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Latina, dos movirnentos populares libertadores, e revisar 0 papel que a criminologia oficial e a criminologia live cumprem em cada um deies, sempre atenta a denunciar, em qualquer caso, os poderes opressores ¢ 6 discurso ocultador. ‘O estudo eritico do direito penal em seus trés momentos (pro- dugio, interpretagio e aplicagio de normas), com 0 apoio da socio- logia € ua cincia politica, deverd ser objetive de primeira linha, entendendo-se o direito penal, evidentemente, como integrado a todo © sistema juridico, e articulado com a sitiagao de dependéncia ou colonizactio dos pafses periféricos em relacio aos centrais. Do mes- mo modo, analisard criticamente a dogmiética penal, que define 0 nomento da interpretago; o sistema penalégico ¢ de tratamento e suas alternativas, assistenciais ou nao; os valores € os esteredtipos, ‘08 portadores do controle, seus agentes ¢ destinatirios: © controle de e sobre a ciéncia. i Como tudo isso leva — ou nao leva, e isto € importante — & criminalizagiio de condutas, classes sociais, interesses ¢ individu- 08, a criminalizagao seré 0 objetivo central da teoria critica do con- trole social. Finalmente, ela nos devera permitir fazer, diante da velha criminologia da repressAo, uma criminologia da libertacdo. ‘© quadro abaixo esquentatiza as diversas tendéncias: a a Nivel episiemolégico | criminolégico | i politico ‘Criminologia 5 atinica’ Passagem Criminolégia osttivisme | sociogia a agao da repressao criminal (reeducagaio, ———— anno F ressovializagao) Politica criminal Orgarizacional Consteucionismo| Interacionismo Reag&o social WMaterialismo | Griminologia | Teoria critica | Criminologia Histérico e | critica do controle da liberagaio Teoria Critica Nova social (conscientizagao) criminologia Criminatogia radical @6 ‘ Acriminologia como controle social informal ou criminologia e sistemas de poder 1.A criminologia cldssica Uma das formas pelas quais 0 controle social informal opera pode scr encontrada no trabalho ideologizante das chamadas cién- ccias humanas e sociais — portanto, como jé dissemos, também na cristinalogia, interessante aqui € explicar esse papel legitimador em rela: cas diferentes formagées sociais e aos diversos graus de desenvol -vimento politico, as vezes complementando 0 papel do direita, a vezes substituindo-o, as vezes ocultando-o. O que nos motiva prin- cipalmente é explicar as relagdes entre a criminologia ¢ 0 poder na Améjica Latina no momento atual. Mas parece-nos imprescindivel jntroduzir antes 0 tema em seu nivel epistemol6gico e politico atra- vés da histéria, j4 que, de alguma maneira, isso refletiu-se em nosso continente, embora com matizes indubitavelmente particulares. Quando e por que surge, que conceito de Estado, que estilo de legitimagiio do poder e da autoridade representa a criminologia classica? ‘Mesmo uma répida olhada que procure captar a histéria da criminologia deve pertir da crise do pensamento helenistico-roms- no, isto é, da concepgaio da sociedade como fato natural ¢ da orde~ naco social como produto da necessidade de assegurar a justiga nas relagées sociais, mediante normas e a supervisio destas por parte da autoridade, Era o que estava na base da polis grega; aquela ‘entidade que, segundo Aristételes, era o desdobramento natural de um processo evolutivo (famitia, aldeia, polis), na qual o homem se realizava como ser humano, € cujas leis, normas ¢ autoridade introjetava como parte de sua natureza. O século V marcaa incape- cidade de autogoverno da polis grega ¢ 0 surgimento de um cosmo- or politisino ético e metafisico: os homens teriam duas cidadanias, uma jocal e outra universal Haveria uma ordem universal tanto no mundo natural como no humano, ¢ isso conduziria ao diteito natural, que seria “o que resulta naturaimente da natureza das coisas”. Da mesma maneita gue existia uma harmonia césmica, haveria sempre justiga univer- sai, embora ela nao sé evidenciasse sempre nos casos concretos™, Com 0 Estado moderno, surgem as formulagdes contra- tualisias: desde Hobbes, para quem do estado (de terror) da natu reza se chegaria & sociedade ou ordenagéo civil, outorgando-se 20 soberano 0 monopdlio da violencia; passando por Locke, que elabora as bases do pensamento liberal referido a um contrato que legitimaria 0 poder apenas na medida em que este servisse para regular ou supervisionar os direitos naturais, para cuja de- finigdo se formaria o pacto; € culminando com Rousseau, para quem o pacto social niio tem como objeto a defesa dos interes- ses individuais, mas a submiss2o A vontade geral, que seria algo mais que a soma dos interesses individuais. Cria-se assim 0 modelo sociolégico do consenso. Este consenso legitims o poder e legitima todas 2s manifesta- gGes de controle desse poder. Assim, no que diz respeito direta- mente ao-tema tratado, 0 cédigo penal-seré um monumento incontestado e incontestivel. Definidor supremo do bem ¢ do mal. &, historicamente, a criminologia dele derivada é, portanto, uma criminologia acritica e submissa. £ o perfodo que Weber chama de domninagao legal, no qual o direito e seu ritual cumprimento bastam, para iegitimar o poder. ‘Como apontaria posteriormente Durkheim, as normas penais (00 produto dessa consciéncia coletiva. Mas 0 criminoso nao 0 & por natureza, ¢ sim em relacdo consciéncia comum. A Gnica coisa que seria comum a todos 0s delitos é a teagao que eles determinam, que seria sempre, para todos, a mesma. A unidade do efeito revela- ria a unidade da causa. A pena, portanto, seria uma reacio passional 5 Helio Jaguaribe. Hacia la sociedad! no represiva. México, Fondo de Cultura Econémica, 1978, Entretanto, a comunidade de valores da polis ‘existia, como sempre, para o grupo dominante. E preciso nio esquecer gue ela convivia com a escraviddo, co exercida mediante um corpo constituide. Uma forma de vingar 0 aque é sagrado na consciéncia coletiva e que, por isso, deve exigira infligdio de uma dor. Tendo como fungo manter intacta a coesio social, mantém em toda a sua vitalidade a consciéncia comum’ Estamos, pois, em pieno apogeu da metafisica idealista. En- tetanto, como veremos, j4 durante 0 chamado perfedo de iluminismo aparecem alguns elementos do que sevd posteriormente opositivismo. Quem melhor representa liberalismo da fase industrial ¢ ‘madura da revolucao burguesa é John Stuart Mill. Ele rejeita a teo- rig do direito natural e do contrato social, mas aceita © conceito de direitos individuais no sentido de Locke ¢ nfo no de Rousseau, que é,como vimos, mais social. O poder encontraria sua legitimidade, enttio, na proteglo desses direitos individuais™ A cctiminologia da escola clissica, portanto, tem como marco de filosofia politica as idéias liberais do contratualismo © como mo- delo sociolégico o consenso. & o mesmo marco da criminologia liberal chamada “organizacional”, praticada principalmente nos EUA, Canada, que busca pragmaticamente melhorar o sistema de con- trole social (policia, tribunais, servigos de assisténcia social, etc.) © formular, enfim, 2 politica criminal através de pesquisas valorativas e propostas de reforma. 6 a criminologia do “gattopardismo”: mu- dar as coisas para que tudo fique como ests. Gragas a Marx, que toma o momento do surgimento da bur- guesia na sociedade feudal como modelo de desenvolvimento de classe e da consciéncia de classe, foi possivel entender a aparigio de ideologias concretas na hist6ria. B assim que se comeca a verificar que a escola clissica de ireito penal nio é pré-criminol6gica, mas 6 ela mesma uma crimi nologia administrativae legal, uma forma de controle social fundante da nova ordem estabelecida (para utilizar 0 conceito weberiano) pela via da dominacio legal™, Ela representou a ideologia de uma Emile Durkheim. La sociologia y las reglas det método socioléeico. Santiago do Chile, 1937 ® Jaguaribe, op. cit © Cf, Taylor, Walton ¢ Young, La nueva criminotogia, México, Amorrortu, Cf. também o capitulo I deste livro 6 nova sociedade que pretendia livrar-se do poder absoluto feudal ow monirquico e estabelecer, na nova racionalidade de um libérrimo intercambio de mercadorias, o reino do direito privado, isto ¢, da vontade das partes, também no direito penal, da mesure muaneira que acontecia no mundo da economia. Sua finalidade era garantir que houvesse um minimo de intervengao estatal. O importante era proteger 0s individuos do poder do Estado, controlar a0 méximo esse poder, privatizando ao maximo as relagdes jurfdicas. O direito ‘constitui “as regras do jogo da paz burguesa”, nas palavras de Amaud, A fungao politica dessa criminologia pode ser resumida nos seguintes passos, mais amplamente descritos por Pavatini: contrato social => monopélio da violéncia nas maos do Principe (definidor ex- clusivo do permitido e do proibido, e portanto dos valores bésicos, supostamente consensuais, do sistema); => principio de legalidade (na realidade, selecdo classista dos ilegalismos); => ieretroatividade da lei (para a seguranga do mercado); => codificagéo sistémica para evitar contradigGes na lei; => interpretagao disciplinada da lei (com 0s mesmos fins); => presuncio de igualdade entre as partes da relagaio jurfdica (nao coincidente com asocial conereto)*, O direito penal burgués foi, portanto, uma plataforma juridico- politica que asseguraria a previsibilidade necesséria para livre desen volvimento do mercado, interesse central da classe em ascensio, que antes estava em posi¢Zo subordinada e que deveria garantir agora seu direito a0 poder em face dos resfcluos ideolégicos do sisterna feudal”, Por isso era mais propriamente um projeto para um Estado ideal. Em % Cf. Massimo Pavarini, Control social y dominacién. Teortas crimi- noldgicas burguesas y proyecto hegemdnico. México, Siglo XX1, 1983. ‘Taylor, Walton © Young, La nueva criminologta, op. cit. * Sua posiglio de classe era mais propriamente subordinada que domina- a, pois, como bem diz Bottomore, “a burguesia era uma terceira classe na sociedade feudal, nfo a classe diretamente explorada, estava diretamente associada a um novo modo de producio baseado em uma nova tecnologia” (LB. Bottomore, La sociologla como critica social, Batcelona, Peninsula, 1976). Como disse Marx: “o moinko manual determina uma sociedade com © senhor feuds, o moinho a vapor uma sociedade com 0 capitalismo indus- trial”. © problema hoje € que, embora a burguesia produza seus préprios 70 ori era simples identificar 0 delingtiente como inimi podia Samar excrete iidustrtaFde Feserva,'a cujos membros se inci: fara aceitar sua condi de nao prupsietéios disciplinando oe para o trabalho assalariado, primeiro nas chamadas “cases de corregio ede trabalho” , em seguida, nas penitencirias ‘Com o passat do tempo. uma vez. consolidado 0 poder nova classe dominante, aquetes principios garantidores servini- fam mais 4 defesa do que logo foi a dnica classe dominada (a classe nao proprietéria) 2. A eximinologia positivista : ‘Surge, entio, a ctiminologia positivista, que procuraria novos caminhos para legitimar o poder. Por irs dela esté também o modelo do consenso,.embora positivismo recuse expressamente qualquer enguacramento socio- politico, Sua insisténcia numa suposta neutralidade niio pode enganer, porque, apesar de, como filosofia, centralizar toda a autoridade © todo poder na ciéncia, o positvismo come eriminologia no ques- tionou a ordem dada, saiu, e6digo na mao, aperseguiro que desde entio passou a se chamar de delingientes natos, loucos morals personalidades criminosas, desagregados sociais, inadaptados, ete {as definigGes sao tao variadas quanto as proprias variantes do positi- vismo criminolégico), fazendo assim tio pouca ciéncia quanto a {que criticava nos crimindlogos anteriores a essa escola. Considerando anormais ou desviados os assinalados por uma decisio politica (@ Lei), contradizia os postulados de sua pretensao cientffica, wry 8 ee ee a ae n ‘Vemos, portanto, que também o pensamento positivista tem suas origens em uma necessidade politica’”. Em varias, a rigor, de acordo com as épocas: 1. No terreno cognitivo, os iluministas, precursores do positi- vismo, reconheciamn a impoténcia da condigio humana para apre- ender as substincias ocultas & experiéncia imediata. Essa procia- mada incapacidade de descobrir a esséncia por trés da aparéncia, piv6 de toda a filosofia positivista, representava nessit época uma tentativa de igualar todos os homens através da teoria sensorial do conhecimento: todos teriam nascido “tabula rasa”. Substituem-se, assim, as construgées metafisicas, o que Hume chamava de meros “procedimentos verbais”, pelo estudo metédico das necessidades do homem para sua satisfacao coletiva. 2. Umma nova ideologia se abre aos poucos. Foi uma forma de por erdem no caos da revolugao burguesa-e de instaurar um forte poder unificado: acabando com a metafisica revolucionéria, esse poder seria a busca de uma fisica social. 3. Os positivistas apregoavam uma ordem organica. A coope- ago entre os homens nao proviria da ética ntilitévia dos iluministas, que supunham um pacto social para a salvagitarda dos interesses individuais, mas de um verdadeiro “instinto social”. A sociedade, para © positivismo, néo € apenas um instrumento que serve para regular os conilitos, mas uma entidade aut6noma e orgtinica. (Daf as futuras formagées funcionalistas, como veremos, que também tém antecedentes positivistas). A sociedade do futuro, organica e racional, estaré baseada na ciéncia. 4. Para os positivistas, fundamentalmente para Comte, a hu- manidade tem ciclos que vaio do que ele chama de “épocas orgiini- cas” para as “Epocas criticas”. Esses ciclos tém uma ordem que segue uma linha ascendente na direco do progresso. O progresso sera, afinal, a “sociedade positiva”. E esse progresso nao pode alte- rar os caracteres estruturais da vida coletiva, cujo exemplo classico seria a propriedade, F a manutengio do status quo burgués. Toda ‘ordem supe progresso, a menos que seja subversiva. * Leszeck Kolakowski. La philosophie positiviste. Pacis, Denoél- Gauthier, 1976. Foi esse autor que explorou amplamente todas essas fungGes politicas do positivism, 7 Se. positivismo é orciem, 0 positivismo &a negagéo de uma nova, mudanga radical. A revolugdo liberal-burguesadeveria sera tltima. 5. O positivismo resiste expressamente as tentacdes utdpicas da "melhor das sociedades”, cuja perfeigtio proviria da imaginacéo. ‘Seus projetos, dizem, estardo baseados nas propriedades naturais. necesséirias, da vida social. ¥, portanto, resistente & mudanca. 6. Como 0 positivismo é o império do fato, da indugdo. das téonicas de pesquisa, do mensurdvel, do que pode ser convalidado empiricamente, ele no se interroga além da correlagao causal; nao se pergunta 0 porqué. Pois 0 porqué, para o positivismo, nao é vélido interpretativamente, nfo € cientifico, a menos que se recorra 0 fato, A validagio empirica, coisa que em cigncias sociais nao é vidvel fazer. Entretanto, a hist6ria demonstra que o homem sempre se per- guntou peias causas tiltimas, sempre procurou desvendar 0 misié- rio, apreender a esséncia oculta pela aparéncia, sempre buscou & razio que a Escola de Frankfurt chama de “prética”” ou moral — 0 verdadeiramente humano ~, e nfo a razao cienttfic: Essa busca da esséncia, pele contratio, € 0 que se propée o mento dialético-materialista e acriminologia que nele se baseia, © positivismo substitu a teoria do conhecimento por uma da ciéncia, ¢ a critica humanfstico-revolucionéria implfeita em Hegel, ¢ explicita em Marx, pela filosofia naturaifstico-conser- jora de Comte. Reduz a conduta.humana a um provesso objetivo, carente de subjetividade e de intencionalidade; a um fisicalismo anti-humnanista, B substitu’ “a realidade” pelo que é “suscetivel de pesquisanas ciéncias Esta ideologia da desesperanga, como a chamou Brozowski, ao considerae que a ciéncia é a continuiagao da experiéncia animal - pois nfo tem qualquer sentido além da (otalidade das experiéncias sobre as quais se basela~, vé-se obrigada a reconhecer que “a ver~ dade”, “o bem”, “o belo”, por exemplo, nao so elementos da expe- Hiéncia. Assim, pois, “o sofrimento, a morte, as lutas ideolégicas, os antagonismos sociais, os conflitos de valores”, tndo isso foi rejeita do pelo principio de nao verificabilidade desses ferSmenos" % CE Kolakowski, op. cit, de quem extraimos resumidamente esses principios. 13 Pouco se pode falar de neutralidade politica no positivism, A influéncia do positivismo na criminologia foi tio impactante que alguns dizem que a criminologia positvista é a criminot rout court, porque n&o créem que a cléssica, nem a critica, nem a interacionista sejam criminologia, terreno da criminologia, isso servi, como se sabe, para estabelecer critérios de anormalidade, doenga, desvio, patologias sociais ou “desagregacao social”, no caso da chamada delinquéncia edadita conduta desviada. Mesmo as comrentes sociolégicas norte- americanas (ecologista, culturalista, fencionalista) que se conside- 1m um avanco frente 20 positivismo antropobiopsicolégico, a am- {ago do objeto de estado, inchuindo também agora a simples “con- sta desviada”, evidencia uma vontade de controle maior que todos aqueles que se afastam do que € protegido pelosistema. A mesita expresso “conduta iiesviada” tem jf uma conotaco negativa dian- te do que se supoe um bl momento “clinico”, o positivismo incorporou, consequentemente, linguagerm médica para identificar problemas sociais (clfaica crimi- nol6gica, diagndstico, prognGstico, tratamento). Tudo isso serviu para estabelecer, sobre a realidad de classe da populaciio penitencistia, as- sociagdes entre o pobre, o feio, o anormal eo perigoso. E 0.contrério, também: 0 rico, 0 840, 0 belo, 0 inofensivo, livrando-se assim as con- dutas danosas dos poderosos e constituindo-se um esterestipo do delingliente, que pertencia sempre as classes subalternas, 3. Criminologia, direito e sistemas sociopoliticos na América Latina No caso da América Latina, um positivismo spenceriano e, porlanto, racista, serviu para subjugar minorias étnices e também para justificar as relagdes de exploragaio Norte-Sul, ao estabelecer tum suposto vinculo entre subdesenvolvimento, meio geogriifico ¢ delinguéncia®, como 0 demonstrou amplamente Rosa del Olmo. » CF Lola Aniyar de Castro, “El movimiento de ta teoria ctiminol6gica y evaluacién de su estado actual”, in Cuadernos de Politica Criminal, Madri, 1984, ¢ Rosa de! Olmo, América Latina y sui criminologia, Méxi- so, Siplo XXI, 1981, que estudou em profundidade essa fungio legitimadora no continente, 74 ‘A influéncia da criminologia positivista na conformacao de atitudes e valores, como em qualquer luger, foi ampla na América Latina. As pesquisas do Grupo Latino-americano de Criminotogie Cotparada comprovou umn esterestipo bem sedimentacio do del gliente ao estudar a delinglléncia de cotarinho branco. Nesse nivel de consciéncia piblica, o papel legitimador da criminologia tradicional foi importante. Entretanto, pouco se pode dizer da fungdo cumprida pela aplicaco de seus postulados no am- ito penitencirio. A criminologia popularmente reconhecida na Venezuela é acriminologia positivista. Mas sua recepedo na pritica oficial 6 quase inexistente. Normalmente, nos patses periféricos, as formulagGes te6ricas aut6ctones tém pouco impacto na politica off. cial, que desenvolve seus programas, quando existem, sobrea base ldo que se produz nos paises centrais, o que conduziu a uma situa _ gia paradoxal: 0 subdesenvolvimento politico ¢ econémico contri- ‘uindo para o desenvolvimento da crimiinologia livre. Mas isso ndo deixa de ter significagao politica. Pode-se fazer criminologia livre enquanto os governos se mantenharn com uma base de aprovagao suficiente. A liberdade académica e/ou de ex- presto, quando nao tem implicagées perigosas de subversic con- ereta, cumpre uma funcio simbélica de legitimagao. Por outro lado, nna pritica, no apenas as propostas da criminologia que poderia- mos chamar de oficial deixam de ser adotadas como — considera do-se 0 caso da Venezuela ~ 0 controle social formal € exercido praticamente sem que se leve em conta 0 funcionamento preserito ‘patao controle formal estabelecido, através dos operativos polici- ais, a pristio preventiva como pena antecipada, as execuges extra judiciais e a lei de vadios malfeitores. ‘Ante essa escalada do “autoritarismo democritico”, a eri- :minologia estigmatizadora adquire uma relevancia funcional. Ea uta do mau contra o bom. O anjo exterminador justiceiro nfo care: cede legitimagao legal. ‘A situagio € diferente nos pafses latino-americanos erm que se estabeleceram regimes abertamente autoritirios. Nesses, a crimi- nologia convencional se detém em seu desenvolvimento e a legiti- magiio comega a funcionar sobre as bases da necessidade de uma © Ver, a propésite, nossos argumnentos no cap. 2, p. 52. 8 convatidacto da repressia politica através da reforma do direito e de uma teorizagao que bem podemos chamar de criminolégica, embora com nove tipo, conhecida como a doutrina de “seguranea nacional” : Bergalli, Bustos, Garcfa Méndez e Baratta descreveram essa situago no Cone Sul, documentando-a em muitos casos. Por um Jado, os jusistas, postos ao lado do poder, contribuirain para asses- sotar € redigiv as novas instieuigdes represcivas do dissenso: po: out, a judicatura eonvalidou a repressio através da fancdo jurisdicional eviadora do diveito, Eo que Baratta denomina “tendén cia & politizagao dos sistemas penaie"® Bergalli chama a isso de “criminologia do terror”, por consti- tuir uma “importante fonte de recusos conceituais para o treina- mento ¢ a redugdo dos elementos refratirios ao sistema social im- posto, conformada por penitenciaristas e penalistas funcionsrios a. administragéo penitencidria ou do Ministério da Justiea que pre- pararam os instrumentos juridicos do regime”, Por meio deles, equi- paravam-se os deticos por ordem do Poder Executivo aos que a autoridade penitencidia classificava como de “periculosidade mé- xime”, associando-se assim a dissidéncia politica a criminalidade comum. Instituiu-se a pena de morte, criaram-se tribunais espe- ciais para os casos ce subversAo, reprimiram-se manifestagbes po- Uiticas ou sindicais ¢ utilizou-se a jurisdi¢ao militar para civis e para exercer a censura ideolégica. Dessa forma, como diz Bergalli, pro- duziv-se uma recielagem entre 2 criminologia positivista e 0 direito penal autoritério. Se assim, nfo apenas parece correta a tese de Garefa Méndez, de que nos paises autoritérios 0 desenvoivimento © Alessandro Baratta. “Viejas y nuevas estrategias de legitimacin 4 °. ra legias de legitimacién del derecho penal”, mimeo, Conferéncia proferida no Instituto de Criminotogia da Universidade es Zulia, setembro de 1983, Ver também Robesto Bergall ‘La estructura judicial en Amética Latina”, na tradugto eastethana de Geors, 2 esta . le Georg Rusche © Otto Kirchheimer, Pena y estructura social, Bogots, Temis, 1984: juan Bustos, “Estructura juridica y Estado en Amética Latina”, thidems Emilio Garcia Méndez, “Autoritarismo, institueionalizacién y contro! social en el cono sur latino-americano”,-tese de doutorado, Saarbiticken, 1983; Bers ‘Reflexiones sobre el control social en América Latina”, posficio & Massimn Pavarini, Control y dominacién, México, Siglo XXi, 1983 76 do direito penal se fez em detrimento da criininologia, mas também gue ambas as instfincias de controle (dlireito ¢ ctiminotogia) se atti~ culavam bem paraexereé-to. Hé pouca documentacio a esse respeito sobre os demais pai- ses que vivem sob regime ditatorial, nos quais 0 papel da criminologin parece ser pas: . apenas referencial, salvo ne que se felaciona ao exerefcio da doutrina de segurance nacional ¢ da atili- zagSo de tribunais especiaie que conduzem militarizagtio do justica, em certos paises centro-americanos, Na Guatemala foram feitas algumas tentativas de institucionalizacdo da repressto de dissidén- cia politica, com a incluso, no texto constitucional, de disposicbes que legalizam as Patrathas de Auto-defesa Civil (PAC) e as Corde: ages Instituicionais (CI), instrumentos que pSem nas mies do exército as atividades do setor péiblico e das instituigdes nio-gover- namentais e privadas « ele vinculadas®, questionando-se assim, de antemao, tanto a validade da nova Constituigao elaborada pela As- sembléia Constituinte como a autonomia do govemo civil que venia a ser eleito. Algumas restricSes similares constavam também do Pacto do Clube Navai, anterior Bs recentes efeigdes uruguaias. Eni termos gerais, o maior controle social pode ser verificado nesses casos de maneira paraiela, pata no dizer subterranea, através dos esquadrdes da morte, dos desaparecimentos e das torturas. ‘Na Guatemala, a criminologis praticamente inexiste, ¢ as violagdes aos direitos humanos sio constatadas também de mode. extremo dentro das prises, onde os detentos so torturados & eiiminados™. Em El Salvador, Atilio Ramirez Amaya denuncia a coexistén- cia de cinco sistemas penais: 1. O sistema penal comum, para os delingtientes comuns. que estariam em melhores condigées de ga~ rantia legal e de sistema penitencidrio; 2. O sistema penal para pro- cessados politicos; 3. © sistema penal para os desaparecidos; 4. 0 sistema penal da imunidade, e 5. O sistema penal para os refugia- © Cf, Boletisn Informative da Comissio de Direitos Humanos da Gua- temala, ano 3, n° 5 € 6, 1985. © Cf. Humberto Estrada, “Ei delite y et delincuente en el derecho penal guatemalteco, Situacién Actual”, comunicagio apresentada no 3° En- contro de Criminélogos Criticos, Mandgua, outubro de 1985, dos. Alguns desses tltimos stio para-legais, Mas o segundo est legalizado na “Lei de Procedimentos Penais aplicéveis quando da suspensio das garantias constitucionais”, que passou a vigorarcom co Decreto 50, 1a qual a prova principal é a confissao extrajudicial, ¢ em que os réus no tém defesa ¢ bastam os informes do Ministério da Defesa ou do Interior para qualificar certas associagdes como subversivasS, Se acrescentamos a isso que Ramirez Amaya, tnico cri- mindiogo de El Salvador, esté exilado, verificamos que o direito e as priticas repressivas assumiram totalmente a fangio controladora nesse pais. Sobre as faneSes da criminologia nos patses socialistas, qual- quer afirmacio definitiva deverd ser confrontada com aexperiéncia dos que vivem nesse sistema. Em relagao a Cuba, a partirda revisio das publicagées a que temos acesso € da observagio de algumas instituigdes que conhecemos pessoalmente, poderiamos adiantar algumas opinives, condicionadas, bem entendido, a uma discussio mais profunda, Em primeiro lugar, parece-nos que a legitimagao do sistema se produz por dois fatores que Ihe s4o inerentes: a explicita protecdo de interesses generalizéveis ¢ a ampia consulta popular de que sto ‘objeto os textos normativos. O“referente material do delito” parece encontrar af uma sango definitiva. Por outro lado, a afirmagio de que a legalidade socialista é “um dos meios para a construgao do soctalismo ¢ 0 principio de organizagfo e atividade dos érgaos do Estado”, e que € de obrigatéria observancia e aplicagao desses e por esses érgios, poe a tarefa da legitimacio na propria lei e na sua necessiria¢ incondicional aplicacao. Assim, o papel legitimador da dualidade simbélica/fética dos corpos normativos das democracias burguesas (que converte em programiticas no apenas as disposi- ‘Bes legais protetoras dos interesses sociais, mas também as que protegem interesses individuais) nao esta presente af, A fungo ideol6gica, em sua acepgio de “falsa consciéncia”, & suplantada pela fungao da ideologia em seu sentido de “projeto polf- SCE. Amaya, Avilez, Ramfsez, Reyes,"El sistema y Ia justicia penal en El Salvador", apresentado no 3° Encontro de Crimindlogos Crfticos, Mand- gua, outubro de 1985. 78 | | | i | tico”. Com efeito, a Constituigio cubane prociama clara ¢ express mente: 1, Que “o Estado socialista assegurs a ideoiogia eas normas de convivenciae de consulta baseadas numa sociedade livre da ex- ploragio do homem pelo homer” (art. 8); 2. Que “a Constimigho = as leis do Estado socialista sto express juridica das relagdes socia~ listas de produgdo e dos interesses da vontade do povo trabalho- dot”; 3. Que “ liberdade de discussio, 0 exereicio da critica e da autocrftica ea subordinagdo da minoriaa maioria vigoramtem todos 0s drgdos estatais colegiados” (art, 66). E também, 4, “As mnassas populares controlam a atividade dos Srgaos esiatais” (bidem) Nao hé ocultagfo, portanto, nem dos fins nem das fontes do exercicio do poder. Os direitos (sociais ou individuais) sao “direi- 108 legais” e no de inspiragiio jusnaturalista, anteriores ao Estado & a0 direito. Jsso toma talvez necesséria a utilizagdo de construgdes crimino- \6gicas sobre como so os maus € como so as bons. A vontade expressa do sistema reclama a ressocializagto. O explorador é um adio. O Sadrdo € um explorador. A ressocializagtio é exercida atea~ vés da conscientizagio politics. A prevengio também, através do aperfeigoamento da qualidade de vida e de corregzo das falas do Estado no seu dever de proporcionar condigées favordveis a0 de- senvolvimento de uma personalidade socializada, A criminologia é ais preventiva, organizacional e ressocializadora do que tedrica ‘Uma tendéncia ao causal-explicativo, mas apenas no terreno socio- l6gico, parece entretanto estar presente. A consulta prolongada leva a que a legislagio seja repressive ‘mas, também, propicia o entendimento do problema delitive como um instrumento para manter 0 consenso através do castigo ¢ do exereicio da democracia popular. O controle social, formal e infor~ nal pé e pés-delitivo, €exercido também através das organizagées de massa, o que garante um baixo indice de reincidéncia, Atese do “residuo” para explicar a conduta individualista delitiva tera cada vez menos aceitagio. A énfase, de todos os modos, € posta sobre a reeducagdo, que consiste expressamente na criagio de uma cons- {éncia social see) alto dice de Fegistco deli muito menor, Sfiretat- to, do que nos paises com outra estratura politica ~ resulta do 79 alto nfimero de demincias, isto é, de uma cifra negra minima. O que quer dizer que a comunidade percebe qualquer delingiiente como seu inimigo ¢ busca o castigo ou a reeducagiic dele a qual- quer custo. No socialismo, portanto, as eartas esto na mesa, As regras do jogo, muito claras, Nao hé engano a denunciar. Nao hé discurso aparente e realidade subterrinea. Nao se proclama a protegio de todos. Fa ditadura do proletariado. Nao se pretende, como nas Gemocracias burguesas, um regime plural Na Nicarégua, a criminologia te6rica desaparece para dar lugar 4s reformas institucionais € sociais e 4 fungao controladora da delinqUéncia por parte das organizagbes de base“, © CE. Feméndez Bultés, “La legalidad socialisia con Ja construceién de ta nueva sociedad”, in 1° Simpésio Cientffico sobre a Politica e a Ideologia em suas Relagées com o Direito, Havana, Ministério de Justiga, 1984; Marcia Diego Vézquez, “El papel de} derecho en Ia formacién de ta conciencia socialista”, ibidem; O. Castanedo ¢ Julio Cazén, “El tratamiento a menores con transtornos de conducta”, ibidem; “La cuestién criminal en América Latina", comunicagio apresentada no 3° Encontro de Criminélogos Crt cos, Manfigua, outubro de 1985; José Galbe Loshuertos, “El trénsito de la criminologfa burguesa a la socialista”, in Revista Juridica, Havana, Minis- ‘ério da Justiga, ano fi, n° 4, 1984; Juan Vegn Vega, “Bi concepto sociatista del delito”, ibid, e “La proteccién juridico-penal en el socialismo”, Havana, ed. de Citneias Sociais, 1983; A. Cejas Sanchez, “Nuevo enfogue de ta criminologia”, in Revista Juridica 6, ano Hi, 1985; José Franciseo Martinez Rincones, “E! derecho penal cubano”, mimeo, 1981; Caridad Navatret= Calderon, “Actualidad del enfogue criminolégico de ta problemética de las transgresiones de Ia ley entte Jos menores de edad. Consideraciones acer- ca de la metodologia e metédica de Ia investigacién eriminolégiea de la conducta y la personalidad de los menores de edad transgresores de ta Jey”, in 1° Simpésio Cientifico... op. cit: Alvan Sénchez Garcia, “Algunas

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