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MARSHALL SAHLINS
CULTURA NA PRÁTICA
Tradução
Vera Ribeiro
2ª edição
EDITORA UFRJ
2007
Copyright © 2000 by Marshall Sahlins
672 p.; 16 X 23 cm
ISBN 978-85-7108-276-2
Apoio
16
A TRISTEZA DA DOÇURA, OU
A ANTROPOLOGIA NATIVA DA
COSMOLOGIA OCIDENTAL*
1
', Sweetness and Power, o livro de Sidney Mintz (1985), foi para mim
um marco, porque ousou enfrentar o capitalismo como economia culrural.
De um duplo modo, ele pôs a antropologia no centro da história - não só
como disciplina, a antropologia acadêmica que conhecemos e amamos, mas
também sob a forma do que se pode considerar como a antropologia nativa
da sociedade ocidental, as concepções indígenas da existência humana que,
numa determinada conjuntura histórica, conferiram à doçura sua funcio
nalidade econômica. t. dessa antropologia ocidental nativa que quero falar
aqui, tanto em relação ao livro clássico de Mintz quanto em relação à antro
pologia como disciplina. Por um lado, meu objetivo será complementar as
teses de Sweetne
ss and Power, discorrendo mais longamente sobre certos
�pectos da antropologia indígena. Veremos que é preciso ter algumas idéias
s1ngu1ares s ·
obre a humanidade, a sociedade e a natureza para produzir · O triste
nos
tropo de que a vida se resume à busca da satisfação, ou seja, do alívio de
sos sofrimentos. P
� or outro lado, tentarei mostrar que essas 1·dé'ias eósmicas
nao corneçaram
nem terminaram com o Iluminismo. São estruturas culturais
Original
rnent 37, 3 June 1996.
e publ"1cado em Cun-ent Anthropology, v. n. '
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A antropologia da necessidade
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- O CULTURA NA PRATICA
Fomos expulsos do Paraíso. Não temos a vida ecerna nem meios ilimitados de
gratificação, Para onde quer que nos voltemos, ao escolher uma coisa, cemos de
abrir mão de outras, às quais, cm circunstâncias diferentes, não desejaríamos
renunciar. A escassez de mdos para satisfazer fins de importância variável é uma
condição quase ubíqua do comportamento humano. É essa, portanto, a unidade
do objeto da Ciência &onômica: as formas assumidas pelo comportamento
humano ao dispor de recursos escassos. (1952, p. 15)
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A. TRISTEZA DA DOÇ U RA. ô
perseguir uma coisa após outra. (...) (S)uas necessidades multiplicam-se a tal
panto que ele não consegue encontrar a única coisa necessária, uma natureza
única. e iamutável" (citado em Deane, 1963, p. 45). 9 Ao se transformar numa
antropologia científica, entretanto, essa autofilia trocou seu sinal moral
(Dumont, 1977; Hirschman, 1977). De mal original e fonte de uma vasta
tristeza em santo Agostinho, as necessidades do corpo passaram a ser sim-
plesmente ~naturais" em Hobbes, ou, pelo menos, um "mal necessário", para
O barão de Holbach, até acabarem, em Adam Smith ou Milton Friedman,
como a fonte suprema da virtude social. Seguindo os passos de Hobbes e
Locke, os filósofos materialistas - os senhores Holbach, Helvetius, La Meruie,
Condillac & eia. - descobriram que a resposta racional às necessidades do
corpo poderia fornecer-lhes o paralelo humano da ciência newtoniana que
almejavam. Ali estava uma lei do movimento dos corpos humanos tão
abrangente quanto a lei da gravitação. 10 Nas palavras de Hobbes, os homens
movem-se em direção às coisas que lhes dão prazer e se afastam das que lhes
causam dor. Além do movimento universal, o prazer e a dor tornaram-se,
para os philosophes, a lei geral da cognição. Como na formulação celebrizada
por Helvetius, o prazer e a dor corporais, ao despertarem a necessidade e o
interesse, resultam na comparação e no julgamento dos objetos. 11 Ori-
ginalmente condenado como autor do pecado, o homem que se preocupa
em agradar a si mesmo veio a ser uma coisa boa e, no final das contas, a
melhor delas, uma v~ que o maior bem de todos viria da completa preo-
cupação de cada pessoa consigo mesma. Com isso, a escravidão foi trans-
formada em liberdade, e o desejo humano, que antes prenunciava a perdição
eterna, tornou-se a premissa da salvação temporal. A longo prazo, a antro-
pologia ocidental nativa revelou-se um exercício prolongado de sublimação
do mal. No entanto, em todas essas felizes metamorfoses, a triste figura do
homem necessitado foi a invariante. 12 A rigor, as necessidades humanas pas-
saram a ser a própria razão da sociedade: "Por ser o homem sociável, as pessoas
concluíram que ele é bom. Mas se iludiram. Os lobos formam sociedades e,
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no entanto, não são bons. (...) Tudo O que a expenenc1a nos ens1na a esse
respeito é que, no homem, tal como em outros animais, a sociabilidade é
efeito da carência" (Helvetius, 1795, v. 7, p. 224-225).
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A TRISTll:ZA DA DOÇURA O
De acordo com o jesuíta Joseph Jouvency, uma das duas principais fontes
de doenças entre os índios da Nova França era o desejo insaci:ivcl por objetos
de decerminado tipo. Sofrendo aparentemente de uma forma de windigo,' 6
O paciente, cuja molé.i;cia se supunha ser congênita, era tratado com uma
demonstração igual e oposta de generosidade. De forma irrestrita e sem ne-
nhuma idéia de retribuição, informa Jouvency, seus "pais, amigos e parentes
(... ) cumulavam-no prodigamente seja lá do que fosse, por mais caro que
fosse". O paciente consumia parte da dádiva, oferecia um pouco aos adivinhos
"e, com freqüência, retirava-se desta vida no dia seguinte" (171 O, p. 258).
Isso prova que a Economia de uma sociedade pode ser a lo ucura de outra.
Ou, pelo menos, que a inevitável insuficiência de meios em relação aos fins
não desperta uma disposição inata para a permuta e o escambo. Longe de
essas carências servirem de liame para a sociedade, o índio atormentado por
d as terá grande dificuldade de conviver com os outros.
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A antropologia da biologia
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A TRISTEZA DA DOÇURA
Pois bem, Durkheim achou que os relatos comuns das distinções corpo/
alma, vindos do mundo inteiro, confirmavam suas teses sobre O homem
dúplex. As crenças numa existência separada desses aspectos do ser humano
representavam a apreensão nativa de um antagonismo universal entre eles.
Mas estava enganado. Uma diferença não chega a ser um conflito. Por mais
que a distinção entre corpo e alma seja universal, o que distinguiu o Ocidente
foi a idéia da guerra civil entre eles. A idéia de uma guerra entre o eu e a
sociedade, dentro de cada peito humano, do conflito eterno da carne com o
espírito, é nossa herança adâmica peculiar. "Eis que então a carne começou a
cobiçar contra o Espírito, luta na qual nascemos, derivando da primeira
transgressão uma semente de morte, e carregando em nossos membros e em
nossa natureza viciada a disputa ou até mesmo a vitória da carne" (santo
Agostinho, De civitate Dei, XII, 13).
Se santo Agostinho cita são Paulo dessa maneira um tanto parcial -
"Pois que a carne cobiça contra o Espírito e o Espírito contra a carne" (Gálatas,
5: 17) -, isso é apenas um sintoma do dualismo agonística corpo/ alma,
desenvolvido no cristianismo da baixa Antigüidade: 23 Pace Durkheim, essa
luta esquizofrênica entre o animal e o social não era própria nem mesmo do
dualismo romano clássico. Peter Brown refere-se, antes, a um "dualismo
benevolente", ou "a uma verdadeira simbiose entre o corpo e a almà,, que
faria "as atitudes do fim da era clássica diante do corpo parecerem profun-
damente estranhas aos olhos cristãos posteriores" (1988, p. 27-29). Vinculado
à fertilidade e à intratabilidade do natural, o corpo seria inferior à mente
administradora; mas os romanos não se angustiavam com a capacidade de ele
ser domesticado pela cidade, nem se inclinavam a reprimir severamente sua
exuberância natural. Brown cita Cícero: ''A própria natureza desenvolve o
desejo do homem jovem. Se esses desejos irrompem de tal modo que não
perturbam a vida do indivíduo e não prejudicam nenhuma família (pelo
adultério), em geral são considerados não problemáticos: nós os toleramos"
(idem, p. 28). A natureza falava através do corpo, "com voz antiga e abalizadà,.
Se assim era em Roma, 0 que faremos da antítese durkheimiana entre uma
animalidade natural do corpo e a moralidade da alma nas numerosas sociedades
em que a "natureza" fala ela própria, isto é, nas sociedades que conhecem
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mundos de pessoas não humanas, animais que também têm alma e qualidades
mentais e morais tão boas ou melhores do que as das pessoas?
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Do mesmo modo geral, os povos indígenas de uma vasta área do que é hoje
o Canadá sabiam que os homens e os animais tinham sido, no começo, o
mesmo tipo de seres dotados de cultura. Os animais eram criaturas humanói-
des. Ainda mantêm com as pessoas relações recíprocas de doação de vida,
como membros da mesma sociedade maior. E embora, desde então, os animais
tenham perdido parte dos aspectos externos da cultura - os cantos, as danças
e os artefatos decorados que estão entre as coisas que os homens hoje lhes
fornecem -, mesmo assim, suas aptidões mentais, inclusive a fala, igualam as
dos homens e, em certos aspectos, eles são intelectualmente superiores (Hallowell,
1955, 1960; Brightman, 1993; Fienup-Riordan, 1990; Black, 1977).
A propósito, havia uma forte tradição de superioridade dos animais em
relação aos homens - inclusive superioridade moral - na Antigüidade clássica
do Ocidente (Lovejoy e Boas, 1935, cap. 13). O componamemo dos animais
servia de modelo para os seres humanos. Entre as virtudes comumente citadas
dos animais estava sua continência na satisfação das necessidades: seus desejos
apenas limitados, inclusive uma sexualidade limitada, sem propensões para
o supérfluo etc.
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A TRISTEZA DA DOÇURA ~
A antropologia do poder
Por que, então, temos essa sensação opressiva da sociedade como um
sistema de poder e coerção que se opõe a nossos desejos íntimos e nossos
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Ô CULTURA NA PRATICA
1935; G. Boas, 1948; Pagels, 1988; Markus, 1970; Levenson, 1988). Jrineu t
resumiu sucintamente a questão: "A lei terrena foi decretada por Deus em
benefício das nações, a fim de que, temerosos da lei humana, os homens não
devorem uns aos outros como peixes" (citado em Pagels, 1988, p. 47). 29 Os
mais famosos expoentes dessa idéia, contudo, foram santo Agostinho e
Thomas Hobbes. A cidade de Deus (413-425) e o Leviatã (1651) têm
praticamente a mesma tese sobre a origem da sociedade ou do Estado, baseada
na mesma premissa de homens tornados cruéis e temerosos uns dos outros
em decorrência de uma busca sôfrega de poder e mais poder. Como observou
Herbert Deane, a antropologia implicada é notavelmente semelhante, inclusive
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final da década de 1830, ou no início da de 1840, como uma de uma sé-
rie de especulações sobre como os chefes (ali'i) havaianos ter-se-iam diferen-
ciado da plebe (kânaka) subjacente, a história de Maio mais poderia ter sido
uma invenção dele do que uma tradição herdada. Contudo, essa diferença
talvez não seja imponante, uma vez que, em seus pormenores naturalístico-
científicos, o m esmo se pode dizer sobre a de Hobbes. Observando que
nunca se explicou por que, ..nos tempos antigos, uma certa classe de pessoas
foi enobrecida e transformada em a/i'i (chefes) e uma outra, em súditos
(Mnakaf', Malo propôs o seguinte como uma primeira explicação possível:
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que é discutível até que ponto devemos levar a sério a aparência que assumiu
para dizer que O poder emerge na luta, na guerra, e que essa é uma guerra de
todos contra todos. "Quem luta com quem?" perguntou ele. "Todos lutamos
uns com os outros,, (1980, p. 208). Os críticos e exegetas raramente assinalam
a ligação de Foucau1t com Hobbes, exceto para repetir seu próprio repúdio
ao dizer que a idéia de poder por ele defendida era "o oposto diametral do
projeto de Hobbes no Leviatã" (idem, p. 97). É-nos recomendado abrir
mão de nosso fascínio pela soberania, "cortar a cabeça do rei", libertarmo-nos
da obsessão com as instituições do Estado. O poder está em toda parte na
sociedade. Está investido nas estruturas e nas clivagens da vida cotidiana e é
onipresente nos regimes cotidianos de saber e verdade. Se, nos moldes do
contrato hobbesiano, os sujeitos constituem um poder onipresente, na visão
foucaultiana um poder onipresente constitui os sujeitos. Ainda assim, quando
Foucault fala de uma guerra incessante de todos contra todos e, logo a seguir,
alude a um eu dividido cristão - "e em cada um de nós há sempre algo que
luta com outra coisa" (ibid., p. 208)-, é muito grande a tentação de crer que
ele e Hobbes têm mais em comum do que o fato de, com exceção de Hobbes,
ambos serem carecas.
A antropologia da Providência
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A TRISTEZA DA DOÇURA ~
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signo do Absoluto. Eco citou a afirmação de João Escoto Erígena: "A meu
juízo, nada há entre as coisas visíveis e corpóreas que não signifique algo
incorpóreo e inteligível" (Eco, 1986, p. 56-57; cf. Glacken, 1967, p. 238).
Mediado pela Verdade e Poder maiores que se expressariam em coisas falsas,
um sistema de conhecimento providencial interligava esses objetos mundanos,
de acordo com certas semelhanças percepdveis. A noz era parecida com o
cérebro, de modo que era boa para as dores de cabeça. As pedras amarelas e
verdes podiam curar a icterícia e as doenças hepáticas, enquanto as pedras
vermelhas serviam para conter os fluxos e as hemorragias. Semelhanças como
as existentes entre as nozes e os cérebros parecem-nos hoje arbitrárias, unindo
coisas que, "na realidade" ou "objetivamente", são muito distintas. 44 No en-
tanto, eram justamente essas afinidades obscuras que expressavam uma Pro-
vidência invisível e - tanto no uso de amuletos ou da alquimia, quanto no
tratamento das doenças - sintetizavam a oposição adâmica entre a natureza e
a humanidade. "Objetável em si mesmo", o mundo, segundo observou
Huizinga, "tornou-se aceitável por seu significado simbólico. É que cada objeto
e cada ofício comum tinham com o mais sagrado uma relação mística que os
enobrecia" (1954, p. 206).45
De acordo com Glasse, "os huli (das cerras altas meridionais da Nova
Guiné) têm pouco interesse pessoal no destino da alma. Não acreditam no
julgamento depois da morte, e o destino da alma não depende, de maneira
alguma, do caráter ou do comportamento da pessoa durante a vida. Na
verdade, suas concepções sobre a destinação ou a habitação da alma são
vagas e incertas; eles se dispõem a especular sobre o paradeiro dos fantasmas,
mas essa questão não cem grande importância" (1965, p. 30). (O destino dos
que são mortos em combate é uma exceção, uma va. que seus fantasmas vão
para um desejável lugar de repouso no céu - "sobre o qual os huli também
têm poucas idéias concretas".) O fato de os huli não parecerem obcecados
com o que lhes aconteceria depois da morte era desconcertante, e~ especi~,
para os missionários cristãos, que se viam frustrados com essa indetermi-
nação das "crenças na alma", em suas tentativas de propalar a B~a-Nova
sobre a salvação e, a fortiori, o significado do sacrifício de Jesus. Obviamente,
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<> CULTURA NA PRATICA
aquilo com que eles se defrontavam era essa religião mundana, interessada
na existência das pessoas aqui e agora e, portanto, não propensa à especulação
sobre a vida após a morte. Nessa situação, a conversão ao cristianismo exi-
gia a conversão a uma religião da morte. No caso dos huU, entretanto, os
missionários tinham pelo menos a vantagem de lidar com um povo cujas
idéias sobre o caráter desprezível deste mundo podiam desafiar as da cris-
tandade medieval. O problema era que a cosmologia indígena dos huli não
incluía nada que se assemelhasse à graça salvadora da Providência Divina.
Nenhuma ordem superior do bem podia ser encontrada nas circunstâncias
terrenas, nenhum objetivo maior no sofrimento humano. Ao contrário, o
mundo encaminhava-se para o caos e a morte, a menos que as pessoas pu-
dessem estabelecer relações de troca apropriadas com os seres espirituais
(dama}, cada vez mais numerosos e perversos, que estavam causando esse
declínio. Esse pessimismo rematado permite compreender a disposição dos
huli de adotar o cristianismo - sob a condição de poderem assumir a res-
ponsabilidade pela morte de Jesus. Como muitos de seus próprios dama
tradicionais, Jesus era menos um salvador do que urna fonte de miséria. Sua
morte não podia libertar os huli, uma vez que eles ainda não tinham pago a
compensação devida por ela (Gl~e, 1965; Biersack, 1995; Allen e Frankel,
1991a, 199lb; Frankel, 1986; L. Goldman, 1993; Ballard, 1992a, 1992b).
Os huli vivem num mundo agonizante. Sua Weltanschauung "contém um
intenso sentimento de declínio, da deterioração da terra física e da decadência
de sua cultura na anarquia e na imoralidade» (Allen e Frankel, 1991a, p. 95).
Materializada nas colheitas decrescentes, na diminuição dos rebanhos de
porcos, nas doenças epidêmicas e na rebeldia da juventude, essa entropia
em andamento é um desastre generalii.ado, que ameaça acabar dissolvendo a
sociedade no incesto, no fratricídio e no parricídio. Todavia, há um sentimento
de que essa queda pode ser revertida, como aconteceu antes, talvez. mais de
uma vei. - portanto, um sentimento de ciclos recorrentes de destruição e
renovação. Aparentemente evocando as lembranças distantes de uma grande
explosão vulcânica no século XVIII, cm Long Island (costa noroeste da Nova
Guiné), a renovação implica o retorno, realizado por meios rituais, de uma
época de trevas (mbingi) marcada pela queda, do céu, de um material seme·
lhante a cinzas, após o que as hortas, os porcos e os seres humanos desfrutariam
de notável prosperidade (cf. Blong, 1982; Mai, 1981). (Note-se que, por si
mesmos, esses eventos vulcânicos não bastam para dar conta da visão de
mundo dos huli, uma vez que essa filosofia apocalíptica s6 é compartilhada
por alguns povos vizinhos do sul da Nova Guiné, apenas uma parcela dos
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A TRISTEZA DA DOÇURA ~
que foram afetados pela erupção de Long lsiand (Biersack, 1995). A volta do
período de trevas, entretanto, não é inevitável, nem tampouco seus efeitos
são necessariamente benignos. "As crenças dos huli não lhes explicam satisfa-
toriamente (o mbingi)" e, por mais que o desejem, eles também temem sua
destrutividade potencial (Glasse, 1965, p. 46). Tudo depende de um agir hu-
mano potencialmente falível. Se os huli não conseguirem realizar os rituajs
prescritos ou aplacar o dama malévolo, o resultado será a desgraça mundial,
em vez da renovação do mundo (Ballard, 1992b). Persistem lembranças de
dois desses rituais fracassados no século XX, um dos quais foi a crucificação
de Jesus Cristo, por volta de 1925 (Frankel, 1986, p. 23-24; Allen e Frankel,
199lb, p. 271-272; Glasse, 1965, p. 46; Biersack, 1995).
Conforme o relato dos huli, um menino "de pele vermelha" chamado
Bayebaye (Perfeito), que eles também identificam como Jesus, foi morto
durante um ritual dedicado ao retorno das trevas, depois do que seu corpo
foi desmembrado e distribuído pelas hortas das pessoas. (Chris Ballard
informa que esse era um procedimento ritual normal, ou uma alternativa
normal ao sacrifício de um porco de pele vermelha (1992b), porém outros
relatos deixam inexplicado esse acontecimento ou o atribuem a uma espécie
de erro, uma vez que apenas o sangue de um dedo espetado do menino
deveria ter sido sacrificado (Glasse, 1965; Frankel, 1986). "De pele vermelha",
convém notar, é o modo como os huli caracterizam as pessoas brancas.)
Frankel relata que os nomes Bayebaye e Jesus "são freqüentemente usados
de modo intercambiável" e, como muitos huli sentem-se responsáveis pela
crucificação, "fizeram-se diversas tentativas de oferecer uma compensação
aos missionários" {1986, p. 23). A mãe do menino, uma mulher do povo
duna (da região oeste), foi identificada corno a Virgem Maria. Entretanto,
nada se relatou sobre sua concepção imaculada, e nem ela trouxe qualquer
alívio materno para as gerações subseqüentes da humanidade sofredora. Ao
contrário, a maldição que ela proferiu como reação à morte de seu filho
trouxe toda sorte de desgraças.
Missionários de quatro seitas cristãs apareceram entre os huli no início da
década de 1950 e tiveram um sucesso considerável. Sugeriu-se que O paralelo
entre a história de Bayebaye e o assassinato de Jesus "~ ~m. ele~ento fun-
damental na explicação do enmsiasmo dos huli pel~ cris~ianismo (Frankel,
1986, p. 23). Mas podemos indagar-nos se não sena o inverso, se o entu-
. . 'd -- la qual um certo paralelo -
.
1
stasmo pelo cristianismo não tena s1 o a razao pe . . .
n.o qual os huli desempenharam o papel de Pilatos - foi concebido. ~postm.on
. ai · que a destrWçao trazida
entre as duas tradições. É importante assm ar aqw
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O CULTURA NA PRATICA
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~ CULTURA NA PRÁTICA
A antropologia da realidade
A invenção de um mundo imaculado de objetos ocorreu muito antes
de Descartes distinguir coisas pensantes de coisas extensas. Veio bern antes,
igualmente, do império do capital na Europa, que Marx julgou ter posto
fun à "idolatria da natureza, e haver, pela primeira va., transformado a natureza
"nwn simples objeto para a humanidade, numa simples questão de utilidade"
(1973, p. 409-410). (Observe-se, para referência futura, a fusão da utilidade
com a objetividade - ou, pelo menos, com a objecificação -, que constitui,
com efeito, a ideologia burguesa.} Mas foi o cristianismo, e antes dele o
judaísmo, o primeiro a desencantar a natureza, fazendo dela um mero objeto
para a humanidade, muitos séculos antes de sua exploração pelo capital -
exploração, portanto, que a religião havia preparado. Ao insistir num hiato
absoluto entre Deus ( Sua criação, entre as coisas mundanas e a divindade, a
tradição judaico-cristã distinguiu-se de um "paganismo" que ela entendia,
justamente, como uma idolatria da natureza. "A deificação da natureza era
vista como a verdadeira essência do paganismo por cristãos e judeus"
(Funkenstein, 1986, p. 45; cf. Feuerbach, 1967, p. 91 e passim; Berman,
1981).51 A antiga religião hebraica era absolutamente única, como costulllava
argumentar Henri Frankfort, em sua insistência na transcendência absoluta
de Deus: um deus que estava além da comparação ontológica com qualquer
fenômeno mundano. Deus não estava no sol nem nas estrelas, na chuva ou
no vento - em parte alguma da natureza. "Na religião hebraica - e somente
na religião hebraica-, o antigo laço entre o homem e a natureza foi destruídO"
(Frankfort, 1948, p. 343).52
Se tanto, a religião cristã aprofundou o abismo entre o homem e ª
· d e sua oposição
natureza, por meio · aos panteísmos clássicos - corol'ariodo
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A TRISTEZA DA DOÇURA ~
Não é simples separar o crente dinka, para fins analíticos, daquilo em que ele
acredita, e descrever isso, isoladamente dele, como "objeto" de sua crença. Os
próprios dinka o deixam implícito, ao falarem dos Poderes como estando ..no
corpo dos homens", mas também "no céu" ou noutros lugares particulares. Para
eles, seu mundo não é um objeto de escudo, mas um sujeito ativo. (Idem,
p. 155-156)
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A TRISTEZA DA DOÇURA O
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idéia, além disso,
. torna-se a contrapartida
. ontológica de uma ep1stemo
. l og1a
.
igualmente singular, na medida em que o conhecimento da natureza não
pode ser obtido por intermédio da comunicação e das outras maneiras pelas
quais sujeitos compreendem sujeitos. Mediado pela Queda de Adão, 0 co-
nhecimento das coisas naturais fica reduzido à experiência sensorial da matéria
empedernida na qual a humanidade foi condenada a desperdiçar suas forças.
Af estava uma certa teoria da práxis do conhecimento, apropriada para as
coisas deste mundo. "Para os teólogos cristãos", escreveu Gurevich, "o trabalho
era sobretudo educacional', (1985, p. 261). Ele citou Orígenes: ((Deus criou
O homem como um ser que necessita do trabalho para poder exercer ple-
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,t
O CULTURA NA PRATICA
Como se os sentidos fossem "a causa física da<1uilo cuja experiência apenas
ensejavam": aí estava O famoso mal metafísico - sob muitos aspectos, a pior
de todas as punições. Hobbes, Locke, Hume e as lumíeres francesas tinham
plena consciência de que, se O conhecimento proviesse apenas dos sentidos,
jamais poderíamos conhecer a verdadeira essência das coisas. "Vemos tão-
somente aparências ( ...) estamos num sonho,, (Voltaire). Houve até qucin
tentasse despertar-nos do sono dogmático durante o qual sonhávamos que,
ao ver as aparências, estávamos olhando para as coisas-em-si. Mas a maioria
dos filósofos ocidentais - inclusive a maior parte do meio acadêmico -
reconciliou-se com um conceito de "realidade'' que continuou sobrecarregado
com as imperfeições conjuntas da epistemologia, da ignorância e do trabalho
pós-Queda. A "realidade" são as impressões sensoriais que podemos obter do
mundo no decorrer do envolvimento prático com ele. O que existe é o
complemento metafísico de nossos prazeres e dores corporais. Até Descartes,
apesar de toda a sua desconfiança da experiência, pôde confiar nos julgamentos
baseados nas percepçóes de prazer e dor, pois Deus não nos teria enganado
nisso, mas, ao contrário, ter-nos-ia dado uma apreensão sensorial correta do
mundo, a bem de nossa própria preservação (Sexta meditação). "Quanto a
mim", disse Locke, "penso que Deus me deu garantia suficiente da Existência
das Coisas externas; desde que, por sua aplicação diferenciada, posso produzir
em mim mesmo o Prazer e a Dor, o que é uma grande preocupação de
minha atual condição" (Ensaio acerca do entendimento humano, IV, 11.3). E
para os céticos que se recusavam a confiar em seus sentidos, e afirmavam que
toda a nossa existência consistia apenas nas "aparências ilusórias de um Sonho
prolongado", Locke teve a seguinte resposta:
A certez.a das Coisas que existem in rerum Natura, quando temos delas o
testemunho de nossos SentitÚJs, é não apenas tão grantk quanto nossa constituição
é capaz de alcançar, como quanto nossa Condição necessita. Visto que nossas
Faculdades são adequadas não à plena extensão do Ser, não a um Conheómento
perfeito. claro e abrangente das coisas, livre de qualquer dúvida e escrúpulo,
mas à preservação de nós, como aqueles em que das existem; e, adaptadas ao uso
da Vida, elas servirão bastante bem para nossos propósitos, se apenas nos derem
um certo aviso das Coisas que nos são convenientes ou inconvenientes. Pois
aquele que vê uma Vela arder, e que experimentou a força de sua Chama ao nela
o 600 Q
,r'll:_.._ _ _ _ _ _ __
A TRISTEZA DA DOÇURA ~
colocar seu Dedo, pouco duvidará de que isoo é algo que existe externamente.
(...) Portanto, essa Prova é tão grande quanto podemos desejar, e tão certa para
nós quanto nosso Prazer ou nossa Dor, isto é, nossa Felicidade ou Sofrimento,
para além dos quais não temos nenhum interesse em Conhecer nem em Ser.
Essa garantia da Existência das Coisas externas é suficiente paca nos orientar na
consecução do Bem e na evitação do Mal, que é causado por elas, 0 que constitui
O interesse importante que temos em conhecê-las. (Idem, N , 11.8)
A realidade do transcendente
Kant advertiu contra a especulação na ausência de intuições sensíveis. Na
medida em que o pensamento envolve as categorias a priori - de espaço,
tempo, substância, quantidade e assim por diante - que constituem as intuições
como juízos empíricos objetivos, a extensão do pensamento para os campos
ou objetos transcendentais não implica uma passagem metafísica para um
domínio de irrealidade. Ao contrário, os objetos transcendentais terão todas
as qualidades de experiências objetivas ou intuições empíricas - exceto a da
intuição empírica. Daí a "religião", ou a crença em "espíritos" não percebidos,
e também sua inexistência em muitas sociedades: o freqüente relato etno-
gráfico da não-pertinência da distinção ocidental entre o "natural" e o "sobre-
natural". Também decorre daí que, na eventualidade de uma contradição
entre o empírico e O transcendental, a realidade deste último é privilegiada
em relação aos atributos perceptíveis do primeiro. O não-sensorial é o mais
real - como relatou Hallowell sobre o povo ojibway:
Urn informante disse-me que, muitos anos antes, estivera sentado numa tenda
numa tarde de verão, durante uma tempestad e, JU · nto com um velho e sua
esposa. H ouve uma trovoada após outra. D e repente, O ancião voltou-se para
e. • di to.:>" "N-ao"• respondeu ela' "não
sua mulher e perguntou: "Ouviu o que 101
peguei". (1960, p. 34)
o 601 O
~ CULTURA NA PRATICA
o 602 o i
________....................................________________........~
A TIUSTEZA DA DOÇURA O
A tristeza da doçura
o 603 o
O CULTURA NA PRATI C A
sua definição do bem supremo desta vida à isenção da dor, e concordado ern
que, sem a esperança de chegar a esse bem supremo, só nos é permitido nos
aproximarmos mais ou menos dele, proporcionalmente a nossa vigilância e às
precauções que tomamos. (1963, p. 10-l 1)
Essa triste reflexão foi escrita mais ou menos na época em que, corno
ensinou Sidney Mintz, o povo do Ocidente estava aprendendo a tornar
tolerável a Revolução Industrial> viciando-se nas "drogas level' que são O
açúcar e o chá, o café, o chocolate e o tabaco (Mintz, 1985). Como foi
assinalado no contexto do comércio com a China, nenhuma das bebidas
dessa lista era adoçada em seus países de origem (capítulo 13). Na Europa,
entretanto, todas passaram a ser tomadas com açúcar, desde a época de sua
introdução. É como se o amargor adoçado do chá pudesse produzir, no registro
dos sentidos, o tipo de mudança moral que as pessoas desejavam em sua
existência terrena - "os dias desta nossa peregrinação".
No entanto, como observou Mintz sobre o consumo mitigante que
continua nos tempos modernos - a ''terapia a varejo'', como ele é às vezes
chamado-, nada disso dissipa inteiramente nossa culpa (ou será que não
deveríamos dizer nosso pecado original?):
Não é difícil afirmar que a sociedade norte-americana contemporânea, mesmo
ao consumir bens materiais num ritmo sem precedentes, continua visivelmente
preocupada com o campo moral em que o pecado e a vinude são inseparáveis,
cada qual encontrando sua reaJidade na presença do outro. Consumimos, mas
de modo algum ficamos inteiramente felizes com isso, nem todos nós e nem
sempre. (...) O sentimento de que a vinude está na abnegação, e de que o
pecado está no consumo, continua poderosamente presente. (1993, p. 269)
Agora talvez possamos entender por que o livro de Mintz sobre a doçura
produziu uma precipitação tão concentrada de energia intelectual, espe-
cialmente entre os antropólogos. Ao mesmo tempo que é a epítome e a
síntese de temas culturais fundamentais da história do Ocidente, ele revela a
relatividade histórica de nossa antropologia nativa.
Notas
o 604 o
A TRISTEZA DA DOÇURA O
e conflitantes. Nesse aspecto, até o "judaico" da expressão acima poderia ser ques-
. do , uma vez que, como observou um crítico amigo (e a despeito de Filo de
t1ona
Alexandria), os dualismos radicais do cristianismo não são muito acentuados nesse
ramo da tradição. Tudo bem, mas cá estou eu tentando acertar no centro do lado
mais largo de um celeiro - o pretenso discurso abalizado.
2 A equivocidade ("talvez,,) é apropriada. Os dinka, tal como descritos por
Lienhardt (1961) aproximam-se bastante da situação adâmica destacada por Ricceur,
como talvez aconteça com outros povos do leste africano. Na mitologia dos dinka,
a vontade humana e a busca da liberdade, opondo-se a Deus, também acarretaram
sofrimento, fome e morte no mundo. Entretanto, algumas outras dimensões da
antropogênese/teodicéia cristã continuam distintas (como será argumentado aqui).
3 A genealogia da moral transmite o sentido comparativo que estou tentando
evocar: "Uma simples olhadela nos deuses gregos nos convence de que acreditar em
deuses não precisa resultar em fantasias mórbidas, de que existem meios mais no-
bres para criar ficções divinas - meios que não levam ao tipo de autocrucificação e
autopunição em que a Europa tem-se destacado há milênios. Os deuses helênicos
refletiam uma raça de seres nobres e altivos, nos quais o eu animal do homem tinha
um status divino e, ponanto, não precisava dilacerar-se e vociferar contra si mesmo.
Durante muito tempo, os gregos usaram seus deuses justamente para manter à dis-
tância a má consciência, a fim de desfrutar, impassíveis, de sua liberdade interna;
em outras palavras, fizeram deles o uso oposto ao que o cristianismo fez do seu Deus"
(Nietzsche, 1956, p. 227).
4
"The noblest part, man, felt in first; and then I Both beasts and plants,
curst in the curse of man." Versos do poema·~ Anatomy of the World", de John
Donne. (N. da. E.)
5
f claro que o verdadeiro pecado foi de Eva, que, como mulher, representava
a carne, os sentidos, em relação ao intelecto de Adão (Filo, 1929, p. 225-226; Baer,
1970; Twain, 1904). Esta proposição - os homens estão para as mulheres assim
como a mente está para os sentidos - tem sido um dogma venerável do folclore
ocidental nativo (Lloyd, 1984; Bordo, 1987).
6
Um discípulo observou que "só os pagãos não conseguem compreender
por que os cristãos se deleitam com o castigo e com a disciplina que seu Pai amo-
roso lhes manda, justificadamente, como um meio necessário para atingir um fim
abençoado" (Lõwith, 1949, p. 176, parafraseando Orósio). A frase de santo Agostinho
sobre os bebês que entram no mundo chorando viria a ser animadamente repetida
durante séculos. "Todos nascemos em prantos"' escreveu o papa Inocêncio Ili,
"para poder expressar a miséria de nossa natureza" (Marchand, 1966, P· 8).
o 605 O
O CULTURA NA PRÁTICA
7 "Aquilo que se produz num escravo pelos grilhões e pela coerção é produzido
em nós pelas paixões, cuja violência é doce, mas, ainda assim, perniciosa,, (Leibniz,
1985, p. 289).
8 Assim, ele (o corpo espiritual) é um corpo inteiramente milagroso, a rea1ização
do desejo sobrenatural do homem de ter um corpo livre da doença e do sofrimento,
invulnerável e imortal e, portanto, desprovido de necessidades. Pois que as múltiplas
necessidades de nosso corpo são a fonte de suas múltiplas aflições.(...) Mas o corpo
espiritual celeste não precisa de ar, alimento nem bebida; é um corpo divino, sem
necessidades. (Feuerbach, 1967, p. 260-261)
o 606 o
A TRISTE Z A OA DOÇURA O
observou Lovejoy, "muitas vezes são, no fundo, expressões de uma certa desilusão
do homem consigo . mesmo - uma fase no longo e aprofundado des1·1u d'1r-se que
constitui a tragédia de grande parte do pensamento moderno" (l 94B, p. IGS).
n E não devemos esquecer o velho Tomás de Aqui.no. Obv1amente,
· a 1'dé.1a
de que a sociedade se origina para atender a necessidades individuais remonta ao
período anterior à alta Idade Moderna. Schumpeter observou que, para Tomás de
Aquino, excetuada a Igreja, a sociedade "foi tratada como uma questão inteiramente
humana e, além disso, como mera agregação de indivíduos unidos por suas necessi-
dades mundanas. Também o governo foi considerado proveniente dos objetivos
utilitários que os indivíduos não conseguem realizar sem essa organização, e como
não existindo por outra razão senão tais objetivos" (1954, p. 91-92).
14
Esse aforismo ocorre em De l'esprit, de Helvetius, texto sobre o qual Halevy
assinalou: "Por mais que hoje se possa esquecer esse livro, é impossível exagerar O
alcance de sua influência por toda a Europa na época em que foi lançado" (1949,
p. 18). Tal influência foi especialmente marcante na Inglaterra. Um dos primeiros a
se submeter a ela foi Jeremy Bentham.
1
~ ''A autofilia, que uma geração anterior atribuiria ao fato de o homem se
haver afastado do serviço de Deus, é tratada por Pope como uma força necessária da
natureza, sem a qual a razão permaneceria inativa" (Hampson, 1968, p. 1O1). fusa é
também a relação hobbesiana entre a autofilia e a razão. Ela parece ter-se tornado
comum no século XVIII, mesmo nas formas perversas em que Rousseau a expôs.
16
Criatura canibal da mitologia algonquina. (N. da T.)
17
Ao criar um mundo objetivo por meio de sua atividade prática, ao trabalhar a
natureza inorgânica, o homem se revela um ser de uma espécie consciente. (...)
Devemos admitir que os animais também produzem. (...) Mas um animal só
produz aquilo de que necessita imediatamente para si mesmo ou para suas crias.
Produz de modo unilateral, ao passo que o homem produz universalmente. (...) O
animal produz apenas a si mesmo, enquanto o homem reproduz toda a natureza.
(...) O animal cria coisas de acordo com o padrão e a necessidade da espécie a que
pertence, enquanto O homem sabe produzir de acordo com os padrões de outras
espécies. (Marx, 1961, p. 75-76)
18
A noção de que o progresso humano era um movimento do contro.le cor-
poral ao controle intelectual, um libertar-se humano das limitações da maténa e da
natureza animal, era muito generalizada, até meados do século XIX, no pensamento
an tropológ1co
. J S M·11 E B rylor poderiam
europeu. Condorcet, Comte, · · 1 e · · " . .
ser
citªdos como seus expoentes destacados, assim ·
como ne
F · drich Engels: Fnednch
EngeIs chama a vitória final do proletana
· d o soct·al·1sta d e um passo dado pela huma-
o 607 O
_ ..., _ ... - - - - ...
CULTURA NA PRATlCA J
Com nenhum, denue todos os animais de que este globo é povoado, a natureza
parece, a primeira vista, ter praticado maior crueldade do que a que praticou com
o homem, pelas incontáveis carências e necessidades de que o sobrecarregou e pelos
recursos escassos que lhe proporciona para mitigar essas necessidades. Ern outras
criaturas, esses dois aspecros geralmente compensam um ao outro. (...) Somente no
1
homem é que essa conjunção antinatural de fraqueza e necessidade pode ser
observada em sua suprema perfeição. ( Tratado sobre a natureza humana, III, 2.2)
~ 608 ~
,.,
A TRISTEZA DA DOÇURA Ó
1
·nceleccuais "superiores" (e talvez frágeis) que contive _ . .
1 1 ram as propensoes animais
t
dos centros "inferiores" (Sacks, 1995> p. 61).
22 Talvez a mais desenvolvida das exposições de Dl kh · - b h
1r e1m so re o ornem
dúplex seja seu artigo de 1914, intitulado "O dualismo da natureza humana e suas
condições sociais,,, onde é dito:
Nossa inteligência; assim como nossa atividade, apresenta duas erormas muito ·
diferentes: de um lado, há sensações e tendências
·
sensoriais·, et de outro, o pen-
samento conceituai e a atividade moral. Cada uma dessas duas partes de nós repre-
senta um pólo separado de nosso ser, e esses dois pólos não apenas se distinguem
um do outro, como são opostos entre si. Nossos apetites sensoriais são necessariamente
egoístas: têm por objeto nossa individualidade e apenas ela. Ao satisfazermos nossa
fome, nossa sede e assim por diante, sem pôr em jogo nenhuma outra tendência, é
a nós mesmos e unicamente a nós que satisfazemos. (O pensamento conceituai) e
a atividade moral, ao contrário, distinguem-se pelo fato de que as regras de conduta
á que se conformam podem ser universalizadas. Por definição, portanto, eles visam
objetivos impessoais. A moral começa pelo desinteresse, pelo apego a algo diferente
de nós mesmos. ( 1960, p. 327)
23
A exegese que Betz fez de Gálatas 5: 17 tem uma forma triádica talvez
familiar à psicanálise:
No versículo 17a, o dualismo é exposto de forma bastante simples: a carne e o
Espírito são chamados de forças opostas, cada qual agitando-se contra a outra. A
carne e seu "desejar" (...) são agentes humanos do mal, enquanto o Espírito é o
agente divino do bem. O versículo 17b explicita as consequências antropológicas
desse dualismo. (...) O homem é o campo de batalha das forças que traz em seu
interior e que o impedem de realizar sua vontade. O "eu" humano deseja, mas é
impedido de realizar sua vontade (...) por estar paralisado por essas forças dualistas
demro dele. Como resultado, o "eu" humano deixa de ser o sujeito que detém o
controle do corpo. (Betz, 1979, p. 279-280)
1990; Le Goff, 1988a, P· 354-355; 1988b, p. 83-103; G. Boas, 1948; Peter Brown,
1988, p. 428-447; Gurevich, 1985.
2s Staro b'ms ki o bserva que o se nti"mento de uma selvageria subjacente subverteu
o 609 O
(> CULTURA NA PRATICA
Decerto não é por acaso que temos a instituição do poder dos reis, a pena de morte
do juiz, os ganchos farpados do carrasco, as armas do soldado, o direito de punição
do suserano e até a severidade do bom pai. Todas essas coisas têm seus métodos,
suas causas, suas razões, seus benefícios práticos. Enquanto tias são temidas, os
ímpios são contuí.os dentro de limius e os bons vivem mais pacificamente mtrt os m11,us.
(Citado em Deanc, 1963, p. 138-139)
o 610 o
IJI'
A TRISTEZA DA DOÇURA ~
o 611 ~
O CULTURA NA PRÁTICA
por sua defesa paradoxal da utilidade dos "vícios"· Eles fazem parte do poema "The
Grurnhling Hive: or Knaves Turn'd Honest", datado de 1705 e depois incorporado
e aprimorado em sua lendária Fdbula das abelhas (1714), onde compara a sociedade
a uma colméia. Os textos de Mandeville exerceram especial influência sobre Adam
Smith. (N. da T.)
17 E antes de santo Agostinho, essa tradição remonta especialmente a Plorino,
cuja formulação da Cadeia do Ser como uma hierarquia de perfeição desembocou
tanto na teodicéia agostiniana quanto, para ir mais longe, na noção, sustentada
pelos otimistas, do melhor dos mundos possíveis (Lovejoy, 1964, p. 61-66; Hick,
1966).
38
O "Mal parcial" significa o mal existente nos indivíduos ou por eles sofrido
(cf. Pope, 1970. p. 133n).
39
Vale a pena reproduzir os versos originais de Pope: "Ali Natu.re is but Art,
unknown to thee: / Ali Chance, Direction, which thou canst not see; / All Discord,
Harmony, not understood; Ali partia! Evih universal Good: I Antl spite of Prit:k, in
erring Reason's spite, / One truth is clear, WHATEVER IS, IS RIGlll:" (N. da T.)
40
A versão de Berkeley da teoria da Mão Invisível é particularmente notável,
pelo modo como contrapõe necessariamente um todo sistemático abstrato às dores
de nossas experiências finitas e imperfeitas:
Quanto à mescla de dor ou mal-estar que existe no Mundo, consoante às leis gerais
da Natureza e aos atos de seres finitos imperfeitos: isso, no estado em que nos
encontramos hoje, é indispensavelmente necessário a nosso bem-estar. Mas nossas
perspectivas são por demais limitadas: refletimos, por exemplo, sobre a idéia de
uma determinada dor e a consideramos como um mal, ao passo que, se ampliarmos
nossa visão, de modo a abarcar os vários fins, ligações e dependências das coisas, as
ocasiões e as proporções em que somos afetados pela dor e pelo prazer, a natureza da
liberdade humana e o objetivo com que somos trazidos ao mundo, seremos forçados
a reconhecer que essas coisas, que se afiguram um mal quando consideradas em si
mesmas, têm a natureza do bem. quando ligadas a todo o sistema de seres. (Tra'ttUÚJ
sobrt os princípios do conhecimento humano, par. 153).
Mas, afinal, a filosofia que precisa de Deus para garantir a realidade das
coisas, quando não as estamos olhando~ é uma ex.pressão tão boa da teoria da
Providência Divina quanto se poderia encontrar.
41
Essa antropologia cristã da Providência também tem antecedentes clássicos,
como na filosofia estóica: ''As coisas a que chamais sofrimentos, a que chamais
adversidades e maldições, existem, em primeiro lugar, para O bem das próprias
pessoas a quem sucedem; em segundo lugar (...) existem para O bem de toda a
~ 612 o
d
A TRISTEZA DA DOÇURA O
flia humana, com a qual os deuses têm maior preocupação do que por pessoas
~l das" (Sêneca, Sobre a Providência divina, III, 1). Por outro lado contudo
JSO a ' '
( ...) 05 gregos não viam os deuses homéricos no alto, como seus senhores, e a si
mesmos embaixo, como servos, tal como acontecia com os judeus. Viam neles
apenas como se fosse o reflexo dos espécimes mais bem-sucedidos de sua própria
casta, isto é, um ideal, e não um contraste com sua natureza. Sentiam-se aparentados
a eles (e) havia um interesse recíproco, uma espécie de symmachia (aliança). O
homem pensa em si como nobre ao se oferecer tais deuses, e se coloca numa relação
semelhante à da pequena aristocracia com a alta nobreza. (...)
O cristianismo, por outro lado, esmagou e destroçou completamente o homem, e
o submergiu num profundo lodaçal. Depois, subitamente, permitiu que ern seu
sentimenro de profunda confusão brilhasse a luz da compaixão divina, de tal
modo que o homem, surpreso, estarrecido com a misericórdia, soltou um grito de
êxtase e, por um momento, julgou carregar todo o céu dentro de si. (Nietz.5che,
1984, p. 85)
42
Obviamente, a transformação da lei divina em lei natural significou o fim
do ser transcendental (Cassirer, 1951, p. 45), mas, apesar disso, e ultrapassando até
as inclinações teológicas de Newton, Galileu et ai. (idem, p. 42), uma certa trans-
cendência da experiência mesquinha por uma ordem (intelectual) superior., versão
cristã do platonismo, habita a nova ciência natural:
ô 613 o
,., .
r - -·
O CULTURA NA PRATICA
O 614 o
A TRISTEZA DA DOÇURA ~
49 Burke fornece. uA
m ~xemplo característico da naturalização do processo
social calcado na Prov1denc1a, ao falar do ancien régime como dotado "daquela
variedade de partes ( ...) de toda aquela combinação e toda aquela oposição de
interesses (...) aquela ação e aquela ação contrária que, no mundo natural e no mun-
do poiltico, extraem da luta recíproca entre poderes discordantes a harmonia do
universo" (1959, p. 40. Grifo nosso).
5o Princípios de uma ciênci4 nova, de Vico, descreve repetidamente como os
o 615 O
~ CULTURA NA PRÁTICA
O 616 o
,..
A TRISTEZA DA DO Ç URA ~
o 617 O