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— THEOLOGICA UNIVERSIDADE CATOLICA PORTUGUESA, FACULDADE DE TEOLOGIA - BRAGA Tépicos de Doutrina Social da Igreja para os dias de hoje Il SERIE VOL. L FASC.1 2015 BRAGA Joko Manuet Duaue* ‘A dimensio politica 6, em divida, uma impostante dimensao antropul6yi- ca Aantropologia, por seu turno, a base epistemolégica de qualquer teologia.E certo que, rigorosamente, a teologia é discuzso sobre Deus ~ endo propriamente sobre o ser humano. Mas nfo terthamos ilusées, O discurso (humana) sobre Deus 36 é possivel, na media em que é um discurso sobre o mundo e sobre 0s umanos, na perspetiva da sua relaco com Deus, Porque s0 indiretamente (ou sein, por mediagao) é que é possfvel experiéncia de Deus e, por conseguinte, qualquer diccurso tooldgien a partir dessa experiéncia. Partindo destes pressupostos, € compreensivel que seja no <6 possivel, pertinenie, mas também necessdrio um discurso teoldgico sobre = dimensdo piifea do humeno. £iss0 que pretend elabores aqui, de forma sintica, Tispirando-me diretamenteno texto da Gauium et Spes. Aomesmo tempo, esse diseurso teolégico poder evocar, por umn lado, uma relacéo entre a acio politica fea questio ética (quanto @ nogio de responsabilidade) e, por outro ledo, um Gesafio para aacio politica concreta, segunilo a modalidade da responsabilidade pelos outros, Quer um quer uulio destes t6picos om zealidade, muito ligados entre si ~ sio especialmente pertinentes num momento em que 0 contexto da ‘edo politica, obretudo na Buropa, atravessa uma forte crise. Esobreesse pano de fundo que avango aqui algumas ideias para ura Teologia Politica situada, + Faculdade de Telogia - Universidade Catdica Portuguesa, ‘THEOLOGICA, 2” Série, 50,1 (2015) aust rs Jobo Manuel Dugue 1. Teologia Politica Oconceito de Teologia Politica presta-se, inevitavelmente, a mal-entendi- dos. No sentido de os minimizar, proponho algumas clarificag6es conceptuais, no exaustivas nem desenvolvidas, mas que permitirgo uma orientacio minima ara o que se segue. Antes de tudo, é importante clarificar 0 que aqui se entende por politica. Re- firo-me, ante de mate e de modo mais genérico, A dimensio pablica (ea-publica) da pessoa humana e ao modo da sua organizacio. Todo o ser humano é politico por natureza, podendo dar corpo concreto a essa sua dimensao de formas mais ‘ou menos claras, Na realizagio concreta dessa dimensio, surgem sempre modos diversos de a organtzar, a que genericamente chamamos sistemas politicos. De um modo ou de outro ~ mesmo no pretenso alheamento — 0 ser humano esta sempre inserido em formas concretas de organizacéo da dimensio piiblica da sua existéncia, vivendo portanto sempre num espaco politico determinado. ‘Se estreitarmos um pouco esta definicéo genérica, poderemos identificar ‘a dimensio politica apenas como 0 exercicio do poder (ou da governacéo) em determinada forma de organizacio do politico. Ora, esta dimensio mais espe- fica da politica realiza-se, nas sociedades modernas, através do estado. Este é, segundo Ricoeur (partindo de Eric Weil), a «organizacio de uma comunidade hist6rican’. Porum lado, a questo do sentido da ago e das decisoes enratza-se no mundo simbélico de uma comunidade social conczeta (com as suas tradi- shes, os seus costumes, os seus valores, as suas convicedes); por outro lado, esse mundo torna-se um mundo organizado, correspondendo suficientemente as exigéncias humanas de racionalizacao. Entao, o estado serd uma espécie de «sintese do racional e do histérico, da eficdcia e do justov?, seguindo a regra da ‘mais justa aplicabilidade de uma e outra fontes, tendo em conta as circunstancias pragmiticas e histéricas e, ao mesmo tempo, a salvaguarda da igualdade de todos perante a lei, E nessa aplicagio pragmética, segundoa virtude da prudén- cia (da phronésis grega), que o estado é a realizacio do especificamente politico. A renlizacin posstvel cla justica e da liberdads, no eruzamento permanente de ‘uma comunidade histérica concreta com a racionalidade abstracts, constitui portanto 0 especifico da aco politica Pressuposta esta dupla nocao de politica ~ num sentido mais vasto e num sentido mais estrito - convém tocar no conceito ainda mais ambiguo de Teologia Politica. De um modo genérico, poderfamos defini-la como reflexso (teal6gica) sobre a relagio entrea féctsta (incluindo a comunidade ecesial, nomeadantente { ERicooun «Bthique et Poltique» in ld, Du text ction, Paris: Sell, 1986, 393-406, 02 * idem, 400, Para uma pltce da raponsabildade “a ioe sess SESE ce ee a sua dimensao institcional) e a dimensio politica do humano (inciuindo as instituigdes da sua organizacio, nomeadamente 0 estado, pelo menosno contexto marcado pela modernidade ocidental). Mas a Teologia Politica pode realizar-se, fem concréto, de muitos modos. Por sso, & clarificacso conceptual fundamental ha (que acrescentar uma dlarificagio sobre alguns modos tipicos da sua concretizacio. ‘Assim, podemos falar, antes de tudo, de uma Teologia Politica da identijica- ao com determinados modelos de organizagio da dimenséo poltica do humano. Nesee caso, as concretas realtzaybes [ris icas do politico seriar concideradas completa realizacio do teol6gico, como uma espécie de incarnagao plena do Rei- nno de Dens em reinos humanos. Isso acontece quando certos sistemas politicos ‘ou regimes sio considerados teologicamente os (tnicos) adequados (como @ monarquia, ou a democracia, por exemplo), ou ento quando se instaura uma promiscuidade no exercicio do poder, em que o denominaco poder temporal fe identifica com o poder espiritual, ou seja, quando a legitimagao do exercicio do poder ~ ea dos seus executores—se torna exclusiva e dizetamente teolégica. ‘A denominada teocracia seria o sistema politico que methor incarmaria este modelo, que tornaria toda a teologia politica e toda a politica teolégica. Penso nao ser necessério referir exemplos concretos deste modelo de identificagio ene 0 teol6gico ¢ o politico, pois so sobejamente conhecidos na histsri. O aque talvez nao faca parte da consciéncia comum € que certas aplicagses desse nodelo continuam vivas. Eno me zefiro aestaclos teocréticos ainda existentes, mas a certos modos subtis da refecida promiscuidade. Emesmo aqui nao estou ft pensar tanto nos casos mais eventos em que essa promiscuidade possa acon- tecer —sobretudo a nivel local, no exercicio de poder em pequena escala - mas simma dimens2o «teoldgico-religiosa» que adquirem certos modos de exercicio do poder politico, mesmo na aparéncia de laicidade. A absolutizacio do podes, pelo recurso a fundamentagSes (explictas ou nd) de teor praticamente «teo~ Iogico» (precisamente por se tratar de uma pretensdo absoluta), constituer @ ‘mais habitual e permanente identificasio entre 0 teoldgico eo politica, queem Geterminadas fases da histéria conheceu configuracbes explicitas mais visiveis fous yue permanece como possibilidade constante nas organizagées politicas e religiosas. ‘Um outro modelo, praticamente oposto a este, passa precisamente pela negagto da propria relagdo entre o teoldgico ¢ o politico, o que nos conduz a tuna espécie Teologia apolitica que defende o completo no envolvimento com ‘a dimensao politica do humano, por reftigio em certa compreensdo da transcen- déncia ona ambito restrito clo indivriduo isolado. Essa posicéo mazcou grupos organizagées religiosas a0 longo de toda ahistéria. A afirmacio extrema de uma suptura total entte a cidade celeste a cidade terrena levou muitas vezas & com preensio da dimensio teolégica como algo completamente exterior dimensio politica das organizagdes humanas. Mesmo quando esse posicdo pretendeu ter Tealizagao terrena ~ como no caso da vida conventual ~a propria organizagio ia Jobe Manuel Dugue terrena pretendia dar corpo A ruptura invocada, estabelecendo uma ordem politica paralela, que em realidade ndo se pretendia politica em sentido estrito. A identificagao do teolégico estritamente com essa dimensao transcendente em. relagdo a qualquer estrutura humana originou mundos separados, em que um deles, em realidade, era a expresso da superagio—e as vezes contradigio—do proprio mundo. Nas suas versées mais modernas e pés-modernas, esla «apo- Iiticidaden do teolégico conheceu sobretudo um desenvolvimento subjetivo. O teoligico passou a ser ideutificaly con unis diwensau apenas pertinente no ambito da decisio privada de cada individuo e do seu destino eterno. Do ponto de vista social, isso implicou a relegacio do «religioso» para o Ambito do privado; do ponto de vista teolégico, isso significow a identificagio da vida defé com a histézia pessoal de cada individuo, alheada das relacOes s6cio-politicas e dos respetivos modes da sua organizacao, nomeadamente quanto ao exercicio do poder. Mas aquilo que parecia possibilitar uma canvivéncia pacifica entre o teol6gico eo poliico por alheamento miituo —ndo se evelou tao pacifico assim, sobrettido parque ndo correspondia A verdade e 3 realidade das coisas, que no podem separar-se tdo artficialmente, sem graves danas para ambos 0s lads. Frente ao es aos extremos da identificagio e da negacio, uma outra mo- dalidade énos fornecida por uma Teologia Politica do compromissa, embora sob permanente reserva eecatologican, o que impede a identificacéo completa ‘com regimes politicos determinados. Mas essa reserva, em vez de significar atheamento do politico, ¢ precisamente o funciamento do compromisso pol tico, determinado em grande parte pela critica profiética de rertas realizagtos ‘concretas, Antes de tudo, prevalece a responsabilidade sécio-politica do cristio, ‘como prinefpio claramente assumido pela Gaudium ef Spes: «Todos os cristios tenham consciéncia da sua vocagao especial e propria na ‘comunidade politica; por ela séo obrigados a dar exemplo de sentida respon- sabilidade e dedicasio pelo bem comum, de maneira a mostrarem também. com factos como se harmonizam a autoridade e a liberdade, a iniciativa pessoal ee soliciariedade do inteivo cou sucial,« upurtuna unttade com a roveitosa diversidade» (GS 75). Nao 6 possivel, pois, 0 alheamento politico, como se a fé fosse comple- tamente transcendente as estrturas do mundo, ou come se apenas se con nasse a um exercicio subjetivo e individual, Esta «sublimidade» do teolégico, na pretensa defesa de um ambito religioso especifico e reservado, acaba por eliminar a prépria pertinéncia desse teolégico, aniquilando-o em si mesmo. E apenas com 0 principio do incontornével campromisso politica como pano de fundo que é possivel—e necessario ~salvaguardar a diferena entre o teolégico ‘edeterminadas estruturas politicas concretas, como fica bem claro no mesmo texto conciliar: «A Tgreja que, em razao da sua missdo e competéncia, de modo era una police de rapemabiidade ss slgum se confunde coma cociedadennem estéligada a qualquer sistema politico determinado, é 20 mesmo tempo o sinal e salvaguarda da transcendéncia da pessoa humana» (GS 76). ‘a partic deste princfpio de uma Teologia Politica do compromisso sob re- serva que poderemos analisar~e avaliar — 05 diversos modelos de legitimagao do poder politico e das oxganizagio em que se insere. Estes foram e 840 muito iversificados. A transformagio tarda da modernidade tornou mais evidentes certos enredos da teotia eda prética politicas, que nos permitem alyuriialucidez na avaliagao. 2. Modernidade e poder f impossivel pensar a relaco entre f& crista e politica, assim como 0 préprio conceito de Teologia Politica, sem os articular com os diversos pera~ Gigmas de compreenséo da dimensto politica, que se manifestam sobretudo nas modalidades de legitimacao do poder. De facto, inerente a cada um desses paradigmas esté a questo da stra fundamentagao, o que acaba por colocer 0 problema teoldgico, ou seja, acaba pornos conduzir ao nivel da fundamentagio primeira e tiltima da prépria dimensdo polfica e do seu modo de organizacao. ‘Admitindo tratar-se de uma leitura demasiado simplista e esquematica, proponho de seguida wm breve percurso pela histdrie de alguns paradigmas He fandamentagio do politico, ou seja de Ingitimagio ultima da organizacio politica e do correspondente exercicio do poder. ‘Um primeiro paradigma, muito expandido no mundo antigo, pode ser denominado tribal. E nesse paradigms que surge a propria nogio de politica e a elaboracao do conceito. No contexto grego, o horizonte da politica era preci- samente 2 polis. A comunidade-eslado, no interior da qual vivia uma grande vvariedade de pessoas, constitufa o horizonte maximo de construcio do sentido. Essa dimensio fundamental era representada em divindades determinadas ~ no mundo romano incarttadas sas divindades da civitas ¢, em horizonte mais vasio, do mperiunn (como chegou a ser 0 caso clo proprio imperador). O bem (ou mesmo a sobrevivéncia) da polis, da cvitas ou do imperium determinava a justificacio da organizacio politica. Embora mantendo certa funcamentagéo naturalista através da pertenca genética. linhagens de sangue—a organizagio politica greco-romana no justificava a posieao ne interior da organizagao apenas ‘a partir da pertenga genética, mas na relacZo ao bem da prépria comunidade, fertondida esta como bem supremo, a0 servigo do qual estavam os sujeitos, podendo até ser a cle sacrficados. ‘Coma derrocada do império romano, assiste-se auuma espécie de eretroces- so» da polis para a natureza, retomando-se a fundamentagéo do poder na inha~ gem, de sangue, como se determinacos humanos nascessem pré-determinados } ‘ 6 Joie Manuel Duque ou destinados ao exercicio do poder. Em muitos caso, chegou a identificar-se © fundamento teolégico do politico com este fundamento nalural, atribuindo a fundamentagio do exercicio do poder por natureza ou heranga a0 préprio Deus, que agiria através da natureza que ele mesmo governava. ‘Masa referencia a Deus—no sentido do conceito biblico—como fundamento da politica e especificamente do exercicio do poder nao se identifica com este paradigma naturaliste. Porque a natureza é ambiguae a sua manutencio como referéncia origindria serve para tudo, nomeadamente para a contradigio da propria referdncia a Deus. De facto, a concepsio biblica de Deus néo permite a sua identificago com a natureza, ou com um fundo origindtio indeterminado, anterior & propria distingdo ética entre bem ¢ mal. O monotelsmo bfblico, pelo contrétio, € determinado, constituindo fundamento da prépria diferenca entre bem e mal. Nesse sentido, a referéncia a Deus, como fundamento do politico, significa, no modelo inspirado pelo conceito biblico de Deus, a referencia & Aistingio ética entre bem o mal, com a sua aplicagZo conereta. & nessa dimen so que a legitimagio do exercicio do poder coincide com a sua adequacio 20 principio ético inerente a referéncia a Deus. O principe — o governante ~ seré legitimamente aquele que melhor servir esse prinefpio e que mais cficaz for na sua aplicagio®. A polis, em si mesma, deixa de ser a justificacio primeira e ‘iltima. Também nio o é qualquer predeterminagio natural, genética ou nao. Oem, como manifestacio da vontade do Criaclor e enquanto principio orien- tador de toda a atuagéo humana, passa a ser o critério de justificagdo. E esse bem @ anterior, independente e superior a qualquer comunidacie ou heranga hhumanas. Nease sentido, em ditima instancia, qualquer wm pode exercer 0 poder em qualquer comunidade, desde que se verifique ser aquele (ou aquela, pois a diferenca natural, em realidade, no pré-determina) que melhor possa dar corpo ao bem, na comunidade, para cada sujeito. E dlaro que esta fundamentacdo, assim entendida em «estado puro», raramente teve aplicacao teal completa, nem no regime da denominada «cris- tandadeo, nem nos experimentos particulares das comunidades religiosas (n0- meadamente nas conventuais). Mas, como paradigma de uma fundamentacio teolégica do politico, mantém a sua importancia de referéncia, Foi precisamente na sequéncia deste paracigma que a modernidade desenvolveu o seu. Mas desenvolveu-o, em rigor, em dois sentidos: ou no sentido transcendental, configurando o teol6gico de outzo modo, mas com a mesma fungio e mantendo-o no mesmo paradigma; ou no sentido de critica a0 teolégico-transcendental, por recuperagio do teolégico pagto antigo - * Comaexemplodest fundamentago, pode ere com provete: Frei Amador Ants, Didoges, Porto: Lelio Irmo, 1974 (1*E. 166) , ara uma politica da raponsbildade i desta vez, nio por referéncia & polis, mas ao sujeito, que na modernidade tinha assumido primazia. ‘Nasta dimensio transcendental -ndo necessariamente transcendente~a principal fandamentacio do politico passa a sera razao humana universal (lu- rminada). Ela é0 lugar da revelagdo do prinefpio do bem eda verdadeee, por isso, principe serd o que revelar melhor uso dessa razao. Inicialmente, nao existe contradic entre esta fundamentagio e a fundamentagio teoldgica - embora esta seja interpretada, agora, de modo estritamente racional-transcendental, ¢ no tanto com apoio na revelacgo biblica e no seu conteddo. Mas, progressiva~ ‘mente a transcendentalidade da razo (auténama eimanente) vai substituindoa transcendentalidade de Deus, pelo menos segundo orespetivo conceito biblico. O principio universal da fundamentacao politica passa a ser a propria univer- salidade da raz. 56 que, na afirmasio forte dessa universalidade, pela sua transcendentalizagio formal, 0 principio da razlo transforma-se em principio ‘meramente formal, perdendo qualquer referéncia a um conteiido concreto. A fundamentagéo racional do politico passa a ser, até certo ponto, uma funda- rmentagio indeterminada, Frente a essa indeterminacio do contetido, o principe iluminado depressa passa a ser considerada iluminado por ser principe, e no principe por ser iluminado. sobre este pano de funcio—em certo sentido nominalista ou nihilista—que se procura um recurso material para a fundamentagio do exercicio do poder. 86 que, como no existe possibilidade de recurso a um conteddo transcenden- {al ou mesmo tranccandante ~ @ contetico passa 2 ser prncuirac na priprin aco do sujeito. O principe legitimo é aquele que, formalmente, consegue se-lo; ce consegue-o porque, materialmente, tem capacidade para isso", Assim, exerce legitimamente poder quem tiver poder para oexercer, Retoma-se, pois, a figura do herdi antigo, s6 que agora concentrado na sua pura capacidade formal. A fundamentacio tiltima do poder politico passa a ser o préprio poder subjetivo. Sem referéncia objetiva de contetido, o proprio exercicio do poder transforma-se em jogo nominalista de puro poder. A par da justficagao do exercicio do poder no proprio poder, essa justficacao passa também a determinar a sua causa final, ‘ow 0 seu objetivo: exerce-se o poder pelo poder, apenas para o exercer, e no com vista a uma finalidade determinada por um contetido que Ihe é exterior, poder estd ao «servigo» do préprio poder, e ndo ao servico de algo diferente de si mesmo. Embora os sistemas democraticos modernos pretendam erigir 0 povo como fundamento ¢ 0 seu bem como objetivo do exercicio do poder — embora ‘Compares est perepetiva, exemplarmente formuladn por Maquiovel, com e referida acim, pela pona de Fel Amador Arras, a Joo Manuel Dague © conceito de povo seja, também aqui, demasiado formal e abstracto ~ em realidade eles continuam fortemente determinados pelo jogo do poder, que assenta fortemente no conceito de puro poder. Quem wvencen as eleigoes - 0 cherdiv capaz, com poder para isso — tem legitimidade para exercer o poder, alé ser substitufdo por outro vencedor e, por isso, desrotado no seu poder de chegar ao poder. Isso conduz, inevitavelmente, a certo nihilismo politico, pois do sio valores independentes do exercicio do poder a justifica-io, mas o seu rOprio jogo interno. Esta virtualidade ~ ou absoluta auto referéncia do jogo politico (que podemos interpretar como revelagdo pés-moderna de um problema jéinerente ' fundamentacéo moderna do politico) ndo passard da aplicagao politica da denominacia economia financeira, assente ela também na virtualidade do jogo financeiro, sem referéncia externa de valor, seja ele qual for (nem a tradicional referéncia ao ouro sobrevive). Mas, 20 mesmo tempo que essa modalidade da economia determinow a crise econémica contempornea — com a instalagio de uma desconfianga fundamental acentuada - também a correspondente moda lidade politica teve como desfecho a generalizada descongianga em relago a0 exercicio do poder. A cormupgtio dos politicos seré apenas um epifenémeno de algo mais profundo, que afeta a prépria fundamentacio do politico, nas socie- dades da modemidade tardia. E neste contexto que se exige tina refundagio do politico. 3. Responsabilidade como (re)fundamento Apés este desenvolvimento histéricoe perante um desfecho de certo modo nihilista do exercicio politico ~ que se revela no apenas no desgaste teGrico da legitimacéo do poder, 0 qual parece desembocar na auto referéncia do poder absoluto, mas também na pragmética do seu exercicio como puro jogo ot puro conflito~ a proposta tecl6gico-politica do cristianismo, tal como apresentada na Gaudin et Spes, deseslia-se como tmpulso para uma politica da responsabili- dade, expressa no valor do bem comum, sempre articulaco no valor inviolavel Ge cada pessoa humana: A comunidade politica existe, portanto, em vista de bem comum; nele enconta a sua completa justificagao e significado e dele deriva o seu diselto natural e préprio. Quanto ao bem comum, ele compreende 0 conjunto das ‘condig6es de vida social que permitem aos individuos, familias eassociacdes aleangar mais plena e facilmente a prdpria perfeigaan (GS 74) A responsabilidade, como alma da politica, pode ser simplesmente aquela ‘que se revela na capacidade~ edever —de responder pelos préprios atos, perante ' ‘Pons uma politica da reponsabildade A ritérios étcos fundamentais. A esse nivel, podemos considerar que uma politica da responsabilidade corresponde ao modo mais humanizadoe humanizador da fandamentacio natural da politica numa ética universalizavel, tal como pretendew «ceria fundamentagdo transcendental no infcio da modernidade. Mas anogio responsabilidade vai além dessa dimensifo, ransformando-se em responsabilidade pelos outros, a qual assenta inevitavelmente na nogio de Iraternidade universal, que nos tora a todos responsdveis por todos. A esse nivel ~ que pode ir ate a dadiva da vida pelos outros ~ é onde podemos vis- lumbvar maior proximidade entre o leoldgico (bfblico-cristfo) ¢ 0 politico. Ser :esponsavel pelo outro humano concreto ~ sobretudo pelo outro vulneravel - seria assim a manifestagdo maxima da legitimagao do poder politico, aplicével a todo o sujeito da acto politica, em sociedade, e aplicével de moclo especial 2s, liderangas da organizacio social, que nela exercem 0 poder. Comecemos por ana recolha do parecer da Gaudin et Spes a esse propésito. Limitar-nos-emos a.uma breve passagem por textos significatives, sem maior desenvolvimento. Em primeito lugar, porque sao suficientemente significatives, sendo jé impor- tante apenas recorda los; em segundo lugar, porque nao é aqui o lugar para um aprofundamento dos seus posstveis sentidos e aplicagdes. Antes de tudo, insiste-se na refundagio ética do politico, mesmosem wma referéncia teoldica explicita: «Segue-se também que o exercicio da autoridacke politica, soja na comunidade como tal, ceja noc organicmas representatives, ae deve sempse desenvul- ver ¢ atuar dentro dos limites da ordem moral, em vista do bem comum, inamicamente concebido, de acordo com a ordem juridica legitimamente estabelecida ou a estabelecer. Nestas condicdes, os cidadéas tem obrigacio ‘moral de obedecer. Daqui a responsabilidad, dignidade e importancia dos ‘que governam» (GS 74). combbase nesta fundamentagio que oexercicio do poder éreinterprotado como sevviu, eu peter gar a0 bef comm. Map ence servi gaa cone tomnos muito préprios, que o eneaminham para osecvigo conereto das pessoas «Os que sfo ou poclem tomnar-se aptos para exercer a dificil e muito nobre arte da politica, preparem-se para ela; e procurem exercé-la sem pensar no interesse proprio ou em vantagens materiais. Procedam com inteireza © prudéncia contra a injustiga e a opressio, contra o azbitrétio dominio de uma pessoa ou de um partido, e contra a intolerancia, E dediquem-se com sinceridade e equidace, mais ainda, com caridade e fortaleza politica, 0 bem de todos... Os partidos politicos devem promover o que julgam ser exigido pelo bem comum, sem que jamais sejalicito antepor o préprio interesse a0 bbem comum (GS 75). 7 Joo Manuel Dugue Seo principio éticoe teoldgico de referéncia da dimensio politica € 0 p: cipio da responsabilidade pelos outros—até & didiva da prépria vida - entioa articulagao dessa dimensio politica nao se refere apenas ao exercicio do poder, por parte das liderancas polticas, partidarias ou néo. Essa articulaglo toca a todos os sujeitos consiituintes ce uma sociedade inevitavelmente organizada politicamente. Nisso, 0 texto conciliar 6 clar‘ssimo: «Os governantes tenham o cuidado de nlo impedir as associag6es familiares, sociais ou culturaise os corpas ou orgarismos interméctias, nom os privem da sua atividade legttima e eficaz; pelo contrétio, procurem de bom grado promové-la ordenadamente. Evitem, por isso, os cidados quer individual ‘quer associativamente, concedler 8 autoridade um poder excessivo, nem The ecam, de modo inoportuno, demasiadas vantagens e facilidades, de modo a que se diminua a responsabilidade das pessoas, famnlia e grupos sociais... ‘Todos os cristdos tenham consciéneia da ia uneagin especial © propria na comunidade politica; por ela sao obrigados a dar exemplo de sentida respon- sabilidade e dedicagio pelo bem comum, de maneira a mostrarem também com factos como se harmonizam a autoridade e a liberdade, a iniciativa pessoal ea solidariedade do inteiro corpo social, @ oportuna unidade com a proveitosa diversidade, Reconhecam as legitimas opinides, divergentes entre si, acerca da organizagio da ordem temporal, e respeitem os cidadios e grupos que as defenciem honestamente» (GS 75) Eeevidente que esta nogéo de responsabilidade de todos por todos no € algo simplesmente natural, como um dado garantido na convivencia inter- ~humana. Hi consciéncia de que se trata de um programa explicitamente per- seguido, com necessdrio empenhamento e trabalho humanos, para que vé ganhando corpo nas sociedades realmente constituintes da nossa histéria. Por isso, ¢ inevitavelmente contetido de um programa de educacio para a politica da responsabilidade: «Deve atender-se cuidadosamente A educagio cfvica e ppolitica, hoje tio necessérie A populagio e sobretudo aes jovens, para que todos ‘0s eldaciios possam participar na vida da comunidade politica (GS 75). Assente neste contedido e nesta fundamentacéo, podemes pois falar, a titulo de conctuséo, de uma Teologia Politica para o nosso tempo ~ assente no prinefpio da responsabilidade pelo outroe, ao mesmo tempo, na reserva escato- logica que impede falsas identificades ~ como contributo do cristianismo para a humanizagao das estruturas sociais em que vivemos: «No dominio préprio de cada uma, comunidade politica e Igreja sao inde- pendentes e auténomas, Mas, embora por titulos diversos, ambas servem a vocagio pessoal e social dos mesmos homens. E tanto mais eficazmente exercitardo este servico para bem de todos, quanto melhor cultivarem entre 51 siuma.si cooperagdo, tendo igualmente/em conta as circunstancias de lugar ‘tempo. Porque o homem nao se limita ordem temporal mente; vivendo za histeria humana, fundada sobre o amor do Redentor, ela contribu para que se difundam mais amplamente, nas nagBes e entre as nagbes, a justign a caridade, Pregando a verdade evangélicae luminando com a sua dou- trina e 0 testemunho das cristdos todos os campos da atividade humana, cla respeita e promove também a lberdade e responsabilidade politica dos cidadios» (C576).

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