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A experiência guerrilheira: Argélia e Vietnã

Por Silvia Oroz


Segundo a Enciclopédia das Guerras e Revoluções do Século XX o termo guerrilha deriva da
palavra espanhola guerrilla, diminutivo de guerra usado para identificar a luta armada empreendida
por pequenos grupos autônomos formados irregularmente para enfrentar forças militares mais
poderosas. Mediante ataques imprevistos, emboscadas, rápidos combates e utilizando-se de grande
mobilidade, os guerrilheiros procuram desgastar o adversário e progressivamente aumentar seu
potencial militar, incorporando novos contingentes unidos pela mesma ideologia. Em uma segunda
etapa, a guerrilha luta pela dominação dos territórios tomados do inimigo. No entanto, na história
contemporânea, o marco para se pensar guerrilha tal como seria difundida ao longo do século XX
foi, efetivamente, a experiência espanhola diante das forças napoleônicas: os franceses sofreram
perdas irreparáveis diante de grupos formados nas zonas rurais, embora nem todos os guerrilheiros
tivessem profissões agrárias.
A guerra de guerrilhas foi praticada também pelos argelinos e vietnamitas na sua luta pela
independência, no contexto dos grandes movimentos de libertação nacional após a II Guerra
Mundial. A descolonização afro-asiática se insere na decadência dos impérios britânico e francês.
Com o fracasso na manutenção do status colonial na Indochina tinha perdido o Vietnã em 1954, a
França não se mostrava disposta a outorgar qualquer autonomia política aos argelinos. O governo
francês estava intransigente quanto a conceder qualquer tipo de liberdade à Argélia, o que resultou
numa guerra brutal, uma das mais sangrentas do século XX.
A Batalha de Argel retrata a luta argelina com maestria. O diretor italiano Gillo Pontecorvo fez um
épico do povo argelino na sua luta contra os franceses, que são mostrados sem “civilização”
alguma. Nesse sentido, o filósofo francês Paul Nizan diz a respeito do “progresso” europeu:
Os europeus só levam em conta a terra conhecida, medida, cadastrada. Em toda parte se é roubado
como em um bosque deserto. Os paraísos são empresas comerciais de cobalto, de amendoim, de
borracha, de coco; os selvagens virtuosos são clientes e escravos. Os missionários de todos os
deuses brancos puseram-se a falar àqueles idólatras, àqueles fetichistas sobre Lutero ou sobre a
virgem de Lourdes, a lhes revelar as roupas íntimas de Esders. Com a eucaristia, chegou também o
trabalho forçado da ferrovia Brazaville-Oceano. Assim, os mesmos de quem nossos pais esperavam
a revelação de segredos são reduzidos ao silêncio. Tudo corre bem: a prece e o absinto entram no
jogo, a curva dos valores coloniais sobe para os bolsos civilizados. Aqueles que teimam, apesar dos
avisos, em ir ao Taiti e às ilhas Marquesas, ali encontram os missionários (tão bons para os leprosos
e as mulheres sifilíticas), os traficantes gregos de dentes cariados e os suboficiais alcoólatras que
sonham ser policiais em Saigon depois da aposentadoria.
Na perspectiva dessa mostra, de ver o cinema como uma fonte histórica, o discurso fílmico de A
Batalha de Argel é suscetível de produzir sentido: um sentido estético, pois estamos falando de uma
colocação desse tipo. Portanto, o sentido é relativo; como é relativa a fonte, pois depende do uso e
produção de sua funcionalidade.
O cinema vietnamita, por sua vez, tem uma prática diferente, nas suas formas de realização e de
recepção. Junto das novas formas culturais gestadas durante uma guerra de 30 anos, destaca-se o
cinema como um maravilhoso meio de comunicação. Um cinema que em seu planejamento nada
tem a ver com os critérios comerciais e culturais de um cinema “industrial”. Como referência,
lembremos que em 1964 havia 30 mil os norte-americanos presentes no Vietnã; em 1965, eram 180
mil prontos para entrar em ação. Em agosto do mesmo ano, debuta o napalm: são duas Hiroshimas
por semana. Antes de 1967, a guerra já se estendia a todo o território vietnamita. Perante esse
panorama surge uma interrogação: Como se desenvolveu a cinematografia vietnamita?
No Vietnã, a importância do cinema foi compreendida rapidamente, tendo este sido usado em
campanhas de alfabetização, de saúde e sobre como utilizar a bicicleta na selva (elemento
fundamental para a guerra), entre outras. Geralmente filmadas nas zonas de batalha, nessas
campanhas, os câmeras eram cineastas e soldados, e a revelação, feita em plena selva (já que
estavam no front), com tanques de revelação improvisados e o material posto para secar em varais.
Nesse sentido, foi empregado o mesmo processo de manipulação do material utilizado por Silvinho
Santos na Amazônia, a partir dos anos 1910, cabendo observar que as condições do solo na
Amazônia e no Vietnã são parecidas: trata-se de regiões de selva e umidade excessiva. É
interessante destacar que as mulheres exerciam a mesma atividade que os homens: Thu Van rodou
um sem número de películas, e, acabada a guerra, ajudou na formação do Instituto de Cinema. Esses
câmeras eram permanentemente destacados para trabalharem nas chamadas zonas neutras de
ataques.
A recepção dos filmes era incomum. Às vezes, exibia-se um filme para apenas uma pessoa, que,
então, convertia-se num agente ORAL ao contar para outras pessoas o filme a que assistira, com o
objetivo de ensinar-lhes o conteúdo da película. Esse caráter diferenciado ampliou as possibilidades
do cinema; no caso, um cinema DE e PELA guerra. Assim, pela primeira vez, a tecnologia
cinematográfica esteve majoritariamente inserida numa contenda.
Tanto a guerra da Argélia como a do Vietnã, das contendas anticoloniais, ganhas pelos respectivos
povos subestimados, representam, como diria André Breton, “os cossacos saciando a sede de seus
cavalos no chafariz da Place de La Concorde”.
SILVIA OROZ
Historiadora, professora e pesquisadora. Publicou vários livros, entre os quais, Melodrama: o
Cinema de Lágrimas da América Latina, adaptado por Nelson Pereira dos Santos para o filme
comemorativo dos 100 anos do cinema. Foi curadora da Cinemateca do MAM e professora de pós-
graduação da Universidade de Brasília (UNB). Participa de várias pesquisas e eventos sobre cinema
no Brasil e na América Latina, sendo também autora de vários outros textos sobre o tema.

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