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INTRODUÇÃO AO

Espírito da liturgia
JOSEPH RATZINGER BENTO XVI

INTRODUÇÃO AO

Espírito da liturgia

Tradução:
Sn..vA DEBE'ITO e. REIS

X
Edições Loyo/a
Sumário

Premissa 1
-'"'""--�-----
- -

PR1rv1f=IHA �1i-.�H
SOBRE A ESSÊNCIA DA LITURGIA 1
-----�

C0pítulo 1
Liturgia e vida: o lugar da llturgla na realidade 11
----- ---

C:ipítulo li
Uturgla, cosmos, história 21
---��-___..

Capítulo Ili
Do AnUgo ao Novo Testamento: a fonna basilar
da llturgla cristã detennlnada pela fé bíblica 31 ��-�

SCGU['�DA PARl E
TEMPO E LUGAR NA LITURGIA 45

Capítulo 1
Observações prellmlnares sobre a relação
da llturgla com o espaço e o tempo 47
_______,

Capitulo li
Lu gares santos: o significado do edifício Igreja 55

CJp1tulo lil
O altar e a orientação da oração na liturgia 65
Capítulo IV
A cust6dla do Santíssimo Sacramento

Capítulo V
Tempo santo

TERCEIRA PARTt
____17;;;.;
__ ;___,J ARTE E LmJRGIA

Capítulo 1

-----•�-.... A questão das Imagens

Capítulo li

_____ 1..;....;:1;.=1__, Música e llturgla

QUARTA PARTE
.
1 1 FORMA LITURGICA

Capítulo 1
'133 o rito

Capítulo li
143 O corpo e a llturgla
143 1. "Participação ativa"
147 2. 0 Sinal da Cl1IZ
153 3.Alltudes
167 4.Gestos
171 5.A voz humana

178 &. Paramentos llbírglcos


181 7.Matérta

_____ 1•
_ Blbllografla

185 1. Blbllografla geral


186 2. Blbllografta parllcular
Premissa

Uma das minhas primeiras leituras após o início dos estudos


teológicos, no começo de 1946, foi a obra-prima de Romano
Guardini O espírito da liturgia, um pequeno livro publicado na
Páscoa de 19 18, o primeiro da coleção Ecclesia orans, organizada
pelo abade Herwegen, com várias edições até 1957. Essa obra
pode ser considerada, com justiça, o início do movimento litúr­
gico na Alemanha. Ela contribuiu substancialmente para que a
liturgia, com a sua beleza, a sua riqueza oculta e a sua grandeza
que transcende o tempo, fosse redescoberta como centro vital
da Igreja e da vida cristã. Esse livro contribuiu para que a litur­
gia fosse celebrada de maneira "essencial" (termo predileto de
Guardini) ; que fosse compreendida a partir de sua natureza e
forma íntimas, como oração inspirada e conduzida pelo próprio
Espírito Santo, em que Cristo continua a fazer-se nosso con­
temporâneo e a penetrar em nossa vida.
Ousaria arriscar uma comparação que, como todos os con­
frontos, é em grande parte inadequada, mas ajuda a compreen­
der. Podia-se dizer que, em 1918, a liturgia era, sob certos aspec­
tos, semelhante a um afresco que se havia conservado intacto,
mas estava quase encoberto por sucessivos rebocos: no missal,
com o qual o sacerdote a celebrava, a sua forma estava plena­
mente presente, assim como tinha se desenvolvido desde as ori­
gens, para os fiéis, porém ela aparecia amplamente escondida
pelas instruções e fórmulas de oração de caráter privado. Graças
ao movimento litúrgico e, definitivamente, graças ao Concílio
Vaticano II, o afresco foi trazido à tona, e então, por um mo-
mento ficamos todos fascinados pela beleza das suas cores e das
suas imagens. Mas, ao mesmo tempo, devido a diversas e erra­
das tentativas de restauro e de reconstrução, além de pela per­
turbação gerada por multidões de visitantes, esse afresco corre
sério risco e ameaça de ficar irremediavelmente danificado, caso
não sej am rapidamente providenciadas as medidas necessárias
para pôr fim a essas danosas influências. Obviamente não se
deve recobri-lo novamente com reboco, mas é indispensável
uma nova compreensão de sua mensagem e de sua realidade, de
modo que tê-lo feito aflorar à luz não seja o primeiro degrau de
sua perda definitiva.
Este livro pretende ser precisamente uma contribuição para
essa renovada compreen são. O seu intuito, portanto, coincide
substancialmente com aquilo que Guardini, então, se propunha:
por essa razão escolhi um titulo que lembra exatamente aquele
clássico da teologia litúrgica. Contudo, foi preciso repensar o
que Guardini elaborou no final da Primeira Guerra Mundial,
em um contexto histórico completamente diferente, e aplicá-lo
às problemáticas, às esperanças e aos perigos de nosso tempo.
A exemplo de Guardini, também eu não pretendo desenvolver
uma exposição ou conduzir uma pesquisa de tipo cientifico, mas
oferecer uma ajuda para a compreensão da fé e uma correta
prática de sua fundamental forma de expressão na liturgia. Se
este livro, por sua vez, puder servir de estimulo para algo como
um "movimento litúrgico", um movimento para a liturgia e sua
correta celebração, exterior e interior, o intuito que me impeliu
a este trabalho estará plenamente realizado.

Roma, festa de santo Agostinho, 1999.

JOSEPH RATZINGER
PRIMEIRA PARTE

SOBRE A ESS�NCIA DA LITURGIA


Liturgia e vida:
o lugar da llturgla
na realidade

O que se entende por "liturgia"? O que acontece nela? Que tipo


de realidade encontramos aí? Na década de 1920, tentou-se re­
compreender a liturgia como "jogo"; o ponto de comparação
era, em primeiro lugar, o fato de que a liturgia, como o jogo,
possui regras próprias e cria um mundo particular que vale
enquanto se participa dela, mas que depois se dilui quando a
"brincadeira" termina. Um outro ponto de comparação era que
o jogo é, sim, dotado de sentido, mas ao mesmo tempo livre, e,
exatamente por isso, possui em si algo de terapêutico, aliás, de
liberatório, a partir do momento que nos faz sair do cotidiano
e dos fins que o caracterizam, aliado às implicações que estes
comportam, libertando-nos, assim, durante um certo período
de tempo, de tudo aquilo que oprime a nossa vida de trabalho.
O jogo seria, por assim dizer, um outro mundo, um oásis de
liberdade onde podemos, por um momento, deixar fluir livre­
mente a existência; precisamos desses momentos de evasão do
domínio do cotidiano, para conseguir suportar o seu jugo. Nessa
linha de raciocínio há algo de verdade, mas só essa constatação
não basta. Se assim fosse, seria absolutamente secundário que
tipo de jogo se está jogando; tudo o que foi dito pode aplicar-se
a qualquer espécie de jogo, cuja necessária e intrínseca ligação
com as regras mostra de imediato a sua específica dificuldade e
leva a situações, por sua vez, complicadas; pensemos no atual
mundo do esporte, nos campeonatos de xadrez ou de outros
jogos: em toda parte, vê-se que o jogo, do totalmente alheio a
um mundo diferente ou de um não mundo, logo se transforma
em um pedaço de mundo, com as suas leis, desde que não se
transforme em uma pura e vazia brincadeira.
Há ainda um aspecto nessa teoria do jogo que merece ser
mencionado e nos aproxima da essência particular da liturgia:
a brincadeira das crianças parece, sob inúmeros aspectos, uma
espécie de antecipação da vida, um treinamento para aquilo que
será a sua vida que virá, sem, todavia, incluir todo o seu peso e
a sua seriedade. Do mesmo modo, a liturgia lembra que todos
nós, diante da verdadeira vida, que desejamos alcançar, somos
no fundo como crianças, ou que deveríamos sê-lo; a liturgia, en­
tão, seria uma forma completamente diferente de antecipação,
de exercício preliminar: prelúdio da vida futura, da vida eterna,
da qual Agostinho afirma que, ao contrário da vida presente,
aquela não será feita de necessidades e de obrigatoriedades, mas
inteiramente da liberdade do oferecer e dar. A liturgia seria, en­
tão, a redescoberta de nosso autêntico ser criança dentro de nós,
da abertura para a grandeza que temos diante dos olhos, ainda
não realizada com a vida adulta; ela seria uma forma bem defi­
nida da esperança, que antecipa a verdadeira vida, que nos in­
troduz na vida autêntica - a da liberdade, da proximidade com
Deus e da total abertura recíproca. Assim, ela imprime também
na vida real cotidiana os sinais precursores da liberdade, que
derrubam as barreiras e deixam transparecer o céu na terra.
Semelhante aplicação da teoria do jogo eleva a liturgia bem
acima da brincadeira em geral, na qual continua vivo o anseio
do verdadeiro "jogo", do totalmente outro de um mundo onde
a ordem e a liberdade se unem entre si; relativamente à superfi­
cialidade da brincadeira comum, refém das próprias finalidades
e, também, humanamente vazia, a teoria do jogo faz emergir a
particularidade e a alteridade do "jogo" de sapiência de que fala
a Bíblia e que se pode relacionar com a liturgia. Mas ainda nos
falta um conteúdo essencial nesse projeto pois, por ora, o pensa­
mento na vida futura aparece apenas como um vago postulado,
e a visão de Deus, sem a qual a "vida eterna" é apenas um de­
serto, permanece ainda completamente indeterminada. Quero,
portanto, propor uma nova abordagem, mas agora extraindo-a
da concretude dos textos bíblicos.
Na narração dos fatos que antecederam a saída de Israel
do Egito, bem como na dos vários episódios do Êxodo, emer­
gem duas diferentes finalidades para esse evento extraordinário.
Uma, bem conhecida, é a chegada à Terra Prometida, onde Is­
rael finalmente irá viver livre e independente na terra que é sua,
em segurança dentro das fronteiras. Ao lado desta, porém, surge
repetidamente uma outra finalidade. A ordem original que Deus
dá ao faraó é a seguinte: "Deixa partir meu povo para que me
sirva no deserto!" (Ex 7, 1 6) 1 • Esta expressão - "Deixa partir
meu povo para que me sirva" - se repete quatro vezes com
leves variações, ou seja, em todos os encontros do faraó com
Moisés e Araão (Ex 7,26; 9, 1 ; 9,13; 10,3) . Ao longo das negocia­
ções com o faraó, a finalidade vai sendo, então, posteriormente
concretizada. O faraó aceita o compromisso. Para ele, a questão
é a liberdade de culto dos israelitas, na qual, num primeiro mo­
mento, assim concorda: "Ide, oferecei sacrificios ao vosso Deus,
mas dentro do país" (Ex 8,21) . Moisés, porém - fiel à ordem
recebida de Deus -, insiste em afirmar que para o culto é ne­
cessário o êxodo. O lugar aonde devem ir é o deserto : "Temos de
andar três dias de caminho para dentro do deserto. Então sacrifi­
caremos a Javé, nosso Deus, da maneira como nos ordenou" (Ex
8,23) . Depois das pragas que se sucedem, o faraó se mostra ain­
da mais acessível ao compromisso. Permite, então, que o culto se
realize segundo a vontade da divindade, isto é, no deserto, mas
impõe que somente os homens saiam, enquanto as mulheres e
as crianças, bem como os animais, permaneçam no Egito. Desse
modo pressupõe uma práxis cultuai então usual, segundo a qual
apenas os homens eram protagonistas ativos do culto. Moisés,
porém, não pode negociar a modalidade do culto com o sobe­
rano estrangeiro, nem pode subordinar o culto a compromissos •

políticos : a forma do culto não é uma questão de concessão polí­


tica; o culto possui a sua própria medida, e só pode ser regulado
pela medida da revelação de Deus. Por essa razão, também é
recusada a terceira proposta de compromisso do faraó, o qual,

1. Todas as citações bíblicas foram extraídas da Bíblia Mensagem de Deus, São


Paulo, Loyola/Santuário, 1994, reedição jan. 2003. (N. da T.).
dessa vez, manifesta a permissão para que mulheres e crianças
também possam partir. "Fiquem retidos só as vossas ovelhas e
o gado" (Ex 10,24). Moisés responde que precisa levar consigo
todos os animais, porque, "enquanto não chegarmos até o lugar
marcado, não sabemos com que havemos de servir a Javé" (Ex
10,26). Em todas as negociações não se fala da Terra Prometida:
o único objetivo do Êxodo parece ser a adoração, que só pode
acontecer se gÚndo a medida de Deus, e que, por essa razão, foge
das regras do jogo do compromisso político.
Israel não parte para ser um povo como todos os outros
povos; parte para servir a Deus. A meta do êxodo é a montanha
de Deus, ainda desconhecida, a finalidade é prestar serviço a
Deus. Alguns poderiam argumentar que o acento posto no culto
ao longo das negociações com o faraó poderia ser de natureza
tática. O verdadeiro e único objetivo do êxodo não seria o culto,
e sim a terra, que, aliás, constitui o real objeto da promessa feita
a Abraão. Não creio que com isso se possa justificar a gravidade
que se percebe nos textos. No fundo, a contraposição de terra
e culto não tem sentido: a terra é ofertada para ser um lugar de
veneração do Deus verdadeiro. A mera posse da terra, a mera
autonomia nacional fariam Israel descer ao nível dos outros po­
vos. Essa finalidade levaria a ignorar a especificidade da eleição:
a história inteira dos Juízes e dos Reis, narrada e explicada nas
Crônicas, mostra justamente que a terra como tal, vista em si
mesma, permanece como um bem indeterminado, que se tor­
na bem autêntico, verdadeiro dom da promessa cumprida só
se aí reinar Deus, e se a terra não existir como uma espécie de
estado independente, mas se for o espaço da obediência, onde
se cumpre a vontade de Deus e, assim, se realiza a maneira cor­
reta da existência humana. A análise do texto bíblico nos per­
o
mite, porém, determinar com precisão a relação entre as duas
)>

:::::; finalidades do êxodo. Após três dias, o Israel peregrino ainda
não compreendeu (conforme tinha sido anunciado no diálogo
com o faraó) que tipo de sacrificio Deus espera dele. Três meses
depois, porém, "da saída dos filhos de Israel da terra do Egito,
naquele dia chegaram ao deserto do Sinai" (Ex 19,1). No ter­
ceiro dia, Deus desce no cume da montanha (19,16. 20). Deus
fala ao povo, manifesta a sua vontade nas dez santas palavras
(20, 1-1 7), e sela com Moisés a aliança (Ex 24), que se concreti­
za numa forma de culto minuciosamente regulamentado. Desse
modo, o escopo da peregrinação no deserto, anunciado ao faraó,
se cumpriu: Israel aprende a adorar a Deus do modo desejado
por Ele. E dessa adoração faz parte o culto, a liturgia em sentido
restrito; mas esta exige viver segundo a vontade de Deus, que é
uma parte imprescindível da verdadeira adoração. "A glória de
Deus é o homem vivo; porém, a vida do homem é contemplar
a Deus", diz Santo Ireneu (Adv. haer. IV 20,7), compreendendo
exatamente aquilo que acontece no encontro na montanha no
deserto: em suma, é a própria vida do ser humano, do homem
que vive segundo a justiça, a verdadeira adoração a Deus; no en­
tanto, a vida só se torna verdadeira vida se for moldada no olhar
voltado para Deus. O culto serve justamente para isto: oferecer
esse olhar e, assim, dar a vida, que se torna glória para Deus.
Há três coisas importantes nessa questão: no Sinai o povo
não recebe somente as prescrições cultuais, mas uma organi­
zação jurídica e uma regra de vida completas. Somente desse
modo ele se constitui como povo. Sem uma organização jurídica
comunitária, um povo não subsiste. Cai na anarquia, paródia
da liberdade, a anulação no arbítrio de cada um, que é a sua
total ausência de liberdade. Na organização da aliança no Sinai
- esse é o segundo ponto - os três aspectos de culto, de direito
e de ethos se entrelaçam indissoluvelmente entre si: é esta a sua
grandeza, e também a sua limitação, conforme ficará demons­
trado na passagem de Israel para a Igreja dos pagãos, na qual
esse entrelaçamento se dissolve para dar espaço a uma multipli­
cidade de formas jurídicas e organizações políticas. Contudo,
após esse inevitável desmembramento, que na idade moderna
conduziu finalmente à total secularização do direito e excluiu
totalmente toda referência a Deus na elaboração desse direito,
obviamente não se pode esquecer que de fato existe uma fun­
damental correlação interna entre essas três organizações: um
direito que não se baseia na moral se torna injustiça; uma mo­
ral e um direito que não têm sua origem na referência a Deus
degradam o ser humano, porque o privam de sua medida mais 11
elevada e de sua possibilidade mais alta, visto que lhe negam
a visão do infinito e do eterno : com essa aparente libertação
ele é submetido à ditadura da maioria dominante, a critérios
humanos limitados que terminam por submetê-lo à violência.
Chegamos, assim, a uma terceira constatação, que nos remete
ao ponto de partida, à questão da essência do culto e da liturgia:
uma organização das coisas humanas que desconhece a Deus
diminui o ser humano. Por isso culto e direito não podem ficar
completamente separados entre si: Deus tem direito à resposta
do ser humano, tem direito ao próprio homem, e onde esse di­
reito de Deus desaparece por completo também se dissolve a
organização jurídica humana, porque lhe falta a pedra angular
que mantém o conjunto unido.
O que significa tudo isso, então, para a nossa pergunta so­
bre as duas finalidades do Êxodo, com que ultimamente vem
sendo debatida a questão da essência da liturgia? É óbvio que
aquilo que aconteceu no Sinai, naquela parada durante a pe­
regrinação através do deserto, é a base para o significado que
terá a posse da Terra Prometida. O Sinai não é uma estação
intermediária, uma pausa na caminhada rumo ao que de fato
interessa, mas oferece, por assim dizer, aquela terra interior, sem
a qual o exterior permanece inabitável . Somente porque Israel
se constituiu como povo, graças à aliança e à lei de Deus que
ela contém, somente porque recebeu a forma comunitária da
vida reta, a terra poderá realmente tornar-se um dom para ele.
O Sinai permanece presente na terra; na medida em que a sua
realidade se perdeu, também a terra foi interiormente perdida,
até a condenação no exílio. Todas as vezes que Israel minimiza
o justo culto a Deus, voltando-se para os ídolos - os poderes e
os valores mundanos -, diminui também a sua liberdade. Vive
em sua terra, mas é como se estivesse no Egito. A simples posse
da própria terra e do próprio estado não garante a sua liberdade,
mas se torna uma brutal escravidão; então, quando o abandono
da lei é total, acaba por perder também a terra. Quanto o "ser­
vir a Deus", a liberdade do justo culto a Deus - que perante
o faraó aparece como o único escopo da saída do Egito -, seja
11
realmente aquilo de que trata o Êxodo, vê-se em todo o Penta-
teuco : este autêntico "c ânon dos cânones", o coração da Bíblia
de Israel, se desenrola todo fora da Terra Santa. Ele se encerra
às margens do deserto, "além do Jordão ", onde Moisés sintetiza
novamente a mensagem do Sinai. Fica claro, assim, qual é o
fundamento do permanecer na Terra, a condição para viver em
comunidade e em liberdade: o estar na lei de Deus, que organiza
as coisas humanas segundo a justiça, plasmando-as a partir de
Deus e para Deus.
O que significa tudo isso para a nossa problemática? Antes
de tudo, vê-se mais uma vez que o "culto", entendido em sua
verdadeira plenitude e profundidade, vai bem além da ação li­
túrgica. Ele, portanto, abraça a ordem da vida humana inteira,
no sentido das palavras de Ireneu : o ser humano se torna uma
glorificação a Deus, fá-lo sobressair (isso é o culto) , quando vive
para contemplá-Lo. É fato, por outro lado, que o direito e a
moral não caminham juntos se não forem ancorados no centro
litúrgico e não extraírem dele inspiração. Que tipo de realidade
encontramos, então, na liturgia? Podemos dizer, antes de tudo,
que quem elimina Deus do conceito de realidade é só aparen­
temente um realista. Ele se afasta Daquele em quem nós "vive­
mos, nos movemos e existimos" (At 17 ,28) . Isso significa que
somente se a relação com Deus é correta todas as outras rela­
ções do ser humano - as dos homens entre si e do homem com
as outras realidades criadas - também funcionam. O direito
- conforme já vimos - é formador da liberdade e da comuni­
dade; o culto, ou seja, o modo correto de se reportar a Deus, é,
por sua vez, formador do direito. Podemos, então, ampliar essa
visão dando mais um passo adiante: a adoração, a correta mo­
dalidade do culto, da relação com Deus, é formadora da correta
existência humana no mundo; ela o é exatamente porque através
da vida cotidiana nos torna participantes do modo de existir do
"céu", do mundo de Deus, deixando, assim, transparecer a luz
do mundo divino em nosso mundo. Nesse sentido, o culto possui
de fato - como dissemos a propósito da análise do "jogo" - o
caráter de uma antecipação. Ele representa uma vida mais de­
finitiva e, desse modo, confere à vida presente a sua medida.
17
Uma vida onde falta essa antecipação, onde o céu não é mais
esboçado, se torna nebulosa e vazia. Por isso não existem socie­
dades totalmente privadas de culto. Até os sistemas firmemente
ateístas e materialistas constituíram novas formas de culto, que
resultam, todavia, apenas ilusórios e que procuram inutilmente
esconder a própria nulidade com sua bombástica fanfarronice.
Com isso chegamos a uma última reflexão. O ser humano
não pode "criar" sozinho o seu próprio culto; ele só agarra o
vazio, se Deus não se mostra. Quando Moisés diz ao faraó: "não
sabemos com que havemos de servir ao Senhor" (Ex 1 0,26), de
suas palavras emerge de fato um dos princípios basilares de to­
das as liturgias. Se Deus não se mostra, o ser humano, com base
naquela intuição de Deus que está inscrita em seu íntimo, cer­
tamente constrói altares "ao deus desconhecido" ( cf. At 1 7 ,23)
e, impelido pelo pensamento nele, o procura tateando às cegas.
Mas, a verdadeira liturgia pressupõe que Deus responda e mos­
tre de que modo podemos adorá-lo. Ela implica uma forma de
instituição. Não pode ser gerada por nossa fantasia, por nos­
sa criatividade, do contrário seria como um grito nas trevas ou
uma simples confirmação individualista. Pressupõe, porém, algo
que seja de fato real, que se mostre a nós e que, assim, aponte o
caminho à nossa existência.
Dessa não arbitrariedade do culto existem numerosos e im­
pressionantes testemunhos no Antigo Testamento. Em nenhuma
outra passagem, porém, esse tema se manifesta com tanta dra­
mati cidade como no episódio do bezerro de ouro (ou melhor, do
novilho) . Esse culto, conduzido pelo sumo sacerdote Aarão, não
poderia, de fato, servir a um ídolo pagão. A apostasia é mais sutil.
Ela não passa abertamente de Deus ao ídolo, mas permanece
aparentemente junto ao mesmo Deus: deseja-se honrar o Deus
j


que conduziu Israel para fora do Egito e se crê poder represen­
tar de modo apropriado o seu misterioso poder na imagem do
novilho. Na aparência, tudo parece correto e, presumivelmente,
também o ritual procede segundo as prescrições. É, todavia, uma
queda na idolatria. Duas coisas levam a essa queda, inicialmente
quase imperceptível. De um lado, a violação da proibição das
imagens: não se consegue manter a fidelidade ao Deus invisível,
distante e misterioso. Faz-se com que Ele desça ao próprio nível,
reduzindo-O a categorias de visibilidade e compreensibilidade.
Desse modo, o culto já não é mais um elevar-se até Ele, mas um
rebaixamento de Deus às nossas dimensões: Ele deve estar lá
onde houver necessidade dele e deve ser assim da maneira como
se precisar. O ser humano se serve de Deus segundo as próprias
necessidades e assim se coloca, na realidade, acima dele. Com
isto já se alude à segunda coisa: trata-se de um culto feito de
autoridade própria. Se Moisés permanece ausente durante longo
tempo e Deus é inacessível, então Ele é colocado ao nível de Is­
rael. Esse culto se torna, assim, uma festa que a comunidade cria
por si mesma; ao celebrá-la, a comunidade nada mais faz que se
confirmar a si própria. Da adoração a Deus se passa para um
círculo que gira em torno de si mesmo: comer, beber, divertir-se.
A dança ao redor do bezerro de ouro é a imagem desse culto que
busca a si próprio e se torna uma espécie de banal autossatisfa­
ção. A história do bezerro de ouro é uma advertência contra um
culto realizado segundo o molde pessoal e a busca de si mesmo,
em que, finalmente, não está mais em jogo Deus, mas a forma­
ção, por iniciativa pessoal, de um pequeno mundo alternativo.
A liturgia, então, se torna de fato um jogo vazio. Ou ainda pior,
o abandono do Deus vivo camuflado sob o manto da sacrali­
dade. No final, porém, resta a frustração, o sentimento do vazio.
Não existe mais aquela experiência de libertação, que acontece
lá onde se realiza um verdadeiro encontro com o Deus vivo.
Capít0lo 11

Liturgia, cosmos, história

Na teologia moderna, reafirmou-se cada vez mais a ideia de que


nas religiões naturais, bem como nas grandes religiões não teís­
tas, o culto foi orientado cosmicamente, enquanto no Antigo
Testamento e no cristianismo ele possui um endereço histórico;
o Islã - de modo análogo ao judaísmo pós-bíblico - só conhe­
ce a liturgia da palavra, que tem sua característica e origem em
uma revelação ocorrida historicamente, mas que por sua orien­
tação universal pretende ser válida para o mundo em seu con­
junto. A ideia de uma orientação cósmica ou histórica do culto
não é totalmente infundada, mas é errônea se conduzir a uma
oposição radical: então se ignora a consciência histórica sempre
presente também nas religiões naturais e se avilta o significado
do culto cristão a Deus; esquece-se que a fé na redenção não
pode ser separada do reconhecimento da fé no Criador. Vere­
mos, em seguida, qual a importância desse problema, também
nos aspectos aparentemente mais externos do rito litúrgico.
Gostaria de procurar esclarecer o que foi dito em diversas
passagens progressivas. Nas religiões do mundo o culto e o cos­
mos estão sempre intimamente ligados; a adoração dos deuses
nunca é apenas um ato de socialização da comunidade interes­
sada, que, através de ritos simbólicos, se tornaria consciente da
própria recíproca pertença.
Difundiu-se a ideia de que se trata de um sistema de tro­
ca: os deuses mantêm o mundo na existência, mas os seres hu­
manos devem alimentar e manter os deuses com os seus dons
21
cultuais. O circuito do existir implica ambas as coisas: o poder
dos deuses, que sustenta o mundo, mas também o dom dos se­
res humanos, que sustenta os deuses neste mundo. Chega-se a
pensar que os homens foram criados exatamente para manter
os deuses e que são, portanto, uma parte essencial nesse circuito
do todo. Ainda que essa visão possa parecer simplista, percebe­
se uma profunda consciência do destino da humanidade : o ser
humano existe para Deus e, desse modo, serve ao todo. Sem dú­
vida, existe o risco de uma reviravolta nessa perspectiva e de um
possível abuso: o homem possui algum poder sobre os deuses:
graças à sua relação com eles ele tem nas mãos a chave da reali­
dade . Os deuses precisam dele, mas certamente também ele tem
necessidade dos deuses: se abusasse do próprio poder, poderia,
sim, causar-lhes dano, mas terminaria por destruir a si mesmo.
Na narração veterotestamentária da criação (Gn 1,1-2,4),
essa visão é plenamente reconhecível e, ao mesmo tempo, trans­
formada. A criação vai em direção ao sábado, para aquele dia
no qual o homem e a criação inteira tomam parte no repouso
de Deus, em sua liberdade. Não se fala diretamente de culto,
nem se diz que o Criador precisa dos dons do homem. O sába­
do é uma visão da liberdade : nesse dia, escravos e senhores são
iguais; a "santificação" do sábado significa exatamente isto, que
todas as relações de subordinação diminuem e todo o esforço
do trabalho é interrompido por um momento. S e, todavia, se
pensasse que o Antigo Testamento não ligou criação e adoração
e que conduz a uma mera visão da libertação da sociedade
como escopo de toda a história, como se ela fosse, desde o iní­
cio, orientada apenas antropológica e socialmente, numa pers­
pectiva revolucionária, então se interpretaria erroneamente o
significado do sábado. A narrativa da criação e as prescrições
sinaíticas sobre o sábado são oriundas da mesma fonte; deve­
mos ler as leis sabáticas da Torá para compreender corretamen­
te o significado da narração da criação. Fica claro, então, que o
sábado é o sinal da aliança entre Deus e o homem, o que sinte­
tiza muito bem a essência da aliança. A partir daí podemos,
assim, definir a intenção das narrativas sobre a criação: a cria­
ção existe para que haja um lugar para a aliança que Deus quer
selar com o ser humano. O objetivo da criação é a aliança, a
história de amor entre Deus e o homem. A liberdade e a igual­
dade dos seres humanos, que o sábado realizará, não são uma
visão puramente antropológica ou sociológica, mas trata-se de
uma perspectiva que só é pensável teo-logicamente: somente se
está em aliança com Deus, o homem se torna livre, e somente
assim se manifestam a igualdade e a dignidade de todos os seres
humanos. Se, pois, tudo deve ser redirecionado para a aliança,
então é importante reconhecer que a aliança é relação: é um
doar-se de Deus ao homem, mas também um responder do ho­
mem a Deus. A resposta do ser humano a um Deus que é bom
com ele chama-se "amor", e amar a Deus significa adorá-lo. Se
a criação é entendida como um espaço da aliança, lugar do en­
contro entre Deus e o ser humano, isso significa que é pensada
também como lugar da adoração. Mas o que significa propria­
mente " adoração"? O que existe de diferente em relação à con­
cepção circular da troca, que caracteriza amplamente o mundo
cultuai pré-cristão?
Antes de enfrentar essa pergunta crucial, gostaria de fazer
referência, mais uma vez, ao texto com o qual, no livro do Êxodo,
se encerra a legislação cultuai. Esse texto é escrito em íntimo pa­
ralelismo com a narrativa da criação: sete vezes se diz que Moi­
sés fez "como o Senhor tinha ordenado"; desse modo, a obra da
construção do santuário, realizada em sete dias, aparece como
uma imagem dos sete dias da criação. Finalmente, a narração da
construção do templo se conclui com uma espécie de visão sabá­
tica: assim Moisés terminou o trabalho. A nuvem envolveu a ten­
da do encontro, e a glória do Senhor encheu o Tabernáculo (Ex
40,33ss.). A realização da tenda evoca a realização da criação:
Deus faz sua morada no mundo, o céu e a terra se unem. Nesse
contexto também entra o fato de que o verbo barà no Antigo
Testamento tem sempre e apenas dois significados. Por um lado,
ele indica o processo de criação do mundo, a separação dos ele­
mentos que transformaram o caos em cosmos; por outro, indica
o processo fundamental da história da salvação, ou seja, a eleição
e a separação entre puro e impuro, e, assim, o emergir da história
de Deus com o ser humano e a criação espiritual, a criação da
aliança, sem a qual o cosmos criado permaneceria uma caixa
vazia. Criação e história, criação, história e culto, portanto, estão
numa relação de interdependência: a criação espera a aliança,
mas a aliança completa a criação e não lhe é indiferente. Se, po­
rém, o culto - corretamente entendido - é a alma da aliança,
então isso significa que não só ele salva o ser humano, mas tem
de envolver a realidade inteira na comunhão com Deus.
Estamos, assim, diante de perguntas: o que é propriamente
a adoração? O que acontece na adoração? Em todas as religiões
o núcleo fundamental do culto parece ser o sacrificio. Trata-se,
porém, de um conceito sobrecarregado de um acúmulo de equí­
vocos. A concepção comum parte da ideia de que o sacrificio
tem a ver com a destruição. Significaria a cessão a Deus de uma
realidade que, para o homem, é de alguma forma preciosa: essa
cessão pressuporia, porém, que o ser humano deixasse de usar
essa realidade, e isso só se realizaria através de sua destruição,
com a qual ela seria completamente retirada da disponibilidade
humana. Mas logo surge uma réplica: que satisfação teria Deus
com essa destruição? A resposta é que na destruição se esconde
um ato de reconhecimento da soberania de Deus sobre todas
as coisas. No entanto, tal ato formal pode realmente servir para
a glória de Deus? É claro que não. A verdadeira cessão a Deus
tem de aparecer bem diferente. Ela consiste - assim é vista pe­
los Padres da Igreja ao interpretar o pensamento bíblico - na
reunificação do ser humano e da criação com Deus. A pertença
a Deus nada tem a ver com a destruição ou com o não existir,
mas antes com um determinado modo de viver: que significa a
saída do estado de separação, da aparente autonomia, do existir
só para si e em si mesmo. Significa aquele se perder a si mesmo,
que é a única maneira de reencontrar-se a si próprio (cf. Me 8,35;
Mt 10,39). Por isso Agostinho podia afirmar que o verdadeiro
r-
"sacrificio" é a civitas Dei, isto é, a humanidade transformada em
J;.
.-­
- � amor, que torna divina a criação e é a entrega de tudo a Deus:
T
,-
,-

.!-·
Deus tudo em todos (lCor 15,28) - é esse o escopo do mundo,
é essa a essência do "sacrificio" e do culto.
Podemos, então, dizer que o objetivo do culto e o objetivo
da criação em seu conjunto são o mesmo: a divinização, um

mundo de liberdade e de amor. Desse modo, porém, até na di-
mensão "cósmica" aparece a dimensão histórica: o cosmos não
é uma espécie de edificio fechado em si mesmo, nem um reci­
piente inerte no qual a história pode se desenvolver. Também ele
está em movimento, de um ponto inicial rumo a uma meta. Ele
mesmo é, de certo modo, história.
Isso pode ser ilustrado de várias maneiras. Por exemplo,
no contexto da moderna concepção evolucionista, Teilhard de
Chardin descreve o cosmos como um processo de subida, como
um caminho de unificação. Partindo das realidades mais sim­
ples, esse caminho conduz a unidades cada vez maiores e mais
complexas, em que a multiplicidade não é anulada, mas fundi­
da numa síntese crescente, até a noosfera, na qual o espírito e a
sua inteligência agarram o todo, fundindo-o numa espécie de
organismo vivo. A partir das cartas aos Efésios e aos Colossen­
ses, Teilhard considera Cristo aquela energia que conduz até a
noosfera e que, no final, engloba tudo em sua plenitude. Com
base nesse pressuposto, Teilhard procura reinterpretar, a seu
modo, o culto cristão: a hóstia transubstanciada é, para ele, a
antecipação da transformação da matéria e de sua divinização
na "plenitude" cristológica. A Eucaristia indica, por assim dizer,
a direção do movimento cósmico; ela antecipa o seu final e, ao
mesmo tempo, impele para ele .
A tradição mais antiga obviamente procede de outro modelo.
A sua imagem não é a da flecha disparada para o alto; antes, pen­
sa numa espécie de movimento circular, cujos dois fundamen­
tais elementos direcionais se chamam exitus e reditus, partida e
retorno. Esse "paradigma", comum a toda a história das reli­
giões, bem como a Antiguidade e a Idade Média cristãs, pode,
porém, apresentar-se sob formas bem diferentes entre si. O cír­
culo pode ser entendido como um grande movimento cósmi­ -�
co, como ocorre nos pensadores cristãos; mas pode também ser
pensado como um movimento que se repete de maneira sempre
nova, como acontece nas religiões naturais e em muitas filosofias
não cristãs. O contraste entre essas duas visões, se visualizadas
com atenção, não é assim tão radical como pode parecer à pri­
meira vista. Também na visão cristã de mundo, no grande círcu­
21
lo da história, que procede do exitus para o reditus, incluem-se
os inúmeros pequenos círculos da vida individual, qu e trazem
em si o grande ritmo do todo e o realizam de maneira sempre
nova, fornecendo-lhe, assim, a energia que o move. No único
grande círculo também estão incluídos os numerosos círculos
vitais das diferentes culturas e das comunidades históricas nas
quais se desenvolve, de maneira sempre nova, o drama do início,
da ascensão e do fim: neles continua a re petir-se o mistério do
começo, além de sempre se produzir o fim do tempo e o declínio
que, a seu modo, prepara o terreno para um novo início. A soma
dos círculos reflete o grande círculo; ambos os círculos se refe­
renciam e se intercruzam reciprocamente. Desse modo, também
o culto tem a ver com as três dimensões desses movime ntos cir­
culares: o pessoal, o social e o universal.
Antes, porém, de procurar esclarecer melhor esse último
ponto, convém atentar para a segunda, e sob vários aspectos,
mais importante alternativa, que se oculta no esquema exitus e
reditus. A primeira concepção com que nos deparamo s é aque­
la elaborada na An tigu id ad e tardia, da maneira talvez mais im­
pressionante, pelo filósofo Plotino, que sob diferentes formas
caracteriza vastos setores d os cultos e das religiões não cristãs.
O exodus, através do qual, em última análise, aparece o ser não
divino, não foi concebido como partida, mas como queda, como
uma precipitação da sumidade do divino que, em conformidade
com as leis da queda dos corpos, leva a descer a profundezas
cada vez maiores, a uma distância sempre maior do divino. Isso
signi fica que o ser não divino é, por si, um ser caído; a finitude
já é, por si, uma forma de pecado, o negativo, que precisa ser
curado através do retorno ao infinito. O retorno - o reditus -
consiste, então, no fato de que, tendo chegado ao fundo, a queda
é refreada e a flecha aponta para o alto. No final, o "pecado"
do finito, do não-ser-deus, se dissolve, e, nesse sentido, Deus se
torna "tudo em todos". A via do reditus significa redenção, e re­
denção significa libertação da finitude, que, como tal, é o verda­
deiro fardo de nosso existir. O culto, p ois, está ligado à inver são
do movimento: é a consciência da queda, é, por assim diz er, o
momento do arrependimento do filho pródigo, o voltar a olhar
para a origem. Visto que segundo inúmeras dessas filosofias o
conhecimento e o existir terminam por coincidir, o voltar a olhar
para o início já é, ao mesmo tempo, um voltar a ascender. O
culto, que é o olhar levantado para o que existe antes e acima de
todo ser é, por sua natureza, conhecimento e, enquanto conheci­
mento, é movimento, retorno, redenção. Naturalmente as filoso­
fias do culto seguem caminhos diferentes. Agora existe a teoria
segundo a qual somente os filósofos, só os espíritos capazes de
um pensamento mais elevado, podem alcançar aquele conheci­
mento que é exatamente o caminho. Somente eles são capazes
de ascender, de plena divinização, que é redenção e libertação
da finitude. Para os outros, para as almas mais simples, que não
conseguem levantar plenamente o olhar para o alto, existem as
várias liturgias, que oferecem a elas alguma redenção, sem, por
outro lado, elevá-las à plenitude da divindade. À parte essas di­
ferenças, um consolo emerge com frequência da doutrina da
transmigração das almas, que oferece a esperança de poder al­
cançar, cedo ou tarde, na peregrinação das existências, o ponto
no qual finalmente se consegue sair da finitude e do sofrimento
que ela representa. Dado que aqui o conhecimento ( = gnose) é
a verdadeira força da redenção e, assim, também a forma mais
alta de elevação, isto é, de união com a divindade, esses sistemas
de pensamento e essas doutrinas religiosas - embora muito
diferentes entre si - são definidos como "gnósticos". Para o
cristianismo das origens o confronto com a gnose representou
o encontro decisivo para a sua identidade. Com efeito, o fascínio
dessas concepções é grande, e elas parecem facilmente identifi­
cáveis com a mensagem cristã. O "pecado original", por exem­
plo, geralmente tão dificil de entender, foi identificado com a
queda no finito, e assim resulta claro que ele recai sobre todos
aqueles que se encontram no círculo da finitude. Além disso,
a redenção é, então, claramente entendida como libertação do
peso da finitude, e assim por diante. Também hoje o gnosticismo
volta a exercer o seu fascínio de inúmeras maneiras: as religiões
do extremo Oriente trazem em si a mesma estrutura fundamen­
tal. Consequentemente, as formas de aplicação da doutrina de
redenção são bastante convincentes. Os exercícios de relaxa­
27
mento corporal e de esvaziamento psíquico parecem dar acesso
à redenção. Visam libertar da finitude, antes, oferecem uma mo­
mentânea antecipação dela e, assim, possuem poder de cura.
O pensamento cristão, como foi dito, retomou o esquema
do exitus e reditus, mas distinguiu aí dois movimentos. O exitus
não é, antes de tudo, queda do infinito, separação do ser e, então,
causa de toda a miséria do mundo; ao contrário, em primeiro
lugar é algo de positivo: o livre ato criador do Criador, que quer
que a criatura faça algo de bom perante Ele, de quem pode de­
rivar uma resposta de liberdade e de amor. O existir não divino,
pois, não é por si algo já negativo, ao contrário é fruto positivo
de um querer divino. Ele não se baseia numa queda, mas numa
disposição de Deus, que é boa e cria bem. O ato essencial de
Deus que dá origem ao ser criado é um ato de liberdade. Exa­
tamente por isso no ser criado está presente, desde a origem, o
princípio da liberdade. O ex itus, ou melhor, o livre ato criador de
Deus, visa ao reditus, mas com isso não se entende a retomada
ou restituição do ser criado, e sim o supradescrito: o vir-a-si­
mesma da criatura que possui fundamento em si própria res­
ponde livremente ao amor de Deus, acolhe a criação como seu
mandamento de amor: surge, assim, um diálogo de amor, aquela
unidade completamente nova que somente o amor pode criar.
Nela, a existência do outro não é absorvida, não é dissolvida,
mas exatamente no dar-se reencontra plenamente a si mesma.
Nasce, então, aquela unidade que é mais alta que a unidade da
partícula elementar não mais divisível. Esse reditus é um "retor­
no à casa", mas não liquida a criação, antes lhe confere a sua
plena definitividade. É essa a ideia cristã do Deus "tudo em to­
dos". Mas o tudo está justamente ligado à liberdade, e a liberda­
- ·
de da criatura é aquilo que dobra o exitus positivo da criação, ao
/

contrário, provoca a sua queda: no não querer ser dependente,


no não ao reditus . O amor, então, é entendido como dependên­
cia e rejeitado; em seu lugar, entram a autonomia e a autarquia:
'
...

:�
!
ser sozinho por si e em si, ser um deus na sua esfera. Assim se
quebra o arco que leva do exitus ao reditus. O retorno não é mais
desejado e, por outro lado, a ascensão unicamente com as pró­
prias forças se revela impossível. Se o "sacrificio" por sua natureza
é simplesmente o retorno ao amor e, em tal caso, a divinização,
então no culto deve estar presente o momento da cura da li­
berdade ferida, da expiação, da purificação e da libertação da
alienação. A essência do culto, do " sacrificio" como processo
de assimilação, de transformação no amor e, assim, de caminho
rumo à liberdade, permanece imutável . Mas agora assume em
si o momento da cura, da amorosa transformação da liberdade
partida na sofrida modalidade da reconciliação. Justamente p or­
que tudo visava à própria autonomia, à rejeição de depender do
outro, ela inclui então a afirmação da própria dependência, que
tem de me libertar do laço que não consigo mais desatar sozi­
nho. A redenção implica, assim, o redentor : os Padres pensaram
que essa verdade encontrava expressão na parábola da ovelha
perdida . Essa ovelha, presa entre os espinhos, que não consegue
mais encontrar o caminho de volta, é, para eles, a imagem do ser
humano, que não consegue mais libertar-se dos seus espinhos
e que não pode achar sozinho o caminho que conduz a Deus .
O pastor, que a recolhe e a leva para casa, para eles é o próprio
Logos, a palavra eterna, o significado eterno do tudo, que reside
no Filho de Deus, que se põe ele próprio a caminho em nossa
direção e que, assim, coloca a ovelha sobre os seus ombros, isto
é, assume a natureza humana e, como Deus feito homem, traz
de volta para casa novamente a criatura homem . Assim se torna
possível o reditus que nos oferece a volta para casa . O sacrificio
assume, então, a forma da cruz de Cristo, do amor que se doa
na morte, a qual nada tem a ver com a destruição, mas é um ato
de nova criação, que reconduz a criação a si mesma . Cada culto
é agora participação nessa Pessach de Cristo, nessa sua "passa­
gem" do divino para o humano, da morte para a vida, para a uni­
dade de Deus e homem . O culto cristão é, pois, concreto resgate
e realização de tudo o que Jesus disse no templo de Jerusalém no
começo da semana da Paixão, no Domingo de Ramo s : " Quan­
do for elevado da terra, atrairei todos a mim" Oo 1 2 , 3 2) .
'":'
--.

O círculo cósmico e o histórico são agora distintos : o ele­


mento histórico recebe o seu peculiar e definitivo significado
do dom da liberdade, como centro do existir divino e daquele
criado, mas não será, por isso, separado do cósmico. Apesar de
21
sua diferença, ambos os círculos permanecem, em última aná-
lis e, dentro do único círculo do existir : a liturgia histórica do
cristianismo é e permanece - de modo inseparável e inconfun­
dível - cósmica, e só assim ela subsiste em toda a sua grandez a .
H á a novidade única da realidade cristã, todavia ela não repudia
a pesquisa da história das religiões, mas acolhe em si todos os
elementos importantes das religiões naturais, mantendo, assim,
uma li gação com elas.
Capitulo Ili

Do Antigo ao Novo Testamento:


a fonna basllar da l lturg la cristã
detennlnada pela fé bíblica

Depois do que dissemos até aqui, a finalidade essencial do cul­


to em todas as religiões naturais pode ser definida como a paz
do todo atravé s da paz com Deus, a união daquilo que está no
alto com o que se situa embaixo. Essa orientação fundamental
das celebrações cultuais, porém, é concretamente caracterizada
pela consciência da queda e da alienação, e se realiza, portanto,
necessariamente como luta pela expiação, pelo perdão, pela re­
conciliação. A consciência do pecado pesa sobre a humanidade .
O culto é a tentativa, presente ao longo de toda a história, de su­
perar a culpa e de reconduzir, assim, à ordem correta o mundo
e a própria vida . Sobre tudo isso, todavia, paira uma profunda
sensação de inutilidade, que representa o lado trágico da his­
tória do culto: como pode o homem ser capaz de reconduzir o
mundo à relação com Deus? Como pode obter uma verdadei­
ra reconciliação? O verdadeiro dom a Deus só pode ser de si
mesmo; a consciência de que qualquer outra coisa é, de certo
modo, inadequada, ou seja, destituída de sentido, é tanto mais
forte quanto mais evoluída é a consciência religiosa. Desse sen­
timento de inadequação também surgiram na história formas
grotescas e cruéis de culto, notadamente os sacrifícios humanos,
que aparentemente queriam oferecer à divindade o que de me­
lhor existe e que, todavia, aparecem como o modo mais cruel
e mais reprovável de eximir-se do dom do próprio eu. Eis por
que com o progresso das religiões essa assustadora tentativa de
reconciliação foi sendo cada vez mais rejeitada, ao passo que,
ao mesmo tempo, se tornou sempre mais evidente que em cada 31
culto é ofertada não uma determinada realidade, mas seu substi­
tuto. A essência do sacrificio nas religiões naturais, incluída a de
Israel, se fundamenta na ideia da substituição; mas como p o d em
os sacrificios animais ou as ofertas das primícias representar e
substituir o ser humano e obter a sua expiação? Tudo isso não é
verdadeira representação, mas um sucedâneo, ao qual, de certo
modo, falta o essencial .
Em que consiste, então, a especificidade da liturgia d e Is­
rael? Em primeiro lugar, em seu destinatário. As outras re ligiõ es
geralmente dirigem o seu culto para potências que são realida­
des "penúltimas" . A p artir da consciência de que o único e ver­
dadeiro Deus não pode ser servido com sacrificios de animais,
Ele é de ixa d o sem culto; os sacrificios se destinam às "forças
e potênc ia s " com as quais o ser hum an o lida diariamente, que
ele teme, das quais precisa obter a b e n evo l ê n c ia, e com as quais
tem de se reconciliar. Israel não só repudiou esses " deus es " , mas
s e mp r e os viu como demônios, que tornam o h om em estranho
a si mesmo e ao verdadeiro D eus : só Deus merece a ad oraçã o,
é e ste o p r im e iro mandamento. Esse único Deus ce r tam ente era
adorado com um sacrificio cuidadosamente regulado pelos mi­
nuciosos preceitos da Torá, mas, se observarmos mais atenta­
mente a história cultuai de Israel, deparar-nos-emos com uma se­
gun da característica que, acompanhada com coerência, no final
nos conduzirá a Jesus Cristo, ao Novo Testamento. Exatamente
a partir de uma leitura t eol ó g i c a do culto o Novo Testamento se
situa em íntima re l ação com o An ti g o . O Novo Testamento é a
mediação interior, correspondente ao drama interior do Antigo
Testamento, dos elementos inicialmente em luta entre si, que na
figura de Jesus Cristo, em sua cruz e ressurreição, chegam à uni­
d a de ; essa mediação corresponde ao drama interior do Antigo
Testamento. Justamente a quil o que no início parecia u ma fra­
tur a se manifesta, numa leitura mais atenta, como o verdadeiro
" cumprimento" , para o qual inesperadamente confluem todos
os caminhos anteriores .
Se alguém lesse o livro do Levítico - excetuando o capítu­
lo 26, com a sua ameaça de exílio e com a promessa de novos
dons de graça -, poderia pensar que nele foi instituída uma
forma de culto eternamente válida, uma ordem permanente do
mundo, que não pode admitir nenhuma outra história porque,
ao longo dos anos, produz continuamente expiação, purificação
e reconstituição. Parece uma ordem cósmica estática ou , se qui­
sermos, cíclica, que permanece sempre inalterada porque traz
em si os oportunos prós e contras. No entanto, o capítulo 26 de
certo modo transgride essa aparência; convém ler o Levítico no
contexto da Torá e da Bíblia . Parece-me significativo o fato de
que o Gênesis e o Êxodo coloquem no início da história do culto
dois acontecimentos nos quais a problemática da representa­
ção é enfrentada com muita clareza . O primeiro é o sacrificio
de Abraão. O patriarca, obedecendo à ordem que Deus lhe dá,
quer sacrificar o seu único filho Isaac, o portador da promessa .
Oferecendo-o, ele oferecia verdadeiramente tudo, visto que, se
ele ficasse sem descendência, já não teria mais sentido a terra
que lhe tinha sido prometida para ela . No último instante, po­
rém, é o próprio Deus que o impede de oferecer esse sacrificio;
em lugar de Isaac lhe dá um carneiro - um cordeiro macho -,
que ele sacrifica a Deus em vez do filho. Assim, o sacrificio de
representação é instituído por indicação de Deus: Deus for­
nece o cordeiro que Abraão, por sua vez, restitui como dom .
"Nós vos oferecemos entre os bens que nos destes " recita, con­
sequentemente, o cânon romano. Dessa história, porém, ficou
um estímulo, uma espera pelo verdadeiro "cordeiro ", que vem
de Deus e que, exatamente por isso, não é para nós apenas um
substituto, mas uma verdadeira "representação ", através da qual
somos conduzidos a Deus . A teologia cultuai cristã - a partir
de João Batista - reconheceu em Cristo o " cordeiro " ofertado
por Deus; o Apocalipse apresenta esse cordeiro sacrificado, que
vive imolado, como centro da liturgia celeste, que agora, graças
ao sacrificio e Cristo, se faz presente no mundo e torna supér­
fluas as liturgias substitutivas (Ap 5) .
O segundo acontecimento é aquele que se situa na base da
"

instituição da liturgia pascal em Exodo 1 2 . Aí o Cordeiro sacri-


fical da Páscoa é colocado no centro do ano litúrgico e regula a
memória de fé de Israel, a qual é também o fundamento perene
33
da fé . O cordeiro aparece claramente como um substituto, me-
diante o qual Israel é poupada da morte dos primogênitos. Mas
essa substituição também possui caráter de admoestação: no fi­
nal, é sobre a primogenitura que Deus reivindica o seu direito:
" Consagra-me todos os primogênitos, todo o que abre o ventre
materno, entre os filhos de Israel, tanto dos homens como dos
animais: eles são meus! " (Ex 1 3,2) . O cordeiro imolado fala da
necessária santidade do homem e da criação em seu conjun­
to, remete para além de si mesmo; o sacrificio pascal não tem
seu sentido em si mesmo, mas vincula os primogênitos e com
eles todo o povo, a criação inteira. É a partir daí que se pode
compreender a ênfase com a qual Lucas, já nos Evangelhos da
infância, designa Jesus como " primogênito" (Lc 2,7) . Essa ên­
fase também é encontrada nas cartas da prisão, que apresentam
Jesus como "o primogênito da criação", no qual aconteceu essa
santificação da primogenitura que abraça a todos nós.
Mas permaneçamos ainda no Antigo Testamento. Aqui a
natureza do sacrificio é constantemente acompanhada e posta
em crise por uma inquietação profética. Já em 1 Samuel 1 5,22
temos uma sentença prof ética, que pode ser encontrada com
inúmeras variações em todo o Antigo Testamento e que foi re­
tomada novamente por Cristo: " . . . obediência vale mais que
sacrificio; docilidade vale mais que gordura de carneiro! " . Em
Oseias esse conceito é expresso em outros termos: " Pois o que
eu quero é o amor, e não os sacrificios; o conhecimento de Deus,
muito mais que os holocaustos" (6,6). A expressão é re encontrada
adiante na boca de Jesus, de uma forma muito simples e ele­
mentar: "Prefiro a misericórdia ao sacrificio" (Mt 9, 1 3; 1 2,7) .
O culto do templo, pois, foi sempre acompanhado por uma ar­
dente consciência de sua inadequação. "Tivesse eu forne, nada
te diria, pois meu é o mundo e tudo que o povoa. Vou a c as o co­
::::::
mer carne de touros, de sangue de carneiro inebriar-me? Imola
}.;...
a Deus a tua ação de graças, cumpre os teus votos para com o
Altíssimo" (Sl 49 [5 0] , 1 2- 1 4) . A crítica radical ao templo, que
segundo a narração de Atos 7 Estêvão proclama em um di s cur s o
inflamado, é certamente inusitada na forma, caracterizada pelo
novo pathos da fé cristã, mas não é totalmente nova na história
de Israel, na qual sempre existiu uma discussão explícita so-
bre a forma concreta do sacrificio. Estêvão, com efeito, extrai a
afirmação central de sua crítica do profeta Amós: "Eu detesto e
rejeito as vossas festas, e não gosto de vossas reuniões festivas.
Seria questão de me oferecerdes holocaustos? As vossas obla­
ções não têm a minha aceitação, e vossos sacrificios de bezerros
gordos não atraem a minha atenção. Afastai para longe de mim o
barulho de vossos cânticos, e que eu não ouça o som das vossas
harpas ! " (Am 5,2 1 -23; At 7,42s cita Am 5,25-2 7) .
O discurso inteiro de Estêvão deriva da acusação que lhe foi
feita de ter declarado: "Jesus de Nazaré destruirá este lugar [o
templo] e mudará os costumes que Moisés nos deixou". Estêvão
responde apenas indiretamente a essa afirmação e põe em evi­
dência a atitude crítica do Antigo Testamento relativa ao templo
e ao culto. Ele lê a discutida crítica ao culto, de Amós 5,2 5-27,
cujo sentido original é de dificil interpretação, na versão grega
da Bíblia, em que o culto dos quarenta anos no deserto é coloca­
do no mesmo plano da adoração do bezerro de ouro, tanto que
a liturgia, nesse período fundamental da história de Israel, apa­
rece como a continuação da primeira queda: "Porventura me
apresentastes no deserto sacrificios e oblações, durante aqueles
quarenta anos, ó casa de Israel? Em vez disso carregastes nos
ombros a tenda de Moloch e a estrela do deus Refàn, simulacros
que fizestes para adorá-los! " . Os sacrificios de animais enquanto
tais aparecem aqui como uma distorção da adoração do Deus
único. A essas palavras proféticas - que na versão alexandrina
citada por Estêvão devem ter provocado grande espanto nos
presentes - ele também poderia ter acrescentado as dramáticas
palavras do profeta Jeremias: " Quando fiz sair vossos pais do
Egito, nada lhes falei nem ordenei sobre holocaustos e sacrifi­
cios " (7,22) . Estêvão não se aprofunda nesses textos, que nos
fazem deduzir o dificil confronto interno que havia em Israel - -.
. :.. .

antes do exílio, mas acrescenta três outros assuntos para expli­


car o sentido de sua interpretação da mensagem de Cristo.
Moisés, afirma, obedecendo à ordem de Deus, tinha cons­
truído a tenda segundo o modelo que vira na montanha (7,45; Ex
25,40) . Isso significa que o templo terreno é apenas uma cópia,
35
e não o verdadeiro templo; ele é imagem e símbolo, que remete
além de si mesmo. Davi, que encontrou graça diante de Deus,
pediu para construir uma tenda para o D eus de Jacó . "Mas foi
Salomão quem construiu uma casa para o S enhor" (At 7 ,48) :
a passagem da tenda para a casa, em toda a sua provisorieda­
de, que procura abrigar Deus em um edificio de pedra, é vista
como uma queda, visto que " o Altíssimo não habita em edificios
construídos pela mão do homem" . Estêvão, finalmente, junto
com a ideia da provisoriedade, ainda visível na tenda mas que
permanecia oculta na casa, põe em evidência a dinâmica interior
da história veterotestamentária, que procura ir além dessa provi­
soriedade : ele cita a profecia messiânica que constitui, em certo
sentido, a culminância do Deuteronômio ( 1 8, 1 5 ) e que para ele é
a chave de leitura de todo o Pentateuco : "Javé, teu D eus, fará sur­
gir do teu seio, dentre os teus irmãos, um profeta igual a mim"
(7 ,3 7) . Se a obra essencial de Moisés foi a ereção da tenda e a
ordenação do culto, que ao mesmo tempo constituía o núcleo do
ordenamento jurídico e do ensinamento moral, então está claro
que o novo e definitivo profeta conduzirá para fora do tempo da
tenda e de sua provisoriedade, dos falsos sacrificios, " destruirá"
o templo e, de fato, "mudará as leis dadas por Moisés " . A linha
dos profetas, que seguiram a Moisés e foram os grandes teste­
munhos da provisoriedade de todos esses costumes, e que com
o seu chamado fizeram a história caminhar em direção ao novo
Moisés, se encerra no Justo que morre na cruz (7 , 51 s . ) .
Estêvão não rebate as alegações que lhe são contestadas; em
vez disso, procura demonstrar por que elas são mais profunda­
mente fiéis à mensagem do Antigo Testamento e à de Moisés. É
importante destacar, em tudo isso, c o m o a acusação dirigida ao
, ,,
primeiro mártir da história da Igrej a é idêntica, desde a formula­
'J

ção, àquela que desempenha um papel central no processo con­


• /
� T l·

tra Jes us. Jesus é acusado de ter dito: "Eu destruirei este templo
feito por mão de homens, e em três dias construirei outro, sem
j
(

'- o auxílio de mão de homens" (Me 14,5 8). Naturalmente as tes­


temunhas não concordaram sobre o conteúdo exato da profecia
de Jesus ( 1 4, 5 9) , mas é claro que aquelas palavras tiveram um
papel primordial na disputa em torno de Jesus. Chegamos, as­
sim, ao cerne da questão cristológica, à pergunta sobre quem era
jesus, e, ao mesmo tempo, ao núcleo da questão da verdadeira
adoração a Deus. A profecia da destruição do templo, que era
contestada a Jesus, remete já por si ao episódio da purificação
do templo, narrado pelos quatro evangelistas. Isso não p odia ser
visto apenas como um desafogo da ira contra os abusos pratica­
dos em todos os santuários, mas era explicado como um ataque
ao culto do templo, do qual agora faziam parte não só os sacrifi­
cios de animais, mas também o excessivo apego ao dinheiro do
templo ali arrecadado. É verdade que, nesse contexto, nenhum
dos sinóticos cita palavras semelhantes pronunciadas por Jesus,
todavia João as apresenta como um dito profético com o qual
ele anuncia a sua ação: "Destruí este templo, e em três dias eu
o reconstruirei de novo" Oo 2, 1 9) . Jesus não diz que ele destrui­
rá o templo: esta será a versão dada pelas falsas testemunhas
contra ele. Ao contrário, ele profetiza que serão exatamente os
seus acusadores a fazê-lo. Essa é uma profecia da cruz; o final
de sua vida terrena será, ao mesmo tempo, o fim do templo:
é isso que ele dá a entender. Com a sua ressurreição inicia-se
o novo templo: o corpo vivo de Jesus Cristo, que então estará
na presença de Deus e será o lugar de todo culto. Nesse cor­
po ele abraça a todos os seres humanos; não é a tenda erigida
por mãos humanas, é o lugar da verdadeira adoração a Deus,
que dissolve as trevas e as substitui pela realidade. A profecia
da ressurreição, lida em seu significado profundo, é ao mesmo
tempo uma profecia eucarística: aqui se anuncia o mistério do
corpo de Cristo, sacrificado e, exatamente por isso, vivo, que se
comunica conosco e nos conduz, assim, ao laço real com o Deus
vivo. Nesse contexto também entra uma noticia que se encontra
nos três evangelhos sinóticos. Eles narram que na hora da mor­
te de Jesus o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo
(Me 1 5, 3 8; Mt 2 7, 5 1 ; Lc 2 3,4 5 ) . Desse modo querem dizer
que no momento da morte de Jesus a função do templo antigo
diminuiu. Ele está "destruído" . Não é mais o lugar da presença
de Deus, o "apoio para os seus pés", sobre o qual ele derramou
a sua glória. A destruição exterior do templo, que aconteceria
algumas décadas depois, já é anunciada teologicamente: o culto
das imagens, o culto substituto, termina no momento em que se 37
realiza o ve rda deiro culto: a oferta do Filho, que se fez homem e
veio "cordeiro", "primogênito", e que agora recolhe e reunifica
toda forma de culto a Deus, que conduz para fora das sombras
e das imagens para a realidade da unidade do ser humano com o
Deus vivo. O gesto profético da purificação do templo, da reno­
vação do culto a Deus para a sua verdadeira forma chega, assim,
ao seu final. A pro fe c ia que ele impli cava se cumpriu: " O zel o
da tua casa devora-me" (SI 69 [ 68] , 1 O; Jo 2, 1 8) : no final, foi o
" zelo" de Jesus pelo verdadeiro culto que o levou à cruz . Exata­
mente assim foi desobstruído o caminho para a verdadeira casa
de Deus, " não construída pelos homens " : o corpo ressuscitado
de Cristo. Também as palavras com as quais os sinóticos acom­
panham o gesto profético de Jesus se tornam verdade : "Minha
casa será chamada casa de oração para todas as nações " (Me
1 1 , 1 7) : com o fim do templo, abre-se um novo universalismo da
adoração " em espírito e verdade" Oo 4,2 3 ) , que Jesus preanun­
ciou em seu diálogo com a samaritana, lá onde certamente os
termos espírito e verdade não podem ser entendidos na inter­
pretação iluminista e subjetivista, mas devem ser vistos a partir
daquele que diz de si mesmo: "Eu sou a verdade . . . " Oo 1 4,6) .
Antes de tirar conclusões sobre essas breves referências à
dinâmica interna da ideia de culto própria do Antigo Testamen­
to, da profunda consciência da provisoriedade dos sacrificios no
templo e da busca por alguma coisa maior, de uma novidade ain­
da indescritível, devemos procurar escutar as vozes da tendência
essencialmente crítica manifestada até aqui em relação ao dado
tradicional, exatamente porque nessas vozes já vêm se delinean­
do o novo. Se em Israel antes do exílio sempre houve vozes que
alertavam contra as formas de sacrificio que cada vez mais iam
se cristalizando rumo a um culto puramente exterior e talvez até
sincretístico, o exílio tornou-se um estímulo para formular, de
maneira clara, o positivo, o objeto da própria espera. Não havia
mais o templo, não havia mais formas públicas e comunitárias
de culto, do modo como eram previstas pela Lei. Israel devia
sentir-se infinitamente pobre e miserável nesse vazio cultuai; es­
tava perante Deus de mãos vazias. Não havia mais nenhuma ex­
piação, e o cântico de louvor do " sacrificio total" não subia mais
até Deus. Nesse período crítico, formou-se a ideia cada vez mais
clara de que o sofrimento de Israel com Deus e por Deus, o grito
de seu coração oprimido e a sua fervorosa oração ao Deus silen­
cioso deviam estar diante dele como "a gordura dos sacrificios
de animais" e como perfume de incenso; que as próprias mãos
vazias e o coração cheio eram, em si, o "culto" e podiam inte­
riormente compensar os sacrificios do templo que faltavam. Na
época da nova perseguição ao culto judaico, sob Antíoco IV Epí­
fanes ( 1 75- 1 63) , esses conceitos, expressos no livro de Daniel,
adquiriram nova força e profundidade. Continuaram em voga
mesmo depois do restauro do templo pelos macabeus, quando,
em oposição à monarquia sacerdotal dos macabeus, foi criada a
comunidade de Qumran, que não queria reconhecer esse tem­
plo e, assim, se orientava novamente para um "culto espiritual" .
Acrescente-se a isso, em âmbito alexandrino, o contato com a
critica ao culto feita pelo pensamento grego; desse modo, ama­
durecia cada vez mais a ideia da logike latreia ( thysia) , encontrada
em Romanos 1 2, 1 , como resposta cristã à crise cultuai de todo o
mundo antigo: a "palavra" é o sacrificio, a palavra orante que se
eleva do homem e traz em si a existência inteira do ser humano e
a faz "palavra" (logos) . O ser humano que se forma como logos
e se torna logos através da oração: é esse o sacrificio, a verdadeira
glória a Deus no mundo. Se a partir da experiência dolorosa
do exílio e da época helenista a palavra orante foi colocada em
primeiro plano, como equivalente ao sacrificio exterior, assim
agora, através da palavra logos, é introduzida nesse pensamento
toda a filosofia da palavra desenvolvida pelo mundo grego. O
espírito grego o desenvolve, pois, na ideia da união mística com
o Logos, com o sentido de todas as coisas.
Foram os Padres da Igreja que fizeram essa evolução espiri­
tual, definindo a Eucaristia, em sua natureza, como oratio, como
sacrificio na palavra, situando, assim, o lugar do culto cristão
dentro da luta espiritual da Antiguidade, em sua busca do verda­
deiro caminho do homem e de seu encontro com Deus. Quan­
do eles definem a Eucaristia como "oração", como sacrificio da
palavra, acrescentam algo a mais na ideia grega do sacrificio do
logos, e dão uma resposta à questão, que ficou aberta na teologia
veterotestamentária, da oração equivalente ao sacrificio. Os for­
tes estimulos veterotestamentários direcionados para a ideia de
culto "na palavra " eram marcados por uma profunda ambigui­
dade: por um lado, abriam as portas para uma nova e positiva
forma de culto divino; por outro, deixavam atrás de si algo de in­
suficiente. A simples palavra não basta, espera-se a restauração
do templo de uma forma purificada. Explicam-se, assim, apa­
rentes contradições, como aquela que encontramos no Salmo
50 [5 1 ] , na qual, de um lado, é fortemente desenvolvida a nova
ideia de culto : "Não te agradam, Senhor, os sacrificios [ . . . ] . O
meu sacrificio, Senhor, é um espírito contrito ", enquanto, de
outro lado, o todo se encerra ainda na visão de uma plenitude
futura: "Então aceitarás os sacrificios, oblações e holocaustos de
justiça, e ofertarão em teu altar novilhos! " (vv. 1 8-2 1 ) . Ao con­
trário, a mística helenista do logos, ainda que bela e grandiosa,
anula a dimensão corporal, e se resolve em uma pura esperança
de ascensão e reunião com o todo, segundo o esquema gnóstico
do qual falamos antes. Nela falta alguma coisa. A ideia do sa­
crificio do logos só se realiza plenamente no logos incarnatus, na
palavra que se fez carne, e que atrai "toda carne" na adoração a
Deus. Agora o Logos não é mais mero " sentido" atrás e acima
das coisas. Agora entrou na carne, tornou-se corpóreo. Assume
em si os nossos sofrimentos e as nossas esperanças; assume em
si a espera da criação e a conduz até Deus. As duas linhas que o
Salmo 50 não soube reconciliar e que correm paralelas em todo
o Antigo Testamento, sem jamais se unir, agora se encontram
plenamente . Ora a "palavra" não é mais só representação de
qualquer outra coisa, de algo de corpóreo, ora na autodoação
de Jesus na cruz ela está unida a toda a realidade da vida e do
sofrimento do ser humano. Ora não existe mais um culto subs­
titutivo, mas o sacrificio vicário de Jesus que nos acolhe e nos
conduz àquela semelhança com Deus, ao evento de amor que
é a única e verdadeira adoração. Assim, a Eucaristia, a partir da
cruz e da ressurreição de Jesus, é o ponto de encontro de to­
das as linhas da antiga aliança, ou seja, da história das religiões
em geral: o verdadeiro culto sempre esperado, todavia, além das
nossas possibilidades, a adoração " em espírito e verdade" . O
véu rasgado do templo é o véu rasgado entre a face de Deus e
este mundo : no coração transpassado do Crucificado está aber­
to o próprio coração de Deus, vemos quem é Deus e como é .
O céu não está mais fechado : Deus saiu de seu esconderij o. Por
isso João sintetiza o significado da cruz e, ao mesmo tempo, a es­
sência do novo culto de Deus, nas misteriosas palavras do profe­
ta Zacarias ( 1 2, 1 O) : contemplarão aquele que transpassaram Oo
1 9,37) . Encontraremos ainda essa expressão, que retorna com
um significado novo, no Apocalip se 1 , 7. Por ora procuremos
resumir alguns resultados que, de tudo que dissemos, se mani­
festam claramente .
1 . O culto cristão, ou melhor, a liturgia da fé cristã não pode
ser simplesmente entendida como uma forma cristianizada do
culto sinagoga!, ainda que ela, em sua concreta representação,
seja devedora da liturgia da sinagoga . A sinagoga sempre foi
subordinada ao templo e permaneceu assim mesmo depois de
sua destruição. A liturgia da palavra, que nela se realiza com
grandiosa intensidade, é intimamente consciente da própria in­
completude e, exatamente por isso, se distingue da liturgia da
palavra própria do Islã, que - juntamente com a peregrinação
e o jejum - constitui a totalidade do culto divino exigido pelo
Alcorão. A liturgia que se realiza na sinagoga é culto celebrado
no tempo, visto que o templo não existe mais e se espera a sua
restauração. O culto cristão, porém, considera definitiva e teolo­
gicamente necessária a destruição do templo de Jerusalém : em
seu lugar está o templo universal do Cristo ressuscitado, cuj os
braços estendidos sobre a cruz estão voltados para o mundo,
para atrair a todos no abraço do amor eterno. O novo templo já
existe, e assim também o novo e definitivo sacrificio : a humani­
dade de Cristo manifestada em sua morte na cruz e ressurreição;
a oração do homem Jesus é agora uma só coisa com o diálogo
intratrinitário do amor eterno. Mediante a Eucaristia Jesus intro­
duz os seres humanos nessa oração, que é, então, a porta sempre
aberta da adoração e o verdadeiro sacrificio, o sacrificio da nova
aliança, o " culto espiritual" (Rm 1 2, 1 ) . As discussões teológicas
da época moderna tiveram como fatai consequência que o culto
41
divino da nova aliança foi concebido como puramente sinago-
gal, em íntima oposição ao templo, que era considerado expres­
são da Lei, e assim, um estágio já superado da "religião" . Desse
modo, não se podia mais entender o sacerdócio e o sacrifício; o
definitivo "cumprimento" da história pré-cristã da salvação e a
íntima unidade dos Testamentos não era mais visível. Uma visão
mais aprofundada reconhece que na liturgia cristã foi recebida
não só a sinagoga, mas também o templo.
2 . Isso significa que o culto cristão implica a universalida­
de . É o culto do céu aberto. Nunca é somente o evento de uma
comunidade que possui uma determinada colocação espacial.
Celebrar a Eucaristia significa, assim, entrar na adoração do
Deus que abraça o céu e a terra, que se abriu com a cruz e a res­
surreição. A liturgia cristã nunca é a iniciativa de um determina­
do grupo, de um determinado círculo ou de uma determinada
igreja local. O caminho da humanidade rumo ao único Cristo
se encontra com o vir do Cristo aos seres humanos. Ele quer
unificar a humanidade e edificar a única Igreja, a assembleia
de todos os homens reunida por Deus. Dimensão horizontal
e vertical, a unicidade de Deus e a unidade da humanidade, a
comunhão de todos aqueles que adoram em espírito e verdade
constituem uma só coisa.
3. É nessa visão que convém considerar o conceito pauli­
no da logike latreia, o culto espiritual, como a fórmula mais ade­
quada para exprimir a riqueza essencial da liturgia cristã. Para
esse conceito confluem os movimentos espirituais do Antigo
Testamento e os processos de purificação interior da história
das religiões, a busca humana e a resposta divina. O Logos da
criação, o Logos no ser humano, e o verdadeiro e eterno Logos
encarnado - o Filho - se encontram. Todas as outras tenta­
tivas para determinar essa forma resultam diminuídas. Se, por
- -· exemplo, se descreve a Eucaristia como "assemb leia", partindo
>
do fenômeno litúrgico, ou como "ceia", a partir do ato fun­
damental realizado na última Páscoa de Jesus, percebem-se
somente alguns singulares elementos, mas se perde de vista o
grande contexto histórico e teológico. Ao contrário, a palavra
"Eucaristia", que remete à adoração, isto é, à forma universal
de adoração que acontece na encarnação, paixão e ressurreição
de Cristo, certamente pode servir para exprimir, em uma breve
fórmula, a ideia da logike latreia, então serve como definição
adequada da liturgia cristã.
4 . Todas essas observações permitem evidenciar uma di­
mensão essencial da liturgia cristã, sobre a qual refletiremos
concretamente no próximo capítulo: a liturg ia cristã é liturgia
da promessa cumprida, do movimento de busca da história das
religiões que atingiu a própria meta, mas que permanece liturgia
da esperança. Também ela traz em si o sinal da provisoriedade.
O novo templo, não construído por mãos humanas, está pre­
sente, mas ao mesmo tempo ainda está em construção. O gran­
de gesto do abraço que vem do Crucificado ainda não atingiu
o alvo, mas só começou. A liturgia cristã é liturgia a caminho,
liturgia da peregrinação rumo à mudança do mundo, que acon­
tecerá quando Deus for "tudo em nós".
SEGUNDA PARTE
TEMPO E WGAR NA UTIJRGIA
f'r.p:l1 L u· 1' 0
vd !
1

Observações preliminares
sobre a relação da liturgia
com o espaço e o tempo

Na realidade da fé cristã ainda podem existir lugares particula­


res e tempos santos? O culto cristão não seria liturgia cósmica
que abraça o céu e a terra? Cristo sofreu "fora da porta" su­
blinha a carta aos Hebreus, que acrescenta a exortação : "Saia­
mos, pois, fora do acampamento e vamos até ele, carregando a
mesma desonra que ele sofreu" ( 1 3, 1 3) . O mundo inteiro não
seria talvez o seu santuário? A santidade não se realiza na vida
vivida segundo a justiça? A nossa liturgia não consiste numa
vida cotidiana vivenciada no amor, no abrir-se ao verdadeiro
sacrificio, tornando-nos, assim, semelhantes a Deus? Pode haver
uma sacralidade diferente daquela do seguimento do Cristo, na
sóbria paciência da vida cotidiana? Um tempo sacro diferente
do tempo do amor vivido para o próximo, quando e onde as
circunstâncias da nossa vida o exigirem?
Quem faz essas perguntas toca num aspecto fundamental
do conceito cristão de culto e de adoração, mas esquece algo de
essencial da limitação permanente da existência humana neste
mundo, esquece o "ainda não", que pertence à existência cristã
e sustenta que o novo céu e a nova terra já chegaram . A vinda
de Cristo e a difusão da Igreja entre todos os povos, a passagem
do sacrificio do templo à adoração universal "em espírito e ver­
dade" são um primeiro passo importante, um passo rumo ao
cumprimento das promessas do Antigo Testamento. Mas está
claro que a esperança ainda não atingiu plenamente a sua meta.
A nova Jerusalém, que já não precisa mais do templo porque
47
Deus, o Onipotente, e o próprio Cordeiro são o seu templo, des-
tinada a se tornar a cidade que não necessita da luz do sol nem
da lua, visto que a glória de Deus a ilumina e o Cordeiro é a sua
lâmpada (Ap 2 1 , 2 2ss.) : ainda não é aqui. Por isso os Padres des­
creveram as fases do cumprimento não simplesmente na opo­
sição de Antigo e Novo Testamento, mas na tríplice p assagem
de sombra-imagem-realidade; na Igreja do Novo Testamento, a
im agem entra em lugar da sombra : " A noite está terminando e o
di a ve m cheg an do (Rm 1 3 , 1 2) . Mas
" - como afirma Gregório
Ma gn o - ainda é o tempo do alvorecer, no qual trevas e luz se
misturam, e o sol começa a nascer, porém ainda não despontou
completamente . Por essa razão, o tempo do Novo Testamento
representa um momento intermediário particular, uma mistura
de "já" e " ainda não", em que as condições emp íricas continuam
a valer, mas, ao mesmo tempo, já se romperam, continuam a
romper-se, até o definitivo que teve início em Cristo.
Desse modo de entender o Novo Testamento como tempo
de transição, como imagem entre sombra e realidade, deriva a
forma específica da teologia litúrgica. Ela fica mais clara se pen­
sarmos nos três níveis essenciais para a constituição do culto
cristão. Existe o plano intermediário, ou propriamente litúrgico,
que todos conhecem bem, e se manifesta nas palavras e nos atos
de Jesus durante a última ceia. Estes constituem o núcleo da
celebração litúrgica cristã, cuja estrutura deriva da síntese do
culto sinagoga! e do templo, embora em vez dos atos sacrificais
do templo se situe o cânon eucarístico, como participação do
ato realizado por Jesus na ceia, e a distribuição dos dons trans­
formado s. Todavia, esse plano propriamente litúrgico não se
-- sustém sozinho; só possui sentido quando se refere a um evento
7

real e a uma realidade que em sua essência permanece presente .


-
D e outro modo seria como uma lembrança sem consistência,
sem um c onteúdo real. O Senhor podia dizer que o seu corpo
-�

·' ·

estava sendo "oferecido" somente porque ele realmente o ofe­


receu; podia oferecer no novo cálice o sangue derramado por
muitos, porque ele de fato o derramou . Esse corpo, em suma, não
é o corpo para sempre morto de um defunto, nem o sangue um
elemento vital já se m vida, mas a oferta se torna dom porqu e o
r,
corp o doad o no amo r e o sangu e derr ama do no amo por
meio
da ressurreição entraram na eternidade do amor, mais forte que
a morte. Sem cruz e ressurreição o culto cristão não teria valor,
e u � a teologia da liturgia que minimizasse essa referência seria
como falar de um jogo vazio.
Se refletimos sobre esse fundamento real que sustenta a
liturgia cristã, ainda há algo importante a comentar. A cruci­
ficação de Cristo, a sua morte na cruz e, contrariamente, a sua
ressurreição do sepulcro, que confere incorruptibilidade ao cor­
ruptível, são eventos históricos únicos que, como tais, perten­
cem ao passado. Para eles, vale em sentido restrito o " semel "
( ephapax) , a "única vez" que a carta aos Hebreus evidencia em
relação à multiplicidade de sacrificios do Antigo Testamento.
Mas, se fossem apenas fatos do passado, como todos os dados
que extraímos dos livros de história, seria impossível ter alguma
contemporaneidade com eles. Para nós, eles seriam inatingíveis.
Ao ato exterior da crucificação corresponde, porém, um ato
interior da oferta (o corpo é "dado por vós ") : ninguém pode
me tirar a vida, eu a dou por mim mesmo, afirma o Senhor no
Evangelho de João ( 1 0, 1 8) . Esse ato de oferta não é, de fato,
um evento só espiritual. É um ato espiritual que engloba em
si o ato corporal, que abraça o homem em sua inteireza, antes,
é, ao mesmo tempo, um ato do Filho : a obediência da vontade -

;..

humana de Jesus se aprofunda no persistente sim do Filho ao


Pai, segundo a magnífica formulação de Máximo, o Confessor.
-

Assim, esse " dar", que na passividade de ser crucificado envolve =

a paixão da natureza humana no ato do amor, abraça todas as


=

dimensões da realidade : corpo, alma, espírito, logos. Do mesmo -,

modo que o sofrimento fisico está envolvido no pathos do espí­


rito e se torna o sim da obediência, também o tempo está envol­
vido naquilo que vai além do tempo. O verdadeiro ato interior,
que, além disso, não teria consistência sem o exterior, supera o
tempo; todavia, visto que vem do tempo, isso pode sempre ser
nele recuperado. Por isso a contemporaneidade é possível. É o
que entende Bernardo de Claraval quando afirma que o verda­
deiro semel (uma vez) traz em si o semper (sempre) : no Único
acontece o Permanente. Na Bíblia, o "uma só vez" é fortemente

sublinhado na carta aos Hebreus; porém, se for lida atentamen-
te, percebe-se que exatamente essa relação de que fala Bernardo
exprime a sua verdadeira intenção. O ephapax (uma só vez) está
ligado ao aionios (perpétuo) . O "hoje" abraça o tempo inteiro da
Ig re ja . Exatamente por isso na liturgia cristã não só se par ticip a
do passado, mas existe contemporaneidade com aquilo que fun­
damenta essa liturgia: é esse o verdadeiro núcleo e a verdadeira
grandeza da celebração eucarística, que é sempre mais que uma
ceia: é o ver-se envolvido em contemporaneidade com o misté­
rio pascal de Cri s to, em sua passagem da tenda da transitorie­
dade para a presença da fac e de D eus .
Retornemos ao nosso ponto de partida. Dissemos que existe
o plano do elemento fundamental e, em segundo lugar, o da prá­
tica litúrgica, o autêntico plano litúrgico. Procurei mostrar como
os dois planos estão entrelaçados. Se o passado e o presente se
interpenetram, se o essencial do passado não é de fato passado,
mas é força que se transmite aos presentes que se sucedem, isso
significa que também o futuro está presente nesse evento, que
por sua natureza ele deve ser definido como antecipação daquilo
que acontecerá. Todavia, sobre isso não devemos ser precipita­
dos. O pensamento do eschaton, do Cristo que retornará, logo
se impõe, e é certo. Aqui, porém, existe uma outra dimensão
que deve ser considerada : essa liturgia, como vimos, não é uma
substituição, e sim uma função vicária. O que essa distinção intui
fica aqui bem claro. Não são animais que se sacrifica, "alguma
coisa" que, no fundo, permanece estranho para mim. Essa litur­
gia se baseia na paixão de um homem que com o seu eu entra no
mistério do Deus vivo - que é "Filho" . Por isso ela nunca pode
ser simplesmente actio liturgica. A sua origem traz em si o seu fu­
turo também no sentido de que a função vicária envolve aqueles
que são representados, não lhes é externa, mas dá-lhes forma.
A contemporaneidade com a Páscoa de Cristo, que se realiza
na liturgia da Igreja, é também uma realidade antropológica. A
celebração não é somente rito, não é apenas um "jogo" litúrgico,
mas quer ser logike latreia, transformação da minha existência
em direção ao logos, contemporaneidade interior entre mim e a
oferta de Cristo. A sua oferta quer se tornar a minha, para que

a contemporaneidade se cumpra e se realize a assimilação com
Deus. Por isso na Igreja antiga o marúrio era considerado uma
verdadeira celebração eucarística: realização extrema da con­
temporaneidade com Cristo, do ser uma só coisa com Ele. A li­
turgia, com efeito, remete à vida cotidiana, a mim na minha exis­
tência pessoal. Visa, confarme afirma Paulo no texto já citado,
fazer com que " os nossos corpos " (isto é, as nossas existências
corpóreas terrenas) se tornem "sacrificio vivo", em comunhão
com o sacrificio de Cristo (Rm 1 2, 1 ) . Somente assim se explica
a insistência pelas orações de aceitação, que são características

de toda liturgia cristã. Uma teologia que não vê os nexos ora


evidenciados considera-as apenas contraditórias, ou recaídas no
pré-cristão, visto que o sacrificio de Cristo já foi aceito há muito
tempo. Sim, porém em sua função vicária, ele ainda não atingiu
o seu final. O semel (uma vez) quer chegar ao semper (sempre) .
Esse sacrificio só é completo quando o mundo se torna espaço
de amor, como o vê Agostinho em sua "cidade de Deus " . En­
tão, como dissemos no início, o culto completo é a realização do
evento do Gólgota. Por isso, nas orações de aceitação pedimos
que a função vicária se torne realidade e nos arrebate. Por essa
razão nas orações do Cânon romano nos associamos aos gran­
des sacrificadores da pré-história: Abel, Melquisedec, Abraão.
Dirigiam-se ao Cristo que estava para vir, eram antecipações
de Cristo ou, como dizem os Padres, typoi de Cristo. Também
aqueles que o precederam podiam entrar na contemporaneidade
com Ele, aquela que imploramos para nós.
Somos quase tentados a dizer que essa terceira dimensão
da liturgia, o seu situar-se entre a cruz de Cristo e o nosso pro­
ceder vital rumo àquele que nos representou e que deseja ser
"um" conosco (Gl 3, 1 8 . 28) , exprime a sua pretensão moral. E
sem dúvida no culto cristão está contida uma pretensão moral,
mas trata-se de muito mais que um puro moralismo. O Senhor
antecipou-se a nós, já fez a nossa parte, abriu o caminho que
não podíamos abrir porque a nossa força era insuficiente para
construir a ponte até Deus. Ele próprio se tornou essa ponte.
Agora trata-se de deixar-nos absorver nesse estar "para", de nos
deixar acolher por seus braços abertos que nos conduzem para
11
o alto. Ele, o Santo, nos santifica com a santidade que jamais nos
poderemos dar sozinhos. Somos inclusos no grande processo
histórico no qual o mundo caminha rumo à promessa do D eus
"tudo em todos" . Nesse sentido, aquela que no início aparece
como dimensão moral é, ao mesmo tempo, a dinâmica escatoló ­
gica da liturgia: a "plenitude" de Cristo, da qual falam as cartas
da prisão de são Paulo, se torna realidade, e só assim o evento
pascal se realiza através da história: até o final dura o "hoje" de
Cristo (Hb 4,7ss.) .
Se reexaminarmos as reflexões feitas até aqui neste capítu­
lo, notaremos que duas vezes - em âmbitos diferentes - en­
contramos uma tríplice passagem. A liturgia se caracteriza pela
tensão com a Páscoa histórica de Jesus (cruz e ressurreição) , seu
fundamento real. Na singularidade desse evento, formou-se algo
permanente, que - é esse o segundo passo - na ação litúrgica
entra em nosso presente e que, - terceiro passo - a partir daí,
quer alcançar e atingir a vida daqueles que celebram e, assim,
toda a realidade histórica. O evento imediato - a liturgia - pos­
sui um sentido, que só é significativo para a nossa vida se traz em
si as outras duas dimensões; passado e presente se entrecruzam e
tocam a eternidade. Antes encontramos três graus da história da
salvação que - segundo a fórmula dos Padres da Igreja - pro­
cede da sombra para a imagem até a realidade . Ademais, vimos
que em nosso tempo - o tempo da Igreja - estamos em uma
fase intermediária do caminho da história: o véu do templo se
rasgou, o céu se abriu graças à união do homem Jesus, e então
da humanidade inteira, com o Deus vivo. Contudo, essa nova
abertura só se comunica conosco através dos sinais da salvação.
Temos necessidade da mediação e ainda não vemos o Senhor
"assim como Ele é". Se sobrepusermos os dois esquemas tri­
partidos - o histórico e o litúrgico -, veremos que a liturgia é
exatamente a expressão dessa situação histórica, que exprime o
caráter intermediário do tempo das imagens em que nos encon­
tramos. A teologia da liturgia é particularmente teologia sim­
"

bólica", teologia dos símbolos que nos ligam Àquele que está ao
mesmo tempo presente e escondido.
Daí deriva, finalmente, a resposta para a pergunta da qual
partimos : depois que o véu do templo se rasgou e o coração de
Deus foi aberto para nós no coração transpassado do Crucifica­
do, ainda precisamos do espaço sagrado, do tempo sagrado, dos
símbolos mediadores? Sim, precisamos justamente para apren­
der através da "imagem", através do sinal, a ver o céu aberto,
para conseguir reconhecer no coração transpassado do Crucifi­
cado o mistério de Deus. A liturgia cristã não é mais culto subs­
titutivo, mas um vir ao nosso encontro daquele que nos repre­
senta, participação em sua ação vicária como participação da
própria realidade. Tomamos parte na liturgia celeste, sim, mas
essa participação nos é comunicada através dos sinais terrenos
que o Redentor nos mostrou como espaço de sua realidade. Na
celebração litúrgica, de certo modo, se realiza a passagem do
exitus para o reditus, a saída se torna retorno, a descida de Deus
se torna nossa subida. A liturgia introduz o tempo terreno no
tempo de Jesus Cristo e em sua presença. Ela é o ponto da vi­
rada no processo da redenção: o pastor coloca nos ombros a
ovelha perdida e a leva para casa.

.....
.;
Capt)o :1
Lugares santos:
o significado do
edifício igreja

Mesmo os mais ferrenhos adversários da sacralidade - no caso


específico, do lugar sacro - admitem que a comunidade cristã
precisa de um lugar onde possa se reunir e definem, a partir daí,
a função do edificio igreja em sentido não sacra}, mas rigorosa­
mente funcional: ele possibilita o encontro litúrgico. Esta é, in­
discutivelmente, uma função essencial do edificio igreja, graças
à qual ele difere da forma clássica do templo na grande maioria
das religiões. O rito de expiação no Santo dos Santos da antiga
Aliança era celebrado somente pelo sumo sacerdote; ninguém,
exceto ele, podia ali entrar, e ele próprio só entrava uma vez por
ano. Do mesmo modo, também os templos de todas as outras
religiões não costumavam ser lugares de reunião dos orantes,
mas espaços cultuais reservados à divindade. O fato de o edi­
ficio cristão bem depressa ter sido denominado domus ecclesiae
(casa da "Igreja", da assembleia do povo de Deus) e de o termo
ecclesia (assembleia, igreja) ter sido usado para definir de forma
abreviada não só a comunidade vivente, mas também a casa que
a abriga, manifesta uma outra concepção: o "culto" é celebrado
pelo próprio Cristo em seu estar perante o Pai, é Ele o culto dos
seus no momento em que eles se reúnem com Ele e em torno
d'Ele. Essa diferença essencial entre o espaço da liturgia cristã e
os "templos", todavia, não pode ser estímulo para uma falsa opo­
sição, na qual é interrompida a continuidade interna da histó­
ria religiosa da humanidade, que nunca aparece anulada seja no
Antigo seja no Novo Testamento, apesar de todas as diferenças
existentes. Em sua XVIII Catequese (23-25), Cirilo de Jerusalém 11
acentua justamente o fato de que a palavra convocatio (synagogé­
ekklesía = assembleia do povo convocado), lá onde aparece pela
primeira vez - no Pentateuco, por ocasião da consagração de
Aarão -, se refere explicitamente ao culto. Mostra que isso é
verdade também em todas as outras passagens da Torá, e que
essa correlação não se perde na passagem para o Novo Testa­
mento. A convocação, a assembleia, possui um escopo, e esse
escopo é o culto, do qual deriva e para o qual tende o chamado. É
o culto que reúne os convocados, que dá dignidade e signifi ca d o
ao seu encontro, isto é, ao seu ser uma só coisa naquela "paz"
que o mundo não pode dar. Isso está claro também no protótipo
da ekklesía tanto no Antigo como no Novo Testamento: a comu­
nidade do Sinai. Ela se reúne para escutar a palavra de Deus e
para selá-la no evento sacrifical, para que se estabeleça o "pacto"
entre Deus e o ser humano.
Em vez de prosseguir com reflexões de caráter geral, ob­
servemos mais atentamente o modo pelo qual o espaço eclesial
tomou forma concreta. Louis Bouyer - reportando-se sobre­
tudo às pesquisas de E. L. Sukenik - mostrou como a casa de
Deus cristã surgiu em estreita continuidade com a sinagoga e
que, sem dramáticas rupturas, recebeu a sua específica novi­
dade cristã através da comunhão com Jesus Cristo, crucificado
e ressuscitado. Essa íntima ligação com a sinagoga, com a sua
estrutura arquitetônica e as suas formas cultuais, não contradiz
nem um pouco o que dissemos até aqui, ou seja, que a liturgia
cristã inclui em si também o templo, e que não é só uma conti­
nuação da sinagoga. A própria sinagoga, com efeito, se reporta­
va ao templo. A sinagoga não era simplesmente um lugar de en­
sinamento, uma espécie de sala de ensino religioso - segundo a
expressão de Bouyer -, mas era sempre focada na presença de
Deus. Para os hebreus, porém, essa presença de Deus estava (e
está) estreitamente ligada ao templo. A sinagoga, portanto, era
caracterizada por dois pontos fundamentais. O primeiro era a

"cátedra de Moisés", da qual Jesus também fala no Evangelho


(Mt 23,2). O rabino nada diz de seu, nem mesmo é um pro­
fessor que analisa e faz uma reflexão intelectual sobre a palavra
de Deus; ele torna presente a palavra que Deus comunicou a
Israel através de Moisés, e a comunica ainda hoje. Deus fala hoje
através de Moisés. A cátedra de Moisés existe para que o Sinai
não seja apenas experiência do passado, porque aqui não ocorre
apenas um discurso humano, mas é Deus quem fala.
A cátedra de Moisés não existe, pois, como um polo autô­
nomo. E nem é simplesmente dirigida ao povo: o rabino - bem
como todos os que estão na sinagoga - está voltado para a arca
da Aliança, ou melhor, para o escrinio da Torá que representa
a arca desaparecida. Até o exílio, a arca da Aliança foi o úni­
co "objeto" que podia ter um lugar no Santo dos Santos, e lhe
conferia o seu caráter peculiar. A arca era tida como um trono
vazio, sobre o qual pairava o Shekhinah, a nuvem da presença de
Deus. Os querubins, nos quais eram representados os elemen­
tos do mundo, figuravam como "assistentes do trono"; não mais
divindades autônomas, mas expressão das forças da criação em
adoração ao único Deus. "Vós que estais sentado sobre os que­
rubins", assim é invocado o Deus que os céus não podem conter,
e que escolheu a arca santa como "escabelo" de Sua presença.
Nessa visão, a arca simboliza a presença real de Deus entre os
seus: ela é, ao mesmo tempo, impressionante representação da
ausência de imagens no culto veterotestamentário, que situa
Deus em sua soberania e, por assim dizer, lhe oferece apenas o
escabelo de seu trono. A arca da Aliança fora perdida no exílio,
desde então o Santo dos Santos estava vazio: assim o encontrou
Pompeu, quando, atravessando o templo, afastou o véu e entrou
curioso no Santo dos Santos e, exatamente naquele espaço vazio,
encontrou o que há de mais peculiar na religião bíblica: o Santo
dos Santos vazio também se tornara, então, um ato de espera, de
esperança que o próprio Deus iria reconstruir o seu trono.
Se a sinagoga contém no escrínio da Torá uma espécie de
arca da Aliança, exatamente por isso ela é o lugar de uma como
que "presença real", visto que nela se conservam os rolos da
Torá, a palavra viva de Deus, por meio da qual ele habita em
Israel no meio de seu povo. Por isso, o escrinio era cercado por
sinais de reverência, dirigidos à misteriosa presença de Deus:
era protegido por um véu, diante do qual ardiam as sete luzes da
menorá, o candelabro de sete braços. Todavia, a presença de uma 17
arca da Aliança na sinagoga não significa de fato de que agora
a comunidade tenha se tornado autárquica, independente, mas
exatamente que ela é o lugar da própria autossuperação em di­
reção ao templo, à comunidade do único povo de Deus a partir
do único Deus: trata-se em qualquer lugar da única e mesma
Torá. Desse modo, a arca remete para além de si mesma, para o
único lugar de sua presença que Deus escolheu para si: o Santo
dos Santos no templo de Jerusalém. Esse Santo dos Santos per­
maneceu, conforme explica Bouyer, "o fulcro único do culto da
sinagoga" (18). Assim, "todas as sinagogas, no tempo de Jesus
e a partir de então, são voltadas para Jerusalém". O rabino e o
povo olham para a "arca da Aliança" e, assim fazendo, se voltam
para Jerusalém, para o Santo dos Santos do templo enquanto
lugar da presença de Deus para o seu povo. As coisas permane­
ceram assim mesmo após a destruição do templo. Se já o Santo
dos Santos vazio fora expressão de uma esperança, agora é o
templo destruído que espera o retorno da Shekhinah, a própria
reconstrução por obra do Messias que virá.
Esse direcionamento para o templo e a consequente liga­
ção da liturgia da palavra sinagoga! com a liturgia sacrifical do
templo se manifesta na forma da oração. As orações recitadas
durante o desenvolvimento e a leitura do rolo da Torá provêm
das orações rituais originalmente ligadas aos atos sacrificais do
templo, que então - segundo a tradição da época em que o tem­
plo já não existia - podiam ser consideradas equivalentes ao
próprio sacrificio. A primeira das duas grandes orações do rito
sinagoga} culmina na récita comum da Kedushá, da qual fazem
-
parte o hino dos serafins de Isaías 6 e o hino dos querubins de
7

Ezequiel 3. Bouyer observa a respeito: "A verdade deve ser que o


associar-se dos seres humanos a esses cânticos celestes, no culto
do templo, era indubitavelmente um aspecto central da oferta do
sacrificio do incenso, manhã e noite" (21). Tudo isso não faz lem­
brar o Triságio da liturgia cristã, o "três vezes santo" no início do
cânon, quando a comunidade não emite pensamentos pessoais e
poemas, mas se eleva acima de si, associando-se ao hino de lou­
vor cósmico dos querubins e dos serafins? A outra grande oração
da sinagoga culmina "com a récita da 'Avodà que, segundo os
rabinos, em seu tempo fora a oração de consagração do holo­
causto cotidiano no templo" (21). A súplica aqui acrescentada
para invocar o advento do Messias e a restauração final de Israel,
segundo Bouyer, podia ser entendida "como expressão da es­
sência do culto sacrifical" (21). Lembremos, aqui, da passagem
dos sacrificios de animais à "adoração racional", que marca a
passagem do Antigo para o Novo Testamento. Finalmente, resta
fazer referência ao fato de que não criaram uma tipologia arqui­
tetônica própria para a sinagoga, mas utilizaram a construção
tipicamente grega, reservada às reuniões públicas: a "basílica"
( 19), cujas naves laterais, separadas por fileiras de colunas, faci­
litavam a circulação de todos os que entravam.
Eu me detive assim longamente na descrição da sinagoga
porque aí já se tornam visíveis as constantes essenciais do espaço
litúrgico cristão, e então, se pode claramente captar a unidade
essencial dos dois Testamentos. Não surpreende que essa estrei­
ta ligação entre sinagoga e edificio de culto cristão, como conti­
nuidade e renovação no espírito, se tenha mantido em sua forma
original, sobretudo nos edificios da cristandade semítica, não
grega, portanto, no âmbito das igrejas monofisitas e nestorianas
da Ásia Menor, que no tempo das controvérsias cristológicas do
século V se separaram da Igreja imperial bizantina. Com relação
à forma até aqui delineada da sinagoga, da essência da fé cristã
derivam três inovações que constituem o traço propriamente
novo e específico da liturgia cristã. Em primeiro lugar, não se
olha mais para Jerusalém, o templo destruído já não é mais con­
siderado o lugar da presença terrena de Deus. O templo de pe­
dra não exprime mais a esperança dos cristãos; o seu véu se
rasgou para sempre. Agora se olha para o Oriente, para o sol que
nasce. Não se trata de um culto solar, mas é o cosmos que fala
de Cristo. Com referência a Ele ora é interpretado o hino solar
do Salmo 18( 19), no qual se diz:" [o sol] que sai como um espo­
so do seu tálamo, como um atleta exulta em seu percurso; onde
começa o céu ele aparece, chega em sua corrida ao outro extre­
mo" (vv. 6s.). Este salmo passa diretamente da celebração da
criação para o louvor da lei. Isso agora é entendido a partir de
19
Cristo, a verdadeira palavra, o logo eterno e, então, a verdadeira
luz da história, que nasceu em Belém do leito nupcial da Virgem
Mãe e que agora ilumina o mundo inteiro. O O riente substitui
como símbolo o templo de Jerusalém. Cristo, representado pelo
sol, é o lugar da Shekhinah, o verdadeiro trono do Deus vivo; na
encarnação a natureza humana tornou-se verdadeiramente o
trono de D eus , que assim está ligado para sempre à terra e aces­
sível à no s sa oração. Na igreja antiga a oração voltada para o
Or iente era considerada uma tradição apostólica. Embora não
se possa datar com certeza o início dessa mudança de orienta­
ção, da direção do templo para o Oriente, é certo, no entanto,
que remonta a uma época muito remota e que sempre foi con­
siderado um traço característico da liturgia cristã (também na
oração privada). A essa "orientação" (oriens = leste, Oriente;
orientação significa, pois, "direcionar para o leste") da oração
cristã estão associados vários significados. Orientação é, antes
de tudo, simples expressão do olhar voltado para o Cristo como
lugar de encontro entre Deus e o ser humano. Ele exprime a
forma cristológica fundamental da nossa oração. O fato, porém,
de que se veja Cristo simbolizado no sol que nasce também re­
mete para uma cristologia escatologicamente determinada. O
sol simboliza o Senhor que retornará, o último alvorecer da his­
tória. Rezar voltado para o Oriente significa ir ao encontro do
Cristo que vem. A liturgia voltada para o Oriente opera, ao mes­
mo tempo, o ingresso no curso da história que caminha para o

seu futuro, rumo ao novo céu e à nova terra que, em Cristo, vêm
ao nosso encontro. Ela é oração de esperança, é o rezar cami­
nhando na direção que nos indicam a vida de Cristo, a sua pai­
xão e a sua ressurreição. Exatamente por isso, bem depressa, em
várias partes da cristandade, a direção do Oriente é apontada
pela cruz. Pode-se constatá-lo através de um paralelo entre
Apocalipse 1,7 e Mateus 24,30. No Apocalipse de João, lê-se:
"Olhai! Ele vem entre as nuvens! Todo olho o verá, e também
aqueles que o transpassaram. E todas as tribos da terra se la­
mentarão por sua causa. Sim. Amém!". O autor do Apocalipse
se reporta aqui a João 19,37, que, no final da cena da crucifica­
ção, cita o famoso dito profético de Zacarias 12, 1 O: "Contem­
. piarão aquele que transpassaram", que ora adquire de imediato
um significado concreto. Finalmente, em Mateus 24,30 estão
transcritas estas palavras do Senhor: "Então aparecerá no céu o
sinal do Filho do homem, e todos os povos da terra baterão no
peito [Zc 12, 1 O] e verão o Filho do homem aparecer sobre as
nuvens do céu [Dn 7,13] com a plenitude do poder e da glória".
O sinal do Filho do homem, d' Aquele que foi transpassado, é a
cruz, que ora se torna o sinal da vitória do Ressuscitado. Desse
modo, o simbolismo da cruz e o simbolismo do Oriente se en­
trelaçam; ambos são expressão da mesma e única fé, na qual a
memória da Páscoa de Jesus se faz presença e lhe confere a di­
nâmica da esperança que vai ao encontro d' Aquele que vem.
Assim, esse voltar-se para o Oriente também significa que o cos­
mos e a história da salvação estão ligados entre si. O cosmos
entra nessa oração, também ele espera a libertação. Exatamente
essa dimensão cósmica é um elemento essencial da liturgia cris­
tã. Ela nunca se realiza somente no mundo que o ser humano
construiu sozinho. Ela é sempre liturgia cósmica - o tema da
criação é parte integrante da oração cristã. Ela perde a sua gran­
deza se esquece essa íntima relação. Por isso, é necessário reto­
mar a tradição apostólica da orientação para o leste dos edificios
cristãos e da própria práxis litúrgica, ao menos onde isso for
possível. Retornaremos a esse tema quando tratarmos da orde­
nação da oração litúrgica.
A segunda novidade relativa à sinagoga consiste no fato de
que emerge um elemento completamente novo, que não podia
existir na sinagoga: na parede oriental, ou seja, na abside, ago­
ra está o altar, sobre o qual é celebrado o sacrificio eucarístico.
Como vimos, a Eucaristia é um entrar na liturgia celeste, um
tornar-se contemporâneo do ato de adoração de Jesus Cristo em
que Ele, por meio de seu corpo, assume em si o tempo do mun­
do e, ao mesmo tempo, o levanta acima do tempo, conduzin­
do-o até a comunhão no eterno amor. Por isso o altar significa
um ingresso do Oriente na comunidade reunida, e uma saída da
comunidade do cárcere deste mundo através do véu ora aberto;
significa, além disso, participação na Páscoa, na "passagem" do
mundo para Deus que Cristo nos abriu. É evidente que o altar
11
na abside olha para o "Oriente" e é, ao mesmo tempo, parte
dele. Se na sinagoga, além da arca santa e do escrínio da palavra,
se olhava para Jerusalém, agora com o altar foi posto um novo
centro de gravidade: nele - repetimos - volta a estar presente
aquilo que antes era representado pelo templo. Ele serve, antes,
para a nossa contemporaneidade com o sacrificio do logos. Man­
tém, então, o céu na comunidade reunida, ou melhor, a porta
acima de si na comunhão dos santos de cada lugar e de todos
os tempos. Podemos também afirmar que o altar é, por assim
dizer, o lugar do céu aberto; ele não fecha o espaço eclesial, mas
o abre para a liturgia eterna. Trataremos em seguida sobre as
consequências práticas desse significado do altar cristão, visto
que a questão da correta colocação do altar se situa no centro
das polêmicas pós-conciliares.
Primeiro, porém, é preciso terminar de tratar das mudan­
ças que atingiram a sinagoga a partir da essência da fé cristã. O
terceiro elemento que convém observar a esse respeito é que a

arca da Escritura foi conservada e manteve a sua colocação no


edificio eclesiástico, mas também aqui com uma novidade subs-
,

tancial. A Torá se somam os Evangelhos, os quais, por si sós,


podem desvelar o sentido da Torá: "Foi sobre mim que Moisés
escreveu" Oo 5,46). O escrínio da palavra, a "arca da Aliança",
se torna então o trono do Evangelho, que certamente não abole
as "Escrituras", não as deixa de lado, mas as explica, de modo
que agora elas também formam as "Escrituras" dos cristãos, e

sem elas o Evangelho não teria fundamento. É mantido o uso


sinagoga! de cobrir o escrínio com um véu para exprimir a san­
tidade da palavra. Em consequência, deriva naturalmente que
o segundo lugar santo, o altar, seja envolto por um véu, donde
se desenvolve a iconóstase na Igreja oriental. A duplicidade dos
lugares santos teve uma consequência importante para a práxis
litúrgica: na liturgia da palavra a comunidade se reunia ao redor
do escrínio dos livros sagrados, ou seja, em torno da cátedra a

ele associada e que de cátedra de Moisés se tornou cátedra epis­


cop al Assim como o rabino não falava por autoridade própria,
.

assim o bispo agora explica a Bíblia, em nome e por conta de


Cristo, pelo qual, de palavra escrita e passada, ela volta a ser o
que é: discurso presente que Deus dirige a nós. No encerramen-
to da liturgia da palavra, durante a qu al os fiéis se recolhem ao
redor da cadeira episcopal, todos os presentes com o bispo se
deslocam em torno do altar, onde se ouve o apelo: conversi ad
Dominum - voltai-vos para o Senhor, isto é: olhai agora, junta­
mente com o bispo, para o Oriente, no sentido da afirmação da
carta aos Hebreus: "Tenhamos bem diante dos olhos o exemplo
de Jesus, o autor e o aperfeiçoador de nossa fé" ( 12,2). A liturgia
eucarística se realiza com o olhar fixo em Jesus, é olhar voltado
para Ele. A liturgia possui, portanto, na estrutura da Igreja cr istã
primitiva , dois lugares . O primeiro é o da liturgia da palavra, no
centro do espaço, no qual os fiéis se reúnem ao redor do berna,
uma espécie de tribuna sobre a qual ficava o trono do Evange­
lho, a cadeira episcopal e a estante de leitura. A autêntica liturgia
eucarística tem seu lugar na abside, junto ao altar, que os fiéis
rodeiam, todos voltados, juntamente com o celebrante, para o
Oriente, para o Senhor que vem.
Finalmente, convém fazer referência a uma última diferen­
ça entre a sinagoga e as igrejas das origens: em Israel, apenas a
presença dos homens era considerada fundamental para a cele­
bração do culto. Somente a eles se referia o sacerdócio univer­
sal descrito em Êxodo 1 9. Na sinagoga, as mulheres só podiam
ocupar lugar nas tribunas ou nas galerias. Na Igreja de Cristo,
já a partir dos Apóstolos, e do próprio Jesus, não existia essa
distinção. Ainda que o serviço público da palavra não fosse con­
fiado às mulheres, elas eram incluídas na celebração litúrgica,
exatamente como os homens. Por isso, embora separadas dos
homens, elas possuíam um lugar no espaço sagrado, ao redor do
berna, bem como em torno do altar.
Cap11u:o 11:

O altar e a orientação
da oração na liturgia

As transfo rmaç ões da s inagoga até aqui descritas, com referên­


cia à liturgia cristã, permitem reconhecer com muita clareza
a continuidade e a novidade na relação entre Antigo e Novo
Testamento, também do ponto de vista arquitetônico. Tomava
for ma, assim, o espaço para o autêntico culto cristão, a celebra­
ção eucarística, com o serviço da palavra a ele correspondente.
É claro que evoluções posteriores não só eram possíveis, mas
necessárias. O batismo pre cisava achar seu espaço apropriado.
O sacrame nto da penitên cia teria uma longa evolução, cujos re­
sultados encontraram resposta na conformação com a igreja . A
devoção popular, em suas múltiplas formas, necessariamente ti­
nha expressão no espaço litúrg ic o . Convinha esclarecer a ques­
tão das imagens, encontrar uma co rr et a colocação para a mú­
sica sacra. Mas o cânone arquitetônico da liturgia da palavra e
da liturgia sacramental, assim como o conhecemos, não era de
fato rígido; naturalmente, diante de cada evolução e mudança
convém perguntar-se o que corresponde à essência da liturgia e
o que afasta dela. Com referência a essa pergunta, a forma dos es­
paços litúrgicos da cristandade de língua e cul tu r a
semítica, de
que falamos acima, oferece critérios que não podem ser mini­
mizados. Sobretudo, porém, além de todas as mudança s, uma
coisa permaneceu clara para toda a cristandade até o segundo
milênio avançado: a oração voltada para o Oriente é uma tradi­
ção que remonta às origens, é expressão fundamental da síntese
cristã de cosmos e história, de apego à unicidade da história da
salvação e de caminho rumo ao Senhor que vem. A fidelidade
àquilo que já nos foi dado, bem como a dinâmica do progredir
encontram nela igual expressão.
O ser humano contemporâneo pouco compreende dessa
"orientação". Enquanto para o hebraísmo e para o Islã continua
a ser óbvio que se deve rezar voltado para o lugar central da re­
velação - para Deus, onde e como Ele se mostrou a nó s -, no
m u n do ocidental se tornou do mina nte um pensamento abstrato
que, sob certos aspectos, é até fruto da mesma evolução da cul­
tura cristã. Deus é espírito, e Deus está em toda parte. Isso não
significa, acaso, que a oração não está ligada a nenhum lugar e
a nenhuma direção? Com efeito, podemos rezar em qualquer
lugar, e Deus é acessível a nós em toda parte. Essa universali­
dade do pensamento cristão é consequência da universalidade
cristã, do olhar cristão para o Deus que está acima de todos os
deuses, que abraça o cosmos e que é mais íntimo de nós que nós
mesmos. Mas a consciência dessa universalidade é fruto da re­
velação: Deus mostrou-se a nós. Só por isso o conhecemos, e só
por isso podemos abandonar-nos confiantes nele na oração em
q ualqu er lugar. Exatamente por essa razão, continua apropria do
o fato de que na oração cristã encontre expressão a dedicação
confiante ao Deus que se revelou a nós. E como o próprio Deus
assumiu um corpo, e entrou no espaço e no tempo da terra, é
natural - ao menos na oração litúrgica comunitária - que o
nosso falar com Deus seja "encarnado", cristológico, se volte
para o Deus trinitário através da mediação do Verbo Encarnado.
O símbolo cósmico do sol que nasce exprime, ao mesmo tempo,
a universalidade acima de todos os lugares e mantém a concre­
tude da revelação de Deus. A nossa oração se coloca, assim, na
procissão dos povos rumo a Deus.
Mas como estão as coisas sobre o altar? Para qual direção
-

;=

rezamos na liturgia eucarística? Enquanto na construção das


igrejas bizantinas a estrutura ora descrita era substancialmente
mantida, em Roma se desenvolvia uma disposição difere nt e A .

cadeira episcopal foi deslocada para o centro da abside; conse­


quentemente, também o altar foi conduzido para a nave central.
Parece que na basílica Lateranense e em Santa Maria Maior as
coisas permaneceram assim até o século IX. Na basílica de São
Pedro, porém, sob o pontificado de Gregório �,\agno (590-604),
o altar foi colocado próximo à cadeira episcopal, provavelmente
porque assim ficava em cima do túmulo de são Pedro. En­
contrava, assim, e xp ressã o concreta o fato de que celebramos o
sacrificio do S e nho r na comunhão dos santos, que abraça cada
tempo. O costume de construir o altar sob re os túmulos dos
mártires remonta a muito antes no tempo e exprime sempre
o m esmo conceito: os mártires tornam presente o sacri fi c i o de
Cristo ao longo de todo o curso da história; eles são, po r assim
dizer, o altar vivo da I gre j a, que não é feito de pedra , mas de
pessoas que se tornaram mem bros do corpo de Cristo e que
exp rim em, assim, o novo culto: o sacrificio é a humanidade que
com Cristo se transforma em amor. Parece, além disso, que a
disposição ad otada na basílica de São Pedro tenha sido imitada
em muitas outras igrejas romanas.
Cada detalhe dessa evolução é objeto de discussões, que,
para as nossas reflexões, são de pouca importância. Em nosso
século, em vez disso, o debate foi aceso por outras inovações. As
investigações topográficas revelaram que a basílica de São Pedro
olhava para o Ocidente. Mas, se o sacerdote celebrante quisesse
olhar para o Oriente - como exige a tradição litúrgica cristã - ,
então tinha de se situar atrás do povo e, consequentemente, olha­
ria para os fiéis. Contudo, por influência direta da basílica de São
Pedro, se pode encontrar essa disposição em toda uma série de
outras igrejas. A renovação litúrgica de nosso século se reportou
a essa presumível posição do celebrante, para desenvolver com
base nela uma nova ideia de forma litúrgica: a Eucaristia deve ser
celebrada versus populum (voltada para o povo); o altar - como
se deduz pela representação de são Pedro, considerada normati­
va -, deve estar disposto de maneira tal que o sacerdote e o povo
possam se olhar mutuamente e assim constituir em seu conjunto
o círculo dos celebrantes. Apenas essa forma corresponderia ao -

sentido da liturgia cristã, ao empenho da participação ativa. So­ 'e-'

mente assim se corresponderia, além disso, à imagem original da


Última Ceia. Estas conclusões parecem tão convincentes que,
após o Concilio (que, por si, não fala de "disposição voltada para
"
o povo ), em toda parte foram erigidos novos altares; a celebra-
87
,-�,, ''rll'llhh.ha t'l·nru pctpu/u,,, upurecc, hoje, com\' o verdadeiro
fruh' dn rcno\'U\U\l htúr�ica operada pdn ( :ondlio Vaticano 11.
( :, '"' cfcih ,, da e a '-·nnsc4uência mais visível de uma nova for-
11\U '-tllC niln si�nith:a apenas uma diferente disposição exterior
dns cspaç\)s litúrgicos. mas implica uma nova ideia da essência da
liturgia como rcfcição comunitária.
Í� c\·identc 4uc, desse modo, o traçado da ba sílica romana e

da disposição do altar em seu interior foi entendido mal. E menos


ainda se a p ro xi m a Última Ce ia de Jesus. Vejamos,
da imagem da
a respeito, o qu e escreve Louis Bouycr: "A id eia de que um a

celebração di ante do povo seja primitiva, em particular a da ceia


eu carística , não possui outro fundamento senão o de uma errada
concepç ão do que seria uma refeição na Antigu idade , fosse ela
cristã ou não. Em nenhuma re feição da e ra cristã o pr eside nte de
uma assembleia de co m ensais ficava de frente para os outros par­
ti ci p ante s . Estes ficavam todos sentados, ou reclinados, no lado
oposto de uma mesa em forma de sigma ... De nenhuma parte,
portanto, na Antiguidade cristã, poderia vir a ideia de colocar-se
diante do povo para presidir uma refeição. Ao contrário, o caráter
comunitário da refeição era posto em destaque e x atamente pela
disposição contrária, isto é, pelo fato de que todos os participan­
tes ficavam do mesmo lado da mesa" (p. 38).
A essa análise da "forma do banquete" convém acrescen­
tar, de todo modo, que a Eucaristia certamente não pode ser
descrita exatamente pelo termo "refeição" ou "banquete". O
Senhor, com efeito, instituiu sem dúvida a novidade do culto
cristão no âmbito de um banquete pascal judaico, mas ordenou
que repetíssemos essa novidade, não o banquete como tal. Exa­
tamente por isso a novidade rapidamente se libertou do seu an­
tigo contexto e achou uma forma própria para ela, que já tinha
sido antecipada p elo fato de que a Eucaristia remete à cruz e,
assim, à transfarmação do sacrificio do templo na liturgia racio­
nal. Outra consequência é que a liturgia sinagogal da palavra foi
renovada e aprofundada cristãmente, permeada pela memória da
morte e ressurreição de Cristo, então, precisamente desse modo,
permaneceu fiel ao encargo do "fazei isto". Essa nova imagem

conjuntural não podia, enquanto tal, ser simplesmente extraída
da "refeição,,, mas do c onjun to de templo e de sinagoga, de pa­
lavra e de sacramento, de dimensão cósmica e histórica. Ela se
cxprin1c exatamente na forma que encontramos na estrutura li­
túrgica das antigas igrejas da cristandade semítica. Ob\iamcntc,
ela p e rm an e c eu fundamental também para Roma. Cito, a pro­
pósito, no vam en te Bouyer: "Antes d aq uela data (isto é, antes do
século XVI), nunca tiv e m o s , e de nenhuma parte, a mínima in­
dicação de que se tenha atribuído alguma importância, ou pelo
menos certa atenção, ao fato de que o presbítero celebrasse com
o povo diante ou atrás de si. Como demonstrou Cyrille Vogcl, a
única c oi sa sobre a q ual realmente se insistiu e sobre a qual se
fez re fe rê ncia é que ele tinha de p ro n unciar a oração eu ca rí sti ca ,

assim como todas as demais oraç õ e s , voltado para o Oriente ...


Mesmo quando a orientação da Igrej a permitia ao cele b ran t e
rezar voltado para o povo, quando estava no altar, não era ape­
nas o p resbíte ro que devia voltar-se para o Ori e n te : a a sse m bleia
inteira o fazia juntamente com ele" (p. 39).
A consciência dessa situação certamente foi se d i ssol ven do
no decorrer da modernidade ou, mais exatamente, se perdeu
completamente, tanto no modo de construir as igrejas quanto
no de celebrar a liturgia. Só assim se explica o fato de que a
orientação comum do sacerdote e do povo tenha sido rotulada
como "celebração virada para a parede ", ou como " dar as cos­
tas ao povo", e que, portanto, parecia absurda e completamente
inaceitável. Só assim se explica que a ideia do " banquete", pos­
teriormente retomada nas representações artísticas modernas,
se tenha tornado então normativa para a celebração litúrgica dos
cristãos. Na verdade, introduziu-se, assim, uma clericalização
como jamais existira antes. Ora, com efeito, o sacerdote - ou o
"presidente ", como se prefira chamá-lo- se torna o verdadeiro
ponto de referência de toda a celebração. Tudo converge para
ele. É para ele que devemos olhar, é do seu ato que participa­
mos, é a ele que respondemos; é a sua criatividade que susten­
ta o conjunto da celebração. É igualmente compreensível que
se procure diminuir esse papel que então lhe é atribuído, dis­
tribuindo numerosas atividades e confiando na " criatividade "

dos grupos que preparam a liturgia, que querem e devem, em
primeiro lugar, "conduzir a si próprios". A atenção é cada vez
menos voltada para Deus, e é cada vez mais importante aquilo
que fazem as pessoas que ali se encontram, as quais, de fato, não
querem se submeter a um "esquema predisposto". O sacerdote
voltado para o povo dá à comunidade o aspecto de um todo
fechado em si mesmo. Ela não está mais - em sua forma -
aberta para a frente e para o alto, mas se fecha sobre si mesma.
O ato com o qual todos se voltavam para o Oriente não era "ce­
lebração virada para a parede", não significava que o sacerdote
"dava as costas ao povo": ele não era considerado tão importan­
te assim. Com efeito, como na sinagoga todos olhavam em di­
reção a Jerusalém, assim aqui todos se voltam "para o Senhor".
Para usar a expressão de um dos Padres da constituição litúrgica
do Concilio Vaticano II, J. A. Jungmann, trata-se precisamente de
uma mesma orientação do sacerdote e do povo, conscientes de que
caminham juntos em direção ao Senhor. Eles não se fecham num
círculo, não se olham reciprocamente, mas, como povo de Deus
a caminho, estão de partida rumo ao Oriente, para o Cristo que
avança e vem ao nosso encontro.
Mas acaso tudo isso não será romantismo e nostalgia do
passado? A forma original da oração cristã hoje nos diz algu­
ma coisa, ou devemos simplesmente procurar a nossa forma,
aquela para o nosso tempo? Obviamente, aqui não é só o desejo
de imitar o passado. Cada época tem de redescobrir e exprimir
o essencial. O que importa, pois, é continuar a descobrir aqui­
lo que é essencial através das mudanças de época. Certamente
seria errado rejeitar de imediato as novas formas do nosso sé­
culo. Foi correto aproximar o altar do povo, geralmente muito
distante dos fiéis, ainda que, nas catedrais, se podia retornar à
tradição do altar do Crucificado, que ficava entre a passagem do
altar-mor para a nave central. Também foi importante voltar a
distinguir com clareza o lugar da liturgia da palavra em relação à
liturgia eucarística propriamente dita, uma vez que aqui se trata
efetivamente de um discurso e de uma resposta, e que, assim,
faz sentido situar-se um diante do outro, quem anuncia e quem
escuta, os quais reelaboram no salmo aquilo que escutaram, o
retomam interiormente e o transformam em oração, de modo
que se torne resposta. Permanece essencial, todavia, a orien­
tação comum para o Leste durante a oração eucarística. Aqui
não se trata de alguma coisa casual, e sim do essencial. Não é
importante o olhar voltado para o sacerdote, mas a adoração
comum, o ir ao encontro Daquele que vem. O círculo fechado
em si mesmo não exprime a essência do evento, mas a partida
comum, que se exprime na orientação comum.
Contra essas ideias, que expus em outra ocasiã o, A. Hauílling
fez várias objeções. Já citei a primeira : essas ideias seriam uma
pesquisa romântica sobre o Anti go, uma errônea nostalgia do
passado. Além disso, seria estranho que eu me reportasse apenas
ao cristianismo antigo, deixando de lado todos os séculos suces­
sivos. Da parte de um especialista em liturgia, trata-se de uma
objeção séria, uma vez que a mim parece que o ponto problemá­
tico de grande parte da moderna ciência litúrgica consiste exata­
mente na pretensão de reconhecer no Antigo o único critério de
originalidade e, por co n segu in te, de respeitabilidade, a ponto
de considerar todo o sucessivo, que foi elaborado em seguida, na
Idade Média e após Trento, simplesmente lixo. Chega-se, assim,
a discutíveis reconstruções daquilo que é mais antigo, a critérios
mutáveis e, por fim, a contínuas propostas de formas sempre
novas, as quais, no final, terminam por dissolver a liturgia que
cresceu com a vida. Contra tudo isso é importante e necessário
reconhecer que não é o Antigo a poder ser, em si e por si, tal
critério, e que tudo o que veio em seguida não pode ser auto­
maticamente rotulado como estranho às origens. Pode haver,
sem sombra de dúvida, uma evolução viva na qual o germe da
origem atinge a maturidade e dá fruto. Convém retornar a esse
-;_.
pensamento. Em nosso caso, porém, como já especificado, não
se trata mesmo de uma fuga romântica para o Antigo, e sim da
redescoberta do essencial, no qual a liturgia cristã exprime a sua
orientação permanente. Hau13ling, evidentemente, considera
que hoje não se pode mais procurar repropor na liturgia a orien­
tação para o Leste, para o sol que nasce. Isso não é realmente
possível? O cosmos não tem ligação conosco? Estamos, hoje,
realmente fechados sem esperança em nosso círculo? Ou será
71
que não é mais importante, hoje, rezar juntamente com toda a
criação? Acaso não é importante, justamente hoje, dar espaço à
dimensão do futuro, da esperança no Senhor que vai retornar?
Reconhecer e viver a dinâmica da nova criação como forma es­
sencial da liturgia?
Uma posterior objeção mostrou que não é necessário olhar
para o Oriente e para a cruz, visto que quando o sacerdote e
os fiéis se olham reciprocamente veem no homem a imagem de
Deus; consequentemente, a correta orientação da oração é aque­
la na qu al todos se voltam, reciprocamente, uns para os outros.
Parece dificil acreditar que o conhecido critico tenha sustentado
seriamente uma justificativa desse gênero, uma vez que a ima­
gem de Deus no ser humano não pode ser vista facilmente.
"Imagem de Deus" no ser humano não é algo que se possa foto­
graf ar, ou perceber num olhar puramente fotográfico. Pode, ob­
viamente, ser vista do mesmo modo que se pode ver no homem a
bondade, a sinceridade, a verdade interior, a humildade, o amor:
é o que o torna semelhante a Deus. Mas exatamente por isso é
p reciso aprender o novo olhar, e para isso existe a Eucaristia.
Mais importante é uma objeção p ráti ca. Deve-se, e ntã o, no­
v ame nte mudar tudo? Nada é mais prejudicial para a liturgia que
c o lo car tudo de ponta-cabeça continuamente, ainda que não se
trate realmente de verdadeira novidade. Parece que uma saída
possa vir da ob ser vação à qual fiz referência no início, qu ando
citei as observações de Erik Peterson. A direção voltada para o
O r ie nte estava em íntima ligação com o "sinal do Filho do ho­
mem " , a cruz, que anuncia o retorno do Senhor. Bem depress a
o Oriente foi relacionado com o sinal da cruz . Onde não for pos­
-
sível voltar-se j untos para o Oriente de maneira explícita, a cruz
.
pode servir como o Oriente interior da fé. Ela deve situar-se no
-

centro do altar e ser o ponto para o qual converge tanto o olhar


---
do sacerdote quanto o da comunidade orante. Desse modo, se­
-:-.
guimos a antiga invocação pronunciada no início da Eucaristia:
"Conversi ad Dominum" - voltai-vos para o Senhor. Olhemos,
juntos, para Aquele cuja morte rasgou o véu do te mplo, Aquele
que está junto ao Pai em nosso favor e nos aperta em seus bra­
ços, Aquele que faz de nós um novo tem plo vivo. Entre os fe­
7Z
n ô menos verdadeiramente absurdos de nosso tempo, cito o fato
de que a cruz seja colocada em um lado para deixar livre espaço
para olhar para o sacerdote. Mas a cruz, durante a Eucaristia,
representa um incômodo? O sacerdote é mais importante que o
Senhor? Esse erro deveria ser corrigido o mais rápido possível,
e isso pode ser feito sem novas interferências arquitetônicas. O
'

Senhor é o ponto de referência. E ele o sol nascente da história.


Pode tratar-se tanto da cruz da paixão, que representa Jesus so­
fredor que deixa transpassar o seu lado por nós, do qual jorram
sangue e água - a Eucaristia e o Batismo -, como também de
uma cruz triunfal, que exprime a ideia do retorno e atrai a aten­
ção para Ele. Porque é Ele, assim, o único Senhor: Cristo ontem,
hoje e eternamente (Hb 1 3,8).

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71
Capítulo IV

A custódia do
Santíssimo Sacramento

A Igreja do primeiro milênio não conhece o tabernáculo. Em


seu lugar, inicialmente havia o escrinio da palavra, depois sobre­
tudo o altar, como tenda santa. Degraus facilitavam a subida ao
altar, protegido pelo " ciborium", um dossel de mármore do qual
pendiam lâmpadas acesas. Isso, ao mesmo tempo, evidenciava o
caráter sacra!. Entre as colunas do cibório havia um véu (Bou­
yer, 71-73). O tabernáculo como tenda santa, como lugar da
Shekhinah, da presença do Senhor vivo, só foi desenvolvido no
segundo milênio, como resultado de esclarecimentos teológicos
sofridos, nos quais se colocava em grande destaque a presen­
ça de Cristo na Hóstia consagrada. É aqui que nos deparamos
com a teoria da decadência, da canonização dos primórdios, da
idealização romântica do primeiro milênio. A transubstanciação
(transformação do pão e do vinho) , a adoração do Senhor no
sacramento, o culto eucarístico com o ostensório e as procis­
sões - todas essas coisas, como nos dizem, nada mais são que
erros medievais, dos quais é preciso afastar-se o mais rápido
possível. Os dons eucarísticos nos são dados para comer, não
para olhar. Este e outros slogans semelhantes somos obrigados
a ouvir. A superficialidade com que se juntam ideias desse gê­
nero só pode causar espanto, quando se pensa nas profundas
disputas dogmáticas, teológicas e ecumênicas sustentadas por
grandes teólogos nos dois últimos séculos. Parecem completa­
mente esquecidas.
Enfrentar mais profundamente essas questões teológicas não
71
é o escopo deste livro. Contudo, permanece absolutamente claro
que já em Paulo se lê que o pão e o vinho se tornam o corpo e o
sangue de Cristo, que Ele próprio, o Ressuscitado, está presente
e se oferece a nós como alimento . A força c om que João 6 subli­
nha a presença real só a custo pode ser sup era da . Também nos
Padre s da Igreja, desde o s primeiros testemunhos - pensemos
em Justin o Mártir e I ná cio de Antioq u ia -, não há ne nhuma
dúvida sobre o grande mistério dessa presença que nos é doa­
da , sobre a transformação dos dons na oração eucarística . Até
um teólogo como Agostinho, tão sensível à dimensão e s p iri tu al,
jama i s deixou dúvidas a re sp eito ; ao contrário, nele se p ode ver
como justamente a profissão de fé na Enc a rna ç ão e n a Ressurrei­
ção, que está em íntim a liga ção com a fé eucarística na presença
corpórea do Ressuscitado, transformou o platonismo, como "a
carne e o sangue" adquiriu, assim, uma nova dignidade, e como
aumentou a esperança cristã da eternidade . Com frequência é
mal entendida uma importante descoberta que devemos a Henri
de Lubac . O escopo da Eucaristia - sempre foi claro - é a nos­
sa própria transformação, de forma que nos tornemos "um cor­
po e um espírito" com Cristo ( cf. 1 Cor 6, 1 7). Este dado, que a
Eucaristia nos transforma, que ela quer mudar a humanidade no
templo vivo de Deus, no corpo de Cristo, encontrou expressão,
desde a Alta Idade Média, na dupla conceituai de " corpus mys­
ticum" e de "corpus verum" . Na linguagem dos Padres o termo
"mysticum" não tem o mesmo significado de hoje, mas significa:
pertencer ao mistério, ao âmbito do sacramento. Ou seja, com
o termo "corpus mysticum" encontrava expressão o corpo sa­
cramental, a presença corpórea de Cristo no sacramento. Isso,
segundo os Padres, nos foi dado para que nos tornemos " corpus
verum", corpo real de Cristo. As mudanças no uso linguístico e
nas formas de pensamento fizeram com que na Idade Média os

·.
significados se invertessem. Como " corpus verum" (verdadei­
ro corpo), entendeu-se, assim, o sacramento, enquanto " corpus
mysticum" (corpo místico) era chamada a Igreja, entendendo­
se então por "místico" não mais o significado de " sacramental",
mas o de " místico ", de "misterioso". D essa mudança terminoló­
gic a , minuciosamente descrita por De Lubac, alguns extraíram a
71
cons equên cia de que na doutrina eucarística surgiu um re alismo
até então desconhecido, antes, um autêntico naturalismo, e que
a g rande visão patrística foi eliminada em favor de uma ideia
estática e unilateral de presença real.
É verdade que semelhante mudança l ingu ísti ca também é
expressão de uma mutação espiritual, que não pode, no entan­
to, ser descrita de maneira tão unilateral, como acontece nas
tendências às quais fizemos referência . Corretamente convém
reco nhecer que alguma coisa da dinâmica escatológica do cará­
ter co mu nitár i o (o " nó s " ) da fé eucarística se p erd eu , ou pelo
menos passou para o segundo plano. Certamente não se tinha
mais tão presente o fato de que o p rópr i o sacramento, do modo
como vimos acima, insere em si uma dinâmica que visa à trans­
formação da humanidade e do mundo no novo céu e na nova
terra, na unidade do corpo ressuscitado de Cristo. Não se tinha
esqu ecido que a Eucaristia não visa prioritariamente s omente o
indivíduo, mas que o p ersonalismo eucarístico imp ele à comu­
nhão, à superação do muro entre Deus e o ser humano, entre o
eu e o tu, no novo "nó s " da comunhão dos santos, mas já não
s e estava mais tão claramente conscientes disso como antes. Se
é verdade que houve perdas na consciência cristã que nós, hoje,
procuram os remediar, também é verdade que no todo houve
um ganho. Sim, o corpo eucarístico do Senhor nos quer reunir
para qu e nos tornemos todos " o seu verdadeiro corpo ". Toda­
via , o dom eucarístico só pode fazê-lo porque o Senhor nos dá
o seu verdadeiro corpo; somente o verdadeiro corpo presente no
sacramento pode construir o verdadeiro corpo da nova cidade
de Deus. Essa visão une os dois períodos; é dela que se deve, an­
te s de tudo, partir. Na Igreja Antiga sempre existiu a consciência
de que o pão, uma vez transformado, permanece transformado.
Por isso era conservado p ara os doentes e zelosamente cuidado,
como ainda hoje acontece na Igreja do Oriente . Agora, porém,
essa consciência se aprofunda: o dom é transformado. O Senhor
assume totalmente a questão, e nisto não está contido um dom
material, mas Ele próprio está presente, o Indivisível, o Ressus­
citado: com carne e sangue, com corpo e alma, com divinda­
de e humanidade. Aqui está presente o Cristo por inteiro. Nos
11
primórdios do movimento litúrgico, pensou-se ter de fazer dis-
tinção entre uma "concepção objetiva" da Eucaristia da época
patrística e uma personalística a partir da Idade Média . Ou seja,
a presença eucarística não teria sido concebida como presen­
ça pessoal, mas como presença de um dom, distinto da pessoa.
Tudo isso não tem sentido nenhum. Quem lê os textos não pode
encontrar apoio para semelhantes ideias. Ademais, como pode­
ria o corpo de Cristo se tornar uma "coisa"? Só existe a plena
presença de Cristo. E receber a Eucaristia não significa comer
um dom "material " (corpo e sangue?), mas o que acontece aqui
é o recíproco e profundo encontro entre pessoa e pessoa . O Se­
nhor vivo se doa a mim, entra em mim e me convida a entregar­
me a Ele, de modo que: Eu vivo, mas já não sou mais eu, é Cristo
que vive em mim (Gl 2,20). Só assim comungar é um ato verda­
deiramente humano, que eleva e transforma o homem .
Essa consciência de que "Ele está aqui, exatamente Ele, e
p ermanece aqui" foi retomada na Idade Média da cristandade
com uma intensidade completamente nova. Contribuiu, para isso,
de maneira decisiva, o aprofundamento do pensamento teoló­
gico; porém mais importante que o aprofundamento do pensa­
mento foi a nova experiência do sacro, desenvolvida sobretudo
no movimento franciscano e na nova evangelização por obra
dos frades pregadores. Não estamos diante de um mal-enten­
dido medieval de um pensamento secundário : através da expe­
riência do sacro - sustentada e iluminada pelo pensamento dos
teólogos - se abre uma nova dimensão da realidade cristã, que
permanece, assim, na mais profunda continuidade com tudo
aquilo que se acreditava até então. Repetimos mais uma vez:
um aprofundamento consciente de fé liberta o conhecimento
de que na forma transformada Ele está presente e aí permanece.
Onde essa experiência é aprofundada com todas as fibras do
coração, da razão e dos sentidos, a consequência é inevitável:
então devemos realizar para essa presença o lugar que lhe cabe.
E é assim que, aos poucos, vai tomando forma o tabernáculo,
que termina sempre mais, e cada vez mais naturalmente, por
assumir o lugar que antigamente era da " arca da Aliança" (há
tanto tempo desaparecida). O tabernáculo realizou plenamen­
11
te o objetivo pelo qual antigamente existia a arca da Aliança.
Ele é o lu ga r do "Santíssimo": é a tenda de Deus, o trono, vis­
to que Ele está entre nós, que a sua presença ( Shekhinah) ora
habita realmente entre nós - na igreja mais pobre do vila r e j o
nã o menos que na maior das catedrais. Ainda que o templo
definitivo só existirá quando o mundo se tornar a nova Jerusa­
lém - aq uilo, para o qual o templo remetia, aqui está presente
na maneira m ais elevada. A nova Jerusalém é antecipada na
humildade da forma do pão.
Ninguém diga, então: a Eucaristia deve ser comida e não
adorada. Ela não é, com efeito, um "pão comum", como subli­
nham sem cessar as tradições mais antigas. Alimentar-se - aca­
bamos de afirmar - é um eve nto espiritual, que atinge toda a
realidade humana. "Alimentar-se" dela significa adorá-la. Sig­
nifica permitir que entre em mim, de tal modo que o meu eu
seja transformado e se abra para o grande nós, para que nos
tornemos "uma só coisa" n'Ele (Gl 3,28). Por isso a adoração
não se opõe à comunhão, nem se situa ao seu lado: a comunhão
só atinge a sua p rofu ndidade q uando é sustentada e incluída na
adoração. A presença eucarística no tabernáculo não supõe uma
concepção da Eucaristia paralela ou contrária à da celebração
eucarística, mas significa a sua plena realização. Essa presença,
com efeito, faz com que na igreja sempre haja a Eucaristia. A
igreja nunca se torna um espaço morto, mas é sempre reavivada
pel a presença do Senhor, que vem da celebração eucarística, nos
introduz nela e nos faz participar para sempre da Eucaristia cós­
mica. Qual pessoa crente já não experimentou isso? Uma igreja
sem presença eucarística de certo modo está morta, ainda que
convide à oração. Ao contrário, uma igreja na qual a luz eterna
arde diante do tabernáculo, está sempre viva, é sempre mais que
um simples edificio de pedra: nela o Senhor sempre me espe­
ra, me chama, quer tornar "eucarística" a minha pessoa. Desse
modo, prepara-me para a Eucaristia, coloca-me em movimento
rumo ao seu retorno.
A virada medieval produziu perdas, mas também conferiu
um extraordinário aprofundamento espiritual, desenvolveu a
grandeza do mistério instituído no cenáculo, e nos permitiu expe­
71
rimentá-lo numa nova plenitude. Quantos santos - exatamente
os s antos do amor ao próximo - foram alimentados e conduzi�
dos ao encontro do Senhor por essa. experiência! Não podemos
p erder essa riqueza. Para
que a presença do Senhor nos toque de
maneira concreta, o tabernáculo tem de ter o lugar que lhe cabe
também na estrutura arquitetônica das igrejas.
Capítulo V

Tempo santo

Se ora nos perguntarmos sobre o significado dos tempos sacros


no desenvolvimento da liturgia cristã, devemos considerar ad­
quirido tudo aquilo que foi objeto de nossa reflexão no primeiro
capítulo desta parte, a respeito do significado de espaço e tem­
po na liturgia cristã. Todo o tempo é tempo de Deus. A pala­
vra eterna, acolhendo a existência humana em sua Encarnação,
também acolheu a temporalidade, traçou o tempo dentro do es­
paço da eternidade. Cristo é, Ele próprio, a ponte entre o tempo
e a eternidade. Se em um primeiro momento não parece que
possa existir alguma relação entre o "sempre" da eternidade e o
tempo que transcorre, ora é o Eterno que traça para si o tempo;
no Filho, o tempo coexiste com a eternidade. A eternidade de
Deus não é simplesmente ausência de tempo, negação do tem­
po, mas é poder sobre o tempo, que se realiza como estar-com
e estar dentro do tempo. No Verbo Encarnado, que permanece
sempre homem, esse estar-com se torna corpóreo e concreto.
Todo o tempo é tempo de Deus. Todavia, mais uma vez é
verdade que a estrutura particular do tempo da Igreja, que co­
nhecemos como um "entre" - entre a sombra e a pura realida­
de -, exige um sinal, um tempo escolhido e bem determinado
para atrair o tempo, em sua totalidade, para as mãos de Deus. É
isso, com efeito, que caracteriza o universalismo bíblico, isto é,
que ele não se apoia numa concepção genericamente transcen­
dental do ser humano, mas quer chegar à totalidade através de
uma escolha. Ora, porém, torna-se inevitável a pergunta: mas,
11
afinal, o que é o tempo? Essa pergunta, que moveu os grandes
pensadores de todas as épocas da história, não podemos preten­
der esgotá-la como tal. Entretanto, um punhado de rápidas indi­
cações permanecem imprescindíveis, de modo a poder entender
a especificidade da relação entre a liturgia e o tempo. O tempo é,
antes de tudo, uma realidade cósmica: o giro da terra em torno
do sol (ou, como pensavam os antigos, do sol em torno da terra)
dá ao ser um ritmo, que chamamos tempo - de hora em hora,
da manhã à noite e da noite à manhã, da primavera, passando
pelo verão e o outono, até o inverno. Junto a esse ritmo solar se

situa aquele mais breve, o da lua - do seu lento crescer até o


desaparecer no novilúnio e ao seu novo início. Ambos os ritmos
criaram duas medidas, que na história da cultura resultam liga­
das por trocas recíprocas. Ambas são expressão do entrelaça­
mento entre o ser humano e a totalidade do universo: o tempo é,
antes de tudo, um fenômeno cósmico. O ser humano vive com

as estrelas; o percurso do sol e da lua permeia a sua vida.


Junto destes e abaixo deles se situam outros ritmos, que,
em certa medida, são próprios de outros graus do ser: a plan­
ta possui o seu tempo; os anéis nos troncos das árvores, por
exemplo, mostram o tempo interior e específico da árvore, que
naturalmente se entrelaça com o tempo cósmico. No caminho
que o vê amadurecer e murchar o ser humano possui, por sua
vez, seu tempo específico; pode-se dizer que, de certo modo, o
batimento do seu coração é o ritmo interior de seu tempo, no
qual mais uma vez o nível orgânico e o psíquico e espiritual che­
gam a uma misteriosa síntese que, por sua vez, se coloca dentro
da grandeza do universo, e também no patrimônio comum da
história. A via da humanidade, que chamamos história, é uma
modalidade particular do tempo.
Tudo isso está presente na liturgia e na específica modali­
dade com a qual ela se relaciona com o tempo. O espaço sagrado
do culto cristão de Deus já é, por si, aberto ao tempo: a orienta­
ção significa, com efeito, que a oração é dirigida ao sol que nasce,
e que ora se tomou portador de um significado histórico. Ele
remete ao mistério pascal de Cristo, à morte e ao novo início ; re­
mete ao futuro do mundo e ao cumprimento da história inteira

na vinda definitiva do Redentor. Eis por que na oração cristã o
tempo e o espaço se compenetram mutuamente; o próprio espaço
tornou-se tempo, e o tempo se torna, por assim dizer, espacial ,
entra no espaço. Do mesmo modo que espaço e tempo se entre­
laçam, assim também a história e o cosmos . O tempo cósmico, que
foi determinado pelo sol, se torna repre sent aç ão do tempo do ser
humano, e assim, do tempo hi st órico, que segue rumo à unidade
de D eus e mundo, de história e universo, de mat éria e espírito:
em uma palavr a , vai em direç ão à "ci dade nova", cuja luz é Deus ,
de modo que o tempo se torna eternidade e a eternidade se co­
munica com o tempo.
Na piedade veterotestamentária encontramos uma dupla
distinção do tempo: de um lado com o ritmo das semanas, que
se move em dire ção ao sábado; de outro com as festas, que em
parte são determinadas pelo s eventos da criação - semeadura
e colheita, mais as festas da tradição nomá dica -, e em parte
pel a memória do agir histórico de Deus; geralmente estas duas
origens estão ligadas entre si . Essa figura fundamental vale ainda
no cristianismo, que exatamente na ordenação do tempo está
em uma profunda continuidade interior com a herança judaica.
No cristianismo, além disso, também foi acolhida a herança das
religiões do mundo, que, assim, foi entregue ao único Deus e é
por Ele purificada e iluminada.
Comecemos pelo ritmo das semanas. Vimos que o sába­
do introduz no tempo o sinal da Aliança, e estabelece um laço
recíproco entre a cri a ç ão e ela . Essa ordem fundamental, que
também entrou no decálogo, continua a subsistir também no
cristianismo. Mas agora, por meio da Encarnação, da Cruz e da
Ressurreição, a Aliança foi elevada a um novo grau, tanto que se
pode falar de "nova Aliança". Deus novamente agiu e de nova
maneira, para dar à Aliança a sua amplitude universal e a sua
forma definitiva. Esse agir, porém, influiu no ritmo das semanas:
o seu vértice, para o qual todo o resto estava direcionado, foi a
ressurreição de Jesus "no terceiro dia". Refletindo sobre a Última
Ceia, vimos que ela, a cruz e a ressurreição estão intimamente
ligadas entre si - que a dedicação de Jesus até a morte confere
às palavras da Ceia o seu realismo. Esse dom, todavia, não teria
a
sentido algum se a morte tivesse a última palavra. Eis por que a
nova Aliança somente se realiza através da ressurreição: agora o
homem está unido para sempre a Deus. Ora ambas estão real e
indissoluvelmente ligadas entre si. Eis por que o dia da ressurrei­
ção é o novo sábado. É o dia em que o Senhor se torna presente
entre os seus e os convida para a sua "liturgia", em sua exaltação
a Deus, e se faz participante com eles. A manhã do "terceiro
dia" se torna a hora da celebração cristã. Partindo da conexão
entre Ceia, cruz e ressurreição, santo Agostinho mostra de que
modo, mediante sua unidade, a Ceia se torna de maneira abso­
lutamente óbvia o sacrificio da manhã, e como exatamente nesse
momento tenha sido praticado o mandamento proclamado na
hora da Ceia. A passagem da antiga à nova Aliança é perceptível
justamente na passagem do sábado para o dia da ressurreição
como novo sinal da Aliança; o domingo, portanto, assume como
seu o sentido que tinha sido do sábado. Esse dia foi batizado
de três modos diferentes: a partir da cruz, é o terceiro dia; no
Antigo Testamento o terceiro dia era visto como o dia da teofa­
nia, do ingresso de Deus no mundo após o tempo da espera. Se
partirmos do esquema das semanas, é o primeiro dia da semana;
finalmente, os Padres acrescentaram a ideia de que, se conside­
rarmos a semana que acaba de terminar, ele é o oitavo dia.
Desse modo, os três simbolismos terminam por entrecru­
zar-se: o mais importante deles, porém, é o do primeiro dia da
semana. No mundo mediterrâneo, no qual o cristianismo se for­
mou, o primeiro dia da semana era visto como o dia do sol,
enquanto os outros dias estavam ligados aos vários planetas en­
tão conhecidos. O dia da celebração litúrgica dos cristãos tinha
sido escolhido em memória do agir de Deus, a partir da data
da ressurreição de Jesus. Mas logo se percebeu que essa data
exprimia o mesmo simbolismo cósmico da orientação da oração
cristã. O sol anuncia Cristo, cosmos e história falam juntos dele.
A isto se somava, porém, uma outra constatação: o primeiro dia
é o dia do início da criação. A nova criação retoma a antiga. O
domingo cristão é também festa da criação: agradecimento pelo
dom da criação, pelo "faça-se" com o qual Deus criou o exis­
tir do mundo. Ela é agradecimento pelo fato de que Deus não
14 permite que a criação seja destruída, mas a restaura após todas
as d es truiç õ e s operadas pelo ser humano. No primeiro dia es tá
contida a ideia paulina segundo a qual a criação espera a revela­
ção dos filhos de Deus (Rm 8, 1 9) : ass im como o pecado destrói
a criação (e o vemos mui to bem!), assim ela fica curada quan­
do os "filhos d e Deus " se fazem pre s entes. O domingo explici­
ta, desse modo, a tarefa da qual se fala na narração d a c r i a çã o :
" s u bj ugai a terra ! " (Gn 1 ,28) . Isso não significa : Escravizai-a !
Devastai-a! Fazei dela o que quiserdes ! Mas : reconhecei-a como
um dom d e Deus! Protegei-a e cuidai dela como os filhos cui­
dam d a herança paterna. Protej am a terra, de modo que ela se
torne um verdadeiro j ardim de Deus, e se realize o seu sentido
mais profundo, de forma que também para ela seja verdade que
Deus é tud o em todos".
" É exatamente essa orientação que os
Padres queria m exprimir quando também chamaram o dia da
ressurreição de oitavo dia . O domingo não olha só para trás, m as
também adiante. O lhar para a ressurreição significa olhar para o
cum primento . Com o dia da ressurreição, em seguida ao dia de
sábado, Cristo superou o tempo, mas, ao mesmo tempo, o tirou
fora, para além de si mesmo. Os Padres chegaram à conclusão
de que a história do mundo, em seu conjunto, deve ser vista
como uma grande semana comparável às fases do ser humano.
O o itavo dia significa, assim, o novo tempo, iniciado com a res­
surreição. Ele transcorre j á agora, juntamente com a história . Na
liturgia, chegamos até a agarrá-lo, porém, ao mesmo tempo, ele
permanece sempre adiante de nós : sinal do mundo definitivo de
Deus, no qual sombra e imagem são superadas na reciprocidade
definitiva de Deus com as suas criaturas. A partir desse sim­
bolismo do oitavo dia, de bom grado e com frequência foram
construídos os batistérios - as igrej as batismais - com planta
octogonal, para explicar o batismo como nascimento no oitavo
dia , na ressurreição de Cristo e no novo tempo que ela abriu.
O domingo, portanto, é para os cristãos a verdadeira me­
dida do tempo, a unidade da medida de suas vidas . Ela não se
apoia em convenções arbitrárias, mas traz em si uma síntese única
de memória histórica, de evocações à criação e de teologia da es­
p erança . É a festa da ressurreição dos cristãos, que volta a cada

semana e que, todavia, não minimiza a lembrança específica da
Páscoa de Jesus. Pelo Novo Testamento se deduz muito clara­
mente que Jesus foi ao encontro de sua " hora " com plena cons­
ciência . A evocação da "hora de Je sus '', evidenciada no Evan­
gelho de João, sem dúvida possui vários níveis de significação .
Contudo, em primeiro lugar, ela remete a uma data : Jesus não
queria morrer num dia qualquer. A sua morte tinha um significa­
do para a história inteira, para a humanidade, para o mundo. Po r
isso ela tinha de se entrelaçar com uma determinada h ora cósmica
e histórica . Coincide com a Páscoa dos judeus, assim como é
apresentada e ordenada em Êxodo 1 2 . João e a carta aos Hebreus
mostram que ela assume em si também o conteúdo das outras
festas, sobretudo a da re conc ili aç ão , p orém a sua verdadeira data
é a Páscoa : a sua morte não é um acidente imprevisível qual­
quer, é uma "festa" - cumpre aquilo que na Páscoa tinha sido
simbolicamente iniciado. Ela - como vimos - conduz do subs­
tituto à realid a de , à sua doação vicária entendida como serviço.
A Páscoa é a "hora " de Jesus. Exatamente na ligação com
essa data se manifesta o significado histórico universal da mor­
te de Jesus . No início, a Páscoa era uma festa de nômades; de
Abel até o Apocalipse o cordeiro imolado é a p refiguração do
Redentor, do sacrifício puro. Nesse contexto, não é necessário
acompanhar posteriormente a importância do elemento nomá­
dico na origem da religião bíblica . No que diz respeito ao su rgi­
mento do monoteísmo, convém lembrar que ele não teve origem
nas grandes cidades e nas terras férteis, junto a grandes cursos
de água. Mas cresceu no deserto, no qual céu e terra estão um
diante do outro; sem pousada ou abrigo para o viaj ante, o qual
não diviniza um lugar particular, mas se apoia continuamente
no Deus que caminha com ele . Em tempos recentes, também
se atentou para o fato de que a festa da Páscoa cai no tempo da
constelação de Áries - do cordeiro. É também verdade que,
no que se refere à determinação da data da Páscoa, essa coin ­
cidência, se é que existiu mesmo, não foi importante . Essencial,
no entanto, era a evocação da data da morte e ressurreição de
Jesus, que implicava, já por si mesma, a íntima ligação com o
calendário judaico. Sem dúvida, porém, exatamente essa ligação,

que mais uma vez tinha a ver com a correlação entre Antigo e
Novo Testamento, bem como com a novidade do aco n t e cimen to
cristão, trazia em si o estopim daque l a controvérsia sobre a data
da Pás c oa que explodiria no século II, e que somente o C o n c ili o
de Niceia (3 25) resolveria, ao menos para a Grande Igreja . De
fato, havia, por um lado, o costume, difu s o na Á s ia Menor, que
evocava o calendário j u da i co e que celebrava a Páscoa cristã no
décimo quarto dia do mê s de Nissan, a " Páscoa d o s Ju de u s . "

Por outro l ado , estava o costume, formado sobretudo em Roma,


de considerar exclusivamente o d o mi ng o como o dia da ressur­
reição; a Páscoa cristã, portanto, tinha de ser celebrada s em­
p re aos d o mingo s , após o primeiro plenilúni o d e pr im ave ra O.

Concilio d e N ice i a im p ô s essa decisão. Com essa disposição, o


calendário s olar e o lunar se entrelaçavam intimamente, as duas
grande s formas de o rde na ç ã o cósmica do tempo estavam reci­
procamente ligadas a p ar tir da história de Israel e do destino de
Je su s Retomemos mais uma vez, p orém, à i mage m do cordeiro
.

(de áries) . No século V houve um a controvérsia entre Roma e


Ale xandria para dete rmina r , definitivamente, a data da Páscoa.
Segund o a tradição alexandrina, tinha de ser 25 de abril. O Papa
Leão Magno ( 440-46 1 ) criticou essa data, considerada muito
tardia, rep or tan d o - s e à indicação bí bli c a segundo a qual a Pás­
coa devi a cair nos primeiros meses . Com isso não se pretendia
o mês de abril, mas o tempo em que o sol percorre o primeiro
s egmento do círculo zodiacal - a c o nstelação de Árie s . O signo
zodiacal no céu parecia falar antec ipad amente e para todos os
tempos do "cordeiro de Deus " que tira os pecados do mundo
Go 1 ,29), daquele que resume em s i todos os sacrificios dos ino­
centes e lhes dá significado. A narração misteriosa do cordeiro
- que estava preso no e s pinheiro e foi oferecido em lugar de
Isaac como s a c rifi cio escolhido pelo próprio Deus -, foi, e n tão,
entendida como pré-história de Jesus, os ramos em que estava
preso como imagem do signo zodiacal d e áries, e este, por sua
vez, como prefiguração celeste do Cristo crucificado. Com isso
ainda devia ser observado que a tradição ju d ai ca datava o sacri­
ficio de Abraão em 2 5 d e março. Esse dia, como se p ode rá ver
mais adiante, era visto também como o dia em que teve início a
criação do mundo, aquele em que Deus disse: "Faça-se a luz ! " .
Rapidamente ele também foi visto como o dia em que Cristo es­
tava morto e, finalmente, como aquele em que ele foi concebido.
Uma evocação a essa série de pensamentos certamente também
está presente nas palavras da primeira carta de Pedro, que define
Cristo como o "cordeiro sem mancha" do qual fala Ê xodo 1 2 , 5 .
que foi "escolhido antes da criação d o mundo" ( 1 ,20) : as pala­
vras misteriosas do Apocalipse 1 3 ,8 sobre o "cordeiro que foi
imolado desde o princípio do mundo" talvez possam ser com­
preendidas a partir daqui, ainda que possam existir outras tra­
duções que acentuam posteriormente o paradoxo. É claro que,
a partir dessas imagens cósmicas, os cristãos compreendiam
o significado universal de Cristo de maneira inaudita, e assim
era compreensível a grandeza da esperança representada na fé .
Parece-me claro que também nós devamos recuperar esse olhar
cósmico se quisermos voltar a compreender e a viver o aconteci­
mento cristão em toda a sua amplitude e profundidade.
Gostaria de acrescentar outras duas considerações sob re a
festividade pascal. No decorrer das reflexões feitas até aqui , vi­
mos quanto o cristianismo assumiu o simbolismo solar. A data­
ção da Páscoa, tornada definitiva pelo Concilio de Niceia, ligou
a festa ao calendário solar, sem, todavia, separá-la do lunar. No
mundo das religiões, a lua, com as suas fases mutáveis, aparece
com frequência como símbolo de transitoriedade. O simbolismo
cósmico da lua corresponde, assim, ao mistério da morte e da
ressurreição, que teve lugar na Páscoa cristã. Na data da festa da
Páscoa, fixada no domingo após o primeiro p le nilúnio de pri­
mavera, se unem o simbolismo do sol e da lua: a transitorieda de
é reassumida e contida na não transitoriedade. A morte se torna
ressurreição e termina na vida eterna.
Finalmente, convém lembrar que j á para Israel a P ásc oa não
é apenas uma festa cósmica, mas está substancialmente voltada
para uma memória histórica: é a festa da saída do Egito, a festa
da libertação, com a qual Israel começa a sua caminhada como
povo de Deus na história. A Páscoa de Israel é memória de um
agir de Deus, que foi evento de libertação e instituiu a co muni­
dade. Também esse conteúdo da festa entrou na Páscoa cristã e

ajudou a compreender a profundidade d e significado da ressur-
reição de C r i sto. C onscientemente, Jesus tinha ligado os seus úl­
timos passos à Páscoa de Israel, e a escolheu como a sua "hora " .
Deve existir, portanto, uma íntima ligação entre a memória de
Israel e o novo evento do santo tríduo da cristandade . A última
ameaça do ser hu ma no é a morte . O homem só será plenamente
livre se for libertado da morte . Com efeito, a opressão de Israel
no Egito era uma forma de morte, que devia e queria destruir o
povo enquanto tal . A morte pesava sobre todos os descendentes
do sexo masculino. Na noite da Páscoa, ao contrário, o anj o da
morte percorre, então, o Egito e atinge os seus filhos primogêni­
tos. A libertação é libertação para a vida . Cristo, o primogênito
da criação, toma sobre si a morte e, na ressurreição, vence o
poder da morte : ela já não tem mais a última palavra . O amor
do Filho se revela, assim, mais forte que a morte, porque une o
homem com o amor de Deus, que é o mesmo ser. Na ressur­
reição de Cristo, então, não é evocado apenas um destino indi­
vidual : agora, Ele está aqui de modo estável, porque Ele vive . É
Ele quem nos reúne, para que também nós vivamos : " Eu vivo, e
vós também vivereis " Oo 1 4, 1 9) . A partir da Páscoa os cristãos
se entendem como "viventes ", como aqueles que encontraram
a via de saída para uma existência que é mais um estar morto
do que verdadeira vida, como aqueles que descobriram a vida
real: "A vida eterna consiste em que te conheçam a ti, verda­
deiro e único Deus, e a Jesus Cristo, teu enviado " Oo 1 7 , 3 ) . A
libertação da morte é, ao mesmo tempo, libertação da prisão do
individualismo, do cárcere do eu, da incapacidade de amar e de
participar. A Páscoa se torna, assim, a grande festa batismal, na
qual o ser humano realiza, por assim dizer, a passagem p elo mar
Vermelho, sai de sua velha existência para entrar na comunhão
com Cristo, o Ressuscitado, e, assim, na comunhão com todos
aqueles que lhe pertencem. A ressurreição constrói a comunhão.
Ela cria o novo povo de Deus. O grão de trigo, que morreu
sozinho, não fica só, mas produz muito fruto. O Ressuscitado
não fica só, atrai para si a humanidade e realiza, assim, a nova
e universal comunhão entre os homens. Todo o significado da
Páscoa judaica está contido na Páscoa cristã . O ponto aqui não
é a lembrança de um evento por si passado e irrep etível, mas
- como já vimos -, aquilo que aconteceu somente uma vez
se torna evento para sempre : o Ressuscitado vive e dá vida, vive
e opera comunhão, vive e abre o futuro, vive e aponta o cami­
nho. Convém não esquecer, todavia, que essa festa da história
da salvação, aberta para a frente, rumo ao futuro, possui as su as
raízes em um evento cósmico e não abre mão delas: a lua, que
morre e nasce de novo, se torna o sinal cósmico da morte e res­
surreição, o sol do primeiro dia se torna o mensageiro de Cristo,
que "sai como um esposo dos seus aposentos" e "exulta valente
correndo o percurso" até os extremos confins do espaço e do
tempo (SI 1 8 [ 1 9] , 6s.) . Por isso, os tempos das festas c r i stã s não
podem ser manipulados arbitrariamente; a "hora" de Jesus con­
tinua a mostrar-se também a nós, na unidade do tempo cósmico
e histórico. Por meio da festa entramos no ritmo da criação e na
ordem da história de Deus com os seres humanos.
Neste ponto, surge naturalmente uma pergunta, que qu e­
ro enfrentar antes de passar para a consideração da festividade
do Natal. O simbolismo cósmico aqui apresentado só se realiza
literalmente no ambiente do Mediterrâneo e no Oriente Mé­
dio, onde surgiram as religiões judaica e cristã. Mas, em suma,
ele continua a valer também no hemisfério Norte. Todavia, no
hemisfério Sul tudo parece virado de ponta-cabeça: a Páscoa
cristã não cai na primavera e sim no outono; o N atai não cai
no solstício de inverno, mas no meio do verão. Aqui a questã o
da "inculturação" litúrgica emerge em toda a sua urgência: se
a simbologia cósmica é tão importante, não se deveria, então,
nesses lugares virar o calendário? G. Vof3 acertadamente res­
ponde que assim terminaremos por reduzir o mistério de Cristo
a uma religião puramente cósmica e acabaremos por submeter a
dimensão histórica à cósmica. No entanto, não é o elemento his­
tórico que é funcional ao cósmico, e sim o cósmico ao histórico,
porque somente a este último é dado o seu centro e o seu esco­
po. A encarnação significa a ligação com a origem, com a sua
singularidade e também com a sua " casualidade", p ara exprimi­
lo em palavras humanas. Ela é para nós precisamente a garantia
de que não estamos seguindo mitos, mas de que Deus realmente
agiu conosco, pegou o nosso tempo em suas mãos, e agora, na
ponte dessa " única vez " , podemos lançar-nos ao " para sempre "
de sua misericórdia . É verdade, no entanto, que a amplitude do
símbolo e aquela do agir histórico de Deus devem es tar equili­
bradas . Vof3 soube evidenciar muito bem alguns aspectos h ou­
tonais " no mistério da Páscoa, que nos ajudam a aprofundar
e a ampliar a nossa compreensão da festa e lhe podem confe­
rir sua particular feição no outro hemisfério. Ademais, tanto a
Escritura quanto a liturgia oferecem evocações para uma de­
limitação interior dos simbolismos . Já tínhamos atentado para
o fato de que o Evangelho de João e a carta aos Hebreus, ao
interpretarem a paixão de Jesus, não fazem referência somente
à Páscoa judaica que, do ponto de vista cronológico, coincide
com a sua "hora " , mas a interpretam também a partir do rito da
festa da reconciliação, celebrada no décimo dia do " sétimo mês "
(setembro-outubro) . Assim, na Páscoa de Jesus se entrelaçam
a Páscoa judaica (na primavera) e o dia da reconciliação (no
outono) . Ele reúne a primavera e o outono do mundo : o outono
do tempo que passa se torna um novo começo, mas também a
primavera, como hora de sua morte, se torna uma evocação ao
final dos tempos, ao outono do mundo, no qual, segundo os Pa­
dres, Cristo veio. Antes da reforma pós-conciliar, o calendário
litúrgico possuía uma particular divisão dos tempos que, porém,
há muito tempo não era entendida e era concebida de modo
bastante exterior. Conforme a data da Páscoa caísse mais cedo
ou mais tarde, devia-se abreviar ou alongar o tempo depois da
Epifania . Os domingos que, assim, vinham a cair, eram desloca­
dos para o final do ano litúrgico. Se considerarmos com atenção
as leituras propostas em tais ocasiões, veremos que se trata, em
ampla escala, de textos que são direcionados para o tempo da
semeadura, que, assim, se torna sinal da semente do Evangelho
que deve ser espalhada . Exatamente por essa razão tais textos ,
e o s domingos em que eram lidos, encontram o seu lugar tanto
na primavera quanto no outono : em ambas as circunstâncias é
tempo de semeadura . Na primavera o agricultor semeia para
o outono, no outono para o ano que virá . A semeadura remete
sempre adiante, ela pertence tanto ao ano que começa quanto
11
ao que está indo embora, exatamente porque o ano que se vai
rem ete para um novo futuro. O mistério da esperança está em

jogo em ambas as situações e tem a sua profundidade precisa­


mente no ano que está para terminar, o qual, através do ocaso,
conduz para um novo início. Colocar em evidência esses pontos
de reflexão e fazer com que penetrem na consciência comum
dos cristãos de ambos os hemisférios terrestres seriam uma obra
de autêntica inculturação, em que o Sul podia ajudar o Norte
a descobrir novos aspectos na vastidão e na profundidade d o
mistério. É essa, além disso, uma via pela qual ambos pod e m
receber novamente a sua riqueza .
Vej amos agora - ainda que brevemente - o segundo cen­
tro gravitacional do ano litúrgico, o período do Natal, formado
após a ordenação pascal e a partir e em função da própria Pás­
coa. O domingo - bem como o voltar-se para o Oriente da
oração cristã - é um elemento essencial da cronologia cristã,
que remonta às mesmas origens do cristianismo. Desde o prin­
cípio esse é um elemento estável e determina a tal ponto a farma
da existência cristã que Inácio de Antioquia chega a afirmar :
"Nós não vivemos mais segundo o sábado, mas pertencemos
ao domingo . . . " (Ad Magn. 9, 1 ) . Já no Novo Testamento o olhar
dos cristãos vai do evento pascal até a encarnação de Cristo no
seio da Virgem Maria . No Evangelho de João, síntese conclusi­
va da fé neotestamentária, a teologia da encarnação é posta no
mesmo nível da teologia pascal, ou, melhor ainda: a teologia da
encarnação e a teologia pascal não se situam uma ao lado da
outra, mas aparecem como os dois inseparáveis p ontos fartes da
única fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado e Redentor.
Cruz e ressurreição pressupõem a encarnação. S omente porque
o Filho - e, com Ele, o próprio D eus - realmente " desceu" e
"se encarnou no seio da Virgem Maria " , a morte e a ressurrei­
ção de Jesus são eventos contemporâneos a todos nó s e dizem
respeito a todos, nos arrancam do passado marcado pela morte
e nos abrem para o presente e para o futuro. A encarnação, por
sua vez, visa fazer com que essa " carne " , a existência terrena e
passageira, alcance uma forma não mais transitória, isto é, entre
na mudança pascal. Depois que a encarnação foi reconhecida

como ponto forte da fé em Cristo, tinha de encontrar expressão
na celebração litúrgica e ser representada no ritmo do tempo
sacro. É dificil estabelecer com precisão até onde, em retrocesso,
remontam as raízes da festa do Natal . De resto, ela assumiu a
sua forma definitiva no século III . Mais ou menos no mesmo pe­
ríodo, emerg em no Oriente a festa da Epifania, 6 de j a n e i ro , e no
Ocidente a do Natal, 2 5 de dezembro, com ac e n t os diferentes,
vinculados aos vários contextos re l i gi o sos e cultura i s nos quais
tinham surgido ambas as festas, mas com um ú l ti m o s i g n ifi ca d o
comum : o nascimento de Cristo como a u ro ra da nova luz, do
verdadeiro s o l da h i s tóri a Os complicados e, às vezes, di s c u ti d os
.

detalhes da farmação d e s s a s d u as festas e x tra p o l a m os limites


deste livro. Aqui, gostaria de fazer referência a p e n a s àquilo que,
a m eu ver, serve de au xí l io para co m p ree n d e r esses d o i s dias
de festa . O ponto de partida p ara fixar o dia do n a s c i m e n to de
C r is to é dado, surpreendentemente, p e l o 25 de março. Pelo que
s e i , a mais antiga no ti cia a esse res p e i to se encontra nas obras
do escri to r eclesiástico de o r i ge m africana Tertuliano (em torno
de 1 50 a 207) , que pressupõe, naturalmente como tra d i ção co­
nhecida, que Cristo tenha m o r rid o na cruz em 25 de março. Na
Gália, até o século VI esse dia foi conservado como data fixa da
Páscoa. Em um escrito qu e tem como assunto o cálculo da data
da Páscoa, que remonta a 243 e também originário da Áfri c a no ,

co ntexto de uma interpretação sobre o 2 5 de março como dia da


criação, encontramos um cálculo realmente bastante particular
do di a do nascimento de Cristo: segundo a narração da criação,
o sol tinha sido criado no quarto dia, ou seja, 28 d e março. Por
isso esse dia devia ser considerado o dia do nascimento de Cristo,
como aquele que viu s u rgir o verdadeiro sol da história. Essa
id eia é encontra da ainda no século IV, c om a variação de que
o di a da Paixão e o da Conc epção de Cristo eram vistos como
id ênti co s , por isso em 2 5 de março se celebrava a anunciação do
anjo e a C onc epção do Senhor por obra do Espírito Santo no
seio da Virg em Maria. A festa do nascimento de Cristo em 2 5 -

�--

d e dezembro - nove meses após o 25 de março - formou-se


no O cid ent e no d e correr do século Ili, enquanto no Oriente,
com ba se em uma di fe rença de calendário, o Natal de Cristo
foi inicialmente celebrado no dia 6 de janeiro. Desse modo, cor-
respondia também a uma festa pagã celebrada em Alexandria
naquele mesmo dia e que tinha por objeto o mítico nascimento
de uma divindade . As antigas hipóteses, segundo as quais 2 5 de
dezembro tinha sido escolhido em Roma em polêmica com o
culto mitraico, ou também como resposta cristã ao culto do sol
invicto, promovido pelos imperadores romanos no decorrer do
século III, na tentativa de estabelecer uma nova religião de Esta­
do, hoje não parecem mais sustentáveis. Determinante, todavia,
foi a íntima relação entre criação e cruz, entre criação e con­
cepção de Cristo, na medida em que a partir da "hora de Jesus"
essas datas envolviam o cosmos, o interpretavam como prefigu ­
ração e prenúncio de Cristo, o primogênito da criação (Cl 1 , 1 5) ,
de que fala a própria criação e através da qual é decifrada a sua
tácita mensagem. Do primogênito da criação, que ora entrou
na história, o cosmos recebe o seu verdadeiro sentido : a partir
dele é certo que a aventura da criação, da existência do mundo
- livre e diferente de Deus - não se encerra no absurdo e no
trágico, mas permanece positiva através de todos os a bal o s e
destruições. A aprovação do sétimo dia por Deus é confirma­
da de maneira autêntica e definitiva . A partir desse conteúdo
originalmente cósmico da data da concepção e do nascimento,
foi retomado o desafio do culto solar e inserido positivamente
na teologia da festa. Nos Padres, encontram-se textos grandio­
sos que exprimem essa síntese. São Jerônimo, por exemplo, em
uma sua homilia de Natal, declara: "A própria criatura justifica
a nossa pregação, o cosmos é testemunha da verdade de nossa
palavra. Até aqui cresceram os dias obscuros; a partir deste dia,
a escuridão se dissolve . . . Cresce a luz, a noite se esvai" . Também
Agostinho assim pregava aos seus fiéis de Hipona na noite de
Natal : "Alegremo-nos, irmãos. Jubilem-se também os pagãos:
porque não é o sol visível que consagra este dia para nós, mas
o seu invisível criador" . Os Padres evocam continuamente os
versículos do Salmo 1 8 [ 1 9] supracitados, que para a Igreja an­
tiga se tornaram o verdadeiro salmo natalino : Ele (o sol, isto é,
C risto) é como um esposo que sai de seu tálamo. Nesse salmo,
interpretado como profecia de Cristo, ouvia-se ecoar o mistério
..
mariano. Entre essas duas datas, 2 5 de março e 2 5 de dezem-
bro, insere-se a fe s ta do precursor, João B a ti s ta , 24 de j u nh o, no
dia do solstí c io de verão. A correlação entre essas d a tas aparece_,
então, como uma expressão litúrgica e cósmica das p ala v ras do
Batista: Ele (Cristo) deve crescer, e eu diminuir. A festa do natal
de João coincide com o momento do ano em que o dia começa
a diminuir, assim como a festa de Natal de Cristo é o início da
nova aurora. O en trela ç amen to dessa festa é p urame n te cris­
tão, sem u m a evocação direta ao Antigo Tes tam e n to , mas está,
todavia, em continuidade com a síntese de cosmos e história,
de memória e esperança, que era já ca ract erística da festa vete­
rotestamentária, retomada de uma nova maneira no calendário
cristão. A íntima compenetração de encarnação e ressurreição
emerge, assim, em sua específica e, ao mesmo tempo, comum
correlação com o ritmo solar e o seu simbolismo.
Gostaríamos de fazer uma breve referência à festa da Epifa­
nia, 6 de janeiro, que possui íntima relação com o Natal. Deixa­
remos de lado, aqui, todos os detalhes históricos e os numerosos
e esplêndidos textos patrísticos sobre esse assunto. Procurare­
mos simplesmente compreender essa festa a partir da forma
como ela chegou até nós, no Ocidente. A Epifania interpreta a
encarnação do Logos a partir da antiga categoria da "Epifania",
ou seja, da autorrevelação de Deus, que se mostra à criatura e,
desse modo, estabelece uma ligação entre as diferentes epifa­
nias: a adoração dos magos como início da Igreja dos pagãos, da
procissão dos povos rumo ao Deus de Israel, segundo a profecia
de Isaías 60; o batismo de Jesus no Jordão, quando a voz do alto
proclama abertamente que Jesus é o Filho de Deus; as bodas
de Caná, onde ele manifesta a sua glória. A narração da adora­
ção dos magos é importante para o pensamento cristão, porque
mostra a íntima correlação entre a sabedoria dos povos e a pro­
messa da qual fala a Escritura; porque mostra como a linguagem
do cosmos e o pensamento humano em busca da verdade impe­
lem para Cristo. A estrela misteriosa tornou-se o símbolo dessa
correlação, sublinhando, ademais, que a linguagem do cosmos
e a do coração humano têm ambas origem na "palavra" do Pai,
que em Belém saiu do silêncio de Deus e recompôs em unidade
os fragmentos de nosso conhecimento humano. •
As grandes festas que dão forma ao ano da fé são fes tas
de Cristo e, justamente por essa razão, são direcionadas para o
único Deus, que se manifestou a Moisés na sarça ardente e que
escolheu Israel como defensor da confissão de sua unicidade . O
fato, além disso, de que, como imagem de Cristo, junto ao sol
esteja a lua, que não brilha com luz própria, mas recebe a sua
luminosidade do sol, nos lembra de que nós, seres humanos,
sempre precisamos de pequenas "luzes ", cuja luz escondida s o­
zinha nos ajuda a reconhecer e a amar a luz criadora, o Deus
Uno e Trino. Por isso, desde os primórdios do cristianismo as
festas dos santos entraram a dar forma ao ano cristão. Já nos
deparamos com Maria, cuja figura está tão intimamente entrela­
çada com o mistério de Cristo que a formação do ciclo natalino
introduz, necessariamente, uma nota mariana no ano litúrgi co :
a dimensão mariana das festas cristológicas tornou-se, assim,
visível. Comparecem também a memória dos apóstolos, dos
mártires e, finalmente, a lembrança dos santos de todos os sé­
culos. Pode-se também dizer que os santos constituem, de certo
modo, os novos signos zodiacais cristãos, nos quais se reflete a
riqueza da bondade de Deus. A sua luz, proveniente de Deus,
nos permite reconhecer melhor a riqueza interior da gran d e luz
de Deus, que, sozinhos, não poderemos captar no esplendor de
sua puríssima glória.
TERCEIRA PARTE
ARTE E UTIJRGIA

. . . �.
A questão das Imagens

No primeiro mandamento do decálogo, que põe em evidência a


unicidade de Deus, a quem cabe unicamente a adoração, lemos
este preceito: "Não farás para ti imagem esculpida nem figu­
ra humana à semelhança do que há em cima no céu, nem do
que há embaixo na terra, nem do que há nas águas embaixo da
terra" (Ex 20,4; cf. Dt 5,8). Existe, pois, uma notável exceção
a essa proibição das imagens no coração do Antigo Testamen­
to, no santo dos santos, no qual era mantido o propiciatório de
ouro da arca da Aliança, considerado lugar de expiação. "Ali
eu me encontrarei contigo", disse Deus a Moisés (Ex 25,22).
"Farás dois querubins de ouro, trabalhando-os em ouro batido e
colocando-os nas duas extremidades dessa tampa. ( ...) Os que­
rubins terão as duas asas abertas para cima ... E estarão com as
faces voltadas um para o outro, sem desprenderem os olhos do
centro do propiciatório" (Ex 25, 18-20). Os seres misteriosos,
que cobrem e guardam o lugar da revelação de Deus, podem
ser representados exatamente para esconder o mistério da pre­
sença de Deus. Como já ouvimos, Paulo compreendeu o Cristo
crucificado como o verdadeiro e vivo "lugar da expiação", que
tinha sido representado pela Kapporeth - o "propiciatório" -
perdido desde a época do exílio. Nele, Deus tinha mostrado a
sua face. O ícone oriental da ressurreição de Cristo se liga a essa
correlação entre a arca da Aliança e a Páscoa de Cristo, repre­
sentando o Cristo que está de pé sobre uma plataforma aberta
que representa o sepulcro, e que também lembra a Kapporeth do
19
Antigo Testamento. Cristo aí aparece ladeado pelos querubins;
para Ele caminham as mulheres que tinham \'indo ao sepul­
cro a fim de u ng ir o cor po. A imagem do Anti go Testamento aí
aparece mantida em sua importância, porém adquire um novo
significado a partir da ressurreição em tor n o de um no,·o centro
ideal: Deus, que então já não se esconde mais totalmente, mas se
mostra na face do Filho. Com essa transfarmação da lembrança
da arca da Aliança numa imagem da r essurre i çã o , já se delineia
o que é mais essencial na evolução da Anti ga para a Nova Alian­
ça. Mas, para compreender correta m ente o tod o precisamos
,

aproximar-nos mais das grandes linhas dessa evolução.


Enquant o a proibição das imagens no Islã e no j udaí smo - a
partir dos séculos III e IV d. C. foi entendida de maneira radi­
-

cal, a ponto de para o ornamento d o s lugares de culto só serem


permitidas representações não figurativas, de cará ter geométrico,
o judaísmo da época de Jesus (avançado até o século III) desen­
volveu uma interpr etação da questão das imagens bem mais com­
placente. Paradoxalmente, nas imagens da salvação e ntre sina­
goga e Igreja existe a mesma continuidade que constatamos nos
espaços litúrgicos. As pesquisas arqueológicas permi tem verificar
que as antigas sinagogas eram ricamente decoradas com repre­
sentações de cenas bíblicas. Estas não eram simples imagens de
eventos passados, uma espécie de ensinamento da história através
das imagens, mas uma forma de narração que, reevocando a lem­
brança, atualiza uma presença (Haggada,): nas festas litúrgicas os
atos realizados por Deus são presença. As festas são participação
da ação de Deus no tempo, e as imagens contribuem, por sua vez,
para a atualização litúrgica, exatamente como figura que se tomou
memória. As imagens cristãs, da maneira como as encontramos
nas catacumbas, retomam com simplicidade e em grande escala
o cânone icônico criado pela sinagoga, porém lhe conferem uma
nova modalidade de presença. Cada um dos eventos, então, é su­
bordinado aos sacramentos cristãos e ao próprio Cristo. A arca de
Noé, assim como a passagem pelo mar Vermelho se tornam uma
evocação ao batismo; o sacrificio de Isaac e a refeição consumida
pelos três anjos com Abraão falam do sacrificio de Cristo e da
Eucaristia. Eventos de salvação, como o dos três jovens na forna­
lha ardente e de Daniel na cova dos leões, deixam transparecer a
ressurreição de Cristo e a nossa própria ressurreição. Ainda mais
que na sinagoga, aqui se confirma que as imagens não narram so­
bre o passado, mas sintetizam no sacramento os acontecimentos
da história. Na história passada Cristo está a caminho através dos
tempos com os seus sacramentos. Nós fomos recuperados nesses
eventos. Por sua vez, esses eventos superam a transitoriedade do
tempo e estão presentes no meio de nós na ação sacramental da
Igreja. A concentração cristológica de toda a história é, ao mesmo
tempo, mediação litúrgica dessa história e expressão de uma nova
experiência do tempo, no qual passa do , presente e futuro se to­
cam, porque são reunidos e sintetizados na presença do ressusci­
tado. Como vimos, e mais uma vez vemos confirmado, a presença
litúrgica sempre traz em si a esperança escatológica. Do mesmo
modo que todas essas imagens são, em certo sentido, imagens
da ressurreição, e história relida a partir da ressurreição, elas são,
também por isso, imagens da esperança, que nos comunicam a
certeza do mundo que virá, da vinda definitiva de Cristo. Ainda
que as imagens das origens possam parecer pobres de qualidade
artística, nelas se cumpriu um extraordinário processo espiritual
e cultural, que se encontra em profunda unidade interior com o
intuito das obras artísticas sinagogais. A história recebe uma luz
nova graças à ressurreição e, assim, é entendida como um cami­
nho de esperança, para o qual as imagens nos atraem. Nesse sen­
tido, as obras figurativas da Igreja das origens possuem sempre
um caráter de mistério, significado sacramental, e vão bem além

do elemento didático da comunicação de histórias bíblicas.


Nenhuma das imagens antigas procura nos transmitir uma
imagem-retrato de Jesus. Cristo é representado, todavia, em seu
significado, em imagens "alegóricas": como o verdadeiro filósofo,
que nos comunica a arte de viver e de morrer; como o mestre, mas
sobretudo nos é apresentado sob a figura do pastor. Essa imagem,
extraída da Sagrada Escritura, tomou-se tão cara ao cristianismo
das origens justamente porque o pastor era, ao mesmo tempo,
considerado uma alegoria do Logos: o Logos, por meio do qual
tudo foi criado, que traz em si as ideias originais de todas as coi­
sas que existem, é o guardião da criação. Na encarnação Ele põe
1
sobre os seus ombros a natureza humana, a humanidade em seu
conjunto, e a leva para casa. A imagem do pas tor com preende,
assim, toda a história da salvação : o ingresso de Deus na história,
a encarnação, a busca pela ovelha p erdida e o caminho que recon­
duz para casa na Igre ja dos judeus e dos pagãos. Uma reviravolta
de importância decisiva na história das imagens da fé aconteceu
no momento em que, pela primeira vez, nos encontramos diante
de um "Acheiropoietos": uma imagem considerada não feita por
mãos de homem e que representava a face de Cristo. Duas dessas
imagens " não feitas por mãos de homem" surgem mais ou menos
ao mesmo tempo, por volta da metade do século VI, no Oriente:
o "Kamulianium" - que apresenta a imagem de Cristo impressa
na veste de uma mulher - e aquela que, em seguida, foi chamada
de "Mandylion", que talvez tenha sido levada para Constantino­
pla por Edessa da Síria, e que hoje alguns pesquisadores acredi­
tam identificar com o sudário de Turim. Em um e em outro caso
- como no do sudário de Turim -, deve ter se tratado de uma
imagem misteriosa, que não podia ser o produto da arte pictórica
do homem, mas que, de maneira inexplicável, apareceu impressa
no material e prometia, assim, mostrar a verdadeira face de Cristo,
crucificado e ressuscitado. Desde o seu aparecimento, essa ima­
gem deve ter suscitado um grande fascínio. Agora, finalmente, se
podia ver a face do Senhor, até aquele momento escondida, e sen­
tir que, assim, a promessa havia sido cumprida: quem vê a mim, vê
o Pai Oo 14,9). O olhar no Deus-Homem e, por meio dele, sobre
o próprio Deus, parecia aberto, a nostalgia grega da visão do eter­
no parecia cumprida. O ícone, assim, encontrava-se formalmente
no mesmo plano de um sacramento: ele permitia uma comunhão
que não era inferior à eucarística. Pensou-se até em uma espécie
de presença real, na imagem, daquele que estava sendo represen­
tado; a imagem, por outro lado, no pleno sentido do não feita por
mãos de homem, é participação da realidade, irradiação e presen­
ça daquele que se doa a si mesmo na imagem. É fácil deduzir que
as imagens moldadas sobre o Acheiropoietos se tomaram o núcleo
central de todo o cânone icônico que, nesse meio tempo, tinha se
desenvolvido e continuou em posterior evolução.
Convém esclarecer, porém, que aqui havia um perigo à
111
espreita, uma falsa sacramentalização da imagem, que parecia
conduzir além do sacramento e de sua ocultação, até a urg ên­
cia de uma presença divina visível. É compreensível, então, que
a novidade que emergia levava a duras reações de oposi ção à ,

radical rejeição da imagem que chamamos de " ic onocl asmo " :

hostilização das imagens e respec ti va destruição. O iconoclasmo


hauria a sua força de motivos realm ente religiosos - dos inegá­
veis perigos de uma espécie de adoração da imagem -, e tam­
bém de toda uma série de razões políti cas. Para os imperadores
bizantinos era importante não provocar inutilmente muçulma­
nos e judeus . A repressão das im age ns podia tornar-se necessá­
ria para resguardar a unidade do Império e as rel aç ões com os
vizinhos islâmicos. Cristo não podia s er represe ntado : esta era a
tese sustentada. Apenas o sinal (sem imagem) da Cruz podia ser
o seu selo. Impôs-se, então, a alternativa: cruz ou imagem Nessa
.

luta amadureceu a verdadeira teologia do ícone, cuja mensagem


exatamente hoje, em plena crise das imag ens que também atinge
o Ocidente, nos toca profundamente.
O ícone de Cristo - emerge, então, nossa conscientização
que gera consequências - é o ícone do Ressuscitado. Não existe
nenhum retrato do ressuscitado. No primeiro momento, os dis­
cípulos não o reconhecem. Precisam ser conduzidos a um novo
modo de ver, com o qual os seus olhos se abrem em seu íntimo,
de forma que eles o reconhecem novamente e gritam: É o Senhor!
A narração mais rica disso é a dos discípulos de Emaús. Primeiro
é preciso mudar o seu coração, para que possam reconhecer os
eventos exteriores da Escritura através de seu centro interior, do
qual tudo vem e para o qual tudo converge: a cruz e a ressurreição
de Jesus Cristo. Além disso, precisam entreter o seu misterioso
companheiro de viagem, oferecer-lhe a sua hospitalidade, de tal
sorte que, quando Ele parte o pão, acontece com eles, ao contrá­
rio, aquilo que Adão e Eva experimentaram comendo o fruto da
ár vore do conhecimento: os seus olhos se abrem. Agora, eles não
veem mais apenas o exterior, mas veem aquilo que os sentidos
não captam, e que, por meio dos sentidos, transparece: É o Se­
nhor! Aquele que vive de um novo modo! No ícone não contam
esses traços da face (embora, em última análise, nos prendamos
à ima gem do Acheiropoietos); o que conta, nele, é esse novo modo
de ver. O ícone provém de uma abertura dos sentidos interiores
'

de um tornar-se vidente que supera a s upe rfic ie do e mpírico e


olha para Cristo, conforme diz a sucessiva teologia do ícone, à
luz do Tabor. Por sua vez conduz, quem o contempla através do
olhar interior, que tomou forma no ícone, a olhar no sensível para
além do sensível, que também penetrou nos sentidos. Conforme
afirmado por Evdokimov, o ícone s u põe um "jejum do ver". Os
i conó gr afos - assim diz es se autor - devem aprender o jejum
com os olhos e preparar-se medi ante um lo ngo caminho de asce­
se o ran te, que acompanhe a pa ssagem da arte à art e sacra ( 161).
O ícone vem da oração e c onduz à oração : ela liber ta do fecha­
mento dos sentidos, que percebe somente o exterior, a s up erfi c ie
material, e não not a a tr ans p arênci a d o espírito, a transparência
do Logos na realidade. No fundo, aqui está em jogo o salto da fé;
e emerge todo o problema do conhecimento na época moder­
na: se no ser humano não acontece uma abertura interior, que
enxerga mais d o que é mensurável e pond erá vel , que p ercebe o
esplendor do divino na criação, então Deus é excluído de nosso
campo visual. O ícone retamente entendido nos afasta da falsa
questão do retrato palpável com os sentidos e, exatamente assim,
nos permite reconhecer a face de Cristo, e, Nele, a do Pai. Desse
modo, no ícone existe a mesma orientação espiritual que já vimos
na liturgia: quer nos atrair para um caminho interior, aquele que
segue rumo ao "Oriente", para Cristo que está para v oltar . A sua
dinâmica é, em tudo e por tudo, idêntica à dinâmica da liturgia. A
sua cristologia é trinitária. É o Espírito que nos toma capazes de
ver, a sua obra sempre libe ra um movimento para Cristo. "Embe­
bei-vos do Espírito, bebamos Cristo", diz santo Atanásio (citado
por Evdokimov). Aquele modo de olhar que Cristo nos ensina,
não "segundo a carne", mas segundo o Espírito (2Cor 5,16), nos
doa, ao mesmo tempo, também o olhar para o Pai.
Somente quando se compreendeu essa direção interior do
ícone se pode também entender, de modo correto, por que o
segundo Concilio de Niceia e todos os sínodos posteriores que
trataram dos ícones veem no ícone uma profissão de fé na En­
carnação e consideram o iconoclasmo uma negação dela, como
184
se fosse o somatório de todas as heresias. Encarnação significa,
antes de tudo, que Deus, o invisível, entra no espaço do \Ísí­
vel, a fim de que nós, que somos ligados ao materiaJ, possa­
mos reconhecê-lo. Exatamente por isso a encarnação está sem­
pre presente na ação salvífica histórica e no fal a r histórico de
Deus. Todavia, essa descida de Deus existe para isso, para nos
atrair num processo de subida: a encarnação tem por fi na lida ­
de a transformação mediante a cruz e a nova corporeidade da
ressurreição. Deus nos procura, lá onde estamos, mas não para
que permaneçamos ali, e sim para que cheguemos lá, o n de Ele
está, para que nos elevemos acima de nós mes m os . Por isso a
redução da figura de Cristo a um "Jesus histórico'' pertencente
ao passado, se engana quanto ao sentido de sua figura, ignora
o sentido da encarnação. Os sentidos não devem ser elimina­
dos, mas alargados em sua possibilidade máxima. Somente ve­
mos o Cristo quando exclamamos com Tomé: "Meu Senhor e
meu Deus!". Contudo, como até aqui analisamos a dimensão
trinitária do ícone, examinaremos agora a sua dimensão anti­
ga: o Filho de Deus pôde encarnar-se no ser humano porque
o homem já tinha sido pensado em função dele, como imagem
daquele que, por sua vez, é ícone de Deus. A luz do primeiro
dia e a luz do oitavo dia se tocam no ícone, como mais uma vez
afirma Evdokimov de maneira bastante apropriada. Na própria
criação já está presente aquela luz que no oitavo dia, com a res­
surreição do Senhor, e no novo mundo, atinge o seu pleno ful­
gor, deixando entrever o esplendor de Deus. A Encarnação só
é corretamente entendida se for visualizada em sua mais ampla
tensão de criação, história e mundo novo. Precisamente então
fica claro que os sentidos pertencem à fé, que a nova maneira
de ver não os elimina, mas os conduz ao destino original. O
iconoclasmo finalmente se apoia numa teologia unilateralmente
apofática, que só conhece o totalmente-outro de Deus, que está
além de todos os pensamentos e de todas as palavras, de tal
sorte que, no final, também a revelação é vista como um refle­
xo humanamente insuficiente daquele que permanece sempre
inatingível. Então, a fé diminui. A nossa forma contemporânea
de sensibilidade, que não consegue mais captar a transparência
105
do Espírito nos sentidos, conduz quase necessariamente para a
fuga na teologia puramente "negativa" (apofática): Deus está
além de todo pensamento, por isso tudo o que podemos dizer
sobre Ele e todas as suas imagens são ao mesmo tempo válidos
e indiferentes. Essa humildade, aparentemente muito profunda
diante de Deus, se torna, por si mesma, orgulho, que não deixa
mais a palavra a Deus e que não lhe permite tornar-se realmen­
te presença na história. Por um lado se absolutiza a matéria, e,
ao mesmo tempo, é declarada impermeável para Deus, matéria
pura, privando-a, assim, de sua dignidade. Mas - como afirma
Evdokimov -, há também um sim apof ático, e não somente um
não apofático que nega toda analogia. juntamente com Gregório
Palamas ele sublinha que Deus é radicalmente transcendente
em sua essência, porém em sua existência Ele quis apresentar-se
como vivente. Deus é totalmente Outro, mas é suficientemente
poderoso a ponto de poder mostrar-se. E criou a sua criatura de
tal forma que ela pudesse ser capaz de "vê-lo" e de amá-lo.
Com essas reflexões nos aproximamos já do nosso presente
e, assim, tocamos também a evolução da liturgia, da arte e da fé no
mundo ocidental. Essa teologia do ícone, desenvolvida no Orien­
te, é verdadeira e, portanto, válida também para nós, ou não pas­
sa de uma variação oriental do cristianismo? Partamos mais uma
vez das circunstâncias históricas. Na arte cristã das origens e até
o final da arte românica, isto é, até a virada do século XIII, não há
nenhuma diferença substancial entre Oriente e Ocidente no que
se refere à questão das imagens. Contudo, o Ocidente - pense­
mos em Agostinho e em Gregório Magno - acentuou com uma
certa exclusividade a função didático-pedagógica da imagem. Os
Livros Carolíngios, bem como os sínodos de Frankfurt (794) e de
Paris (824), tomam posição contra os enganos do sétimo concilio
ecumênico, o Segundo Concilio de Niceia, que estabelece a su­
peração do iconoclasmo e o fundamento encarnacionista do íco­
ne, os quais sustentam, ao contrário, a função puramente didática
e educativa das imagens: "Cristo não nos libertou por meio da
pintura", assim afirmam eles (Evdokimov, 144).
No entanto, a temática e a orientação fundamental da arte
figurativa continuaram as mesmas, embora no românico entrasse
1•
em cena a arte plástica, que no Oriente não teve prosseguimento.
É sempre - também na Cruz - o Cristo crucificado, Aquele
para o qual a comunidade olha, como o verdadeiro Oriente. E
sempre a arte se caracteriza pela unidade de criação, cristológica
e escatológica: do primeiro até o oitavo, que resume em si também
o primeiro. A arte permaneceu voltada para o mistério que se faz
presença na liturgia. Permaneceu voltada para a liturgia celeste: as
figurações angélicas da arte românica não são substancialmente
diferentes das da pintura bizantina; elas mostram exatamente que
nós participamos do louvor ao Cordeiro juntamente com os que­
rubins, os serafins e todas as potestades celestiais, que na liturgia
o véu que separa o céu e a terra é rasgado, de forma que somos
reunidos na única liturgia que abraça o cosmos inteiro.
Com o florescimento do gótico se realiza lentamente uma
virada. Naturalmente persiste a continuidade, sobretudo a corres­
pondência interior entre Antigo e Novo Testamento que, por sua
vez, é também uma evocação ao que ainda nos espera. Todavia, a
imagem central muda. Não é mais o Pantocrator1 a ser represen­
tado - o Senhor do Cosmos, que nos introduz no oitavo dia -,
mas a imagem gloriosa é substituída pela imagem do Crucifi­
cado em sua dolorosa paixão e morte. Não é a Ressurreição a
ser tornada visível, e sim narrado o evento histórico da Paixão.
Em primeiro plano, assim, encontra-se o elemento histórico-nar­
rativo: conforme foi dito, a imagem mistérica é substituída pela
imagem devocional. Muitos fatores podem ter contribuído para
essa mudança de visão. Evdokimov considera que teve um papel
importante a virada do platonismo para o aristotelismo, ocorrida
no Ocidente no decorrer do século XIII. O platonismo considera
as realidades sensíveis sombra das ideias eternas; naquelas, po­
demos e devemos reconhecer as ideias eternas, e por meio de­
las elevar-nos rumo a elas. O aristotelismo rejeita a doutrina das
ideias. A realidade, constituída de matéria e forma, permanece em
si mesma; mediante a abstração, eu reconheço a espécie à qual
ela pertence. Em lugar do ver, pelo qual o suprassensível se torna
visível no sensível, entra a abstração. A relação do espiritual e do

1. Pantocrator (1Iavto1epátwp) é uma palavra de origem grega que significa


111
"todo-poderoso" ou "onipotente". (N. da T.)
material muda, e com ela a atitude do ser humano diante da rea­
lidade que se lhe manifesta. Para Platão, a categoria do belo tinha
sido determinante: para ele, o belo e o bom, em última análise,
coincidem em Deus. Com o surgimento do belo fomos feridos
no mais íntimo, e essa ferida nos arranca de nós mesmos, aciona
o voo da nostalgia e nos impulsiona ao encontro daquilo que é o

verdadeiro belo, o próprio bem. Na teologia do ícone permanece


viva alguma coisa do fundamento platônico, ainda que a ideia
platônica do belo e da contemplação aí resultem repensadas e
transfiguradas pelo reflexo da luz do Tabor; ainda que, através da
íntima relação entre criação, cristologia e escatologia, o concei­
to platônico fora profundamente reformulado, enquanto à rea­
lidade material, como tal, foram conferidas uma nova dignidade
e um novo valor. Esse platonismo transformado e reformulado
pela Encarnação desaparece no Ocidente a partir do século XIIl,
a tal ponto que as artes figurativas tendem, em primeiro lugar, a
representar eventos ocorridos, enquanto a história da salvação é
vista menos como sacramento e mais como história desenrolada
no tempo. Também muda, assim, a relação com a liturgia; ela se
torna, por assim dizer, imitação simbólica do evento da cruz. A
devoção aí corresponde plenamente, na medida em que se volta
sobretudo para a contemplação dos mistérios da vida de Jesus. A
arte encontra a sua inspiração menos na liturgia que na piedade
popular, e esta, por sua vez, se alimenta das imagens da história,
na qual ela pode ver a via que conduz a Jesus Cristo, a via do
próprio Jesus e a sua continuação na vida dos santos. A separação
ocorrida entre Oriente e Ocidente no modo de conceber as ima­
gens a partir, no mais tardar, do século XIII, é indubitavelmente
muito profunda: aí se sobrepõem os variados motivos de percur­
sos espirituais diferentes. Uma devoção à cruz de caráter mais
historicista substitui a disposição para o Oriente, rumo ao Cristo

ressuscitado, que nos precede no caminho.
ç
Todavia, não se deveria supervalorizar a diferença que assim
_,_

>

vinha sendo constituída. A representação do Cristo sofredor que


morre na cruz é nova, porém ela continua a colocar diante de nós
Aquele que carregou as nossas dores e as chagas pelas quais fomos
1•
curados. Ela manifesta, na dor mais extrema, o amor libertador
de Deus. Se a crucificação de Grüne\\'ald radicaliza ao extremo
o re alismo do sofrimento, convém não esquecer que se tratava
de uma imagem de consolação, que fazia com que os doentes de
peste tratados pelos Antoninos reconhecessem a identificação de
Deus com o seu destino; de ver que ele desce até o seu padeci­
mento e que as suas dores são acolhidas no sofrimento dele. A \i­
rada decisiva para o humano, para a realidade histórica de Cristo,
vive, assim, da pertin ência do seu sofrim en to humano no mis té­
rio. As imagens consolam porque tornam visível a superação das
nossas tribul ações na co mpaix ão do Deus que se fez homem, e,
desse modo, traze m em si a mensagem da ressurreição. Também
essas imagens vêm da oração, vêm da meditação interior da via
de Cristo; são identificações com Cristo, que se fundamentam no
fato de que nele Deus se identificou conosco. Manifestam o realis­
mo do mistério, sem, todavia, desprender-se dele. No que tange à
Missa como presença da Cruz: a partir desta, não se poderia com­
preendê-la com uma nova penetração? O mistério é desenrolado
em toda a sua extrema concretude e a piedade popular, exata­
mente desse modo, pode ajudar a alcançar, de uma nova maneira,
o coração da liturgia. Por outro lado, essas imagens não mostram
somente a "epiderme", o mundo sensível externo; também elas
querem nos conduzir através daquilo que é puramente fenomê­
nico e abrir o nosso olhar para o coração de Deus. O que foi aqui
referenciado a partir da imagem da cruz vale também para a per­
manente arte "narrativa" do gótico. Que força de interiorização se
vê nas imagens da Mãe de Deus! Nelas se manifesta a nova hu­
manidade da fé. Imagens como essas convidam à oração, porque
são interiormente marcadas pela prece. Elas nos mostram a verda­
deira imagem do ser humano, assim como foi pensada e renovada
pelo Criador por meio de Cristo. Elas nos conduzem para dentro
da verdadeira humanidade. Não podemos esquecer, finalmente, a
grandiosa arte dos vitrais góticos! As janelas das catedrais góticas
detêm a luz ofuscante do exterior, a envolvem e deixam transpa­
recer toda a história de Deus com os homens, da criação até a sua
volta. A parede, no jogo de luzes provocado pelos raios do sol, se
torna Imagem, o iconóstase do Ocidente, que confere ao espaço
uma sacralidade que toca até o coração dos agnósticos.
O Renascimento certamente deu um passo à frent e , em
uma direção completamente nova. Ele ema ncipa o ser huma­
" "

no. Então nasce o estético em sentido moderno - uma visão


da beleza que não quer mais ir além de si mesma, mas que, como
beleza daqu ilo que aparece, em última análise, basta-se a si pró­
pr i a. O ser humano se experimenta em toda a sua grandeza, em
sua autonomia. A arte fala dessa grandeza do homem, e de fato
surpreende; não precisa mais procurar outra beleza. Entre as
representações dos mitos pagãos e as da história cristã, em ge­
ral se custa a captar alguma diferença. A percepção trágica que
percorre a Antiguidade é esquecida, agora só é vista a sua beleza
divina, e nasce a nostalgia dos deuses, do mito, de um m und o
sem medo do pecado e sem a dor da cruz, que talvez tivesse tido
uma posição até excessivamente preponderante nas imagens da
Baixa Idade Média. Os conteúdos cristãos são, então, represen­
tados, mas essa "arte religiosa" não é uma arte sacra em sentido
estrito. Ela não se insere na humildade do sacramento e em seu
dinamismo que supera o tempo. Quer saborear o hoje e libertar
a si mesma através da beleza. Talvez o iconoclasmo da reforma
deva ser compreendido também daqui, embora as suas raízes
sejam indubitavelmente bem mais profundas.
A arte barroca, que sucedeu ao Renascimento, apresenta
múltiplos aspectos e se realiza de diferentes maneiras. Em sua
melhor forma, ela se fundamenta nos princípios da reforma ini­
ciada pelo Concilio de Trento, que - mais uma vez na linha da
tradição ocidental -, colocava em relevo o caráter didático-pe­
dagógico da arte, porém, como princípio de uma renovação do
interior, também conduzia a uma nova visão do interior para o
exterior. O retábulo do altar é como uma janela através da qual
o mundo de Deus caminha em direção a nós; o véu da tempora­
lidade é levantado e podemos dar uma olhada nas profundezas
do mundo de Deus. Essa arte quer nos envolver novamente na
liturgia celeste, visto que ainda hoje se pode perceber uma igreja
barroca como uma única e fortíssima tonalidade de alegria, como
um aleluia que se tornou imagem: a alegria no Senhor é a nossa

força - essa sentença veterotestamentária (Ne 8,10) exprime o


111
sentimento último do qual vive essa ic onog rafia . O Iluminismo
conduziu a fé para uma espécie de gueto intelectual e social� a
cultura contemporânea afastou-se dela e percorreu um outro ca­
minho, de forma que a fé ou se refu gi ou no historicismo - na
imitação do passado -, ou procurou ada pta r- se ou se perdeu
,

no c o nformi smo e na ab stinê n c ia cultural, coisa que le vo u a um

novo icono c lasmo , que, aliás, às vezes era visto com o uma tarefa
do C on c ili o Vaticano II. A fúria ico n oc las ta , cujos primeiros si­
nais na Alemanha remontam já às pri me iras décadas do século
passado, fez deixar de lado muito kitsch e numerosas obras in­
dignas, mas, sobretudo deixou atrás de si um vazio, do qual n ós
ho j e voltamos a perceber toda a miséria.
De que modo seguiremos adiante? Nós, hoje, não experi­
mentamos apenas uma crise da arte sacra, mas uma crise da arte
enqu anto tal, e com uma intensidade até então desconhecida. A
crise da arte é outro sintoma da crise da humanidade, que exa­
tamente na extrema exasperação do domínio material do mundo
mergulhou na cegueira diante das grandes questões do ser huma­
no, daquelas perguntas sobre o destino último do homem, que
vão além da dimensão material. Essa situação certamente pode
ser definida como uma cegueira do espírito. À pergunta sobre
como devemos viver, como devemos enfrentar a morte, se a nossa
existência tem um fim e qual, para todas essas perguntas não exis­
tem mais respostas comuns. O positivismo, formulado em nome
da seriedade científica, restringe o horizonte ao que é demons­
trável, ao que pode ser verificado pela experiência; ele torna o
mundo opaco. Contém ainda a matemática, porém o Logos, que
é o pressuposto dessa matemática e de sua aplicabilidade, não
aparece mais nele. Então o nosso mundo das imagens não supera
mais a aparência sensível e o fluxo das imagens que nos cercam
também significa, ao mesmo tempo, o fim da imagem: além da­
quilo que pode ser fotografado, não há mais nada para ver. Neste
ponto, porém, não é impossível apenas a arte dos ícones, a arte
sacra, fundamentada em um olhar que se abre em profundidade;
a própria arte, que em um primeiro momento tinha experimen­
tado no impressionismo e no expressionismo as possibilidades
extremas da visão sensível, permanece privada de um objeto, em
111
sentido literal. A arte se torna experiência com mundos criados
.,
por ela, uma vazia Hcriatividadc , que não percebe mais o Espíri­
to Criador. Ela tenta tomar o seu lugar e não con se gu e fazer nada
além de produzir o arbitrário e o vazio, e tornar o ser humano
consciente do absurdo de sua pretensão criadora.
Mais uma vez: de que modo seguiremos adiante? Procure­
mos resumir o que dissemos até aqui e reconhecer os princípios
fundamentais de uma arte voltada para a liturgia:
1. A ausência total de imagens não é conciliável com a fé
na Encarnação de Deus . Em seu agir histórico Deus e ntrou em
nosso mundo sensível para que este se tornasse transparente
para Ele. As imagens do Belo, no qual se faz presente o mistério
do Deus invisível, são parte integrante do culto cristão. Certa­
mente pode haver uma oscilação dos tempos, uma subida e uma
descida, então também podem existir tempos de certa pobreza
nas imagens . Todavia, elas nunca podem faltar completamente.
O iconoclasmo não é uma opção cristã.
2. A arte sacra encontra os seus conteúdos nas i magen s da
história da salvação, a começar pela criação e pelo primeiro dia
até o oitavo: o da ressurreição e o do retorno, em que a linha da
história se conclui como um círculo. Dela fazem parte sobre­
tudo as imagens da história bíblica, além da história dos santos
como explicação da história de Jesus Cristo, como o tornar-se
fecundo ao longo de todo o curso da história do grão de trigo
que, caindo na terra, morre . "Vós não combateis somente con­
tra os ícones, mas também combateis contra os santos", replica
João Damasceno ao imperador iconoclasta Leão III. Na mesma
linha, nesse período, o papa Gregório III introduz em R oma a
festa de Todos os Santos (Evdokimov, 141s.).
3. As imagens da história de Deus com os seres humanos não
mostram apenas uma sequência de eventos passados, mas apon­
}>
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[T",
tam neles a unidade interior do agir de Deus. Elas remetem ao
rr

----; sacramento - sobretudo ao Batismo e à Eucaristia - e nele estão
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contidas, constituindo, exatamente assim, também uma evocação


:o
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...i.

)::

ao presente. Elas, portanto, estão intimamente ligadas à ação li­


túrgica. A história, porém, se torna sacramento em Jesus Cristo,
fonte dos sacramentos. Por isso a imagem de Cristo é o centro
da arte figurativa sacra. O centro da imagem de Cristo é, pois, o
mistério pascal: C r i sto é re p re s enta do como Crucificado, como
Ressuscitado, como Aquele que retorna e que já agora reina no

mistér i o. Toda imagem de Cr i sto de ve trazer em si esses três as­


pectos fundam entai s do mistério de Cristo, ou seja, deve ser uma
imagem pascal . Nisto, certamente, são possí ve i s diferentes a ce n­
tos: a imagem pode mostrar em p rimeiro pl ano a cruz, a paixã o
e, com ela, a situação de sofrimento que marca também o nosso
hoj e; ou , pode colocar mais em evidência a ressurre i çã o ou o re­
torno de Cristo. Somente não se pode isolar completamente um
aspecto particular: em todos os diferentes des ta qu e s , deve sempre
estar p r esent e o misté rio pascal inteiro. Uma imagem da cruz em
que a Páscoa de alguma forma não transparece será igualmente
tão falsa quanto uma imagem pascal que esquece dos estigmas,
ou seja, da presença da dor. Enquanto imagem centralizada na
Páscoa, a imagem de Cristo é sempre ícone da Eucari stia : isto é,
ela remete à presença sacramental do mistério pascal.
4. A imagem de Cristo e as imagens dos santos não são fotos.
A sua essência é conduzir acima daquilo que é puramente cons­
tatável no plano material e ensinar uma nova maneira de ver, que
perceba o invisível dentro do visível. A sacralidade da imagem
consiste exatamente no fato de provir de uma visão interior e,

exatamente por isso, conduz, por sua vez, a uma visão interior.
Ela deve ser fruto de uma contemplação interior, de um encontro
crente com a nova realidade do Ressuscitado e, então, deve con­
duzir de novo ao olhar interior, ao encontro orante com o Senhor.
A imagem é utilizada na liturgia; a oração e o olhar, nos quais se
formam as imagens, devem ser oração e olhar compartilhados,
em comunhão com a fé vidente da Igreja: a dimensão eclesial é
essencial para a arte sacra, bem como a ligação interior com a
história da fé, com a Escritura e a tradição.
5. A Igreja do Ocidente não pode, com efeito, desmentir o
caminho por ela percorrido a partir do século XIII . Deve, todavia,
asswnir finalmente as conclusões do sétimo concilio ecumênico,
o Segundo Concilio de Niceia, que reconheceu a importância
fundamental e o lugar teológico da imagem dentro da Igreja. Ela
não precisa, necessariamente, submeter-se a cada uma das nor­
1 13
mas desenvolvidas nos sucessivos concílios e sínodos realizados
no Oriente, que receberam certa organização definitiva no Con­
cilio de Moscou em 1551, o concilio dos cem cânones. Deveria,
porém, considerar normativas também para si as linhas funda­
mentais dessa teologia da imagem. Também é verdade que não
devem existir normas rígidas: as novas experiências religiosas e

os dons dos novos conhecimentos devem poder encontrar seu

espaço na Igreja. Permanece, porém, uma diferença entre a arte


sacra (aquela que se refere à liturgia, pertencente ao âmbito ecle­
siástico) e a arte religiosa em geral. Na arte sacra não há espaço
para a arbitrariedade pura. As formas artísticas que negam a pre­
sença do Logos na realidade e fixam a atenção do ser humano na
aparência sensível não são conciliáveis com o sentido da imagem
na Igreja. Da subjetividade isolada não pode vir arte sacra algu­
ma. Ela pressupõe, antes, o sujeito interiormente formado pela
Igreja e aberto para nós. Somente assim a arte sacra toma visível
a fé comum e volta a falar aos corações crentes. A liberdade da
arte, que também deve existir no âmbito delimitado da arte sacra,
não coincide com a arbitrariedade. Ela se desenvolve segundo os
critérios indicados nos primeiros quatro pontos destas reflexões
conclusivas e que representam uma tentativa de resumir as cons­
tantes da tradição figurativa da Igreja. Sem fé não há arte adequa­
da à liturgia. A arte sacra está sob o imperativo da segunda carta
aos Coríntios: olhando para Cristo, nós "somos transformados
em sua imagem com um esplendor cada vez maior; porque é o

Espírito do Senhor quem realiza isto" (3,18).


Na prática, o que significa tudo isso? A arte não pode ser
produzida, assim como se comercializam e produzem aparelha­
gens técnicas. Ela é sempre um dom. Não se pode decidir a
inspiração, deve-se recebê-la - gratuitamente. A renovação da
arte na fé não será alcançada nem com o dinheiro, nem com a
comercialização. Pressupõe, em primeiro lugar, o dom de uma
-- nova visão. Por isso, todos devemos preocupar-nos para atingir
novamente uma fé capaz de ver. Onde isso acontece, também a
�··

arte encontra a sua correta expressão.


.. ' . .
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Música e llturgla

A importância que a música tem para a religião da Bíblia pode


ser facilmente deduzida pelo fato de que a palavra "cantar" (e
seus derivados) é um dos vocábulos mais usados na Bíblia: no
Antigo Testamento, esse termo ocorre 309 vezes; no Novo Testa­
mento, 36 vezes. Onde Deus entra em contato com o homem, a
simples palavra não basta mais. São citados pontos da existência
que, espontaneamente, se tornam cânticos: o que é próprio do ser
humano não basta mais para aquilo que ele quer exprimir, tanto
que ele convida a criação inteira a se tornar cântico junto com ele:
"Desperta, ó minha alma, ó harpa e cítara; despertarei, Senhor,
a própria aurora. Quero render-te graças entre os povos, salmo­
diar teu nome entre as nações. Pois mais alto que o céu é o teu
amor, a tua fidelidade atinge as nuvens" (SI 57,9-11). A primeira
menção de canto, na Bíblia, é encontrada após a passagem do
mar Vermelho. Israel tinha sido finalmente libertado da escravi­
dão e experimentado de maneira arrebatadora o poder salvador
de Deus numa situação desesperada. Assim como Moisés, quan­
do bebê, foi salvo das águas do Nilo e precisamente desse modo
recebeu realmente a vida, assim Israel, por sua vez, se sente salvo
das águas, livre, novamente doado a si mesmo pela mão poderosa
de Deus. A reação do povo no evento fundamental da salvação
na narração bíblica é descrita com esta expressão: "Eles creram
no Senhor e em Moisés, seu servo" (Ex 14,31). Segue-se, po­
rém, uma segunda reação, que se eleva da primeira com ímpeto
singular: "Então Moisés cantou com os israelitas este cântico ao
111
Senhor . . . " (15,1). Na celebração da noite pascal, ano após ano os
c ri s tão s entoam e ss e hino e o c a n tam novamente como seu hino,
por que s a be m que também eles foram H retirados d as águas " por
meio do poder de Deu s, libertados por D eu s para a verdadeira
vida . O Apocalipse de João alarga ainda mai s esse arco. Depois
que os últimos inimigos d o povo de Deus entraram no cenário
da his tór i a - a trindade satânica, constituída pela besta, a sua
e s tátua e o nú m e ro de seu nome -, isto é, quando tudo já parecia
perdido para o santo I sra e l de Deus diante de tal s u p erpo d e r, ao

vid e nt e é dada a visão do vencedor : ". . . estavam em pé sobre o

mar de vidro com as harpas de Deus. Cantavam o cântico de


Mois é s, o servo de Deus, e o cântico do Cordeiro . . . " (Ap 1 5,2s.) .
O paradoxo de então se torna ainda mais p otente : não vencem
as gigantesc as bestas ferozes, com o seu poder midiático e a s ua
capacidade técnica; vence o Cordeiro sacrificado. E assim ressoa,
mais uma vez, definitivamente, o cântico do servo de Deus, Moi­
sés, que então se torna o canto do Cordeiro.
O canto litúrgico se situa no quadro dessa grande tensão his­
tórica. Para Israel, o evento da salvação ocorrido no mar dos Jun­
cos sempre permaneceu como motivo preponderante do louvor
a Deus, o tema fundamental de seu canto perante Deus. Para os
cristãos, a ressurreição de Cristo - que superou o "mar Verme­
lho" da morte, desceu ao mundo das trevas e derrubou as portas
do cárcere - foi o verdadeiro êxodo, que no batismo se torna
uma nova presença: o batismo é uma inserção na contemporanei­
dade da descida de Cristo aos infernos e em sua subida, onde Ele
nos acolhe na comunhão da nova vida. Já no dia seguinte ao júbilo
do Êxodo os israelitas tiveram que se dar conta de que estavam
expostos ao deserto e aos seus perigos, e que a marcha rumo à
Terra Prometida não tinha dado um fim às ameaças. Mas havia as

aventuras sempre novas de Deus, que permitiam continuar a can­


tar o cântico de Moisés e mostravam que Deus não é um Deus do
passado, mas do presente e do futuro. Em cada novo canto cer­
tamente também havia a consciência da transitoriedade e a exi­
gência de um canto novo e definitivo, a exigência de uma salvação
não mais seguida de um momento de medo, mas somente do hino
de louvor. Quem acreditava na ressurreição de Cristo conhecia
verdadeiramente a salvação definitiva e sabia que os cristãos, que
ora se encontravam na "nova aliança", cantavam então o cântic o
novo, d e fini ti vo e re almente "novo " d aq u ele t o talmente outro que
tinha acontecido com a ressurre ição de Cristo. Aquilo que dis­
s e m o s na primeira parte sobre
a fase intermediária da realidade
cristã - não mais sombra, nem realidade plena , e sim "ima­
ge m - continua a valer também aqui: o novo canto definitivo é
"

ento a d o , mas é p re ci s o que se cumpram todos os sofrime nt o s da


história, que tod a a do r s e ja recolhida e entregue n o sacrificio do
lo uvor, para aí s e r transformada em cântico de louvor.
Fiz re fe rê n ci a , assim, ao fundamento teológico do ca n t o li­
túrgico. Ago ra é pre c i s o considerar mais de p e r to a sua realidade
prática . Ao lado dos vários testemunhos sobre o canto de cada
um e da comu ni da de em Israel, bem como sobre a música no
templo, encontrados ao longo de toda a S agr a d a E s c ri tu ra , o li­
vro dos Salmos é a verdadeira f o n t e em que podemos nos apoiar.
Ainda que , devido à a u sên cia de uma notação musical, não seja
p ossí vel fazer nenhuma reconstrução da "música sacra " de Is­
rael, esse livro nos dá, de certo modo, u m a i d e i a ta nt o d a r i q u eza
de i n s tr um e nto s quanto do s diferentes modos de cantar pratica­
dos em Israel . Em sua p o e s ia orante, ele nos mostra toda a gama
de experiências que, d i a nte de Deus, se tornavam oração e cân­
tico. Luto, lamento, até acusação, medo, esperança, confiança,
gratidão, alegria - a vida inteira se reflete no momento em que
se des d o b ra no diálogo com Deus. Surpreende o fato de que até
o lamento em uma situação sem saída se encerra quase sempre
com uma palavra de confiança, por assim dizer, com uma an­
tecipação da ação salvífica de Deus. Por isso, em certo sentido,
poderíamo s definir todos esses "novos hinos " como variações
do cântico de Moisés. De um lado, o cantar diante de Deus se
eleva de situações de necessidade, nas quais nenhum poder ter­
restre pode s alvar, de sorte que somente Deus é o único refúgio;
ao mesmo tempo, p orém, ele provém daquela confiança que,
mesmo na obscuridade mais extrema, permanece consciente e
que o evento o c o rrido no mar dos Juncos é uma promessa à
qual cabe a última palavra na vida e na história . Convém rele­
var, todavia, que os S almos geralmente derivam de ex p eri ên c ias
absolutamente pessoais de sofrimento e de atendimento, mas
confluem na oração comum de Israel, bem como se alimentam
117
do fundamento comum dos fatos operados por Deus .
Observando a Igrej a que canta, podemos constatar, então,
a mesma ligação de continuidade e de renovação que já vimos a

propósito da arquitetura eclesiástica e das imagens sacras e, mais


em geral, da própria essência da liturgia: o saltério, por si mesmo,
se torna o livro de oração da Igreja a caminho, que exatamente as­
sim se toma uma Igreja que reza com o canto. Isso vale, antes de
tudo, para o saltério, que ora é rezado junto com Cristo. Se Israel,
em seu cânon, atribuiu o s Salm os p ri nc i palme nte ao rei Davi,
dando-lhes certa interpretação histórico-salvífica e te ológica , para
os cristãos e stá claro que Cristo é o verdadeiro Davi, que Davi no
Espírito Santo reza em e com Aquele que devia ser seu filho e, ao
mesmo tempo, Filho Unigênito de Deus. Nessa chave de inter­
pretação os cristãos se inseriram na oração de Israel, sabendo que
exatamente desse modo eles a faziam tornar-se um cântico novo.
Observe-se que agindo assim dava-se uma interpretação trinitária
aos Salmos : o Espírito Santo, que tinha inspirado Davi a cantar
e a rezar, faz com que ele fale de Cristo e se tome, antes, a sua
voz . Por isso nos Salmos falamos por meio de Cristo, ao Pai, no
Espírito Santo. Essa interpretação pneumatológica e cri stológi ca
dos Salmos não se refere somente ao texto, mas inclui o elemento
musical: é o Espírito Santo que ensina Davi a cantar e, através
dele, Israel e a Igreja. O cantar, justamente porque supera o modo
habitual de falar, é, como tal, um evento pneumático. A música
eclesial surge como "carisma ", como dom do Espírito : ela é a
verdadeira "glossolalia", a nova "língua" que provém do Espírito.
Nela, sobretudo, acontece a " sóbria embriaguez " da fé, porque
são superadas todas as possibilidades da pura racionalidade. No
entanto, essa embriaguez permanece sóbria porque Cristo e o Es­
pírito são uma só coisa, porque essa língua " ébria " permanece in­
teiramente na disciplina do Logos, numa nova racionalidade, que,
além de todas as palavras, serve à palavra original, fundamento de
toda razão. Será necessário retomar a esse ponto.
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No Apocalipse já tínhamos en c ontra do a a mpli aç ão de ho­


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rizonte dada pela confissão de fé em Cristo, lá onde o canto dos
vencedores é chamado de canto de Moisés, servo de Deus, e
do Cordeiro. Com isso se sublinhava outra dimensão do canto
diante de Deus . Na Bíblia de Israel constatamos até aqui doi s
motivos fundamentais para cantar diante de Deus : a situação
de necessidade e a alegria, a tribulação e a salvação. A relação
com D eus era fortemente caracterizada pelo temor do poder
eterno do Criador para que se ousasse considerar os cânticos ao
Senhor como cantos de amor a Ele, se bem que na confiança,
que caracteriza interiormente todos os textos , em última análise
se esconde justamente o amor - mas ele permanece tímido,
mais exatamente, oculto. A íntima ligação de amor e canto entra
pela primeira vez no Antigo Testamento de uma maneira que,
num primeiro momento, pode causar espanto, ou seja, com a
entrada do C ântico dos Cânticos que, por si, era uma coletânea
de poemas de amor humano. Quando, porém, ele foi aceito pelo
cânon, já se levava em consideração uma interpretação mais am­
pla. Podia-se entender esse belo poema de amor de Israel como
palavras inspiradas da Sagrada Escritura porque havia a certeza
de que, no amor humano que ali era cantado, transparecia o
mistério do amor de D eus com Israel . Na linguagem dos profe­
tas o culto aos deuses estrangeiros era definido como prostitui­
ção (coisa que tinha um sentido absolutamente concreto, visto
que os cultos de fecundidade normalmente faziam parte dos ritos
de fecundidade, a prática da prostituição junto aos templos) . Ao
contrário, a eleição de Israel aparece como a história de amor
de Deus com o seu povo. A aliança é interpretada na imagem do
noivado e do casamento como laço do amor de Deus com o ser
humano, e do ser humano com Deus. O amor humano podia
assim se tornar imagem real do agir de Deus com Israel . Jesus
tinha assumido essa linha da tradição de Israel, tanto que em
uma das suas primeiras parábolas fala de si como do Esposo.
À pergunta de p or que os seus discípulos, ao contrário dos dis­
cípulos de João e daqueles dos fariseus, não jejuavam, ele tinha
respondido : "Por acaso ficaria bem que os convidados para um
casamento fizessem j ejum, enquanto o esposo está com eles?
Enquanto está, não convém. Mas virá um tempo em que o espo­
· -·
=

so lhes será tirado. Então, sim, eles vão j ejuar" (Me 2, 1 9s. ) . Essa
é uma profecia da paixão, mas também o anúncio das núpcias, �

que depois ainda aparece nas parábolas de Jesus centralizadas


no banquete nupcial, tornando-se o tema central do último li­
vro do Novo Testamento, o do Apocalipse: através da paixão,
111
tudo se dirige para as núpcias do Cordeiro. Dado que nas visões
d a lirur gia celeste elas sempre parecem antecipadas, os cristã o s
compree nderam que a Eucaristia é presença do Esposo e, exa ­
tamente por isso, antecip ação da festa nupcial de Deus. Nela
acontece aquela comunhão que possui a s u a correspondência
na u nião de homem e mulher no casamento : assim como eles se
tornam �'uma só carne " , do mesmo modo todos nós, pela comu­
nhão , nos tornamos uma unidade com Ele . O mistério nupci a l
da união de Deus e ser humano, preanu nci ado no Antigo Testa­
mento, acontece no sacramento do corpo e do sangue de C risto,
exatamente através de sua paixão, de modo absolutamente real
(cf. Ef 5 ,29-32; l C o r 6, 1 7 ; Gl 3 ,28) . O cântico da I g re j a pro­
vém, e m suma, do a m o r : é ele qu e , pro fu nd am e n te, é a o ri ge m
do cantar. Can tare a1nan tis est, diz A g os tinho : cantar é pr ó pr i o
do amor. Com isso re to r n amos à in ter p re ta ç ã o trinitária da mú­
sica eclesiástica : o Esp írito Santo é o amor, e é El e a origem do
canto. Ele é o Espírito de Cristo, Ele nos atrai ao amor a Cristo
e nos conduz, assim, ao Pai .
Mais uma vez devemos passar desses estímulos internos da
música litúrgica para questões mais práticas . A express ã o que os
S almos utilizam p ara o termo " cantar" , segundo a raiz lexical,
p ertence ao p atrimônio comum das línguas orientais e designa
um canto sustentado por instrumentos (mais precisamente, por
instrumentos de corda) , que possui uma clara referência textual
e, conteudisticamente, é voltado para determinadas afirmações .
Tratava-se de um canto vocal que, presumivelmente, só no início
e no final permitia variações melódicas . A Bíblia grega traduziu o
termo hebraico zamir com psallein, termo que em grego signifi­
cava "puxar" (sobretudo com referência ao som dos instrumen­
tos de corda) , mas que se tornava expressão do específico modo
musical do culto judaico, chegando, assim, a definir também o
modo de cantar próprio dos cristãos. Muitas vezes vem acom­
panhado de um acréscimo, cuj o significado permanece obscuro,
mas que, de certa forma, indica um canto artístico, ordenado. A
fé bíblica tinha, assim, realizado sua forma cultural no campo da
música, aquela expressão interiormente adequada a ela, que dá a
própria medida a todas as sucessivas inculturações.
A questão s obre até que ponto p ode chegar a inculturação
no campo da música, para o cristianismo dos primórdios bem
dep ressa se tornou bastante concreta . As comunidades cristãs
cres ceram d as s in ag o ga s, d as qu a i s tinham assumido também o
modo d e cantar o saltério, i n terpre ta d o cr isto l og i ca m en t e . Ra­
pi dam e nte surg ira m novos hinos e c ant o s cristãos; em um pri­
meiro te mp o, com fundamento veterotestamentário, têm-se o
Benedictus e o Magnificat; de p oi s , textos com enfoque integral­
me nte cr istoló gic o , entre os quais se destacam o Prólogo de João
( 1 , 1 - 1 8) , o hi n o cris toló g i c o da carta aos Filipenses (2 ,6- 1 1 ) e o
hino a Cristo de 1 Ti mó teo (3, 1 6) . Uma i n fo rma çã o interessan­
te sobre o desenvolvimento da liturgia da Igrej a da s o ri g e n s nos
é dada por Paulo na prime i ra carta aos Coríntios : " Quando vos
reunis, cada um te m um salmo [psalmón] , um ensi n a m e nto, uma
revelação, uma oração e m língua, uma i nter p reta ç ão : mas que
tudo s e faça para a edificação" ( 1 4,26) . Do escritor romano Plí­
nio, o jovem, numa carta escrita ao imperador para informá-lo
sobre o culto d o s cristãos, sabemos que, n o início do século II, o
canto à glória de Cristo e de sua divindade constituía elemento
da liturgia cristã. Pode-se imaginar que esses novos textos cris­
tãos tenham trazido consigo uma ampliação das formas ante­
riores de canto e que surgiram novas melodias. Parece que o
des e nvolvimento da fé cristã se tenha realizado também na hino­
g rafia , cujas criações poéticas nasciam nesse período como " dons
p neumáticos na Igrej a . Isso era motivo de esperança, mas tam­
"

bém de perigo. Com o progressivo desprendimento da Igreja


das suas raízes semíticas e com a passagem para o mundo grego,
chegou- se a alcançar profundamente, quase espontaneamente,
a mística grega do Logos, com a poesia e a música; tudo isso
incluía, porém, o risco de que o acontecimento cristão fosse di­
luído em sua essência numa espécie de mística geral . Exatamen­
te o camp o dos hinos e da música se tornou a porta de entrada
da gn o se , isto é, daquela tentação mortal que começou a desagre­
gar o cristianismo em seu interior. Pode-se, então, compreender
por que no confronto p ela identidade da fé e por seu enraiza­
mento na figura histórica de Jesus Cristo as autoridades eclesiás­
ticas chegaram a uma decisão radical . O cânone 5 9 do Concilio
de Laodiceia proíbe, na celebração litúrgica, a utilização de com­
posições sálmicas privadas e escritos não canônicos; o cânone 15
limita o canto dos S almos ao coro dos salmistas, enquanto " os
ou tr os que estão na igreja não devem cantar" . Foi a s s im que as
co m p osições híni c as pós-bíblicas se perderam quase por com ­
pleto, então se retornou rigorosamente à forma de c an to her­
d ad a d a sin ago g a, de cará ter puramente vocal . Certamente s e
podem lamentar as perdas cultuais que daí d erivaram, mas a
de cisão foi indispensável p ara salvar aquilo que mais valia . O
retorno a u ma a pare n te p ob re z a cultural salvou a identidade da
fé bíblica, e exatamente no momento em que rej eitava um fal so
modelo de inculturação, abria ao futuro toda a amplitude cul­
tural do acontecimento cristão.
Na história da música litúrgica é possível observar um am­
plo p aralelismo com o desenvolvimento da questão das imagens.
O Oriente - ao menos no âmbito bizantino - permaneceu fiel
à música puramente vocal, que, na área eslava, também por in­
fluência do Ocidente, estendeu-se à polifonia . Os seus coros de
vozes masculinas, com a respectiva dignidade sacral e com a sua
contida energia, tocam o coração e fazem da Eucaristia a festa
da fé . No Ocidente, o canto dos S almos dos coros gregorianos se
desenvolveu a uma altura e a uma pureza novas, que constituem
um critério permanente para a música sacra, isto é, para a músi­
ca que acompanha as celebrações litúrgicas da Igreja . Na Baixa
Idade Média, daí se desenvolve a polifonia, e os instrumentos
entram novamente a fazer parte da liturgia - absolutamente jus­
tificado, visto que a Igreja não continua somente a sinagoga, mas
acolhe em si também a realidade representada no templo a partir
da Páscoa de Cristo. Dois novos fatores operam, então, na músi­
ca da Igreja : a liberdade artística reivindica sempre mais espaço
também no serviço litúrgico; a música eclesiástica e a profana se
interpenetram mutuamente, como se vê com particular clareza
nas missas p arodísticas, nas quais o texto da missa é submetido
a um tema, a uma melodia que deriva da música secular, a tal
ponto que podia até acontecer de os ouvintes escutarem árias
populares. É claro que, abrindo para a criatividade artística e os
motivos seculares, não se podia evitar uma cilada perigosa : a mú­
sica não se desenvolve mais a partir da oração, mas se desprende
da liturgia exatamente por causa da pretensa autonomia do ele­
mento artístico, se torna fim em si mesma ou escancara as portas
t21 a farmas de experiência e de sensibilidade completamente dife-
rentes � ela termina por roubar da liturgia a sua verdadeira essên­
cia. Sobre esse ponto o Concílio de Trento interveio no conflito
cultural então em ação e restabeleceu a n o rm a s e gu nd o a qual
na música litúrgica a fidelidade à palavra é prioritária, limitando,
assim, de maneira sensível, o uso dos instrumentos e apontando
também uma clara diferença entre a música profana e a música
sacra . Uma segunda e análoga intervenção ocorreu no início d o
século XX co m o papa Pio X. O bar ro c o (de maneira diferente
no mundo católico e no protestante) trouxe uma surpreendente
unidade entre música secular e música na celebração litúrgica e
tinha procurado colocar a serviço da glória de Deus todo o poder
iluminador da música, que se produzia nesse momento altíssi­
mo d a história da civilização. Na ig re j a podemos ouvir Bach ou
M o z art , em ambos os casos experimentamos de maneira sur­
preend ente o que significa gloria Dei, Glória de Deus. Estamos
diante do mistério da beleza infinita que nos faz experimentar
a p res e nç a de Deus de maneira mais verdadeira e mais viva da
que p o deri a acontecer em muitas p re gaçõ e s. Mas já se anunciam
per igo s : a dimen s ã o s ub jetiv a e a sua passionalidade ainda são
contidas pela ordenação do cosmos musical, no qual se reflete a
ordem da criação divina . Contudo, já ameaça crescer o virtuosis­
mo, a vaidade da própria habilidade, que então já não se coloca
mais a serviço do todo, mas quer impelir a si mesma para o pri­
meiro plano. Em muitos casos, no século XX - o século da sub­
jetividade que se emancipa - isso acabou por levar à erosão do
sacro da parte da música operista, tornando novamente presen­
tes aqueles perigos que, em seu tempo, induziram o Concilio de
Trento a intervir. De maneira semelhante Pio X procurou, então,
afastar a música operista da li turg i a, indicando o canto grego­
riano e a grande p olifo nia da época da renovação católica (com
Palestrina como figura simbólica de estimulo) como critério da
música litúrgica, que deve ser claramente distinta da música rel i­
giosa em geral, analogamente ao que acontece na arte figurativa,
que na liturgia tem de seguir critérios diferentes daqueles da arte
religiosa comum. Na liturgia a arte tem uma responsabilidade
completamente particular e precisamente por isso é continua­
mente fonte de cultura que, com efeito, ultimamente deve a si
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mesma justamente ao culto.
Hoj e, após a revolução cultural das últimas décadas, estamos
diante de um desafio que certamente não é inferior ao dos três
últimos períodos de crise, nos quais já nos confrontamos com
o nosso traçado histórico: a tentação gnóstica, a crise do final
da Idade Média e do início da modernidade, e a c ri s e do iníc i o
deste século, que deu partida às grandes questões que marcam
de maneira ainda mais radical a contemporaneidade . Muito re­
centemente três fenômenos evidenciaram os problemas com os
quais a Igrej a deve se con fr ontar no campo da mú s i c a litúrgic a.
Trata-se, em primeiro lugar, do universalismo cu l tural, do qu al
a Igreja deve mostrar-se capaz se quiser superar definitivamente
os limites do esp írito europeu. O proble ma é o da imagem da
incultu ra ção no campo da música sacra, d e forma que, de um
lado, possa ser preservada a identidade cristã e, de outro, possa
desenvolver-se plenamente a sua universalidade. Exi stem, além
disso, dois fenômenos liga do s à evolução da música, o s qu ais ini­
cialmente tiveram origem no Ocidente, e que, com a globalização
da cultura, envolvem há longo tempo a humanidade inteira. A
c ham a da "música clássica " - salvo poucas exceções -, enfim,
foi rele ga d a a uma espécie de gueto, ao qual só especialistas têm
acesso, e às vezes também estes o fazem com sentimentos e pre­
disposições diferentes. A música das massas separou-se dela e
percorre um caminho diferente . Aqui encontramos a música pop,
que já não é mais sustentada pelo povo (pop) no antigo sentido,
e sim vo ltada para um fenômeno de massa, é produzida c om mé­
todos e em escala industrial e, finalmente, pode ser definida como
um culto da banalidade. Em relação a essa, o rock é expre s sã o de
paixões elementares, que nos grandes festivais de rock assumiram
caráter cultuai, isto é, um contraculto que se opõe ao culto cristão.
Ele quer libertar o ser humano de si mesmo no evento de massa
e no desarranjo, através do ritmo, do barulho e dos efeitos de ilu­
núnaçã o, fazendo com que aqueles que participam se pr ecip item
no po d er primitivo do Tudo, através do êxtase da dilac era ç ã o dos
próprio s limites. A música da sóbria embriaguez do Espírito San­
to parece ter poucas chances aqui, onde o eu se tornou um cár­
cere, ond e o espírito virou um grilhão, e a rup tura violenta com
ambos parece ser a verdadeira promessa de libe rtaçã o, da qual, ao
menos por alguns instantes, se acredita ter p rova d o o sabor.
O que fazer? Ainda menos que no caso das artes figurativas,
a qui a a j uda não pode v ir das receitas teóricas, mas somente
da renovação interior. D esej o indicar, porém, alguns critérios, a
título de conclusões derivadas da nossa reflexão sobre os funda­
mentos interiores da música sacra cristã .
A mú s ica litúrgica cristã se define, em relação ao Logos,
segundo três significados específico s :
1 . Ela s e refere a o s acontecimentos com os quais Deus in­
terveio na história, testemunhados pela Bíblia e tornados pre­
sentes no culto. Eles prosseguem na história da Igreja, porém
possuem o seu núcleo imutável na Páscoa de Jesus Cristo : a
cruz, a ressurreição e a ascensão. E s sa interve n ção histórica de
Deus também sinte ti z a em si os e ve ntos salvíficos do Antigo
Testamento, bem como as experiências de salvação e a s espe­
ranças d a história das religiões, os inte rpreta e os conduz à su a
plenitude . Na música litúrgica, que se fundamenta na fé bíblica,
existe, pois, um claro domínio da palavra; ela é uma modalidade
mais elevada de anúncio. Provém, em suma, do amor, que cor­
responde ao amor de Deus que se fez carne em C r i sto , aqu e l e
amor que por nós chegou até a morte . Visto que, mesmo depois
da ressurreição, a cruz não é um evento do passado, esse amor
permanece sempre caracterizado pela dor da ocultação de Deus,
pelo grito que sobe das profundezas da necessidade - Kyrie
eleison - através da esperança e da oração. Mas, visto que esse
amor pode experimentar antecipadamente a ressurreição como
verdade, implica também a alegria do sentir-se amado - aquela
alegria da qual Haydn dizia sentir-se envolvido quando colocava
a música nos textos litúrgicos. Referência ao Logos significa, an­
tes de tudo, referência à palavra . É daqui que deriva na liturgia a
primazia do canto sobre a música instrumental (a qual, mesmo
assim, não deve ser excluída) . A p artir daí se compreende que os
textos bíblicos e litúrgicos são as p alavras de referência, aquelas
que dão os critérios aos quais deve orientar-se a música litúrgi­
ca, coisa que não se opõe à criação de "novos hinos ", mas que
os inspira e os torna certos do fundamento e da confiabilidade
do saber-se amado por Deus, ou sej a, da redenção.
2 . Paulo nos diz que nós, sozinhos, não sabemos o que deve­
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mos rezar, mas que o Espírito intercede por nós "com gemidos
inexprimíveis " (Rm 8,26) . A oração, enquanto tal, e d e modo
particular, o dom do canto e do som que vai além da pal a vra ,
é dom do Espírito, que é o amor, o qual opera em nós o amor
e nos move, assim, ao canto. Visto que é o Espírito de Cristo
que " recebe do Seu " Go 1 6 , 1 4) , o dom que vem Dele e qu e vai
além das palavras sempre se refere à palavra, ao sentido que cria
e sustenta a vida, Cristo. As palavras são superadas, mas não a
Palavra, o Logos; é essa a segunda e mais profunda form a de
referência ao Logos da música litúrgica . É isso também aquilo
em que se pensa quando na tradição eclesial se fala da sóbria
embriaguez que o Espírito Santo opera em nós . Resta, contudo,
uma sobriedade última, uma mais profunda racionalidade, que
se contrapõe ao afogamento no irracional e na ausência de me­
dida . Aquilo que na prática se entende é evidenciado a partir da
história da música . O que Platão e Aristóteles escreveram sobre a
música mostra que o mundo grego se viu, em sua época, diante
de uma escolha entre dois tipos diferentes de cultura, duas ima­
gens diferentes de Deus e do ser humano, muito concretamente,
diante da escolha entre dois tipos fundamentalmente diferentes
de música. De um lado a música que Platão reconduz mito lo gi ­
camente a Apolo, deus da luz e da razão, música que conduz os
sentidos ao interior do espírito, e desse modo leva o ser humano
à totalidade; uma música que não suplanta os sentidos, mas os
coloca na unidade da criatura humana . Ela eleva o espírito exata­
mente no momento em que o liga aos sentidos e eleva os sentidos
justamente no momento em que os faz ser uma só coisa com o
espírito; ela exprime, assim, precisamente a posição particular
do ser humano no inteiro complexo do ser. Em seguida, vem a
música que Platão atribui a Marsia, que do ponto de vista da his­
tória da cultura definimos como "dionisíaca " . Arrasta o homem
na embriaguez dos sentidos, pisoteia a racionalidade e submete
o espírito aos sentidos. O modo com o qual Platão (e, em maior
medida, Aristóteles) distribui os instrumentos e as tonalidades
de um lado e de outro está superado e sob vários aspectos pode
até nos parecer surpreendente . Mas essa alternativa, enquanto
tal, percorre toda a história religiosa e, ainda hoje, está diante
de nossos olhos de maneira absolutamente real . Não é todo tipo
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de música que pode fazer parte da liturgia cristã . Ela exige um
critério, e esse cr i té ri o é o Lo go s . Qu e se trate do E sp ír i to Santo
ou de um espír ito mau, isso se pode di sce rnir, diz Pa ul o, pe l o fato
de que só o Espírito Santo n o s leva a dizer : "Jesus é o S enhor "

( l C or 1 2,3) . O Espírito Santo con du z ao Logos, a uma música


que está no s i gn o do Sursum corda, a eleva ç ão de co ra ç ão . A in­
te gra ção do ser humano para o alto e não a sua eliminação em
uma embriaguez privada d e fo rm a , ou na p ur a se ns u a l i d a de, é
o cr ité rio de uma música conforme o Logos, daque la forma de
logike lacreia (de culto em con formi da d e com a ra c ionalidade ,
com o Logos ) da qual falamos na primeira parte deste li vro.
3 . A Palavra feita homem em Cristo - o Logos - não é
somente poder que dá significado a cada um nem unicamente à
his tória , mas é o sentido criador do qual prové m o Tudo, o Uni­
verso, e do qual o Universo - o Cosmos - é reflexo. Essa pa­
lavra, portanto, nos conduz para fora do isolamento individual
rumo aos tempos e lugares sempre maiores da co munhão dos
santos. É esse "o espaço de liberdade " (SI 3 1 ,9) em que Deus nos
põe. Mas o raio se alarga ainda mais. Conforme vimos, a liturgia
cristã é também liturgia cósmica. O que isso signific a para a nos­
sa questão? O prefácio, a primeira parte do cânon da Missa, em
geral se conclui com a afirmação de que cantamos j unto s com os
Querubins e S erafins, com todos os coros celestes : " S anto, Santo,
Santo " . Com isso a liturg ia faz referência à vi s ão de Deus da qual
fala o capítulo sexto de Isaías. O profeta vê no S anto dos Santos
do templo o trono de Deus, p roteg i do pelos Serafins que entoa­
vam por sua vez : " Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos.
A terra inteira está cheia de sua glóri a " (Is 6, 1 -3) . Nessa liturgia,
que sempre nos precede, nós nos inserimos durante a celebração
da santa Missa. O nosso canto é participação no canto e na ora­
ção da grande liturgia que abraça a criação inteira .
Entre os Padres, foi sobretudo A g os tinh o quem procurou
ligar essa visão original da liturgia c r istã à visão do mundo pró­
pr i a da Antiguidade greco-romana . Em sua obra juvenil sobre
a música, ele ainda depende da teoria musical dos pi ta gór i c o s .
Para Pitágoras, o cosmos era construído matematicamente,
como uma imensa estrutura numérica . A mo d e r n a concep­
ção das ciências da natureza, iniciada com Kepler, Galileu e
1 27
Newton, relig o u - se a essa visão e po s sib ilitou a utilização técnica
das en ergias do universo exatamente graças à s u a interpretação
m a t e m áti c a . Para os pitagóricos essa ordenação matemática do
u n i ve r so (kosmos s ign i fi c a " ordem " ! ) era por si idêntica à essên.
eia do belo : a beleza brota da ordem interior ra ci on a l , e para eles
ess a beleza era de natu reza não só ó ti c a , mas musical . Goethe,
quando fala do desafio cantado das esferas fraternas, se religa a

essa visão, segundo a qual a ordem matemática dos pl a n e t a s e

a sua revolução traz co ns ig o um som escondido, que é a forma


origin a l da m ú si c a . As r e vo l u çõ es astrais são c o m o as melo dias ,
as ordens numéricas são o ritmo e a s relações entre cada ór b ita
são a harmonia. A música fe i t a p e l o ser humano de ve ser esc u ta
da m úsica interior do u n i ve r so e das suas leis , inserida no "ca nt o
fraterno " das " esferas fraternas " . A beleza da música se fun da­
menta em sua correspondência com as leis rítmicas e harm ôni­
cas do universo. A música humana é ta nto mais "bela " qua nto
ma i s se insere nas leis musicais do universo.
Agostinho a princípio aderiu a essa teoria, depois a aprofun­
dou. Sua inserção na visão do mundo própria da fé, no curso da
história, conduziu a uma dup la forma de p ers onaliz a ç ão. Já os
pitagóricos não tinham concebido de maneira puramente abstrata
a matemática do universo. No modo de pensar dos antigos, os
ato s inteligentes pressupunham uma inteligência que fosse a sua
causa. Os movimentos inteligente s - matemáticos - dos corpos
celestes não eram explicados de maneira puramente matemática,
ma s só eram compreensíveis com base no p res sup o sto de que os
astros fossem animados, portanto "inteligentes ". Para os cristãos
resultou absolutamente natural passar das divindades astrais aos
coros angélico s , que estão ao redor de Deus e iluminam o univer­
so. A perc ep ç ão da "música cósmica" se torna, assim, escuta do
canto dos anjos. A referência a Isaías 6 se tornava, então, total­
mente óbvia. Vma passagem posterior veio através da fé trinitária
- a fé no Pai, no Logos e no Es p írito . A matemática do universo
não é por si mesma clara nem explicável através das divindades
a strai s . Ela possui um fundamento mais profundo, o Espírito
Criador; ela provém do Logos, em quem estão contidas as ideias
originais da ordem cósmica que Ele infunde na matéria gra ça s ao
E s p íri to . A partir de sua função criadora o Logos foi definido Ars
Dei - Arte de Deus (Ars = Techne!) . O Logos é o grande artista
no qual todas as obras de arte - a beleza do universo - estão ori­
gin almente presentes. Participar do canto do universo significa,
pois, colocar-se nas pegadas do Logos e segui-Lo. Toda verdadei­
ra arte humana é aproximação com aquele que é o ar tis ta com
" ",

Cristo, com o Espírito Criador. A ideia da música cósmica, da


participação no canto dos anjos conflui, portanto, na referência
à arte do Logos, mas ampliada, e aprofundada em relação ao s e u
componente cósmico que, por sua vez, dá à ar te na li turg ia tanto o
critério quanto a amplitude: a "cria