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Introdugio Caveat Lector Eugene Peterson Para os cristdos, a leitura ¢ o estudo das Sagradas Escrituras como nossa autoridade, em todas as questdes da fé ¢ da pratica, é uma atividade fundamental e essencial, ¢ nao um acréscimo opcional. Mas no nosso mundo contemporaneo, com sua moda proliferante de “espititualidade”, cada vez mais pessoas estao escolhendo outras autoridades e guias para a salvagao. Por mais atualizadas ¢ atraentes que muitas dessas opgdcs paregam, nos, os cristaos, as rejcitamos. Recusamos dar corda em nés mesmos, pata produzirmos estados visionatios de éxtase, a fim de entrarmos em contato com Deus. Recu- samos 0 empreendimento de tarefas herctleas de heroismo moral, a fim de descobrirmos as potencialidades divinas dentro de nés. Recusamos afastar-nos para uma caverna nas montanhas e esvaziar-nos de todos 08 pensamentos, sentimentos e desejos, a fim de que nada mais exista, para impedir nosso acesso imediato 4 Realidade. Nés, os cristios, As vezes ficamos impressionados com essas pirotécnicas espirituais ¢, ocasionalmente, até mesmo exptessamos nossas emogoes favoraveis a respeito. Mas nossos guias mais sbios nao nos encorajam a seguir esse caminho. Por contraste com as espiritualidades mais espetaculares, nossa via é pedestre, ou seja, literalmente colocar um pé diante do outro, ao seguirmos Jesus. Pata sabermos quem é Jesus, pata onde ele vai, e como andarmos nos seus passos, pegamos um livro, o livro supremo, ¢ o lemos: as Sagradas Escrituras. Historicamente, os crist&os estao tio preocupados com 0 como lermos a Biblia quanto com o fato de a lermos. A comunidade crista, como um todo, nunca considerou ser suficiente colocar uma Biblia nas mos de uma pessoa, com a ordem de lé-la. Isso seria tio tolo quanto entregar as chaves de um automovel a uma adolescente, oferecer-Ihe uma BMW c dizer: “Saia ditigindo”. fi igualmente perigoso. O perigo é que, & tendo em mfos uma pega de tecnologia, impomos nela nossa vontade ignorante ou destrutiva. A imprensa, afinal de contas, é tecnologia. Temos a Palavra de Deus em nossas maos — nossas maos. Agora podemos lidar com ela. E bem facil suapormos que temos o controle dela, que podemos maneja-la, que podemos usé-la ¢ aplica-la. Existe mais num automével BMW do que a tecnologia da mecanica. E existe mais na Biblia do que a tecnologia da imprensa. [im torno da tecnologia mecfnica da BMW ha um mundo de gravidade e de inércia, de valores e de velocidade, de superficies e de obstruges, de carros Chevrolet e Ford, de regras do transito, da policia, de outros condutores de veiculos, ¢ de neve, gelo e chuva. O automével envolve muito mais do que seu cambio de marchas € seu volante. Dirigir um automével envolve muito mais do que colocar a chave na pattida ¢ pisar no acelerador. Os que nao sabem disso, nao demoram muito para morrer ou ficar aleijados. E aqueles que nao conhecem o mundo da Biblia sio, da mesma forma, perigosos para si mesmos € pata o proximo. Portanto, 4 medida que distribuimos Biblias e convidamos as pe: dizemos: “Caveat lector ~ acautele-se leitor”. Os homens e mulheres que circulam na praga para comprar legumes oas a lé-las, também e carne, tapetes ¢ saias, cavalos ¢ automéveis, sao advertidos pelos seus pais € avs mais experientes: “Caveat emptor: acautele-se comprador”. A praga nao é aquilo que parece ser. Esta acontecendo mais do que uma simples troca de mercadorias. Os vendedores e os compradores nao operam a partir da mesma disposigio mental. Raramente sfo idénticas as suas intengGes. Acautele-se comprador. EB que se acautele também o leitor. Nao basta ter letras impressas numa pagina e saber fazer a distingao entre os substantivos ¢ os verbos. Ler a Biblia pode provocar-lhe muitos problemas. Poucas coisas sfio mais importantes na comunidade ctist do que ler as Escrituras corretamente. As Santas Escrituras tém imensa autoridade. Lidas incorretamente po- dem dar origem a guerras, legitimizar abusos, sancionar o 6dio, cultivar aarrogancia. Nao somente podem fazer isso, como também tém feito... fazem. Esse € 0 perigo existente. Portanto, caveat fector—acautele-se leitor. Leia, mas leia corretamente. O advétbio corretamente nesse contexto nfo somente significa com exatidao; significa com coragao certo, e também com mente certa, 0 que, na linguagem dos esctitores biblicos, significa: com retiddo. Leia g as Escrituras, no para aprender alguma coisa que lhe dara vantagem sobre seu vizinho que nao lé, nem para receber uma exaltagao emocional ocasional, mas a fim de viver para a gloria de Deus. E essencial que reunamos todas as ajudas disponiveis, para adqui: mos habilidades na leitura das Escrituras, habilidades que nos orientam na mente e no coragio da Biblia, além de também nas palavras da Biblia, habilidades que integram mentes afiadas e coragdes devotos, que insistem que nao pode existir 0 entendimento das Escrituras que nao seja, a0 mesmo tempo, vivé-lo na pratica; que nao se interessam pela exegese que nao seja, ao mesmo tempo, a santa obediéncia. Os ensaios nesse volume representam algumas das melhores ajudas que existem 4 disposigao daqueles que desejam adquirir habilidades na leitura das Escrituras. Os escritores desses ensaios, trabalhando juntos na comunidade de oragao ¢ de erudigio que é o Regent College, so mestres nisso. Nao somente amam as Escrituras ¢ as vivem, mas também sao guias sabios, dispostos a ajudar a todos nos, enquanto prosseguimos na nossa busca vitalicia de entender e viver o que lemos em nossas Biblias. 1 A historia como contexto para a Interpretacao Gordon D. Fee ACONTECEU FAZ MUITOS ANOS. Fiquei acamado em casa num domingo de manha passando bastante mal. Sem poder ir 4 igreja, resolvi substituir 0 culto na igreja por outro que podia escutar na esta- ao de radio WMBI em Chicago. Um pregador muito conhecido estava expondo 1Corintios 3.16-17. Era veemente e eloquente, mas estava entendendo erroneamente o texto. O templo, dizia ele ao seu auditorio vivo e radiofénico, referia-se ao crente individual, especialmente ao seu corpo fisico, E era melhor sermos santos, ele exortava, ou Deus nos destruiria. Desliguei 0 radio ¢ nao sarei. No ano seguinte, no mesmo lugar, na mesma estagio de radio, um pregador diferente, mas igualmente conhecido, estava fazendo uma exposicio de 1Corintios 3.10-15. Ele também aplicou a passagem ao cristao individual, a respeito de como edificamos a nossa vida no alicerce de Cristo. Embora muita coisa que disse fosse excelente e verdadeira, nfo tratou, na realidade, do assunto de que Paulo estava falando nesse trecho biblico. Se € assim que pregadores biblicos famosos lidam com o texto biblico — perguntei a mim mesmo — que esperanga existe para o.crente comum, que tem bem pouco tempo para o estudo, ¢ que ouve que os textos significam algo bem diferente daquilo que o proprio Paulo estava dizendo aos corintios? Quantos membros do povo de Deus, longe de celebrarem devidamente a Ceia do Senhor, aplicaram 1Corintios 11.29 (na KJV) a si, de tal maneira que a mesa da Santa Ceia ficou sendo uma ocasitio de profunda introspeccio, solenidade e culpa pesada! Todas essas interpretagdes deixam de levar a historia a sério como o ptimeiro contexto apropriado para a interpretagao. Da perspectiva do estudioso biblico, o primcito passo em ditegio 4 interpretagao valida das Escrituras ¢ uma investigagao historica, chamada exegese, que significa a determinacao do significado originalmente pretendido de um texto. “A 12 historia como contexto da interpretagao” nao se refere 4 nossa propria hist6ria, mas ao contexto original dos prdprios textos biblicos. A tarefa da interpretagao é nada menos do que ligar o abismo histérico — e, portanto, cultural — entre eles e nés. E assim que determinamos 0 que e como Deus falou a eles, c como aquela mesma palavra fala conosco como uma palavra cterna. exatamente porque as nossas préprias histérias, tanto pessoais quanto culturais, siio tao diferentes daquelas dos escritores das Sagra- das Escrituras que devemos ocupat-nos com o processo interpretativo, chamado de hermenéutica, que se refere 4 tarefa global da interpretacao, inclusive a exegese e a correlagao ¢ aplicagao da exegese ao pensamento teoldgico e 4 vida crista. Para 0 estudioso biblico, a hermenéutica significa aquele tipo de interpretagdo que considera as Escrituras como revelagao divina, ¢ que é, portanto, a base para a teologia, vida e comportamento cristios. Con- cebida nesses termos, a hermenéutica procura aquele “sentido claro” das Esctituras, inspirado pelo Espirito ¢ entendido com a ajuda do Espirito, que é igualmente aplicavel e obrigatério como a palavra de Deus para todas as pessoas, em todos os tempos e em todos os contextos. Nao depreciamos, com isso, 0 tipo de leitura biblica devocional que a maioria das pessoas pratica. Lendo com corag4o e mente abertos, confiam no Espirito Santo para falar diretamente do texto das Escrituras para a sua propria vida. Uma pessoa que esta passando por uma dificul- dade pessoal, pode estar lendo Isaias 45 e escutar num sentido pessoal a promessa que Deus fez a Israel (no sentido de trazer a nagio de volta do cativeiro): “Eu irei adiante de vocé ¢ aplainarei montes”. Semelhantes experiéncias séo comuns entre a maioria das pessoas que leem a Biblia em espirito de oragao, e estao dentro do poder inerente das Escrituras. Como tais momentos s4o muito pessoais, ninguém argumentaria de modo razoavel que esse significado do texto é universalmente aplicavel a todos os demais crentes, embora cada um tenha, por certo, semelhantes experiéncias da palavra viva de Deus em comum. Mas 0 estudo das Es- crituras, mediante o qual o povo de Deus cresce no entendimento e cada vez mais na semelhanga de Cristo, exige que nos ocupemos na pesquisa historica chamada exegese. A necessidade A necessidade da boa exegese pode set ilustrada, em ptimeiro lugar, por uma série de exemplos, como aqueles que foram acima anotados, os 13, quais resultam de interpretarmos textos biblicos 4 luz da nossa propria experiéncia, cultura, preconceito teolégico ou, simplesmente, a luz de informagao errénea. Masa necessidade também surge de fatores muito mais significativos do que a interpretagao inadequada ou simplesmente ma. Essencialmente, a necessidade € o resultado de duas realidades: (1) 0 leitor também é, de fato, intérprete daquilo que lé; e (2) a natureza das Escrituras. Em primeiro lugar, nao é possivel ler simplesmente as Esctituras sem interpretarmos, a medida que lemos. Qualquer pessoa que depende de uma tradugao em portugués para ler a Biblia ja é dependente da interpretagio dos tradutores. Note, por exemplo, duas interpretagdes diferentes de 1Corintios 7.21. A NVI diz: “Foi vocé chamado sendo escravo? Nao se incomode com isso. Mas, se vocé puder conseguir a liberdade, consiga-a”. Mas existem estudiosos do NT que seguem a ideia de Goodspeed, e entendem que o texto significa exatamente 0 oposto: “Mas ainda se vocé conseguir conquistar a sua liberdade, aproveite ao maximo a sua condigio presente”. As duas tradugdes baseiam-se no mesmo texto grego! Mas nao é culpa dos tradutores quando os leitores também inter- pretam o que leem. Os leitores chegam ao texto levando consigo uma sacola cheia de pressuposigées culturais e lexicais, muitas vezes sem terem consciéncia disso. Pergunte a si mesmo como vocé reagitia, por exemplo, diante dessas trés tradugdes da segunda petgunta de Paulo em 1Corintios 1.20: “Onde esta 0 escriba?” (ARA); “Onde est 0 erudito?” (VD); “Onde esta o perito na lei?” (Léxico de Bauer). Paulo esta desafi- ando retoricamente 0 rabino judaico, o perito na lei judaica. A pessoa com algum embasamento biblico talvez consiga captar esse fato, ao ler a ARA ou o Bauer, mas 0 leitor sem prepato pode deixar totalmente de captar o que Paulo quer ensinar, porque cada tradugao pode significar algo bem diferente para cle. Portanto, a primeira razio por que devemos aprender a realizar a exegese é que, como leitores, ja somos intérpretes das Escrituras, quer reconhegamos, quer nao. O que realmente esté em jogo é se interpreta mos bem. A segunda razio por que devemos aprender a realizar a exegese, e de modo bem feito, relaciona-se com nossa convicgio quanto a na- tureza das Escrituras. Os cristios acreditam, como cristdos — ou, pelo menos, a ortodoxia histérica acredita — que a Biblia é a Palavra de Deus 14 outorgada em palavras humanas, na historia. Isto é: assim como cremos, que nosso Salvador é, a0 mesmo tempo, tanto humano quanto divino, assim também acreditamos que a Escritura é a0 mesmo tempo, humana € divina. Por ser divina, ¢ por crer que a Biblia é a Palavra de Deus, cabe a nés conhecer o seu significado e obedecer. Mas como a palavra eterna de Deus foi outorgada em palavras humanas na histéria, aquelas proprias palavras foram condicionadas pela cultura, contexto ¢ padrdes linguisticos do autor, A palavra eterna de Deus foi falada em momentos historicamente particulares. Nao queriamos que fosse diferente. O Livro de Mérmon foi, con- forme o relato, escrito em placas de ouro numa lingua inexistente (0 hierdglifo alfabético de Smith é totalmente impossivel de ser), e exigiu 6culos magicos para ser traduzido para o inglés elizabetano, com mais de mil erros gramaticais. De modo bem conveniente, as placas foram levadas embora por um anjo, para impedir que qualquer olho humano as visse ou investigasse. Semelhante livto magico dificilmente podetia ter provindo do Deus eterno que se revelou na nossa histéria humana, tanto nas Escrituras quanto na pessoa do seu Filho. De modo bem contrastante, © nosso Livro vive e respira historia humana real — ¢ esta aberto pata ser investigado por todos. Mas exatamente porque a Biblia, inspirada pelo proprio Deus, 0 Espirito Santo, também respira humanidade genuina, devemos aprender ainterpreta-la. Como seus autores humanos falavam seu proprio idioma a partir da sua propria cultura e dentro da sua propria historia, devemos voltar até eles ¢ escutar o que cles queriam dizer dentro dos seus prdprios contextos hist6ricos - se é para escutarmos a palavra do Deus vivo — tanto a cles quanto a nds. Exatamente porque Deus dirigiu a cles sua palavra eterna dentro da prépria historia especifica deles, podemos nos revestit de grande confianga de que ele falaré repetidas vezes, a partir daquele contexto para vidas em todas as partes do globo terrestre. Nossos antecessores As vezes tem-se atgumentado que semelhante conceito da exegese é muito moderno e, portanto, nem todas as pessoas no passado podem ter participado de semelhante interpretagio do texto biblico. Mas este é um modo inadequado de entender a histéria da interpretagio. E verdade que no decurso desses tiltimos duzentos anos, temos tido melhor acesso as ferramentas histéricas que muitas vezes nos capaci- tam a nos aproximar melhor da intengo original do autor. E também 1S verdade que 0 “significado claro do texto” faz parte da interpretagio biblica, no decurso da historia da Igreja. Esse € mais especialmente o caso da chamada escola antioquéia (inclusive gigantes tais como Joao Criséstomo [m. 407] e Teodoro de Mopsuéstia [m. 428}) e da Reforma, especialmente as exposigdes de Jotio Calvino. Por outro lado, esse conceito da exegese também era uma das maneiras de interpretar 0 texto (juntamente com seu sentido espiritual, analégico ou alegorico), ainda que nao fosse a mais importante, atticu- lada na chamada escola alexandrina pelo seu intérprete quintessencial Origenes (m. 254). Nao é que Origenes negligenciasse o significado do texto no seu contexto histérico, nem que o desrespeitasse; revelava-se bem perito em entender assim 0 texto quando contribufa para os seus ptopositos. Origenes—e boa parte da igreja que se seguiu a ele—sustentava que cada palavra e cada pormenor das Esctituras deve ter “significado” para o crente. Por isso, ele ¢ os demais festejavam com coisas tais como as patabolas. Aprenderam a tratar as narrativas historicas da mesma manceita, como se fossem paribolas. Fora disso, a narrativa é simplesmente tempo passado prosaico com muita coisa que ou era itrelevante, ou (especial- mente no Antigo Testamento) cheio de pormenores constrangedores. Nesse sentido, Origenes nos conta que Jesus desceu a Cafarnaum (Jo 2.12), que significa “campo de consolagio”, porque depois da festa em Cané € 0 incidente do vinho precisava consolar tanto sua propria alma quanto a dos seus discipulos. A grande diferenga entre a igreja antiga e nds, nao é, portanto, que nds descobrimos a historia, ao passo que eles, nao. Ei verdade (1) que eles estavam muito mais dispostos do que nés a descobrir outros significados (“mais profundos” ou “escondidos”) no texto quando o “significado simples” nao hes agradava; (2) insistimos que o significado, universal- mente aplicavel ao texto, relaciona-se primariamente com seu significado originalmente pretendido; e (3) temos mais vantagens do que eles em termos de acesso a ferramentas e recursos para a realizagio dessa tarefa. O método Os componentes da boa exegese s&o contexto ¢ contetido. As perguntas do contexto, as perguntas do tipo por qué? dividem-se em trés partes. Primeiro, ha a questo do género — ou seja: que tipo de literatura estou interpretando? Faz uma diferenga consideravel em termos de intengao original saber se estamos lendo narrativa, poesia, profecia, apocaliptica ou epistolas. Cada um desses géneros possui suas proprias “tegras” especiais no tocante a como e€ por que foi composto. 16 Em segundo lugar, devemos determinar 0 contexto histérico — isto é, © pano de fundo histérico de determinado documento. Incluidos ai temos o contexto histérico-cultural em geral (e.g. a natureza da ci- dade de Cotinto e dos seus habitantes) bem como a situagio histérica especifica 4 qual Paulo se dirige. Devemos perguntar: Como devemos. considera a Epistola como um todo? A chave é petguntar, ainda: O que esta acontecendo na igreja de Corinto e qual ¢ 0 estado presente do seu relacionamento com Paulo? Terceiro: para cada palavra e frase, deve-se estar alerta quanto ao contexto literario que depende do significado da passagem em relagio as frases e paragrafos imediatamente em seu redor. O que significa essa passagem no seu contexto? Por que Paulo disse isso a essa altura do seu argumento? Por que o salmista inclui ¢ssas palavras de lamentagao ou esse clamor por justiga, exatamente nesse momento da sua orag’o ou louvor? As perguntas do contetido sao basicamente do tipo o qué? Relacio- nam-se com os pormenores do texto ¢ incluem questdes tais como 0 texto original (quais palavras Paulo realmente escreveu na sua Epistola?), alexicografia (o que essas palavras significam nesse contexto especifico?), a gramatica (como essas palavras se relacionam umas com as outras?), e o pano de fundo histérico (que tipos de alusdes ou pressuposigdes histéricas existem por tras dessas palavras?). Desta forma, a exegese, a investigagao historica da intengao original do autor, pode ser esbogada da seguinte maneira: I. Perguntas de contexto A. Género B, Contexto histérico 1. Geral 2. Especifico C. Contexto literario IL. Perguntas de contetido A. Texto original B. Significado das palavras C. Gramatica D. Pano de fundo histérico Com pratica, podemos aprender a responder muito bem as pergun- tas do contexto. Conhecimentos das linguas originais, entretanto, sio necessétios para respondermos a muitas das perguntas de contetido, e 7 devemos aprender a consultar recursos de nivel mais alto daqueles que tém dominio dessas Iinguas. A pratica A fim de vermos como tudo isso funciona operacionalmente ¢ como ilustragio tanto da necessidade quanto da pratica, passaremos por esse processo no caso de 1Corintios, ¢ examinaremos finalmente com mais pormenores, duas passagens em especial: 3.10-17 € 11.17-34 (especialmente o v. 29). Género. Infelizmente, as nossas Biblias foram formatadas em versiculos, ¢ [em muitos casos] cada versiculo é seu proprio parigrafo. Um dos resultados dessa convengio é dat as pessoas a impressdo de que todos os versiculos podem subsistir sozinhos — de modo bem semelhante a provérbios individuais. Cada versiculo seria sua propria revelagao da verdade, bem a parte do seu contexto ¢ da intengao do autor inspirado. Essa observagio € especialmente relevante pata a questio do género onde o sentido da narrativa ou da poesia, por exemplo, é totalmente destruido pela versificagao. Existe um mundo de diferenga entre a poesia ¢ a prosa, entre a narrativa e a imperativa, entre a apocaliptica e 0 apétema, entre um hino dirigido a Deus € um oraculo profético dirigido ao seu povo. Nao podemos realmente tratar a angastia de uma lamentagao pessoal, como se Deus estivesse falando e revelando verdades teoldgicas eternas. Nessa questo, ver especialmente Gordon D. Fee e Douglas Stuart: Entendes 0 qute lés? (Edigdes Vida Nova), tanto pata entender a natureza dos varios géneros biblicos quanto pata receber algumas diretrizes de interpretagao aplicaveis a cada um deles em especial. Quanto 4 leitura das Epistolas do Novo Testamento, inclusive 1Corintios, a primeira questdo crucial a notar é que so cartas. Assim como a maioria das cartas, contém algumas declaragSes bastante diretas em ptosa (embora contenham muitas metdforas e 4s vezes citem ou adaptem outras matérias), Em segundo lugar, sao documentos ad bor (1.6, foram ocasionados por alguma circunstancia especifica, quer da parte do autor, quer da parte do enderegado). E sua natureza ad hoc ¢ ocasional que cria algumas das nossas dificuldades em entendé-los, porque o autor frequentemente toma por certo muitos assuntos que ele ¢ seus leitores tém em comum. Quanto mais coisa ele toma pot certa, tanto mais dificil é para nds termos certeza quanto A situacgao histérica especifica. 18 Em 1Corintios, a carta foi ocasionada tanto por alguns relatérios orais (ver 1.11; 5.1; 11.18) quanto por uma carta que os crentes corin- tios tinham dirigido a Paulo (7.1). A partir dessa troca de informagoes, ficamos sabendo um pouco a tespeito da situagao, porque Paulo precisa dizer a eles 0 que ele ouviu dizer, e, assim, nds também ficamos sabendo do que se trata. Paulo cita da carta deles (7.1; 8.1,4), e aqui também colhemos algum entendimento do caso. Mas tudo isso nos leva para 0 Passo seguinte no processo. Contexto histérico (em geral). Quanto a isso, precisamos ficar sabendo tanto quanto possivel a respeito do mundo greco-romano, e tanto quanto possivel a respeito da cidade de Corinto e do seu povo. Fara diferenca, em nosso entendimento dessa carta sabermos que a cidade romana de Corinto tinha pouco menos de cem anos de idade quando Paulo nela chegou; que dentro daquele perfodo se tornara a terceira cidade do império, e era conhecida pelos antigos como “Corinto, a rica”, porque controlava o comércio entre o Oriente e 0 Ocidente, que era uma cidade cosmopolita, com habitantes provenientes de todas as partes do império; e que era, a0 mesmo tempo, muito religiosa e muito pecaminosa. Extremos de riqueza e de pobreza conviviam lado a lado. A comunidade crente incluia a plena medida dessa cultura. Em 1Corintios 6.9-11 Paulo diz: “Assim foram alguns de vocés”, depois de uma lista bem especifica de dez vicios; em 12.13 nota que o Gnico corpo de Cristo (em Corinto, subentendido) era composto de judeus e gentios, escravos ¢ livres”. 1Corintios 11.17-34 revela tensGes entre os ricos € os pobres. Essas realidades, especialmente o fato de que os crentes eram na sua maioria gentios (ver 12.2), afetario 0 nosso modo de entender numerosas passagens. E frequentemente sugerido, por exemplo, que © problema de alimentos sacrificados a fdolos nos caps. 8 — 10 reflete um abuso pelos gentios das sensibilidades judaicas no tocante a comer semelhantes alimentos que eram vendidos nas pragas. Mas essa inter- ptetacio dificilmente serve posto que Paulo diz especificamente em 8.7 que a pessoa com a consciéncia fraca, e que esta sendo lesada por quem tem esse conhecimento (Paulo no chega realmente a contrastar “fraca”” com “forte”), € quem era anteriormente idélatra; eo problema em 8.10 é especificamente o de comer esse alimento nos templos pagios — ¢ nenhum crente judaico se teria sentido tentado a fazer isso. Contexto hist6rico (especifico). Esse é o aspecto mais crucial do contexto histérico que tem que ver tanto com a situagao historica em 19 Corinto que ocasionou a carta de Paulo, quanto com o relacionamento entre Paulo ¢ essa congregagio. Nao se pode exagerar a relevancia de achar uma resposta adequada a essa pergunta. Por um lado, deixar totalmente de fazé-lo nos levard a ler a carta 4 luz dos nossos proprios contextos histéricos, Por outro lado, deixar de fazé-lo de modo adequado, nos levara a deixar despercebidos alguns entendimentos muito impor- tantes que sao essenciais para a compreensao apropriada de muitissimos textos na carta. Um coneeito incorreto do contexto histérico pode nos desencaminhar consideravelmente na nossa interpretagio de muitas pas- sagens, Por exemplo, a despeito da frequéncia com que é repetido que as prostitutas tinham a cabega rapada, nao existe a menor prova histérica nesse sentido. Precisaremos realmente tet informagdes melhores ao lermos 1Corintios 11.2-16. Essa Epistola serve como boa exemplificagao da questao em pauta. Visto que foi ocasionada por duas coisas — pelos relatérios € pela carta da parte deles, a abordagem tradicional tem sido considera-la como uma carta em que Paulo os cotrige nas areas em que se enganaram, € os informa nas areas em que pediram a sua orientagio. Mas semelhante conceito nao parece levar adequadamente em conta varios dados extrai- dos da sua Kpistola, inclusive a veemente defesa do seu apostolado e modo de viver nos capitulos 4¢ 9 (cf. 14.36-38) ¢ a natureza geralmente polémica de boa parte dessa carta. Varios dados extraidos da propria carta nos ajudarao a reconstruir mais plausivelmente o seu contexto, Primeiramente, nao ha a minima davida de que algum tipo de divisao ou contenda existia dentro da comunidade, e que a contenda estava sendo promovida em nome da “sabedoria”, e que os seus lideres anteriores eram pontos de reagrupa- mento (isso fica claro em 1.10 —3.23). Entretanto, é dificil saber qual é a exata relevancia desse fato para o restante da carta. Nada indica explici- tamente que essa contenda interna tinha que ver com questées teolégicas ou de comportamento, ou que estavam profundamente divididos entre si por questdes propriamente ditas. Isto se confirma especialmente nos capitulos 1 — 4, onde a questo de divis6es é levantada e tratada, mas continua imperando no restante da carta. Além disso, a tentativa de identificar alguns dos elementos posteriores na carta com os nomes dos mestres mencionados em 1.12 tem tido bem pouco sucesso. Notamos acima, por exemplo, que isso dificilmente funciona nos caps. 8— 10, com ochamado partido de Cefas (ou Pedro), posto que nao ha absolutamente 20 nada de judaico naquela controvérsia. Finalmente, deve-se também notar que a carta, na sua totalidade, é dirigida a igreja como um todo sem o minimo indicio de que Paulo esta falando ora a um grupo ora a outro, Se Paulo estivesse dirimindo diferengas entre cles, esperariamos no minimo alguma palavra nesse sentido; mas nao existe nenhuma mesmo. E assim somos levados a considerar mais duas questées. 1. Dificilmente se pode duvidar que existe alguma animosidade en- tre a igreja em Corinto e Paulo, Irrompeu bem plenamente entre a data dessa carta e da carta seguinte (ver 2Co 1.23 — 2.4; 7.2-16; 10.1 — 13.10): (ver 2Co 1.23-2.4; 7.2-16; 10.1-13.10); existem fortes evidéncias de que essa animosidade ja existia antes de ser escrita a carta em epigrafe. Sendo assim, os proprios slogans: “Eu sou de Apolo”, “eu sou de Pedro”, suben- tendem que esto contra Paulo. Nos capitulos 4 e 9, Paulo se defende explicitamente contra alguns que estio “julgando-o”, ou obrigando-o a defender-se contra as acusagées deles (cf. 1Co 4.3-5; 9.3). Além disso, ha a natureza polémica de tio grande porgao da carta. Raras vezes, ou talvez nunca, transmite simplesmente informag6es; pelo contrario, ataca e desafia com todas as armas do seu arsenal literario, a fim de convencé- los de que ele tem razio, e eles nao, nessas questdes. 2. 1Corintios é a terceira correspondéncia entre Paulo e essa igreja. De conformidade com 5.9-11, Paulo escrevera uma carta anterior, documento este que nao chegou até nés, na qual os proibiu de associar- se a pessoas (inclusive irmaos ¢ irmiis) que continuassem a praticar a imoralidade sexual, a cobiga e a idolatria, A maioria das pessoas tendem a admitir que a primeira carta de Paulo a eles, ea deles a ele, nfo tém relacionamento entre si, desencontrando-se no correio, por assim dizer. Mas como nio existia servigo de correios no império (as cartas eram enviadas através de alguma pessoa), € historicamente muito mais provavel que essas trés cartas representassem uma troca de correspondéncias: Paulo a eles; a resposta deles a Paulo; ¢ a resposta de Paulo a resposta deles (1Corintios, conforme a temos ¢ a chamamos), Assim fica explicado por que, por exemplo, Paulo trata de novo de algumas das mesmas quest6es na presente Epistola — nao porque deixaram de entender as instrugdes anteriores de Paulo, mas porque as desconsideraram. Longe de ser um pedido cortés pelas instrugdes de Paulo, sua catta é com efeito uma resposta na qual apresentam razdes pela sua desconsideragio das suas proibigdes. Que podiam fazer isso é explicado parcialmente porque alguns entre eles est&o questionando a

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