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Espírito da liturgia
JOSEPH RATZINGER BENTO XVI
INTRODUÇÃO AO
Espírito da liturgia
Tradução:
Sn..vA DEBE'ITO e. REIS
X
Edições Loyo/a
Sumário
Premissa 1
-'"'""--�-----
- -
PR1rv1f=IHA �1i-.�H
SOBRE A ESSÊNCIA DA LITURGIA 1
-----�
C0pítulo 1
Liturgia e vida: o lugar da llturgla na realidade 11
----- ---
C:ipítulo li
Uturgla, cosmos, história 21
---��-___..
Capítulo Ili
Do AnUgo ao Novo Testamento: a fonna basilar
da llturgla cristã detennlnada pela fé bíblica 31 ��-�
SCGU['�DA PARl E
TEMPO E LUGAR NA LITURGIA 45
Capítulo 1
Observações prellmlnares sobre a relação
da llturgla com o espaço e o tempo 47
_______,
Capitulo li
Lu gares santos: o significado do edifício Igreja 55
CJp1tulo lil
O altar e a orientação da oração na liturgia 65
Capítulo IV
A cust6dla do Santíssimo Sacramento
Capítulo V
Tempo santo
TERCEIRA PARTt
____17;;;.;
__ ;___,J ARTE E LmJRGIA
Capítulo 1
Capítulo li
QUARTA PARTE
.
1 1 FORMA LITURGICA
Capítulo 1
'133 o rito
Capítulo li
143 O corpo e a llturgla
143 1. "Participação ativa"
147 2. 0 Sinal da Cl1IZ
153 3.Alltudes
167 4.Gestos
171 5.A voz humana
_____ 1•
_ Blbllografla
JOSEPH RATZINGER
PRIMEIRA PARTE
.!-·
Deus tudo em todos (lCor 15,28) - é esse o escopo do mundo,
é essa a essência do "sacrificio" e do culto.
Podemos, então, dizer que o objetivo do culto e o objetivo
da criação em seu conjunto são o mesmo: a divinização, um
•
mundo de liberdade e de amor. Desse modo, porém, até na di-
mensão "cósmica" aparece a dimensão histórica: o cosmos não
é uma espécie de edificio fechado em si mesmo, nem um reci
piente inerte no qual a história pode se desenvolver. Também ele
está em movimento, de um ponto inicial rumo a uma meta. Ele
mesmo é, de certo modo, história.
Isso pode ser ilustrado de várias maneiras. Por exemplo,
no contexto da moderna concepção evolucionista, Teilhard de
Chardin descreve o cosmos como um processo de subida, como
um caminho de unificação. Partindo das realidades mais sim
ples, esse caminho conduz a unidades cada vez maiores e mais
complexas, em que a multiplicidade não é anulada, mas fundi
da numa síntese crescente, até a noosfera, na qual o espírito e a
sua inteligência agarram o todo, fundindo-o numa espécie de
organismo vivo. A partir das cartas aos Efésios e aos Colossen
ses, Teilhard considera Cristo aquela energia que conduz até a
noosfera e que, no final, engloba tudo em sua plenitude. Com
base nesse pressuposto, Teilhard procura reinterpretar, a seu
modo, o culto cristão: a hóstia transubstanciada é, para ele, a
antecipação da transformação da matéria e de sua divinização
na "plenitude" cristológica. A Eucaristia indica, por assim dizer,
a direção do movimento cósmico; ela antecipa o seu final e, ao
mesmo tempo, impele para ele .
A tradição mais antiga obviamente procede de outro modelo.
A sua imagem não é a da flecha disparada para o alto; antes, pen
sa numa espécie de movimento circular, cujos dois fundamen
tais elementos direcionais se chamam exitus e reditus, partida e
retorno. Esse "paradigma", comum a toda a história das reli
giões, bem como a Antiguidade e a Idade Média cristãs, pode,
porém, apresentar-se sob formas bem diferentes entre si. O cír
culo pode ser entendido como um grande movimento cósmi -�
co, como ocorre nos pensadores cristãos; mas pode também ser
pensado como um movimento que se repete de maneira sempre
nova, como acontece nas religiões naturais e em muitas filosofias
não cristãs. O contraste entre essas duas visões, se visualizadas
com atenção, não é assim tão radical como pode parecer à pri
meira vista. Também na visão cristã de mundo, no grande círcu
21
lo da história, que procede do exitus para o reditus, incluem-se
os inúmeros pequenos círculos da vida individual, qu e trazem
em si o grande ritmo do todo e o realizam de maneira sempre
nova, fornecendo-lhe, assim, a energia que o move. No único
grande círculo também estão incluídos os numerosos círculos
vitais das diferentes culturas e das comunidades históricas nas
quais se desenvolve, de maneira sempre nova, o drama do início,
da ascensão e do fim: neles continua a re petir-se o mistério do
começo, além de sempre se produzir o fim do tempo e o declínio
que, a seu modo, prepara o terreno para um novo início. A soma
dos círculos reflete o grande círculo; ambos os círculos se refe
renciam e se intercruzam reciprocamente. Desse modo, também
o culto tem a ver com as três dimensões desses movime ntos cir
culares: o pessoal, o social e o universal.
Antes, porém, de procurar esclarecer melhor esse último
ponto, convém atentar para a segunda, e sob vários aspectos,
mais importante alternativa, que se oculta no esquema exitus e
reditus. A primeira concepção com que nos deparamo s é aque
la elaborada na An tigu id ad e tardia, da maneira talvez mais im
pressionante, pelo filósofo Plotino, que sob diferentes formas
caracteriza vastos setores d os cultos e das religiões não cristãs.
O exodus, através do qual, em última análise, aparece o ser não
divino, não foi concebido como partida, mas como queda, como
uma precipitação da sumidade do divino que, em conformidade
com as leis da queda dos corpos, leva a descer a profundezas
cada vez maiores, a uma distância sempre maior do divino. Isso
signi fica que o ser não divino é, por si, um ser caído; a finitude
já é, por si, uma forma de pecado, o negativo, que precisa ser
curado através do retorno ao infinito. O retorno - o reditus -
consiste, então, no fato de que, tendo chegado ao fundo, a queda
é refreada e a flecha aponta para o alto. No final, o "pecado"
do finito, do não-ser-deus, se dissolve, e, nesse sentido, Deus se
torna "tudo em todos". A via do reditus significa redenção, e re
denção significa libertação da finitude, que, como tal, é o verda
deiro fardo de nosso existir. O culto, p ois, está ligado à inver são
do movimento: é a consciência da queda, é, por assim diz er, o
momento do arrependimento do filho pródigo, o voltar a olhar
para a origem. Visto que segundo inúmeras dessas filosofias o
conhecimento e o existir terminam por coincidir, o voltar a olhar
para o início já é, ao mesmo tempo, um voltar a ascender. O
culto, que é o olhar levantado para o que existe antes e acima de
todo ser é, por sua natureza, conhecimento e, enquanto conheci
mento, é movimento, retorno, redenção. Naturalmente as filoso
fias do culto seguem caminhos diferentes. Agora existe a teoria
segundo a qual somente os filósofos, só os espíritos capazes de
um pensamento mais elevado, podem alcançar aquele conheci
mento que é exatamente o caminho. Somente eles são capazes
de ascender, de plena divinização, que é redenção e libertação
da finitude. Para os outros, para as almas mais simples, que não
conseguem levantar plenamente o olhar para o alto, existem as
várias liturgias, que oferecem a elas alguma redenção, sem, por
outro lado, elevá-las à plenitude da divindade. À parte essas di
ferenças, um consolo emerge com frequência da doutrina da
transmigração das almas, que oferece a esperança de poder al
cançar, cedo ou tarde, na peregrinação das existências, o ponto
no qual finalmente se consegue sair da finitude e do sofrimento
que ela representa. Dado que aqui o conhecimento ( = gnose) é
a verdadeira força da redenção e, assim, também a forma mais
alta de elevação, isto é, de união com a divindade, esses sistemas
de pensamento e essas doutrinas religiosas - embora muito
diferentes entre si - são definidos como "gnósticos". Para o
cristianismo das origens o confronto com a gnose representou
o encontro decisivo para a sua identidade. Com efeito, o fascínio
dessas concepções é grande, e elas parecem facilmente identifi
cáveis com a mensagem cristã. O "pecado original", por exem
plo, geralmente tão dificil de entender, foi identificado com a
queda no finito, e assim resulta claro que ele recai sobre todos
aqueles que se encontram no círculo da finitude. Além disso,
a redenção é, então, claramente entendida como libertação do
peso da finitude, e assim por diante. Também hoje o gnosticismo
volta a exercer o seu fascínio de inúmeras maneiras: as religiões
do extremo Oriente trazem em si a mesma estrutura fundamen
tal. Consequentemente, as formas de aplicação da doutrina de
redenção são bastante convincentes. Os exercícios de relaxa
27
mento corporal e de esvaziamento psíquico parecem dar acesso
à redenção. Visam libertar da finitude, antes, oferecem uma mo
mentânea antecipação dela e, assim, possuem poder de cura.
O pensamento cristão, como foi dito, retomou o esquema
do exitus e reditus, mas distinguiu aí dois movimentos. O exitus
não é, antes de tudo, queda do infinito, separação do ser e, então,
causa de toda a miséria do mundo; ao contrário, em primeiro
lugar é algo de positivo: o livre ato criador do Criador, que quer
que a criatura faça algo de bom perante Ele, de quem pode de
rivar uma resposta de liberdade e de amor. O existir não divino,
pois, não é por si algo já negativo, ao contrário é fruto positivo
de um querer divino. Ele não se baseia numa queda, mas numa
disposição de Deus, que é boa e cria bem. O ato essencial de
Deus que dá origem ao ser criado é um ato de liberdade. Exa
tamente por isso no ser criado está presente, desde a origem, o
princípio da liberdade. O ex itus, ou melhor, o livre ato criador de
Deus, visa ao reditus, mas com isso não se entende a retomada
ou restituição do ser criado, e sim o supradescrito: o vir-a-si
mesma da criatura que possui fundamento em si própria res
ponde livremente ao amor de Deus, acolhe a criação como seu
mandamento de amor: surge, assim, um diálogo de amor, aquela
unidade completamente nova que somente o amor pode criar.
Nela, a existência do outro não é absorvida, não é dissolvida,
mas exatamente no dar-se reencontra plenamente a si mesma.
Nasce, então, aquela unidade que é mais alta que a unidade da
partícula elementar não mais divisível. Esse reditus é um "retor
no à casa", mas não liquida a criação, antes lhe confere a sua
plena definitividade. É essa a ideia cristã do Deus "tudo em to
dos". Mas o tudo está justamente ligado à liberdade, e a liberda
- ·
de da criatura é aquilo que dobra o exitus positivo da criação, ao
/
:�
!
ser sozinho por si e em si, ser um deus na sua esfera. Assim se
quebra o arco que leva do exitus ao reditus. O retorno não é mais
desejado e, por outro lado, a ascensão unicamente com as pró
prias forças se revela impossível. Se o "sacrificio" por sua natureza
é simplesmente o retorno ao amor e, em tal caso, a divinização,
então no culto deve estar presente o momento da cura da li
berdade ferida, da expiação, da purificação e da libertação da
alienação. A essência do culto, do " sacrificio" como processo
de assimilação, de transformação no amor e, assim, de caminho
rumo à liberdade, permanece imutável . Mas agora assume em
si o momento da cura, da amorosa transformação da liberdade
partida na sofrida modalidade da reconciliação. Justamente p or
que tudo visava à própria autonomia, à rejeição de depender do
outro, ela inclui então a afirmação da própria dependência, que
tem de me libertar do laço que não consigo mais desatar sozi
nho. A redenção implica, assim, o redentor : os Padres pensaram
que essa verdade encontrava expressão na parábola da ovelha
perdida . Essa ovelha, presa entre os espinhos, que não consegue
mais encontrar o caminho de volta, é, para eles, a imagem do ser
humano, que não consegue mais libertar-se dos seus espinhos
e que não pode achar sozinho o caminho que conduz a Deus .
O pastor, que a recolhe e a leva para casa, para eles é o próprio
Logos, a palavra eterna, o significado eterno do tudo, que reside
no Filho de Deus, que se põe ele próprio a caminho em nossa
direção e que, assim, coloca a ovelha sobre os seus ombros, isto
é, assume a natureza humana e, como Deus feito homem, traz
de volta para casa novamente a criatura homem . Assim se torna
possível o reditus que nos oferece a volta para casa . O sacrificio
assume, então, a forma da cruz de Cristo, do amor que se doa
na morte, a qual nada tem a ver com a destruição, mas é um ato
de nova criação, que reconduz a criação a si mesma . Cada culto
é agora participação nessa Pessach de Cristo, nessa sua "passa
gem" do divino para o humano, da morte para a vida, para a uni
dade de Deus e homem . O culto cristão é, pois, concreto resgate
e realização de tudo o que Jesus disse no templo de Jerusalém no
começo da semana da Paixão, no Domingo de Ramo s : " Quan
do for elevado da terra, atrairei todos a mim" Oo 1 2 , 3 2) .
'":'
--.
tra Jes us. Jesus é acusado de ter dito: "Eu destruirei este templo
feito por mão de homens, e em três dias construirei outro, sem
j
(
Observações preliminares
sobre a relação da liturgia
com o espaço e o tempo
·' ·
;..
bólica", teologia dos símbolos que nos ligam Àquele que está ao
mesmo tempo presente e escondido.
Daí deriva, finalmente, a resposta para a pergunta da qual
partimos : depois que o véu do templo se rasgou e o coração de
Deus foi aberto para nós no coração transpassado do Crucifica
do, ainda precisamos do espaço sagrado, do tempo sagrado, dos
símbolos mediadores? Sim, precisamos justamente para apren
der através da "imagem", através do sinal, a ver o céu aberto,
para conseguir reconhecer no coração transpassado do Crucifi
cado o mistério de Deus. A liturgia cristã não é mais culto subs
titutivo, mas um vir ao nosso encontro daquele que nos repre
senta, participação em sua ação vicária como participação da
própria realidade. Tomamos parte na liturgia celeste, sim, mas
essa participação nos é comunicada através dos sinais terrenos
que o Redentor nos mostrou como espaço de sua realidade. Na
celebração litúrgica, de certo modo, se realiza a passagem do
exitus para o reditus, a saída se torna retorno, a descida de Deus
se torna nossa subida. A liturgia introduz o tempo terreno no
tempo de Jesus Cristo e em sua presença. Ela é o ponto da vi
rada no processo da redenção: o pastor coloca nos ombros a
ovelha perdida e a leva para casa.
.....
.;
Capt)o :1
Lugares santos:
o significado do
edifício igreja
seu futuro, rumo ao novo céu e à nova terra que, em Cristo, vêm
ao nosso encontro. Ela é oração de esperança, é o rezar cami
nhando na direção que nos indicam a vida de Cristo, a sua pai
xão e a sua ressurreição. Exatamente por isso, bem depressa, em
várias partes da cristandade, a direção do Oriente é apontada
pela cruz. Pode-se constatá-lo através de um paralelo entre
Apocalipse 1,7 e Mateus 24,30. No Apocalipse de João, lê-se:
"Olhai! Ele vem entre as nuvens! Todo olho o verá, e também
aqueles que o transpassaram. E todas as tribos da terra se la
mentarão por sua causa. Sim. Amém!". O autor do Apocalipse
se reporta aqui a João 19,37, que, no final da cena da crucifica
ção, cita o famoso dito profético de Zacarias 12, 1 O: "Contem
. piarão aquele que transpassaram", que ora adquire de imediato
um significado concreto. Finalmente, em Mateus 24,30 estão
transcritas estas palavras do Senhor: "Então aparecerá no céu o
sinal do Filho do homem, e todos os povos da terra baterão no
peito [Zc 12, 1 O] e verão o Filho do homem aparecer sobre as
nuvens do céu [Dn 7,13] com a plenitude do poder e da glória".
O sinal do Filho do homem, d' Aquele que foi transpassado, é a
cruz, que ora se torna o sinal da vitória do Ressuscitado. Desse
modo, o simbolismo da cruz e o simbolismo do Oriente se en
trelaçam; ambos são expressão da mesma e única fé, na qual a
memória da Páscoa de Jesus se faz presença e lhe confere a di
nâmica da esperança que vai ao encontro d' Aquele que vem.
Assim, esse voltar-se para o Oriente também significa que o cos
mos e a história da salvação estão ligados entre si. O cosmos
entra nessa oração, também ele espera a libertação. Exatamente
essa dimensão cósmica é um elemento essencial da liturgia cris
tã. Ela nunca se realiza somente no mundo que o ser humano
construiu sozinho. Ela é sempre liturgia cósmica - o tema da
criação é parte integrante da oração cristã. Ela perde a sua gran
deza se esquece essa íntima relação. Por isso, é necessário reto
mar a tradição apostólica da orientação para o leste dos edificios
cristãos e da própria práxis litúrgica, ao menos onde isso for
possível. Retornaremos a esse tema quando tratarmos da orde
nação da oração litúrgica.
A segunda novidade relativa à sinagoga consiste no fato de
que emerge um elemento completamente novo, que não podia
existir na sinagoga: na parede oriental, ou seja, na abside, ago
ra está o altar, sobre o qual é celebrado o sacrificio eucarístico.
Como vimos, a Eucaristia é um entrar na liturgia celeste, um
tornar-se contemporâneo do ato de adoração de Jesus Cristo em
que Ele, por meio de seu corpo, assume em si o tempo do mun
do e, ao mesmo tempo, o levanta acima do tempo, conduzin
do-o até a comunhão no eterno amor. Por isso o altar significa
um ingresso do Oriente na comunidade reunida, e uma saída da
comunidade do cárcere deste mundo através do véu ora aberto;
significa, além disso, participação na Páscoa, na "passagem" do
mundo para Deus que Cristo nos abriu. É evidente que o altar
11
na abside olha para o "Oriente" e é, ao mesmo tempo, parte
dele. Se na sinagoga, além da arca santa e do escrínio da palavra,
se olhava para Jerusalém, agora com o altar foi posto um novo
centro de gravidade: nele - repetimos - volta a estar presente
aquilo que antes era representado pelo templo. Ele serve, antes,
para a nossa contemporaneidade com o sacrificio do logos. Man
tém, então, o céu na comunidade reunida, ou melhor, a porta
acima de si na comunhão dos santos de cada lugar e de todos
os tempos. Podemos também afirmar que o altar é, por assim
dizer, o lugar do céu aberto; ele não fecha o espaço eclesial, mas
o abre para a liturgia eterna. Trataremos em seguida sobre as
consequências práticas desse significado do altar cristão, visto
que a questão da correta colocação do altar se situa no centro
das polêmicas pós-conciliares.
Primeiro, porém, é preciso terminar de tratar das mudan
ças que atingiram a sinagoga a partir da essência da fé cristã. O
terceiro elemento que convém observar a esse respeito é que a
O altar e a orientação
da oração na liturgia
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71
Capítulo IV
A custódia do
Santíssimo Sacramento
·.
significados se invertessem. Como " corpus verum" (verdadei
ro corpo), entendeu-se, assim, o sacramento, enquanto " corpus
mysticum" (corpo místico) era chamada a Igreja, entendendo
se então por "místico" não mais o significado de " sacramental",
mas o de " místico ", de "misterioso". D essa mudança terminoló
gic a , minuciosamente descrita por De Lubac, alguns extraíram a
71
cons equên cia de que na doutrina eucarística surgiu um re alismo
até então desconhecido, antes, um autêntico naturalismo, e que
a g rande visão patrística foi eliminada em favor de uma ideia
estática e unilateral de presença real.
É verdade que semelhante mudança l ingu ísti ca também é
expressão de uma mutação espiritual, que não pode, no entan
to, ser descrita de maneira tão unilateral, como acontece nas
tendências às quais fizemos referência . Corretamente convém
reco nhecer que alguma coisa da dinâmica escatológica do cará
ter co mu nitár i o (o " nó s " ) da fé eucarística se p erd eu , ou pelo
menos passou para o segundo plano. Certamente não se tinha
mais tão presente o fato de que o p rópr i o sacramento, do modo
como vimos acima, insere em si uma dinâmica que visa à trans
formação da humanidade e do mundo no novo céu e na nova
terra, na unidade do corpo ressuscitado de Cristo. Não se tinha
esqu ecido que a Eucaristia não visa prioritariamente s omente o
indivíduo, mas que o p ersonalismo eucarístico imp ele à comu
nhão, à superação do muro entre Deus e o ser humano, entre o
eu e o tu, no novo "nó s " da comunhão dos santos, mas já não
s e estava mais tão claramente conscientes disso como antes. Se
é verdade que houve perdas na consciência cristã que nós, hoje,
procuram os remediar, também é verdade que no todo houve
um ganho. Sim, o corpo eucarístico do Senhor nos quer reunir
para qu e nos tornemos todos " o seu verdadeiro corpo ". Toda
via , o dom eucarístico só pode fazê-lo porque o Senhor nos dá
o seu verdadeiro corpo; somente o verdadeiro corpo presente no
sacramento pode construir o verdadeiro corpo da nova cidade
de Deus. Essa visão une os dois períodos; é dela que se deve, an
te s de tudo, partir. Na Igreja Antiga sempre existiu a consciência
de que o pão, uma vez transformado, permanece transformado.
Por isso era conservado p ara os doentes e zelosamente cuidado,
como ainda hoje acontece na Igreja do Oriente . Agora, porém,
essa consciência se aprofunda: o dom é transformado. O Senhor
assume totalmente a questão, e nisto não está contido um dom
material, mas Ele próprio está presente, o Indivisível, o Ressus
citado: com carne e sangue, com corpo e alma, com divinda
de e humanidade. Aqui está presente o Cristo por inteiro. Nos
11
primórdios do movimento litúrgico, pensou-se ter de fazer dis-
tinção entre uma "concepção objetiva" da Eucaristia da época
patrística e uma personalística a partir da Idade Média . Ou seja,
a presença eucarística não teria sido concebida como presen
ça pessoal, mas como presença de um dom, distinto da pessoa.
Tudo isso não tem sentido nenhum. Quem lê os textos não pode
encontrar apoio para semelhantes ideias. Ademais, como pode
ria o corpo de Cristo se tornar uma "coisa"? Só existe a plena
presença de Cristo. E receber a Eucaristia não significa comer
um dom "material " (corpo e sangue?), mas o que acontece aqui
é o recíproco e profundo encontro entre pessoa e pessoa . O Se
nhor vivo se doa a mim, entra em mim e me convida a entregar
me a Ele, de modo que: Eu vivo, mas já não sou mais eu, é Cristo
que vive em mim (Gl 2,20). Só assim comungar é um ato verda
deiramente humano, que eleva e transforma o homem .
Essa consciência de que "Ele está aqui, exatamente Ele, e
p ermanece aqui" foi retomada na Idade Média da cristandade
com uma intensidade completamente nova. Contribuiu, para isso,
de maneira decisiva, o aprofundamento do pensamento teoló
gico; porém mais importante que o aprofundamento do pensa
mento foi a nova experiência do sacro, desenvolvida sobretudo
no movimento franciscano e na nova evangelização por obra
dos frades pregadores. Não estamos diante de um mal-enten
dido medieval de um pensamento secundário : através da expe
riência do sacro - sustentada e iluminada pelo pensamento dos
teólogos - se abre uma nova dimensão da realidade cristã, que
permanece, assim, na mais profunda continuidade com tudo
aquilo que se acreditava até então. Repetimos mais uma vez:
um aprofundamento consciente de fé liberta o conhecimento
de que na forma transformada Ele está presente e aí permanece.
Onde essa experiência é aprofundada com todas as fibras do
coração, da razão e dos sentidos, a consequência é inevitável:
então devemos realizar para essa presença o lugar que lhe cabe.
E é assim que, aos poucos, vai tomando forma o tabernáculo,
que termina sempre mais, e cada vez mais naturalmente, por
assumir o lugar que antigamente era da " arca da Aliança" (há
tanto tempo desaparecida). O tabernáculo realizou plenamen
11
te o objetivo pelo qual antigamente existia a arca da Aliança.
Ele é o lu ga r do "Santíssimo": é a tenda de Deus, o trono, vis
to que Ele está entre nós, que a sua presença ( Shekhinah) ora
habita realmente entre nós - na igreja mais pobre do vila r e j o
nã o menos que na maior das catedrais. Ainda que o templo
definitivo só existirá quando o mundo se tornar a nova Jerusa
lém - aq uilo, para o qual o templo remetia, aqui está presente
na maneira m ais elevada. A nova Jerusalém é antecipada na
humildade da forma do pão.
Ninguém diga, então: a Eucaristia deve ser comida e não
adorada. Ela não é, com efeito, um "pão comum", como subli
nham sem cessar as tradições mais antigas. Alimentar-se - aca
bamos de afirmar - é um eve nto espiritual, que atinge toda a
realidade humana. "Alimentar-se" dela significa adorá-la. Sig
nifica permitir que entre em mim, de tal modo que o meu eu
seja transformado e se abra para o grande nós, para que nos
tornemos "uma só coisa" n'Ele (Gl 3,28). Por isso a adoração
não se opõe à comunhão, nem se situa ao seu lado: a comunhão
só atinge a sua p rofu ndidade q uando é sustentada e incluída na
adoração. A presença eucarística no tabernáculo não supõe uma
concepção da Eucaristia paralela ou contrária à da celebração
eucarística, mas significa a sua plena realização. Essa presença,
com efeito, faz com que na igreja sempre haja a Eucaristia. A
igreja nunca se torna um espaço morto, mas é sempre reavivada
pel a presença do Senhor, que vem da celebração eucarística, nos
introduz nela e nos faz participar para sempre da Eucaristia cós
mica. Qual pessoa crente já não experimentou isso? Uma igreja
sem presença eucarística de certo modo está morta, ainda que
convide à oração. Ao contrário, uma igreja na qual a luz eterna
arde diante do tabernáculo, está sempre viva, é sempre mais que
um simples edificio de pedra: nela o Senhor sempre me espe
ra, me chama, quer tornar "eucarística" a minha pessoa. Desse
modo, prepara-me para a Eucaristia, coloca-me em movimento
rumo ao seu retorno.
A virada medieval produziu perdas, mas também conferiu
um extraordinário aprofundamento espiritual, desenvolveu a
grandeza do mistério instituído no cenáculo, e nos permitiu expe
71
rimentá-lo numa nova plenitude. Quantos santos - exatamente
os s antos do amor ao próximo - foram alimentados e conduzi�
dos ao encontro do Senhor por essa. experiência! Não podemos
p erder essa riqueza. Para
que a presença do Senhor nos toque de
maneira concreta, o tabernáculo tem de ter o lugar que lhe cabe
também na estrutura arquitetônica das igrejas.
Capítulo V
Tempo santo
�--
. . . �.
A questão das Imagens
>
novo icono c lasmo , que, aliás, às vezes era visto com o uma tarefa
do C on c ili o Vaticano II. A fúria ico n oc las ta , cujos primeiros si
nais na Alemanha remontam já às pri me iras décadas do século
passado, fez deixar de lado muito kitsch e numerosas obras in
dignas, mas, sobretudo deixou atrás de si um vazio, do qual n ós
ho j e voltamos a perceber toda a miséria.
De que modo seguiremos adiante? Nós, hoje, não experi
mentamos apenas uma crise da arte sacra, mas uma crise da arte
enqu anto tal, e com uma intensidade até então desconhecida. A
crise da arte é outro sintoma da crise da humanidade, que exa
tamente na extrema exasperação do domínio material do mundo
mergulhou na cegueira diante das grandes questões do ser huma
no, daquelas perguntas sobre o destino último do homem, que
vão além da dimensão material. Essa situação certamente pode
ser definida como uma cegueira do espírito. À pergunta sobre
como devemos viver, como devemos enfrentar a morte, se a nossa
existência tem um fim e qual, para todas essas perguntas não exis
tem mais respostas comuns. O positivismo, formulado em nome
da seriedade científica, restringe o horizonte ao que é demons
trável, ao que pode ser verificado pela experiência; ele torna o
mundo opaco. Contém ainda a matemática, porém o Logos, que
é o pressuposto dessa matemática e de sua aplicabilidade, não
aparece mais nele. Então o nosso mundo das imagens não supera
mais a aparência sensível e o fluxo das imagens que nos cercam
também significa, ao mesmo tempo, o fim da imagem: além da
quilo que pode ser fotografado, não há mais nada para ver. Neste
ponto, porém, não é impossível apenas a arte dos ícones, a arte
sacra, fundamentada em um olhar que se abre em profundidade;
a própria arte, que em um primeiro momento tinha experimen
tado no impressionismo e no expressionismo as possibilidades
extremas da visão sensível, permanece privada de um objeto, em
111
sentido literal. A arte se torna experiência com mundos criados
.,
por ela, uma vazia Hcriatividadc , que não percebe mais o Espíri
to Criador. Ela tenta tomar o seu lugar e não con se gu e fazer nada
além de produzir o arbitrário e o vazio, e tornar o ser humano
consciente do absurdo de sua pretensão criadora.
Mais uma vez: de que modo seguiremos adiante? Procure
mos resumir o que dissemos até aqui e reconhecer os princípios
fundamentais de uma arte voltada para a liturgia:
1. A ausência total de imagens não é conciliável com a fé
na Encarnação de Deus . Em seu agir histórico Deus e ntrou em
nosso mundo sensível para que este se tornasse transparente
para Ele. As imagens do Belo, no qual se faz presente o mistério
do Deus invisível, são parte integrante do culto cristão. Certa
mente pode haver uma oscilação dos tempos, uma subida e uma
descida, então também podem existir tempos de certa pobreza
nas imagens . Todavia, elas nunca podem faltar completamente.
O iconoclasmo não é uma opção cristã.
2. A arte sacra encontra os seus conteúdos nas i magen s da
história da salvação, a começar pela criação e pelo primeiro dia
até o oitavo: o da ressurreição e o do retorno, em que a linha da
história se conclui como um círculo. Dela fazem parte sobre
tudo as imagens da história bíblica, além da história dos santos
como explicação da história de Jesus Cristo, como o tornar-se
fecundo ao longo de todo o curso da história do grão de trigo
que, caindo na terra, morre . "Vós não combateis somente con
tra os ícones, mas também combateis contra os santos", replica
João Damasceno ao imperador iconoclasta Leão III. Na mesma
linha, nesse período, o papa Gregório III introduz em R oma a
festa de Todos os Santos (Evdokimov, 141s.).
3. As imagens da história de Deus com os seres humanos não
mostram apenas uma sequência de eventos passados, mas apon
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tam neles a unidade interior do agir de Deus. Elas remetem ao
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exatamente por isso, conduz, por sua vez, a uma visão interior.
Ela deve ser fruto de uma contemplação interior, de um encontro
crente com a nova realidade do Ressuscitado e, então, deve con
duzir de novo ao olhar interior, ao encontro orante com o Senhor.
A imagem é utilizada na liturgia; a oração e o olhar, nos quais se
formam as imagens, devem ser oração e olhar compartilhados,
em comunhão com a fé vidente da Igreja: a dimensão eclesial é
essencial para a arte sacra, bem como a ligação interior com a
história da fé, com a Escritura e a tradição.
5. A Igreja do Ocidente não pode, com efeito, desmentir o
caminho por ela percorrido a partir do século XIII . Deve, todavia,
asswnir finalmente as conclusões do sétimo concilio ecumênico,
o Segundo Concilio de Niceia, que reconheceu a importância
fundamental e o lugar teológico da imagem dentro da Igreja. Ela
não precisa, necessariamente, submeter-se a cada uma das nor
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mas desenvolvidas nos sucessivos concílios e sínodos realizados
no Oriente, que receberam certa organização definitiva no Con
cilio de Moscou em 1551, o concilio dos cem cânones. Deveria,
porém, considerar normativas também para si as linhas funda
mentais dessa teologia da imagem. Também é verdade que não
devem existir normas rígidas: as novas experiências religiosas e
Música e llturgla
so lhes será tirado. Então, sim, eles vão j ejuar" (Me 2, 1 9s. ) . Essa
é uma profecia da paixão, mas também o anúncio das núpcias, �