linfopenia ou outra citopenia persistentes
p. Leucocitose persistente

Quadro 1: Sinais de alerta para IDP.


CAPÍTULO 44. IMUNODEFICIÊNCIAS PRIMÁRIAS – QUANDO SUSPEITAR? 325

Conhecer os sinais de alerta de IDP é essen- Persistente


cial para salvar vidas e/ou reduzir a morbilidade. qualquer infeção cuja evolução não é a es-
Em 1993 foram publicados pela primeira vez os dez perada (i.e. bronquiolite a VSR) ou que persiste
sinais de alerta para IDP. Desde então o número apesar de tratamento adequado.
de IDP expandiu-se imenso e com ele o espetro
de manifestações clínicas. Apesar disso, evidências Recorrente
recentes demonstram que com base nestes dez infeção que após remissão, reaparece.
sinais, um em cada cinco doentes com IDP não
seria diagnosticado, sendo agora estes dez sinais Imunização
considerados uma “relíquia do passado”. neste caso existem duas situações:
Encontram-se sinais de alerta de IDP na his-
tória médica, na história familiar, no exame físico i) infeção após vacina viva atenuada -
e em exames complementares de diagnóstico tão em imunocompetentes, os agentes das
simples como um hemograma e uma radiografia vacinas vivas atenuadas não proliferam
do tórax (quadro 1). ao ponto de causar doença. Quando
tal acontece, significa que existe uma
44.2.1 Manifestações clínicas grande fragilidade do sistema imunológi-
co. Exemplos são a BCGite disseminada
a) Infeção que se enquadre no anagrama PeRIGOS após vacina do BCG, o sarampo após a
Grande suscetibilidade a infeções é a cara- vacina do sarampo, a poliomielite ou a
terística mais reconhecida das IDP. Numa criança/ gastroenterite grave, após a vacina oral
adolescente com infeções frequentes, uma pista para a poliomielite ou rotavírus, respe-
para a causa das infeções é o número de locais tivamente;
afetados. Infeções repetidas no mesmo local (i.e. ii) falência vacinal com vacinas inati-
pneumonias frequentes) sugerem um problema vadas - nestes casos o recetor da vaci-
de órgão (anatómico, estrutural…como a fibrose na não se infeta com o agente vacinal,
quística) enquanto infeções em diversos locais porque este é inativado, mas a infeção
(pneumonias e otites frequentes) são mais suges- decorre do encontro com o microrga-
tivas de um processo mais sistémico como a IDP. nismo no meio ambiente. O doente foi
O anagrama PeRIGOS reúne as caracterís- incapaz de produzir anticorpos, o que
ticas das infeções que devem alertar para IDP: também significa a existência de uma
Pe - Persistente; falha no sistema imunológico. Um exem-
R - Recorrente; plo é a pneumonia pneumocócica com
I – Imunização (vacinas); um serotipo vacinal em criança/adoles-
G – Grave; cente que completou o esquema vacinal
O – Oportunista; da vacina conjugada antipneumocócica
S – Sequelas. (Prevenar R ).
326 SÓNIA LEMOS

Grave c) Diabetes mellitus tipo 1 ou outra doença


Uma única infeção mas grave é também autoimune e/ou inflamatória
um sinal de alerta de IDP. Autoimunidade é uma caraterística precoce
de IDP com imunodesregulação. O IPEX é um
Oportunista: exemplo. É caraterizado pela tríade de entero-
Microrganismos oportunistas são micror- patia (diarreia), diabetes mellitus tipo I e eczema
ganismos muito pouco virulentos e como tal grave tipicamente em doentes do sexo mascu-
incapazes de causar doença em imunocom- lino nos primeiros meses de vida. Neste caso,
petentes. Uma infeção por um microrganismo anticorpos antienterócitos causam a enteropatia
oportunista é sempre um sinal de alerta para autoimune responsável pela caraterística diarreia
IDP. Exemplos são as infeções por Pneumocystis aquosa grave. Anticorpos anti células de ilhéus
jirovecci, Aspergillus, Burkholderia cepacia ou pancreáticos ou anti insulina causam diabetes
infeções invasivas por Cândida. Neste caso, es- mellitus tipo I. Apesar de alguns doentes também
perar por segunda infeção para considerar IDP apresentarem infeções graves, as manifestações
pode ser fatal. autoimunes predominam. O IPEX é fatal se não
for reconhecido.
Sequelas
Infeções que deixem lesões (i.e. bronquiec- d) Quadro de sépsis na ausência
tasias, pneumatoceles) na ausência de um pro- de infeção bacteriana
blema estrutural ou anatómico, devem também Sépsis é tipicamente causada por bactérias,
sugerir uma IDP. fungos ou vírus. Quadro de sépsis sem identifi-
cação de infeção bacteriana é um sinal de alerta
b) Má progressão para IDP. Exemplo de IDP que se apresenta com
ponderal/diarreia quadro de “sepsis-like” é a linfohistiocitose he-
persistente mafagocítica familiar.
Diarreia crónica grave, intratável, associada
a má progressão ponderal é um sinal de alerta e) Cardiopatias congénitas
de IDP. A diarreia pode ser de causa infeciosa, associadas a hipocalcémia
auto-imune ou inflamatória. Nos primeiros três Cardiopatias congénitas (especialmente
a quatro meses de vida, é uma manifestação anomalias conotruncais) se associadas a hipo-
comum de dois tipos de imunodeficiências muito calcémia sugerem síndrome de microdeleção no
graves: os SCIDs e a IPEX (imunodesregulação, braço longo do cromossoma 22 (22q11.2). A tríade
poliendocrinopatia, enteropatia ligada ao cro- clássica que o carateriza é: anomalias cardíacas
mossoma X). O transplante de células hemato- conotruncais, hipoplasia tímica e hipocalcémia
poiéticas pluripotenciais é o único tratamento. (resultante da hipoplasia das paratiroides). A hi-
Na sua ausência as crianças morrem antes do poplasia tímica causa defeitos nos linfócitos T de
primeiro ano de vida. gravidade variável, 1% dos doentes tem ausência
CAPÍTULO 44. IMUNODEFICIÊNCIAS PRIMÁRIAS – QUANDO SUSPEITAR? 327

completa do timo e imunodeficiência muito gra- Telangiectasias oculo-cutâneas devem


ve, os restantes têm imunodeficiência de menor fazer suspeitar de ataxia telangiectasia.
gravidade. Albinismo oculo-cutâneo parcial ou total
é sugestivo de síndrome de Chediaki Higashi ou
f) Neoplasias hematológicas síndrome de Griscelli.
em crianças pequenas Eritrodermia (rubor difuso da pele que afeta
Neoplasia hematológica (NH) deve evocar mais de 90% da superfície corporal) imediatamente
uma IDP se: idade inferior à esperada particu- após o nascimento associada a alopécia grave e
larmente em caso de linfoma de Hodgkin e leu- má progressão estaturo ponderal, é imediatamente
cemia linfoblástica aguda de células T, presença sugestiva de síndrome de Omenn, um tipo de SCID.
de neoplasias simultâneas ou sequenciais ou NH Eczema generalizado e resistente ao trata-
associada a infeção pelo vírus Epstein Barr. mento em crianças pequenas associado a elevados
níveis de IgE total e IgEs específicas são sinais de
44.2.2 História familiar alerta para síndrome de híper IgE e síndrome de
Familiar com IDP (confirmada ou possível) Wiskott Aldrich.
Sendo doenças genéticas, a maioria das ve- Displasia da pele, unhas ou cabelo, sur-
zes a criança com IDP tem ou teve um familiar gem na disqueratose congénita, deficiência de
com IDP pelo que a presença ou suspeita de IDP NEMO. Além da suscetibilidade a infeções, es-
num familiar é considerado um dos sinais de alerta tes doentes apresentam alterações de estruturas
mais relevante e que mais se correlaciona com a ectodérmicas como a pele, cabelo e dentes. Na
presença de IDP. deficiência de NEMO os doentes têm pele seca
e escamosa, cabelo fino e escasso, ausência de
44.2.3 Exame objetivo glândulas sudoríparas e dentes cónicos (seme-
lhantes a dentes de tubarão). Na disqueratose
j) Tamanho de órgãos linfoides congénita, apresentam unhas dismórficas, alte-
Quer a ausência quer o aumento excessivo rações da coloração da pele (aspeto reticulado) e
de órgãos linfoides devem ser sinais de alerta. leucoplaquia (placas brancas na língua).
A ausência de amígdalas ou adenoides, ocorre
na agamaglobulinemia ligada ao cromossoma X, i) Dismorfismos faciais e microcefalia
uma IDP em que não há linfócitos B. A hipertrofia A associação de dismorfismos faciais (i.e.
persistente dos gânglios é observada em IDP em fácies em bico de pássaro), microcefalia e infeções
que há defeitos da apoptose como no síndrome recorrentes deve evocar uma IDP (síndrome de
linfoproliferativo autoimune (ALPS). Nijmegen Breakage e Défice de ADN ligase IV).

k) Manifestações dermatológicas m) Manifestações orais e dentárias


Estão presentes em 40% a 70% dos doentes Leucoplaquia, úlceras aftosas recorrentes,
com IDP. dentes cónicos, ausência de queda de dentição
328 SÓNIA LEMOS

de leite, associados a infeções, ocorrem em IDP Subbarayan A, Colarusso G, Hughes SM, Gennery AR, Slatter
como na disqueratose congénita, neutropenias, M,  Cant AJ,  Arkwright PD.Clinical  features  that  iden-
deficiência de NEMO, síndrome de Hiper-IgE, tify  children  with  primary  immunodeficiency  diseases.
respetivamente. Pediatrics. 2011 May;127(5):810-6.
Lehman H. Skin manifestations of primary immune deficiency.
44.2.4 Exames complementares de diagnóstico Clin Rev Allergy Immunol. 2014 Apr;46(2):112-9.
Szczawinska-Poplonyk A1, Gerreth K, Breborowicz A,
A ausência de sombra tímica na radiogra- Borysewicz-Lewicka M.
fia do tórax é um sinal de alerta para IDP. Os lac- Oral manifestations of primary immune deficiencies in chil-
tentes apresentam timos tipicamente volumosos. dren. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod.
Timos ausentes devem evocar sempre um SCID. 2009 Sep;108(3):e9-20.
Linfopenia (<3000 /ml) no primeiro trimes-
tre de vida, é também um sinal de alerta de IDP
e até prova em contrário um SCID.
Neutropenia (<1500 ml) persistente sugere
neutropenia congénita.
Leucocitose persistente associada a queda
tardia do cordão umbilical é caraterística das de-
ficiências de adesão de leucócitos (LAD).

44.3 FACTOS A RETER

O diagnóstico precoce de IDP é essencial.


O tratamento precoce evita o curso por vezes
fatal e melhora a qualidade de vida.
O diagnóstico precoce de IDP também é
muito importante para aconselhamento genético
e diagnóstico pré-natal.
Estas crianças devem ser estudadas e segui-
das por equipas especializadas nestas patologias.
Leitura complementar
Cant A, Battersby A. “When to think of immunodeficiency?”
Adv Exp Med Biol. 2013;764:167-77.
OSullivan MD, Cant AJ. The 10 warning signs: a time
for a change? Curr Opin Allergy Clin Immunol. 2012
Dec;12(6):588-94.
Capítulo 45.
Doença oncológica

45
Manuel Brito
e Alexandra Paul
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1300-0_45
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 331

45.1 CONTEXTO 45.2 DESCRIÇÃO DO TEMA

O cancro na criança é uma patologia rara, 45.2.1 Epidemiologia


sendo estimado que um Pediatra Geral no seu
consultório, diagnostique um caso cada 10 A incidência estimada do cancro em idade
anos. No entanto, existem várias caraterísticas pediátrica varia conforme a idade, sendo habi-
da Oncologia Pediátrica que obrigam a que o tualmente referido o diagnóstico de um caso em
Pediatra e o Médico de medicina geral e familiar cada 7.000 crianças até aos 14 anos, por ano,
tenham bem presente esta patologia. decrescendo depois para um em cada 2.500 ado-
A partir dos quatro anos de idade, nos países lescentes mais velhos.
desenvolvidos, o cancro é a principal causa de Existe uma variabilidade considerável de in-
morte em idade pediátrica, a seguir aos acidentes. cidência de acordo com o tipo de tumor, idade,
Pelas especificidades dos doentes desta idade, sexo e raça ou região do mundo, de entre outros
com fragilidade de alguns órgãos e sistemas e fatores.
por existirem situações de cancro de rápida pro- Na Europa, cerca de 15.000 crianças até
gressão, algumas das apresentações desta aos 14 anos de idade e 20.000 adolescentes e
patologia são verdadeiras emergências. Um jovens adultos dos 15 aos 24, são diagnosticados
atraso no diagnóstico pode, portanto, ter implica- com cancro todos os anos. Em Portugal, estima-
ções graves na morbilidade e na mortalidade da -se que surjam anualmente cerca de 400 novos
criança com doença oncológica. Assim, perante casos, relativos ao grupo etário entre os 0 e os 18
uma suspeita de doença oncológica, a referência anos. A especificidade do cancro pediátrico, faz
a um centro de cuidados adequados deve ser a com que os casos devam estar concentrados em
mais rápida possível. grandes centros, existindo quatro em Portugal:
A evolução da terapêutica em oncologia dois no Porto, um em Coimbra e um em Lisboa.
pediátrica (junto com a evolução dos cuidados O espetro das neoplasias em pediatria é bem
de suporte em Pediatria) tem permitido, ao diferente do dos adultos. Ao contrário destes,
longo de décadas, um aumento marcado da em que o tipo de cancro é classificado sobre-
sobrevida, levando a que cerca de um adulto tudo com base na sua localização primária, em
em cada 530, seja um sobrevivente de cancro pediatria a classificação baseia-se essencialmente
em idade pediátrica. O impacto destes doentes no tipo histológico. A classificação melhor aceite
no sistema de saúde é muito importante. Para internacionalmente e que se tornou “standard” é
além dos múltiplos internamentos e diferentes aquela que está de acordo com o “International
consultas necessárias aos cuidados de suporte Classification of Childhood Cancers”, onde os tu-
destes doentes, durante a fase de tratamento; a mores são divididos em 12 grupos major.
vigilância das sequelas implica, frequentemente,
a continuidade de um seguimento multidiscipli- De reter que as leucemias agudas e os
nar a longo prazo. tumores do sistema nervoso central (SNC)
332 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL

representam cerca de metade das neoplasias A distribuição dos tipos de cancro nos jo-
em Pediatria. Os principais tipos de leucemias vens com idades entre os 15 e os 19 anos é
são as linfoblásticas agudas (LLA) - 80%, se- um pouco diferente, sendo o LH (16%) e os tu-
guidas das mieloblásticas agudas (LMA). Nos mores germinativos (12.5%) os mais frequentes,
tumores sólidos e por frequência decrescente constatando-se igualmente também maior in-
após os tumores do SNC, surgem os sarcomas cidência de sarcomas de tecidos moles (6%) e
de tecidos moles, os neuroblastomas (sistema de osteossarcoma (4%). Apesar dos tumores do
nervoso simpático) e o tumor de Wilms (rim). Os SNC representarem também, nesta faixa etária,
linfomas constituem cerca de 15% de todas as o terceiro grupo mais comum (10%), a sua in-
neoplasias na criança e no adolescente, sendo cidência é menor comparativamente com a do
os principais tipos o de Hodgkin (LH) – 45%, outro dos zero aos 14 anos. A LLA é também
o de Burkitt – 30% e os não-Hodgkin (LNH) – menos frequente nos jovens entre os 15 e os 19
25%. Os osteossarcomas, os retinoblastomas e anos (cerca de 7.5%) e a LMA tem uma incidência
uma miríade de outros tumores representam os ligeiramente superior (4%). Alguns tumores mais
restantes casos. comuns dos 0 aos14 anos têm taxas de incidência
bem mais baixas neste grupo etário. Estão nesta
A causa da grande maioria dos tumores condição o retinoblastoma, o tumor de Wilms, o
em pediatria é ainda desconhecida. Até ao neuroblastoma e o hepatoblastoma.
momento, estima-se que até 10% dos casos
sejam consequentes a predisposição genética Incidência e sexo
e que 5% terão origem na exposição a fatores Para ambos os grupos etários acima referidos
ambientais carcinogénicos. Na prática clínica existe uma ligeira predominância global do sexo
a grande maioria dos doentes com cancro não masculino, sobretudo nos LNH, onde se verificam
tem aparentemente um factor predisponente rácios 1.5 a 2 vezes superiores.
conhecido.
No grupo etário dos zero aos 14 anos ve-
Incidência e idade rifica-se igualmente uma ligeira preponderância
Até aos 14 anos de idade, a LLA é a neoplasia do sexo masculino para as LLA, os tumores SNC,
mais comum, correspondendo a cerca de 25% o sarcoma de Ewing, o rabdomiossarcoma e o
das neoplasias. Os tumores do SNC represen- hepatoblastoma.
tam aproximadamente 20% do total. Segue-se
o neuroblastoma (7%), o LNH (6%) e o tumor de Nos jovens entre os 15 e os 19 anos os
Wilms (5%). Os restantes tumores representam padrões de incidência são relativamente seme-
entre 2 a 4% do total, onde se incluem o LH, o lhantes, realçando-se as seguintes exceções: en-
rabdomiossarcoma, outros sarcomas de tecidos quanto o LH nas crianças, é ligeiramente mais
moles, o osteossarcoma, os tumores de células frequente no sexo masculino, nos adolescentes o
germinativas e o retinoblastoma. rácio masculino:feminino é semelhante. Também
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 333

se verifica uma predominância de sarcoma de ou, bem mais frequentemente, numa combinação
Ewing nas crianças do sexo masculino. O oposto de duas ou mais modalidades (quimioterapia, cirur-
acontece para os tumores germinativos e para os gia e radioterapia), consoante o tipo de tumor, a
osteossarcomas. sua localização e estadío da doença, entre outros
fatores. Cada vez mais são também utilizados ou-
Mortalidade tros agentes terapêuticos, que não cabem nestes
Desde 1960 que a taxa de sobrevida de grupos clássicos como seja a: hormonoterapia,
cancro aos cinco anos de doença tem vindo a imunoterapia, terapia com agentes biológicos e
aumentar progressivamente, altura em que era terapêutica com medicação dirigida ao alvo.
apenas de 28%. Na primeira década de 2000 a
taxa de sobrevida global (SG), aos cinco anos, A maioria dos protocolos terapêuticos inclui
para os tumores em idade pediátrica (crianças uma combinação de drogas citotóxicas que atuam
e adolescentes) rondava já os 80% (76.1% em em diversas fases do ciclo celular, com diferentes
1999 a 2001 e 79.1% em 2005 a 2007) e, aos mecanismos de ação que são complementares e
10 anos, ultrapassava os 75%. sinérgicos, com o objectivo de evitar o apareci-
mento de células resistentes, aumentar a eficácia
Contudo, as taxas de sobrevivência são mui- na eliminação de células tumorais e diminuir a
to diferentes em função do tipo de tumor. Assim, toxicidade colateral.
as neoplasias com melhores taxas de sobrevida
aos cinco anos são os linfomas (embora com al- A evolução dos protocolos pediátricos, com
gumas variações conforme os seus subtipos) e a consequente melhoria da taxa de cura, foi con-
as leucemias. De entre estas, a LLA é a que tem seguida ao longo dos anos através de estudos
o prognóstico mais favorável e uma sobrevida multicêntricos internacionais, que se tornaram o
melhor, entre 1996 a 1998 já ultrapassava 80% padrão dos estudos clínicos.
(na década de 60 era de 20 a 25%). As taxas de
sobrevida relativas ao LH ultrapassam agora os Os efeitos secundários mais comuns a curto
90%. Nos tumores do SNC, esta melhoria de prazo, decorrentes da quimioterapia, são: a fadiga,
prognóstico tem sido menos marcada. a alopécia, as náuseas e vómitos, a diarreia ou
De salientar contudo a gravidade do can- obstipação, a mucosite, bem como possíveis in-
cro. Na Europa cerca de 6.000 crianças e jovens feções e depressão medular (leucopenia, anemia,
morrem anualmente por esta doença. trombocitopenia) com necessidade de suporte
transfusional coadjuvante. Outros efeitos secun-
45.2.2 Conceitos gerais dários possíveis de se manifestarem a curto e a
de tratamento e sequelas longo prazo são: hipersensibilidade, complicações
neurológicas, cardiovasculares, renais, défices
A terapêutica do cancro pediátrico pode ba- hormonais, repercussão na fertilidade, tumores
sear-se numa só modalidade (i.e. quimioterapia) secundários, entre outros.
334 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL

Cerca de 300.000 a 500.000 cidadãos euro- laboratoriais, que vão desde o hemograma, bioquí-
peus são neste momento sobreviventes de cancro mica, a marcadores tumorais e outros mais especí-
na infância, sendo que um terço destes apresenta ficos de cada patologia; é de referir a necessidade
sequelas consideráveis a longo prazo, decorrentes de uma imagiologia com técnicas muito específi-
da sua doença e/ou tratamento. É importante cas, que vão desde a tomografia computadorizada
não só aumentar a probabilidade de cura mas (TAC), ressonância magnética nuclear, cintigrafias,
também a qualidade da sobrevida a longo prazo. técnicas de fusão como a tomografia de emissão
de positrões com a tomografia computadorizada
45.2.3 O diagnóstico ou a ressonância magnética. O estudo do próprio
tumor requer ainda recurso à anatomia patológica,
As múltiplas localizações do cancro pediá- citometria de fluxo e técnicas de biologia molecular.
trico e/ou a possibilidade de apresentação como Defende-se assim que toda a abordagem cirúrgica
doença sistémica, levam a que as listas de diag- de uma lesão tumoral na criança deva ser feita
nóstico diferencial sejam habitualmente exaus- num centro de Oncologia Pediátrica.
tivas. Posteriormente vai-se rever as patologias
mais frequentes, chamando a atenção para sinais Perante um caso de suspeita de doença on-
de alarme que pela sua invulgaridade ou pela sua cológica numa criança que não se encontre num
gravidade são marcantes. centro de referência, o estudo diagnóstico deverá
ser realizado de forma contida. Poderão ter utilidade,
Realça-se o facto do diagnóstico precoce de de acordo com a suspeita em causa, a TAC crânio-
cancro na criança e adolescente ser muitas vezes -encefálica, ecografia abdominal e a radiografia con-
difícil, pela similaridade de apresentação com outras vencional (exames imagiológicos); o hemograma
doenças mais comuns da criança. Descrevem-se e esfregaço de sangue periférico, a velocidade de
alguns sintomas comuns de cancro na criança que sedimentação, o estudo da coagulação (TTPa, TP) e
podem potencialmente representar um sinal de aler- a bioquímica (função renal, hepática, ionograma, de-
ta, como seja: massa anormal, palidez ou perda sidrogenase láctica). Se a suspeita de neoplasia per-
inexplicável de energia, tendência súbita para hema- sistir, a criança deve ser prontamente referenciada.
tomas, dor ou claudicação localizada e persistente,
quadro febril prolongado, cefaleias frequentes com Aborda-se, seguidamente, a clínica dos gru-
vómitos associados, mudanças súbitas da acuidade pos de tumores mais comuns em pediatria.
visual e rápida e marcada perda de peso.
45.2.4 As patologias – grupos de diagnóstico
Exames para o diagnóstico
Os exames realizados para o diagnóstico e
estadiamento de uma criança com cancro são 45.2.4.1 Leucemias agudas
variados e complexos devendo ser realizados Mais de 95% dos casos de leucemia na
num centro de referência. Para além de exames criança corresponde a leucemias agudas, sendo
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 335

a LLA a forma mais comum e também a doença


oncológica mais frequente na criança. Tem um
pico de incidência entre os dois e os cinco anos
de idade, com um discreto predomínio do sexo
masculino. Existe risco aumentado de leucemia
em crianças com: trissomia 21, neurofibromatose,
anemia de Fanconi, diversas imunodeficiências
e crianças sob terapêutica imunossupressora.
Entre outros fatores de risco mais conhecidos
como possivelmente implicados, destacam-se os
genéticos (homozigotia para o HLA DRB4*01),
os familiares (idade materna avançada) e os am- Figura 1. Cloroma em criança com leucemia.
Alteração da cor da pele para um tom acastanhado/vinoso.
bientais (radiação ionizante, sendo clássico o
Fotografia dos autores.
aumento de risco de LLA associado a exposição
a Raios X in utero).
A Leucemia mieloblástica aguda corres-
ponde a cerca de 20% das leucemias na idade complicados que o habitual que são secundários
pediátrica. Apresenta maior incidência no primeiro a alteração da função dos leucócitos normais ou
ano de vida, seguindo-se uma taxa estável ao a leucopenia.
longo da idade pediátrica, com um discreto au- O exame físico, para além da palidez e sinais
mento na adolescência. Não há diferença entre cutâneos de hemorragia, pode revelar sinais de
sexos. Tal como na LLA, existem alguns fatores infiltração extra-medular como hepatomegália,
predisponentes: trissomia 21, neurofibromatose, esplenomegália e adenopatias.
anemia de Fanconi, sendo referido também um
aumento de incidência com a exposição materna Existem, no entanto, outras manifestações
ao tabaco, álcool ou marijuana. para as quais devemos estar alerta: dores ós-
seas – que traduzem a existência de um “tu-
Em ambas os tipos de leucemias existe um mor intra-medular”, podendo por vezes ocorrer
risco aumentado em gémeos idênticos. artralgias; tumefação testicular, que reflete a
A clínica das leucemias reflete, habitual- infiltração dos testículos pela leucemia (mais
mente, as alterações na hematopoiese pelo facto frequente na LLA); hipertrofia gengival, que
do espaço onde normalmente existe uma medula reflecte a infiltração das gengivas (LMA) e os
óssea funcionante ficar ocupado pela leucemia. cloromas (LMA) – que são infiltrações ou mas-
Assim, é frequente existirem manifestações he- sas de tecidos moles que podem ter qualquer
morrágicas que refletem a trombocitopenia, bem localização, habitualmente com alteração da
como anorexia e astenia provocada pela ane- cor da pele para um tom de acastanhado a
mia, ou quadros infeciosos arrastados ou mais vinoso (figura 1).
336 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL

Na presença de leucemia o laboratório A necessidade de transplante de medula no


revela classicamente alterações do hemograma primeiro programa terapêutico é cada vez mais
com uma ou mais citopenias e/ou leucocitose, rara, embora haja algumas situações (LLA phila-
podendo surgir elevação da desidrogense láctica delphia positiva) onde persiste essa indicação.
e do ácido úrico. Perante a suspeita de leucemia
aguda é essencial a avaliação do esfregaço de Situações de emergência nas leucemias
sangue periférico, onde se pode detetar blas- Nas leucemias agudas, podem surgir situa-
tos. Chama-se a atenção para a possibilidade ções de emergência no momento do diag-
do diagnóstico de leucemia sem a existência de nóstico, como por exemplo: hemorragia grave
qualquer citopenia, sendo ainda possível qualquer por trombocitopenia e anemia aguda após he-
combinação de citopenias no hemograma. Nas morragia. Para além destas chama-se a atenção
formas de evolução muito rápida por vezes só para três situações que podem colocar em risco a
existe leucocitose. vida: i) hiperleucocitose – leucostase, define-se
pela presença de mais de 100.000 leucócitos
A avaliação laboratorial de leucemia confir- por microlitro no sangue periférico e é uma
mada inclui diversas técnicas a partir do medulo- emergência médica. O excesso de leucócitos,
grama: morfologia, citometria de fluxo, estudo particularmente na LMA, pode provocar fenó-
molecular, citogenética convencional e análise de menos de oclusão dos pequenos vasos, mais
alterações genéticas por polimerase chain reac- relevante nas crianças pequenas, com possibi-
tion - PCR. Esta avaliação é fundamental para a lidade de trombose e hemorragia subsequente.
definição da terapêutica. A clínica é mais marcante a nível do SNC (irrita-
bilidade, confusão e cefaleias) e a nível pulmonar
A base da terapêutica das leucemias agu- (dificuldade respiratória com pieira e alteração
das é a quimioterapia. Na LLA esta intervenção das trocas gasosas). Deve rapidamente reduzir-
prolonga-se classicamente por um período de -se o número de leucócitos através de métodos
dois anos (uma fase inicial mais intensiva e outra de aferese e ou quimioterapia: de notar que é
de manutenção superior a um ano). Na LMA a necessária precaução na transfusão de glóbu-
terapêutica é muito intensiva durante quatro a los vermelhos por esta aumentar a viscosidade
cinco meses. Nalguns tipos de leucemias, a tera- sanguinea. ii) síndrome de lise tumoral, que
pêutica dirigida ao alvo associada à quimioterapia decorre da destruição de células neoplásicas com
convencional já é utilizada por rotina. libertação de produtos de catabolismo com con-
Para formas específicas de leucemias existem sequente aumento de ácido úrico, potássio, e
atualmente programas terapêuticos particulares fósforo séricos. Este fenómeno no seu conjunto
(i.e. na LLA - leucemia philadelphia positiva e leu- pode provocar insuficiência renal que, por sua vez,
cemia no primeiro ano de vida; na LMA-leucemia vai agravar a hiperkaliémia. Embora esta situação
promielocítica e leucemia nas crianças com tris- seja mais frequente após o início da quimioterapia,
somia 21). pode ocorrer previamente. Em termos laboratoriais
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 337

encontra-se um aumento da desidrogenase láctea, capacidade de acomodação do volume cerebral


que vai servir de marcador da lise tumoral. dentro da calote craniana; é caraterizada por
A hiperhidratação (com soro glucossalino- vómitos e cefaleias que surgem tipicamente
-hipossódico ou soro fisiológico, sem outros iões durante a noite (acordando o doente) e início
adicionados) é a primeira medida terapêutica; da manhã. Na ausência de medidas terapêuticas
iii) coagulopatia / coagulação intra-vascular (médicas ou cirúrgicas) os sintomas vão agravan-
disseminada, decorrente da activação da cas- do, surgindo então sinais tardios e graves que
cata da coagulação por factores que os blastos denotam atraso no diagnóstico tais como: al-
libertam, sobretudo nas leucemias mieloblásticas terações visuais (i.e. diplopia e parésias oculares),
agudas (tipo promielocítica). papiledema e, mais tardiamente, alteração do estado
de consciência e a tríade de Cushing (hipertensão,
45.2.4.2 Tumores do SNC bradicardia e bradipneia). Na criança pequena pode
A clínica dos tumores do SNC em pediatria é ocorrer um sinal típico de “olhos em sol poente”
variada e diverge de acordo com a sua localização (desvio permanente dos olhos para baixo), com im-
e a idade do doente. Um dos sintomas mais fre- possibilidade de elevação do globo ocular.
quentes é a cefaleia, que está presente na forma
de apresentação em cerca de 40% dos casos, so- Em lactentes, o aumento progressivo do
bretudo nas lesões “da fossa posterior”, e que surge perímetro cefálico pode ser o único sinal de HIC.
em contexto de hidrocefalia obstrutiva. De uma
forma geral, as cefaleias são menos comuns nos O atraso no diagnóstico é infelizmente
tumores supratentoriais e nos do tronco cerebral. frequente na maioria dos sistemas de saúde.
Existe no entanto uma variação considerável de
A perturbação da marcha e do equilíbrio país para país, desde um intervalo temporal curto
são também alterações neurológicas frequentes de cerca de cinco semanas até meses ou nalguns
em tumores da fossa posterior, do tronco cerebral casos anos de evolução, ocorrendo estes últimos
e da medula espinhal. em tumores de crescimento lento, cuja sintoma-
tologia pode ser insidiosa e passar despercebida.
As alterações visuais são também co- Por vezes a epilepsia pode surgir como forma de
muns, particularmente nos tumores da fossa apresentação clínica.
posterior, da linha média e nos tumores supra- A abordagem do doente com tumor do SNC
tentoriais. exige uma equipa multidisciplinar altamente di-
ferenciada.
Outros sintomas podem estar presentes, tais
como: sinais de hipertensão intracraniana (HIC), Clínica dos tumores do SNC
convulsões focais, parésias de pares cranianos e A clinica esperada de acordo com a locali-
alterações endócrinas. O quadro clínico de HIC zação do tumor no SNC, encontra-se ilustrada
depende da rapidez da sua instalação e da na figura 2 e quadro 1.
338 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL

intra-canalar ou de um tumor próximo


da coluna com extensão intra-canalar.
A urgência justifica-se pelo risco de
instalação irreversível de lesão me-
dular com consequente repercussão
neurológica, nomeadamente paraple-
gia, bexiga neurogénica ou intestino
neurogénico, entre outros. De reter
que perante uma criança com dorsalgia,
é necessária a realização de uma história
clínica detalhada e de um exame físico
com particular atenção a deformidades
próximas da coluna, complementado de
Figura 2. Localização dos tumores no SNC. um exame neurológico adequado com
Adaptado “Cancer in Children - Clinical Management, sixth
particular atenção ao funcionamento
Edition, The International Society of Paediatric Oncology”.
dos esfíncteres. Estes doentes devem
ser prontamente referenciados para um
Situações de emergência centro com neuropediatria, neurocirurgia,
nos tumores do SNC neuroimagiologia e oncologia pediátrica.
Vamo-nos referir particularmente à hiperten- A realização de ressonância magné-
são intra-craneana e à compressão da espinhal tica nuclear tem que ser efetuada
medula: no espaço de 24 horas, e tem que se
recorrer a terapêutica imediata com de-
i) hipertensão intracraniana, trata-se xametasona.
de uma emergência pelo risco de en-
cravamento das amígdalas cerebelosas, 45.2.4.3 Linfomas
sendo o seu tratamento prioritariamen- A designação linfoma refere-se a um grupo
te neurocirúrgico, habitualmente através de doenças neoplásicas do sistema linfático.
de uma ventriculostomia endoscópica. Os linfomas, em idade pediátrica, são
Outras alternativas neurocirúrgicas são classificados em dois grandes subgrupos: os
a derivação externa ou a colocação de linfomas de Hodgkin (LH) e os não-Hodgkin
derivação ventrículo-peritoneal. A abor- (LNH). No seu conjunto, correspondem ao ter-
dagem médica faz parte da terapêutica e ceiro grupo mais frequente de neoplasias em
pode incluir a utilização de dexametasona idade pediátrica.
em dose anti-edematosa; Os linfomas de Hodgkin têm classicamente
ii) compressão espinhal medula, pode de início um envolvimento ganglionar; os não-
ocorrer pela existência de tumor -Hodgkin podem ter ou não.
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 339

1. Tumores supra-tentoriais 4. Tumores da fossa posterior


Hipertensão intracraniana 47% Naúseas e vómitos 75%
Convulsões 38% Cefaleia 67%
Papiledema 21% Alteração da marcha ou coordenação 60%
Sinais neurológicos focais 17% Papiledema 34%
Cefaleia 11% Alteração da motilidade ocular 20%
Hemiplegia 10% Letargia 13%
Naúseas e vómitos 8% Naúseas sem vómitos 10%
Macrocefalia 6% Hipertensão intracraniana 9%
Perda de peso 9%
2. Tumores centrais Fraqueza muscular focal 9%
Cefaleia 49% Macrocefalia 7%
Alteração motilidade ocular e estrabismo 21% Alteração da consciência 7%
Naúseas e vómitos 19% Vertigem ou sintomas auditivos 7%
Papiledema 18% Estrabismo 6%
Redução da acuidade visual 16% Torcicolo 6%
Hipertensão intracraniana 13% Cefaleia 7%
Diabetes insípida 12%
Alteração da marcha e coordenação 10% 5. Tumores medulares
Atrofia ótica 9%
Alteração do comportamento ou Dorsalgia 67%
dificuldades escolares 9% Alteração da marcha ou coordenação 42%
Alteração da consciência 9% Deformidade espinhal 39%
Redução do campo visual 8% Fraqueza muscular focal 21%
Convulsões 7% Incontinência de esfíncteres 20%
Hemiplegia 7% Diminuição da mobilidade do
Défice motor focal 7% membro superior 17%
Atraso do desenvolvimento 7% Atraso do desenvolvimento 8%
Baixa estatura 7% Torcicolo 7%
Perda de peso 5% Cefaleia 7%
Vertigem ou sintomas auditivos 5%
Anormalidade visual/ ocular (inespecífica) 5%

3. Tumores do tronco cerebral


Alteração da marcha ou coordenação 78%
Paralisia nervo craniano (inespecífico) 52%
Sinais extra-piramidais (inespecífico) 33%
Cefaleia 23%
Estrabismo 19%
Fraqueza muscular focal 19%
Paralisia focal 15%
Papiledema 13%
Hipertensão intracraniana 10%
Alteração da motilidade ocular 6%
Alteração do comportamento ou
dificuldades escolares 5%

Quadro 1. Clínica de tumores do SNC de acordo com localização (figura2). Adaptado “Cancer in Children - Clinical Management,
sixth Edition, The International Society of Paediatric Oncology”.
340 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL

Adenopatias totalidade (90% a 95%) das crianças com esta


O termo adenopatia denomina um gânglio neoplasia pode ser curada.
patológico. Tem uma distribuição etária bimodal nos paí-
O gânglio normal tem habitualmente uma ses industrializados; o pico de incidência precoce
forma alongada (formato de feijão) é mole, móvel ocorre entre os 15 e os 35 anos e o segundo após
em relação aos seus planos e é indolor. Os gan- a idade de 50 anos. Nos países em desenvolvi-
glios normais podem ser encontrados em diversas mento, o pico precoce ocorre mais cedo.
regiões do corpo. Classicamente são considerados Em idade pediátrica distinguem-se duas
normais os que se localizam a nível cervical ante- formas de LH:
rior (à frente do esterno-cleido-mastoideu) e nas
regiões inguinais com até 1,5 cm de diâmetro e os i) a da infância antes dos 14 anos (extre-
axilares com até 1 cm. Há localizações fortemente mamente rara abaixo dos quatro), com
suspeitas de terem origem patológica como é o predomínio do sexo masculino e que pa-
caso dos que têm posicionamento supra-clavicular. rece estar relacionada com a ausência de
É importante saber que no exame físico exposição precoce a infeções; e
da criança saudável é habitual palparem-se gân- ii) após a idade de 15 anos. Esta forma está
glios, sobretudo entre os quatro e os oito anos de associada a um estrato socioeconómico
idade, altura em que as estruturas ganglionares mais elevado, ao aumento do tamanho da
atingem a sua dimensão máxima (têm por essa fratria, e à ordem de nascimento - existe
idade o dobro da dimensão do adulto). menor risco em adolescentes e adultos
Os gânglios em crianças podem ter maiores jovens com múltiplos irmãos mais velhos
dimensões em múltiplas circunstâncias, sendo as (mas não mais jovens), consistente com
causas mais frequentes as doenças infeciosas. a hipótese de que a exposição precoce
Nestas situações não perdem, habitualmente, a infeção viral pode desempenhar um
a sua estrutura alongada e são dolorosos. papel protetor na patogénese da doença,
Outras causas a realçar são as neoplasias, as doen- provavelmente pela maturação da imu-
ças inflamatórias e as doenças do armazenamento. nidade celular. Nesta, existe um discreto
Nas situações tumorais, para além do au- predomínio do sexo feminino.
mento de dimensões, encontramos gânglios ade-
rentes aos planos profundos e, portanto, pouco No LH há relação direta positiva com a in-
móveis e duros. Para além disso podem perder feção pelo vírus de Epstein-Barr, com um risco
a sua estrutura normal e serem arredondados. quatro vezes superior nas pessoas que tiveram
uma primo-infeção. Existe também um risco supe-
Linfoma de Hodgkin rior nos doentes com imunodeficiência primária,
O LH é um dos poucos tumores pediátri- adquirida ou secundária a terapêutica imunos-
cos que partilha vários aspectos da sua biologia supressora. A existência de um caso na família
e história natural com a dos adultos. A quase aumenta também o risco para este linfoma.
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 341

A clínica clássica de LH inicia-se com o primeiro ano de vida. Ao contrário dos adultos,
aparecimento de adenopatias cervicais ou supra- que na maioria das vezes apresentam doença
-claviculares indolores (80% dos doentes) e/ou a nodal, as crianças e adolescentes normalmente
presença de sintomas constitucionais (sintomas têm doença extra-nodal envolvendo o mediasti-
B – febre vespertina, perda ponderal superior a no, abdómen, cabeça e pescoço. Podem atingir
10% e sudorese noturna). Alguns doentes têm também a medula óssea ou o SNC o que tem im-
prurido, aparentemente inexplicado. Uma massa plicações terapêuticas. Por este motivo o sistema
mediastínica está presente em 75% dos adoles- de classificação dos LNH em idade pediátrica é
centes, mas só em 35% das crianças abaixo desta diferente do dos adultos e a terapêutica também.
idade. O envolvimento de órgãos como o pulmão O LNH é o tipo de neoplasia mais frequente em
e a medula ocorre em 15 a 25% dos doentes. doentes com imunodeficiência.
O estudo histológico continua a ser o padrão
para o diagnóstico bem como para a definição dos i) Linfomas de células B maduras
seus sub-tipos celulares. A caraterização imuno- Linfoma de Burkitt
histoquímica é fundamental, particularmente pela Dos LNH é o mais frequente entre os cinco
introdução crescente de anti-corpos monoclonais e os 14 anos e existe um predomínio franco do
na terapêutica dos casos de recidiva. sexo masculino. Os locais primários mais comu-
Apesar das semelhanças com a doença mente afetados pela doença são o abdómen com
nos adultos, as estratégias terapêuticas em ida- envolvimento digestivo e possibilidade de atingir
de pediátrica são diferentes, tentando-se evitar todos os outros órgãos intra-abdominais (60%
a radioterapia com a sua morbilidade inerente. dos casos nos países industrializados); e o tecido
Intervem-se com protocolos de quimioterapia ba- linfático do anel de Waldeyer. Outros locais de
seados no estadío e presença de sintomas B e com início da doença incluem os testículos, os ossos,
estratificação em grupos de risco. Os protocolos a medula óssea e o SNC. A disseminação pleural
atuais tentam evitar ainda toxicidade cardíaca e e peritoneal é frequente. Em África há uma rela-
reduzir o risco de infertilidade. ção positiva forte entre o LNH e a infeção pelo
vírus de Epstein-Barr, sendo a apresentação mais
Linfomas não Hodgkin frequente a do tumor da mandíbula. Nos países
A grande maioria dos casos de LNH em idade industrializados o vírus Epstein-Barr é identifi-
pediátrica pode ser dividida em três categorias: cado na neoplasia em cerca de 15% dos casos.
i) células B maduras (que incluem o linfoma / Trata-se de uma das neoplasias com crescimento
leucemia de Burkitt e o linfoma B difuso de gran- mais agressivo, havendo referência a poder existir
des células); ii) linfoma linfoblástico; e iii) linfoma duplicação de volume a cada 12 horas; é por isso
anaplásico de grandes células. a neoplasia onde habitualmente é mais grave a
Mais raramente existem outros tipos. síndrome de lise tumoral. Numa fase precoce pode
Os LNH representam cerca de 7% das neo- apresentar-se com clinica de invaginação intesti-
plasias em idade pediátrica. São muito raros no nal. De notar que qualquer invaginação intestinal
342 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL

acima dos 3 anos deve ser considerado ter uma relativamente a este representar uma possível
causa patológica. forma de apresentação diferente da LLA ou uma
O diagnóstico pode ser realizado em pou- entidade distinta, dado as características celulares
cas horas recorrendo a métodos de citometria de serem as mesmas. Classicamente considera-se que
fluxo, em material biológico colhido com proce- há leucemia quando a percentagem de blastos na
dimentos minimamente invasivos. Uma pequena medula óssea é superior a 25%. O prognóstico é
amostra de líquido pleural ou peritoneal pode ser sobreponível ao das LLA.
o suficiente para a caracterização diagnóstica, O linfoma linfoblástico de linhagem B apre-
contudo a sua definição completa inclui estudos senta-se com adenopatias, e ou envolvimento
de genética molecular. O início da terapêutica é ósseo. A apresentação clínica do linfoma linfo-
uma emergência e inclui o controlo do síndro- blástico de células T em 75% dos casos é a de
me de lise tumoral. Os esquemas terapêuticos uma massa no mediastino anterior e superior (com
são relativamente curtos, de dois a oito meses, envolvimento do timo), rapidamente progressiva,
conforme o estadio. Trata-se de uma neoplasia com ou sem a presença de adenopatias supra-
com uma sobrevida superior a 80%, mesmo nos -claviculares. As manifestações clínicas podem ser
casos em que há envolvimento medular ou do respiratórias (dispneia, sibilos, estridor), disfagia,
SNC (superior a 90% nos outros casos). ou edema da cabeça e pescoço. É frequente a
presença de derrame pleural e / ou pericárdico.
Linfoma B difuso de grandes células Pode haver também envolvimento de osso, pele,
É mais frequente depois dos 15 anos de medula óssea ou do SNC. O atingimento de outros
idade e existe um predomínio do sexo masculino. locais é invulgar.
A apresentação clínica pode ser semelhante ao O diagnóstico pode ser realizado por mé-
linfoma de Burkitt, embora seja mais frequente- todos de citometria de fluxo com posterior ca-
mente localizada, sendo também menos frequen- racterização por genética molecular. O esquema
te o envolvimento da medula óssea ou do SNC. terapêutico dos linfomas linfoblásticos é sobre-
O diagnóstico pode ser igualmente realizado ponível ao da LLA.
por métodos de citometria de fluxo. A caracteri-
zação completa inclui estudos de genética mo- iii) Linfoma anaplásico de grandes células
lecular. Os esquemas terapêuticos utilizados em Tal como o linfoma B difuso de grandes cé-
pediatria são os mesmos do linfoma de Burkitt, lulas tem uma frequência crescente com a idade.
sendo o prognóstico semelhante. É também mais frequente no sexo masculino.
A apresentação clínica deste tipo de linfoma pode
ii) Linfoma linfoblástico ser muito variada: inclui o envolvimento dos gân-
É mais frequente entre os 10 e 14 anos de glios linfáticos e uma variedade de localizações
idade e existe um predomínio do sexo mascu- extranodais, principalmente da pele e do osso mas
lino. O linfoma linfoblástico pode ser de linha- também, do pulmão e pleura, músculo e trato
gem B ou T. Existe alguma discussão científica gastrointestinal. Frequentemente existe febre e
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 343

perda ponderal. A doença nodal frequente- ao espaço à frente e o posterior ao espaço atrás
mente tem um percurso ondulante, o que destas estruturas. Esta divisão dá-nos também
por vezes leva a um atraso no diagnóstico. uma ajuda no diagnóstico diferencial.
O envolvimento medular maciço ou do SNC é O síndrome da veia cava superior ocorre
mais raro. pela obstrução da veia cava superior. Tal pode
O diagnóstico pode também ser realizado ocorrer por um quadro de trombose, dependente
por métodos de citometria de fluxo com posterior por exemplo de um cateter central; ou por com-
caracterização por genética molecular. O esquema pressão externa pela patologia tumoral. A clínica
terapêutico é semelhante ao dos linfomas B com é de edema da face e pescoço, cianose cervical
uma duração curta, mas intensiva com poucos e da face e engurgitamento das veias cervicais.
ciclos de quimioterapia. Há vários medicamentos O síndrome do mediastino superior ocorre
baseados em anticorpos monoclonais e terapêuti- por compressão da traqueia pela massa tumoral.
ca dirigida ao alvo, utilizados atualmente apenas A clínica é de tosse, rouquidão, dispneia, ortopneia,
nos casos em fase de recidiva mas que poderão dor torácica, seguindo-se ansiedade, confusão,
vir a modificar a terapêutica deste linfoma. letargia, cefaleias, alteração da visão e síncope.
Estas últimas alterações refletem a hipóxia e hi-
Situações de emergência nos linfomas percapnia. A traqueia na criança é menos rígida e
Nos LNH a ocorrência de síndrome de lise mais facilmente deformável, pelo que a gravidade
tumoral é muito frequente como já foi referi- é tanto maior quanto mais jovem for o doente.
do. A possibilidade de ocorrência de derrame
pericárdico e ou pleural implica também cele- Na prática clínica estas duas situações são
ridade de atuação. A presença de uma massa concomitantes. Os linfomas são o principal grupo
no mediastino médio, anterior e superior pode de patologias implicadas, sendo o linfoma linfoblás-
levar aos síndromes da veia cava superior e/ou tico o que mais frequentemente causa um quadro
do mediastino superior. mais agudo. Os tumores germinativos e os neuro-
blastomas também podem provocar este quadro.
É importante referir aqui, a relevância da É necessário particular cuidado ao lidar com estes
avaliação inicial de uma massa mediastínica passar doentes, devendo haver noção de que o decúbi-
pela realização de duas incidências da radio- to é muitas vezes mal suportado, sendo por vezes
grafia torácica (a antero-posterior, vai definir se contraindicada a realização de uma TAC torácica
a massa está no mediastino superior ou no infe- ou a realização de uma anestesia geral. Também o
rior - linha imaginária que passa entre a 4ª e a 5ª ritmo de perfusões deve ser contido, por agravar
vértebras; e perfil esquerdo - menor interferência o edema dependente da compressão da veia cava.
da sombra cardíaca - a fim de localizar a massa
ao mediastino anterior, médio ou posterior). O 45.2.4.4 Tumores embrionários
mediastino médio refere-se à localização normal Os tumores embrionários são caracterizados
do coração, grandes vasos e traqueia, o anterior pela proliferação de tecido que é normalmente
344 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL

observado apenas no embrião em desenvolvimen- Bernard-Horner pela presença de neuroblastoma


to. Existem quatro tipos principais: neuroblastoma no gânglio simpático cervico-torácico – chama-
no sistema nervoso simpático, retinoblastoma no -se a atenção para o facto das duas principais
olho, nefroblastoma no rim e hepatoblastoma no causas de síndrome de Bernard-Horner em
fígado. Outros tumores embrionários incluem o idade pediátrica serem o trauma no parto e
meduloblastoma (cérebro) e o rabdomiossarcoma o neuroblastoma; nódulos cutâneos e/ou sub-
embrionário (tecidos moles). A maioria destes -cutâneos por doença metastática - muitas vezes
ocorre, mais frequentemente, nos primeiros anos de coloração azulada, geralmente observados
de vida, havendo um pico de incidência no primei- em lactentes; proptose e equimoses periorbitais,
ro ano. Alguns, ocasionalmente, estão presentes por metástases retrobulbares; dor óssea, por
ao nascimento. doença metastática; sinais e sintomas relaciona-
dos com pancitopenia, por metastização medu-
Neuroblastoma lar óssea extensa; diarreia aquosa, relacionada
O neuroblastoma é o tumor sólido extracra- com a secreção de peptídeo intestinal vasoati-
niano mais frequente na infância. Mais de 90% dos vo; febre, hipertensão e anemia: encontrados
casos são diagnosticados antes dos cinco anos de ocasionalmente em pacientes sem metástase.
idade. Pouco se sabe acerca de possíveis causas As características clínicas de neuroblastoma
do neuroblastoma. São encontradas alterações em adolescentes são semelhantes às agora
somáticas nalguns genes, mas só em 1 a 2% dos descritas na criança, mas a infiltração da me-
doentes há história familiar de neuroblastoma. dula óssea é menos frequente. Outra forma de
O tumor primitivo localiza-se na medula da glân- apresentação possível do neuroblastoma é o sín-
dula supra-renal ou no tecido do sistema nervoso drome de opsoclónus/mioclónus, considerado
simpático (gânglios simpáticos paravertebrais). um quadro neurológico, paraneoplásico, causado
A apresentação clínica do neuroblastoma por um mecanismo imunológico não totalmente
pode ser muito variada e está relacionada: com esclarecido. Caracteriza-se clinicamente por nis-
a localização do tumor, com a possível presença tagmus horizontal associado a ataxia do tronco,
de metástases e/ou com produtos biológicos mioclonias de qualquer extremidade e alterações
libertados pelo tecido tumoral. A apresen- do comportamento ou do sono.
tação clínica mais frequente é a de uma O estudo da peça tumoral implica um estudo
massa abdominal. Outras incluem: distensão genético detalhado podendo ocorrer alterações
abdominal por metástases hepáticas maciças, no número de cromossomas, perdas ou ganhos
podendo existir compromisso respiratório; qua- parciais de cromossomas ou amplificação de genes.
dros neurológicos compatíveis com compressão Neste momento são definidos três sub-grupos de
da espinhal medula - os neuroblastomas com comportamento biológico distinto. Por exemplo tu-
origem no tecido simpático para-vertebral po- mores com amplificação do proto-oncogene N-myc 
dem comprimir a espinhal medula por infiltração (NMYC), perda ou ganho de fragmento de DNA
através do foramen intervertebral; síndrome de respetivamente nos cromossomas 1p e 17q estão
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 345

associados a pior prognóstico. A evolução depende Nefroblastoma


no entanto de múltiplos fatores, incluindo: idade O nefroblastoma não é o único tumor
(melhor prognóstico abaixo do ano de idade, pior renal em idade pediátrica. É, no entanto, o
nos adolescentes), localização do tumor primiti- mais frequente, na idade pré-escolar. Já nos
vo, histologia, envolvimento de gânglios linfáticos adolescentes, o tumor renal mais frequente é o
adjacentes e resposta à terapêutica para além das carcinoma renal. A incidência do nefroblastoma
características biológicas. é de sete casos por milhão de crianças com
A avaliação do neuroblastoma implica es- menos de 15 anos de idade. Em 10% dos casos
tudos laboratoriais com algumas particularidades as crianças têm uma anomalia congénita. Estes
(doseamento de enolase sérica e de metabólitos de últimos casos são agrupados em fenótipos de
catecolaminas urinárias) tal como imagiológicos - hipercrescimento (por exemplo hemihipertro-
cintigrafia com metaiodobenzylguanidina, para além fia ou síndrome de Beckwith-Wiedemann, entre
de outros exames habituais em patologia tumoral. outros); e fenótipos sem hipercrescimento onde
A abordagem terapêutica depende do se incluem diversas situações clínicas (síndro-
risco definido após estadiamento, variando des- mes de Bloom, de Li-Fraumeni e de Fanconi,
de a abordagem exclusivamente cirúrgica, até e a aniridia congénita ou a forma familiar de
programas complexos que incluem quimiotera- tumor de Wilms, entre outros). Quando estes
pia, cirurgia, transplante de células progenitoras quadros são identificados previamente a um
hematopoiéticas, radioterapia e terapêutica de diagnóstico de patologia tumoral é sensato
manutenção incluindo anti-corpos monoclonais. realizar rastreio ecográfico (de três em três
De salientar uma particularidade do neuroblas- meses até aos 8 anos de idade), na expecta-
toma que é a possibilidade de regressão espon- tiva de identificar tumores numa fase inicial
tânea. Estudos de base populacional com rastreio e de se conseguir realizar cirurgia poupadora
de crianças com neuroblastoma têm demonstrado de rim. O tumor de Wilms é muitas vezes
que a regressão espontânea do neuroblastoma, sem assintomático e, na maioria das situações, o
evidência de doença no primeiro ano de vida é pelo diagnóstico é realizado após deteção de uma
menos tão frequente como o neuroblastoma com massa abdominal, por vezes acidentalmen-
manifestações clínicas. A regressão espontânea tem te por um dos pais. No entanto é de referir
sido muito descrita em bebés com o estadio IVs que em 40% dos casos há dor abdominal e
de neuroblastoma. Trata-se de uma doença com que se deteta hipertensão arterial em 25%.
um pequeno tumor, com metástases hepáticas, A hematúria também ocorre em 25% dos casos.
que podem provocar uma hepatomegália maciça; A avaliação da peça tumoral inclui, além da
da pele e medula óssea. Também nestes casos as histologia, o recurso a técnicas de genética mole-
alterações genéticas do tumor são importantes para cular ambas com implicações no prognóstico, assim
prever a possibilidade de regressão espontânea, como a idade, o estadio e o tamanho do tumor.
embora alguns destes últimos casos necessitem de A terapêutica inclui quimioterapia e cirurgia po-
quimioterapia pela agressividade clínica. dendo existir necessidade de radioterapia.
346 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL

Retinoblastoma crioterapia, terapêutica com laser e termoterapia


O retinoblastoma é um tumor intra-ocular que em doença localizada até à cirurgia com enu-
surge a partir da retina. Pode ocorrer envolvimento cleação. A quimioterapia sistémica é utilizada
do nervo óptico, infiltração do SNC e metástases inicialmente nalguns casos de doença localizada
à distância. É um cancro da criança muito jovem; e quando há doença extraocular.
sendo dois terços de todos os casos diagnosticados
antes dos dois anos de idade. A incidência é de Hepatoblastoma
um caso por cada 15.000 nascimentos. Não há Os tumores hepáticos são raros em idade
predomínio de nenhum sexo. A maioria dos casos pediátrica e correspondem habitualmente a he-
apresenta-se com leucocória e a suspeita diagnós- patoblastoma ou hepatocarcinoma. O hepato-
tica é baseada na ausência do reflexo vermelho blastoma é diagnosticado habitualmente antes
do olho, que pode ser identificada acidentalmente dos três anos de idade e tem uma incidência
numa fotografia e que deve ser pesquisada em de 1,6 casos por milhão de crianças (até aos 15
todas as consultas de rotina até aos cinco anos anos). É habitualmente diagnosticado como uma
de idade. Em casos mais avançados pode ocorrer massa assintomática. Existem algumas condições
dor ocular ou olho vermelho. Existem alterações que predispõem à possibilidade de ocorrência de
da acuidade visual. O diagnóstico precoce é fun- hepatoblastoma como por exemplo o síndrome de
damental para a preservação da vida, do olho e Beckwith-Wiedeman, polipose adenomatosa fa-
para tentar conservar a visão. miliar, trissomia 18, e os casos de recém-nascidos
A maioria dos casos de retinoblastoma de- prematuros e de baixo peso.
ve-se a uma mutação no gene da proteína do A alfetoproteína é o biomarcador diagnós-
retinoblastoma (RB1). Cerca de um terço dos re- tico da doença, bem como da resposta ao trata-
tinoblastomas (incluindo todos os casos bilaterais) mento. As implicações das alterações genéticas
são hereditários, o que significa que a  mutação no hepatoblastoma não estão bem caracterizadas,
ocorre na linha germinativa. O aconselhamento sendo o prognóstico, actualmente, muito depen-
genético faz parte integral da orientação de qual- dente do estadio. A terapêutica é baseada em
quer família com um doente com retinoblastoma. quimioterapia e cirurgia.
Os doentes com alteração na linha germi-
nativa têm um risco aumentado de ter uma se- 45.2.4.5 Sarcomas ósseos e de tecidos moles
gunda neoplasia, muito particularmente se forem Os sarcomas são tumores que se desenvol-
submetidos a radioterapia. vem a partir de tecidos conjuntivos do corpo,
A confirmação diagnóstica é realizada pela (músculos, gordura, ossos, membrana sinovial
observação do fundo do olho. A terapêutica de- ou vasos sanguíneos). Os dois tumores ósseos
pende: da extensão da doença intraocular e da mais frequentes nas crianças e adolescentes são
existência de doença extraocular. As opções tera- o osteossarcoma e o sarcoma de Ewing. O sar-
pêuticas incluem: quimioterapia administrada por coma de tecidos moles mais frequente em idade
cateterismo supra-selectivo da artéria oftálmica, pediátrica é o rabdomiossarcoma.
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 347

Osteossarcoma radiofármaco - F18-FDG. O diagnóstico definiti-


O osteossarcoma de alto grau é o tumor ma- vo é feito através da biópsia óssea com estudo
ligno primário ósseo mais frequente em crianças, anatomo-patológico da lesão. O osteossarcoma
adolescentes e jovens adultos. É uma neoplasia apresenta-se sob o ponto de vista radiológico
rara de origem mesenquimal em que as células como uma lesão osteolítica destrutiva medular
cancerosas produzem matriz óssea. Corresponde e cortical, com elevação do periósteo e infiltra-
a aproximadamente 5% dos tumores em pediatria ção dos tecidos moles adjacentes. A presença
(8 a 11/milhão dos 15-19 anos), sendo a sua distri- de ossificação irregular dos tecidos moles ocorre
buição bimodal, com o primeiro pico de incidência geralmente num padrão radial ou em “raios de
na adolescência (idade média de apresentação sol”, não sendo específica deste tumor. As reações
aos 15 anos), coincidente com a aceleração do clássicas embora também não patognomónicas
crescimento, e o segundo após a sexta década exibidas pelo periósteo podem revelar-se na for-
de vida. O sexo masculino é afetado cerca de 1.5 ma de um triângulo de Codman ou de múltiplas
vezes mais do que o feminino. camadas estratificadas (tipo casca de cebola).
Este tumor surge, habitualmente, na região A ressonância magnética é útil para as ava-
metafisária dos ossos longos das extremidades, liações da extensão da lesão óssea intra-medular,
sendo a sua localização mais comum a região do grau de infiltração dos tecidos moles adjacen-
distal do fémur (49%), proximal da tíbia (28%) e a tes e da relação da lesão com os vasos e nervos.
região proximal do úmero (10%). No global, cerca Nas duas últimas décadas tem-se verificado
de dois terços dos casos ocorre nas estruturas uma melhoria progressiva no prognóstico destas
ósseas que circundam o joelho. O osteossarcoma crianças, sobretudo nas que apresentam doença
convencional é intra-medular e habitualmente localizada, com uma sobrevida global de cerca
associa-se a destruição cortical e a invasão dos de 80%, especialmente após a associação de
tecidos moles circundantes. esquemas de quimioterapia à terapêutica que
Carateriza-se clinicamente pelo aparecimento anteriormente era quase exclusivamente cirúrgica.
de uma tumefação dolorosa com sinais inflama- Os protocolos de quimioterapia utilizados têm
tórios associados e de incapacidade funcional, de incluído drogas “chave”, sendo o tratamento de
agravamento progressivo. A duração dos sintomas eleição a quimioterapia sistémica (neoadjuvante e
até ao diagnóstico é variável (alguns meses). Apesar adjuvante) e a excisão em bloco do tumor primi-
de existir frequentemente uma história prévia de tivo e das metástases. A radioterapia é reservada
traumatismo local, não há evidência científica atual para casos em que não se conseguiram margens
que comprove esta relação causa-efeito. cirúrgicas adequadas. Crianças com doença locali-
Os exames complementares para diagnóstico zada têm à partida um prognóstico mais favorável,
e estadiamento incluem a radiografia e resso- sendo de extrema importância um bom controlo
nância magnética da lesão tumoral, tomografia da doença primitiva e à distância. A existência
computorizada pulmonar e a cintigrafia óssea de metástases no momento de diagnóstico está
ou tomografia com emissão de positrões com o patente em até 20% dos doentes. As localizações
348 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL

secundárias (metástases) mais frequentes são as Os exames complementares para diagnóstico


pulmonares (80%), seguidas das ósseas, sendo e estadiamento são idênticos aos referidos para o
o prognóstico pior nestas últimas. São também osteossarcoma. O papel da biologia molecular e
factores com importância prognóstica a idade, o citogenética no estudo deste tumor é importan-
volume tumoral, a localização, o subtipo histológi- te, sendo a translocação cromossómica t(11;22)
co, a ressecabilidade do tumor primário, os níveis (q24;q12) com fusão dos genes EWS-FLI-1, a ano-
séricos de desidrogenase lática e de fosfatase malia genética mais frequentemente encontrada.
alcalina e o grau de resposta à quimioterapia A intervenção multidisciplinar, com recur-
neoadjuvante – necrose tumoral. so à quimioterapia em altas doses, associada ao
tratamento cirúrgico do tumor primário e à ra-
Sarcoma de Ewing dioterapia (quando indicado), foi determinante
O sarcoma de Ewing é o segundo tumor na melhoria do prognóstico desta doença, sobre-
ósseo mais comum na população pediátrica, re- tudo nas últimas duas décadas. Ao contrário do
presentando 10 a 15% dos sarcomas ósseas e 4% osteossarcoma, o sarcoma de Ewing é um tumor
do total de neoplasias na criança (duas a três por radiossensível, sendo o papel da radioterapia pre-
milhão). Tem uma incidência máxima na segunda ponderante para o controlo desta doença embora
década de vida, sendo pouco frequente antes dos não substituindo a cirurgia.
cinco anos de idade. Comparativamente com o Atualmente, a sobrevida aos cinco anos
osteossarcoma, este tumor surge mais frequen- de doença é de 60 a 70%. Ao diagnóstico es-
temente nos ossos da pélvis (26%), a seguir no tão presentes metástases em 25% das crianças,
fémur (20%), tíbia (10%) e úmero (6%). O esque- sendo mais frequentes as localizações pulmonar
leto axial – coluna vertebral, corresponde a uma e óssea. Para além da metastização, os outros
das localizações menos comuns, mas também factores clássicos relacionados com o prognóstico
atingida. As lesões são de características líticas incluem a idade, volume da lesão, localização do
ou mistas (lítico-escleróticas), atingindo sobre- tumor primário (sendo a axial de pior prognóstico),
tudo a diáfise dos ossos longos, ao contrário do margens cirúrgicas livres de tumor e a resposta
osteossarcoma (predomínio na metáfise). histológica à quimioterapia de indução.
Clinicamente, o sintoma principal é a dor Mais uma vez se realça o papel importante
de agravamento progressivo, tornando-se dos médicos de primeira linha na identificação
gradualmente mais intensa, constante (diurna e de situações suspeitas e na sinalização rápida a
noturna) e incapacitante, frequentemente acom- Centro de Referência de Oncologia Pediátrica.
panhada de outros sinais inflamatórios, como o
edema. A febre pode estar presente em cerca de Sarcomas de tecidos moles -
um quarto dos casos. O diagnóstico diferencial rabdomiossarcoma
faz-se sobretudo com situações de infeção (osteo- Os sarcomas de tecidos moles são um
mielite) ou com outros tumores, nomeadamente grupo heterogéneo de tumores malignos com
o osteossarcoma. origem no tecido mesenquimatoso primitivo e
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 349

que correspondem a 7% de todos os tumores bem como a resposta à quimioterapia e altera-


em idade pediátrica. Alguns fatores genéticos ções genéticas encontradas  na lesão tumoral
e ambientais têm sido relacionados com estas (em relação com o sub-tipo histológico). Sendo
neoplasias, incluindo o síndrome de Li-Fraumeni, um dos tumores pediátricos onde é utilizada a
a neurofibromatose do tipo I, a polipose adeno- classificação TNM - Classification of Malignant
matosa familiar, doentes com retinoblastoma com Tumours – (T – tumor “size”, N – envolvimento
alteração da linha germinativa, a radioterapia e a nódulos linfáticos, M – metástases), é de referir
infeção pelo vírus de Epstein-Barr em doentes in- a importância da imagiologia no seu estudo. A
fetados com o vírus da imunodeficiência humana. terapêutica inclui quimioterapia e cirurgia, po-
Manifestam-se habitualmente por uma mas- dendo existir necessidade de radioterapia. É de
sa de tecidos moles, mais frequentemente locali- esperar uma taxa de cura em 70% dos doentes
zada ao tronco e extremidades, sendo os sintomas com formas localizadas.
relacionados com a invasão de estruturas vizinhas.
O rabdomiossarcoma  é responsável por 45.2.4.6 Tumores Germinativos -
aproximadamente 3,5% dos casos de cancro extracranianos
até aos 14 anos de idade e 2% dos casos nos Os tumores germinativos surgem a partir
adolescentes e adultos jovens. A incidência é de de células germinativas primordiais, que migram
4,5 casos por milhão de crianças e metade dos durante a embriogénese do saco vitelino atra-
casos é diagnosticada na primeira década de vida. vés do mesentério, com as gónadas. Os tumores
Classicamente existem dois grandes sub-tipos germinativos extracranianos podem ser dividi-
histológicos: o embrionário (que predomina) e é dos em gonadais e extra-gonadais. Estes últimos
mais frequente até aos quatro anos de idade, e localizam-se na linha média, maioritariamente
o alveolar. Os locais primitivos deste tumor são a nível sacrococcígeo, do mediastino e do re-
mais frequentemente a cabeça e pescoço, o trac- troperitoneu e podem  representar migrações
to genito-urinário e as extremidades. A clínica embrionárias aberrantes. Nas crianças, os locais
depende naturalmente da localização da lesão. mais frequentes são: o testículo (25%), o ovário
Como fatores predisponentes são referidos os (25%), o SNC (20%) e a região sacrococcígea
síndromes de Li-Fraumeni, Beckwith-Wiedemann (20%). Podem também surgir na região cervical,
e Noonan, a neurofibromatose do tipo I e ain- mediastino anterior, retroperitoneu e sistema
da anomalias congénitas envolvendo o sistema urogenital (10%).
genito-urinário e o SNC. O prognóstico da doença Classificam-se de acordo com o tipo his-
está relacionado com diversos fatores, forman- tológico, podendo haver mais de um tipo celu-
do diferentes grupos de risco, onde se incluem: lar presente no próprio tumor: teratomas ma-
a idade – melhor prognóstico entre um e nove duros, teratomas imaturos (que podem sofrer
anos, o local de origem, o diâmetro da massa, transformação maligna) e tumores malignos de
o estadio, a ressecabilidade, o sub-tipo histoló- células germinativas – germinomas (geralmente
gico - com melhor prognóstico no embrionário, não secretores) e não germinomas (secretores
350 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL

de alfafetoproteína – AFP, e/ou gonadotropina puberdade e são mais frequentemente teratomas


coriónica humana - beta-HCG), pondendo estes maduros benignos. Alguns síndromes genéticos
sub-dividir-se em: coriocarcinomas, tumores do estão também relacionados com estes tumores
saco vitelino e carcinomas embrionários. De acor- malignos das gónadas, dos quais se realça os
do com o sub-tipo histológico destes últimos, síndromes de Klinefelter, de Swyer e de Turner.
também a elevação dos marcadores é diferente: A clínica depende do local do tumor, chamando-se
a AFP é produzida essencialmente pelo tumor a atenção para o facto de os tumores sacrococcí-
do caso vitelino, e em menor quantidade pelo geos poderem ter como primeira manifestação a
carcinoma embrionário, enquanto a secreção de obstipação. A nível das gónadas surge com aumen-
beta-HCG está presente sobretudo nos coriocarci- to do volume testicular, frequentemente associado
nomas. São raros em crianças com idade inferior a dor ou como uma massa abdominal palpável no
a 15 anos, representando cerca de 3% dos can- sexo feminino, podendo no caso dos tumores do
cros nesta faixa etária. Na idade fetal e neonatal ovário levar à sua torção. A clínica dos tumores
correspondem sobretudo a teratomas maduros do mediastino está relacionada com a compressão
ou imaturos (0.9/100.000 no sexo feminino e 2.6 das estruturas vizinhas. A avaliação na suspeita de
/ 100.000 no sexo masculino), com localização um tumor germinativo inclui os doseamentos da
na linha média, sobretudo a nível sacrococcígeo. AFP e da beta-HCG que podem estar elevados nos
Chama-se a atenção para a necessidade de excisão tumores germinativos malignos logo no momento
completa pelo risco de malignização. Têm uma de diagnóstico, servindo também para avaliação do
alta taxa de  morbilidade causada por hidropsia seguimento da doença. A necessidade de biópsia
fetal e parto prematuro. Na criança mais jovem, cirúrgica impõe-se quando a suspeita é forte e não
a localização mais frequente dos tumores germi- há elevação de biomarcadores séricos.
nativos extracranianos e extragonadais continua A terapêutica inclui a cirurgia de resseção
a ser a sacrococcígea, embora possam ocorrer a nas formas localizadas e nos teratomas maduros;
nível do mediastino. Nesta idade os tumores do pode haver necessidade de quimioterapia e/ou
saco vitelino já são mais frequentes. radioterapia sobretudo nos tumores germinativos
Os tumores germinativos, com um segundo malignos. A sua sensibilidade à quimioterapia e/
pico de incidência na adolescência, são mais fre- ou radioterapia é, de forma geral, muito boa e
quentes entre os 15 e os 19 anos, representan- depende do sub-tipo histológico. O prognóstico
do aproximadamente 14% dos casos de cancro é, regra geral, muito bom exceto nas formas me-
neste grupo etário. Os tumores gonadais testi- tastáticas extra-gonadais ou gonadais em ado-
culares são habitualmente malignos e têm uma lescentes onde a sobrevida varia entre 40 a 70%.
distribuição bimodal, podem surgir na infância,
mas o segundo maior pico de incidência é na 45.2.4.7 Histiocitose
adolescência (pode haver uma associação entre de Células de Langerhans
estes tumores e a disgenesia testicular). Os tumo- A histiocitose de células de Langerhans
res ováricos surgem sobretudo após o início da (HCL) é uma doença de células dendríticas que
CAPÍTULO 45. DOENÇA ONCOLÓGICA 351

resulta da proliferação monoclonal de células de de pele em lactentes, podendo fazer parte de


HCL funcionalmente imaturas, juntamente com um envolvimento sistémico. Em doentes com me-
eosinófilos, macrófagos, linfócitos e células gi- nos de um ano, a forma exclusivamente cutânea
gantes, ocasionalmente multinucleadas. Apesar pode ser auto-limitada e de resolução espontânea
do nome há claras diferenças (morfológicas, fe- (doença de Pritzer-Hashimoto). De realçar que os
notípicas e de expressão génica) entre as células doentes necessitam de ser vigiados pelo risco de
de HCL e as células de Langerhans da epiderme. progressão para uma forma sistémica.
Embora se mantenha uma controvérsia sobre se De reter que, nas crianças mais velhas as
a proliferação de células de HCL resulta de uma manifestações cutâneas podem corresponder a
transformação maligna ou de um estímulo imu- uma erupção papular vermelha nas virilhas, ab-
nológico, o facto de se encontrar clonalidade e dómen, costas ou peito que se assemelha a uma
de existirem alterações genéticas recorrentes faz candidíase. A HCL pode envolver qualquer órgão o
com que neste momento seja considerada uma que faz com que possam existir múltiplas manifes-
neoplasia, correspondendo a cerca de 2% das tações iniciais, desde proptose (massas retro-orbi-
neoplasias em idade pediátrica. tárias), hipotiroidismo, colangite, hepatomegália,
Pode envolver um único órgão de forma uni esplenomegália, adenopatias, má absorção, ou
ou multifocal, ou múltiplos órgãos e ser dissemi- clínica que manifeste pancitopenias - nas formas
nada. Os locais mais frequentes de atingimento sistémicas com envolvimento medular. O atingi-
são o osso e a pele. O envolvimento ósseo mais mento pulmonar com formação de lesões quísticas
frequente é o de uma lesão lítica única na calote leva a que o pneumotórax possa ser a primeira
craniana, que pode ser assintomático ou dolo- manifestação. Um a 4% dos doentes desenvolve
roso e que habitualmente é rodeado por uma um síndrome neurodegenerativo crónico, que se
massa de tecidos moles manifestando-se como manifesta por disartria, ataxia, dismetrias, e por
uma tumefacção – neste caso pode ser tratado vezes alterações do comportamento.
exclusivamente com curetagem cirúrgica. É pos- O prognóstico é bom em doentes de bai-
sível o envolvimento de qualquer osso e são de xo risco (definido pelos locais de envolvimento),
realçar duas situações: quando há atingimento quase sem mortalidade, mas com necessidade de
dos ossos da face ou região craniana média existe quimioterapia quando há envolvimento de regiões
um risco aumentado de diabetes insípida (que é de risco ou multi-sistémico. A classificação de alto
irreversível), que pode ser a primeira manifestação risco relaciona-se com uma mortalidade de 35%.
da doença; e o atingimento vertebral que pode
resultar no colapso do corpo vertebral (vértebra 45.2.5 Considerações finais
plana), existindo o risco défices neurológicos
significativos. O envolvimento cutâneo pode Abordou-se a maioria das situações oncoló-
apresentar-se como uma dermatite seborreica gicas em idade pediátrica, dando relevo à clínica,
do couro cabeludo, como erupção cutânea gene- epidemiologia e noções básicas de prognóstico e
ralizada, que pode imitar muitas outras doenças tratamento. Não se descreveram os carcinomas,
352 MANUEL BRITO E ALEXANDRA PAUL

apesar de poderem estar presentes na adolescên- 45.3 FACTOS A RETER


cia, uma vez que a semiologia é sobreponível à
dos adultos. Realizar a palpação abdominal em todas
Salienta-se que a atividade em Oncologia as crianças em qualquer observação médica (de
Pediátrica para além de implicar o domínio do rotina ou de urgência).
conhecimento da forma de apresentação das Pesquisar o reflexo vermelho do olho em
diversas patologias e dos exames complementa- toda a consulta de rotina em idade pediátrica,
res indicados para o diagnóstico, tem de saber pelo menos até aos cinco anos.
lidar com emergências e com as complicações Não desvalorizar qualquer tumefação por
da terapêutica que podem envolver toxicidade existir história de trauma – faz parte da natureza
de qualquer órgão. Acarreta também a poste- de “ser criança” ter pequenos traumas.
rior vigilância da doença e das sequelas a longo Perceber que perante uma massa em qual-
prazo. É de esperar que o recente advento de quer localização há urgência no diagnóstico.
numerosos fármacos anti-neoplásicos para além Saber simplificar e otimizar a utilização dos
de possibilitar uma melhoria da sobrevida, permita exames complementares de diagnóstico na sus-
uma terapêutica cada vez mais personalizada, peita de doença oncológica.
com menos reações adversas.
A complexidade crescente dos estudos reali-
zados nas peças tumorais, não devem no entanto
fazer esquecer que para a suspeita de diagnós-
tico de doença neoplásica o essencial são os
fundamentos da medicina – a anamnese e o
exame físico.
Afiliação
de Autores
GUIOMAR OLIVEIRA JORGE SARAIVA

Professora associada com agregação da Faculdade de Professor Catedrático Convidado da Faculdade de


Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). Regente Medicina da Universidade de Coimbra desde 2008,
das Unidades curriculares obrigatórias de Pediatria I Diretor do Departamento Pediátrico desde 2010 e
e II e Diretora da Clínica Universitária de Pediatria Diretor do Serviço de Genética Médica do Centro
da FMUC. Hospitalar e Universitário de Coimbra desde 1999,
Licenciatura em medicina na FMUC em 1984, especia­ com licenciatura em Medicina pela Faculdade de
lista em pediatria desde 1992, atualmente Assistente Medicina da Universidade de Coimbra, 1985, 19 valo-
Hospitalar Graduada Sénior de Pediatria do Hospital res, Diploma in Clinical Genetics (1991, Universidade
Pediátrico do Centro Hospitalar e Universitário de de Londres, Reino Unido), Mestrado em Genética
Coimbra (HP - CHUC). Coordenadora da Unidade Médica (Universidade do Porto), doutoramento em
de Neurodesenvolvimento e autismo do Centro de Medicina (Genética) (1995, Faculdade de Medicina da
Desenvolvimento da Criança e do Centro de Investigação Universidade de Coimbra) e agregação em Medicina
e Formação Clínica do HP-CHUC. Presidente eleita (2002, Faculdade de Medicina da Universidade de
da Sociedade de Pediatria do Neurodesenvolvimento Coimbra).
da Sociedade Portuguesa de Pediatria (2008 a 2013; Especialista em Pediatria (1993) e Genética Médica (1993),
2017-2019), e é desde 2009 Coordenadora Regional consultor em Pediatria (1999) e Genética Médica (2006)
da Zona Centro da Direção do Colégio de Pediatria e Assistente Graduado Sénior desde 2009. Foi presidente
Médica da Ordem dos Médicos. da Sociedade Portuguesa de Genética Humana (1999 a
Publicou 3 capítulos de livros, mais de 100 artigos 2001), do Colégio de Genética Médica da Ordem dos
científicos, destes 60 indexados na Web of Knowledge Médicos (2009 a 2015) e da Comissão Nacional da Saúde
do Institute for Scientific Information (Web of Science) Materna da Criança e do Adolescente (2014 a 2016).
com mais de 2600 citações, com h-index-19. Publicou 1 livro, 9 capítulos de livro e mais de 100
artigos científicos dos quais 58 indexados na Web of
Knowledge do Institute for Scientific Information (Web
of Science) com mais de 1.000 citações.
Ana Brett Alexandra Paul
anacbrett@gmail.com alexandra.paul@chuc.min–saude.pt
Mestrado em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Infeciologia pediátrica Pediatra – Oncologia Pediátrica
Assistente Hospitalar de Pediatria. Assistente Hospitalar de Pediatria
Serviço de Urgência e Unidade de Infeciologia Serviço de Oncologia Pediátrica, Hospital Pediátrico
Pediátrica do Hospital Pediátrico – Centro – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente Convidada  de Pediatria da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra

Andrea Dias António Jorge Correia


sofia.andrea@gmail.com ajorgemc@sapo.pt
Mestrado em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Cuidados Intensivos Pediátricos Pediatra – Nefrologia Pediátrica
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar Graduado Sénior de Pediatria
Serviço de Cuidados Intensivos Pediátricos, Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico
Hospital Pediátrico – Centro Hospitalar – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
e Universitário de Coimbra Assistente Convidado de Pediatria da Faculdade de
Assistente Convidada  de Pediatria da Faculdade Medicina da Universidade de Coimbra (1984 – 1995)
de Medicina da Universidade de Coimbra

Alexandra Oliveira António Pires


alexandraoliveira@chuc.min–saude.pt pires1961@gmail.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Doutoramento em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra.
Pediatra – Neurodesenvolvimento Pediatra e Cardiologista Pediátrico
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar Graduado
Centro de Desenvolvimento da Criança, de Cardiologia Pediátrica
Hospital Pediátrico – Centro Hospitalar Serviço de Cardiologia Pediátrica Hospital Pediátrico
e Universitário de Coimbra – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente Convidada de Pediatria da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra
Cândida Cancelinha Clara Gomes
candidacancelinha@gmail.com clara.gomes@chuc.min–saude.pt
Mestrado em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Pediatria Geral Pediatra – Nefrologia Pediátrica
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Serviço de Pediatria Médica, Hospital Pediátrico Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente Convidada de Pediatria da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra

Carla Chaves Loureiro Conceição Robalo


carlachavesloureiro@gmail.com c.robalo@chuc.min–saude.pt
Mestrado em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Alergologia pediátrica Neurologista – Neuropediatria
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar Graduada de Neurologia
Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico Serviço do Centro de Desenvolvimento da
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra Criança do Hospital Pediátrico – Centro
Tutora do Estágio de Saúde Infantil do 6º ano do Hospitalar e Universitário de Coimbra
Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra.

Carla Pinto Cristina Alves


carla.regina.pinto@gmail.com cristina.alves@me.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Cuidados Intensivos Pediátricos Masters of Science, Universidade de Toronto
Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria Ortopedista  – Ortopedia Infantil 
Serviço de Cuidados Intensivos Pediátricos, Assistente Hospitalar de Ortopedia
Hospital Pediátrico – Centro Hospitalar Serviço de Ortopedia Pediátrica do
e Universitário de Coimbra Hospital Pediátrico – Centro Hospitalar
Assistente Convidado  de Pediatria da Faculdade e Universitário de Coimbra
de Medicina da Universidade de Coimbra
Cristina Pereira Gustavo Januário
cristina.d.pereira@gmail.com gjanuario@hotmail.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Neuropediatria Pediatra – Infeciologia Pediátrica
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar de Pediatria
Serviço do Centro de Desenvolvimento da Serviço de Urgência e Unidade de Infeciologia
Criança do Hospital Pediátrico – Centro Pediátrica do Hospital Pediátrico – Centro
Hospitalar e Universitário de Coimbra Hospitalar e Universitário de Coimbra 
Assistente Convidado de Pediatria da Faculdade Assistente Convidado de Pediatria da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra de Medicina da Universidade de Coimbra

Fernanda Rodrigues Isabel Gonçalves


rodriguesfmp@gmail.com isabelgoncalves@chuc.min–saude.pt
Doutoramento em Medicina Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Pediatra – Infeciologia Pediátrica Medicina da Universidade de Coimbra
Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria Pediatra – Hepatologia Pediátrica
Serviço de Urgência e Unidade de Infeciologia Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Pediátrica do Hospital Pediátrico – Centro Unidade de transplantação hepática pediátrica
Hospitalar e Universitário de Coimbra  e de adultos, Hospital Pediátrico – Centro
Professora Auxiliar Convidada da Faculdade Hospitalar e Universitário de Coimbra
de Medicina da Universidade de Coimbra

Guiomar Oliveira Jeni Canha


guiomar@chuc.min–saude.pt jenicanha@hotmail.com
Doutoramento e Agregação em Medicina, Faculdade Doutoramento em Medicina, Faculdade de
de Medicina da Universidade de Coimbra. Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Neurodesenvolvimento Assistente Hospitalar Graduada Sénior de Pediatria
Assistente Hospitalar Graduada Sénior de Pediatria. Pediatra
Serviço do Centro de Desenvolvimento Professora Associada de Pediatria da Faculdade
da Criança, Hospital Pediátrico – Centro de Medicina da Universidade de Coimbra
Hospitalar e Universitário de Coimbra.
Professora associada convidada com
agregação de Pediatria da Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
José António Pinheiro Jorge Saraiva
japinheiro@chuc.min–saude.pt j.saraiva@chuc.min–saude.pt
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Medicina Doutoramento e Agregação em Medicina, Faculdade
de Coimbra da Universidade de Coimbra de Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Alergologia pediátrica Pediatra e Geneticista Médico
Assistente Hospitalar Graduado de Pediatria Assistente Hospitalar Graduado Sénior de Pediatria
Serviço de Pediatria Ambulatória do Serviço de Genética Médica, Hospital Pediátrico
Hospital Pediátrico, Centro Hospitalar – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
e Universitário de Coimbra Professor Catedrático convidado de Pediatria da
Assistente Convidado de Pediatria da Faculdade Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra
de Medicina da Universidade de Coimbra

José Boavida Letícia Ribeiro


boavida@chuc.min–saude.pt e leticia.ribeiro@chuc.min–saude.pt
jeboavida@gmail.com Doutoramento em Medicina.
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Assistente Hospitalar Graduada
Medicina da Universidade de Coimbra Sénior de Hematologia.
Pediatra – Neurodesenvolvimento Serviço de Hematologia, Centro Hospitalar
Assistente Hospitalar Graduado de Pediatria e Universitário de Coimbra
Serviço do Centro de Desenvolvimento
da Criança, Hospital Pediátrico – Centro
Hospitalar e Universitário de Coimbra

Carlos Cabral Peixoto Lia Gata


jccpeixoto@gmail.com liagata3@gmail.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra.
Pediatra – Neonatologia e Cuidados Pediatra – Urgência Pediátrica
Intensivos Pediátricos Assistente Hospitalar de Pediatria
Assistente Hospitalar Graduado de Pediatria Serviço de Urgência, Hospital Pediátrico – Centro
Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico Hospitalar e Universitário de Coimbra.
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Luísa Diogo Mónica Oliva
diogo.luisa@gmail.com monicaolivamail@gmail.com
Doutoramento em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra. Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Doenças Hereditárias do Metabolismo Pediatra – Pediatria Geral
Assistente Hospitalar Graduada Sénior de Pediatria Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Serviço do Centro de Desenvolvimento Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico
da Criança, Hospital Pediátrico – Centro – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Hospitalar e Universitário de Coimbra Assistente Convidada de Pediatria da Faculdade de
Professora Auxiliar Convidada de Bioquímica da Medicina da Universidade de Coimbra (2006 – 2014)
Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra Tutora do Estágio de Saúde Infantil do 6º ano do
Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra

Maria Francelina Lopes Mónica Vasconcelos


mflopes@fmed.uc.pt mvasconcellos@netcabo.pt
Doutoramento em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra. Medicina da Universidade de Coimbra
Assistente Hospitalar Graduada Mestre em Medicina do Sono: Fisiologia e Medicina.
de Cirurgia Pediátrica Pediatra – Neuropediatria
Serviço Cirurgia Pediátrica, Hospital Pediátrico – Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra Serviço de Centro de Desenvolvimento
Professora Auxiliar Convidada de Cirurgia da Criança, Hospital Pediátrico – Centro
Experimental da Faculdade de Medicina Hospitalar e Universitário de Coimbra
da Universidade de Coimbra Tutora do Estágio de Saúde Infantil do 6º ano do
Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra

Manuel João Brito Núria Madureira


mjbrito@chuc.min–saude.pt nuriamadureira@gmail.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatria – Oncologia Pediátrica Pediatra – Competência em Medicina do Sono
Assistente Hospitalar Graduado de Pediatria Assistente Hospitalar de Pediatria
Serviço de Oncologia Pediátrica, Hospital pediátrico Serviço de  Pediatria Médica do Hospital Pediátrico
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Patrícia Mação Raquel Soares
patriciamacao@gmail.com araquelcs@yahoo.com
Mestrado em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Urgência pediátrica Pediatra – Pediatria Geral
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar de Pediatria
Serviço de Urgência, Hospital Pediátrico – Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente Convidado de Pediatria da Faculdade Assistente Convidada de Pediatria da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra de Medicina da Universidade de Coimbra

Paula Estanqueiro Ricardo Ferreira


paulae@chuc.min–saude.pt ricardo.ferreira@chuc.min–saude.pt
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Reumatologia Pediátrica Pediatra – Gastroenterologia e Nutrição Pediátrica
Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria Assistente Hospitalar Graduado de Pediatria
Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Serviço de Pediatria Médica do Hospital Pediátrico
Pediátrico – Centro Hospitalar e – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Universitário de Coimbra.
Tutor do Estágio de Saúde Infantil do 6º ano do
Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra

Paulo Fonseca Rita Cardoso


pediatrapaulofonseca@gmail.com rita.cardoso@chuc.min–saude.pt
Licenciatura em Medicina, Faculdade de Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Medicina do Adolescente Pediatra – Endocrinologia Pediátrica
Assistente Hospitalar de Pediatria Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente convidado de Pediatria da Faculdade de Assistente convidada de Pediatria da Faculdade
Medicina da Universidade de Coimbra (2009–2014) de Medicina da Universidade de Coimbra
Sónia Lemos
Sonia.lemos@chuc.min–saude.pt
Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Alergologia pediátrica
Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Serviço de Pediatria Ambulatória, Hospital Pediátrico
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Tutora do Estágio de Saúde Infantil do 6º ano do
Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra.

Susana Almeida
susana.almeida.coimbra@gmail.com
Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
Pediatra – Gastroenterologia e Nutrição Pediátrica
Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria
Serviço de  Pediatria Médica do Hospital Pediátrico
– Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

Tabita Maia
Tabita.Maia@chuc.min–saude.pt
Licenciatura em Medicina, Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
Assistente Hospitalar de Hematologia Clínica
Unidade de Eritropatologia e Distúrbios do Ferro
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Assistente Convidada da Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
CIÊNCIAS
DA SAÚDE

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