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OBRE A AUTOMODELAGEM ETNOGRÁFICA: CONRAD E MALINOWSKI

Se proproe a historicizar a afirmação de que o “eu” é culturalmente constituído, examinando


um momento por volta de 1900, quando esta idéia começou a assumir o sentido que tem hoje.
“Em meados do século XIX, dizer que o individuo estava envolvido pela cultura significava algobem
diferente do que significa hoje. A “cultura” se referia a um único processo evolucionário

[...] Na virado do século [...] uma nova concepção de cultural tornou-se possível. A palavra começou a
ser usada no plural, sugerindo um mundo com modos de vida separados, distintos
e igualmente significativos” (p.100
-101).
No inicio do século XX há uma nova “subjetividade etnográfica. “A antropologia moderna
pressupunha uma atitude irônica de observação participante. Ao profissionalizar o trabalho decampo,
a antropologia transformou uma situação amplamente difundida num métodocientifico. O
conhecimento etnográfico não podia ser propriedade de qualquer discurso oudis
ciplina” (p.101).

“Greenblatt reconhece em que medida recentes questões quanto a liberdade, a identidade e a


linguagem tem moldado a versão que ele constrói da cultura do século XVI. [...] Sua tardia,reflexiva
versão de automodelagem renascentista repousa num ponto de vista etnográficonitidamente
articulado. O eu modelado, ficcional, é sempre situado com referencia a suacultura e modos codificados
de expressão, a sua linguagem. [...] A subjetividade que eleencontra não é uma epifania da identidade
livremente escolhida, mas um artefato cultural,pois o eu em movimenta dentro de limites e
possibilidades que resultam de um conjuntoinstitucionalizado de práticas e códigos coletivos. Grenblatt
recorre a antropologia simbólico-interpretativa, particularmente ao trabalho de Geertz, e ele sabe, além
disso, que os símbolose performances culturais ganham forma em situações de poder e dominação. [...]
Segue-seque o discurso etnográfico, incluindo a variante literária de Greenblatt, funciona dessa
duplaforma. Embora ele retrate outros eus como culturalmente constituídos, ele também modelauma
identidade autorizada a representar, a interpretar, e mesmo a acreditar

mas semprecom alguma ironia

nas verdades de mundos discrepantes” (p.102


-103).
“A subjetividade
etnográfica é composta pela observação participante num mundo deartefatos culturais ligado a uma
nova concepção de linguagens, vistas como distintos sistemasde jogos. Juntamente com
Nieztsche, Boas, Durkhein e Malinowski delimitam esse meu campode exploração. os intelectuais
ocidentais do século XX estavam preocupados com contextos de
significado e de identidade que eles chamavam de “cultura” e “linguagem”. No século XIX
percebe-
se uma problemática com a “história”e o “progresso” num sentido evolucionis
ta. [...]Vemos que o privilegio dado as linguagens e culturais naturais estão se dissolvendo. Estesobjetos
e contextos epistemológicos aparecem agora como construções, ficções adquiridas,
contendo e domesticando a heteroglossia” (p.103
-104).
“Minha preocupação não é com a possível dissolução de uma subjetividade ancorada na
cultura e na linguagem. Ao invés disso, quero explorar duas poderosas articulações dessa
subjetividade na obra de Malinowski e Conrad, duas pessoas “deslocadas”que compuser
am
suas próprias versões de “sobre a verdade e a mentira em um sentido culturalo” (p.104).

“Minha comparação entre Mali e Conrad focaliza a difícil ascensão de ambos a expressão
profissional inovadora.
O Coração das Trevas (1899)
é a mais profunda reflexão de Conradsobre o difícil processo de se entregar a Inglaterra e ao inglês. [...]
A experiência de Mali édemarcada por duas obras
Um diário no sentido estrito do texto (1967) e Argonautas doPacifico Ocidental (1922)
[...] os dois textos são refrações parciais, experimentos científicos daescrita [...] O diário {onde expõe
toda sua raiva, depressão, vulnerabilidade} é um inventivotexto polifônico. É um documento crucial para
a história da antropologia, não porque revela arealidade da experiência etnográfica, mas porque nos
força a enfrentar as complexidades detais encontros e a tratar todos os relatos textuais baseados em
trabalho de campo como
construções parciais” (p.106
-107).2.

Mali e Conrad eram poloneses,se conheciam, o primeiro era grande admirador do segundo, eambos
desenvolviam ambiciosas carreiras como escritores na Inglaterra. [...] Embora a relaçãoentre ambos
tenha sido breve, Mali frequentemente representava sua vida em termosconradianos, e em seu diário
ele parecia as vezes estar reescrevendo temas de O Coração dasTrevas (p.107).
“Tanto O Coracao das Trevas quanto o Diario parecem retratar a crise de uma identidade –

uma luta, nos confins de uma civilização ocidental, contra a ameacao de dissolução moral”
(p.108).
“Talvez a mais import
ante diferença textual seja que Conrad assume uma posição irônica comrespeito a verdade
representacional, uma atitude apenas implícita na escrita de Malinowsi. Oautor de Argonautas se dedica
a construir ficções culturais realistas, enquanto Conrad, emboracomprometido de forma semelhante
com isso, representa a atividade como prática
contextualmente limitada a contar estórias” (p.109).

“Ao se compararem as experiências de Mali e Conrad, fica


-se espantado com suasobredeterminação lingüística. Em cada caso, três línguas estão em ação,
produzindoconstantes traduções e interferências, por exemplo escreve o diário em polonês, cartas
emFrances, e o texto em inglês, língua nativa
” (p.109).

“Podemos sugerir o esboço de uma estrutura para as três línguas ativas


das experiênciasexóticas de Conrad e Mali. Entre o polonês, a língua materna, e o inglês, a língua da
futuracarreira e casamento, uma terceira intervem, associada com o erotismo e com a violência
[...]Assim é possível distinguir em cada caso uma língua materna, uma língua do excesso e umalíngua de
restrição (do casamento e da autoria) [...] Portanto, tanto Conrad no Congo quantoMali nas Ilhas
Trobriand estavam imersos em situações subjetivas complexas e contraditórias,articuladas nos níveis de
lingua
gem, do desejo e da filiação cultural” (p.111
-112).3.
Tanto em Argonaista quanto no Diário vemos a crise do “eu” em algum dos mais distantes
pontos de navegação. Ambos os trabalhos retratam uma experiência de solidão, mas umaexperiência de
solidão que é preenchida com outros povos e com outros sotaques e que não
permite um sentimento de centramento, de dialogo coerente, ou comunhão autentica”
(p.112).
A questão central do diário é que Mali é a “impossibilidade de ser sincero e portanto de ter um
centro ético. Mali sente a exigência de coerência pessoal. [...] A solução de Mali consiste emconstruir
duas ficções relacionadas

a de um eu e a de uma cultura. [...] Ele se permitia cair
no extremismo “eslavo”, suas revelações sobre si mesmo e sobre seu tra
balho eram
exageradas e ambiguamente parodisticas” (p.113).
“Assim como o protagonista de Conrad, o etnógrafo luta constantemente para manter uma
essencial auto-
suficiencia interior” (p.116).

“A cultura, uma ficção coletiva, é a base para a identidade e


a liberdade individuais. O eu,[autosuficiente] é um produto de trabalho, uma construção ideológica que
é no entantoessencial, o fundamento da ética. Mas, uma vez que a cultura se torna visível como objeto
ebase, um sistema de significado entre outros, o eu etnográfico não pode mais se enraizar
numa identidade não mediada” (p.118).

4.
“Malinowski porem, resgatou um eu da desintegração e da depressão. Esse eu estava
associado, tal como o de Conrad, ao processo da escrita. [...] A subjetividade fragmentadamanifesta em
ambas as obras é aquela de um escritor, e o impulso de diferentes desejos e
línguas é nítido numa serie de inscrições discrepantes” (p.118).
5.
“Trata
-se de diferentes experiências de escritas; etnografias são ao mesmo temposemelhantes e distantes em
relação aos romances. Mas, de um modo geral e importante, asduas experiências encenam o processo
de automodelagem ficcional em sistemas relativos de
cultura e linguagem que chamo de etnográficos” (p.122).

“ Tem
-se a tentação de pro
por que a compreensão etnográfica ‘e melhor entendia como uma
criação da escrita etnográfica do que como uma consistente qualidade da experiênciaetnográfica. De
qualquer modo, o que Mali realizava ao escrever era simultaneamente 1) ainvenção ficcional dos
trobriandeses a partir de uma massa de notas de campo, documentos,memórias, e assim por diante; e
2) a construção de um novo personagem publico, o
antropologo como pesquisador de campo” (p.123).
6.
“A antropologia, baseada no trabalho de campo, ao co
nstituir sua autoridade, constrói ereconstrói coerentes outros culturais e eus interpretativos. Se esta
automodelagemetnográfica pressupõe mentiras de omissão e de retórica, ela tambem torna possível o
relato
de poderosas verdades” (p.126).

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